LEITE, M. E. . Imagens do Trabalho Escravo nas Fotografias de Christiano Júnior. Histórica (Arquivo Público do Estado de São Paulo), v. 10, p. 21-30, 2014.

July 24, 2017 | Autor: M. Leite | Categoria: Escravidão, Fotografia
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Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 61, maio 2014 A REVISTA ONLINE DO ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 61, maio 2014

PRÓXIMA EDIÇÃO

O próximo número da revista Histórica Online será dedicado às comunicações produzidas para o evento São Paulo e suas águas: passado e presente, realizado em março de 2014 no Arquivo Público do Estado de São Paulo. Na ocasião, os palestrantes abordaram questões como a situação passada e presente dos rios em São Paulo, seu papel na história da cidade, e os atuais problemas relacionados ao tema, da impermeabilização do solo à poluição das águas.

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Histórica - A Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 56, nov. 2012 A REVISTA ONLINE DO ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 61, maio 2014

Editorial



VESTÍGIOS DA ESCRAVIDÃO Presente na maior parte de nossa história, a escravidão é um dado fundamental na formação da sociedade brasileira. Daí a necessidade de ampliar o estudo do fenômeno que atravessou quatro séculos e deixou marcas profundas na economia, cultura e política nacionais. Nos últimos tempos, historiadores e estudiosos de Ciências Humanas em geral têm se dedicado com mais afinco a esta pesquisa. Isso implica preencher lacunas do conhecimento, ao mesmo tempo em que se puxam novos fios da meada, que podem levar a aspectos inéditos do tema. Como consequência deste processo, surge a possibilidade de pensar as marcas que a escravidão deixou no Brasil. Neste número da Revista Histórica Online, expomos vários caminhos tomados pelos pesquisadores interessados no tema. A saúde dos escravos no período anterior à Abolição; as irmandades onde eles se organizavam para garantir algum espaço dentro da sociedade; as imagens dos “negros de ganho” captadas por Christiano Júnior, um dos pioneiros da fotografia no Brasil; e a experiência do trabalho escravo coexistindo com o trabalho livre dentro de uma indústria, a Real Fábrica de Ferro São João de Ipanema, estão entre os assuntos que os articulistas dessa edição levantam, demonstrando a variedade de caminhos de pesquisa que podem ser seguidos para entender melhor a escravidão no Brasil. Um outro caminho, aliás, é o estudo da escravidão em Cabo Verde, com muitos pontos de contato com a realidade brasileira. Além dos artigos, essa edição da Histórica Online mostra o trabalho feito no Arquivo Público para restaurar, digitalizar e difundir um importante acervo da escravidão: a coleção do jornal Redempção, um dos principais veículos do movimento abolicionista em São Paulo. Redempção foi publicado de 1887 a 1899, e a coleção que está sob guarda do Arquivo é a mais completa que se conhece. Sua difusão pode também contribuir para ampliar e diversificar os estudos sobre escravidão.

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Na seção “Imagens de uma Época” o internauta pode entrar em contato com fotos e mapas que mostram locais importantes para a história da escravidão. Além disso, está disponível uma prévia do Redempção digitalizado. Boa leitura!

Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 61, maio 2014

Sumário CABO VERDE, COMÉRCIO INTERNO, BEM-ESCRAVO E A COIBIÇÃO DA RIQUEZA ILÍCITA DE SEUS MORADORES ENTRE OS SÉCULOS XV E XIX

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IMAGENS DO TRABALHO ESCRAVO NAS FOTOGRAFIAS DE CHRISTIANO JÚNIOR

21

A SAÚDE DOS ESCRAVOS EM MINAS GERAIS APÓS A ABOLIÇÃO DA IMPORTAÇÃO DE AFRICANOS

30

ALEMÃES, SUECOS, AFRICANOS E INDÍGENAS: MÃO DE OBRA NA FÁBRICA DE FERRO DE SÃO JOÃO DE IPANEMA

44

ESPAÇO DA

53

RELIGIOSIDADE

ESCRAVA: IRMANDADES

ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO RESTAURA E DIGITALIZA JORNAL ABOLICIONISTA - TEXTO DE GLAICE MEIRE MACHADO E JÚLIO COUTO FILHO

63

TRATAMENTO DISPONIBILIZA JORNAL PARA CONSULTA

70

SEM MEIAS-PALAVRAS

73

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Histórica -- AA Revista Revista Eletrônica Eletrônica do do Arquivo Arquivo Público Público do do Estado Estado de de São São Paulo, Paulo, nº nº 56, 56, nov. nov. 2012 2012 Histórica A REVISTA ONLINE DO ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 61, maio 2014

CABO VERDE, COMÉRCIO INTERNO, BEM-ESCRAVO E A COIBIÇÃO DA RIQUEZA ILÍCITA DE SEUS MORADORES ENTRE OS SÉCULOS XV E XIX Artur Monteiro Bento

Pós-doutor em Antropologia Social pela UFRJ, doutor e mestre em Memória Social pela UNIRIO. Autor de cinco livros. Docente auxiliar da UniPiaget, coordenador da Área Científica Psicologia e da Pós-Graduação em Psicologia Clínica e da Saúde.

Resumo: Este artigo – parte de minha pesquisa de pós-doutorado em Antropologia Social desenvolvida no Museu Nacional, na UFRJ – tem como objetivo analisar a formação da sociedade colonial na capitania da Ribeira Grande de Santiago de Cabo Verde, com foco no comércio interno das ilhas entre os séculos XV e XIX. Nesse sentido, destaco a atuação da Coroa para estreitar as relações comerciais entre a Colônia e Metrópole, com vistas a garantir o seu sucesso e difusão, mas também para coibir o comércio de mercadorias que não fossem originárias do Arquipélago, bem como o tráfico de escravos entre os moradores. Estes deviam ser utilizados unicamente para serviços e povoamento, garantindo, assim, a centralização do comércio transatlântico. O trabalho demonstra que o arquipélago de Cabo Verde serviu como espaço de circulação de bens e entreposto comercial; fez parte da rota triangular de escravos e ajudou a consolidar o Império Ultramarino Português, na medida em que garantiu a geocentralidade atlântica, com importância geoeconômica para Portugal. Palavras-chave: Cabo Verde. Rota Triangular. Comércio Interno. Abstract: This article, written in the Museu Nacional of UFRJ, as part of my research for postdoctoral fellowship in Social Anthropology, intends to analyze the formation of colonial society in the capitaincy of Ribeira Grande de Santiago, Cape Verde, focus on the internal trade in the islands from the 15th to the 19th centuries. The article emphasizes the actions of the Crown to strengthen the trade between Colony and Metropole, aiming to ensure its success and dissemination, but also to block the slave traffic among the settlers. Slaves should be used solely for working and populating the islands, ensuring the centralization of the transatlantic trade. It also demonstrates that the archipelago of Cape Verde provided a space for the circulation of goods. The colony also played the role of a trading post and part of a triangular route of slaves, helping to consolidate the Portuguese Overseas Empire, ensuring the Atlantic geocentrality, and a geoeconomic importance for Portugal. Keywords: Cape Verde. Triangular Route. Internal Trade. 6 BENTO, Artur Monteiro. Cabo Verde, comércio interno, bem-escravo e a coibição da riqueza Ilícita de seus moradores entre os séculos XV e XIX. Histórica, São Paulo, ano 10, n. 61, p. 6-20, maio 2014.

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Iniciativas governamentais e inserções das populações no seio da sociedade colonial cabo-verdiana Tendo descoberto no meio do Atlântico Norte, entre 1460 e 1462, as terras que denominou Cabo Verde, Portugal precisou reconhecê-las e povoá-las. Cabia, além da doação de terras a capitães-mores, com início em 1462, nomear governadores portugueses, sendo Duarte Lobo da Gama o primeiro a governar as ilhas, de 1588 a 1591. Com base nos textos historiográficos analisados, pode-se dizer que em 1462 teve início a ação colonizadora, com a divisão da ilha de Santiago em duas capitanias, com dois donatários. Uma, a do Sul, tinha sede na Ribeira Grande, e foi doada ao capitão António de Noli; e outra, a do Norte, sediava-se na praia da Senhora da Luz, onde se ergueu a povoação de Alcatraz, doada ao capitão Diogo Afonso. A capitania de Ribeira Grande de Santiago de Cabo Verde, governada pelo descobridor António de Noli, de 1462 a 1496, foi núcleo da administração colonial e sede do Bispado. Essa capitania é considerada porto de apoio para rotas transatlânticas, comércio triangular de escravos, laboratório de plantas e animais, e formadora da identidade cabo-verdiana, na figura do mestiço. Também conhecida como Cidade Velha, Ribeira Grande de Santiago foi incluída entre as sete maravilhas de origem portuguesa no mundo, e designada pela Unesco como patrimônio mundial da humanidade, desde 2009. Em 1550 foi nomeado um capitão-geral para Cabo Verde e Guiné, responsável pela gestão dos dois territórios. Em seu conjunto, os donatários receberam uma doação da Coroa, pela qual se tornavam possuidores, mas não proprietários da terra, de forma que não podiam vender a capitania, cabendo ao rei o direito de modificá-la ou mesmo extingui-la. A posse dava aos donatários extensos poderes tanto na esfera econômica (arrecadação de tributos) como na esfera administrativa. Lembrando que os capitães em questão possuíam, enquanto soberanos, jurisdição apenas na capitania/ilha em que residiam, cabendo-lhes fundar vilas e povoações, doar sesmarias, alistar colonos para fins militares e formar milícias sob seu comando. Considerando o conjunto do mercado português, as capitanias representavam uma tentativa transitória ainda tateante de colonização, com o objetivo de integrar a colônia ao mercantilismo europeu, na medida em que o rei mantinha o monopólio das especiarias e uma variedade de produtos mais rentáveis. Certamente, entre o século XV e o século XVIII, Cabo Verde estava assentado numa estrutura administrativa bastante precária em relação às suas necessidades, considerando-se a montagem de um tráfico negreiro e uma elite local detentora de recursos para arcar com os empreendimentos da consolidação colonial. O sistema colonial, semelhante ao estabelecido nos arquipélagos norte-atlânticos, residiu na articulação de alguns fatores fundamentais. A administração donatária, concedendo-se capita7 BENTO, Artur Monteiro. Cabo Verde, comércio interno, bem-escravo e a coibição da riqueza Ilícita de seus moradores entre os séculos XV e XIX. Histórica, São Paulo, ano 10, n. 61, p. 6-20, maio 2014.

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nias e atribuindo-se direitos de exploração a alguns senhores, evoluiu nos finais do século XVI para a jurisdição Guiné/Cabo Verde, desembocando na formação do governo-geral de Cabo Verde, no qual se enquadrou também a administração do distrito dos rios de Guiné, zona na África que vai desde o rio Senegal até a Serra Leoa. No cenário geoeconômico do Império Colonial Português, o governo-geral de Cabo Verde está inserido numa região onde predomina uma geocentralidade atlântica, com importância econômica e política para Portugal. Ao conceder terras a capitães, o Rei transferia para a iniciativa privada a primazia da colonização, esboçando assim o sistema de arrendamento que vigorou do século XV ao século XVII, quando começou a exploração por meio de companhias, provavelmente em 1664. Os setores arrendados foram divididos em grupos: primeiro, Arguim e suas demarcações e as áreas de tratos (comércio) e resgates (captura ou compra de escravos) de Guiné; segundo, a área da Costa da Mina e, mais tarde, a dos tratos de Angola e São Tomé. A fim de tornar atrativo o empreendimento, o Rei concedeu aos donatários uma série de privilégios. Como observa Corrêa, na Carta Régia de 12 de junho de 1466,1 D. Alfonso outorgou aos capitães poderes civis e criminais sobre mouros, negros livres, brancos, forros e cativos, e toda a geração de cristãos. Foi com essa carta que os donatários e os moradores ganharam a liberdade de comercializar na zona denominada “rios de Guiné”. Tal zona compreendia as áreas geográficas que ficavam entre o Senegal e a Serra Leoa, tais como rios do Ouro, Senegal, Gâmbia, Casamansa, Cacheu, Grande, Nuno, Geba e o Cabo Branco. O que significava dizer, como expressa a carta, que “daqui em diante para sempre hajam e tenham licença para cada vez que lhes aprouver poderem ir com navios a tratar e resgatar em todos os nossos tratos das partes da Guiné, reservando disto o nosso trato de Arguim” (transcrição da carta apud CARREIRA, 1972, p. 22). Exemplo que nos parece significativo da importância da carta é o resgate de africanos na região da Guiné. “Navios com carregamentos de escravos provenientes da costa africana ali começavam em breve a fazer escala, sendo certo que mais tarde esse tráfico se tornaria corrente e considerável através das ilhas de Cabo Verde” (CORRÊA, 1954, p. 130), passando a capitania da Ribeira Grande de Santiago à sede da feitoria do trato da Guiné. Ou seja, Santiago se transformou na “feitoria portuguesa da Guiné”: local de centralização das atividades administrativas de cobranças dos impostos sobre as mercadorias transacionadas entre o arquipélago e a costa africana e, sobretudo, de controle do comércio realizado na costa da Guiné, devido à impossibilidade da Coroa portuguesa de instalar feitorias na costa africana.2 A maioria dos historiadores cabo-verdianos concorda que o “tráfico de escravos” não foi le1 D. Afonso V outorgou a carta de privilégios aos moradores de Santiago em 12/06/1466, consignando plenos poderes ao Capitão e liberdade de comércio de seus moradores, como base da política dos descobrimentos. Os primeiros moradores portugueses resistiam à permanência na colônia devido aos constrangimentos geográficos e limitações severas do ecossistema. E, por falta de novos interessados, a possessão portuguesa permanecia quase deserta dois anos depois do início do povoamento, em 1462. Em meio a essas condições, observou-se que a ocupação só poderia se consolidar com recurso ao escravo africano, e desde que os colonos gozassem de ampla autonomia e de liberdade de movimento. A carta é considerada pela maioria dos historiadores como sendo a primeira Carta Orgânica do Arquipélago. Cf. BRASIO, 1959, e DINIS, 1960. 2 Cf. TEIXEIRA, 2005, p. 29-79.

8 BENTO, Artur Monteiro. Cabo Verde, comércio interno, bem-escravo e a coibição da riqueza Ilícita de seus moradores entre os séculos XV e XIX. Histórica, São Paulo, ano 10, n. 61, p. 6-20, maio 2014.

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galizado na carta, uma vez que o resgate de africanos do rio Senegal à Serra Leoa visava a fixação de colonos nas ilhas, uma mais-valia para o trabalho agrícola e o exercício da força desses escravos ao lado de seus senhores, mediante a inclusão deles na condição de subordinados, a partir da instrumentalização de sua capacidade de defender a capitania. A Carta Régia de 1472 limitou os privilégios dos moradores de Santiago no comércio com a Guiné, proibindo a comercialização de mercadorias que não fossem nativas, e instituindo a “obrigatoriedade que os navios fossem de pertença dos moradores e por eles armados e capitaneados, ficando vedada a parceria com não moradores, nacionais ou estrangeiros” (História Geral de Cabo Verde, Corpo Documental, vol I, p. 27-28), justificando as transgressões3 do trato de 1468 outorgado ao mercador Fernão Gomes, o que foi, na verdade, considerado por historiadores, a exemplo de Amaral (2001), como desacato à Coroa. Como bem indica Carreira (1972, p. 32), “com maiores ou menores atritos entre moradores e contratadores, os primeiros continuaram a tratar e a resgatar nos rios de Guiné. O aumento do número de lançados, e a sua conhecida ação à margem das leis, na compra de escravos e na permuta de mercadorias por generos, em todo o setor da costa até à Serra Leoa.” MARK (2002) defende a ideia de que a limitação de privilégios reforçou as transgressões e o crescimento do número de lançados (colonizadores portugueses que, fixados na África, mantinham os costumes do país de origem) e tangomãos (negociantes de escravos), forçando a circulação de produtos fora das áreas controladas pela Metrópole. Esse episódio, certamente, acelerou o processo de povoamento, visto que “se não tivesse havido uma persistente reação dos moradores contra a ação estranguladora do rei, dificilmente se povoaria o arquipélago com a rapidez verificada.” (CARREIRA, 1972, p. 32). Esses fatos emanam e, ao mesmo tempo, contribuem para criar uma estrutura de governo local. A lei está, aqui, inscrita: os capitães detêm o poder, direitos e regalias especiais, e esta lei lhes confere competência para fazer distribuição da terra, reservando para si o domínio dela. Acresce ainda que essa jurisdição teve grande impacto na exploração da posição geográfica do meio do Atlântico, comercializando produtos em rota triangular (África, Cabo Verde, Europa-América). Resultava daí uma permanente drenagem de recursos para o exterior, que reduziu a capacidade de investimento e desenvolvimento econômico de Cabo Verde. Superpunham-se, assim, nas transações comerciais, a administração colonial e o Estado português, com a função da metrópole e do mercado europeu. Esse modo de exercício do poder foi responsável pela configuração das relações de vassalagem que se desenvolveram na colônia, apresentando traços de antigo regime, a exemplo do feudalismo. Estabeleceu-se uma economia agropecuária voltada para a manutenção das ilhas e, portanto, sujeita à variação do mercado europeu. 3 Em 1468, a Coroa arrendou o comércio da Guiné ao mercador Fernão Gomes, confirmado no reinado de D. João II (1481-1495) para explorar o litoral africano a sul da Serra Leoa. Os mercadores cabo-verdianos podiam comercializar nas zonas próximas da foz dos rios guineenses, onde se fixaram alguns deles. A costa ocidental da África mostrava-se atrativa para o lucro dos mercadores e para a Coroa. Da Guiné saíam não só bens de comércio, mas também escravizados, que eram considerados verdadeiras mercadorias. Com a promulgação da carta de limitação de privilégios dos moradores de Santiago, de 1472, os mercadores passaram a transgredir as ordens, dando início a um comércio ilegal.

9 BENTO, Artur Monteiro. Cabo Verde, comércio interno, bem-escravo e a coibição da riqueza Ilícita de seus moradores entre os séculos XV e XIX. Histórica, São Paulo, ano 10, n. 61, p. 6-20, maio 2014.

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Em 1512, na Ribeira Grande de Santiago, já havia Câmara Municipal. Em especial, no contexto do império português do século XVI, o poder civil encontra-se estruturado conforme se observa na Tabela 1. Tabela 1 – Estrutura civil da capitania da Câmara da Ribeira Grande de Santiago Fonte: Padre italiano Capuchinho Bernardo Vaschetto (1987). N.º

Organização Civil

1

Governador e Provedor da Fazenda Real (com dois guardas pessoais brancos)

1

Ouvidor letrado

1

Meirinho de correição (com seis guardas pessoais)

1

Escrivão da Correição e Chanceler

1

Alcaide do mar

1

Almoxarife

1

Recebedor (com direito a um escravo como guarda pessoal)

1

Guarda do Mar

1

Tesoureiro da cidade, Provedor das fazendas dos defuntos e ausentes e Mamposteiro (procurador) dos cativos

1

Alcaide da cidade

1

Escrivão dos Órfãos

1

Juiz dos Órgãos

4

Tabeliões

2

Juízes

2

Vereadores (eleitos pelos moradores-estantes)

1

Procurador do Concelho

1

Escrivão da Câmara (contador e distribuidor de processos)

Os problemas sociais não são grandes nessa colônia, visto que os escravos vivem em estado de trânsito. Quanto aos moradores portugueses e seus servos, eles vão se organizar em povoações e vilas, ocupando as áreas agrícolas orientadas por procedimentos costumeiros, sob o controle dos poderes constituídos, enfatizando a estrutura do poder militar (Tabela 2), o que explicaria a forte intervenção do Estado na economia por meio de regulamentos, monopólios, 10 BENTO, Artur Monteiro. Cabo Verde, comércio interno, bem-escravo e a coibição da riqueza Ilícita de seus moradores entre os séculos XV e XIX. Histórica, São Paulo, ano 10, n. 61, p. 6-20, maio 2014.

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isenções e incentivos. Tabela 2 – Organização militar Fonte: Elaboração do autor através dos estudos de Vaschetto (1987). N.º

Poder Militar

1

Sargento-Mor

1

Condestável da Fortaleza de S. Sebastião

2

Bombardeiros da Fortaleza Real de São Felipe

3

Bombardeiros para os baluartes da vigia da Ribeira Grande e de São Brás

1

Armeiro – serralheiro

2

Facheiros

1

Porteiro da Fortaleza

1

Meirinho da Bandeira

1

Escrivão geral

A colônia herdou a estrutura administrativa portuguesa, o que se deu com certa intensidade entre os séculos XVI e XVII, e aparece extremamente centralizadora através de um governo local que se impunha em nome do Reino. Mas a colônia tinha uma posição periférica, dependendo das posições políticas e econômicas de homens públicos e negociantes que atendiam os interesses de Portugal e de suas respectivas empresas. Lisboa instruía os funcionários em suas áreas de atuação, determinando as atribuições, obrigações e jurisdição dos diversos cargos incumbidos de gerir a colônia. Os diplomas legais eram baixados a cada um dos funcionários mais importantes e dos oficiais subalternos, traçando minuciosamente as suas competências. Eram em sua maioria personalizados, em consonância com os critérios de lealdade e confiança, além dos estritos mecanismos de vigilância e controle que marcavam as regras do poder do Estado absolutista. A construção do Direito aparece, assim, intimamente ligada aos interesses de grupos vinculados à produção e ao comércio triangular de Cabo Verde para Portugal, África, Brasil, América Espanhola, Índia Espanhola, América do Norte e interilhas. Definiram-se, assim, os contornos de uma economia triangular (importação-exportação), com sede na Ribeira Grande de Santiago até o século XVIII. Nessa economia o mercado interno era escasso e a agricultura de subsistência (milho, feijão e leguminosas) passou a garantir a sobrevivência da população com bastante dificuldade. Tal como noutros sistemas coloniais, os cativos formaram a maior riqueza das elites 11 BENTO, Artur Monteiro. Cabo Verde, comércio interno, bem-escravo e a coibição da riqueza Ilícita de seus moradores entre os séculos XV e XIX. Histórica, São Paulo, ano 10, n. 61, p. 6-20, maio 2014.

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locais, no que tange à participação na composição da riqueza familiar, das empresas pública e privada. Eram utilizados em transações comerciais, criadagem, pastagem, tecelagem e cultivo da terra. Houve, assim, principalmente entre os séculos XV e XVIII, um número razoável de escravos em todas as ilhas habitadas, especialmente na ilha de Santiago, porta de entrada de cativos e rota do comércio triangular. Porém, não foi possível computar uma população cativa da colonização até 1869, ano do último recenseamento de escravos, devido à falta de registros em arquivos públicos e privados. Vale ressaltar que o regime do indigenato4 nas colônias portuguesas vigorou até 1961, impondo a criação de uma dualidade de estatutos pessoais, assentada na distinção fundamental entre “indígenas” e “cidadãos”. Se o estatuto político era dual, todos eram portugueses, ou seja, faziam parte do corpo hierárquico da nação, embora o limite virtual dessa dualidade fosse a assimilação, progressiva e gradual. Mas ROSAS (1994) indica que o indigenato não se fez presente em todos os territórios coloniais: Cabo Verde, o Estado da Índia Portuguesa e Macau nunca foram submetidos a este regime, ao contrário de Guiné, Angola e Moçambique. O indigenato foi introduzido em São Tomé e Príncipe e em Timor após a Segunda Guerra Mundial. A estrutura corporativa proposta pelo regime para a população peninsular era, tal como o indigenato, paternalista e baseada na intervenção do Estado. Em ambos os casos, “indígenas” e “povo” são representados como grupos carentes de iniciativa e necessitados da proteção do Estado, que procura assegurar o imobilismo e evitar a transformação. De meados do século XV até meados do século XVIII, a capitania/província de Cabo Verde articulava diferentes circuitos comerciais. Os negociantes cabo-verdianos da cidade da Ribeira Grande de Santiago entretinham relações comerciais com as ilhas habitadas, as vilas e povoações próximas à cidade. As relações comerciais com o exterior das ilhas – sobretudo com Guiné Bissau, que se configurava como uma das áreas abastecedoras de escravos –, lançaram as bases econômico-comerciais no espaço insular. Ribeira Grande também funcionava como um entreposto comercial interligando a África e a América aos portos da Europa, como, por exemplo, Lisboa. Essas relações comerciais, sustentadas a partir das rotas transoceânicas aos mercados consumidores da América e África Portuguesa, assumem maior complexidade, não se constituindo em Cabo Verde apenas uma colônia de exploração, e sim portadora de conexões estáveis entre Portugal, administração local, redes comerciais e os seus comerciantes. Diante dessa lógica, o estudo da capitania-província nos permite apreender “o conjunto da vida econômica e do jogo capitalista” (BRAUDEL, 1996, p. 383). Sendo assim, pode-se inferir que as redes de relações tecidas pelos negociantes cabo-verdianos foram estabelecidas em diferentes pontos e portos do arquipélago 4 O regime do indigenato foi instituído pelo decreto orgânico de 1869, com aplicação a Guiné, Angola e Moçambique. Não chegou a vigorar em Cabo Verde, na medida em que os cabo-verdianos tinham recebido da Raínha D. Maria II, o direito de cidadania. Foi Salazar que sistematizou um conjunto de normas que dividiam a população das colônias portuguesas de África entre cidadãos, isentos do trabalho forçado, e indígenas, sujeitos ao trabalho forçado, cujo recrutamento era garantido pelas autoridades tradicionais nas colônias. Esta política foi intensificada e consolidada, nomeadamente, com o Ato Colonial (1930) e a Constituição (1933). Cf. CORDEIRO, 2001; O’LAUGHLIN, 2000, p. 7-42.

12 BENTO, Artur Monteiro. Cabo Verde, comércio interno, bem-escravo e a coibição da riqueza Ilícita de seus moradores entre os séculos XV e XIX. Histórica, São Paulo, ano 10, n. 61, p. 6-20, maio 2014.

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habitado, não se limitando apenas a Ribeira Grande de Santiago, como veremos a seguir, quando se trata do comércio interno de escravos. A praça comercial da Ribeira Grande de Santiago e as relações com os negociantes das ilhas Ribeira Grande de Santiago, abrigando parcela significativa de europeus e africanos, tornou-se a maior riqueza em recursos humanos no quadro dos formuladores da instituição colonial. Ou seja, não dispondo de riquezas naturais de importância significativa que atraíssem gente para o espaço insular, os moradores em presença fundiram suas raças, bem como suas crenças e práticas religiosas, dando origem a uma sociedade bastante miscigenada e à afirmação de uma identidade própria. Assim, a região passou a ser objeto de notáveis iniciativas governamentais que visavam a sua consolidação como território nacional, a garantia das fronteiras, a ocupação racional do espaço físico e a exploração dos importantes recursos naturais ali existentes (pesca, agricultura, comércio). Cabo Verde, isolado no meio do Atlântico, montou-se sob a administração colonial, já que nenhuma das ilhas era habitada, nem apresentava quaisquer indícios de presença humana. A descrição de Diogo Gomes confirma, em vários aspectos, a de Cadamosto, sobre a inexistência de vida humana, acrescentando “a existência de árvores com figos abundantes no tronco e ramos (ficus capensis) e de muito feno, que devia ser constituído essencialmente por gramíneas secas e amareladas, dada a época adiantada da estação seca em que se descobriu a ilha, 1º de maio.” (TEIXEIRA e BARBOSA, 1958, p. 30). Dados cronológicos e historiográficos semelhantes, ainda que por caminhos distintos, sustentam que em 1461, um ano após a doação da capitania da Ribeira Grande de Santiago por Afonso V a seu irmão dom Fernando, a dita capitania recebeu os primeiros habitantes provenientes de Gênova e do Algarve, conduzidos por António de Noli, Diniz Eanes e Aires Tinoco. António de Noli faleceu nessa capitania, em 1496, sucedendo-lhe sua filha, dona Branca de Aguiar, casada com Jorge Correia de Sousa, da Casa d’El-Rei. Diogo Afonso não foi ele próprio colono, mas enviou para a parte da ilha sob sua jurisdição (Alcatraz) alguns casais da Metrópole, sobretudo do Algarve. As fontes indicam que [...] quatro anos depois, reconheceu-se todavia que ninguém lá queria viver, persistindo apenas alguns genoveses dedicados à colheita, pelo mato, de algodão introduzido da Guiné e já subespontâneo. Não havia quaisquer indícios de agricultura propriamente dita. (TEIXEIRA e BARBOSA, 1958, p. 30).

Numa linha um pouco mais categórica, a carta de privilégio de 12 de junho de 1466 introduziu mão de obra escrava proveniente na sua maior parte da Guiné, mencionando-se entre eles, 13 BENTO, Artur Monteiro. Cabo Verde, comércio interno, bem-escravo e a coibição da riqueza Ilícita de seus moradores entre os séculos XV e XIX. Histórica, São Paulo, ano 10, n. 61, p. 6-20, maio 2014.

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especialmente, Balantas, Papeis, Bijagós e também Felupes e Jalofos para os efeitos da fixação de moradores no novo território. Aos escravos, algarvios e genoveses, juntaram-se posteriormente judeus, degredados, franceses, espanhóis, açorianos e madeirenses. BARROS (1930) demonstra que no século XIX estabeleceu-se uma colônia israelita na ilha de Santo Antão, tendo alguns dos seus elementos passado a outras ilhas, o que comprova a presença, em quase todas as ilhas, de mestiços descendentes de judeus. A maioria dos historiadores acredita que a carta de privilégio autoriza os colonos a resgatar (capturar ou comprar) escravos da Guiné, reservando Arguim (ilha situada na extremidade Norte da atual República Islâmica da Mauritânia) ao mercador Fernão Gomes (contrato de 1868), e isentando os colonos do dízimo de todas as mercadorias, excluindo armas, ferramentas, navios e aparelhos enviados do reino e vendidos nas ilhas. Foram isentos também de pagar dízimo de todas as mercadorias provenientes da compra ou troca com as ilhas de Canária, Madeira, Porto Santo, Açores, Portugal, etc. A isenção do dízimo estava condicionada à apresentação de certidões emitidas por fiscais outorgados por Lisboa. Em 1899, Barcellos cita Frei Fernando da Soledade e Jorge Cardoso, os quais afirmam que Frei Rogério e Frei Jaime, frades franciscanos, naturais da Catalunha e residentes no convento de S. Bernardo da Atouguia, em Lisboa, vieram para Cabo Verde com os colonos de 1462. Dentre os elementos iniciais que particularizam os problemas sociais da Colônia, o autor demonstra que os genoveses Antonio de Noli (capitão) e seu irmão Bartolomeu de Noli iniciaram a colonização com vida moral bastante fora das regras, pelo que, tendo sido chamado à razão pelos frades, o capitão reagiu de modo violento contra ambos, o que valeu a um deles, Frei Rogério – homem muito letrado, escrivão e músico – o preço da própria vida. As regras gerais do sistema colonial funcionavam como nas demais colônias portuguesas: Cabo Verde reexportava os produtos provenientes de outras áreas. No complexo mundo dos negócios, Ribeira Grande entra na fase de decadência econômica, advinda da gradual deterioração das condições climáticas e do maior controle, punição e erradicação do comércio interno e externo de escravos. Foi então que a colônia se apercebeu das mudanças que ocorriam no mundo que se modernizava. Aspecto à parte diz respeito a não neutralidade de ações políticas, porque todas as ocorrências indicam uma série de interesses em jogo na colônia, decorrente da emergência de uma elite crioula/ mestiça denominada “filhos da terra”, que perfaz todo o seu ciclo em menos de um século. Esse ciclo, devidamente equipado e funcional, virá a reproduzir-se no espaço insular e nos rios da Guiné, através de relações comerciais, exercendo postos administrativos nas colônias portuguesas de África, evangelizando moradores e convertendo indígenas. Foi na capitania que surgiu a Câmara Municipal, seguida da Câmara dos Deputados em 1555. Era espaço dominado por reinóis, que progressivamente incorporou os filhos da terra. É por isso que GODINHO (1975) formula que a estrutura social dos europeus foi transferida com segurança e necessária adaptação para os mestiços (nobres, clérigos, artesãos, etc.), estabelecendo no seu seio uma estratificação 14 BENTO, Artur Monteiro. Cabo Verde, comércio interno, bem-escravo e a coibição da riqueza Ilícita de seus moradores entre os séculos XV e XIX. Histórica, São Paulo, ano 10, n. 61, p. 6-20, maio 2014.

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social semelhante à do Reino. Havia claramente a ideia de uma sociedade mestiça no século XIX, na eminência da queda do sistema colonial, à medida que o tráfico de africanos estava sendo vigiado e punido por organismos internacionais. Basta recordar que a Lei inglesa Bill Aberdeen, de 1845, além de proibir o tráfico de escravos, outorgou poderes aos ingleses de abordarem e aprisionarem navios de países que não acatassem os dispositivos da Lei. O regulamento de 25 de outubro de 1853 manda fazer o inventário geral dos escravos e o decreto de 14 de dezembro de 1854 determina sua libertação. Essas duas medidas levaram ao inventário nominal de escravos nas possessões portuguesas, sendo o de Cabo Verde concluído em 1856. Em 28 de abril de 1858, fixou-se o prazo de vinte anos para a abolição da escravidão nos territórios portugueses. Porém, somente em 1869 os escravos foram libertos, com a obrigação de servirem seus senhores até 29 de abril de 1878. Em 29 de abril de 1875, decretou-se a abolição definitiva da escravidão para 1876, seguida da sua tutela por dois anos, durante os quais os libertos poderiam ser contratados por seus senhores, certamente para não provocar o colapso econômico, visto que os libertos tendiam a dar um novo rumo às suas vidas. Grosso modo, esse comércio de escravos se prolonga até o ano de 1869, conforme indica a Tabela 3, que nos oferece uma visão geral do número de escravos recenseados, deixando inferir a existência de um tráfico interno legalizado e/ou clandestino.

Tabela 3 – Elaboração de António Carreira, a partir dos dados de Francisco de Andrade (1582); Arquivo dos Serviços Administrativos (1827), Boletim Oficial (1846 e 1868), Anais do Conselho Ultramarino (1855). Ilhas

Escravos Recenseados 1582

1827

1834

1844

1856

1868

1869

Santo Antão

-

207

180

235

169

42

68

São Vicente

-

14

5

-

32

-

-

São Nicolau

-

171

125

163

158

52

70

Boa Vista

-

489

513

662

372

146

322

Sal

-

72

-

-

137

68

73

Barlavento

-

953

823

1.060

868

308

533

Maio

-

240

363

376

406

128

139

11.700

2.505

1.714

2.744

2.422

973

2.068

Santiago

15 BENTO, Artur Monteiro. Cabo Verde, comércio interno, bem-escravo e a coibição da riqueza Ilícita de seus moradores entre os séculos XV e XIX. Histórica, São Paulo, ano 10, n. 61, p. 6-20, maio 2014.

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Fogo

2.000

1.212

909

1.229

1.247

375

1.107

Brava

-

213

170

250

239

80

173

Sotavento

13.700

4.170

3.156

4.599

4.314

1.756

3.487

Total

13.700

5.123

3.979

5.659

5.182

2.064

4.020

Total Geral

40.027

A Tabela 3 mostra claramente o valor do escravo, embora este seja bastante insignificante no século XIX. Se nos detivermos na análise da distribuição da população total, esta indica 29.888 (Santo Antão), 8.780 (São Vicente), 11.958 (São Nicolau), 483 (Sal), 2.613 (Boavista), 2.048 (Maio), 64.811 (Santiago), 17.620 (Fogo), 9.223 (Brava), totalizando 147.424 habitantes em 1900, conforme o censo apresentado por SARMENTO, MORAIS e MORGADO (1957). De certo modo, os 40.027 escravos recenseados pressupõem escravos de quintal (serviços domésticos) e trabalhos agrícolas, indicando que os filhos da terra abastados possuíam a maioria dos escravos, tendo em conta a quase inexistência de reinóis no final do século XIX. É preciso não deixar de reconhecer o consenso dos historiadores de que, principalmente, no segundo quartel do século XVII, a nova elite dos filhos da terra reduz o número dos seus escravos: alforria-os ou vende-os, pois dadas as limitações severas do arquipélago, os cativos representavam gastos familiares. Uma leitura cuidadosa da importância da rota triangular demonstra com clareza como o recenseamento geral deturpa a realidade da escravidão. Um funcionário em 1549 diz que “fora da cidade de Lisboa, nenhuma outra cidade do reino fora tão rentável, pois os navios do Brasil, do Peru, das Antilhas e da Ilha de São Tomé fazem escala na Ribeira Grande. Um censo, realizado em 1582, indicou a existência de pelo menos 13.700 escravos em Ribeira Grande.” (REPÚBLICA DE CABO VERDE, 2008, p. 21). Parece que a falta de chuvas, associada às fomes cíclicas e ao abandono econômico ao qual a colônia foi submetida, levou a um processo sistemático de libertação da maior parte dos escravos, trabalhando como empregados livres ou revendendo-os para o exterior, se tivermos em conta a insignificância de cativos registrados, com relação à população total (147.424). Obviamente, os fracos recursos, associados à decadência da Ribeira Grande e à posse de terra por naturais, aceleraram a queda da escravidão. Por outro, o processo sistemático de ocupação de cargos na administração colonial por este grupo certamente acelerou a mestiçagem e a consequente diluição de barreiras raciais. Nessa linha de pensamento, a sobrevivência adquiriu importância no quadro da permanência dos grupos sociais, passando à construção de valores próprios: hospitalidade, solidariedade (morabeza), interajuda (djunta mon) e criatividade no âmbito cultural, artístico e 16 BENTO, Artur Monteiro. Cabo Verde, comércio interno, bem-escravo e a coibição da riqueza Ilícita de seus moradores entre os séculos XV e XIX. Histórica, São Paulo, ano 10, n. 61, p. 6-20, maio 2014.

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musical. Poder-se-ia considerar uma escravidão fracassada, ou, nesse caso, um sistema quase livre, se fizermos uma leitura atenta da distribuição de escravos nas ilhas, considerando que em “1869 havia 4.020 escravos” para uma população estimada em “67.357, em 1871” (SARMENTO, MORAIS e MORGADO, 1957). Em 1898, vinte anos após a abolição da escravidão, a Província de Cabo Verde (1898) passa a disciplinar os bens, pelo decreto de 22 de junho de 1898, informando que “são sujeitos, em geral, à contribuição de registro os atos que importam transmissão perpétua ou temporária de propriedade imobiliária de qualquer valor, espécie e natureza, por título gratuito ou oneroso.” (Art. 1º). Nessa categoria estão inscritos [...] os contratos de compra e venda, escambo ou troca, constituição de emphyteuse e censo consignativo; as transmissões de propriedade perpétua ou temporária, por título oneroso das concessões feitas pelo governo para a exploração de empresas industriais de qualquer natureza que sejam, tenham ou não principiado a exploração. (Art. 1º, alíneas 1 e 2).

Este campo de análise mostra-se bastante rico, pois nos permite localizar as estratégias de coibição da riqueza ilícita de seus moradores por descaso no pagamento de contribuições ao governo local. Torna-se oportuno lembrar que o governador passa a disciplinar os grupos e proteger os bens públicos sob a jurisdição da Província Ultramarina, regido pelo código administrativo de 1842, incumbindo o escrivão de fazenda do concelho de receber dos párocos os dados das pessoas falecidas no grêmio da Igreja Católica, até ao dia 8 de cada mês, [...] declarando os seus nomes, idades, estado, quem sucedeu nos bens, por que título e qual o seu parentesco com os falecidos. Idêntica relação será enviada pelos regedores de paróquia, quanto às pessoas que falecerem fora do grêmio da Igreja Católica. (PROVÍNCIA DE CABO VERDE, Capítulo III, Secção III, Art. 35º, 1898).

Foi o caso, entre outros, da obrigação imposta aos administradores dos concelhos5 enviarem “até ao dia 8 de cada mês aos respectivos escrivães de fazenda, as cópias dos testamentos das pessoas falecidas no mês antecedente; da entrega será passado recibo pelo escrivão de fazenda.” (PROVÍNCIA DE CABO VERDE, Capítulo III, Secção III, Art. 36º, 1898). Tal como ocorria em outras partes do Império português, “a fiscalização da contribuição de registro pertence, em geral, a todas as autoridades, corporações e repartições públicas, e, em especial, a repartição de fazenda provincial.” (PROVÍNCIA DE CABO VERDE, Capítulo VII, Secção 1, Art. 80, 1898).

5 No artigo 2° da Província Ultramarina, decreto de 24 de dezembro de 1892, Cabo Verde divide-se em nove Concelhos (Câmaras Municipais) governados por administradores, em companhia de 5 vereadores. No artigo 3°, os Concelhos encontram-se divididos em Paróquias, que se subdividem em Freguesias, conforme o santo padroeiro, agregadas aos párocos locais, sendo que a Paróquia dirigida pelo Pároco contava com um Regedor, uma Junta e dois Vogais de eleições, dos quais um é Tesoureiro.

17 BENTO, Artur Monteiro. Cabo Verde, comércio interno, bem-escravo e a coibição da riqueza Ilícita de seus moradores entre os séculos XV e XIX. Histórica, São Paulo, ano 10, n. 61, p. 6-20, maio 2014.

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O governador-geral, subsidiado por dois conselhos, o Conselho do Governo6 e o Conselho da Província7, era o chefe da administração local, [...] o mais alto agente e representante do Governo da Nação Portuguesa e goza das honras que competem aos Ministros do Governo da República, tendo precedência sobre todas as entidades civis e militares que sirvam ou se encontrem naquele território, excluindo o Presidente da República, o Presidente do Concelho, o Presidente da Assembleia Nacional, o Presidente da Câmara Corporativa, os Ministros, Secretários e Subsecretários de Estado. (PROVÍNCIA DE CABO VERDE, 1963, Art. 7º, § 1º).

Por outro lado, seria impossível separar as atribuições administrativas das de justiça e militares que o cargo de governador abrangia, na medida em que, pelo Estatuto, ele era responsável, entre outras coisas, por diversos assuntos de administração da fazenda, tais como: arrecadar as rendas reais, visitar as ilhas, inquirir sobre as necessidades gerais, receber reclamações e petições pela confecção de obras, além de manter as igrejas e o clero. Mesmo dispondo de amplos poderes, o governador precisava agir em conformidade com uma série de outros órgãos, tais como o Conselho Legislativo, o Conselho de Governo e o foro eclesiástico. O Estado português foi uma peça importante na vida econômica e política da colônia, atuando como captador de recursos provenientes da produção interna, e também do comércio triangular, que protegia e fomentava. O Estado retirava uma parte da renda líquida colonial através do fisco, por meio de tributos (dízimo), além de estimular o cultivo e monopólio de determinados produtos da terra para fins de exportação. Essa política centralizadora não impedia o contrabando realizado na colônia, a ponto de Portugal proibir o comércio nacional e internacional de determinados produtos. Assim, em 1472, já aos 12 anos de idade, mantido por uma economia escravagista dependente, o nascente país que despontava em Cabo Verde passa a sofrer sanções por parte da Coroa. Não há dúvida de que a Lei está inscrita na colônia, cuja distância não inviabilizou a administração local. As tabelas supracitadas 1 e 2 indicam uma estrutura administrativa que se apresenta por ofícios do escrivão, como também pela designação do Auditor Geral da Marinha encarregado de fazer junto à comissão e ao Ministério dos Negócios e da Justiça a Marinha de Guerra Imperial. Torna-se notório que as relações entre colônia e metrópole se fizeram através de pacto e nego6 O Conselho do Governo, presidido pelo Governador, é formado pelo Bispo, o Secretário-Geral, o Juiz de Direito de Sotavento, o Chefe do Serviço de Saúde, o Delegado do Ministério Público em Sotavento, o Secretário de Fazenda – oficial mais graduado em serviço na capital –, o Diretor de Obras Públicas, o Presidente da Câmara, e dois dos quarenta maiores contribuintes da cidade da Praia, propostos pela Câmara em lista tríplice para serem escolhidos pelo governador. Tem por função: decidir em última instância todas as questões contenciosas e corporações administrativas, e dar parecer sobre o que o governador consultar. Cf. REORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA DA PROVINCIA DE CABO VERDE, 5 jan. 1983. 7 O Conselho da Província compõe-se do Secretário-Geral (Presidente), um Vogal escolhido pelo Governador dentre os propostos em lista tríplice pela Câmara da Praia, um Vogal escolhido também em lista tríplice pela Câmara de S. Vicente, o Delegado da Câmara de Sotavento, e um empregado de Secretaria do Governo escolhido pelo Governador. Tem por funções: julgar em primeira instância as questões contenciosas de administração pública da província que não competem a outros tribunais e dar consultas nos assuntos em que as leis especiais exigem os seus votos. Cf. REORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA DA PROVINCIA DE CABO VERDE, 5 jan. 1983.

18 BENTO, Artur Monteiro. Cabo Verde, comércio interno, bem-escravo e a coibição da riqueza Ilícita de seus moradores entre os séculos XV e XIX. Histórica, São Paulo, ano 10, n. 61, p. 6-20, maio 2014.

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ciação, numa relação contratualista entre súditos e soberano, pautada por constante negociação no campo da História econômica, como também jurídica. De certo modo, as relações colônia-metrópole se concretizaram através do estabelecimento de um pacto que envolve a concessão régia de honras e privilégios, no qual Cabo Verde assume a posição de sociedade beneficial, assentada no Império Ultramarino Português – que além de fundar a colônia com portugueses, dotou a terra cabo-verdiana de uma estrutura sacro-político-econômica eficiente e eficaz, contribuindo até para a embriologia de uma consciência nacional, que se deu pela via da formação de sacerdotes nativos e africanos. Referências bibliográficas

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20 BENTO, Artur Monteiro. Cabo Verde, comércio interno, bem-escravo e a coibição da riqueza Ilícita de seus moradores entre os séculos XV e XIX. Histórica, São Paulo, ano 10, n. 61, p. 6-20, maio 2014.

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Histórica Revista Eletrônica do Arquivo Arquivo Público do Estado Estado de São Paulo, Paulo, nº 56, 56,2014 nov. 2012 2012 Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo PúblicoPúblico do Estado de Sãode Paulo, nº 61, maio Histórica -- AA Revista Eletrônica do do São nº nov. A REVISTA ONLINE DO ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 61, maio 2014

IMAGENS DO TRABALHO ESCRAVO NAS FOTOGRAFIAS DE CHRISTIANO JÚNIOR Marcelo Eduardo Leite

Doutor em Multimeios pela Unicamp, mestre em Sociologia e bacharel em Ciências Sociais pela Unesp. Professor na Universidade Federal do Cariri. E-mail: marceloeduardoleite@ gmail.com.

Resumo: O presente artigo analisa parte da obra do fotógrafo Christiano Júnior, português que viveu no Brasil na segunda metade do século XIX. As imagens que apresentamos retratam escravos que trabalhavam nas ruas do Rio de Janeiro na década de 1860. Nossa abordagem parte do pressuposto de que o fotógrafo é um mediador que se posiciona entre a sociedade e a imagem produzida. Tais fotografias são, ainda, importante documento da escravidão no século XIX. Palavras-chave: Fotografia. Escravos. Rio de Janeiro. Brasil Imperial.

Abstract: This article analyzes the work of the Portuguese photographer Christiano Junior, who lived in Brazil in the second half of the nineteenth century. The images we present depict slaves who worked on the streets of Rio de Janeiro in the 1860s. Our approach assumes that the photographer is a mediator who stands between society and the image he produces. These photographs are also important documents of slavery in the nineteenth century. Keywords: Photography. Slaves. Rio de Janeiro. Imperial Brazil.

21 LEITE, Marcelo Eduardo. Imagens do trabalho escravo nas fotografias de Christiano Júnior. Histórica, São Paulo, ano 10, n. 61, p. 2130, maio 2014.

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O Rio de Janeiro do fotógrafo Christiano Júnior

Na década de 1860, na cidade do Rio de Janeiro, o fotógrafo de origem portuguesa Christiano Júnior realizou uma série de imagens de escravos que trabalhavam nas ruas da cidade. Suas fotografias eternizaram uma das características mais fortes da sociedade brasileira do século XIX: a escravidão. As imagens em questão são do tipo carte de visite, os retratos mais populares do século XIX. As cartes de visite são imagens bastante específicas no cenário do período. Seu criador, o francês André Disdéri, foi o primeiro a apreender as exigências do um período no qual era urgente atender novas demandas geradas num ambiente repleto de novos valores sociais – sobretudo aqueles ligados aos segmentos urbanos que buscavam afirmação social. Com essa nova mídia isso foi possível, pois até então a fotografia não era acessível a muitos segmentos da população. Disdéri, ciente das melhorias necessárias em seu ateliê fotográfico para obter sucesso comercial, o dinamiza. Primeiramente rompendo com a falta de opções, pois até então não havia formatos pequenos de retratos; depois, com a divisão do trabalho no espaço do estúdio. Ele percebe que o ofício não daria resultados, a menos que conseguisse ampliar a sua clientela e aumentar as encomendas de retratos. A lógica do seu invento é relativamente simples, pois usa as chapas de colódio úmido1 então em voga, porém, introduzindo na câmara um sistema de lentes múltiplas. Assim, elas podem fazer várias cópias de retratos ao mesmo tempo. Esses retratos, por sua vez, medem aproximadamente 5 x 9 centímetros. A invenção é difundida no ano de 1854 e se espalha mundialmente na década seguinte. Com ela, o cliente sai do ateliê com uma série de imagens idênticas, as quais explicitam sua projeção pessoal. O retratado pode ainda adquirir de 12 até 36 cópias iguais, podendo, inclusive, voltar depois ao ateliê para pedir novas cópias. Com esta série de imagens nas mãos, o indivíduo propagandeia sua imagem idealizada, fazendo dela um “cartão de visita”. É dada como lembrança e, muitas vezes, trocada entre as pessoas. Com sua grande difusão, aparecem alguns colecionadores que as põem em álbuns, arquivando-as. Surgem, também, aquelas que são vendidas em livrarias, tais como as que retratavam personagens populares: reis e rainhas, figuras ilustres, além dos “tipos exóticos”, tais como índios e escravos. É nesta última categoria que estão os retratos feitos por Christiano Júnior, os quais eram direcionados aos visitantes estrangeiros e colecionadores desse tipo de carte de visite. No tocante à difusão das cartes de visite no Brasil, é fundamental lembrarmos que ela tem suas singularidades, pois inicialmente seu uso está atrelado à vida das elites, atingindo aos poucos outros segmentos. Essa diversidade vai sendo alcançada quando se pluralizam novos anseios e novos padrões de representações na sociedade. 1 Desenvolvido na década de 1850, o colódio úmido constitui-se numa placa de vidro emulsionada, sendo o primeiro negativo fotográfico difundido comercialmente. (SOUGEZ, 1996, p. 107).

22 LEITE, Marcelo Eduardo. Imagens do trabalho escravo nas fotografias de Christiano Júnior. Histórica, São Paulo, ano 10, n. 61, p. 2130, maio 2014.

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Assim, a moda oriunda da Europa vai se difundindo aqui. Alguns retratados agregam valores estéticos com auxílio dos fotógrafos, como nos casos em que vestimentas são emprestadas. Ou seja, a lógica de trabalho, além de não restringir o papel do fotógrafo como mediador, permite sua fundamental presença na geração do produto final. Enfim, o espaço dos ateliês nos quais as imagens são feitas, a chamada “sala de poses”, permite essa construção idealizada da individualidade.

Escravos de ganho: da rua para a sala de poses

Natural de Açores, Portugal, José Christiano de Freitas Henriques Júnior nasceu em 1832, vindo para o Brasil em 1855, acompanhado de sua esposa e dois filhos (KOSSOY, 2002). No ano de 1860, ele trabalha em Maceió, Alagoas. Em 1863 se transfere para o Rio de Janeiro, inicialmente instalado no Hotel Brisson, na Rua da Ajuda, 57-B; pouco depois no Photographia do Comércio, à Rua São Pedro, 69, em sociedade com Fernando Antonio de Miranda. Em 1865 vai para a Rua da Quitanda, 53. Um ano depois encontra-se associado a Bernardo José Pacheco, com quem divide o ateliê Christiano Jr. & Pacheco. Estima-se que o Rio de Janeiro contasse com 20 estúdios na década de 1860, sendo que o ateliê de Christiano veio a ser mais um na disputa pela clientela (KOSSOY, 2002). Mas o que diferenciou seu trabalho foram exatamente os retratos da população cativa da cidade. Realizadas no suporte carte de visite, tais imagens foram produzidas em dois padrões: retratos de corpo inteiro e bustos. Foi em 1866 que o Almanak Laemmert anunciou a venda de uma “Variada coleção de costumes e tipos de pretos, coisa muito própria para quem se retira para a Europa”. Sua série foi vendida no seu próprio estabelecimento e também na Casa Leuzinger (LAGO; LAGO, 2005, p. 122). Tais imagens espelham as ruas do Rio de Janeiro. Importante considerar que as fotografias são produzidas quando a cidade tem um número muito grande de escravos trabalhando em suas ruas: 55 mil, próximo de 1/3 do total da população (GORENDER, 1988, p. 93). Do ponto de vista comercial, a modalidade fotográfica dos tipos exóticos é mais um dos produtos da época, e feito por outros profissionais em nosso país, sendo muito difundida. Dentre outros profissionais que desenvolveram trabalhos desse tipo destacamos Alberto Henschel, em Pernambuco, João Goston e Rodolpho Lindemann, na Bahia, e Felipe Augusto Fidanza, no Pará. Mas nenhum o fez com a dimensão do trabalho em questão, pois até o momento já foram reconhecidas mais de 100 imagens diferentes, com uma atenção muito clara aos ofícios praticados pelos escravos (LAGO, LAGO, 2005, p. 122.). Dentre o material deixado por Christiano, os retratos de 23 LEITE, Marcelo Eduardo. Imagens do trabalho escravo nas fotografias de Christiano Júnior. Histórica, São Paulo, ano 10, n. 61, p. 2130, maio 2014.

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corpo inteiro são aqueles que mais nos chamam a atenção. É neles que vemos os negros executando os mais diferentes ofícios, típicos dos escravos de ganho: vendedores de frutas, barbeiros, amoladores de facas, carregadores, entre outros. Essas imagens, negociadas no comércio local, servem como uma espécie de souvenir dos trópicos, servindo ao imaginário que acompanha os viajantes que por aqui passam – na maior parte, estrangeiros. Tais fotografias foram feitas com a intenção clara de atender a um mercado específico. Porém isso não compromete a importância do trabalho de Christiano Júnior, pois salta aos olhos a forma como ele transpôs essas pessoas para seus retratos. As imagens mostram por parte dele um engajamento especial, seja por sua grande quantidade de tipos ou pela diversidade de ofícios mostrados. Desta forma, vemos uma similaridade entre o processo de construção da imagem aqui observado e uma definição de Boris Kossoy (1999), de que no ato fotográfico o fotógrafo torna-se uma espécie de “filtro cultural”. Defende o autor que essa é a maneira pela qual aquele que faz a imagem observa, compreende e representa o meio. Nesse sentido, seus saberes sobre a realidade se juntam, aliando-se à técnica e desembocando no produto final. O trabalho de Christiano Jr. não apenas se destaca como um produto fotográfico, mas também dá relevo a aspectos peculiares da população da capital imperial. Esses homens e mulheres, na sociedade escravocrata, desempenhavam uma infinidade de funções, numa sociedade cuja conotação do trabalho braçal é pejorativa. Na segunda metade do século XIX, a principal demanda de retratos que circulava no Rio de Janeiro estava ligada a formas de representação que exaltavam a posição social, fazendo uso de vestimentas e artifícios cênicos para melhor executar essa missão. Se de um lado vemos a idealização do indivíduo dentro de um ambiente no qual a aparência ganha força, aqui nos parece que o objetivo é transpor para o estúdio cenas observadas na rotina da cidade. Além disso, é importante lembrar que alguns espaços tinham sua característica própria, como, por exemplo, a Rua do Ouvidor. Ali ficavam os principais estabelecimentos de clientela de elite, sobretudo ricos proprietários rurais ou pessoas ligadas ao Segundo Império. Nesse espaço estavam algumas livrarias, cafés e lojas de produtos importados. É nessa região que trabalhava o fotógrafo mais próximo a Pedro II, Insley Pacheco, cuja clientela era a mais elitizada da capital (LEITE, 2007, p. 196). Para melhor compreensão espacial na cidade, é relevante considerar que Christiano Júnior estava instalado a quatro quadras de distância da área mais nobre, porém em espaço próximo ao porto e ao mercado, numa área ocupada por um número maior de escravos de ganho desenvolvendo seus ofícios. Nessa época o Rio de Janeiro era a cidade mais escravista das Américas, com metade da população formada por cativos, sendo que a grande maioria vivia na cidade, com concentração na Freguesia da Candelária, exatamente onde estava localizado o estúdio de Christiano Júnior (FARIAS, GOMES, SOARES; ARAÚJO, 2006, p. 10). Vejamos alguns exemplos dessa produção. Na Figura 1 vemos um casal. O homem, aparentando ser um carregador, apresenta uma desgastada sobrecasaca e calça esfarrapada. Ocupando 24 LEITE, Marcelo Eduardo. Imagens do trabalho escravo nas fotografias de Christiano Júnior. Histórica, São Paulo, ano 10, n. 61, p. 2130, maio 2014.

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o espaço das ruas, os escravos assumiram a função de vendedores ambulantes, dos mais variados produtos. Alguns senhores treinavam novos escravos na arte de vender, em vez de servirem simplesmente de carregadores, ampliando as possibilidades de exploração. Alguns vendedores também levavam cestas sobre a cabeça; outros, tabuleiros de madeira ou caixas; escravos de ambos os sexos vendiam de tudo, “[...] panelas e bules, utensílios de cozinha, cestas e esteiras, velas, poções de amor, estatuetas de santos, ervas e flores, pássaros e outros animais [...]” (GRAHAM, 1988, p. 146). Isso atendia o interesse de seus proprietários, que garantiam, assim, uma remuneração diária com seus escravos. Observando as imagens, nos parece que os retratados demonstram certo desconforto. Isso provavelmente se deve à complexidade da produção, que os obriga a equilibrar produtos sobre a cabeça – tarefa complexa devido ao longo tempo de imobilidade necessário para fazer fotografias.



Na Figura 2 o homem veste um surrado paletó e detém numa de suas mãos um chapéu, o que, de certa maneira, faz uma paródia dos padrões de vestimenta do período. No seu braço direito ele tem dependurada uma sacola, sinal de que talvez seja um prestador de serviços, como mensageiro ou entregador. Notável é sua roupa, com calças bem postas e paletó de veludo; portando, ainda, um relógio, chapéu e até um charuto.  Mas um detalhe é intransponível: ele tem que andar descalço. Como todos os demais, ele não calça sapatos, sinal indisfarçável de sua condição de cativo (ALENCASTRO, 1997, p. 19). Sobre os carregadores, Debret relata sua função significativa. Diz ele: “[...] negros carregadores, que passeiam com o cesto no braço [...] que se dá o nome de negro de ganho; espalhados em grande número pela cidade [...]”, fazem todo tipo de trabalho, tendo se tornado indispensáveis para a sociedade (ALENCASTRO, 1997, p. 19). Na sua descrição, estes podiam ser notados, em algumas ocasiões, carregando pequeninas cargas, pois era visto 25 LEITE, Marcelo Eduardo. Imagens do trabalho escravo nas fotografias de Christiano Júnior. Histórica, São Paulo, ano 10, n. 61, p. 2130, maio 2014.

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como “[...] desprezível quem se mostra no Brasil com um pacote na mão, por menor que seja.” (ALENCASTRO, op.cit., p.159). A grande maioria dos escravos que vivia e trabalhava nas cidades atuava em alguma modalidade do tipo, indo desde carregadores de água e dejetos humanos, até o transporte de mercadorias (KARASCH, 2000, p. 267). Observemos agora as Figuras 3 e 4. Na Figura 3 vemos um barbeiro, personagem importante na cena urbana e que já havia sido reproduzido nas aquarelas de Jean-Baptiste Debret. Posando como a totalidade dos modelos, ele está descalço, simbolizando inequivocamente, aos olhos do estrangeiro, sua condição de escravo. Ele veste calça, camisa e paletó; em suas mãos vemos suas ferramentas de trabalho: uma tesoura e um pente. Essa imagem demarca também uma distinção dele diante do contexto do trabalho escravo, pois remete a uma especificidade da função, se comparada a outras modalidades.

Na Figura 4 vemos uma vendedora de alimentos; ela veste uma espécie de turbante na cabeça, seu vestido é de tecido quadriculado. Em uma das mãos, ela detém um dos produtos que vende; e em mais um dos exemplos de encenação, o jovem ao seu lado simula estar recebendo o produto. É muito provável que a cena transponha para o estúdio um acontecimento corriqueiro da praça “mercado de legumes”, no qual as vendedoras se reuniam no período da manhã (DEBRET, 1975, p. 232). É relevante reconhecermos que essas imagens são fragmentos da cidade recompostos no ateliê e, possivelmente, ao fazê-lo, compreender com propriedade o universo em questão e como encená-lo, numa parceria com o fotógrafo na qual os conhecimentos se fundem. Na Figura 5 vemos um homem que carrega sob o braço esquerdo uma cesta. E o faz numa pose que passa a ideia de estar caminhando. Ele tem um chapéu em sua cabeça e o vemos de perfil. A imagem transmite a ideia de movimento. Em seu paletó, abarrotado, notamos algumas 26 LEITE, Marcelo Eduardo. Imagens do trabalho escravo nas fotografias de Christiano Júnior. Histórica, São Paulo, ano 10, n. 61, p. 2130, maio 2014.

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manchas. Sua expressão é séria, direcionando seu olhar para uma das laterais do ateliê. Com relação a sua função, sabemos que esses homens circulavam pela cidade e, em outros casos, ficavam em pontos estratégicos aguardando algum serviço como carregador. Já na Figura 6 vemos um artesão trabalhando com palha. Seu olhar é sério e direto para o fotógrafo. Sua vestimenta, uma calça preta e blusa branca. Em sua cabeça vemos um gorro. O retratado simula estar no processo de produção de algum objeto. Importante ressaltarmos que as técnicas de trabalho usadas nesse ofício com palha são de origem africana, sendo uma atividade que, de certa forma, parece menos alienante que as demais (CUNHA, 1988, p. 25).

Devemos ressaltar que tais imagens podem ser entendidas de formas diferenciadas. Algumas vezes vemos a opinião de que o tratamento dado aos escravos é de mero objeto; em outras, é reconhecido o fato do fotógrafo apenas estar fazendo um produto fotográfico da época, sem carga ideológica por parte dele. Na visão da antropóloga Manuela Carneiro da Cunha (1988, p. 24), se o homem livre tem a sua imagem construída dentro dos padrões normais, o escravo, por sua vez, teve sua imagem representada como sendo pitoresco e genérico. Se isso é verdade, Sandra Koutsoukos (2006, p. 128) vai mais além e aponta que “[...] os modelos posaram para Christiano sempre com dignidade, a eles parece que sempre foi dado certo grau de controle da própria imagem [...].” Assim, essas fotografias são uma amostra de um souvenir da época e, também, importantes documentos históricos. Podemos considerar, ainda, que essas imagens permitem ao retratado, mesmo na sua condição de escravo, um posicionamento dentro do seu próprio grupo, pois as referidas cartes de visite eram expostas nas vitrines dos estabelecimentos. Devemos lembrar também que a exploração da vertente imagética do pitoresco não começou com a fotografia, sendo iniciada antes, como a produção de desenhos, aquarelas e litogravuras. Pouco tempo após fazer essa série, por recomendação médica, Christiano Júnior abandona 27 LEITE, Marcelo Eduardo. Imagens do trabalho escravo nas fotografias de Christiano Júnior. Histórica, São Paulo, ano 10, n. 61, p. 2130, maio 2014.

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o Rio de Janeiro. Indo em direção ao Sul, fica pouco tempo em Santa Catarina, depois no Uruguai. Porém, fixa-se em Buenos Aires, na qual, no ano de 1867, monta importante estabelecimento à Rua Florida, 159. Na Argentina faz um número grande de retratos (ALEXANDER, PRIAMO; BRAGONI, 2002, p. 23) e, em 1875, torna-se fotógrafo oficial da Sociedade Rural Argentina, realizando sua primeira mostra pela entidade, da qual se desliga em 1878. Depois ele realiza alguns projetos importantes, como a coleção Album de Vistas y Costumbres de La Argentina, contendo retratos de tipos populares, vistas de áreas rurais e de edificações. No ano de 1878, seu estúdio é vendido para Witcomb & Mackern. Após disso, ele procura dar continuidade ao Álbum de Vistas e Costumes da República Argentina, fazendo uma peregrinação pelas mais variadas regiões do país entre 1879 e 1883. A complexidade do projeto o obriga a abandoná-lo antes da conclusão, já que as dificuldades financeiras atrapalham seus planos. Christiano Júnior faleceu na cidade de Assunção, Paraguai, no ano de 1902. Na ocasião, sua morte foi noticiada na revista argentina Caras y Caretas. As imagens produzidas por ele no Brasil testemunham a peculiaridade de seu modo de ver e da sua astúcia em transpor as ruas para seu estúdio. Sem dúvida, configuram-se numa referência para a reflexão sobre a história social do nosso país.

Referências bibliográfias

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Figuras

Figura 1: AZEVEDO, Paulo Cesar de; LISSOVSKY, Mauricio (Org.). Escravos brasileiros do século XIX na fotografia de Christiano Jr. São Paulo: Ed. Ex Libris Ltda., 1988, p. 51. Figura 2: AZEVEDO, Paulo Cesar de; LISSOVSKY, Mauricio (Org.). Escravos brasileiros do século XIX na fotografia de Christiano Jr. São Paulo: Ed. Ex Libris Ltda., 1988, p. 54. Figura 3: AZEVEDO, Paulo Cesar de; LISSOVSKY, Mauricio (Org.). Escravos brasileiros do século XIX na fotografia de Christiano Jr. São Paulo: Ed. Ex Libris Ltda., 1988, p. 66. Figura 4: AZEVEDO, Paulo Cesar de; LISSOVSKY, Mauricio (Org.). Escravos brasileiros do século XIX na fotografia de Christiano Jr. São Paulo: Ed. Ex Libris Ltda., 1988, p. 19. Figura 5: AZEVEDO, Paulo Cesar de; LISSOVSKY, Mauricio (Org.). Escravos brasileiros do século XIX na fotografia de Christiano Jr. São Paulo: Ed. Ex Libris Ltda., 1988, p. 37. Figura 6: AZEVEDO, Paulo Cesar de; LISSOVSKY, Mauricio (Org.). Escravos brasileiros do século XIX na fotografia de Christiano Jr. São Paulo: Ed. Ex Libris Ltda., 1988, p. 35.

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A SAÚDE DOS ESCRAVOS EM MINAS GERAIS APÓS A ABOLIÇÃO DA IMPORTAÇÃO DE AFRICANOS Alisson Eugênio

Professor de História do Brasil na Universidade Federal de Alfenas. Doutor em História pela USP (2008). Autor de Arautos do progresso: ideário médico sobre saúde pública no Brasil na época do Império. Atualmente prepara o livro Lágrima de Sangue: relatos sobre as condições de saúde dos escravos no Brasil entre a época de Palmares e a Abolição. E-mail: [email protected].

Resumo: Neste texto pretende-se ensaiar algumas considerações sobre a saúde dos escravos no Brasil após a abolição da importação de africanos. Isso será feito a partir do confronto de dados obtidos em alguns documentos demográficos de Minas Gerais e em estudos clássicos e recentes dedicados à escravidão. Dessa maneira, espera-se contribuir para a elucidação de um tema ainda pouco conhecido na historiografia brasileira. Palavras-chave: Escravidão. Saúde. Historiografia. Abstract: In this text we intend to advance some considerations about the health of slaves in Brazil, after the abolition of the importation of Africans. This will be done by comparing the data obtained in some demographic slave documents from Minas Gerais with classic and recent studies devoted to slavery. In this way, we hope to contribute to the elucidation of a subject still little known in Brazilian historiography. Keywords: Slavery. Health. Historiography.

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Nas maiores nações escravistas da América, o interesse dos historiadores pela história da saúde dos escravos começou, pelo menos, desde os estudos de Phillips (1918), nos EUA, e desde os trabalhos de Freitas (1935), no Brasil. Entre os norte-americanos a historiografia especializada nesse tema é vasta. Entre nós, somente na última década verifica-se aumento expressivo de trabalhos sobre o mesmo assunto.1 Embora recentemente impulsionada e ainda em processo de consolidação, a produção historiográfica no Brasil sobre esse tema permite esboçar alguns entendimentos. O primeiro deles é a respeito dos marcos cronológicos relativos à formação de um contexto favorável às melhorias nas condições da vida em cativeiro. Antes do encerramento definitivo da importação de africanos no Império (1850) e, sobretudo, em grandes propriedades monocultoras, conectadas com o mercado internacional, os estudos, de um modo geral, apontam que houve na maior parte das vezes pouca atenção para com a saúde no cativeiro (o que não quer dizer negligência ou descaso; às vezes isso ocorria, mas não devia ser a regra geral, pois a aquisição de cativos gerava gasto nada desprezível) quando a procura por produtos destinados à exportação estava alta. Assim, notadamente nas regiões e empreendimentos onde a oferta de africanos pelo tráfico era alta e a demanda pelos produtos estava aquecida, houve maior exploração da escravaria (com a dilatação das jornadas de trabalho) para aumentar a produtividade, porque a renda do seu trabalho excedente, descontado o custo com a reposição da mão de obra devido às perdas com seu desgaste precoce, ainda era considerada mais lucrativa pelos senhores de escravos.2 Em propriedades onde tal lógica prevalecia havia grande dependência do tráfico de escravos. Consequentemente, nelas tendia a haver maior desequilíbrio entre os gêneros masculino e feminino e impacto mórbido provocado por doenças, que muitas vezes passavam dos africanos recém-integrados ao plantel e vice-versa, o que desfavorecia a reprodução natural da população escrava.3 Após 1850 há indícios de que essa situação tendeu a mudar. Um deles é a descoberta de propriedades rurais (em grandes fazendas produtoras de café) e empreendimentos urbanos (como a mina de Morro Velho), que concentravam grande escravaria, e cujos proprietários investiram em enfermarias, farmácias, manuais de medicina prática, contratação de médicos e na reprodução natural da mão de obra servil. Em relação a esse último investimento, tome-se o caso de Minas Gerais. Segundo os historiadores demógrafos, a população escrava teve condições favoráveis para 1 Sobre a historiografia norte-americana, podem ser consultados, entre outros, SCHWARTZ (2006). Em relação ao Brasil, há apenas textos que apresentam o assunto, como PÔRTO (2006) e BARBOSA e GOMES (2008). 2 A racionalidade econômica senhorial foi investigada por GORENDER (1978, p. 216) e aplicada à análise da saúde dos escravos por SOMARRIBA (1984, p. 7-8). Além desses historiadores citados, os seguintes também concordam que o fim do tráfico criou condições favoráveis para as melhorias no cativeiro: TEIXEIRA (2002), FALCI (2003 e 2004), MARIOSA (2006), BARBOSA (2010) e BRIZOLA (2010), entre outros. 3 O impacto mórbido provocado pelos africanos recém-chegados a um plantel é analisado por CURTIN (1969). De acordo com KLEIN e LUNA (LUNA, 2009), “quanto maior a proporção de africanos, menor a possibilidade de reprodução natural da escravaria local”, porque o tráfico ofertava muito mais homens do que mulheres, gerando um desequilíbrio entre sexos que reduzia os índices de nascimento, p. 200-201.

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crescimento demográfico, pois havia maior proporção de mulheres em relação aos homens, o que potencializou as taxas de fertilidade no cativeiro, aumentando o percentual da participação das crianças no quadro populacional, conforme explicam Hebert Klein e Francisco Luna (LUNA, 2009, p. 172, 179), entre outros autores (BEGARD, 1999; LIBBY, 1992; e SLENES, 1986). Para se ter uma ideia disso, vejamos alguns números do fenômeno. Em estudo recente, Mario Rodarte mostrou que a população escrava mineira experimentou crescimento de 0,8% ao ano entre 1832 e 1872, saltando de 276.098 para 378.126 indivíduos, com destaque para as regiões férteis de povoamento “tardio” (isto é, as áreas conquistadas após a crise da mineração, como o Sul e a Mata, onde havia maior equilíbrio entre os sexos), sendo a faixa etária compreendida entre 20 e 49 a mais dilatada (RODARTE, 2012, p. 94, 102, 104 e 107). Isso não poderia ser apenas fruto de importação de africanos, pois muitos indicadores revelam dados que deixam bem clara a relevância do crescimento natural, fruto da ampliação das taxas de fecundidade das escravas, de acordo com os cálculos de Robert Slenes (1986, p. 56, 6671). Nos documentos relativos ao balanço demográfico de 78 localidades da Província de Minas Gerais, enviados ao seu governo no ano de 1856, foram registrados 3.411 nascimentos e 2.509 óbitos de escravos, perfazendo um saldo positivo de 902 indivíduos.4 Já entre 1871 e 1876, em 193 localidades da mesma Província, a demografia da população escrava apresentou um resultado geral bem mais expressivo: 24.717 nascimentos e 4.956 mortes, totalizando saldo positivo de 19.886 pessoas.5 Entre 1871 e 1883, os quadros demonstrativos do movimento da população escrava de diversos municípios mineiros apontam para a mesma tendência: maior número de nascimentos do que de óbitos.6 Um dos municípios que mais contribuíram para tanto foi Mariana. Conforme pesquisa de Heloisa Maria Teixeira, entre 1850 e 1879 o percentual de crianças (0 a 14 anos) na população escrava local saltou de 29,3% (uma taxa já consideravelmente alta) para 33,5%. Isso ocorreu graças à formação de família no cativeiro (segundo ela, havia plantéis constituídos em grande parte por famílias escravas. Estas chegavam, às vezes, a até quatro gerações) e ao maior equilíbrio entre os sexos na idade reprodutiva. Esses dois fatores aumentaram as taxas de fertilidade das escravas, tornado-as próximas do bem sucedido padrão norte-americano (TEIXEIRA, 2002, p. 197, 199).7 Diante desses dados pode-se afirmar com alguma segurança que a conjuntura aberta em 1850 – quando a importação de africanos foi definitivamente encerrada – foi um momento decisivo para que condições favoráveis ao crescimento natural da população escrava (entre elas, a melhora da saúde) pudessem ocorrer, como de fato estava ocorrendo em muitas localidades, 4 Arquivo Público Mineiro. Registro de nascimentos e óbitos, SP 609, 1856. 5 Arquivo Público Mineiro. Relatório apresentado pelo presidente da Província, João Capistrano Bandeira de Mello, à Assembleia Legislativa Provincial de Minas Gerais em 17 de agosto de 1878. Ouro Preto, 1877, p. 99-104. 6 Arquivo Público Mineiro. Quadros demonstrativos do movimento da população escrava, 1871-1883, SG 153. 7 A comparação entre as taxas de fertilidade de Mariana e Sul dos Estados Unidos encontra-se na p. 200. Nas páginas 194 e 195 há o caso da família da escrava Gertrudes, do tenente Antônio José Lopes Carneiro, que constituía 36,7% do seu plantel formado por 60 escravos.

33 EUGÊNIO, Alisson. A saúde dos escravos em Minas Gerais após a abolição da importação de africanos. Histórica, São Paulo, ano 10, n. 61, p. 30-43, maio 2014.

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principalmente em Minas Gerais. Além disso, aqueles mesmos dados indicam uma nova postura de muitos proprietários que lidavam com escravos, pelo menos a partir de 1850. Isto concorreu para a “rearticulação do escravismo que, a partir de então, para continuar a existir, teria que investir na reprodução natural e/ ou intensificar o tráfico interno” (TEIXEIRA, 2002, p. 179). No caso de muitas localidades de Minas Gerais e de algumas fazendas conhecidas no Vale do Paraíba Fluminense, ao que parece, a opção predominante foi a primeira, conforme testemunhos coevos e estudos recentes.8 Mas, somente com a conclusão de mais estudos, confrontando dados demográficos das paróquias e testemunhos obtidos em diários de fazendas ou inventários de seus proprietários, é que será possível atingir consenso sobre essa questão. Todavia, já não se pode dizer que nada aconteceu após 1831, quando o tráfico de africanos para o Brasil tornou-se ilegal, e principalmente depois de 1850, quando ele foi encerrado definitivamente. Afinal, a intensificação da produção de textos, de intelectuais de campos de conhecimento diferentes, defendendo a necessidade de as condições de saúde no cativeiro serem melhoradas, e mostrando como isso poderia ser feito, a partir da década de 1830, bem como a redução dos índices de mortalidade e aumento das taxas de nascimento dos cativos observados em registros populacionais, revelam uma nova tendência dentro do escravismo brasileiro. Trata-se do empenho de um conjunto de proprietários (que ainda não é possível dimensionar) para sustentar a escravidão por meio da redução da mortalidade dos indivíduos a ela submetidos e da sua reprodução natural. O caso da mina de Morro Velho e o de algumas fazendas já conhecidas no vale do Rio Paraíba fluminense são os melhores exemplos disso. Além disso, em muitas localidades os proprietários procuraram internar seus escravos em hospitais ou mesmo em clínicas particulares, numa clara demonstração de preocupação com a perda deles. Isso ocorreu em Porto Alegre (BRIZOLA, 2010, p. 37) e em diversas cidades mineiras. Em uma delas, Campanha, dos 88 internados, em 1858, na Santa Casa de Misericórdia, 21 eram escravos, dos quais sobreviveram 78, sendo 17 escravos.9 Já em Barbacena, como a tabela abaixo revela, no hospital de caridade local estavam internadas 33 pessoas, das quais 8 eram escravos, com 5 mortes, sendo 2 de escravos.10

8 Refiro-me ao testemunho do médico Reinhold Teuscher e aos estudos de BARBOSA (2010) e MARIOSA (2006). 9 Arquivo Público Mineiro, SP 779, 1858, p. 262 10 Arquivo Público Mineiro, SP 779, 1858, p. 104

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Tabela 1 – Mapa dos escravos doentes tratados no hospital de caridade de Barbacena Fonte: Arquivo Público Mineiro, SP 779, 1858, p.104. Nome

Naturalidade

Idade

Entrada

Saída

Enfermidade

Joaquim

São José

40

26/03

03/05

Agostinho

Barbacena

40

17/05

14/06

sobreviveu

Elias

Oliveira

30

30/06

-

ferida no pé engorjitamento do fígado sífilis

Celestino

Barbacena

44

10/08

13/09

tubérculos nos escrotos

sobreviveu

Ricardo

Barbacena

30

19/09

20/10

reumatismo

faleceu

Felicidade

Conceição da Boa Vista

20

20/09

-

diabetes

-

Matheus

Ibitipoca

26

27/10

14/11

reumatismo

faleceu

Pedro

Santana de Garanhu

35

06/11

09/12

necrose tíbia

sobreviveu

sobreviveu

-

Outro entendimento é o de que os problemas de saúde mais comuns da população escrava já adaptada ao cativeiro eram os seguintes (não necessariamente nesta ordem): as feridas e contusões, as doenças pulmonares, as doenças gastrointestinais, as doenças venéreas, as verminoses, diversas dermatoses e as mais variadas febres (na época muitas doenças infecciosas eram consideradas febres, como o tifo e o tétano). Desse grupo destacam-se como as mais mortíferas: bronquite, pneumonia, diarreia, disenteria, hidropsias e tétano (esta última atacava em grande número as crianças recém-nascidas, devido ao pouco cuidado com a assepsia durante e depois do corte do cordão umbilical; era chamada de “mal dos sete dias”). Diante desse quadro (cujas doenças são na maioria dos casos as mesmas, variando apenas a sua incidência devido às peculiaridades regionais ligadas à alimentação, clima e tratamento), pode-se mesmo afirmar que há um padrão nosológico da população escrava nas grandes áreas escravistas das Américas. Ou seja, há problemas de saúde que são recorrentes nos cativeiros deste vasto continente; problemas típicos de populações com baixo nível de qualidade de vida, e empregadas em trabalhos penosos. É o que revelam estudos de diversos autores e testemunhos médicos da época.11 O terceiro e último entendimento é sobre a relevância das ideias para a rearticulação do es11 Algumas referências documentais: os tratados médicos de FERREIRA (2002); DAZILLE (1801); IMBERT (1839); e SIGAUD (2009). Algumas referências bibliográficas: BARBOSA (2010), BRIZOLA (2010), COSTA (in LUNA 2009, p. 239259), MARIOSA (2006), FALCI (2003 e 2004) KARASH (2000), KIPLE (1984), LIBBY (1979).

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cravismo, isto é, para o prolongamento da escravidão via reprodução natural. Sabe-se que, desde a transformação dessa forma de organização da produção, em fato social após a guerra contra Palmares, diversos intelectuais apresentaram proposições para reformar a relação entre senhores e escravos com o objetivo de diminuir as tensões sociais (MARQUESE, 2004; VAINFAS, 1986). Uma das propostas para atingir essa meta – e que se repetiu até a Abolição – foi a de que os proprietários cuidassem melhor da sua escravaria. Essas ideias inicialmente foram sustentadas no ideal da caridade cristã e posteriormente, na segunda metade do século XVIII, no ideal da solidariedade humanitária iluminista. Nesse momento, vários autores começaram a propor mudanças estruturais em relação ao escravismo, atacando o tráfico de escravos e defendendo medidas para a promoção da reprodução natural. Ainda não é possível dizer se o ideário reformista impactou os corações e as mentes senhoriais, sobretudo antes da Era das Luzes, quando não havia um momento histórico favorável à transformação do comportamento dos proprietários. No entanto, não se pode ignorar o fato de que, a partir do final do século XVIII, quando o ideário ilustrado já estava consolidado, tenha sido formada uma conjuntura favorável para a crítica à escravidão e à sua fonte abastecedora, o tráfico internacional de africanos. Tal crítica era baseada no direito natural (segundo o qual a liberdade humana é inata), e, ao municiar os movimentos abolicionistas, contribuiu para desmantelar as sociedades escravistas no Ocidente ao longo do século XIX. Foi nessa conjuntura que muitos relatos, sobretudo os dos médicos, acabaram assumindo um tom dramático, como estratégia de persuasão do público, e como uma forma de produzir comoção, e assim cooperar para reformar o governo dos escravos. Manifestava-se ali a expressão da sensibilidade humanitária aflorada durante as Luzes, marcada por uma narrativa que se esforça para provocar a compaixão diante dos dramas causados pelo sofrimento humano.12 Não é possível dizer se a mensagem de seus textos atingiu o seu público-alvo e, se atingiu, qual foi seu impacto. Mas em fazendas do Vale da Paraíba Fluminense e na mina de Morro Velho (situada no município de Nova Lima-MG, ao sul do quadrilátero ferrífero), as propostas feitas por eles, desde que aquela conjuntura foi formada, estavam sendo colocadas em prática já nas vésperas de 1850, quando a importação de africanos passou a ser de fato reprimida. Terá sido apenas coincidência o fato das ideias utilizadas na orientação da reforma da administração da população escrava, em várias propriedades, serem as mesmas formuladas pelos autores que vinham escrevendo sobre esse assunto, desde a época de Palmares? Sabemos que as ideias não circulam somente em seus suportes tradicionais. Elas também correm de boca em boca, de ouvido em ouvido, contribuindo desse modo para formar opiniões a respeito de um determinado assunto. Talvez seja essa a chave para a compreensão da coincidência da proliferação do ideário reformista do governo de escravos (redução da jornada de trabalho, assistência às escravas grávidas, estímulo à formação de família, melhorias materiais nas senzalas 12 Sobre o conceito de narrativa humanitária e as razões que favoreceram a sua prática, ver LAQUER (1992).

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e no vestuário, alimentação mais nutritiva) e da aplicação de procedimentos que lhe foram fiéis em alguns grandes empreendimentos escravistas brasileiros no século XIX. Se considerarmos que de alguma maneira tal ideário foi assimilado por considerável parcela de grandes proprietários de escravos, resta ponderar se a tentativa de colocá-lo em prática deu certo. No maior complexo industrial do país na época, a mina de Morro Velho, houve expressiva redução da mortalidade (tabela 2 e gráficos 1, 3 e 4) e aumento das taxas de nascimento (tabela 3 e gráfico 2) entre os escravos. Afinal, o índice de mortalidade geral da população escrava, que havia atingido 7,26% em 1849, caiu para 1,45% em 1884 (tabela 2), e o saldo entre nascimento e mortes das crianças foi positivo, pelo menos até 1871, quando a Lei do Ventre-Livre começou a vigorar (tabela 3). Isso quer dizer que houve melhoras. Entretanto, elas não foram suficientes para aumentar a população escrava da mina, porque as mortes dos adultos continuaram superando os nascimentos (tabela 4 anexa). Em outros termos, mesmo havendo maior número de nascimento e maior quantidade de crianças sobreviventes (gráficos 2 e 3), às vésperas do fim do tráfico de africanos, em 1850, isso não foi suficiente para repor as mortes dos escravos adultos, como mostra a tabela 4. Assim, a tendência da população escrava de tal mina era desaparecer naturalmente, o que indica que as condições de saúde dela ainda não eram ideais. O caso da mina de Morro Velho fica como exemplo para futuras comparações. Nela, o ideário reformista das elites intelectuais que escreveram sobre as condições de saúde da população escrava foi praticado, com resultados relevantes, mas aquém do que se podia esperar para a escravaria se reproduzir naturalmente. O que outros casos poderiam revelar? Eis um dos desafios que a historiografia desse tema, nascido da interface entre a área de estudos da escravidão e a área de estudos da história das doenças, da medicina e da saúde, tem pela frente. Diante dos dados apresentados pode-se afirmar que há indicadores de que, pelo menos após 1850, quando a importação de africanos foi definitivamente encerrada, as condições de saúde dos escravos estavam melhorando. Isso revela que houve esforço de parte dos seus proprietários para que a mortalidade fosse reduzida, e, assim, a escravidão pudesse ser mantida por mais algum tempo. Pelo menos, até que o problema da mão de obra fosse solucionado, o que acabou ocorrendo com a política de imigração desencadeada após a Lei do Ventre-Livre (1871).

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Tabela 2: Taxas de óbitos da população escrava de Morro Velho Saint John Del Rey Mining Company. Annual report. London, Robert Clay, 1849. Ano 1841 1842 1843 1844 1845 1846 1847 1848 1849 1850 1851

% 6,1 4,37 5 5,92 4,78 5,84 2,5 5,5 7,26 4,5 3,33

Ano 1852 1853 1854 1855 1856 1857 1858 1859 1860 1861 1862

% 3,33 6,15 5,8 2,84 2,76 5,03 2,84 2,9 3,41 3,08 5,6

Ano 1863 1864 1865 1866 1867 1868 1869 1870 1871 1872 1873

% 4,62 3,47 5,22 4,95 3,86 2,95 3,09 3,44 3,23 3,2 3,6

Ano 1874 1875 1876 1877 1878 1879 1880 1881 1882 1883 1884

% 5,34 5,55 4,3 3,69 3,66 4,18 4,02 3,98 3,9 3,77 1,45

Tabela 3: Balanço demográfico das crianças escravas de Morro Velho Fonte: Saint John Del Rey Mining Company. Annual report. London, Robert Clay, 1849. Crianças da companhia Ano 1847 1848 1849 1850 1851 1852 1853 1854 1855 1856 1857 1858 1859 1860 1861 1862 1863 1864 1865 1866

Nascimento 8 10 7 8 5 12 5 9 4 8 11 6 9 7 6 5 5 3 5

Crianças de escravos alugados Óbitos 2 5 5 3 6 1 1 3 2 2 3 3 1 6 6 3 4 6

Saldo 6 5 5 6 4 8 1 6 9 3 6 6 0 -1 2 -1 -1

Nascimento 18 27 0 17 24 13 31 19 29 16 20 38 20 26 24 26 29 37 28 45

Óbitos 6 14 19 11 4 9 8 4 4 5 5 3 7 7 1 6 6 3 4 6

Saldo 12 13 6 20 4 23 15 25 11 15 35 13 19 23 20 23 34 24 39

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1867 1868 1869 1870 1871 Total

4 4 7 3 6 157

2 1 (-) (-) (-) 65

2 3 (-) (-) (-) 69

46 22 30 25 33 633

2 1 (-) (-) (-) 135

44 21 (-) (-) (-) 439

Tabela 4: Balanço demográfico da população escrava em Morro Velho Fonte: Saint John Del Rey Mining Company. Annual report. London, Robert Clay, 1849. Óbitos dos adultos Ano Cia alugados 1848 8 45 1849 16 65 1850 8 50 1851 4 35 1852 6 34 1853 8 87 1854 7 64 1855 3 4 1856 6 49 1857 5 21 1858 7 25 1859 6 24 1860 9 33 1861 5 43 1862 5 72 1863 15 63 1864 5 47 1865 4 65 1866 11 64 1867 6 54 1868 7 38 Total 151 1027

Nascimento das crianças Cia alugados 5 18 (-)  (-)  (-) 6 5 25  (-) 4 6 29 4 19 8 33 1 12 6 21 9 44 3 16 6 25 6 29  (-)  (-) 1 22 2 36 1 23 1 38 2 46 3 24 68 470

Cia -3 (-)  (-) 1  (-) -2 -3 5 -5 1 2 -3 -3 1  (-) -14 -3 -3 -10 -4 -4 -48

Saldo alugados -27  (-)  -44 -10  -30 -58 -45 29 -37 0 19 -8 -8 -14  (-) -41 -11 -42 -26 -8 -14 -375

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Gráfico 1: Balanço das taxas de óbitos da população escrava de Morro Velho Elaborado com base na tabela 3

6

Óbitos dos escravos na mina de Morro Velho

5 4 3 2 1 0 1850

1855

1860

1865

1870

1875

1880

1885

Gráfico 2: balanço do nascimento de escravos na mina de Morro Velho Elaborado com base na tabela 4

45

Nascimento de escravos na mina de Morro Velho

40 35 30 25 20 15 10 5 0 1848

1852

1856

1860

1864

1868

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Gráfico 3: Balanço dos óbitos de crianças escravas na mina de Morro Velho Elaborado com base na tabela 4

16 14

Óbitos das crianças escravas na mina do Morro Velho

12 10 8 6 4 2 0 1848

1852

1856

1860

1864

1868

Gráfico 4: Saldo dos sobreviventes entre as crianças escravas Elaborado com base na tabela 4

35 30

Crianças escravas sobreviventes na mina de Morro Velho

25 20 15 10 5 0 1848

1852

1856

1860

1864

1868

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H

Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo PúblicoPúblico do Estado de Sãode Paulo, nº 61, maio Histórica Revista Eletrônica do Arquivo Arquivo Público do Estado Estado de São Paulo, Paulo, nº 56, 56,2014 nov. 2012 2012 Histórica -- AA Revista Eletrônica do do São nº nov. A REVISTA ONLINE DO ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 61, maio 2014

ALEMÃES, SUECOS, AFRICANOS E INDÍGENAS: MÃO DE OBRA NA FÁBRICA DE FERRO DE SÃO JOÃO DE IPANEMA Karina Oliveira Morais dos Santos

Graduanda em História pela Universidade Federal de São Paulo, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Bolsista CNPq. E-mail: kolim. [email protected].

Resumo: A Real Fábrica de Ferro São João de Ipanema constituiu-se na primeira siderúrgica do país, localizada na então Vila de Sorocaba, atual município de Iperó, em São Paulo. Foi fundada oficialmente em 1810 e suas atividades se encerraram em 1895. O artigo pretende explicitar as relações de trabalho no âmbito da Fábrica, percebendo a mão de obra escrava compartilhando os mesmos espaços com homens livres assalariados, além de explorar peculiaridades de seus manuscritos, hoje custodiados pelo Arquivo Público do Estado de São Paulo. Busca-se romper com determinados paradigmas acerca do escravo africano no âmbito fabril, evidenciando seus estreitos vínculos – no exercício de suas atividades – com alemães, suecos e outros estrangeiros livres. O estudo do caso revela o quanto as transformações, tanto internas (administrativas) quanto externas (jurídicas), apresentavam impactos diretos na mão de obra e, por consequência, em todo o funcionamento do empreendimento. Palavras-chave: Administração fabril. Homens livres e escravos. Fábrica de Ferro São João de Ipanema. Abstract: The Royal Iron Factory of São João de Ipanema was the first steel mill in the country; it was based in the former Village of Sorocaba, currently Iperó, in São Paulo. It was officially founded in 1810 and it was permanently shut down in 1895. The article intends to explain labor relations within the factory, taking into account the slave workforce, which shared the same space with free workers. The article also explores peculiarities of São João de Ipanema’s manuscripts, kept in custody by the Arquivo Público do Estado de São Paulo. The aim is to get out of some paradigms about the African slave in the manufacturing context, showing their close ties - in the exercise of their activities - with Germans, Swedish and other foreigners workers, who were freemen. The case study reveals how the transformations, both internal (administrative) and external (legal) had direct impacts on labor and therefore in the overall operation of the enterprise. Keywords: Factory administration. Freemen and slaves. Iron Factory of São João de Ipanema. 45 SANTOS, Karina Oliveira Morais dos. Alemães, suecos, africanos e indígenas: mão de obra na fábrica de ferro de São João de Ipanema. Histórica, São Paulo, ano 10, n. 61, p. 44-52, maio 2014.

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Real Fábrica de Ferro: reconstituição de histórico e análise do contexto Em 4 de dezembro de 1810, uma Carta Régia “manda fundar um estabelecimento montanístico em Sorocaba para extração do ferro das minas que existem na Capitania de S. Paulo”.1 Trata-se da Real Fábrica de Ferro São João de Ipanema,2 constituída no Morro de Araçoiaba, ou “Biraçoiaba”, como é referido em muitos manuscritos. Desde o final do século XVI houve tentativas de implantação de uma fundição de ferro no local, que, no entanto, não prosperaram. Pode-se dizer que 1765 é o marco da origem da Fábrica, pois foi quando Domingos Ferreira Pereira apresentou a primeira amostra de ferro, enviada ao marquês de Pombal por Luis Antônio de Souza Botelho Mourão, o Morgado de Mateus, governador da capitania de São Paulo. Heloísa Liberalli Belloto (2007, p. 83) ressalta ainda o importante incentivo do Morgado de Mateus, visando à dinamização e ao fomento de novas atividades econômicas na capitania: “o governador queria, com urgência maior do que as condições vigentes permitiam, colocar a capitania em forma, não só de poder responder ao apelo militar que lhe fazia a metrópole, mas de tornar-se econômica, social e administrativamente capaz.” (BELLOTO, 2007, p. 84). Danieli Neto (2006, p. 87) também se apercebe disso, mas relata que neste primeiro momento não houve grande progresso; e os problemas não eram apenas financeiros, havia também entraves quanto ao emprego da mão de obra: Os próprios acionistas da fábrica reivindicavam, em 1769, uma solução para a falta de braços que atendessem aos serviços necessários para o bom desempenho da produção de ferro, de tal modo que o governo autorizasse o uso de escravos pertencentes a uma das fazendas de Sua Majestade próxima da fábrica.

Há aí um dado novo: o aluguel de escravos no Brasil, que eram direcionados ao labor fabril. As ideias não vigoraram e a área foi ocupada por agricultores. Cabe lembrar que em 5 de janeiro de 1785, visando refrear a concorrência comercial entre a metrópole e os produtores na colônia, houve a proibição dos empreendimentos manufatureiros no Brasil, por meio de um alvará régio, o que explica um relativo aumento nas atividades açucareiras em território paulista.3 Com a chegada da família real, esse dispositivo legal foi revogado por alvará de 1º de abril de 1808.4 1 Carta Régia disponível em: . Acesso em: 10 set. 2012. 2 O termo “Fábrica de Ferro de São João de Ipanema” passou a ser usado a partir de Carta Régia datada de 27 de setembro de 1814. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2012. 3 O alvará defendia que se deveria priorizar o trabalho no campo e nas minas, onde se encontravam as verdadeiras riquezas da terra. Uma vez que o território se apresenta escassamente povoado faz-se necessário direcionar o trabalho. Novais (2000, p. 142-143) interpreta este alvará discorrendo sobre as suas incoerências, a iniciar pelas vagas justificativas de D. Maria I, deixando claro se tratar de um dispositivo para atender uma política colonial portuguesa aliada aos interesses ingleses. 4 Disponível em: . Acesso em: 20 jul. 2012.

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Em 1810, Frederico Luiz Guilherme de Varnhagen, enviado por Portugal, realizou novos exames na região. No mesmo ano o Príncipe Regente oficializou a criação da fábrica por meio de uma Carta Régia.5 A direção da fábrica foi confiada ao sueco Carl Gustav Hedberg, que deveria ter ficado no cargo por dez anos. Ele e outros trabalhadores suecos chegaram a Sorocaba em 1811 (PEREIRA DE MORAES, 1858, p. 15). Hedberg deveria “construir e organizar minas e forjas para a extração, e fabrico de ferro, cobre, prata, e ouro, segundo as regras da arte, e melhoramentos conhecidos praticáveis no País.”6 O investimento inicial veio do poder real, que concedeu ao empreendimento cem escravos, bois e terras, além do pagamento dos mineiros nos primeiros quatro anos, sendo o restante subsidiado pelos acionistas. Segundo Vergueiro, a diretoria de Hedberg revelou-se conflitante e improdutiva: Seria longo relatar todos os acumulamentos de mão de obra, que Hedberg parecia empregar de propósito, dando de mais a mais tão pouca firmeza às suas obras, que empregava nelas madeiras da pior qualidade; e quando era advertido disso respondia que os Brasileiros não entendiam de madeiras.7

No final de 1812 o Tenente General Carlos Antônio Napion realizou novas inspeções em Araçoiaba a fim de fiscalizar os trabalhos nas obras. A inspeção revelou a inoperância do direto; o descontentamento dos acionistas também era nítido e, em setembro de 1814, Hedberg e os colonos suecos foram demitidos. Varnhagen assumiu a diretoria em 21 de fevereiro de 1815. Vergueiro afirma que em 1817 as obras na fábrica estavam concluídas, mas ainda faltavam trabalhadores. Além disso, existiam dificuldades com transporte e com moradores dos arredores. O diretor sugeriu a abertura de estradas que ligassem Sorocaba ao oceano de forma mais eficaz. Nos relatos de Vergueiro, percebe-se que a fábrica não se voltava apenas para o lucro. Havia interesse em ocupar e modernizar o território, inserindo os trabalhadores livres na atividade fabril. Nesse ponto, convergem os apontamentos do diretor Varnhagen, do Conde de Palma e do senador: “Se Ipanema der prejuízo ainda assim será útil como modelo para outras fábricas.”8 O Conde de Palma dizia algo semelhante: Posto que eu esteja convencido que a referida fábrica, posta em toda a atividade, nunca dará lucros aos acionistas, contudo tenho dado todas as providências úteis para que haja sempre carvão nos armazéns, e trabalhe toda a fábrica; porque dela se podem tirar as seguintes utilidades: 1ª Servir de modelo a qualquer particular.... 5 Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2012. 6 Manuscrito, APESP, localização: CO0245, folder 16. 7 Senador Vergueiro, apud PEREIRA DE MORAES, 1858, p. 31. 8 Diretor Varnhagen, apud DANIELLI NETO, 2006, p. 97.

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2ª Servir de escola.... 3ª Utilizar os povos dos contornos.9

Vergueiro ressalta a importância de se formarem “discípulos” nos trabalhos industriais, sendo necessário o aumento populacional. Diz do custo elevado de se trazer companhias estrangeiras, como a sueca, em 1810, e a alemã, em 1820: Mas são necessários discípulos. Os que tenho indicado não serão a princípio suficientes para encher o grande destino do Ipanema. Os negros, e os índios podem suprir o vazio nos serviços mais grosseiros; mas não é esta uma medida, que satisfaça (...) sente-se vivamente a necessidade de prover no aumento de sua população.10

Sabe-se que escravos negros africanos foram utilizados também em atividades técnicas, não apenas nos ditos serviços mais grosseiros. A questão do investimento do governo em uma fábrica que não gerava lucros, investimento justificado pela pretensão de tornar a fábrica um modelo, foi abordada por Nilton Pereira dos Santos (2009). Varnhagen dirigiu a fábrica até 1821, quando a direção passou a ser do militar Rufino José Felizardo da Costa, até 1824; em seguida, o cargo passou para Antonio Xavier Ferreira. Costa enfrentou sérios problemas com os trabalhadores, que reivindicavam pagamentos atrasados e que, por vezes, eram pagos com o próprio ferro. Em função desse descontentamento, a produção decaia e as dívidas aumentavam (SANTOS, 2009). Somavam-se a esses problemas a concorrência com Minas Gerais e com os Estados Unidos, a falta de mercado e o problema com a mão de obra. Por um lado, havia necessidade de empregar mais trabalhadores; por outro, os que já eram contratados estavam descontentes com a situação.11 Todos esses fatores punham obstáculos à capacidade da fábrica de apresentar bons resultados, o que contrariava os acionistas, receosos em disponibilizar mais recursos. O estabelecimento só não faliu por intervenção do Estado, que em 1831 – ou seja, depois da abdicação de D. Pedro I – o incorporou, passando-o às mãos da Repartição dos Negócios da Guerra (SANTOS, 2009, p. 46). Deste momento até 1842, a Fábrica teve outros três diretores: José Martins da Costa Passos, João Florêncio Pereira e o Major João Blöem. Santos relata a gestão do Major como um momento próspero, com melhoria nos negócios. Mas houve também o aproveitamento da conjuntura que se transformara, principalmente com o crescimento da produção de açúcar na década de 1830 e a multiplicação das propriedades, implementando um mercado consumidor. Jaime Rodrigues (1997, p. 95) lembra que foi durante a 9 Senador Vergueiro, apud PEREIRA DE MORAES, 1858, p. 57

10 Senador Vergueiro, apud PEREIRA DE MORAES, 1858, p. 73. 11 Há correspondências que revelam o descontentamento dos trabalhadores livres assalariados em vários momentos da história da fábrica. Há, inclusive, uma petição de trabalhadores alemães, reivindicando melhores condições de trabalho. (CADERNOS DO CHDD, 2006, p. 287-295).

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diretoria de Blöem que ocorreu a entrada dos primeiros africanos livres na fábrica, representando uma significativa parcela no contingente de trabalhadores do estabelecimento. Cresciam também os problemas de indisciplina. O momento de aparente prosperidade se revelou demasiadamente limitado: muitos artigos que foram comprados da fábrica neste período, como os cilindros usados nos engenhos, eram produtos de longa durabilidade. Assim, uma vez supridas as necessidades dos consumidores locais, estes não voltariam a adquirir tais produtos tão cedo. Somava-se a isso o fato de que muitos dos canavieiros passaram a substituir seus engenhos pelo cultivo do café, cultura em ascensão. A Fábrica retornou à decadência, arrastada por quase duas décadas. Pensou-se, inclusive, em arrendamento a particulares, mas a única proposta encaminhada ao poder imperial não foi aceita. Em 1846, Ipanema recebeu a visita de D. Pedro II. Mas esse simbolismo não foi capaz de alterar seu quadro, culminando na decisão do governo de suspender as atividades, em 1860. No período de cinco anos, “a fábrica foi praticamente desmontada, suas máquinas e escravos enviados para Mato Grosso e os edifícios tornaram-se rapidamente ruínas devido a falta de cuidados.”12 Em 1864, o Mato Grosso seria invadido por tropas paraguaias, iniciando a Guerra da Tríplice Aliança. As pressões externas fizeram com que se reativasse a Fábrica de Ipanema, possível solução para a fragilidade brasileira em produção de armamentos e munições. Um longo processo de reestruturação estaria por vir até que se retomassem de fato os trabalhos com a fundição de ferro. Seriam necessárias novas obras de infraestrutura, além de trazer as máquinas que foram levadas para Mato Grosso e restabelecer o contingente de mão de obra. Na década de 1870 a fábrica passou a apresentar novos resultados, mas as oscilações eram constantes mesmo com a abertura de ferrovias e estradas, como a D. Pedro II (1858), a Santos-Jundiaí (1867) e a Sorocabana (1870). Embora essas estradas de ferro não tenham sido construídas para atender a Fábrica, esperava-se que solucionassem a dificuldade de transporte. Mais uma vez, resolvia-se parcialmente um problema; havia outros, como a perda de mercado consumidor diante da concorrência com os produtos ingleses (DANIELLI NETO, 2006, p. 106). A guerra, embora fosse o motivo da reativação da Fábrica, mais tarde se revelou razão de decadência; por vezes houve falta de verba e desvio de repasses. Além disso, se evidenciou outra dificuldade em função da impossibilidade de adquirir escravos da África.13 As maquinarias e os 12 DANIELLI NETO, 2006, p. 100. Para contribuir com a discussão, pensando em um contexto maior que relacione a ascensão da cultura do café com as transformações na legislação escravista, ver CHALHOUB, 2012. 13 Cf. lei de 7 de novembro de 1831, que decretou que “todos os escravos, que entrarem no território ou portos do Brasil, vindos de fora, ficam livres”. Disponível em: . Acesso em: 24 set. 2012; lei de 4 de setembro de 1850, que reafirmou a de 1831. Disponível em: . Acesso em: 24 set. 2012. Ver também: RODRIGUES (1997). Para um panorama mais amplo acerca da escravidão no Brasil no final do século XVIII e início do XIX, ver: BERBEL, MARQUESE e PARRON (2010). O livro discorre sobre os casos específicos de Brasil e Cuba, visto que são os únicos países no “Novo Mundo” onde o tráfico de escravos não foi proibido depois de 1820. Esse fato teve implicações diretas na economia e na pressão britânica sobre esses países.

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fornos de fundição sofriam com o desgaste e não havia verba suficiente para substituí-los. Ao longo desse período a Fábrica foi mantida com subsídios do governo imperial até o advento da República. A insistência em manter a Fábrica decorreu de interesses diversos que se modificavam conforme a conjuntura, como a pretensão de modernizar o país, além de buscar autossuficiência em ferro a fim de diminuir a dependência dos produtos estrangeiros. Também é válido indagarmos a intenção do governo em viabilizar o preparo nacional para o caso de um confronto bélico, com o fornecimento de armamento e munições. A siderúrgica ora esteve sob a responsabilidade do Ministério da Guerra, ora sob o da Agricultura, sendo posteriormente transferida ao Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas (DANIELLI NETO, 2006, p. 107). O decênio de 1880 foi marcado pela gradativa queda da produção, aliada à dificuldade da venda dos produtos. A abolição da escravidão (1888) reforçava a dificuldade quanto ao emprego de mão de obra.14 Já não havia quem se dispusesse a investir num negócio que atravessou o século sem gerar lucros significativos. Em 1895, o governo republicano decidiu encerrar definitivamente as atividades na Fábrica de Ferro São João de Ipanema. Considerações gerais A reconstituição da história da Fábrica permite perceber o quão instável se configurou o empreendimento ao longo de 85 anos, a partir da direção de Hedberg. Tal instabilidade pode ser observada nos mais distintos segmentos que a compunham, mas o estudo do caso revela que todos os impasses introduziam transformações na mão de obra, com efeitos diretos na Fábrica. A irregularidade no repasse de verbas por parte do governo; as transferências de gestão e suas distintas formas de administração; os imperativos de mercado que modificavam a economia e as transformações legislativas moldavam e reconfiguravam o emprego da mão de obra, alterando as condições de trabalho e o quadro social de homens e mulheres de origens distintas. A dificuldade no repasse de verbas alterava não só a produtividade do empreendimento como a vida cotidiana tanto de negros escravizados quanto de homens livres assalariados. Na documentação, são recorrentes os ofícios comentando o medo de “desordens” e fugas por parte dos escravos, principalmente em dias santos, quando as celebrações tornavam propícios possíveis levantes ou refúgio dos mesmos em fazendas vizinhas. As correspondências com o Governador Geral da Capitania de São Paulo acerca do andamento dos trabalhos na siderúrgica eram frequentes. Num ofício de Varnhagen com esta finalidade, em dezembro de 1820, ele diz não se dirigir à cidade pois não iria se arriscar a sair da fábrica naquele momento, tendo em vista que havia 14 Um dos nomes brasileiros precursores na busca por elucidar as transformações que culminaram na abolição da escravidão foi Emília Viotti da Costa. O estudo da autora abriu um leque de possibilidades aos pesquisadores posteriores que se aventuraram no tema, trazendo novas interpretações à historiografia. Ver COSTA (1989). Para uma abordagem mais recente sobre o processo da abolição, ver: MACHADO (1994). Sobre a questão do tráfico interprovincial de escravos e em como ele possivelmente contribuiu com a abolição da escravidão no Brasil, ver: GRAHAM (2002, p. 121-160).

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muitos dias santos. Isso possibilitava muitas desordens, que os “milicianos” não seriam capazes de evitar sozinhos. O mesmo ofício reitera o pedido de que seja solicitado o pagamento pela Real Fazenda de sua dívida com a Fábrica, pois se fazia necessário pagar os moldadores e não havia dinheiro suficiente no cofre.15 Os ofícios revelam ainda articulações de reação por parte dos estrangeiros assalariados, em função do descontentamento com os atrasos dos pagamentos e das más condições de trabalho. As ameaças por parte destes também aparecem nos documentos: um ofício datado de 11 de julho de 1821, do diretor para o Governador da Capitania, relata que alguns acontecimentos da Vila de Santos causaram temor geral e que outros acontecimentos pontuais – de manifestações – o deixavam receoso, também. O diretor informou que num domingo anterior os ânimos tinham se exaltado na fábrica e nas vilas dos arredores, no mesmo dia em que um alemão, que já havia sido preso e remetido ao governador, disse que assim que aparecessem “negros levantados, ele se poria à frente deles, para comandá-los, pois que aquela gente era bem valorosa”.16 O conjunto documental sobre a Fábrica permite desvendar as relações de trabalho no âmbito da siderúrgica, bem como o funcionamento de sua máquina administrativa. O que fica claro são as dificuldades da Real Fazenda de arcar com os pagamentos que lhe cabiam, o que levava o estabelecimento a requerer empréstimos e endividar-se ainda mais. Principalmente durante a gestão Varnhagen e Rufino José Felizardo e Costa, há diversos ofícios solicitando à Real Fazenda que arcasse com suas dívidas, tendo em vista o esvaziamento do cofre da empresa. A impressão que se tem é que mesmo o diretor tinha autonomia limitada. São raros os documentos em que ele delibera contratos, autorizações gerais ou mesmo punições, sem antes enviar um ofício ao governador da capitania e obter um parecer dele. Quanto à mão de obra escrava, dentre os documentos consultados não há relatos de grandes revoltas ou levantes que tivessem abalado o empreendimento. No entanto, o temor aos motins aparece em muitas correspondências oficiais, e as fugas são comuns. O mais interessante é perceber que os “pretos” ocupavam os mesmos ofícios que os “brancos”, tanto em trabalhos brutos quanto em atividades mais técnicas; e, geralmente, era o próprio mestre livre quem ensinava ao escravo, da mesma forma como se fazia com os “aprendizes” assalariados. Há, inclusive, documentos em que as reivindicações partiam do próprio operário livre, que chegava a se comparar aos escravos. Por fim, ainda no que tange à mão de obra, temos a participação do indígena. Ainda não foi possível identificar como essa contribuição acontecia, visto que são raras as correspondências que os citam. Na bibliografia consultada, também não há menção a estes, com exceção de Og Menon, que aborda o assunto muito rapidamente. Menon discute a relação do indígena – em especial a dos Carijós, que habitavam a região – com o sistema fabril. O autor levanta questões 15 Arquivo Público do Estado de São Paulo – Localização: CO0247; Folder 13. 16 Ibidem.

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acerca da resistência cultural, tomando por premissa suas contradições. Os “homens da terra” se organizavam de forma absolutamente distante do que pretendia a Fábrica, ao tentar inseri-los em um empreendimento assalariado com alicerces escravocratas. Ao que parece, não houve uma participação massiva destes homens, que fugiam assim que eram cativos. A presença do indígena no âmbito do estabelecimento pôde ser comprovada em dois ofícios: um de 1816, no qual Varnhagen diz existir “meia dúzia de índios casados” trabalhando; e o outro é de 1820, bastante simbólico e também assinado por Varnhagen, dizendo que os índios levariam como presente a primeira coroa fundida em ferro, feita por escravos, à presença do governador da capitania. No Arquivo Público do Estado de São Paulo há 1,56 metros lineares de manuscritos, entre cartas régias, ofícios, receitas e correspondências gerais, sobre a Fábrica de São João de Ipanema. A leitura dos documentos, quando aliada a um trabalho de pesquisa e análise bibliográfica, permite reconstituir o cotidiano fabril do século XIX, que apresenta indígenas, escravos e negros livres ao lado de homens brancos locais e estrangeiros. Estes homens se encontravam sob condições de trabalho ora muito diferenciadas, ora muito parecidas, ainda que se tratem de sujeitos históricos que ocupam posições distintas quanto ao estatuto legal, rompendo com a equivocada ideia de que os “pretos” serviam apenas aos serviços mais “grosseiros” e que “técnica” era algo legado exclusivamente a homens brancos europeus. Estes também se revoltavam, também se fizeram perceber nitidamente descontentes com suas condições e com a falta de aparato da Coroa e do governo local. Tudo isso evidencia algumas especificidades e circunstâncias pouco exploradas pela historiografia, possibilitando perceber variações na conjuntura política e social a partir de um estudo de caso. Referências

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Caixas de Ordem do Arquivo Púbico do Estado de São Paulo. Localização: CO0245; CO0246; CO0247. Bases virtuais

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H

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A REVISTA ONLINE DO ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 61, maio 2014

ESPAÇO DA RELIGIOSIDADE ESCRAVA: IRMANDADES Ariane de Medeiros Pereira

Graduada em História pela UFRN. Atualmente é discente do programa de pós-graduação “História e Espaço”, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Resumo: O presente artigo tem como objetivo discutir as questões que envolveram as irmandades dos negros, seus objetivos, sua atuação na vida dos escravos e as tensões internas existentes nestas agremiações. Para tanto, analisaremos um processo-crime1 que ocorreu na Irmandade dos Negros do Rosário na Cidade do Príncipe2 e teve seu auto concluso no ano de 1876. Palavras-chave: Irmandade. Negros. Crimes.

Abstract: This article aims to discuss the issues surrounding the brotherhoods of black men, their goals, and their role in the lives of slaves, as well as the internal tensions in these associations. We will analyze a criminal case that occurred in the Irmandade dos Negros do Rosário na Cidade do Príncipe. This process was terminated in 1876. Keywords: Brotherhood. Negros. Crimes.

1 Pesquisado pela historiadora Maria José de Medeiros Nascimento, o referido processo encontra-se sob a guarda do Laboratório de Documentação Histórica – LABORDOC, no Centro de Ensino Superior do Seridó – CERES/ Caicó. 2 Atual Caicó, situada na região centro-sul do Estado do Rio Grande do Norte.

54 PEREIRA, Ariane de Medeiros. Espaço da religiosidade escrava: irmandades. Histórica, São Paulo, ano 10, n. 61, p. 53-62, maio 2014.

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Entre o século XVI e a primeira metade do século XIX, o negro africano foi objeto de um intenso tráfico transatlântico. Dentro desse longo período de deslocamento, os cativos tiveram sua identidade cultural fragmentada e descentrada, passando por novas resignificações culturais.3 Os europeus procuraram, neste sentido, imprimir nos cativos os valores da sociedade portuguesa. Os portugueses, para forçar a acomodação dos africanos e crioulos à sua condição de cativos e evitar possíveis focos de revolta, lançaram mão de estratégias para dominar a escravaria. Os dois principais elementos utilizados para combater a ira dos escravos foram a religião católica4 e a polícia (MATTOSO, 2003, p. 44). Inacessível mesmo para a esmagadora maioria da população livre, a educação escolar formal era totalmente proibida aos escravos negros no Brasil5, mesmo na segunda metade do século XIX; inclusive os forros não podiam frequentar o ambiente escolar. Foram poucos os senhores que se arriscaram a transgredir as regras e a ensinar seus escravos a escrever ou ler (FONSECA, 2009). Com base nos dados do Censo de 1872, podemos visualizar a quantidade de escravos no Brasil que possuíam ou não alguma instrução escolar, como podemos verificar na tabela a seguir: Tabela 01 - Nível de instrução escolar da população do Brasil em 1872 (Dados ajustados)6 Fonte: Censo de 1872. Disponível em: . Acesso em: 29 abr. 2014.

Instrução – população escolar de 6 a 15 anos Livres Frequentam escola

Escravos

Homens

Mulheres

Total

Homens

Mulheres

Total

Total geral

155.622

96.170

251.792

0

0

0

251.792

3 Para uma discussão sobre a identidade cultural fragmentada ver: HALL, 1992; PEREIRA e MACEDO, 2012. 4 Temos que deixar claro que havia escravos que, mesmo antes de serem introduzidos na América Portuguesa, já eram católicos. Fato é que, segundo a legislação portuguesa, os cativos deveriam ter a presença de um padre nos navios tumbeiros para atender às demandas espirituais dos escravos. No entanto, caberia ao senhor converter os cativos não cristãos ao mundo cristão. Após a tomada da fé católica os negros continuavam cativos, pois a legislação portuguesa não os considerava como livres, já que haviam entrado na América na condição de cativos. Ver: SOARES, 2011, p. 303-321. 5 No período colonial, por meio das reformas pombalinas e da Companhia de Jesus, houve o intuito de escolarizar o indígena, para que este se adaptasse à vivência portuguesa. Ver: FONSECA, 2009. No entanto, segundo o que nos demonstra o censo de 1872, não se pensou no mesmo procedimento com o escravo negro vindo da África; a este não cabia o ensino formal. 6 Os dados foram ajustados mediante aplicação do algoritmo do Método do Resultado Predominante (MRP) que corrige os dados segundo análise lógica da coerência interna das próprias evidências do censo. Para um estudo mais detalhado do MRP, ver RODARTE, 2008.

55 PEREIRA, Ariane de Medeiros. Espaço da religiosidade escrava: irmandades. Histórica, São Paulo, ano 10, n. 61, p. 53-62, maio 2014.

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Não frequentam escola

779.343

786.110

1.565.453

114

114

228

1.565.681

2.782

3.706

6.488

147.806

132.054

279.860

286.348

Sem informação da frequência escolar Instrução Livres

Escravos

Total Geral

Homens

Mulheres

Total

Homens

Mulheres

Total

Sabem ler e escrever

1.013.078

550.973

1.564.051

958

445

1.403

1.565.454

Analfabetos

3.305.621

3.550.000

6.855.621

804.212

705.191

1.509.403

8.365.024

Com base nos dados da Tabela 01 podemos verificar que na população entre seis e quinze anos, em 1872, eram poucas as pessoas que frequentavam a escola, considerando que de um total de 2.103.821 pessoas em idade escolar, apenas 251.792 iam à escola, ou seja, um percentual de 11,96% tinha contato com uma educação formal. Sendo que todas estas crianças e adolescentes eram livres, pois os escravos não chegavam aos bancos escolares. O Censo de 1872 demonstra ainda que de 1.510.806 escravos existentes no Brasil nesse período, 1.403 sabiam ler e escrever, indicando que, mesmo sendo proibidos de alfabetizarem seus escravos, um pequeno percentual dos senhores quebrava as regras, mesmo que não fosse nos bancos das escolas, mas em sua própria fazenda. Se a educação escolar tinha lá seus perigos, que precisavam ser evitados, a religião devia ser propagada. Em tese, para seguir o princípio católico da evangelização através dos sacramentos; na prática, porque a educação religiosa interessava ao sistema escravista e político de então. Os ensinamentos da religião católica diziam respeito a valores como paciência, humildade, resignação e obediência. O Censo de 1872 demonstra dados a respeito do tipo de religião da população brasileira entre as pessoas livres e os escravos:

56 PEREIRA, Ariane de Medeiros. Espaço da religiosidade escrava: irmandades. Histórica, São Paulo, ano 10, n. 61, p. 53-62, maio 2014.

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Tabela 02 - A religião da população brasileira em 1872 Fonte: Censo de 1872. Disponível em: . Acesso em: 29 abr. 2014. Dados ajustados 9ver nota 6). Categoria Religião Católicos Acatólicos

Livres Escravos Homem Mulher Soma Homem Mulher Soma 4.302.387 4.089.538 8.391.925 803.946 705.017 1.508.963 16.312 11.435 27.747 1.224 619 1.843

Total -----------9.900.888 29.590

Com base na análise dos dados que o Censo de 1872 apresentou, podemos afirmar que, de uma população de 9.914.087 pessoas, 27.747 não eram católicos, sendo que todos os escravos do período foram classificados como católicos. A religião católica era predominante no Brasil neste período, com um percentual de aproximadamente 99,7%. O trabalho cria também espaços de sociabilidades onde ocorrem trocas culturais importantes para a sobrevivência espiritual dos escravos. Um dos fatores que contribuíram para uma aproximação entre elementos de diferentes etnias foram os valores religiosos trazidos da África; mesmo que os senhores não aceitassem seus preceitos, obrigando os escravos ao batismo e aos demais sacramentos, depois dos primeiros momentos de adaptação os negros voltavam a praticar sua religião, mesmo que fosse longe da vista dos seus donos. Os senhores, mesmo não aceitando as celebrações religiosas dos escravos, sabiam que era preciso ceder a algumas hibridações culturais para evitar qualquer revolta desses escravos. Assim, tiveram que tolerar, sempre que possível, os cativos que realizavam danças e batuques nos terreiros das fazendas. As cidades permitiram aos escravos estabelecer um espaço de maior interação entre os negros, que a cada dia experimentavam uma quantidade maior de visões de liberdade (CHALHOUB, 1990) e novas formas de pressionar os senhores a aceitarem suas práticas culturais. No caso do espaço religioso os cativos, livres e libertos conseguiram que a Mesa de Consciência e Ordens, em Portugal, permitisse a inserção nas confrarias negras semelhantes às que existiram em Portugal, nas quais podiam praticar suas devoções católicas particulares e até mesmo organizar festas comemorativas para os santos de sua devoção (MATTOSO, 2003, p. 147). As irmandades tinham uma preocupação constante com o repouso da alma dos seus irmãos e, principalmente, com aqueles que não contavam com quem fizesse seu sepultamento; assim, procuravam recolher o corpo do cativo e fazer o enterro conforme os preceitos da fé cristã, e, quando possível, dos ritos africanos, buscando a proteção espiritual para aquela alma que havia 57 PEREIRA, Ariane de Medeiros. Espaço da religiosidade escrava: irmandades. Histórica, São Paulo, ano 10, n. 61, p. 53-62, maio 2014.

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partido (LUNA e KLEIN, 2010, p. 65-66). Para que as irmandades pudessem se manter e ajudar seus congregados eram organizadas coletas dentro e fora da Igreja. Além do mais, cada participante contribuía com uma taxa fixa, variável apenas para os irmãos que assumiam cargos na irmandade. As esmolas eram indispensáveis para manter a irmandade funcionando e para que essa mantivesse suas ações sociais para com os irmãos despossuídos, fosse no caso de sepultamento ou de doença (SOARES, 2000, p. 153). Mesmo sendo uma instituição que variou de uma região para outra, o sistema escravista, conforme a dinâmica socioeconômica de cada espaço, apresentou semelhanças no domínio cotidiano dos escravos. A questão do batismo católico foi uma dessas similaridades, como também a imposição dos preceitos do catolicismo ao escravo. Através do Censo de 1872 podemos visualizar a presença da religião católica na população da Cidade do Príncipe, como fica exposto nos dados a seguir: Tabela 03 - A religião da população da Cidade do Príncipe – 1872 Fonte: Censo de 1872. Disponível em: . Acesso em: 29 abr. 2014. Categoria Religião Católicos Acatólicos

Homem 5.841 0

Livre Mulher 5.475 0

Soma 11.316 0

Escravo Homem Mulher 658 620 0 0

Soma 1.278 0

Total 12.594 0

Com base nos dados apresentados na tabela verificamos que, de toda a população da Cidade do Príncipe, num total de 12.594 pessoas, todas foram tomadas como católicas. A partir do que o Censo de 1872 apresentou, podemos afirmar que poucas foram as localidades brasileiras que tiveram uma população acatólica reconhecida. Os tomados como acatólicos em todo o Império somavam 29.590 (ver Tabela 02), uma pequena porcentagem de aproximadamente 0,3% face a toda a população existente no Brasil – 9.900.888 (ver Tabela 02) – nesse mesmo período. A criação da Irmandade dos Negros na Povoação do Caicó data de 1773, ou seja, ainda no século XVIII. Em uma região sem o dinamismo econômico das minas ou do açúcar, a Ribeira do Seridó podia contar com o gado e com os bens que advinham dessa atividade e da agricultura. Daí é que provinha também o pouco necessário para que os escravos e libertos dispusessem de bens (LOPES, 2011, p. 75), que dariam suporte para que os cativos e libertos se organizassem e fundassem uma irmandade católica. Assim, os irmãos tiveram tanto o consentimento dos homens brancos da região quanto da Coroa portuguesa, para a fundação da Irmandade dos Negros. 58 PEREIRA, Ariane de Medeiros. Espaço da religiosidade escrava: irmandades. Histórica, São Paulo, ano 10, n. 61, p. 53-62, maio 2014.

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No dia 16 de junho de 1771 havia uma pequena multidão de homens e mulheres de cor reunidos na Matriz de Sant’Ana, para a constituição de uma Assembleia, a fim de fundar uma irmandade que congregasse as pessoas de cor. Formou-se, assim, a primeira mesa com reis e rainha do congo, juiz e juíza, escrivão, escrivã, tesoureiro. A primeira Constituição foi redigida com clareza e se subdividia em 16 capítulos, dos quais alguns merecem atenção, por fazerem referência a quem poderia participar da irmandade, e também a quem teria direito a exercer os cargos administrativos (DANTAS, 2008, p. 59-60). O Primeiro Capítulo estabelecia que todos os irmãos de cor, fossem homem ou mulher, deveriam pagar duas patacas ao ingressarem na confraria, e uma pataca anualmente. O Décimo Capítulo diz respeito também à contribuição financeira de cada membro da mesa, conforme seu cargo. Por exemplo, a taxa mais elevada ficava para o rei e a rainha, que possuíam o cargo mais honorífico. Merece destaque o Quinto Capítulo, o qual deixava claro que o tesoureiro devia ser um homem branco e de posses, temente a Deus. Era o único membro que não podia ser negro. Tal peculiaridade se explica pela necessidade de controle da sociedade branca e pelas notações contábeis só possíveis a pessoas alfabetizadas, raríssimas entre os negros. O Sexto Capítulo fazia referência ao dia de comemoração do orago dos negros do Príncipe. Fixava as festividades para o “dia de ano novo”, oito dias após o Natal. Aprovada a Constituição nas mais variadas instâncias, em 9 de fevereiro de 1772 a Irmandade recebeu ali o selo da Real Mesa da Consciência e da Ordem, sendo enviada a Portugal. No mesmo ano o rei D. José I autorizou a criação da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário; no entanto, a comunicação régia só se tornou pública no final de 1773. Foi organizada uma assembleia no dia 27 de dezembro do mesmo ano, na matriz de Sant’Ana, com a leitura da publicação régia de confirmação. Esta foi assinada por quarenta e três pessoas, das quais apenas quatro sabiam ler e escrever. Suas assinaturas foram substituídas por uma variada soma de cruzes que significava as assinaturas, a concordância escrita das pessoas de cor (DANTAS, 2008, p. 61-62). A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Caicó dos Homens de Cor sobrevive até os dias atuais na Cidade de Caicó, com a festa anual de sua padroeira e os demais ritos, como coreografia ritmada pelos tambores e os pífanos. As relações entre os irmãos de cor, a Igreja Católica e a sociedade branca não corriam sem atritos. No ano de 1874 foi feita ao administrador de capelas da Cidade do Príncipe uma petição para a criação da Irmandade de Nossa Senhora dos Impossíveis.7 Os irmãos solicitantes apresentaram o termo de compromisso para a efetivação da nova irmandade. No processo de criação da Irmandade de Nossa Senhora dos Impossíveis nos deparamos com uma petição de requerimento de demissão do tesoureiro da Irmandade de Nossa Senhora 7 Ver nota de rodapé 1.

59 PEREIRA, Ariane de Medeiros. Espaço da religiosidade escrava: irmandades. Histórica, São Paulo, ano 10, n. 61, p. 53-62, maio 2014.

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do Rosário. Os irmãos acusaram o tesoureiro Luis Chermont de Brito de não ter prestado contas da quantia de 200$000 no ano de 1867. A petição de requerimento para a demissão de Luis Chermont encontrava-se assinada por quarenta e quatro irmãos, sendo que por estes serem analfabetos, as assinaturas constavam a rogo de outras pessoas. Haja vista que na Cidade do Príncipe, os escravos não eram alfabetizados, como podemos verificar através da tabela a seguir, com base nos dados do Censo de 1872: Tabela 04 - Nível escolar da população da Cidade do Príncipe – 1872 Fonte: Censo de 1872. Dados ajustados. Disponível em: . Acesso em: 29 abr. 2014. Categoria Livres Escravos Instrução - população escolar Homens Mulheres Soma Homens Mulheres Soma de 6 a 15 anos Frequentam Escola 163 115 278 0 0 0 Não Frequentam Escola 820 1.035 1.855 0 0 0 Sem informação 0 0 0 73 91 164 Total 983 1.150 2.133 73 91 164 Instrução Sabem Ler e Escrever 1.577 1.110 2.687 0 0 0 Analfabetos 4.264 4.365 8.629 658 620 1.278

Total 278 1.855 164 2.297 2.687 9.907

Através da análise dos dados do Censo de 1872 é possível afirmar que, de uma população total de 12.594, com 2.297 pessoas em idade escolar, apenas as pessoas livres na Cidade do Príncipe apresentavam escolaridade. Mesmo assim, era apenas um pequeno número de 2.687 na população total. Ou seja, aproximadamente apenas 21,3% da população era alfabetizada. Sendo assim, a maioria das pessoas era analfabeta (78,7% aproximadamente). Todos os cativos eram analfabetos. Ao responder ao termo de acusação, Luís Chermont argumentou que a reclamação apresentada ao Juiz Municipal era infundada, primeiramente, porque os irmãos que assinaram não sabiam ler nem escrever; sendo assim, não tinham entendimento do que a pessoa a rogo os induzia a concordar. Alegou também que mesmo se os cativos se negassem a conceder que outro assinasse por ele, o senhor o obrigava a dar a permissão, como fica evidente no documento abaixo, É iluzoria; iluzoria por que todos os irmãos foram iludidos, e os que não se quiseram iludir, foram obrigados por seos senhores a mandar assignar, e ali está o irmão Ignácio escravo de Manoel Barbosa de Carvalho, que conhecidos dos factos o seo senhor o compilio a mandar assignar, ahi está a confissão do próprio irmão, e com estes muitos o foram [...].8 8 Ver nota 1.

60 PEREIRA, Ariane de Medeiros. Espaço da religiosidade escrava: irmandades. Histórica, São Paulo, ano 10, n. 61, p. 53-62, maio 2014.

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Chermont afirmou que a acusação a ele feita foi realizada “por uma mão traiçoeira”, que soube iludir seus irmãos de irmandade e que, por isso, foi exonerado do cargo de tesoureiro “como um ladrão”, mas que não conformado, procurou descobrir quem realizou essa injúria. Constatou que o autor de todo o seu drama foi Francisco Borges de Mello, branco, que possuía interesse em seu cargo, e que se aproveitou da falta de escolaridade dos irmãos para se beneficiar das assinaturas a rogo de terceiros. Com relação ao dinheiro do que foi acusado, Chermont declarou que tinha prestado contas, como foi registrado no “livro velho da irmandade”, que se achava arquivado; e no qual, afirmava, se podia comprovar o que ele dizia. Relatou também que depois da prestação de contas, a irmandade era quem estava devendo a ele 1333$000 reis. Quantia essa que ele perdoou. Chermont alegou ainda que ele poderia ser destituído de seu cargo em razão de sua cor, porque como afirmava o Capítulo Quinto da Irmandade do Rosário, o tesoureiro não poderia ser homem de cor. No entanto, no período em que foi eleito o Vigário não fez restrições. Mas depois havia se desentendido com o padre; foi ele que se empenhou em demiti-lo de seu cargo. Ainda segundo Luis Chermont no texto dos autos, os próprios irmãos reunidos afirmaram que haviam sido enganados, como fica evidente no trecho do documento a seguir, A irmandade sendo composta em sua totalidade de homens forros, escravos e outros libertos, e por isso ignorantes, ilude-se facilmente, ahi estão muitos assignados que o forão e muitos delles já o declararão na reunião de vinte e cete do mez passado [...].9 O advogado de Luis Chermont argumentou que através do documento judicial podia se verificar que as assinaturas apresentadas para reclamação da demissão não tinham nenhum valor, porque eram a rogo de alguém e não possuíam firma reconhecida. Em segundo lugar, existiam assinaturas repetidas de homens brancos, que não podiam votar na irmandade, segundo o Termo de Compromisso (estatutos). Constava inclusive a assinatura do próprio filho de Borges, o qual não fazia parte da irmandade. O juiz municipal, ao julgar o caso, considerou que a Irmandade do Rosário, através do seu Termo de Compromisso e de sua mesa regedora, possuía autonomia para agir da melhor forma possível para o benefício da dita irmandade e, como nada havia sido provado com relação ao roubo por Chermont, esta decidiria o que achasse oportuno. No caso de Chermont, a irmandade decidiu anular a eleição em que ele figurava como tesoureiro. A razão era o cumprimento do Quinto Capítulo do Termo de Compromisso, segundo o qual só homens brancos poderiam assumir o cargo de tesoureiro. O documento judicial informa, no entanto, que esse quesito já havia sido modificado, e que portanto, a futura eleição aconteceria com base no novo regulamento, no qual não haveria impedimento para que Chermont fosse 9 Idem.

61 PEREIRA, Ariane de Medeiros. Espaço da religiosidade escrava: irmandades. Histórica, São Paulo, ano 10, n. 61, p. 53-62, maio 2014.

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candidato. Eram os sinais dos tempos de crise do escravismo. Considerações finais As irmandades foram agremiações permitidas aos negros no Brasil, por parte da Coroa Portuguesa. Nelas, os negros puderam ressignificar sua identidade cultural, que havia sido fragmentada com o tráfico transatlântico. Além do mais, as irmandades permitiram a hibridação cultural entre os elementos dos ritos dos brancos com os oragos negros, o que possibilitou uma circularidade de culturas. A Irmandade dos Negros da Povoação do Caicó foi fundada segundo os ritos que convinham à Coroa Portuguesa, e com sua autorização. Como as demais irmandades, possuía seu termo de compromisso bem claro e tinha como objetivo ajudar os irmãos e festejar seus santos. Entretanto, não estava isenta de conflitos internos pelos cargos mais honoríficos, como o de tesoureiro.

Referências

CHALHOUB, Sidney. Visões de liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. DANTAS, Dom José Adelino. Homens e fatos do Seridó Antigo. Natal: Sebo Vermelho, 2008. FONSECA, Thais Nivia de Lima e. Letras, ofícios e bons costumes: civilidade, ordem e sociabilidade na América portuguesa. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 1992. LOPES, Michele Soares. Escravidão na Vila do Príncipe, Província do Rio Grande do Norte (1850-1888). 2011. Dissertação (Mestrado)–PPGH, UFRN, Natal, 2011. LUNA, Francisco Vidal; KLEIN, Herbert S. Escravismo no Brasil. São Paulo: Edusp, 2010. MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2003. PEREIRA, Ariane de Medeiros; MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. A Identidade Cultural Africana Deslocada e Fragmentada: grupos de procedência africana no Seridó. In: II Colóquio Nacional História Cultural e Sensibilidades. 2012, Caicó/ RN. II Colóquio Nacional História Cultural e Sensibilidades, 2012. 62 PEREIRA, Ariane de Medeiros. Espaço da religiosidade escrava: irmandades. Histórica, São Paulo, ano 10, n. 61, p. 53-62, maio 2014.

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RODARTE, Mario M. S. O trabalho do fogo: perfis de domicílios enquanto unidades de produção e reprodução na Minas Gerais Oitocentista. 2008. Tese (Doutorado em Demografia)–Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008. . Acesso em: 11 jul. 2012. SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. ______. A conversão dos escravos africanos e a questão do gentilismo nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. In: FEITLER, B.; SOUZA, E. A Igreja no Brasil. Normas e práticas durante a vigência das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Unifesp, 2011. p. 303321.

63 PEREIRA, Ariane de Medeiros. Espaço da religiosidade escrava: irmandades. Histórica, São Paulo, ano 10, n. 61, p. 53-62, maio 2014.

H

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A REVISTA ONLINE DO ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 61, maio 2014

ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO RESTAURA E DIGITALIZA JORNAL ABOLICIONISTA Glaice Meire Machado

Graduanda em Letras (FFCLH-USP) e funcionária do Núcleo de Biblioteca e Hemeroteca do Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Julio Couto Filho

Mestre e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Funcionário do Núcleo de Biblioteca e Hemeroteca do Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Desde novembro do ano passado, o Arquivo Público do Estado de São Paulo se propôs a uma tarefa importante: restaurar, digitalizar e colocar de volta à consulta o jornal abolicionista A Redempção. Todo esse esforço (veja detalhes do processo de restauração na reportagem a seguir) tem uma razão de ser: o Redempção é considerado um dos veículos mais importantes da causa abolicionista, constituindo, portanto, fonte para pesquisadores interessados no estudo dessa época, e também para o público em geral. Até agora, entretanto, este estudo estava impossibilitado pelo estado de conservação precário em que o jornal chegou ao Arquivo. Guardião de um volume considerável de documentação hemerográfica — mais de 300 mil exemplares entre jornais, revistas e publicações seriadas —, em 2008 o Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP) recebeu em regime de comodato o acervo de jornais e revistas do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP). Desde então, o APESP tem trabalhado com zelo e afinco na catalogação e disponibilização deste rico conjunto documental (a hemeroteca do IHGSP é uma das maiores do Brasil em diversidade de títulos). Embora conhecido de nome, o Redempção ainda é pouco estudado, devido à sua raridade e precariedade dos exemplares disponíveis para consulta no Brasil. A coleção do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, sob guarda do Arquivo Público do Estado de São Paulo, é a única conhecida (possui 135 dos cerca de 156 exemplares publicados). Tal coleção foi transferida ao Arquivo Público em 2008, junto a outros 6.128 diferentes títulos de periódicos. Embora esteja catalogada em base de dados, sua disponibilização não foi até agora concretizada em razão do estado precário de conservação no qual se encontra. Um projeto de restauro — já em curso — e posterior digitalização de toda a coleção permitirá seu manuseio e difusão em larga escala pela Internet, promovendo, assim, a divulgação que o periódico merece. 64

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O jornal teve apenas dois anos de publicação contínua e regular (1887-1888), sendo que, após 13 de maio de 1888, as publicações são espaçadas por períodos maiores, geralmente de um ano, caracterizando as edições desse período como comemorativas. Sabe-se que, até o 13 de maio de 1890, foram publicadas 140 edições numeradas, além de uma extra e sem número, possivelmente em maio de 1888 (a edição não possui data). Depois disso, outras edições comemorativas surgiram. A coleção do IHGSP tem oito números especiais até 1899, embora não se possa afirmar que representem a totalidade. O que se pode afirmar é que existem pelo menos 156 diferentes edições de A Redempção, contando que foram publicadas 140 edições numeradas até 13 de maio de 1890; uma comemorativa de 1888, não numerada; onze comemorativas anuais a partir de 1889, pois a última publicada é de 1899 e possui o número e ano 11; e, pelo menos, mais quatro no ano de 1897 que constam do acervo do IHGSP (27/junho/1897; 18/julho/1897; 22/agosto/1897; 30/setembro/1897). Estima-se, portanto, que foram publicadas, pelo menos, 156 edições. Das 140 edições numeradas, faltam a essa coleção à qual nos referimos apenas dezessete números (17, 84, 88, 91, 93, 95, 97, 103, 106, 111, 113, 115, 116, 121, 126, 127 e 130). Celia Marinho de Azevedo (1987, p. 216) escreve, em nota sobre a raridade e o estado em que encontrou a coleção ao tentar consultá-la para seu trabalho (provavelmente nos anos 80): Ao que eu saiba, existe uma única coleção completa deste jornal no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Esta preciosa coleção encontra-se num estado tão lastimável de conservação, esfarelado, rasgado, em frangalhos, enfim, que me foi extremamente difícil fazer esta leitura.

Veículo bissemanal, esta folha é considerada um dos mais importantes e influentes libelos abolicionistas de São Paulo. Sabe-se que era publicada em prelo localizado na antiga Igreja dos Remédios, demolida em 1943, e que na época situava-se no Largo da Cadeia (atual Praça João Mendes) onde hoje fica o Fórum de São Paulo. A Igreja dos Remédios era reduto de escravos, como a Igreja da Santa Cruz das Almas dos Enforcados, na Liberdade, ou a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, no Largo do Paissandu (existe outra com o mesmo nome na Penha, no Largo do Rosário, e que também serviu de refúgio para escravos).1 Fato interessante, aliás, é que em 1891 o Diário Oficial começou a ser impresso no mesmo local e com o mesmo prelo em que A Redempção era impressa. O jornal é de suma importância para a memória do processo abolicionista no Brasil, como expressa o quase contemporâneo Affonso de Freitas (1915): 1 (ARROYO, 1966, p. 175) O autor assim se refere à Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos que ficava no Centro Velho de São Paulo: “A igreja que foi fundada no antigo Largo do Rosário, confluência da hoje Rua São Bento, Avenida São João e Praça Antônio Prado, onde existiu até 1903, e hoje se encontra no Largo do Paiçandu, vigilante das suas tradições e da sua curiosa história.” No bairro paulistano da Penha existe uma igreja de nome idêntico, que também foi reduto de escravos e permanece até hoje no Largo do Rosário.

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A Redempção era um terrível pamphleto de propaganda da libertação incondicional do escravo, e lançava mão de todos os meios, inclusive o do ridículo para desmoralizar a causa dos escravocratas: orgam de uma associação secreta que se ramificava por todas as camadas sociaes, com representantes em todos os departamentos publicos e instituições particulares e cujas attribuições era informar o centro de tudo que interessar pudesse ao movimento abolicionista, A Redempção tornou-se um instrumento poderoso de apressamento da extincção do elemento servil, e inquestionavelmente foi quem mais contribuiu para o desbravamento do caminho que devia levar o governo imperial á decretação da lei áurea de 13 de Maio de 1888.

Dessa forma, o jornal se transformou em uma ferramenta para o grupo pró-abolição de São Paulo, onde figuravam o diretor Antonio Bento de Souza e Castro e ainda alguns políticos da época, como Bernardino de Campos. Antonio Bento de Souza e Castro é apontado pelos estudiosos como sucessor de Luiz Gama2 na luta pela abolição da escravatura no Brasil. O jornalista nasceu em 1843, filho de um farmacêutico, e formou-se em Direito em 1868, tendo atuado como promotor e juiz no município de Atibaia (AZEVEDO, 2007). Demitido do serviço público em 1875, instala-se na capital paulista em 1877 e a sua vida política inicia-se quando ingressa no Partido Conservador. Mas Antonio Bento aliava-se com indivíduos afiliados a outras correntes, contanto que fossem abolicionistas, como integrantes do Partido Liberal; e mesmo com liberais mais radicais, defensores do republicanismo que, antes de 1873, não dispunham de uma agremiação partidária. Se por um lado tornou-se provedor e líder intelectual da Confraria de Nossa Senhora dos Remédios, foi também liderança dos homens de ação que eram os caifazes.3 Quando Gama morreu, em 1882, Bento jurou, publicamente, continuar sua luta abolicionista. Bento foi redator não apenas de A Redempção, mas de todo um conjunto de periódicos abolicionistas: •

O Arado. São Paulo, Typographia Commercial (1882-1883).



Jornal do Commercio: propriedade de uma associação commanditaria. São Paulo, Typographia do Jornal do Commercio (1882-1884).



A Liberdade: orgam dos Abolicionistas. São Paulo, Typographia da Liberdade (1888).

O Arado era um jornal picaresco da Faculdade de Direito do Largo São Francisco; O Jornal do Commercio, como o próprio nome indicava, era um veículo comercial e nada tem a ver com o 2 Nome de maior prestígio na luta abolicionista, Luiz Gama, filho de mãe negra e pai branco – pelo qual foi vendido como escravo –foi analfabeto até os 17 anos. Aprendeu a ler e a escrever e chegou a estudar Direito, passando depois a atuar como advogado em São Paulo. Com esta formação, conseguiu libertar centenas de escravos. Faleceu em 1882, e hoje é considerado um dos mais influentes líderes abolicionistas brasileiros. 3 Os caifazes faziam campanha nas chácaras e fazendas para que os escravos fugissem, oferecendo o apoio logístico constituído de uma grande rede que os conduziria ao Quilombo do Jabaquara, situado em Santos. Dessa rede faziam parte os chamados cometas, que eram caixeiros viajantes; e também, funcionários de ferrovias, que ajudavam os escravos no deslocamento pelo interior até a chegada ao quilombo. Cf. AZEVEDO (1987, p. 216).

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jornal homônimo do Rio de Janeiro; e A Liberdade, iniciada em 10 de maio de 1888, teve, em 17 de maio de 1888, uma edição comemorativa à assinatura da Lei Áurea, tendo sido publicada apenas nesse ano. Antonio Bento assinava a edição de O Arado como Doutor Fausto (FREITAS, 1915, p. 598), numa alusão ao médico do romance de Goethe que havia vendido sua alma ao diabo. Este pseudônimo possivelmente era utilizado para evitar represálias, visto que o movimento abolicionista apenas começava a ganhar corpo, naquele início da década de 1880. Por sua vez, o Jornal do Commercio: propriedade de uma associação commanditaria, editado pelo escritor naturalista Raul Pompéia, acolheu a ideia de criar um museu na Secretaria da Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios,4 tendo publicado: A comissão encarregada de colecionar instrumentos de torturas aplicados aos escravos, fotografias de indivíduos que têm embaraçado a marcha abolicionista roga aos meus correligionários, quer desta Capital, quer do Interior, o obséquio de remetê-los à redação do “Jornal do Comércio”, acompanhados de documentos comprobatórios, como dispõe a circular que neste sentido recebemos. (ALVES, 1962, p. 66).

Nesse jornal, Antônio Bento era o redator-chefe e T. Militão de Miranda, o gerente. O Jornal do Commercio também tinha como redator Gaspar da Silva. O periódico era impresso em tipografia própria, a Typographia do Jornal do Commercio. Seu escritório de redação situava-se na Rua da Imperatriz, nº 49 (atual Rua 15 de Novembro). Assim como A Redempção, ele era um jornal de caráter comercial, mas, diferentemente de outros, inclusive abolicionistas e republicanos, não aceitava publicar anúncios de escravos fugidos, por determinação de Antonio Bento.5 Segundo o próprio bisneto de Antonio Bento,6 ele teria fundado o jornal em 1882, juntamente com Raul Pompéia. Tratava-se de um periódico comercial, literário e de notícias, publicado nos dias úteis com artigos de opinião, editais, anúncios, além de textos literários e de caráter abolicionista.7 4 (CONRAD, 1978, p. 294-295): “Na sacristia de Nossa Senhora dos Remédios, quartel-general dos caifazes, Bento reuniu uma coleção de instrumentos que, antigamente, haviam sido usados em escravos: chicotes de couro, coleiras, correntes, cangas e gargalheiras de ferro.” Cf., também, MENNUCCI (1934, p. 7, nota 1): “Nessa mesma Igreja, Antonio Bento, fazendo-a como que uma dependência do seu jornal, colecionava todos os instrumentos de tortura da raça desgraçada que os caifazes apanhavam, coleção que se foi enriquecendo a ponto de ser motivo para uma demorada visita dos curiosos, e que desapareceu, inexplicavelmente, sem deixar vestígios.” 5 Cf. Idem, ibidem, p.54 e seguintes. Cf; também, RODRIGUES, 2013, p. 219-224. Algo que ficou notório foram os espaços de disputas estabelecidos dentro dos jornais, sobretudo o Jornal Diário de São Paulo e o Jornal do Commercio. O primeiro veiculava os protestos dos senhores contra as ações dos advogados em prol dos escravos, como, por exemplo, Antonio Bento e os “caifazes”. Já o segundo, sob o comando de Raul Pompéia e Gaspar Silva, se posicionava a favor dos sujeitos escravizados e das ações de liberdade defendidas pelos advogados. 6 Cf. SOUZA E CASTRO, Luiz Antonio Muniz de. Antonio Bento, abolicionista. Biografia de um herói da Abolição da Escravatura é traçada por seu bisneto (monografia enviada em 30/08/2009 a Novo Milênio). Disponível em: . Acesso em: 07 maio 2014. 7 O acervo do IHGSP sob guarda do APESP possui o total de 4 exemplares (1883-1884).

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Em 4 de maio de 1888, Antonio Bento se retira com os amigos da redação de A Redempção devido a dissensões com os proprietários do jornal; e, portanto, não comemora a assinatura da Lei Áurea como seu redator. Retirei-me da redacção d’A Redempção, para formar uma outra folha com o título A Liberdade. Nunca auferi o mais insignificante lucro desse jornal. A Liberdade será uma continuação d’A Redempção com o mesmo estilo e os mesmos colaboradores. “ S. Paulo, 4 de Maio de 1888. Antonio Bento.8

A partir de 6 de maio de 1888, o nome de Antonio Bento não mais aparece no cabeçalho do jornal como redator-chefe, mas tão somente o nome dos proprietários Diniz & Sol, que publicaram uma nota explicativa na primeira página dessa mesma edição: Retirou-se da redacção desta folha o nosso distincto amigo dr. Antonio Bento de Souza e Castro. Durante longo tempo auxiliou-nos com a sua inexcidivel coragem e resolução, combatendo sem reservas os homens por mais bem collocados que estivessem e as instituições por mais poderosas que fossem, concorrendo assim ao lado de numerosos amigos que nos auxiliaram, e cujo prestimo ainda solicitamos para o feliz exito a que chegou a causa abolicionista nesta provincia. Agradecendo os seus bons e inolvidaveis obsequios desejamos, para o novo jornal que S. Sª vae fundar, carreira tão propicia como aquella que a sua cooperação nos ministrou.

Em 10 de maio de 1888, Antonio Bento funda o jornal A Liberdade, um periódico publicado duas vezes por semana e apenas durante esse ano; sendo que, em 17 de maio, é publicado um número comemorativo em homenagem à Lei Áurea. Os artigos publicados nele refletiam a opinião de seus redatores; mas também publicava notícias, folhetins (A Cabana do Pai Tomás) e anúncios. Esta publicação também merece destaque não somente pela continuidade dada à produção intelectual de Antonio Bento, interrompida em A Redempção, como também pela publicação da própria biografia de Bento.9 A Liberdade: orgam dos Abolicionistas, que era publicada por uma empresa de São Paulo pertencente a Elias, Pinto e Cia., por seu turno possuía uma tipografia própria, a Typographia da Liberdade. Sua redação situava-se na Rua do Imperador, nº 21.10 Dentre todos os jornais citados, Affonso de Freitas acredita ter sido A Redempção o instru8 Jornal A Província de São Paulo (atual O Estado de S. Paulo). Texto transcrito por FREITAS, Affonso A. de, 1915, p. 334. e por nós atualizado. 9 Cf. RODRIGUES, 2013, p. 219-224. 10 A Liberdade, segundo FREITAS (1915, p. 654), possuía o mesmo estilo e colaboradores de A Redempção. O acervo do IHGSP sob guarda do APESP possui dois exemplares desse jornal: justamente o de 17/05/1888 e o de 14/06/1888.

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mento que mais contribuiu para a decretação da Lei Áurea, em 13 de maio de 1988. O reconhecimento de sua influência e importância nesse marco histórico não é recente. Outros jornais, também empenhados na causa, referem-se ao Redempção como um dos periódicos mais relevantes, chegando a receber o título de jornal sagrado.11 Nas páginas do A Redempção, encontramos relatos, cartas, opiniões e os destaques da trajetória abolicionista no estado de São Paulo e no Brasil. O jornal também tinha uma seção intitulada “Álbum abolicionista”, com relatos de alforrias concedidas em qualquer província do Império. Em 1888, o jornal acompanha com suas matérias o decorrer do processo abolicionista praticamente dia após dia, e continua a ser publicado – com periodicidade mais indefinida – até 1899, registrando a lenta transição do processo abolicionista e a instauração da República no Brasil. É importante destacar que A Redempção não era apenas um veículo de comunicação abolicionista; caracterizava-se também como um periódico comercial. Isto significa que a publicação se sustentava pelo patrocínio que recebia dos comerciantes que nela anunciavam e que, não necessariamente, eram partidários do movimento abolicionista; muito embora houvesse comerciantes simpáticos e envolvidos com a causa. A Redempção também era expressão intelectual da Confraria de Nossa Senhora dos Remédios na divulgação do que pensavam seus integrantes, suas crenças e ideologias: por vezes tomando posições anticlericais e positivistas, como era comum no final do período imperial, entre grupos que defendiam o ideário republicano. De fato, o jornal possui um conteúdo que relata toda uma história. A história de um grupo de pessoas incomodado com a situação precária e desumana dos negros. Relatos de uma luta sofrida porém vitoriosa ainda vivem nas páginas dessa coleção que o Arquivo Público do Estado de São Paulo, agora, pode oferecer a qualquer “espirito estudioso que queira algum dia, escrever a história da nossa propaganda” (A Redempção, 13 maio 1895).

Referências

ALVES, Henrique L. O Fantasma da Abolição. São Paulo: Massao Ohno – Roswitha Kempft (coedição com a Secretaria de Estado da Cultura: Comissão de Geografia e História), 1962. ARROYO, Leonardo. Igrejas de São Paulo. 2. ed., v. 331. São Paulo: Companhia Editora Nacional; Brasiliana, 1966. 11 ALVES, Henrique L. O Fantasma da Abolição. São Paulo: Massao Ohno – Roswitha Kempft (coedição com a Secretaria de Estado da Cultura: Comissão de Geografia e História), 1962. p. 75. A frase completa, de Eugênio Zarco da Câmara Loureiro, é: “Segundo meu modo de pensar, o jornal que v.s. publica – A Redempção – é um jornal sagrado, devotado à causa da liberdade, e que tem de fazer tudo pela realização de sua idéia magnânima.”

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AZEVEDO, Celia Marinho de. Onda Negra, Medo Branco: O negro no imaginário das elites ─ século XIX. São Paulo: Paz e Terra, 1987. (Coleção Oficinas de História, v. 6. p. 216). AZEVEDO, Elciene. Antonio Bento, homem rude do sertão: um abolicionista nos meandros da justiça e da política. Locus, Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 123-143, 2007. CARDIM, G. A Redempção: folha abolicionista. (Edicção Commemorativa). São Paulo, 13 maio 1895, p. 1. CONRAD, Robert. Os Últimos Anos da Escravatura no Brasil: 1850-1888. 2. ed. Tradução de Fernando de Castro Ferro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. FREITAS, Affonso A. de. A Imprensa Periodica de São Paulo desde os seus primórdios em 1823 até 1914. São Paulo: Typ. do Diario Official, 1915. p. 315-316. MENNUCCI, Sud. História do “Diario Oficial”: São Paulo (1891-1933). São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1934. RODRIGUES, Rejane Trindade. Resenha do livro de AZEVEDO, Elciene (O direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na província de São Paulo. Campinas. Editora da Unicamp, 2010. 256 p.). Revista Trilhas da História, Três Lagoas, v. 2, n. 4, jan-jun 2013, p. 219-224. Disponível em: .

Acesso em: 5 maio 2014. SOUZA E CASTRO, Luiz Antonio Muniz de. Antonio Bento, abolicionista. Biografia de um herói da Abolição da Escravatura é traçada por seu bisneto. Monografia enviada em 30/08/2009 a Novo Milênio. Disponível em: . Acesso em: 5 maio 2014.

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A REVISTA ONLINE DO ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 61, maio 2014

TRATAMENTO DISPONIBILIZA JORNAL PARA CONSULTA Conservar e difundir o seu acervo estão entre as principais missões de uma instituição arquivística. Nesse sentido, o Arquivo Público do Estado de São Paulo está levando à frente um projeto de fundamental importância: o restauro e a digitalização de sua coleção do jornal abolicionista paulistano Redempção. O projeto já está bem avançado, segundo a Professora Norma Cassares, diretora do Núcleo de Conservação do Arquivo. “Começamos o trabalho de restauro em novembro de 2013, e em novembro de 2014 já estaremos passando os exemplares restaurados para a digitalização”, conta ela. Paralelamente ao restauro e digitalização, será lançada a candidatura da coleção ao selo Memória do Mundo, da UNESCO (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura). Este selo reconhece o valor do patrimônio documental, mantém registros dele e facilita seu acesso. O Arquivo Público do Estado de São Paulo tem sob sua guarda, hoje, o que é provavelmente a coleção mais completa do Redempção. São 135 números do periódico, de um total de 156 edições, que era publicado duas vezes por semana. A coleção chegou ao Arquivo em 2008, proveniente do acervo do Instituto Histórico e Geográfico do Estado de São Paulo (IHGSP) e representa uma importante fonte de pesquisas para os estudiosos. Entretanto, a consulta estava prejudicada pelo estado do periódico, que não era bom. Agora, esse problema vai ser resolvido pelo restauro, acondicionamento adequado e digitalização do Redempção. “O jornal é sempre um dos primeiros candidatos à digitalização, pois o seu papel é de péssima qualidade”, ensina Norma Cassares. Por conta dessa fragilidade, também, o processo de restauro está sendo bastante complexo. Reunindo fragmentos Um auxílio importante aos restauradores foi uma digitalização em preto e branco que já existia, a partir de um microfilme elaborado na Universidade de Harvard (EUA). Esta digitalização serviu de “guia” para reconstituir as páginas. Num primeiro momento, foram recolhidos todos os fragmentos soltos do jornal - alguns de71

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les realmente minúsculos, a ponto de precisarem ser manipulados com pinça, e examinados com lentes de aumento. Já as partes mais intactas das páginas do Redempção foram sendo juntadas em cima de folhas de poliéster - material que possui bastante estática, e que, portanto, “grudava” os pedaços. Cada página ficava em cima de uma folha de poliéster. Na fase seguinte, a página de jornal foi seca, e começou a fase de reparos com papel japonês, para emendar os fragmentos menores do jornal no local ao qual eles pertenciam. A emenda é feita inclusive nos locais onde houve perda de informação irrecuperável. “Mas avaliamos que o Redempção perdeu muito pouco da sua informação original; no máximo, uns 10%”, diz a diretora do Núcleo de Conservação. Em seguida o jornal foi submetido a banho por imersão em água duplamente filtrada com pH 7.0-/8.0, para remoção da sujidade entre fibras. Um novo banho foi feito com água duplamente filtrada, com pH 7.5 corrigido com hidróxido de cálcio, em temperatura ambiente. Na fase seguinte, foram feitos os reparos com papel japonês, para emendar os fragmentos menores do jornal no local ao qual eles pertenciam. A emenda foi feita inclusive nos locais onde houve perda de informação irrecuperável. Por fim, cada exemplar foi velaturado com papel japonês de baixíssima gramatura para estabilizar bem os remendos e dar mais resistência ao suporte. Devido às perdas de suporte nas margens dos exemplares, atualmente, os técnicos do Núcleo de Conservação se preparam para refilar - ou seja, cortar - as folhas do jornal reconstituídas no seu tamanho original. Pode parecer uma tarefa simples, mas são necessárias várias medições e comparações na coleção para determinar o tamanho original dessas páginas. Num momento final, as folhas serão encapsuladas em poliéster. Assim, poderão voltar a ser consultadas sem que o jornal corra perigo. E o passo seguinte será a digitalização; já foi feito um teste que determinou que, mesmo com as folhas encapsuladas, é possível produzir uma excelente cópia digital do Redempção. Todo esse trabalho vem na direção de um esforço feito pela própria instituição, no sentido de conhecer, conservar e explorar cada vez melhor o seu acervo. Com este projeto, o Redempção – com tudo que ele significa historicamente – sai de dentro da caixa e volta para a sociedade.

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Etapas do Restauro

Foto 01: O jornal em banho desacidificador.

Foto 02: Os reparos em papel japonês preenchem as áreas de perda dos originais.

Foto 03: O jornal depois do preenchimento.

Foto 04: O Redempção restaurado, antes de ir para o invólucro de poliéster, próprio para a consulta. 73

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SEM MEIAS-PALAVRAS Neutralidade ou objetividade nunca foram as preocupações do Redempção. Mais do que um jornal, este era um panfleto comprometido com uma causa. A linguagem do jornal era forte, e não economizava adjetivos. Os redatores não tinham medo de dar nomes aos bois, mesmo numa cidade ainda pequena, onde as pessoas se conheciam – como era o caso de São Paulo daquela época. Veja abaixo alguns exemplos da “artilharia pesada” do Redempção: Radicais com uma causa “Divergimos completamente tanto dos liberaes resistentes, como dos escravocratas, não concordamos com as ideias conservadoras, e detestamos aqueles que, trazendo o capacete phrygio, trazem na mão o bacalhau com que quotidianamente surram os seus míseros escravos.” “Nós queremos a liberdade imediata, sem praso; para consegui-la acceitamos a própria revolução, porque não podemos admitir que continuem debaixo do azorrague tantos brasileiros que, livres, poderiam concorrer vantajosamente para a felicidade de nossa pátria.”

Abaixo a escravidão “Filha da ignorância dos povos, produto dos tempos em que a força era a única lei, a escravidão é hoje incompatível com a nossa existência; só um mesquinho interesse poderá legitimal-a, tirando della a causa de nosso atrazo e fazendo a nossa vergonha perante as nações civilisadas.”

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Sobre a substituição dos escravos por imigrantes na lavoura: “No Belém do Descalvado tem o Senhor Antônio de Camargo Neves em ferros, há muito tempo, os seguintes escravos: Theodoro, de corrente na perna; Guilherme, gancho no pescoço; Mathias, pêga n’um pé; Hugolino, correntes nas pernas; Cyrillo, pêga n’um pé. Vejam os leitores que fazenda boa para colonos! “Qual o estrangeiro que, viajando pelo Brazil, aconselhará os seus patrícios a virem trabalhar em um paiz, onde se carrega um homem de ferros, que não commetteu crime algum, sem que haja uma auctoridade que ponha cobro e puna o auctor de taes barbaridades? “(...) Aos criminosos, assassinos e ladrões, condemnados a galès, se manda tirar os ferros na correição, ao passo que infelizes escravos, sem crime nenhum, são acorrentados.”

Da seção “Álbum Abolicionista” “Em Campinas foram libertados: Pelo Senhor Joaquim Ferreira Penteado, três escravisados; Pelo Senhor Francisco da Rocha Leite Penteado, uma escravisada. (...) O Senhor José Antonio da Costa Gama, fazendeiro nessa provincia, alforriou um seu escravisado, de 40 anos, que se acha alugado na Côrte; (...) O Senhor João José Nunes de Camargo, fazendeiro em Campos, fez entrega, a 27 do mez findo, das cartas de liberdade que conferira aos seus setenta escravisados. (...)O Senhor Antonio Carlos de Almeida Nogueira, em Campinas, libertou, mediante indemnisação pecuniaria, uma sua escravisada (...).”

É filho ou escravo? “O Sr. Professor Manoel Joaquim da Cunha Bueno, morador em Santa Branca, tem alu-

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gado aqui em São Paulo, um pardinho, quase branco, em casa do Sr. Paes Leme. Os filhos do senhor professor tratam a esse pardinho de irmão. O pardinho é a cara do Sr. Cunha Bueno. Para uns este senhor diz ser seu escravo, para outros ser seu filho. “Era bom que se tirasse isso a limpo (...).”

Elogios a outros abolicionistas “Há dias tivemos a grata noticia de ler em outros jornaes que a primeira folha do Brazil tinha entrado no seu quarto anno de existência. “Nós somos suspeitos de fazer qualquer elogio ao Paiz. “Admiradores de Quintino Bocayuva, Joaquim Serra e Nabuco, tudo que escrevêssemos sobre este jornal seria pouco (...)”.

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IMAGENS DE UMA ÉPOCA TEMPOS DE LUTA - A ESCRAVIDÃO E O ABOLICIONISMO EM SÃO PAULO Em diversos mapas, fotos e jornais do acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo é possível distinguir as marcas deixadas pela escravidão. Mas também se encontram vestígios da luta dos abolicionistas nas últimas décadas do século XIX. Veja abaixo algumas imagens desse tempo – tão distante e, ao mesmo tempo, ainda tão próximo.

A Igreja dos Remédios, que ficava na Praça João Mendes, antigo Largo da Cadeia, em 1862. Coleção Militão Augusto de Azevedo. Apesp.

A Igreja dos Remédios em 1887. Nessa época, o jornal Redempção começou a ser impresso ali. A igreja foi demolida em 1943. Coleção Militão Augusto de Azevedo. Apesp.

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O jornal Redempção de 13 de janeiro de 1887, no auge do movimento abolicionista. Este exemplar já passou por restauro e digitalização no Centro de Preservação do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Coleção do Jornal A Redempção, pertencente à Hemeroteca do Apesp.

Detalhe A

Detalhe B

Mapa do Instituto Geográfico e Geológico elaborado em fins do século XIX, mostrando o Rio Tietê, desde sua nascente até a confluência com o Paraná. Fundo do Instituto Geográfico e Geológico (IGG). Apesp.

Detalhe A

Anotação num trecho do mapa mostra o lugar onde foi encontrado “hum negro fugido, muito velho”.

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Detalhe B

Outra legenda, no mapa – próxima ao local onde hoje fica a cidade de Lençóis Paulista - indica o local de um antigo quilombo.

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