Leitores vorazes: Literatura jovem e distopia no mundo atual

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

GABRIEL MACHADO RODRIGUES DA SILVA

LEITORES VORAZES Literatura jovem e distopia no mundo atual

Niterói/RJ 2014 1

GABRIEL MACHADO RODRIGUES DA SILVA

LEITORES VORAZES Literatura jovem e distopia no mundo atual

Monografia apresentada à pós-graduação em Literatura Infantojuvenil da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para a conclusão do curso.

Prof. Dra. Patricia Ferreira Neves Ribeiro

Niterói/RJ 2014 2

FICHA CATALOGRÁFICA

SILVA, Gabriel Machado Rodrigues da. Leitores vorazes: Literatura jovem e distopia no mundo atual. Niterói: UFF/IL, 2014. Monografia (Pós-Graduação em Literatura Infantojuvenil) – Universidade Federal Fluminense - UFF, Instituto de Letras - IL. Orientadora: Prof. Dra. Patricia Ferreira Neves Ribeiro.

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SILVA, Gabriel Machado Rodrigues da. Leitores vorazes: Literatura jovem e distopia no mundo atual. Orientadora: Prof. Dra. Patricia Ferreira Neves Ribeiro. Niterói: UFF/IL. Monografia em Literatura Infantojuvenil.

RESUMO

Este trabalho visa abordar a literatura adolescente e jovem, um campo da área de Letras que ainda necessita ser muito explorado, especialmente a categoria do jovem adulto. O recorte dessa literatura será o gênero da distopia, por ter atualmente destaque no mercado, na mídia e nas discussões da sociedade. Com base na análise de uma obra distópica jovem, a série Jogos Vorazes, será mostrado que a literatura jovem e, mais especificamente, a distopia jovem possui valor literário.

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SUMÁRIO

1. Introdução ................................................................................................... 6 2. Da criança ao jovem na literatura ............................................................ 9 3. Distopia e literatura ................................................................................. 32 4. Jogos Vorazes: um estudo de caso .......................................................... 58 5. Conclusão ................................................................................................ 103 6. Anexo ....................................................................................................... 106 7. Bibliografia ............................................................................................. 117

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1. Introdução

A literatura infantojuvenil é uma área de estudo muito vasta, com regiões ainda pouco desbravadas ou mesmo intocadas. Em seu texto “Perspectivas de pesquisa em literatura infantojuvenil”, de 2004, o professor da Unesp, João Luís Ceccantini, comenta a respeito da “pequena tradição” de estudos acadêmicos sobre o assunto no País, ressaltando que a produção infantojuvenil brasileira, “em termos históricos”, é bastante recente. Esse aspecto seria agravado, ainda, “pelo modelo de Universidade que aqui vigorou, especialmente no que toca à Área das Letras [...], todo ele muito voltado à pesquisa pura e desinteressada, ao corpus erudito, ao cânon e sempre temeroso de tudo que tangenciasse a Educação ou a pesquisa aplicada” (p. 29). Apesar de passados dez anos e do aumento de interesse na área, a verdade é que, por um lado, o preconceito que ela sofre e, por outro, a diversidade que ela passou a ter fazem com que o estudo ainda tenha muito a se desenvolver. Quanto a esse segundo fator, Ceccantini (2004) afirma: Nos últimos anos, os autores de literatura infantojuvenil multiplicam-se em progressão geométrica e a publicação de obras se dá num ritmo acelerado e frenético, típico dos fenômenos de mercado e da “indústria cultural” [...] num país em que sequer a produção contemporânea da “outra literatura” consegue ser razoavelmente assimilada e deglutida pelo meio acadêmico, o que tem sido feito em termos de pesquisa voltada para os enormes números, dígitos e cifras que envolvem o universo da literatura infantojuvenil contemporânea deixa ainda muito a desejar (p. 32).

Ceccantini (2004) destaca a importância desse trabalho de divulgação científica, pois, sem ele, “a literatura infantojuvenil não poderá ocupar o espaço a que tem direito nem conquistar as novas gerações de pesquisadores para seus objetivos e muito menos conseguirá o apoio necessário para expandir-se, tanto na comunidade científica à qual se integra quanto na outra” (p. 33-4). Além disso, ele considera preocupante o fato de que, no Brasil, “tem ficado muito descuidada a crítica regular das obras de literatura infantojuvenil que seja vazada numa linguagem acessível não apenas à comunidade científica e que seja disseminada em veículos não acadêmicos” (p. 34). Levando-se em conta que o estudo da literatura infantojuvenil em geral privilegia a categoria infantil, a carência descrita acima se faz ainda mais presente na categoria juvenil, adolescente. A respeito dessa problemática, Azucena Galindo Ortega, 6

diretora-geral do A Leer – seção mexicana do IBBY1 – comenta: “Não tenho dados precisos sobre o número de iniciativas implementadas e promovidas em várias áreas e de diferentes níveis e agentes, mas tenho certeza de que há muito mais para crianças do que para adolescentes. A adolescência é uma segunda chance, mas não a última, para se ler” (SERRA, 2013, p. 35). Quando se estende a análise para o âmbito jovem, entre a adolescência e a idade adulta, a ausência de análises acadêmicas rareia ainda mais, muito em virtude de ser uma fase que ganhou destaque mais recentemente. Tendo em vista o pouco estudo dessas categorias, este trabalho pretende, em primeiro lugar, se debruçar sobre a literatura adolescente e jovem, partindo da infantil. Num segundo momento, se dará enfoque ao gênero da distopia e à sua subdivisão jovem, por estarem atualmente em evidência no mercado, na mídia e nas discussões da sociedade. E, por fim, será feita a análise do principal expoente distópico nos dias de hoje, a série Jogos Vorazes. O objetivo geral desta monografia é demonstrar que existe uma literatura voltada para os jovens, com suas características próprias, e que ela pode ter qualidades, presentes, por exemplo, nas distopias. O objetivo específico é comprovar tais aspectos numa obra em particular, no caso desta pesquisa, na série Jogos Vorazes. A hipótese norteadora do trabalho é a de que essa saga possui valor literário, pois contém aspectos que contribuem para a discussão do ético e da mudança de visão de mundo. Trata-se de uma literariedade que ajuda o leitor a se relacionar com o mundo ao seu redor. No Capítulo 2, mostram-se as semelhanças e distinções entre a literatura infantil e a adolescente e a jovem, em meio a um amplo debate de quais seriam as características das duas últimas e se há de fato categorias específicas como essas ou apenas uma literatura geral. Também são descritos seu surgimento, expansão no mercado e peculiaridades do universo leitor. Entre as referências teóricas, destacam-se as coletâneas de palestras Crianças e jovens no século XXI – Leitores e leituras, organizada por Dolores Prades e Patricia Pereira Leite, e A literatura e os jovens, reunida por Elizabeth D‟Angelo Serra. Também despontam, entre outros, os autores André Ximenes, Henry Jenkins, João Luís Ceccantini, José Nicolau Gregorin Filho, Juan-David Nasio, Marisa Lajolo e Regina Zilberman, Nelly Novaes Coelho, Peter

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International Board on Books for Young People: organização internacional focada em promover a leitura para crianças e jovens.

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Hunt, Talitha Perissé e Teresa Mergulhão, além de matérias jornalísticas sobre o fenômeno da literatura jovem. No Capítulo 3, parte-se para a explicação do gênero distópico, com base nos posfácios do clássico 1984, na edição de 2009 da Companhia das Letras, escritos por Ben Pimlott, Erich Fromm e Thomas Pynchon. Para melhor tratar da mudança de público da distopia, faz-se uso da teoria da estética da recepção, cujo maior expoente é Hans Robert Jauss, destrinchada por Regina Zilberman em seu livro Estética da recepção e história da literatura. Em meio à discussão sobre a importância da literatura para dar sentido à vida e construir mundos, não apenas ligada a estudos formalistas, será de grande valia a obra A literatura em perigo, de Tzvetan Todorov, e serão retomadas as coletâneas mencionadas no capítulo anterior, assim como Nelly Novaes Coelho, entre outros autores. Além disso, um material de base são também as reportagens sobre distopia, entrevistas com autores e especialistas e as diversas obras do gênero jovem. Por fim, no Capítulo 4, a trilogia Jovens Vorazes é analisada para demonstrar que, ao mesmo tempo que encerra características jovens, aborda várias questões relevantes para o leitor de qualquer faixa etária e configura-se como literatura de qualidade, que não deve ser vista como inferior nem superficial. Lois Gresh, autora de um estudo sobre a série, será uma das mais citadas, mas, em meio à análise dos mais diversos aspectos, haverá espaço para teóricos como Alfredo Bosi, Ana Maria Machado, José Luiz Fiorin, Ligia Cademartori, Manuel Rivas e Roland Barthes, além de entrevistas com Suzanne Collins, escritora da saga, e reportagens sobre Jogos Vorazes e a distopia. Também serão retomados a estética da recepção, os posfácios de 1984 e autores como Tzvetan Todorov.

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2. Da criança ao jovem na literatura

É difícil separar a criança do jovem. Em geral, nos estudos acadêmicos da esfera literária, as análises reúnem os dois numa categoria só: a “infantojuvenil”. Tratam os dois públicos de forma muito próxima, especialmente quando se trata do jovem durante o período escolar, e tudo se torna um grande “saco de gatos”. Diante do sucesso dos livros voltados para os mais velhos e do crescimento dessas obras no mercado, as avaliações parecem começar a dissociar mais as duas imagens, mas ainda há muito o que desenvolver. Devido a essa estreita ligação, antes de se entrar no tema do jovem, é necessário discorrer um pouco sobre a criança, especialmente porque ambas as literaturas possuem muito em comum no que tange à relação com a sociedade e com o mundo adulto. Após a Revolução Industrial, no século XVIII, numa sociedade que se modernizava em decorrência dos novos recursos tecnológicos disponíveis, a literatura infantil assumiu a condição de mercadoria (LAJOLO; ZILBERMAN, 1987, p.18). Desde as origens, ela foi marcada por uma forte vocação educativa que tinha como objetivo doutrinar crianças para uma vida dentro dos preceitos burgueses, endossando seus valores. Como amadurece com fortes traços instrumentais, acaba não nascendo nem se desenvolvendo como um fenômeno estritamente literário. Porém, naturalmente, também havia, no âmbito da literatura infantil, uma tradição – muito mais antiga – ligada às narrativas primordiais, aos relatos medievais, responsáveis pela origem dos contos clássicos. E até hoje persiste esta discussão, qual seja: se um livro é “para adoção ou para livraria”, se servirá à escola ou apenas para ser comercializado, como se a distinção fosse assim tão simples, ou melhor, como se tivesse que haver, realmente, uma separação dessa natureza. Dolores Prades (2012) considera essa divisão um equívoco conceitual e, além disso, traz outra questão ao debate: Outro elemento que alimenta este círculo vicioso é a cobrança social que faz com que famílias pressionem as escolas para evitar o acesso de crianças e jovens a temas considerados inadequados. Todos eles veiculados nos horários nobres da TV e assistidos em presença de toda a família; porém sem a força ativa de reflexão e introspecção que a leitura implica e que até hoje faz dela uma atividade temida e incompreendida.

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Ainda sobre o fato de a criança não poder ser apartada, atualmente, dos assuntos adultos, José Nicolau Gregorin Filho (2011) afirma: “O universo da infância tem, cada vez mais, sofrido um encolhimento em relação às outras etapas do amadurecimento do ser humano. [...] Quase todos os assuntos são discutidos na presença e com a participação das crianças” (p. 46). Para a professora e pesquisadora Beatriz Helena Robledo, “as fronteiras entre as idades se perdem, as crianças estão nutridas de absolutamente tudo, têm acesso a absolutamente tudo” (PRADES; LEITE, 2013, p. 57). Parece que se deixa de ser criança cada vez mais cedo. A verdade é que ainda há uma dificuldade de legitimação da literatura infantil. Devido a sua permeabilidade às injunções do mercado e à interferência da escola, existe desconfiança por parte de setores especializados da teoria e da crítica literárias. Porém, é nessa área que se torna patente que, sem concessões, a literatura não subsiste como ofício. Os livros infantis transparecem a “natureza desmitificadora” da autonomia da literatura (LAJOLO; ZILBERMAN, 1987, p. 15, 18-9). Além do preconceito devido ao caráter de certa forma pragmático do texto literário infantil, é bem claro que “o respeito pelas obras infantojuvenis parece ser bastante menor quando comparado com o tratamento dado a obras pertencentes a outros polissistemas literários, e chega a parecer inexistente em determinadas situações” (WHITE, 2011, p. 7-8). Muitos teóricos ainda consideram a literatura infantojuvenil um subproduto da adulta, não lhe reconhecendo o seu estatuto de fenômeno literário (MERGULHÃO,

2006,

p.

1).

Para

eles,

a

criança

não

conseguiria

ler

compreensivamente um texto literário e, caso se procurasse adequar o texto ao seu nível de maturidade, deixaria de fazer sentido falar em literatura (Idem, p. 2). Por sua vez, no âmbito juvenil, parecem conviver duas atitudes um tanto quanto conflitantes, em que se tenta impor, aos jovens, livros que não atendem às suas necessidades, próprios de uma idade mais avançada, ou se discriminam obras que estão mais próximas de sua faixa etária, consideradas de nível inferior, como será visto mais à frente. Ainda hoje, a criança é vista por muitos como um adulto em miniatura, que deve ser preparado desde cedo para “a vida”, e sua literatura contém muitas adaptações ou “minimizações” de textos adultos. Não à toa, resta uma visão deturpada por parte da sociedade de que os livros seriam apenas pueris (nivelados ao brinquedo) ou úteis (nivelados ao aprendizado). Nelly Novaes Coelho (1993) afirma que o caminho para a

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redescoberta da literatura infantil começou a ser aberto pela psicologia experimental, que, revelando a inteligência como elemento estruturador do universo que cada indivíduo constrói dentro de si, chama a atenção para os diferentes estágios de seu desenvolvimento (da infância à adolescência) e sua importância fundamental para a evolução e formação da personalidade do futuro adulto (p. 26).

Cada estágio corresponde a uma fase de idade, que pode mudar dependendo da criança ou do meio em que ela vive. Para Teresa Mergulhão (2006), expressões como “literatura para crianças”, “literatura infantil”, “literatura para jovens”, “literatura juvenil” ou “literatura infantojuvenil” são utilizadas de forma aleatória para aludir a uma realidade plural que adquire contornos específicos de acordo com o seu público: “a sua faixa etária, a sua maturidade psicoemotiva e intelectual, os seus interesses pessoais e de leitura, a sua idiossincrasia” (p. 8). E ela acrescenta: A expressão “literatura infantojuvenil”, com uma amplitude semântica maior, parece-me mais correta para designar “uma semiose estética dirigida a um receptor em formação” (SOUSA, 1998), sujeito a alterações cognitivas, psicoafetivas e comportamentais muito rápidas, enquanto “literatura infantil”, de âmbito mais restrito, deveria, a meu ver, ser utilizada apenas para aludir a uma produção literária dirigida a crianças que se encontram nos estágios pré-operacional (dos 2 aos 7 anos) e das operações concretas (dos 7 aos 12). [Ibidem]

Nessa divisão etária, a autora também está fazendo referência à psicologia experimental, difundida especialmente pelo psiquiatra Jean Piaget. Aos 12/13 anos, é a fase do leitor crítico, em que o indivíduo tem total domínio da leitura, da linguagem escrita, e desenvolve o pensamento reflexivo e crítico em maior profundidade (COELHO, 1993, p. 34). Após esse período, vem o estágio operatório formal, que alcança o equilíbrio aos 14/15 anos e se mantém por toda a vida (PIAGET, 1970 apud PERISSÉ, 2012, p. 16). Como já foi falado, naturalmente essas idades são apenas referências, não algo rígido, podendo variar de pessoa para pessoa. Os últimos períodos seriam o início da adolescência, fase da vida que teria surgido nos fins do século XIX, quando a sociedade permitiu que os jovens fossem retirados do mercado de trabalho para estudar (PERISSÉ, 2012, p. 32). Nas sociedades mais antigas, a criança entrava direto na vida adulta após enfrentar rituais de passagem. 11

Vencidas as tarefas, o indivíduo assumia sua nova condição social: trabalhar, escolher um(a) companheiro(a) e participar das decisões mais complexas da comunidade. Foi no século XVIII que se começou a refletir sobre uma etapa transitória da vida, de suma importância para a construção da pessoa. A pesquisadora Anne VincentBuffault (1996) afirma que, nessa época, a juventude “assumiu uma outra feição: ter um coração novo, vitalidade, um entusiasmo intacto, uma alegria de realizar” (apud GREGORIN FILHO, 2011, p. 17-8). No início da concepção do adolescente, a educação acabou aplicando a essa faixa etária os mesmos padrões estipulados para as crianças. Havia dificuldades de reconhecer o jovem, pois, apesar de seu corpo ser maduro, as aptidões para conviver no universo adulto são tolhidas por imposições sociais e legais (GREGORIN FILHO, 2011, p. 25). Para o sociólogo Juan-David Nasio (2011), o vocábulo “adolescência” cobre o período de transição entre a dependência infantil e a emancipação do jovem adulto (p. 14). Nessa fase, inclusive, os pais ainda querem proteger os filhos de temas considerados “muito ousados”, como se estes ainda fossem crianças. Sobre essa questão, afirma o psicanalista Contardo Calligaris (2010): “Entre a criança que se foi e o adulto que ainda não chega, o espelho do adolescente é frequentemente vazio” (apud GREGORIN FILHO, 2011, p. 7). Ao mesmo tempo, os jovens conquistam sua autonomia muito tarde, devido aos estudos prolongados e ao desemprego em massa, que alimentam a dependência material em relação à família (NASIO, 2011, p. 14), fora o apego à casa dos pais. Dessa forma, Nasio (2011) considera que se é jovem a partir dos 11/12 anos, na puberdade, e a emancipação se completa por volta dos 25 anos (p. 14). A psicanalista Patrícia Pereira Leite acredita que a juventude começa aos 12 e pode durar a vida inteira: “Não sabemos muito bem quando acaba” (PRADES; LEITE, 2013, p. 92). A verdade é que, mais do que uma faixa etária, a juventude é uma concepção, representação ou criação simbólica, fabricada pelos grupos sociais ou pelos próprios indivíduos tidos como jovens, para significar uma série de comportamentos e atitudes a ela atribuídos (GROPPO, 2000 apud GREGORIN FILHO, 2011, p. 15-6).

Para o adulto, o jovem – assim como a criança – é alguém que precisa ser desvendado ou colonizado, cuja lógica é um caos de ideias (GOUVÊA, 2007, p. 30, 32). Tudo nele é contraste e contradição (NASIO, 2011, p. 15). 12

Com a globalização e as novas mídias, o jovem assumiu um padrão mais homogêneo. E, ao longo do século XX, foi protagonista de mudanças, rupturas com o tradicionalismo, revoltas contra governos ditatoriais, ao mesmo tempo que era manipulado em guerras como a imagem perfeita da saúde, da inteligência e da disciplina. Entre os 11 e 18 anos, ele padece de uma neurose de crescimento, saudável e passageira, que se resolve por si mesma, mas que pode provocar tristeza, angústia e revolta. Ela é necessária para que o adolescente, ao término de sua metamorfose, consiga tomar posse de si mesmo e consolidar sua personalidade (Idem, p. 19). É nessa fase que o jovem compreende o quanto o outro lhe é biológica, afetiva e socialmente vital e, dessa forma, ele costuma aderir aos ideais de seu próprio grupo de colegas (Idem, p.15-6). Nasio (2011) afirma: A adolescência é [...] um processo silencioso, doloroso, lento e subterrâneo de desligamento do mundo infantil. [...] É uma perda sorrateira que não se vê nem se sente, mas que persiste inexoravelmente até a conquista da maturidade. O adolescente, portanto, cresce realizando, aos poucos e à sua revelia, o luto de sua infância. Entre os diferentes sinais que atestarão o fim dessa luta e a entrada na idade adulta, há, para nós, um essencial [...]: ter adquirido uma nova maneira de amar o outro e de amar-se a si mesmo (p. 31).

A concepção de que a adolescência terminaria direto na idade adulta totalmente madura, na verdade, tem sofrido mudanças. Para o Estatuto da Criança e do Adolescente, essa fase iria dos 12 aos 18 anos. E, do ponto de vista da psicologia do desenvolvimento, a “juventude” estaria no limiar entre o adolescente e o adulto, sendo o momento em que o jovem começa a assumir seu papel social de adulto (PERISSÉ, 2012, p. 32). É o chamado jovem adulto, categoria apropriada pela literatura, como se verá mais à frente. No âmbito dos estudos sobre a juventude, vale ressaltar a dissertação do professor André Ximenes sobre a juvenilização da cultura. Ele relembra a afirmação de Pierre Bourdieu de que “a „juventude‟ é apenas uma palavra”. Ao longo da História, ela atendeu a diferentes demandas sociais e, atualmente, é manipulada pelo mercado para posicionar marcas e produtos. Dessa forma, o conceito de jovem não corresponde a uma faixa etária, mas à “constituição de uma estética juvenilizada e à criação de um perfil consumidor” (XIMENES, 2013, p. 103), fugindo às divisões de idade “arbitrárias”, que são “objeto de disputas em todas as sociedades” (Idem, p. 21). 13

De acordo com Edgar Morin (1970), a definição de fases da vida sofreu uma alteração profunda na modernidade ocidental, pois “o envelhecimento postergado transforma o jovem de promessa de futuro a modelo cultural do presente” (apud XIMENES, 2013, p. 21). Ou seja, trata-se do jovem adulto, que vive entre um período e outro, não querendo se assumir como adulto ou, ao menos, ainda desejando experimentar a juventude. Se, por um lado, o imaginário da juventude, ancorado na imagem de jovem como categoria social fixada por idade, 2 agrega valores negativos compostos por traços como imaturidade, improdutividade e irresponsabilidade, por outro, o imaginário da juvenilização o reveste de um valor positivo, de prestígio, disseminado nas capas de revista e nos anúncios de cirurgias plásticas e cosméticos (Idem, p. 22).

No trecho acima, já se prenuncia a atual alta dos livros jovens, que também sofrem bastante preconceito, como será visto mais adiante. Para o pesquisador e editor Daniel Goldin, diante de um universo de possibilidades, os jovens se sentem angustiados: “Vivemos num momento onde a juventude [...] não é exatamente a época mais feliz, mais estável e cômoda da vida. Entretanto, vivemos num período onde somos jovens durante muito mais tempo e onde existe o ideal de ser jovem por mais tempo” (PRADES; LEITE, 2013, p. 96). Partindo para a literatura juvenil, encaramos a mesma questão já há muito vista pela infantil: existe uma categoria assim tão específica? O crítico Marcus Crouch (1977) tem a opinião – compartilhada por muitos que serão mencionados neste trabalho – de que não existem livros para crianças; isso seria algo inventado por motivos comerciais: “O autor honesto [...] escreve o que está dentro de si e precisa sair. Às vezes o que ele escreve terá ressonância nas inclinações e interesses dos jovens, outras vezes não” (apud HUNT, 2010, p. 74). Já Graça Paulino (2000) afirma que “a apropriação de narrativas por certos grupos de leitores constitui um fenômeno tão importante na produção de sentidos que há muitos teóricos e críticos defendendo que este seria o elemento mais adequado para se qualificar as obras” (p. 47). O professor da Unesp João Luís Ceccantini comenta que a literatura infantojuvenil é um objeto “volátil”, resistente ao enquadramento (2004, p. 20). Ele cita Peter Hunt (1990), para quem ela possui fronteiras muito nebulosas, não podendo ser 2

No trabalho de André Ximenes, a juventude como faixa etária abrange o período entre 18 a 29 anos, ou seja, ainda maior que os mencionados anteriormente, que iam no máximo até os 25 anos.

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descrita por características textuais, seja de estilo, seja de conteúdo, definida mais em termos do leitor do que das intenções dos autores. Porém, o público principal é “igualmente escorregadio” (p. 20-1). Por todas essas características e por ser alijada, muitas vezes, do contexto acadêmico, a literatura infantojuvenil se aproxima muito da adolescente/jovem. Por muitos anos, os livros para crianças e adolescentes foram considerados o mesmo produto (PERISSÉ, 2012, p. 31). A partir do século XIX, a literatura para jovens, ainda misturando-se à infantil, começou a ser sistematizada na Europa (GREGORIN FILHO, 2011, p. 28). No Brasil, pode-se dizer que a adolescência foi inaugurada nos anos 1950, com uma produção cultural que, mais do que inventar padrões para a rebeldia típica, passava a vê-la como um bom nicho de mercado (Idem, p. 43). A existência de livros destinados à juventude remonta à década de 1960, da mesma época em que a categoria “adolescente” era percebida em suas características e descoberta como sensível à publicidade. Na primeira metade do século XX, os jovens conquistam uma liberdade de comportamento e acabam se afastando da leitura, atraídos por várias opções de lazer. Laura Sandroni explica: A indústria editorial reagiu ao solicitar a seus autores textos que, pelas temáticas abordadas e pela linguagem coloquial, pudessem interessar a essa faixa de leitores, que deixava os textos curtos e ilustrados, sem ter ainda o fôlego para enfrentar as narrativas disponíveis dos clássicos, por exemplo (SERRA, 2013, p. 98).

Surgem, assim, as primeiras séries protagonizadas por jovens, em cenários mais próximos dos leitores urbanos. Porém, por não aprofundarem a psicologia das personagens nem discutirem temas, pois queriam apenas divertir, logo deixavam de interessar ao leitor. A partir da década de 1970, despontam autores que fogem do superficial e dialogam com as fontes da tradição oral, focam em questões sociais etc. (Idem, p. 99). É o período de consolidação do conceito de adolescência no Brasil, vinte anos depois de ele ganhar força no mundo com o lançamento de O apanhador no campo de centeio – antes, passava-se dos infantis para os clássicos adultos, com raríssimas adaptações. Ceccantini afirma ainda que, apesar de não ter dado destaque à literatura juvenil, o precursor dessa categoria foi Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe, no século XVIII (COZER, 2013a). 15

A literatura infantojuvenil ou apenas juvenil é de transição. Os assuntos de que os livros tratam envolvem o amadurecimento dos personagens e conflitos no processo de autoconhecimento. Existem violência, mentiras, relacionamentos amorosos e, algumas vezes, morte. “Relegados” à escola, esses livros tiveram uma mudança em sua área com a chegada da série Harry Potter, que revolucionou o mercado e a literatura ao mostrar que crianças e jovens liam e, ainda por cima, livros grandes. Foi a valorização de um público esquecido, que se provou extremamente promissor. A série Percy Jackson e os primeiros livros da saga de J. K. Rowling, por exemplo, se enquadram na categoria mencionada. Todavia, assim como adolescência e juventude convergem, a literatura juvenil converge com outra voltada para jovens adultos, que ainda costuma manter o nome em inglês: Young Adult (YA). Nela, os relacionamentos amorosos são elementos importantes, podendo haver sexo; as brigas se tornam disputas maiores ou até guerras; a morte tem mais destaque, em suas diversas formas (suicídio, assassinato, acidentes etc.), sendo abordada sua complexidade ou até um debate existencial. Há também bullying, relacionamentos familiares mais intensos, o poder do livre-arbítrio e ausência de maniqueísmo: as pessoas sofrem conflitos internos que expõem seus defeitos e virtudes. Nessa classificação entram obras como a série Jogos Vorazes e os últimos livros da série de Harry Potter, por exemplo (PERISSÉ, 2012, p. 33-4). Contudo, nem todos acreditam que existam de fato divisões, até sendo contrários a isso. Para Beatriz Helena Robledo, há um excesso de rótulos na literatura infantil e juvenil, uma procura de classificação para tudo: idades, leitores, temas, etc., uma pressão para “empacotar”, homogeneizar, sem levar em conta a individualidade do leitor (PRADES; LEITE, 2013, p. 48). Os jovens são vistos como alvos para produtos pré-fabricados (p. 50), especialmente com relação a livros paradidáticos, que focam em “temas transversais”, didatismo, moralidade, entre outros aspectos não literários. Para a escritora María Teresa Andruetto, ganhadora do Andersen 2012, não há uma leitura assim tão “pré-determinada”, tão direcionada: “Pode-se ser jovem de muitas maneiras e ter muitos acessos a leituras diferentes” (Idem, p. 76).3 Laura Lecuona, diretora da seção de literatura para jovens da Ediciones SM, polemiza: para ela, colocar uma obra em uma coleção juvenil, rotulá-la, é como dizer “Você não vai encontrar um 3

Essa tensão entre generalidade e particularidade é explorada pela estética da recepção, que será trabalhada no próximo capítulo.

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uso muito sofisticado da linguagem ou cenas extremamente violentas ou (muito) sexo explícito” (SERRA, 2013, p. 28-9). Doutora em ciências pedagógicas, Emilia Gallego Alfonso comenta: Se me proponho a escrever para crianças é porque parto do princípio de que sei como elas são, e suponho que o que vou escrever elas vão ler, vão entender e vão acatar. Tenho uma grande insegurança sobre isso. E o mesmo ocorre em relação aos jovens, frente aos quais a minha insegurança é ainda maior (PRADES; LEITE, 2013, p. 74).

“O mais importante de tudo é ter uma postura de perguntar e se surpreender. E não achar que já sabemos tudo sobre eles ou que imaginamos que sabemos tudo”, afirma a professora Cecilia Bajour. “Não é falar somente de uma idade, mas é falar de um „poder ser‟ ou „estar‟ na sociedade” (Idem, p. 94). Emilia acredita que uma seleção de leituras para jovens seria algo que lhes confrontasse com eles mesmos, não uma leitura escrita para eles; ou seja, seria uma literatura já existente, “sem idade” (Idem, p. 75). Ela não consegue aceitar limites para o alcance leitor de uma obra literária, culpando o mercado por suas imposições e determinações, por querer criar um objeto para o sujeito, para que cada vez pensemos menos (p. 77): “Quando era jovem, [...] bastava saber que achavam que era bom para mim para não me interessar [...] É isso que acontece com a juventude que trata como farsa tudo o que veio antes. Os jovens querem respirar por si mesmos, pensar por si mesmos” (p. 76). De fato, o jovem não gosta de imposições e prefere pensar com sua cabeça, ver o seu gosto, experimentar, entretanto isso não invalida que haja uma literatura voltada para ele. O que não pode ocorrer é uma produção apenas oportunista e extremamente superficial, embora seja necessário também que o jovem busque livros que tratem do seu mundo. A literatura jovem não se resume apenas à escola e à pedagogia, principalmente após os 18 anos, no universo YA. Nesse sentido, Teresa Mergulhão (2006) cita o jornalista Juan Cervera (1992) e sua constatação, que também pode ser associada à literatura jovem: O volume das edições de literatura infantil, a quantidade de pessoas envolvidas em sua produção e a variedade e transcendência de atividades que geram comprovam a existência da literatura. O crescente número de leitores, a demanda pelo aumento de livros e o auge em quantidade e qualidade dos escritores a ela dedicados são um testemunho claro de sua realidade (p. 3). 17

Coordenador do A Leer e do Guia dos livros recomendados para crianças e jovens, Luis Téllez opina: “O termo „literatura juvenil‟ por si mesmo é a problematização de um fenômeno que abrange muitos aspectos, a maioria deles fora da literatura, relacionados ao consumo de material de leitura pela população jovem.” Ela seria o passo intermediário entre os textos destinados a crianças e aqueles escritos para adultos (SERRA, 2013, p. 24). Porém, analisando-se o que o público lê, veem-se as mais diversas obras, desde Ilíada até Crepúsculo, passando por Persépolis e Histórias de cronópios e de famas, ou seja, não se acha uma resposta sobre o que afinal essa literatura compreende. Nenhum segmento do público leitor é totalmente definido, como em que idade se deve começar a ler quadrinhos, quando as pessoas estão prontas para ler um romance com questões de sexualidade, quando se deve parar de ler textos em que os personagens são animais humanizados, com que idade se deve ler “os clássicos” (Idem, p. 25).

Editor que é, Téllez pensa que se pode trabalhar com literatura juvenil como um termo mais de marketing editorial do que literário, mais voltado para os critérios comerciais e temáticos do que para o conteúdo estético, com conteúdos relacionados aos interesses, gostos e preocupações dos jovens, especialmente a classe média que estuda (Idem, p. 26). Para Laura Lecuona, são obras que, pelo tema, idade dos protagonistas ou tratamento deles, despertam o interesse de um indivíduo entre 13 e 20 anos, ou que são escritas a um público de mente jovem (p. 28) – e isso nos faz lembrar os jovens adultos ou, mesmo, pessoas mais velhas, em especial nos livros do gênero crossover, de que se tratará mais à frente. Da mesma forma, a melhor literatura jovem poderia ser muito bem-apreciada pelos adultos e também ser parte da “grande literatura” (p. 29), juízo de valor que provavelmente inclui clássicos, cânones. Atualmente, os assuntos outrora proibidos são permitidos e os jovens descobrem o mundo “de forma muito mais voraz do que na infância”. Consequentemente, Laura lista uma grande quantidade de assuntos que pode interessar aos jovens e que, no fundo, corresponde a quase tudo (p. 30).4 Para além da qualidade, Ceccantini (2011) acredita 4

Assuntos listados: sexualidade, paixão, relações entre sexos, ambiente universitário, guerras, drogas, meio ambiente, ideias revolucionárias, música, amizade, redes sociais, computação, mudanças no corpo, moda, independência pessoal, sociedade, desigualdade e injustiça, relações familiares, viagem, fantasia,

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que os elementos que atraem leitores são a presença de temas da atualidade, linguagem próxima da que os jovens utilizam no dia a dia, projetos gráfico-editoriais chamativos (p. 152). Alice Áurea Martha (2011) continua a discussão: Qualquer assunto pode parecer interessante aos jovens leitores, desde que lhes seja apresentado com clareza e respeito ao seu desenvolvimento intelectual e emocional. O essencial é que as produções os cativem com o recurso à fantasia, por seu caráter mágico, pela valorização das sensações e emoções que os transporta para o mundo da imaginação, edificado pelas imagens e símbolos do texto literário (p. 49-50).

O texto traduz para o leitor a realidade dele, mesmo a mais íntima, fazendo uso de uma simbologia que é assimilada pela sensibilidade do jovem (LAJOLO; ZILBERMAN, 1987, p. 20). A intimidade se faz presente em gêneros como, por exemplo, cartas, memórias e diários, que se transformam em cúmplices da história do jovem, aliviando uma angústia autocentrada. Na visão de Adriana Bittencourt, doutora em literatura comparada, isso talvez explique o sucesso de autoras como Thalita Rebouças, com seus livros em linguagem direta, praticamente uma descrição da rotina adolescente (SERRA, 2013, p. 92), assim como das séries O Diário da Princesa, Diário de um Banana e Querido Diário Otário. Intimidade, mas, muitas vezes, falta de simbologia. Fabíola Farias, colaboradora da revista infantojuvenil Emília, relembra uma afirmação da crítica Beatriz Sarlo (2005) de que o grande problema da literatura juvenil é cercar os jovens do mundo que já é deles: “Nossa escola corteja o mundo dos jovens em vez de lhes oferecer alternativas para conhecer outros mundos” (apud PRADES; LEITE, 2013, p. 54). Na tentativa de seduzir os jovens, lhes seria oferecido mais do mesmo: séries iguais, todas com a mesma fórmula, que até divertem, mas não provocam um deslocamento, uma nova visão de mundo. Fabíola complementa: “É o mesmo que assistir a novelas. [...] O livro que fala com todos acaba falando com ninguém” (PRADES; LEITE, 2013, p. 55). Essa discussão também se liga ao mercado, sempre criticado por impor livros. Porém, o editor Paolo Canton discorda: para ele, o mercado é onde as pessoas fazem suas escolhas, que podem ser fáceis ou difíceis, dependendo se o livro é visto como experiência ou entretenimento, sendo ambos válidos (Idem, p. 57). A polêmica do valor, da hierarquia é relativizada por Peter Hunt (2010): utopias [ou distopias], processo de amadurecimento, ganho de responsabilidades, encontrar um lugar no mundo (SERRA, 2013, p. 30).

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O que se considera um “bom” livro pode sê-lo no sentido prescrito pela corrente literária/acadêmica dominante; “bom” em termos de eficácia para educação, aquisição de linguagem, socialização/aculturação ou para o entretenimento de uma determinada criança ou grupos de crianças em circunstâncias específicas; ou “bom” em algum sentido moral, religioso ou político; ou ainda em um sentido terapêutico. “Bom”, como uma aplicação abstrata, e “bom para”, como uma aplicação prática, estão em constante nas resenhas sobre literatura infantil (p. 75).

Apesar de Hunt comentar apenas sobre literatura infantil, sua colocação aplicase muito bem igualmente à jovem, pois as duas dividem várias características. Já no âmbito da mediação, enquanto a criança necessita sempre dela, o jovem pode muitas vezes encará-la como prescindível, porque está em um período de maior independência, de querer tomar suas próprias decisões, escolher o que gosta. Porém, Emilia Gallego opina que mediador é todo aquele que lê, recomenda, orienta, incita, como fazem os jovens entre si: eles se juntam, e o que pensa um pensa o outro (PRADES; LEITE, 2013, p. 77-9). Fabíola Farias complementa: “Há um prazer muito grande que se depreende do vínculo afetivo” (Idem, p. 54). Taize Odelli, webwriter e blogueira, cita o exemplo do Skoob, uma rede social de livros com espaço para postar comentários sobre as leituras. Em geral, os participantes são mais jovens e compartilham informações sobre séries infantojuvenis, adolescentes e YA que estouram no mercado editorial e supõe-se que haja maior identificação com o comentário de um jovem na internet do que com o que o que se lê na mídia a respeito do livro. Os leitores também indicam livros parecidos, fazem boca a boca.5 A internet é um espaço para os jovens se comunicarem sem preconceito ou medo do certo ou errado. Além do mais, nos blogs, pode-se falar das próprias experiências de leitura de uma maneira pessoal e, nos clubes de leitura, os leitores comentam os livros livremente, sem a pressão de estar sendo testados (SERRA, 2013, p. 106). Já para a artista e educadora Marie Ange Bordas, a internet dá uma pseudoliberdade, pois há um monte de opções, mas de nada adianta se não se construiu anteriormente o pensamento crítico (PRADES; LEITE, 2013, p. 83).

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Um exemplo de sucesso na internet é o do livro A batalha do Apocalipse, do escritor brasileiro Eduardo Spohr, que foi amplamente divulgado pelo site Jovem Nerd e acabou sendo comprado pela editora Verus, chegando a entrar na lista de mais vendidos de ficção.

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O papel da literatura é nos ensinar a pensar por nós mesmos, para que não nos contentemos com as visões de mundo prontas. Jean-Jacques Rousseau tinha a opinião polêmica de que isso seria possível se o adolescente ficasse longe dos livros, afastado da tentação de imitar a opinião dos outros. Porém, na atualidade, “os pré-conceitos vêm pelas diversas mídias e os livros têm o poder de libertar o espírito” (TODOROV, 2012, p. 79-80). O escritor e roteirista Paulo Lins vê, no avanço da tecnologia, a vantagem de que as pessoas escrevem mais: “Quem não lê e quem não escreve não participa.” Ele afirma que, passado o império da televisão e do rádio, a literatura cresceu e o jovem atual está lendo mais em relação ao jovem de trinta, quarenta anos atrás (Idem, p. 89). Nesse sentido, Azucena Galindo Ortega menciona a antropóloga Michèle Petit: “Embora a proporção de leitores regulares esteja diminuindo, a juventude ainda é o período da vida em que há maior atividade de leitura.” Por isso, Azucena defende o aumento da oferta de obras, o estímulo à produção de textos, mantendo os jovens como leitores na “transição complexa” para a vida adulta, assim como a criação de prêmios, que incentivam a renovação do catálogo das editoras. Os prêmios para obras juvenis são poucos quando comparados com os de outras categorias (SERRA, 2013, p. 33). Além disso, é bastante válido ligar a literatura a outras formas de arte, como filmes e músicas (Idem, p. 52). Marie Ange aponta: “Quando falamos em leitura, muita gente se remete diretamente ao livro [...], mas o mundo está aí para ser lido de diversas formas” (PRADES; LEITE, 2013, p. 84-5). Isso nada mais é que a transmidiatização do mundo jovem, o cruzamento de mídias. Não mais se vê com preconceito o uso de outros recursos na vivência da literatura. Na revista de literatura fantástica Bang!, a escritora Ana Cristina Reis comenta que, “atualmente, muitos jovens tornam-se leitores ao entrarem em contato com livros que foram adaptados para outras mídias, sobretudo o cinema, mas também jogos” (p. 25). Porém, diante da oferta dessas outras mídias – que constroem uma cadeia comercial de merchandising –, são necessárias ações para promover a maior frequência dos jovens às livrarias. Isis Valéria Gomes, presidente do Conselho Diretor da FNLIJ, 6 destaca a importância de manter os leitores ativos após o término da vida acadêmica e o início da vida adulta – ainda jovens adultos (SERRA, 2013, p. 143). E, nesse sentido, as mídias têm um grande papel, pois a maior parte da vida social foi midiatizada e aqueles 6

Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, seção brasileira do IBBY.

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que não dispõem de computador e celular, por exemplo, “vivem forma cruel de exclusão, porque o cruzamento das vozes, em grande medida, por aí que se dá” (CADEMARTORI, 2009, p. 121). E Ligia Cademartori completa: “Em meio ao ritmo frenético da vida, parar para ler, pelo simples desejo de ler, que rebeldia, que reação!” (Idem, p. 124). Ceccantini frisa que a internet é peça-chave na difusão da literatura jovem: “A leitura tem uma dimensão solitária, mas o jovem é afeito às práticas sociais. Ele termina de ler um livro e comenta nas redes. Ali, também pode falar com o autor. Os amigos veem isso e sentem curiosidade de ler, também” (KUSUMOTO, 2014). É a “socialização do diálogo virtual”, como chama Laura Lecuona (SERRA, 2013, p. 33). Destaca-se a gestação de sentido a partir da experiência do espectador-leitor, numa espécie de história da leitura. O texto foi apropriado por determinadas práticas de leitura, enfatizandose que a produção autoral envolve um diálogo com o leitor, uma interação mediada; só assim ela adquire significação (GOUVÊA, 2007, p. 25-6).

O nível de interferência torna-se tão alto que as histórias se moldam pelas reações dos leitores, especialmente porque a maioria é construída em séries, que podem ser modificadas ao longo do tempo. E os autores buscam o contato direto a todo momento para alavancar seu público, fidelizá-lo. Benjamin Magalhães, gestor de marketing da rede de livrarias Travessa, comenta: “Eles são bastante ativos na internet. Quando vêm à livraria ou visitam o site, já sabem o título que buscam. Quando se tornam fãs, mobilizam clubes e páginas especializadas com conteúdo e comentários e os divulgam” (CARNEIRO, 2013). Nesse novo mundo, o universo do livro/série não equivale apenas ao volume, mas se trata de um universo expandido: o conjunto de expansões da obra original, um aprofundamento da narrativa. É um conceito que já está integrado à cultura pop contemporânea e se iniciou com um filme, o primeiro Star Wars, de 1977: foi a primeira obra a gerar uma legião de fãs organizados que opinavam com entusiasmo sobre tudo que fosse lançado referente à franquia (PEREIRA, 2013, p. 6). Esse se tornou o modelo para a literatura jovem. Inclusive, Peter Hunt (2010) comenta que há cada vez mais a substituição do livro como uma forma “fechada” pela experiência multidimensional:

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o livro, o filme, o vídeo, os recontos, as prequelas e sequelas, 7 a comercialização, os diários, a série de televisão com “novos” episódios, o “making of das séries de tevê”, os “antecedentes da história”, as biografias dos astros que aparecem na série de tevê... todos são parte da “experiência” daquilo que, por redução, chamamos de “texto”. A literatura infantil, talvez de forma mais óbvia que outras formas literárias, desde o início fez parte disso – adaptando, refazendo, absorvendo – e foi movida simultaneamente por criatividade, interesse e mercantilismo (p. 287-8).

Apesar de Hunt se referir à literatura infantil, as características também dizem respeito à literatura jovem, talvez até de forma mais intensa, já que os jovens podem optar mais pelo que apreciam, não ficando apenas dependentes dos pais em suas escolhas. A literatura é vista como qualquer coisa produzida para o entretenimento e para a exploração do universo das crianças e dos jovens (Idem, p. 288). Nos últimos trinta anos, ser fã transformou-se de um simples ato de admiração para uma verdadeira demanda por mais. A narrativa central de qualquer obra que atinja “status pop” não se basta mais por si própria. Seus fãs exigem extensões e se sentem quase coautores da obra, buscando uma participação ativa na história, no universo criado. Atualmente, existem três mundos ligados a cada obra, como explica o cineasta George Lucas, diretor de Star Wars: “O mundo que eu criei [do autor], o mundo licenciado, dos livros, quadrinhos, jogos [...], e o mundo dos fãs, que também é rico em imaginação, mas esses mundos nem sempre se misturam” (DOUGLAS, 2008). Ou seja, também inclui todos os produtos correlatos e as “obras” dos fãs, em especial as fanfictions, histórias paralelas escritas com os personagens e o enredo central da obra original. Num análogo à época em que a oralidade e seus diversos discursos representavam uma única narrativa, agora existe uma narrativa central que, mesmo cerceada por pesados conjuntos de lei, precisa se expandir para atender às demandas e expectativas de seu público. Todos querem mais uma vez ter voz e deixar sua própria marca (PEREIRA, 2013, p. 9).

Essa cultura de fã é um desdobramento da expansão tecnológica e artística da segunda metade do século XX, da busca por estabilidade dentro do que o filósofo Zygmunt Bauman (2001) denomina de “modernidade líquida”. O poder de determinar

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Termos derivados das palavras em inglês prequel e sequel, também traduzidas como “prequência” e “sequência”: histórias que vêm antes e depois da narrativa da obra original, escritas depois desta.

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os próprios gostos e ir além, de deixar uma marca pessoal naquilo que gosta, é irresistível para quem está buscando firmar a própria identidade diante do mundo, como é o caso do jovem (p. 35). Para o pesquisador Henry Jenkins (2012), o advento da internet criou o conceito de “cultura participativa”: as novas formas de pensamento coletivo impulsionadas pela tecnologia. Jenkins afirma que o usuário no mundo contemporâneo encara a Web como uma ferramenta de edição, pela qual ele pode se inserir em contextos onde antes não poderia chegar e ser atuante nesses mesmos contextos. O importante é participar sempre. E isso se vê na relação com as editoras brasileiras, que têm se dedicado a acolher sugestões dos jovens, que vão dos títulos a serem publicados, passando pela agenda de lançamentos, a melhor tradução, a melhor capa e até estratégia de divulgação, entre outras etapas do processo editorial. “Os leitores estão concentrados no que está sendo lançado agora [no exterior]. É bom lembrar que os scouts [olheiros profissionais] trabalham com material inédito e muitas vezes sigiloso. Acho que os papéis dos dois se complementam”, diz Ana Lima, editora da Record. “O livro é lançado com mais respaldo, fica mais interessante para as livrarias, e muitas vezes a expectativa impulsiona a pré-venda” (MEIRELES, 2013). Essa característica faz até com que sejam contratados editores com presença já forte nas redes sociais. “[Os jovens] são leitores especializados, têm um olhar muito valioso. E trazem opiniões sempre fortes e bem fundamentadas”, afirma Julia Moritz Schwarcz, publisher da Companhia das Letras. Inclusive, os pareceres dos livros juvenis da editora são encomendados a leitores da faixa etária em questão (Idem). Apesar de toda essa presença nos meios virtuais e do uso constante de aparelhos móveis, é interessante perceber que, de acordo com uma pesquisa de 2013 conduzida pela agência Voxburner, 62% de 1.420 jovens de 16 a 24 anos disseram preferir livros tradicionais a e-books, assim como a filmes, jornais e revistas, CDs e videogames (BURY, 2013). O mercado jovem chegou ao patamar atual de sucesso devido ao fenômeno Harry Potter. Na época do surgimento da série, “vários céticos apressaram-se a decretar que esse seria um fenômeno de resultados nulos. Com o eminente crítico americano Harold Bloom à frente, argumentavam que Harry Potter só formaria mais leitores de Harry Potter – [...] seriam incapazes de conduzir a outras leituras e propiciar a evolução

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desses iniciantes” (MEIER, 2011, p. 102). Note-se o termo “evolução”, como se Harry Potter e outros livros do tipo fossem obras menores. No Brasil da virada do século XX para o XXI, acreditava-se na morte do hábito de ler, por diversos motivos que ainda subsistem, é claro: “sistema de ensino em franco declínio e sua tradição de fracasso na missão de formar leitores, o pouco apreço dado à instrução como valor social fundamental [...], a falta e a pobreza de bibliotecas públicas e o alto preço dos exemplares” (Idem, ibidem). “Faltava mesmo era uma ficção que oferecesse algo na medida do seu imaginário. [...] O problema não se relacionava ao livro enquanto meio, mas sim enquanto lacuna temática” (CORSO, 2006 apud CARVALHO, 2013, p. 41). Quando muitos acreditavam que a literatura para crianças e jovens declinava de modo inquietante, o fato de os livros de Harry Potter se tornarem “moda” entre o público leitor infantojuvenil, num processo fortemente sustentado e alavancado por investimentos pesados em marketing e por [suas] adaptações cinematográficas [...], observou-se uma verdadeira explosão da leitura literária [...]. Caíram rapidamente por terra os vaticínios mais pessimistas [...], bem como o tabu de que os jovens leitores de hoje não mais conseguiriam “enfrentar” narrativas muito longas (CECCANTINI, 2011, p. 159-160).

De fato, a publicidade e os filmes tiveram grande importância na divulgação das obras, mas não se deve creditar o sucesso delas apenas a isso, tirando o seu mérito. Após a entrada da série nas listas de mais vendidos, o termo “infantojuvenil” começou a ser mais frequente. “Preocupados com os outros livros que não conseguiam fulgurar na lista de ficção dos mais vendidos, os organizadores de listas tradicionais como as da Veja criaram a seção Infantojuvenil, que abrigou por muitos anos os livros do jovem bruxinho”, seguidos por diversos outros sucessos da categoria (PERISSÉ, 2012, p. 33). Foi uma grande mudança, ainda mais levando-se em conta o depoimento de Kate Egan, editora da série Jogos Vorazes pela Scholastic: Quando eu comecei a trabalhar no mercado editorial, em meados dos anos 1990, a ficção YA estava quase morta. A Scholastic [...] mal publicava YA nessa época. Não havia nenhum espaço dedicado para jovens nas livrarias. Nos últimos dez anos, o movimento se inverteu, inclusive angariando o público adulto. 8

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Tradução livre. Entrevista disponível em: http://blog.sarahlaurence.com/2010/11/interview-with-kateegan-editor-of.html

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Atualmente, a quantidade de livros para o público jovem chega a ser, em algumas editoras, superior ao lançamento de livros de ficção adulta. A “geração Harry Potter” cresceu e passou a buscar outras leituras, não aceitou ficar sem livros após o final da saga (Idem, p. 70). Isis Gomes destaca: “A área infantil tem diminuído, embora o volume pareça maior, e a juvenil cresceu muitíssimo” (SERRA, 2013, p. 146). Ela traz números que comprovam isso mesmo entre as obras brasileiras. Pedro Bandeira tem 20 milhões de exemplares vendidos em quase trinta anos de carreira, apresentando uma venda constante devido ao grande número de leitores, apesar de não ser um fenômeno de marketing. E Meu pé de laranja lima vendeu espantosos 5 milhões, sendo que ainda hoje saem 75 mil por ano – lembrando que o autor já está morto (Idem, p. 148-9). Porém, a educadora exibe um preconceito ao falar que, em março de 2012, as séries Harry Potter e Crepúsculo já tinham vendido juntas 1,2 bilhão de exemplares no mundo: “Número assustador. É o apelo à fantasia.” Mesmo sem levar em conta a qualidade das obras, coloca-se a característica fantástica como algo pejorativo. Vê-se em Isis a velha rixa entre obras nacionais e estrangeiras, como se uma precisasse se opor à outra. É verdade que os livros internacionais têm a vantagem do investimento e da exposição nas livrarias, assim como da “onda” de temas, tirando espaço da literatura brasileira. Porém, Vera Lucia White (2011) pontua: Entendo que muito da literatura infantojuvenil brasileira consumida ocorre, via de regra, por imposição do currículo escolar, pois quando recebem a opção de escolher os livros que querem ler, crianças e adolescentes possuem certa inclinação de eleger obras que recebem maior destaque da mídia (p. 13-14).

A escola não leva a literatura de entretenimento para a sala de aula porque o aluno já vai atrás por si só. Logo, ela se incumbe da apresentação dos clássicos, embora não deva ignorar a “outra literatura”. Nesse contexto, é digno de nota o fato de que o fenômeno midiático jovem A culpa é das estrelas tenha sido selecionado para o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) de 2014. Voltando a outro fenômeno literário – a série Harry Potter –, sabe-se que ele foi o responsável por incentivar a compra por impulso em sua área. A autora, J. K. Rowling, foi a primeira escritora de livros infantojuvenis a se tornar bilionária, numa época em que a chance de se ganhar dinheiro com literatura para crianças era muito remota (CARVALHO, 2013, p. 1). Vê-se a influência de Harry Potter pelo fato de que a série foi considerada por Peter Hunt, especialista em literatura infantil e juvenil, como 26

um dos 10 livros mais importantes – conhecidos – nessa área, ficando lado a lado na lista com Alice no País das Maravilhas; O hobbit; O leão, a feiticeira e o guardaroupa.9 “Harry Potter teve o mérito incontestável de ter feito as editoras no mundo inteiro olharem para o público jovem e de ter criado espaço para livros seriados”, diz Jorge Oakim, editor da Intrínseca. “A saga mostrou que livro para jovem não precisa ser simples, de menos de duzentas páginas e personagens ralos. O importante é que seja um livro capaz de agradar. Se o leitor jovem gosta de um livro, ele não para mais de ler” (MAIA, 2010). As editoras iniciaram a busca por livros que satisfizessem esse público, que começava a levar a discussão da leitura para a esfera virtual. Se anteriormente o mercado editorial vivera uma multiplicação dos selos infantis, na década passada e no início desta chegou a vez dos selos juvenis. Ou, mais do que isso, da reorganização do que se entende por selo juvenil. Com o impacto da saga de J.K. Rowling, em 2000, a própria editora Rocco criou o Rocco Jovens Leitores com a proposta de lançar “livros de formação”. A editora Record lançou Artemis Fowl: o menino prodígio do crime em 2000 e, em 2007, reconhecendo o poder da literatura infantojuvenil, criou o selo Galera Record, que abrigou suas obras para esse público. Ao longo dos anos, o Grupo Editorial Record aproveitou seu extenso catálogo e fez duas reconfigurações, que resultaram na seguinte divisão atual: o selo Galerinha, para o público infantil; o Galera Junior, para adolescentes, com obras como as séries O Diário da Princesa e Artemis Fowl; e Galera, para os jovens adultos, com séries como Dezesseis Luas, Assassin‟s Creed e The Walking Dead. “Não é [algo] tão rígido, mas ajuda a orientar os pais”, explica a editora Ana Lima. Atualmente, a categoria juvenil garante 30% do faturamento total do grupo (COZER, 2013b). A editora Intrínseca, fundada em 2003, foi reconhecida pelo lançamento dos livros HELL – Paris 75016 e A menina que roubava livros. Ela é pioneira no relacionamento com os fãs adolescentes e jovens adultos, tendo uma presença forte nas redes sociais, tirando dúvidas, aceitando sugestões de publicação, com promoções e eventos de seus livros (PERISSÉ, 2012, p. 48-9). Recentemente, tem se diversificado, 9

Entrevista disponível online em: http://www.sobresites.com/literaturajuvenil/entrevista17.htm. Acesso: 16/04/2014.

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mas sua produção quase toda é voltada para os jovens, algo incomum. E ela tem tido retorno: no primeiro ano de existência, 15% dos lançamentos eram destinados a esse público; em 2012, já eram 80% – mesmo percentual de faturamento com jovens (MEIER, 2011, p. 103). A Companhia das Letras criou o selo Companhia das Letrinhas em 1992 para produzir livros para o público infantojuvenil. Devido à confusão com o termo “infantojuvenil”, ao longo dos anos os cinquenta livros lançados tinham temáticas mais infantis, pouco abordando o universo juvenil. Com a expansão do mercado, em 1994, foi criada a Cia. das Letras para o público pré-adolescente e adolescente. Somente em 2012 a editora se lançou no mercado de literatura jovem comercial e de formação, com o selo Seguinte (PERISSÉ, 2012, p. 49-50), extinguindo o Cia. das Letras. “Com o mesmo cuidado na escolha e edição dos livros que você conhece da Cia. das Letras, o novo selo jovem da Companhia vai continuar publicando autores importantes”, garante o site da editora.10 “Concentramos no Seguinte livros com temas mais adultos. Outros, para leitores de 12, 13 anos, migramos para o Companhia das Letrinhas”, diz a editora Julia Schwarcz (COZER, 2013b). Além desses selos, foram criados também, por exemplo, o Geração Jovem (da Geração Editorial) e o Fantasy (da Casa da Palavra), e foi firmada uma parceria entre a Sextante e a editora portuguesa Saída de Emergência, dando origem ao Saída de Emergência Brasil, voltado para livros fantásticos. E, claro, mesmo que as editoras não tenham um selo, uma divisão específica para esse público, vê-se que, cada vez mais, elas apostam nele – até porque os livros jovens dominam a lista de mais vendidos de ficção. Um dos casos é o da Gutenberg, cujos títulos juvenis representam 80% das vendas, segundo Alessandra Ruiz, publisher da editora (KUSUMOTO, 2014). O destaque dos jovens no mercado também se faz presente nas livrarias. De acordo com Guilherme Netti, diretor operacional da Nobel, esses leitores respondem por 10% das vendas da empresa: “Hoje, os jovens leem, na média, muito mais do que seus pais liam na mesma idade.” Ele ainda ressalta o fato de que um livro nunca vem sozinho e, sim, dentro de uma série que possui ao menos três volumes, logo um volume puxa o outro, aumentando o faturamento (CARNEIRO, 2013). Já na Saraiva, fica claro o crescimento do nicho: em 2005, foram vendidos 277 mil exemplares infantojuvenis; em 2010, já eram 1,7 milhão, ou seja, um acréscimo de 514% (MEIER, 2011, p. 102). 10

Disponível em: www.seguinte.com.br/contato. Acesso: 21/04/2014.

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Conforme pesquisa da empresa GfK, especializada em estatísticas de mercado, o segmento de literatura juvenil foi o terceiro maior em crescimento em 2013, na comparação com 2012, sendo superado por um boom das biografias e pelo bom desempenho do segmento que une histórias em quadrinhos e livros sobre jogos – também muito ligado aos jovens. Dessa forma, no ano passado, ela alcançou 8,3% do mercado total de livros, atrás apenas da literatura estrangeira (21,3%) e das obras infantis (10,3%). E ainda é importante lembrar que livros lançados no exterior na categoria jovem saem aqui como ficção estrangeira – caso de A culpa é das estrelas –, inflando o segmento com juvenis (KUSUMOTO, 2014). Segundo outra empresa de pesquisa, a Nielsen, 80% das vendas desse segmento em 2013 estiveram nas mãos de cinco das centenas de casas publicadoras do país: Intrínseca, Rocco, Galera Record, Gutenberg e V&R – esta última, na verdade, se destaca pela série Diário de um Banana, que é mais infantil (COZER, 2013b). De acordo com Vera Teixeira de Aguiar, professora da PUC-RS, outro ponto que contribui para o crescimento do nicho é seu tempo de existência relativamente pequeno, logo o setor não atingiu seus limites (KUSUMOTO, 2014). Dolores Prades (2012) ainda destaca o “leque de variantes” da literatura jovem e, de fato, esta compreende diversos tipos de obras, não se trata de algo homogêneo. Ela comenta: “A distinção dos gêneros, a identificação das especificidades de cada um deles, a sua sinalização clara são, por um lado, sinais de amadurecimento do mercado. E, por outro, são instrumentos nas mãos de mediadores e de leitores cada vez mais exigentes e criteriosos.” E Graça Paulino (2000) completa: Parece uma tentativa sem sentido tratar dos tipos de narrativas numa época como esta, início de novo século, em que as misturas e as quebras de fronteiras entre gêneros de textos dominam o cenário da produção dita “pós-moderna”. Mas é num momento assim que os trânsitos culturais carecem de sinalizações, pois as marcas de identidade permitem que a polifonia se distinga de um falatório vazio (p. 39).

Na atualidade, reconhece-se uma polifonia que, cada vez mais, é sinalizada na divisão de variados gêneros, como os livros fantásticos, mitológicos, históricos, épicos, românticos, policiais, de chick lit,11 sick lit,12 distopias, entre dezenas de classificações

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Literalmente, “literatura de mulherzinha”. Em geral, são obras femininas que têm mulheres como protagonistas e tratam de amor, família e relacionamentos.

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que podem se mesclar. Para Ceccantini (2011), trata-se da expansão do universo do livro, que, além de criar espaço para o surgimento de autores, garante a diversidade de temas e formas, “abrindo possibilidades de que leitores com os mais diferentes perfis encontrem respostas para seus anseios” (p. 152). O segmento juvenil cresceu tanto nos últimos anos que mal cabe nos rótulos que o mercado tenta lhe pregar. “As pessoas entram na adolescência mais cedo e demoram mais a sair. A área juvenil passou de grande a imensa”, afirma Vivian Wyler, diretora editorial da Rocco. Além do YA, isso se percebe no novíssimo new adult. Porém, muitos editores veem esse recém-criado gênero como novo rótulo para uma velha fórmula: na verdade, nada mais são que obras envolvendo violência e muito sexo que estão mais para o adulto do que para o jovem. A partir do lançamento de Cinquenta tons de cinza, houve um boom de livros no estilo. Inclusive, a Rocco prevê para este ano de 2014 um selo new adult, além de um de literatura fantástica – mais um selo jovem saindo do forno (COZER, 2013a). Jorge Oakim prefere definir grande parte das obras para jovens como “crossover” (ao pé da letra, cruzamento): “Desde A menina que roubava livros [de 2007, publicado pela Intrínseca] existe essa discussão. Ele saiu nos Estados Unidos como livro jovem, o que irritou o autor. É injusto classificá-lo assim, porque tem leitores de até 70 anos” (Idem). A série Harry Potter, entre outros candidatos a permanecer na memória, também consegue atingir diversos públicos, até porque nada é engessado no mundo atual: o que seria adolescente uma criança lê, o que seria jovem adulto um adolescente lê, etc. Além disso, já dizia C. S. Lewis (2009, p. 743) que “uma história para crianças de que só as crianças gostam é uma história ruim”, e isso, provavelmente, se aplica a outras faixas etárias. A jornalista Raquel Cozer (2013a) pontua que a persistência do leitor adulto no que se define como literatura juvenil é pouco estudada no país, e que editores brasileiros creditam o novo público à ascensão da classe C, mas o fenômeno ocorre no mundo todo. A verdade é que, como já foi apresentado, Harry Potter é o grande “ponto de virada” editorial. “Surgiu com ele um leitor que se formou na literatura transmidiática, que chega aos cinemas e aos games”, diz Ceccantini.

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Termo derivado de chick lit, ao pé da letra significa “literatura doente”. São livros marcados “por males e doenças e a iminência de uma morte quase datada – de preferência nos braços de uma pessoa amada” (CARNEIRO, 2013).

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Enquanto Vivian Wyler acha que houve certa infantilização do público – composto por indivíduos que realizam leituras “mais simples”, denominados no exterior de “leitor relutante” –, o professor da Unesp afirma que nunca se leu como hoje: “Um grande grupo que não tinha acesso ao mundo letrado ingressou nele, enquanto o pequeno grupo que consumia a chamada „alta literatura‟ ainda faz isso” (COZER, 2013a). Em dezembro de 2013, o americano Chuck Wendig, autor de obras juvenis, opinou na rede social do Twitter: “Talvez adultos leiam young adult porque bons livros são bons livros e eles podem ler coisas que não podiam na adolescência porque elas não existiam” (Idem). Essa é uma discussão extensa e seguiremos nela no próximo capítulo, ao mesmo tempo que entraremos em um novo tema: o gênero distopia.

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3. Distopia e literatura

Para seguir no debate sobre a literatura jovem, este trabalho usará como recorte as distopias, que, como veremos, têm diversos elementos propícios a serem estudados e que contribuem para a questão da literariedade, do ético, da mudança de visão de mundo no âmbito da literatura infantojuvenil. Antes que se entre na seara desse gênero, é necessário discorrer sobre as origens dele e, nesse sentido, são de grande valia os posfácios do clássico 1984, na edição de 2009 da Companhia das Letras, em especial o do psicanalista, filósofo e sociólogo Erich Fromm. Ele afirma que a desesperança contrasta com uma das características fundamentais do pensamento ocidental: a fé no progresso humano e na capacidade de o homem criar um mundo de justiça e paz. Ambos têm sua origem nos pensamentos grego e romano e no conceito messiânico dos profetas do Velho Testamento, segundo o qual o homem cresce e se revela ao longo da história, tornando-se finalmente o que é em potencial, visando à razão e ao amor plenos, à compreensão do mundo. Apesar de todos os erros e pecados, o “fim dos tempos” almejado chegará (FROMM, 1961, p. 365-6). Essa noção profética era um conceito histórico que foi transformado em transhistórico e puramente espiritual pela cristandade, apesar de manter a conexão entre as normas morais e a política. “Com o colapso do mundo medieval, a percepção da força e da esperança do homem não apenas na perfeição individual, mas também na social, ganhou novo alento e tomou novos rumos” (Idem, p. 366). Durante o Renascimento, por volta de 1516, foi escrita a obra Utopia (literalmente, “não lugar”), de Thomas More, e o termo do título passou a ser aplicado a trabalhos similares. Esse livro combina “uma crítica penetrante da própria sociedade do autor, de sua irracionalidade e de sua injustiça, com o retrato de uma sociedade que, apesar de não ter alcançado talvez a perfeição, resolvera a maior parte dos problemas humanos” (Idem, ibidem). Apesar da projeção de perfeição, More deixou claro estar ciente de que o pensamento humano sempre estará ligado às questões de “pouco valor moral” e inviabilizou a sociedade descrita em sua obra colocando-a num patamar inalcançável logo no título (COLETTO, 2013b). As utopias não discutem princípios gerais, mas descrevem uma sociedade ideal nos mínimos detalhes. Elas não se localizam no “fim dos tempos”, mas já existem distantes geograficamente (FROMM, 1961, p. 366-7). De acordo com Fromm, junto com a Utopia, formam a trilogia utópica A cidade do Sol 32

(1602), do frei Campanella, e Cristianópolis (1619), do pastor humanista Andreae. Houve várias outras obras, sendo uma das mais influentes Daqui a cem anos: revendo o futuro, de 1888. A esperança também está presente nos escritos de filósofos iluministas do século XVIII e de pensadores socialistas do século XIX. Na Primeira Guerra Mundial, as pessoas pensavam lutar pela paz e democracia, mas tudo não passou de uma ilusão. Vários fatores pesaram para a destruição da tradição ocidental da esperança: a traição do pensamento socialista pelo governo stalinista, as crises econômicas, as barbáries, atrocidades, culminando com a amoralidade da Segunda Guerra e as bombas atômicas. Aparece, assim, a ameaça maior: a ruína da civilização, da humanidade, por armas termonucleares (Idem, p. 3678). Antes que surgissem as obras distópicas, o termo “distopia” foi cunhado pelo político inglês John Stuart Mill, que o usou em um discurso de 1868 ao Parlamento, criticando defensores de determinada política referente à Irlanda: “É, provavelmente, demasiado elogioso chamá-los de utópicos; eles deveriam ser chamados de dis-tópicos ou caco-tópicos [“caco” significa “ruim”]. O que é comumente chamado utopia é demasiado bom para ser praticável; mas o que eles parecem defender é demasiado mau para ser praticável” (SHANNON, 2013). Em grego, a partícula “dis” exprime dificuldade, dor, privação, infelicidade, que, somada a “topia”, indica um lugar infeliz. Considerado o mais influente filósofo inglês do século XIX, Mill defendeu os direitos individuais e opôs-se a sistemas governamentais controladores, questões frequentemente abordadas na ficção distópica. Nas obras romanceadas do século XX, as interpretações acerca das sociedades utópicas conformaram-se com sua inviabilidade: as novas histórias mostram utopias que se tornam obsoletas ou que travam uma severa luta para permanecerem tal qual idealizadas. Trata-se de títulos como Uma utopia moderna (1905), de H. G. Wells – no qual uma comunidade rural vive sob uma estrutura perfeita, mas seus moradores a abandonam –, e Islândia (1942), de Austin Tappan Wright, que expõe um país regido por uma política de isolamento total, rejeitando qualquer industrialização e tentando, inutilmente, barrar influências externas. Toda utopia romanceada começou a parecer ultrapassada, o que deu espaço para a completa destruição do pensamento utópico (COLETTO, 2013b). As tentativas de adequação do presente para alcançar uma sociedade perfeita acabaram por desencadear uma desordem na organização racional do mundo. Muitas 33

vezes, elas fizeram as pessoas viverem submetidas a valores distorcidos, aceitando fatores hostis que eram meio para um fim que parecia justificá-los: a perfeição. Na literatura, as utopias sempre possuem raízes no presente e são taxadas como o caminho ideal a ser seguido, mesmo que impraticável. Já as distopias partem da pretensa utopia alcançada: os problemas atuais são camuflados pela perfeição aparente e, a certo momento, eclodem da forma mais bruta (COLETTO, 2013a). Surge, então, o que Erich Fromm (1961) chama de trilogia das “utopias negativas”, ou distopias, composta por Nós (1924), de Yevgeny Zamyatin, Admirável mundo novo (1932), de Aldous Huxley, 13 e 1984 (1949), de George Orwell. Mas também é mencionado O tacão de ferro (1900), de Jack London, que prediz o fascismo na América. Essas obras tentam explicar um paradoxo histórico. No início da era industrial, quando não havia recursos para erradicar a fome, a tecnologia estava engatinhando e a economia provocava guerras e exploração, o homem estava cheio de esperança. Quatrocentos anos mais tarde, quando as esperanças são realizáveis graças ao desenvolvimento produtivo e técnico, ele começa a perdê-las (p. 368-9). Fábio Fernandes (2004, p. x), doutorando em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, estabelece a “trindade distópica” com Laranja mecânica (1962), de Anthony Burgess, no lugar de Nós – porém, há que se levar em conta que ele traduziu a obra que defende. De qualquer forma, é um livro que sempre é citado entre os clássicos, com uma realidade mais próxima da nossa, ainda que extrapolada, e foge ao fim pessimista comum, pois tem um contraponto otimista, que foi até cortado nas edições americanas e no filme de Stanley Kubrick, pois não se aceitava que uma distopia pudesse terminar assim. A Nova Utopia (1891), de Jerome K. Jerome, é considerada a primeira distopia, que influenciou 1984. Outros dois livros que se destacam, entre as inúmeras distopias adultas existentes, são Fahrenheit 451 (1953), de Ray Bradbury – que mostra um mundo onde livros são queimados e a televisão domina as mentes –, e Um dia na vida de Ivan Denisovich (1962), de Alexander Soljenítsin, que teve como inspiração as experiências reais do autor com o regime stalinista. 13

Admirável mundo novo às vezes é chamado de “ficção utópica”, pois todos são manipulados desde o nascimento e não percebem a opressão (GRESH, 2012, p. 30). Interessante apontar que Aldous Huxley, já em 1963, considerava que seu mundo distópico – de individualidade, manipulação, promiscuidade, falta de privacidade e criatividade, desvalorização da família – se tornara realidade. Fonte: http://nomeumundo.com/2013/07/23/analise-especial-distopias-parte-ii-a-trilogia-distopica. Acesso: 21/05/2014.

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Em todas as obras, há sempre alguém controlando tudo, seja uma organização ou o próprio Estado. As regras ditadas são rígidas e parecem ter sido criadas para o bem comum, mas, no decorrer da história, percebemos que elas só favorecem uma minoria e segregam o restante. Há terror ilimitado, manipulação ideológica e psicológica e distorção da verdade. O retrato distópico é bastante desanimador, ainda mais porque não se trata apenas do retrato de um “inimigo” (um país socialista, comunista, ditatorial etc.), mas de toda a raça humana no final do século XX. O leitor pode ter duas reações a essa constatação: tornar-se mais desesperançado e resignado ou sentir que ainda há tempo para mudar. Os autores dessas distopias não queriam dizer que o mundo descrito iria se realizar, mas fazer um alerta às pessoas. “[Orwell, por exemplo,] ainda tem esperança – mas ao contrário dos escritores das utopias das fases iniciais da sociedade ocidental, a sua é uma esperança desesperada” (FROMM, 1961, p. 377-8). No segundo posfácio de 1984, o historiador Ben Pimlott (1989) destaca que os autores das distopias não estavam preocupados com eventos de suas épocas: as obras são sobre o “presente contínuo”, uma atualização da condição humana. Elas lembram ao leitor muitos aspectos em que normalmente se evita pensar. 1984 mesmo “não antecipa controvérsias futuras mas retorna às do pré-guerra” (p. 386, 391). Há um mal sem finalidade, o poder pelo poder, e a criação de uma linguagem, de um ideário que faz pensar menos. A maior parte das forças que ameaçam a liberdade pode ser resumida numa única palavra: mentiras (p. 394). No último posfácio, o escritor Thomas Pynchon (2003) completa: “A opinião pública é alvo da história reescrita, da amnésia oficial e da mentira deslavada [...] Parece ser uma condição política no super-Estado moderno que se tenha sempre duas opiniões sobre muitas questões” (p. 401). Uma distopia não reverte para uma utopia, um mundo ideal, e raramente há um final feliz. Isso acontece para mostrar o quão pequenos somos diante de uma organização corrupta e da conformidade do povo que, se foi seduzido pelo discurso do governo/instituição, sufocará ele mesmo os personagens que têm alguma noção sobre o horror do mundo ao redor.14 A grande maioria das obras distópicas pertence à ficção científica (a ciência tecnológica costuma ter um papel de destaque), embora a fantasia, o sobrenatural, entre outros, também se apropriem da distopia para transmitir suas mensagens. 14

Fonte: http://nomeumundo.com/2013/07/22/analise-especial-distopias-parte-i. Acesso: 24/05/2014.

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Edward Mozejko (2002), professor de teoria literária da Universidade de Alberta, afirma que “a ficção distópica não se presta a uma descrição fácil”: A dificuldade vem da complexidade de sua estrutura, que amalgama uma variedade de estratégias narrativas, abrangendo desde a prosa política, social e satírica até a literatura utópica, a ficção científica, a fantasia e o absurdo. [A distopia] está localizada na interseção desses paradigmas genéricos, com resquícios da mentalidade futurológica na fronteira da ficção científica e como parte da literatura especulativa (apud MILLWARD, 2006, p.17).15

Vê-se, assim, que ainda pode haver subgêneros na distopia, pois há distintas formas de abordá-la. Um artigo sobre distopia 16 elenca alguns tipos, que naturalmente podem se mesclar, até porque as características totalitária e pós-apocalíptica se encontram em quase todas as distopias:  Distopia totalitária: como o próprio nome já diz, refere-se a uma sociedade que é totalmente controlada pelo seu governo através de ideologias.  Distopia cyberpunk: uma versão exagerada de nossa própria sociedade. É um subgênero heterogêneo, mas a maioria tem os seguintes temas: a aceleração da evolução tecnológica, o iminente colapso ambiental, alta da urbanização e crimes fora de controle. Um dos conceitos principais é a cibernética: melhorias artificiais no corpo, na mente, no ciberespaço… Geralmente são histórias violentas.  Fantasia ou sobrenatural distópico: seres sobrenaturais começam a controlar atos do governo, manipular crises mundiais.  Distopia off-world: a exploração do homem sobre o universo não se tornou uma aventura

bem-sucedida

como

esperado.

Colonização

de

planetas,

industrialização pesada, guerras interestrelares entre civilizações distantes são características.  Distopia apocalíptica: a humanidade, ou às vezes uma única nação ou grupo étnico, enfrenta um armagedom, seja ele de guerra nuclear, queda de meteoritos gigantes ou desastres naturais. Ainda há dúvida se esse subgênero é de fato distópico.

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Tradução livre. Fonte: http://whosthanny.com/entendendo-o-genero-distopia#ixzz32bKmXNau. Acesso: 24/05/2014.

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 Distopia pós-apocalíptica: autoexplicativa. Pode envolver anarquismo e regressão da sociedade, que acarreta muitas vezes totalitarismo.  Distopia alienígena: a Terra foi ocupada ou infiltrada por outra espécie de algum sistema solar distante. Um dos pontos fortes são as maneiras criativas de se falar dos choques culturais.  Distopia de viagem no tempo: em geral, são enviados agentes para o nosso tempo a fim de mudar a história, para que o futuro não seja uma distopia.

É interessante destacar, entre as muitas distopias não jovens existentes, algumas nacionais. Monte Veritá (2009), de Gustavo Bernardo, é um exemplo. Curiosamente, é o segundo livro da chamada Trilogia da Utopia, e aborda um futuro que amedronta a humanidade, com grandes discussões filosóficas e éticas. Já Blecaute (2007), de Marcelo Rubens Paiva, conta a história de três universitários que descobrem ser os únicos sobreviventes de uma catástrofe mundial. João Luís Ceccantini também considera Não verás país nenhum (1981), de Ignácio de Loyola Brandão, um clássico do gênero no Brasil, em que o futuro é triste, o meio ambiente está destruído e a população é dividida em castas. “Até mesmo Monteiro Lobato se aventurou em algo parecido no livro A chave do tamanho, de 1942” (CARNEIRO, 2013), completa ele, citando o livro do universo do Sítio do Picapau Amarelo em que Emília tenta desligar a “chave da guerra”, para tirar Dona Benta da depressão causada pela Segunda Guerra Mundial, e acaba movendo a “chave do tamanho”, que diminui a humanidade. É notável encontrar uma obra do gênero justamente em meio à literatura infantojuvenil, mas essa categorização não indica uma narrativa superficial; pelo contrário, ela pode ser lida também pelos adultos. Doutorando em Literatura e Vida Social pela Unesp, Thiago Valente (2008) mostra que, como o mundo da época parecia não conseguir enxergar a própria realidade, Lobato inverteu o ponto de vista, dessa forma podendo se distanciar e compreender melhor o contexto (p. 457). Após a redução, as pessoas ficam nuas, em um simbolismo do desnudamento das atitudes humanas, de suas contradições e da relatividade: instaura-se uma “nova ordem” (p. 458-9). A guerra é o assunto central da obra, que também trata de outros temas complexos, como a relatividade dos valores, o papel da ciência, as relações políticas do momento, a distorção dos fatos pela mídia, pelo governo (p. 460, 465). 37

Nesse livro, se transpõe os limites da veracidade e se adentra o terreno em que apenas a verossimilhança do universo ficcional pode possibilitar a narrativa. Ainda assim, é tudo muito real, pois entram em cena arquétipos fundamentais. É uma obra que nos revela a estranheza do nosso próprio mundo e rompe com os limites entre realidade e fantasia (p. 466-7). Existe a esperança na humanidade, em uma nova civilização dirigida pela ciência, pela inteligência (p. 461). Ao mesmo tempo, todas as conquistas, descobertas e realizações humanas precisam ser reconsideradas num mundo miniaturizado e valoriza-se o contemplar/vivenciar, não só o fazer/produzir (p. 462). Como um dos poucos livros infantojuvenis nacionais que tratam da Segunda Guerra Mundial, talvez o único que não faz uma apologia aos Aliados ou à participação do Brasil, a obra é original tanto no assunto quanto na construção de uma narrativa para crianças (p. 465).

Nesse livro, Lobato vale-se de uma temática própria do mundo adulto e a aplica ao universo infantojuvenil, direcionando sua obra para um público diferente, fazendo, digamos, uma adaptação, como bem gostava de fazer (vide suas adaptações de histórias estrangeiras). Ou seja, no processo de produção da obra, o leitor tem papel determinante, pois influencia na abordagem da temática. Esse ponto de vista é o da teoria da estética da recepção, que, apesar de costumar se ater ao estudo de uma mesma obra ao longo do tempo, também pode ser utilizada para perceber como um gênero ou tema desenvolve-se com o passar das décadas. Aqui, voltamos à questão da existência de uma literatura juvenil, de obras voltadas para um público específico, e não apenas a Literatura, com letra maiúscula, sem divisões. Segundo um dos grandes teóricos da estética da recepção, Hans Robert Jauss, o público é fator ativo do processo literário, pois as mudanças de gosto interferem não apenas na circulação e, consequentemente, na fama dos textos, mas também em sua produção (ZILBERMAN, 2011, p. 20).17 Lembrando a afirmação de María Teresa Andruetto “pode-se ser jovem de muitas maneiras e ter muitos acessos a leituras diferentes”, a teoria trata dessa tensão entre generalidade e particularidade: “Não há isto de um espírito de época, e sim, podese dizer, uma série de espíritos de época. Sempre será preciso distinguir grupos

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As referências à teoria de Jauss serão majoritariamente da obra teórica explicativa de Regina Zilberman (2011) sobre o tema.

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inteiramente diferentes, com ideais inversos de vida e sociedade” (ZILBERMAN, 2011, p. 21-2). Ao mesmo tempo, a escrita e a leitura dos livros funcionam com base nos chamados horizontes de expectativas: “conjuntos de códigos éticos, estéticos, religiosos, sociais, morais, filosóficos, etc., que regem as épocas de produção e recepção das obras e são introjetados, de modo particular, pelo autor e pelo leitor” (AGUIAR, 2006, p. 35). “O autor, no momento da construção da narrativa, opera o texto gerativamente buscando estabelecer uma interlocução com o universo simbólico do leitor” (GOUVÊA, 2007, p. 26). No ato de ler, o indivíduo responde, a seu modo, às indagações recebidas e formula novas questões, em um movimento de diálogo constante (AGUIAR, 2006, p. 35). A recepção “decorre da compreensão prévia do gênero, da forma e da temática de obras anteriormente conhecidas” (p. 38), ou seja, leitores de distopias já começam um livro com a expectativa de encontrar mundos destroçados, governos totalitários, questionamentos sociais, finais infelizes etc. O significado do livro depende dos sentidos que o leitor deposita nele. Se o destinatário busca nele elementos que não literários, ele deixará de ser uma experiência do tipo (ZILBERMAN, 2011, p. 30). Dessa forma, por exemplo, um leitor pode ver distopias como mero entretenimento e casos românticos, enquanto outro pode encará-las como alerta e crítica social. A obra só se atualiza se o leitor tiver uma posição questionadora, se ele se dispuser ao diálogo, e não buscar o desinteresse e a monotonia (Idem, p. 106). Toda obra provoca determinado efeito sobre o destinatário (horizonte implícito, intraliterário) e, ao longo do tempo, é recebida e interpretada de diversas formas, constituindo uma recepção, advinda das experiências de cada leitor, ou seja, extraliterárias. Isto é, coexistem o leitor implícito, “de certa forma uma criação ficcional”, imaginado para a obra, e o leitor explícito, o real, “concretizado” (p. 69, 71). Do mesmo modo, por exemplo, pensam-se livros para os jovens, mas que no fim das contas podem acabar sendo lidos também por outras faixas. Assim, é possível pensar na nova distopia, no direcionamento para o público jovem, com base na afirmação de que “o retorno de temas semelhantes em épocas diferentes não os faz iguais” (p. 46). É o que Jauss chama de revitalização de elementos fundamentais para as plateias contemporâneas e jovens. A temporalidade da obra, do gênero, da temática “expressa-se na aptidão a oferecer novas respostas ao público” (p. 39

53). O novo é uma qualidade móvel e a História se faz de avanços e recuos, reavaliações e retomadas de outras épocas e assuntos (p. 42). A consciência estética passa por transformações, pois mudam as normas literárias, que são elementos de estabilização do sistema e incluem também critérios ideológicos, morais, sociais. Elas indicam o caráter coletivo da percepção estética e mostram que a literatura é um fenômeno sempre em mutação, pois as normas são constantemente transformadas (p. 25-6). O tema da distopia e clássicos como 1984 mantêm-se vivos “em razão de uma tensão mais ou menos aberta entre questão e respostas, problema e solução, que pode suscitar uma compreensão nova e determinar a retomada do diálogo do presente com o passado” (p. 80). Dentro desse gênero, as distopias jovens retomam horizontes de expectativa para contrariá-los, afirmá-los, expandi-los (p. 39). Nesse sentido, Gregorin Filho (2011) afirma: Em diferentes épocas e com distintas finalidades, os enunciadores utilizam figuras nos processos de comunicação, podendo o enunciatário realizar diferentes leituras. Em cada nova utilização [...], há o acréscimo de novos sentidos, que vão sendo agregados ao núcleo que construiu a figura inicial (p. 601).

“Um novo texto não nasce de uma inocente e virginal matéria-prima, mas da ruína de outros discursos, da reciclagem do velho, do reconto, da metamorfização e atualização de mitos pelo tempo” (Idem, p. 63). Tzvetan Todorov (2012) concorda: “A literatura não nasce no vazio, mas no centro de um conjunto de discursos vivos, compartilhando com eles numerosas características” (p. 22). E Jonathan Culler (1999) complementa que as obras são tornadas possíveis pelas obras anteriores que elas retomam, repetem, contestam, transformam. Ler algo como literatura é considerá-lo como um evento linguístico que tem significado em relação a outros discursos (p. 40).

Além disso, no mundo atual, há uma grande “sociabilidade entre os textos”, um “entrelaçamento intertextual”, obras se alimentando de outras. Cecilia Bajour comenta que “a colagem tem se tornado não apenas um recurso potencial, como sempre ocorreu na tradição literária, e sim um princípio estético de especial popularidade na arte contemporânea”. Porém, faz um alerta sobre o fato de que “os cursos universitários sobre leitura e intertextualidade estão fadados a esbarrar numa dificuldade básica: o 40

limitado horizonte textual dos estudantes” (PRADES; LEITE, 2013, p. 37, 97), inviabilizando, às vezes, a identificação de referências. Mikhail Bakhtin (1986) segue nessa seara ao afirmar que “o texto só ganha vida em contato com outro texto (com contexto) [...], iluminando tanto o posterior como o anterior”. Trata-se de “um contato de personalidades e não de coisas” (apud KOCH; BENTES; CAVALCANTE, 2012, p. 16). Por mais renovadora que seja, nenhuma obra é uma novidade absoluta contida num vazio informativo (ZILBERMAN, 2011, p. 38). Pode-se dizer que as distopias jovens têm uma intertextualidade metagenérica, pois se desenvolvem dentro do gênero distopia, que tem propriedades temáticas em comum, fazem referência aos livros clássicos. Nessa perspectiva, as distopias atuais ganham uma nova dimensão, dialogando com as originais, mas, simultaneamente, atingindo de forma direta um público específico, ainda que possam agradar a todas as faixas. Neste início do século XXI, Todorov (2012) identifica a tendência da visão de mundo niilista: “os homens são tolos e perversos, as destruições e as formas de violência dizem a verdade da condição humana, e a vida é o advento de um desastre.” Em vez da negação da representação, a literatura torna-se “a representação de uma negação” (p. 42). Claro que o sucesso comercial das distopias provoca a “onda” atual de obras, mas também o clima negativista e apocalíptico da pós-modernidade propicia narrativas fatalistas. Sempre com protagonistas adolescentes acossados por governos totalitários e ambientes violentos, as distopias jovens podem oportunizar a obras do passado retomarem o diálogo com o leitor, lançando nova luz sobre as antigas, despertando interesse, fazendo a geração atual conhecê-las – o que, é claro, não significa necessariamente que irá lê-las. A novidade das atuais distopias diz respeito ao interesse de jovens entre 14 e 23 anos que nunca conviveram com governos totalitários. É um público bem diferente do que presenciou o lançamento de 1984, quando o mundo testemunhava a escalada do comunismo e o temor da aproximação de um futuro ditatorial (CARNEIRO, 2013). Porém, ainda há ditaduras e autoridades arbitrárias no mundo e não se pode se acomodar diante de aparentes democracias e liberdades. Até porque é nas pequenas coisas que começa a repressão, que, se não for combatida, pode se tornar algo insustentável.

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“Os jovens leitores imaginam a possibilidade de estar inseridos em uma sociedade que cerceará sua liberdade pessoal. Como isso acontece em determinadas partes do mundo, a ficção se torna verossímil”, explica Ana Martins, gerente editorial do selo Rocco Jovens Leitores, responsável no Brasil pelas sagas Jogos Vorazes18 e Divergente, as de maior destaque atualmente no país (CARNEIRO, 2013). Durante as manifestações ocorridas no Brasil em junho de 2013, era comum encontrar nas ruas adolescentes segurando cartazes com as frases “Toda revolução começa com uma faísca” e “Se nós queimarmos, você queimará conosco!”, ambas retiradas da trilogia Jogos Vorazes, doravante JV. A psicóloga Vera Zimmermann, coordenadora do Centro de Referência da Infância e Adolescência da Universidade Federal de São Paulo, tem uma opinião polêmica relacionada a uma contradição: “Por se sentirem demasiadamente livres e às vezes até mesmo abandonados pela família e pelo governo, os jovens se sentem atraídos por histórias com líderes controladores” (CARNEIRO, 2013). Quando se pensa em distopia jovem, surge primeiro na mente a série JV, a de maior sucesso e popularidade, que chamou a atenção dos leitores para o gênero. Porém, antes dela, já haviam algumas histórias do gênero. O Doador, de Lois Lowry, é um bom exemplo. Lançado nos Estados Unidos em 1993, e aqui no Brasil em 2009 pela Arqueiro, faz parte de uma tetralogia diferente, pois cada volume é narrado por um personagem distinto. O primeiro se passa numa sociedade totalmente controlada, privada de emoções e de lembranças. O protagonista é nomeado o novo Doador, responsável por preservar as memórias da sociedade, mas acaba se rebelando contra a situação vigente.19 Outro dos livros precursores é Battle Royale; inclusive, diz-se que a autora de JV o plagiou. A obra de Koushun Takami é originalmente de 1997, quando o escritor a submeteu ao Japan Grand Prix Horror Novel, concurso literário voltado para a ficção de terror, e acabou preterido na final. O júri se alarmou com a história do jogo macabro entre adolescentes de uma mesma turma escolar que, confinados numa ilha, têm de

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Devido ao alto número de vezes que será citado o nome da série, ela será chamada a partir de agora de apenas “JV”. 19 Com o boom distópico e a adaptação cinematográfica em 2014, o livro foi relançado com o nome de O Doador de Memórias, virando best-seller. O pôster (e, como é de praxe, a nova capa baseada nele) seguiu o modelo adolescente do casal em destaque, visto, por exemplo, em Divergente. O filme insere romance e ação na história, tornando-o muito mais “hollywoodiano” do que o livro é, provavelmente para atrair mais jovens.

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matar uns aos outros até que reste apenas um sobrevivente. O livro só foi lançado de fato em 1999, provocando polêmica. A repercussão foi tão intensa que apenas um ano depois já eram lançadas as adaptações para o cinema e para os mangás. Pela sinopse, já se vê o porquê das acusações de cópia, como se verá mais detidamente no próximo capítulo. Uma das diferenças em relação a JV, porém, é que todos os competidores do jogo já se conhecem antes, são até amigos. A justificativa da matança é mostrar para a população como o ser humano pode ser cruel e como não podemos confiar em ninguém – nem mesmo no nosso melhor amigo de escola. Enquanto JV é uma série sobre o “nós”, o coletivo, Battle Royale é sobre o “eu”: a competição é criada para ativar o desenvolvimento dos personagens da trama e a narrativa se foca na “jornada” de cada um. Uma das epígrafes do livro é de George Orwell, mesmo autor de 1984, só que neste caso retirada da obra Lutando na Espanha: homenagem à Catalunha, recordando a guerra civil e outros escritos. O trecho dela, a seguir, exemplifica bem o clima de Battle Royale e sua crítica política e social: “Havia no ar um sentimento perverso, singular – uma atmosfera de suspeita, medo, incerteza, ódio velado. [...] Parecia que passávamos o tempo inteiro sussurrando pelos cantos em cafés, nos perguntando se a pessoa na mesa ao lado era um espião da polícia” (p. 9). Independentemente de quem iniciou a nova onda distópica, o fato é que ela é um sucesso. Juntas, as séries JV, Divergente e Feios já tiveram mais de 970 mil exemplares comercializados no Brasil, sendo impulsionadas pelos filmes das duas primeiras. A saga JV, sozinha, vendeu mais de 600 mil livros no país, sendo a best-seller de 2011 (CARNEIRO, 2013). Em contraste com as distopias clássicas, que concentram a narrativa em apenas um volume, as atuais são sempre seriadas, uma característica constante da literatura jovem já citada no capítulo anterior.20 Quando perguntada do motivo para o recente boom distópico entre os jovens, Veronica Roth, autora da série Divergente, respondeu: Não acho que essa mudança de interesse necessariamente diz alguma coisa específica sobre nossos jovens. Talvez eles estejam mais interessados em personagens poderosos que lutam contra sistemas opressores [...]. As histórias distópicas podem ser mais sombrias, mas elas também mostram às pessoas a possibilidade de encontrar força na adversidade. São livros que 20

Battle Royale é um livro só mas enorme: mais de 650 páginas, num formato grande (16x23cm), que deve corresponder a dois volumes de JV (cada um com cerca de 400 páginas, no formato 14x21cm). Ou seja, uma das tônicas das obras jovens é a grande quantidade de páginas.

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reconhecem as dificuldades do mundo, mas que também sugerem caminhos para seguir adiante (MIRANDA, 2014, p. 1).

Para a brasiliense Bárbara Morais, de 23 anos, autora de A Ilha dos Dissidentes (Gutenberg), primeiro volume da trilogia Anômalos, a literatura distópica se destaca por fugir dos finais felizes. “Na adolescência, você fica desiludido e cético, percebe que os adultos não são heróis e que não há muito no que acreditar”, explica a jovem que estuda economia e frequenta cadeiras de ciência política na Universidade de Brasília (CARNEIRO, 2013). A obra de Bárbara se passa em um mundo pós-guerra dividido em dois. A protagonista é um dos anômalos, um grupo especial de pessoas com mutações genéticas e habilidades sobre-humanas que surgiram devido às guerras nucleares e tempestades solares. A sociedade, porém, considera-os aberrações e eles são obrigados a viver isolados, mostrando que ser diferente pode ser ainda mais difícil que viver em um mundo em conflito. Nessa primeira distopia descrita, além do cenário pós-apocalíptico e da divisão do mundo, há um elemento recorrente no gênero: a personagem principal é uma garota. Não se sabe o motivo, mas esse passou a ser um padrão, talvez porque os frequentes envolvimentos amorosos das protagonistas (sejam centrais ou não na narrativa) atraiam mais o público feminino. E isso se soma à constante presença de violência e ação, o que, de forma também estereotipada, pode trazer os leitores masculinos. Além disso, quase todos os autores das distopias atuais são mulheres, ao contrário dos escritores e protagonistas masculinos das obras clássicas. Para Veronica Roth, o destaque para as mulheres é “um sinal de progresso”: Quando eu era nova, a maioria das histórias que eu lia eram protagonizadas por homens jovens. Era como se estivéssemos ensinando as mulheres a se identificarem com personagens masculinos, mas sem nunca ensinar os homens a se identificar com as personagens femininas (MIRANDA, 2014, p. 2).

Outros aspectos comuns são a presença de um mundo “fora”, além da sociedade repressora, em que moram selvagens/rebeldes, e que é descoberto pela protagonista após ser desconstruída a farsa criada pelo governo ou organização no poder. Sendo adolescentes, os personagens passam por um “rito de passagem”, seleções, provas, algo comum na vida real, uma forma de metáfora. Apesar do público-alvo, Veronica Roth defende que não haja restrição nos temas abordados nas distopias e retoma a discussão sobre definição dos destinatários: 44

Acredito que meus leitores podem lidar com muitos assuntos. Quanto mais eu interajo com eles, mais fico convencida disso. Os jovens são diferentes entre si, há níveis distintos de sensibilidade. Então não tenho como generalizar sobre meu leitor, apenas procuro escrever o que considero ser o mais sincero e verdadeiro. Há muitos livros no mercado para jovens adultos, alguns mais e outros menos sombrios. Há histórias para todos os tipos de leitores, você só precisa procurar por elas (MIRANDA, 2014, p. 2).

Contextualizando, a narrativa da série Divergente (formada pelos livros Divergente, Insurgente e Convergente) apresenta uma nação dividida em cinco facções – Abnegação, Amizade, Audácia, Franqueza e Erudição –, cada uma com funções específicas. Muitos nascem e crescem dentro de uma facção e lá permanecem para o resto da vida, mas aos adolescentes é oferecida, uma única vez, a oportunidade de troca: é a fase de escolhas e responsabilidade própria desse período, intensificada pelo fato de que os que optam pela mudança são proibidos de viver com a família e, se não forem aceitos pela nova comunidade, podem ser expulsos e abraçar uma existência de marginalidade e miséria, em que não pertencerão a nenhum grupo. Ou seja, nada mais é do que uma representação extrema do momento de busca de identidade e pertença dessa faixa. Porém, além disso, trata-se de uma falsa utopia: a sociedade “ideal”, organizada assim para funcionar à perfeição, mostra-se ineficiente e com alto controle sobre a liberdade de seus indivíduos. A boa e velha natureza humana de querer dominar e corromper tudo começa a aparecer e os governantes desejam apenas pessoas que pensem de uma só maneira, pois assim é muito mais fácil manipulá-las segundo seus interesses, gerando a alienação. Não à toa, os Divergentes – indivíduos como a protagonista, que têm diversas habilidades, não se encaixando em uma facção – são um perigo para a ditadura e devem ser eliminados. Apesar de haver o lado político, a trilogia foca mais na natureza humana em si, com momentos mais filosóficos e/ou sociológicos. Veronica Roth vê, então, diferenças entre a sua distopia e as clássicas, que “oferecem, através de exageros, algum tipo de análise política ou social”: Não acho que alguém acredite que nossa sociedade esteja à beira de ser dividida em facções baseadas em virtudes. Mas, para mim, as facções foram uma maneira de explorar a natureza humana, como as pessoas atuam em grupos [...] e o que acontece quando perseguimos uma coisa que é excludente a 45

outra. [...] não quis passar uma mensagem específica. A não ser, talvez, sobre nossa tendência nociva de ficar categorizando as pessoas (MIRANDA, 2014, p. 1).

Na verdade, nas distopias clássicas, não necessariamente o autor considerava que aquela realidade completa fosse se concretizar, mas muitos elementos operavam como símbolos de situações potenciais e, até, de circunstâncias já presentes no mundo atual. A metáfora e a alegoria têm grande papel nessas narrativas e podem também estar presentes nas novas distopias, em maior ou menor grau, como poderá ser visto no compilado a seguir das obras recentes. Nestas descrições, ficará de fora a saga pioneira, Jogos Vorazes, porque ela será objeto de estudo bem mais detalhado no próximo capítulo. A tetralogia Feios (Feios, Perfeitos, Especiais e Extras), de Scott Westerfeld (Galera) – a primeira a chegar ao Brasil, em 2010, junto com JV –, tem como enfoque a busca desenfreada pela beleza. Séculos depois da destruição da civilização industrial em um apocalipse ecológico, a humanidade vive em cidades-bolha cercadas pela natureza selvagem: a sociedade é dividida entre os feios, que ocupam uma cidade onde ninguém se importa com a aparência, e os perfeitos, que vivem em uma cidade glamorosa e repleta de festas. Ao completar 16 anos, os “feios” são submetidos a uma cirurgia plástica, para corrigir sua aparência e torná-los “perfeitos”, ou seja, todos idênticos, sem respeito à individualidade. A trilogia de Ally Condie composta por Destino, Travessia e Conquista (Suma de Letras) também é uma falsa utopia, como são a maioria das distopias. O governo, chamado de Sociedade, controla cada passo dos cidadãos, cria cronogramas para o trabalho e indica a profissão que todos devem seguir, a hora em que podem se divertir (a liberdade do cidadão se limita à escolha de uma opção de entretenimento), a pessoa com quem irão se casar e o momento em que devem morrer. Como os cidadãos nascem sendo controlados, consideram tudo natural e inquestionável, a exemplo do que se pode ver em Admirável mundo novo. Na série de Lauren Oliver constituída por Delírio, Pandemônio e Réquiem (Intrínseca), o amor é tido como uma doença perigosa e o governo decidiu erradicá-lo. A “cura”, concedida às pessoas quando completam 18 anos (justamente na passagem da adolescência para a juventude), mantém a população sob controle, sem os problemas causados pelas paixões e idealismos, que podem acender revoluções, um elemento 46

também explorado por George Orwell e Aldous Huxley: a automatização dos relacionamentos humanos. O foco no amor e nas paixões como motivação é o ponto que a difere das outras séries. Starters e Enders (Novo Conceito), de Lissa Price, são um caso raro de duologia, pois as séries costumam ter no mínimo três livros. Na história, um vírus matou todas as pessoas entre 18 e 65 anos, os únicos que não haviam sido vacinados contra o mal. A sociedade ficou então dividida entre os Starters, grupo de crianças e adolescentes que perderam os pais, e os Enders, os sobreviventes mais velhos. Portanto, há muitos órfãos, como os protagonistas, que passam a viver em prédios abandonados e a batalhar para conseguir comida. Nessa sociedade, há um banco de corpos ilegais, onde sobreviventes mais ricos podem escolher e adotar corpos de jovens pobres, que têm a consciência desligada. O que se vê é uma desigualdade social radical, em que o dinheiro compra pessoas, utilizadas de forma intrusiva. Puros (Intrínseca), de Julianna Baggott, é o primeiro livro de uma trilogia, o único lançado no Brasil por enquanto. Nele, o mundo foi reduzido a cinzas e poeira devido aos efeitos de bombas nucleares e a maioria dos sobreviventes acabou fundida a objetos, animais e a outros seres humanos. Os que escaparam ilesos do apocalipse são os Puros, mantidos no Domo, que protege seus corpos saudáveis e superiores, mas se transformou em uma prisão claustrofóbica. É uma realidade pós-apocalíptica mais cruel do que o normal, sem amenidades. O trecho dos agradecimentos do volume abaixo mostra o processo de escrita da autora e a sua preocupação com problemáticas atuais: A pesquisa para este livro levou-me a relatos sobre os efeitos causados pelas bombas atômicas lançadas em Hiroshima e Nagasaki. Durante o processo de edição, encontrei o livro de não ficção O último trem de Hiroshima, de Charles Pellegrino [...]. Foi uma leitura fundamental para mim, devido à forma como retrata os mortos e os sobreviventes. Espero que [...] Puros conduza as pessoas a obras não ficcionais sobre a bomba atômica – horrores que não podem ser esquecidos (BAGGOTT, 2012, p. 366).

Já O Pacto (Rocco Jovens Leitores), de Gemma Malley – primeiro de uma trilogia –, trata de uma questão importante da atualidade: o superpovoamento, que ameaça o equilíbrio do planeta, propiciado pelo avanço da medicina e o prolongamento da vida. Uma declaração, o Pacto, proíbe a população de ter filhos e, caso alguém venha ao mundo, é considerado Excedente e deve ser levado para uma instituição, a fim de ser 47

transformado em um Ativo Valioso, pelo menos útil à sociedade de alguma forma. Ou seja, o que impera é o utilitarismo. O teste (Única), de Joelle Charbonneau – parte de uma série de três –, mostra um planeta que se transformou em um deserto carbonizado cuja reconstrução está nas mãos de jovens escolhidos em um teste. Os aprovados passam a ser membros de um grupo de elite, agraciados com a chance de ter uma educação universitária e uma carreira gratificante. Claramente, a história remete ao período de vestibular, escolha de profissão, tomada de decisões que afetarão toda a vida, em paralelo com as questões humanas levantadas pela saga Divergente. Na trilogia de Tahereh Mafi formada por Estilhaça-me, Liberta-me e Incendeiame (Novo Conceito), entra em cena a discussão do preconceito na figura da protagonista, presa em uma cela há quase nove meses porque possui uma mutação: qualquer ser em que toca é machucado, contaminado. A narrativa é ambientada em um mundo devastado, em que plantas e animais definham, as pessoas sofrem de fome e doenças e racionam água e energia. Os fracos e indefesos são excluídos pela instituição no poder, que promete reerguer a humanidade com base em medidas extremas que, em tese, seriam provisórias. Um governo que lembra muito bem o nazista, de aniquilação dos considerados “párias” e de grandes promessas que iludem a população. Never Sky: sob o céu do nunca (Prumo), de Veronica Rossi – primeiro de uma trilogia –, enfoca a utilização alienada da tecnologia para fugir à dor e ao medo, exibindo núcleos humanos em que dispositivos eletrônicos propiciam a vivência em diferentes Reinos, cópias virtuais e multidimensionais do mundo anterior às catástrofes mundiais, onde se pode ser qualquer pessoa e fazer de tudo, em detrimento do mundo real e das pessoas que vivem ainda nas regiões selvagens. Em Eva (Galera), primeiro livro da trilogia de Anna Carey, homens e mulheres vivem segregados e atuam em campos de trabalho forçado, vivendo para servir o governo. Silo (Intrínseca), de Hugh Howey, integra o conjunto mais exagerado de todos: além de uma série de cinco, há uma prequência de três livros e mais um volume que liga as duas partes. Apesar do excesso, a princípio não parece levantar nenhuma questão diferente; a novidade reside no fato de que a sociedade totalitária vive debaixo da terra, em silos enormes de 144 níveis, pois a superfície tornou-se inabitável. A Seleção, A Elite e A Escolha, de Kiera Cass, formam uma distopia jovem leve – o que é uma contradição –, publicada pelo selo Seguinte, da Companhia das Letras. 48

As capas dão a impressão de ser um chick-lit21 ou um conto de fadas, impressão intensificada pelo fato de a história se passar em uma monarquia absolutista:

A sociedade é dividida em castas e uma mulher só pode mudar de posição social se casar com alguém de um estrato acima ou se for escolhida para a Seleção, um reality show que confina no castelo do rei 35 garotas com o intuito de conquistar o coração do príncipe, também concedendo benefícios à família da candidata. Ou seja, um JV ameno. Os livros só adotam um tom mais político quando a protagonista tenta mostrar ao príncipe a realidade de pobreza vivida pelas camadas mais baixas da sociedade e surgem grupos rebeldes fora da cidade decididos a derrubar o poder. Finalizando, a série de James Patterson da Novo Conceito, iniciada por Bruxos e bruxas, O dom e O fogo (ainda haverá um quarto livro), distingue-se por ter um tom sobrenatural. Numa sociedade de censura cultural – sem música, internet, livros, arte –, o governo persegue adolescentes que fazem uso de magia e podem incitar uma revolução. Nessa seara, a Rocco lançará Bone Season (ainda sem título em português), da jovem Samantha Shannon, uma distopia sobrenatural, primeiro volume de uma heptalogia. O fantástico fica por conta de jovens com poder de prever o futuro e adentrar sonhos dentro de uma cidade oculta controlada por uma raça poderosa. Talvez esse subgênero seja a nova tendência, que mescla características do gênero que consagrou a série Harry Potter. Como se vê, a distopia tem presença maciça no mercado, representada por pelo menos 10 editoras – naturalmente, não é possível contemplar todos os lançamentos e 21

Ver Nota 10, do capítulo anterior.

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vários ainda virão. Nesse gênero, a Rocco está na frente: 3 livros publicados pelo selo Jovens Leitores e 1 pela Prumo, do mesmo grupo, e 1 previsto para este ano de 2014. Em seguida, Intrínseca e Novo Conceito, com 3, e Galera com 2. Isso mostra o investimento da Rocco após o sucesso de JV, além do atual destaque da Divergente, assim como a diversidade de apostas, fruto do destaque distópico. Diante de uma produção totalmente nova e diferente como essa, que dialoga com obras clássicas, Cecilia Bajour defende que os cânones sejam permeáveis entre o que os jovens estejam construindo e o que os adultos podem transmitir (PRADES; LEITE, 2013, p. 99). E Patrícia Leite completa: “Os interesses [...] mudam, [...] devemos estar abertos a interesses novos e a coisas que não conhecemos” (P&L, p. 102).22 Azucena Ortega acrescenta: “Que os jovens tenham a liberdade de exercer o seu direito de ler ou não ler” (SERRA, 2013, p. 47). E o escritor francês Daniel Pennac (1999) concorda: “Um dos direitos inalienáveis do leitor é o „direito de ler não importa o quê‟” (apud MERGULHÃO, 2006, p. 11). A bibliotecária Geneviève Patte ainda afirma a importância de não se impor ao jovem uma leitura normativa, pois cada um tem sua sensibilidade (P&L, p. 95). A obra jovem deve ser considerada na relação com o horizonte dentro do qual apareceu, e não a partir das preferências e critérios pessoais de quem a estuda (ZILBERMAN, 2011, p. 41). A pedagoga e psicóloga Marcia Wada opina que o trabalho com os jovens deve considerar principalmente o que mais os toca e levá-los a pensar: “O que me inquieta? O que eu estranho? O que me surpreende? O que de alguma forma me mobiliza?” (P&L, p. 83). “O que os jovens consideram importante é ter algo para defender, lutar, algo que traga estranheza, que o maravilhe, ou que ache horrível, que o faça se sentir parte da sociedade, se sentir cidadão” (Idem, p. 84). As distopias justamente reúnem essas características e reações que mobilizam. A alta distópica também pode ser explicada pelo processo exposto por Nelly Novaes Coelho (1993). Segundo ela, a cada época, o realismo ou o imaginário predomina no ato criador ou no gosto do público. Anteriormente, à medida que avançava no conhecimento científico do mundo e começava a explicar os fenômenos pela razão ou pelo pensamento lógico, o homem exigia da literatura uma atitude “científica” que pudesse representar o real. Porém, esses períodos “racionais”

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Para não se repetir sempre “PRADES; LEITE, 2013”, será usado “P&L”.

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começaram a se alternar com “épocas de grande descrença nas verdades exatas e, consequentemente, de redescoberta da fantasia, da imaginação ou da magia” (p. 48-9). De acordo com Nelly, às vezes o próprio avanço da ciência pode provocar um deslocamento do enfoque realista para o fantasista, originando a ficção científica, que projeta o real, de forma positiva, neutra ou negativa. “As forças da Fantasia, do Sonho, da Magia, da Imaginação, do Mistério, da Intuição, etc. são desencadeadas como novas possíveis formas-de-representação da experiência humana” (Idem, p. 50). Na atualidade, estaríamos vivendo uma época tanto de desencanto com o racionalismo quanto de projeção do real com base no avanço científico, que poderia acarretar catástrofes. Patrícia Leite destaca que, atualmente, discute-se muito a sustentabilidade do planeta, com discursos fatalistas ou de salvação. A ideia é de um futuro que não é aberto indefinidamente, que está presente, e isso afeta o jovem (P&L, p. 90). Marie Ange Bordas complementa que o tempo e o espaço são conceitos que mudaram totalmente no século XXI. Diante da realidade, o jovem tem duas atitudes paradigmáticas: de protagonista e ator social ou de indivíduo com falta de perspectiva, em especial devido a um mundo definido pelo consumo (Idem, ibidem). Os jovens transgridem para serem reconhecidos num mundo que convive com as ruínas de paradigmas do passado, em meio à liquidez da sociedade e das relações humanas, e tendem a questionar toda espécie de autoritarismo e de instituições (GREGORIN FILHO, 2011, p. 31). Assim, as distopias se encaixam bem com essa faixa e permitem criação de novos mundos e novas visões, dentro do conceito da literatura: “Se a leitura desperta o espírito criativo, que é a chave de uma cidadania ativa, é porque permite um distanciamento, uma descontextualização; mas porque também abre um espaço para o devaneio, no qual outras possibilidades são cogitadas” (PETIT, 2008 apud DOURADO, 2011). Regina Zilberman (2011) dá prosseguimento ao raciocínio: Como a percepção diária está por demais viciada, o espelhamento realista confundir-se-ia com o déjà vu e perderia o efeito; por isso, cumpre investir no diferente, que não precisa coincidir necessariamente com o novo; pode ser o que permaneceu escondido ou reprimido (p. 61-2).

Na distopia, diante da realidade exagerada, apocalíptica, abrem-se os olhos do leitor. Não é algo novo, mas uma retomada diferente. Assim como Teresa Mergulhão 51

(2006) diz em relação à literatura infantil, a distopia “permite, devido às leis [...] da ficcionalidade que a gerem, o desenvolvimento da imaginação e do pensamento divergente, a modelização do mundo e a construção de universos, ao mesmo tempo que [...] dá resposta (ainda que de forma sutil) aos enigmas da vida e da identidade pessoal” (p. 12). De fato, o jovem deve ter um pensamento divergente, não alienado, mas segundo suas próprias crenças e opiniões. Como em toda obra, mas de forma extrema na distopia, não há uma reprodução do real, mas sua reconstrução com base em signos, trazendo para a escrita a compreensão do autor da realidade. Para destacar essa ideia, Maria Cristina Gouvêa (2007) cita Antonio Candido, que afirmou: “A fantasia [...] às vezes precisa modificar a ordem do mundo justamente para torná-la mais expressiva” (p. 23). E, aqui, a fantasia tem a acepção de criação ligada à realidade, mas extrapolando-a, em meio a especulações e projeções. Diferente de outros gêneros, ela admite que não representa a realidade, mas a interpreta. A separação da realidade sinaliza algo importante ao seu leitor: [...] demanda um exercício de poder de tradução. É a fantasia que leva [os leitores] às perguntas mais complexas sobre a condição humana. E não se pode exigir mais de um livro do que isso (PERISSÉ, 2012, p. 71).

Não se trata de escapismo – até porque em ficção realista ele também está presente. Esse tipo de criação “amplia a imaginação, o intelecto, e a emoção de maneiras que incentivam, mais que desencorajam, [os leitores] a se engajarem na vida real” (BAKER, 2010 apud PERISSÉ, 2012, p. 39). Na distopia, é possível ver a seguinte afirmação de Todorov (2012): “Mais densa e mais eloquente que a vida cotidiana, mas não radicalmente diferente, a literatura amplia o nosso universo, incitanos a imaginar outras maneiras de concebê-lo e organizá-lo” (p. 23). Isso porque, apesar de, na superfície, ser radicalmente diferente, ainda residem ali as mesmas questões humanas, sociais, políticas que movem o leitor no mundo real, concebidas e organizadas de outras formas. No Manifesto por um Brasil literário, Bartolomeu Campos de Queirós afirma: “É no mundo possível da ficção que o homem se encontra realmente livre para pensar, configurar alternativas, deixar agir a fantasia” (PRADES; LEITE, 2013, p. 7). E María Teresa Andruetto completa: “A linguagem [...] é uma ficção, uma mentira que nos permite buscar uma verdade que, às vezes, não podemos encontrar de outra maneira” 52

(Idem, p. 79). Por meio das elucubrações, de invenções de mundos estranhos, é possível ver um problema de forma mais vívida. Laura Sandroni comenta que, “ao falar diretamente à imaginação e à sensibilidade, o texto literário, por sua força criadora sem compromisso com a realidade, embora em sintonia com ela, pode oferecer ao leitor o admirável mundo novo a ser explorado durante toda a vida” (SERRA, 2013, p. 100).23 Oscar Wilde (1996) corrobora essa ideia, citado por Todorov (2012): A vida em si é “terrivelmente desprovida de forma”. Dessa ausência, resulta o papel da arte: “A função da literatura é criar, partindo do material bruto da existência real, um mundo novo que será mais maravilhoso, mais durável e verdadeiro do que o mundo visto pelos olhos do vulgo” (p. 66).

Na verdade, na distopia, esse mundo novo não será nada maravilhoso, mas com certeza mais durável e verdadeiro, saltando aos olhos. A literatura deve ter confronto, mexer em questões centrais, ser ofensiva, incômoda (P&L, p. 89). E nada mais incômodo do que um mundo devastado, assolado pela guerra, por catástrofes ambientais e outras intempéries – ainda que, às vezes, estetizado para amenizar o impacto. “As verdades desagradáveis – tanto para o gênero humano ao qual pertencemos quanto para nós mesmos – têm mais chances de ganhar voz e ser ouvidas numa obra literária do que numa obra filosófica ou científica” (TODOROV, 2012, p. 80). Beatriz Helena Robledo fala sobre experiência estética como o efeito provocado por um texto que toca e coloca a pessoa em “outro lugar”, que a move interiormente e modifica sua consciência (P&L, p. 52). É o conceito de emancipação usado por Jauss: “finalidade e efeito alcançado pela arte, que libera seu destinatário das percepções usuais e confere-lhe nova visão da realidade” (ZILBERMAN, 2011, p. 55). Algo que desestabiliza e expande horizontes. Para Jauss, a obra deve ser encarada sob o ponto de vista do estranhamento: deve haver uma tensão entre o leitor e o livro para que exista valor (Idem, p. 23). Ou seja, as distopias precisam ser lidas diante das questões que não acomodam o destinatário, mas, sim, o fazem pensar de forma diferente. Porém, a recepção não representa apenas um envolvimento intelectual, mas também sensorial e emotivo (p. 56), e isso parece ser muitas vezes esquecido pelos estudos acadêmicos, pois se trata de algo subjetivo, logo desdenhado. 23

Grifo meu devido à referência à obra distópica.

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Beatriz Robledo indaga: “Nesta sociedade utilitarista, [...] que bom pensar que [a literatura] não serve para nada, não? Trata-se um pouco de voltar à gratuidade, essa condição de prazer estético” (P&L, p. 50). Para Aristóteles, a catarse enquanto experiência vivida pelo leitor é condição fundamental para definir a qualidade de uma obra (ZILBERMAN, p. 19). “Há no texto ficcional muita realidade, que não só deve ser identificável como realidade social, mas que também pode ser de ordem sentimental e emocional” (ISER, 1996 apud PAULINO, 2000, p. 44). Ou seja, o prazer, a experiência com o texto são elementos importantes, que não devem ser relegados. A recepção do leitor não pode ser discriminada, considerada válida apenas como efeito da indústria cultural e dos produtos meramente comerciais, pois, segundo Jauss, há os atos de fruição compreensiva e compreensão fruidora, em que se alternam prazer e conhecimento (ZILBERMAN, 2011, p. 58-9). Essa discussão coloca em pauta a questão de que as distopias, para além da problemática social e política, podem também provocar prazer e não serem julgadas apenas por critérios estéticos – e isso vale igualmente para o restante da literatura jovem. Taize Odelli comenta que boa parte dos leitores não costuma comentar os livros de maneira acadêmica ou expondo grandes teorias sobre a leitura, mas gostam de falar sobre o que sentiam quando estavam lendo e o que o livro despertava neles como pessoas e como leitores (SERRA, 2013, p. 106). Mesmo consumindo uma literatura mais voltada para o entretenimento – e não vejo nenhum problema em um livro ser divertido –, estamos aprendendo algo além da diversão de uma forma diferente daquela proposta na escola. Também na leitura dos clássicos conseguimos tirar uma experiência com mais entretenimento (Idem, p. 107-8).

A consagrada escritora Laura Sandroni prossegue o debate: A literatura destinada aos jovens deveria pautar-se por temas apenas divertidos, sem consequências, mero passatempo? Ou seria aconselhável aproveitar a fase inicial da formação do leitor [...] para aproximá-lo dos bons escritores do passado e dos contemporâneos? Se a leitura torna-se um gosto adquirido desde os primeiros anos, podemos responder sim às duas perguntas (Idem, p. 99).

E por que não um meio-termo: obras que entretenham mas tenham “consequências”? “Certamente que o „ler por ler‟ bastaria e seria a situação ideal e utópica a ser atingida, levando-se em conta o papel fundamental que a leitura da 54

literatura, por si, pode exercer na formação do ser humano” (CECCANTINI, 2011, p. 160). Jorge Coli, professor de História da Arte e de História da Cultura pela Unicamp, escreve na orelha de A literatura em perigo, de Todorov: “As teorias literárias, embriagadas consigo próprias, fizeram com que, em muitos casos, o prazer da literatura fosse substituído pelo prazer da própria engenhosidade analítica.”24 O próprio autor russo completa: “É verdade que o sentido da obra não se resume ao juízo puramente subjetivo [...], mas diz respeito a um trabalho de conhecimento. [...] Entretanto, em nenhum caso o estudo desses meios de acesso pode substituir o sentido da obra, que é o seu fim” (TODOROV, 2012, p. 31). Senão, dificilmente surgirá o amor pela literatura, uma pulsão que nunca deve ser contida como se fosse antiacadêmica. Para Caio Meira, autor da apresentação à edição brasileira do livro de Todorov, “o perigo que hoje ronda a literatura é [...] o de não ter poder algum, o de não mais participar da formação cultural do indivíduo, do cidadão” (p. 8), que é deixada a cargo do cinema e da música. “A arte poética e ficcional deve ser apresentada em primeiro lugar em seu estranho poder imprevisto, encantador, emocionante, de forma a criar raízes profundas o suficiente para que nenhum corte analítico ou metodológico venha a podar sua presença criadora” (p. 12). Além disso, Todorov (2012) levanta uma questão muito importante: Cava-se um abismo entre a literatura de massa, produção popular em conexão direta com a vida cotidiana de seus leitores, e a literatura de elite, lida pelos profissionais – críticos, professores e escritores – que se interessam somente pelas proezas técnicas de seus criadores. De um lado, o sucesso comercial; do outro, as qualidades puramente artísticas. Tudo se passa como se a incompatibilidade entre as duas fosse evidente por si só, a ponto de a acolhida favorável reservada a um livro por um grande número de leitores tornar-se o sinal de seu fracasso no plano da arte, o que provoca o desprezo ou o silêncio da crítica (p. 67).

De fato, há inúmeros preconceitos e uma segregação, fazendo com que as obras jovens não sejam consideradas nem literatura. Porém, segundo Antonio Candido (2004), a literatura compreende “todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade”, até mesmo sem abranger apenas livros. “Não há

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Coli faz um comentário interessante, especialmente para esta monografia: a adaptação cinematográfica de Fahrenheit 451, que expõe o amor aos livros e reclama o direito ao prazer da leitura, é de 1966, ano em que o estruturalismo e o formalismo, preocupados apenas com a estética, dividiam os estudos literários.

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homem que possa viver sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de efabulação” (p. 174). Com base nessa afirmação, Fabíola Farias questiona: “O que a literatura nos oferece além dessa história que contamos, além dessa fabulação diária? Ela nos dá a possibilidade de construir imagens, sentidos e imagens literárias” (P&L, p. 54). Assim, o leitor comum continua a procurar nos livros aquilo que pode dar sentido à sua vida, pois não acredita que a literatura só fale de si mesma; se assim fosse, ela estaria condenada a desaparecer num curto prazo (TODOROV, 2012, p. 77). Ela pode nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver. Não que ela seja, antes de tudo, uma técnica de cuidados para com a alma; porém, revelação do mundo, ela pode também, em seu percurso, nos transformar a cada um de nós a partir de dentro. A literatura tem um papel vital a cumprir (Idem, p. 76).

Na distopia, por exemplo, a literatura fornece a possibilidade de “vivermos dialeticamente os problemas” e nos humaniza: nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante (CANDIDO, 2004, p. 175, 180), diante de uma situação extrema. Ela dá forma aos sentimentos e à visão do mundo; nos organiza e nos liberta do caos, apesar de, paradoxalmente, exibir algo caótico. Instrumento de desmascaramento, ela focaliza as situações de restrição ou negação dos direitos, como a miséria, a servidão, a mutilação espiritual (Idem, p. 186). Pensar e sentir adotando o ponto de vista dos outros [...] é o único meio de tender à universalidade e nos permite cumprir nossa vocação. É por isso que devemos encorajar a leitura por todos os meios – inclusive a dos livros que o crítico profissional considera com condescendência, se não com desprezo, desde Os três mosqueteiros até [a série] Harry Potter: não apenas esses romances populares levaram ao hábito da leitura milhões de adolescentes, mas sobretudo, lhes possibilitaram a construção de uma primeira imagem coerente do mundo, que, podemos nos assegurar, as leituras posteriores se encarregarão de tornar mais complexas e nuançadas (TODOROV, 2012, p. 82).

Não que essas histórias também não possam ser complexas, nuançadas, mas, conforme diz Nelly Novaes Coelho (1993), a verdadeira evolução se faz ao nível de consciência de mundo que cada um vai assimilando desde a infância (p. 14). E Ana Maria Machado (2011) acrescenta que a leitura é “uma oportunidade de libertação da 56

imaginação com todo o seu potencial, com seu patrimônio de tudo o que existe, existiu ou poderia existir”, dentro dos possíveis mundos do futuro (p. 21). Após divisarmos o rico horizonte da distopia, é necessário agora, no próximo capítulo, contemplá-lo numa obra mais específica, relacionando-a a tudo o que foi trabalhado aqui e inserindo-a no campo da literatura. A escolhida, como já dito anteriormente, é a série Jogos Vorazes.

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4. Jogos Vorazes: um estudo de caso

4.1 - CORPUS E METODOLOGIA A trilogia Jogos Vorazes é uma das pioneiras entre as obras distópicas jovens. Lançada em 2008 nos Estados Unidos e em 2010 no Brasil, é a mais bem-sucedida do filão, com mais de 65 milhões de cópias vendidas nos Estados Unidos, 25 comercializada para 56 países e traduzida para 51 idiomas. A autora Suzanne Collins escreveu outra saga, Crônicas do Subterrâneo, voltada para o público infantil, e passou a maior parte da vida adulta roteirizando programas para crianças na idade pré-escolar. Uma figura avessa à imprensa, às mídias, ela foge ao estereótipo moderno, de interação recorrente com os fãs, dando pouquíssimas entrevistas. Por isso, ela comenta: “Jogos Vorazes está sendo o foco das atenções. Isso vai passar. O foco vai mudar. Isso sempre acontece. E isso me parece bom” (DOMINUS, 2011).26 O fato de ser de uma família militar influenciou muito sua escrita. Seu avô morreu asfixiado por gás na Primeira Guerra Mundial e seu tio tinha ferimentos de estilhaços da Segunda; além disso, a guerra era o principal assunto de conversa do pai, que, em 1968, foi servir no Vietnã. A ansiedade provocada pela ausência paterna tornou-se de suma importância na ficção de Collins: as Crônicas do Subterrâneo começam com um garotinho em busca do pai desaparecido; em Jogos Vorazes, a morte do pai da protagonista força-a a ser o sustentáculo da família, no papel de uma adulta. Da mesma forma, a luta do progenitor de Collins para se recuperar da guerra influenciou-a, já que, na infância, ela acordava com os gritos dele em meio a pesadelos, e esses sonhos duraram a vida toda do pai. Sua nova obra – agora infantil – ainda a ser lançada, baseia-se no ano em que ele serviu, com ilustrações inspiradas em fotos de família dessa época. “Eu queria fazer esse livro [...] porque sei que muitas crianças estão experimentando agora isto: ter os pais convocados para a guerra” (DOMINUS, 2011). Portanto, pode-se ver que o tema da guerra é essencial na vida de Suzanne. Assistindo a uma filmagem da guerra no Iraque logo após passar por um canal que transmitia um reality show, surgiu para Suzanne a premissa para os Jogos Vorazes.

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Números de 31/1/2014 da The New York Times Magazine. Todas as citações com referência DOMINUS, MALONEY, MILLER, DEAN e MILLWARD são traduções minhas do inglês. 26

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Composta pelos volumes Jogos vorazes, Em chamas e A esperança, a trilogia se passa em um futuro sombrio num país chamado Panem, localizado onde atualmente é a América do Norte, formado por 12 distritos e pela Capital, sede do governo ditatorial, instituído após a repressão de uma revolta. Para validar o seu poder, como lembrança de que os dias de rebelião jamais deveriam se repetir, uma vez por ano a Capital promove os Jogos Vorazes, um reality show televisionado em que 24 jovens, entre 12 e 18 anos, são sorteados em cada distrito e levados para uma arena onde devem lutar até a morte. Quando sua irmã, de 12 anos, é selecionada, Katniss, a protagonista, se voluntaria para participar dos Jogos. Após desafiar a Capital e sobreviver ao lado de outro garoto de seu distrito, Peeta, ela dá esperança ao povo e o governo faz de tudo para sobrepujá-la, enviando-a a uma edição especial dos Jogos, mas não há jeito: a guerra se instaura e Katniss torna-se o símbolo da rebelião. Percebe-se que essa distopia, ao contrário de várias outras clássicas e jovens, não é uma falsa utopia, em que as pessoas acham ser felizes, pois desde o começo há opressão e miséria. Como bem resume uma resenha do The New York Times, “uma crítica aberta à violência, a série transforma a guerra em algo profundamente pessoal, forçando os leitores a contemplar seus papéis de voyeurs insensíveis” (DOMINUS, 2011). Além disso, desde o título – especialmente o original, “Hunger Games” –, já se destaca uma das questões cruciais da saga: a fome, ligada aos jogos pela sobrevivência, pela comida, como se explicará melhor mais adiante. A discussão sobre a liberdade também é uma constante, presente até mesmo na “narrativa” contada pelas capas: o tordo imobilizado num broche, na mira do inimigo e liberto dos grilhões.

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Para a análise de Jogos Vorazes, optou-se por uma abordagem que privilegia o sentido e seu dialogismo, segundo o que diz Todorov (2012): “Estudamos mal o sentido de um texto se nos atemos a uma abordagem interna estrita, enquanto as obras existem sempre dentro e em diálogo com um contexto” (p. 32). A análise das obras feita na escola não deveria mais ter por objetivo ilustrar os conceitos recém-introduzidos por este ou aquele linguista, este ou aquele teórico da literatura, quando, então, os textos são apresentados como uma aplicação da língua ou do discurso; sua tarefa deveria ser a de nos fazer ter acesso ao sentido dessas obras – pois postulamos que esse sentido, por sua vez, nos conduz a um conhecimento do humano, o qual importa a todos (Idem, p. 89).

Ou seja, a análise de JV será conduzida em direção ao que o livro pode trazer para nossas vivências, nosso cotidiano, nossa sociedade, o ser humano etc., sem pretender esgotar interpretações e estudos diversos sobre a série e sem se preocupar com estilo literário e formalismo. Deve-se lembrar que a obra é aberta: ela permite várias leituras, mas não todas, que estão inscritas na obra como “virtualidades textuais” (ECO, 2007 apud FIORIN, 2009, p. 49). Além disso, só serão concretizadas significações que apareceram no horizonte do leitor, só o que ele absorve de conhecimento e de referências: “A estrutura textual é concebida a partir de indicações, pontos de indeterminação e vazios, logo o receptor é um elemento ativo no processo de leitura, dentro do conceito de R. Ingarden da concretização” (ZILBERMAN, 2011, p. 18). Dessa forma, cada detalhe que compõe a narrativa pode ser importante para a trama como um todo e é necessário um trabalho minucioso, árduo: “examinemos as pequenas coisas escondidas ou disfarçadas na construção, devassando o modelo de mundo criado, insinuando-nos nas frestas deixadas pelo escritor para que possamos inventar também”, pois a construção de uma obra ficcional nunca é completa (CADEMARTORI, 2009, p. 46, 49). Deve-se ter uma visão diferenciada da que têm outros que veem o mesmo espetáculo, ingressando-se com a imaginação, a experiência, a capacidade para completar e refazer (Idem, p. 45, 50). Na releitura dessa obra, ela foi vista com “novos olhos” e descobriram-se novos significados e indicações. Além disso, o objetivo também foi, “desde o conjunto da forma já apreendida, iluminar os detalhes ainda obscuros, esclarecer a série de conjeturas dentro do contexto e procurar aspectos do sentido que ainda ficaram em 60

aberto na sua coerência de conjunto significativo” (JAUSS, 1984 apud ZILBERMAN, 2011, p. 76). A verdade é que a literatura “joga sobre nossos ombros a responsabilidade e o prazer de completar a obra” (MACHADO, 2011, p. 19). O processo pretendido é o explicitado pelo trecho a seguir: A liberação pela experiência estética pode se realizar em três planos: a consciência produtora cria um mundo como sua própria obra; a consciência receptora compreende a possibilidade de renovar sua percepção de mundo; enfim [...] a reflexão estética se compromete com um julgamento exigido pela obra, ou identifica-se às normas de ação (JAUSS, 1972 apud ZILBERMAN, 2011, p. 61).

Isso significa que aqui se fará a análise detalhada do mundo criado pela consciência produtora à luz da percepção de mundo da consciência receptora, a fim de se elaborar uma reflexão estética. Pretende-se esmiuçar o que pode haver por baixo da superfície aparentemente simples, com o “conhecimento prático de quem já descobriu serem muitos os percursos possíveis no texto literário e que, nessa floresta de sentidos, a distância a percorrer é sempre maior que a existente entre o começo da primeira linha e o fim da última página” (MACHADO, 2009, p. 6). Como dizia o escritor Gustave Flaubert, as ideias de um livro não deviam estar “soletradas de forma descritiva”, mas sugeridas pela narrativa (TODOROV, 2012, p. 85), logo é necessário ir mais fundo no que a história propõe, abordando cada tema que ela aponta em sua trama. Serão esses os parâmetros que conduzirão a análise proposta a seguir.

4.2 - ANÁLISE 4.2.1 – A questão da narrativa

Todo leitor de distopia começa um livro do gênero tendo em mente um horizonte de expectativa, e Jogos Vorazes, naturalmente, tem as características recorrentes: vê-se um futuro desolador, o mundo arruinado (ou pelo menos a América do Norte, que corresponde ao universo da história), o governo ditatorial, os questionamentos sociais, políticos e éticos. Além disso, a série possui elementos típicos das distopias jovens: existe um grupo de rebeldes organizado fora do mundo conhecido pela protagonista, mas de que ela não tinha ciência e que envolve uma manipulação do governo; jovens passam por seleções e provações, no caso, os Jogos Vorazes; a personagem principal se 61

envolve amorosamente, vivendo dilemas românticos, mas não há sexo, apenas conflitos em relação a beijos e à nudez. Sendo um exemplar da categoria YA, as disputas envolvem verdadeiras competições, eventos midiáticos, e a guerra tem grande foco na série. A morte possui bastante destaque, com diversas causas: fome, punições, torneios violentos, acidentes, torturas, guerra, assassinatos. Porém, ela não aparece como algo banal e, sim, provoca um conflito interno permanente em Katniss, como será visto adiante. As relações familiares são intensas, em especial entre Katniss, Prim e a mãe; os personagens precisam encarar as consequências de seus atos, frutos do livre-arbítrio; e não há maniqueísmo, pois Katniss e vários personagens mostram facetas boas e más, o que será mostrado ao longo desta análise. A distopia reinventa-se e agora se volta para um novo público, tendo novas abordagens, fazendo uso de uma linguagem mais coloquial, mais conectada a assuntos atuais, como, em JV, reality shows, consumismo, culto à beleza, ainda que também a outros antigos, como armas nucleares, a fome, a opressão. Mostra-se, assim, que não é uma obra alienada, que não se trata de “uma entidade autônoma e indiferente aos fenômenos sociais e históricos” (ZILBERMAN, 2011, p. 21). Jogos Vorazes dialoga com as distopias clássicas – como 1984, Fahrenheit 451 e Admirável mundo novo – no sentido de que resgata as discussões e características constantes nos livros originais para dar uma nova dimensão a elas. Como bem lembra Mikhail Bakhtin (1992), o dialogismo é constitutivo do enunciado, que está sempre “repleto dos ecos e lembranças” de outros enunciados (apud FIORIN, 2009, p. 44). “Em todos os caminhos que levam a seu objeto, o discurso encontra o discurso de outrem e estabelece

com

ele

interação

viva

e

intensa”

(apud

CHARAUDEAU

&

MAINGUENEAU, 2004, p. 161). Ao longo desta análise, se farão alguns paralelos mais diretos entre a história de Suzanne e as originais, em relação às quais ela ganha vida e se relaciona, pois “toda enunciação, por mais significante e completa que ela seja por si mesma, constitui apenas uma fração de uma corrente de comunicação verbal ininterrupta” (VOLOCHINOV, 1977 apud C&M, 2004, p. 161). Dentro desse contexto de comparações, é interessante apresentar aqui uma crítica do já citado Ben Pimlott sobre o livro 1984. A princípio, a análise do historiador pode parecer impressionante, pois ele começa falando muito mal do clássico: “uma narrativa perversamente indecorosa que leva a fantasia adolescente – de rebeldia 62

solitária, sexo furtivo e terror implacável – a um extremo escandalosamente inaceitável” (PIMLOTT, 1989, p. 381); “um romance acessível” devido à “falta de sutileza de sua caracterização e a uma trama muito simples” (p. 382). E ainda continua: Como entretenimento, o romance funciona bem, em certo nível. Mas tem limitações enquanto arte. Falta desenvolvimento à narrativa, o diálogo é por vezes fraco e a maioria das pessoas é bidimensional, existindo apenas para explicitar uma opinião política ou para atingir de raspão um tipo existente no mundo real (Idem, p. 385).

Segundo ele, os personagens são meras caricaturas, sendo um deles, o espião Charrington, “extraído de uma centena de romances de suspense baratos”. Uma das protagonistas, Julia, é considerada inconsistente e “mal e mal sustentaria um conto”; é o “ideal fantasioso de um garoto de escola particular, um ideal de feminilidade descomplicada, saudável, solar” (p. 384-5). A essa altura, o leitor da crítica poderia pensar: não é possível que um cânone seja tão ridicularizado assim. Porém, vem a parte que explica tudo: “Se não houvesse nada no romance além dos personagens e da narrativa, ele dificilmente seria lido hoje [...] O que faz do romance uma obra-prima [...] é a textura extraordinária do pano de fundo. [...] é na verdade um ensaio de não ficção sobre o poder maligno” (p. 385). Em 1984, a história seria mero pretexto para expor ideias, pensamentos, filosofias, fazer alertas. E talvez essa concepção seja justificada pelo que Peter Hunt (2010) afirma: “A narrativa, até bem recentemente, tem sido considerada uma parte inferior dos estudos literários” (p. 85). Logo, o que importaria é a “mensagem”, não personagens e acontecimentos. Contudo, nas distopias jovens, há uma mudança, pois a narrativa passa a ganhar importância, não sendo mero suporte, e a estar mesclada com as questões que pretende discutir. O diretor editorial David Levithan, vice-presidente da Scholastic Books que cuidou de JV nos Estados Unidos, opina: “As distopias do passado eram, em sua maioria, comentário político metafórico. Ao mesmo tempo que essas obras novas refletem mesmo os medos da atualidade, há muito mais narrativa em jogo. Ainda que possam ser lidas como alegorias, não acho que foram escritas como alegorias.” Aliás, em vez de distopia, ele prefere enquadrar o gênero jovem como “ficção especulativa” (MALONEY, 2014).

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Os autores das distopias atuais sabem que uma narrativa poderosa atrai o público para o debate e reflexão de temas introduzidos na trama. Porém, corre-se o risco de suavizar e estetizar as problemáticas, para que o livro seja mais ameno e agrade aos leitores superficiais, como se percebe no discurso de Kate Egan, editora de JV: “O forte de Suzanne é a arte de contar histórias. Como editora, eu a ajudei a desenvolver os personagens. Por exemplo, pedi que ela elaborasse mais o triângulo amoroso PeetaKatniss-Gale. Suzanne estava mais focada na parte da guerra.”27 Os dilemas nos relacionamentos de Katniss também têm ligação com questões distópicas, porém, em certos momentos, há um enfoque exagerado neles, como que para dar um tom mais jovem. Inclusive, os filmes hollywoodianos baseados em JV e em Divergente dão mais destaque a essas relações do que os livros, em detrimento do pano de fundo, perdendo muito da carga reflexiva. Nessa tendência, está em produção um longa-metragem muito livremente inspirado em 1984, de nome Equals, que trará o clássico para os dias atuais numa versão... “romântica”. O ponto de vista passará a ser o de Julia, e não de Winston, e a subtrama do relacionamento deles se tornará a trama principal. Não se pode dizer, porém, que os personagens e a narrativa de JV sejam rasos. Katniss começa a série com 16 anos e, sem levar em conta o epílogo, termina-a com 17, ou seja, é uma adolescente, encontra-se numa etapa de transição para construir sua personalidade. Ao longo dos livros, o leitor vê seus contrastes e contradições, sua ambiguidade. Não se trata de um tipo monótono, pois há uma ambivalência nela no que tange poder, violência e amor romântico, entre outros aspectos. Ela questiona se a queda do governo, a guerra, é a única opção, se vale a pena se sacrificar; há conflito interno, não um impulso cego. Além disso, ela genuinamente se divide entre Gale (o grande amigo) e Peeta (o “santo” romântico e altruísta devotado a Katniss) e, mesmo no fim, o escolhido não é descrito como um Príncipe Encantado (DEAN, 2014) – apesar de ser seguida a fórmula do pretendente socialmente aceito e do “perigoso”, transgressor. Katniss, em especial, é uma personagem-individualidade, típica da ficção contemporânea, que não é vista de maneira maniqueísta e dogmática, como “um bloco inteiriço de qualidade ou de defeitos”. Uma figura que dificilmente pode ser rotulada, pois se mostra nas complexidades, perplexidades, impulsos e ambiguidades de seu mundo interior (COELHO, 1993, p. 71-2). Ela é uma personagem tridimensional, que 27

Tradução minha. Fonte: http://blog.sarahlaurence.com/2010/11/interview-with-kate-egan-editorof.html. Acesso: 12/07/2014.

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se desenvolve de uma jovem razoavelmente inocente e doce para uma guerreira que tenta salvar a si mesma e a Peeta, e depois para alguém que tenta defender todo mundo em todos os distritos. Ela é forçada a se tornar uma assassina [...], o que acaba alterando sua personalidade permanentemente (GRESH, 2012, p. 17).

Comenta-se aqui apenas sobre Katniss porque ela é a grande protagonista, cujo ponto de vista norteia toda a narrativa. Porém, poder-se-ia citar outros personagens, que, apesar de estar no lado considerado bom, estão longe de ser heróis tradicionais e incorruptíveis, como veremos por toda a análise. O foco neste capítulo será demonstrar como uma obra voltada para jovens, apesar de todos os preconceitos, encerra diversas discussões importantes para qualquer idade, além de dialogar com referências históricas e literárias, enriquecendo a leitura. Como já se afirmou, narrativa e reflexões mesclam-se nessa nova distopia e, dessa forma, a análise não pode apenas separar uma para a abordagem. E, a exemplo do que afirmou Antonio Candido (1972, p. 53), “o enredo existe através das personagens”, logo as questões serão discutidas com base em atitudes e emoções dos que atuam na história. Em 1984, há um trecho que pode ser relacionado tanto ao próprio livro quanto a JV, que sintetiza o que será exposto adiante: “Em certo sentido [o livro] não lhe dizia nada de novo, o que era parte do fascínio. Dizia o que ele teria dito, se tivesse a capacidade de organizar seus pensamentos dispersos. [...] Os melhores livros, compreendeu, são aqueles que lhe dizem o que você já sabe” (p. 385).

4.2.2 - A distopia e a reflexão sobre a sociedade

O poeta e dramaturgo G. E. Lessing (1767) compara o trabalho do escritor ao do Criador que fabrica um mundo coerente mas autônomo (apud TODOROV, 2012, p. 57) e, nesse sentido, o autor distópico destaca-se, por criar um mundo futurista que deve receber a adesão dos leitores por sua verossimilhança. Não por, necessariamente, poder vir a se concretizar no futuro, mas por fazer sentido dentro das regras estipuladas pelo escritor. Professora de língua inglesa da Universidade da Califórnia e estudiosa de literatura utópica e distópica, Ursula K. Heise afirma: “Os livros apocalípticos não pretendem ser prognósticos; a questão é a intensidade da visão apocalíptica: quanto 65

mais sombria, maior a urgência com que o autor clama por mudanças” (MALONEY, 2013). Seguindo o que prega a estética da recepção, Ana Maria Machado (2011) fala sobre um aspecto também importante da distopia, que envolve a participação do leitor: Na leitura de literatura, [o leitor] é levado [...] a embarcar num mundo de outro tipo, numa outra dimensão, que não é a de sua realidade cotidiana mas ajuda a iluminá-la. Depois da leitura, o leitor volta a essa realidade transformado. Tal efeito não se consegue apenas com uma atitude passiva, mas com um trabalho mental e imaginário ativo, intenso, por vezes dificultoso: a atividade intelectual que permite a construção imaginária simultânea de outros roteiros possíveis, paralelos ao que se está lendo (p. 19-20).

De acordo com Nelly Novaes Coelho (1993), “nenhum escritor poderá criar um universo literário significativo – orgânico e coerente em suas coordenadas básicas (estilísticas e estruturais) e em sua „mensagem‟ – se não tiver a orientar sua escritura uma determinada consciência-de-mundo”. Sem ela, a obra poderá ser atraente e interessante, mas “fatalmente terá vida brevíssima” (p. 44). A estudiosa divide as obras criativas em questionadoras e continuadoras e JV pode ser considerada uma mescla dos dois grupos, pois estimula os leitores a transformar o mundo ao mesmo tempo em que denuncia os caminhos ou comportamentos a serem evitados. De qualquer forma, a autora afirma que o primeiro objetivo dessas obras é “dar prazer ao leitor, diverti-lo, emocioná-lo ou envolvê-lo em experiências estimulantes ou desafiantes” (p. 133-4). No âmbito do projeto de escritura de JV, a intencionalidade é mais ética do que estética, pois dá menos ênfase ao fazer literário e mais aos padrões de comportamento (Idem, p. 59). Não à toa, na quarta capa de Jogos Vorazes, a escritora best-seller Stephenie Meyer comenta: “A história me fez passar várias noites em claro porque, mesmo quando terminava de ler, ficava acordada pensando.” Contrariando Emilia Gallego Alfonso, que afirma “lemos literatura para não nos sentirmos inseguros, mesmo que não o digamos” (PRADES; LEITE, 2013, p. 75), JV, assim como diversas distopias, provoca incômodo, pois mexe com questões que estão ligadas a cada um dos leitores. Não se trata apenas de aspectos de outras culturas ou países ou conectados a minorias, mas presentes em todo lugar e relacionados a nossas realidades, em maior ou menor grau.

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Quando perguntada sobre o que a atraiu para a escrita de uma distopia, Suzanne Collins responde: Contar uma história em um mundo futurístico dá liberdade para explorar coisas que incomodam atualmente. No caso de Jogos Vorazes, problemas como a grande divisão de classes, o poder da televisão e como ela é usada para influenciar nossas vidas, a possibilidade de que o governo possa usar a fome como arma e, o mais importante para mim, o problema da guerra.28

Muito pela expectativa em torno de um livro jovem, a presença de violência e de tantas situações degradantes em JV provoca polêmicas e desconforto. Sobre essa questão, o escritor Rodrigo Carneiro, autor de O fazedor de velhos (premiado como melhor livro juvenil pela Biblioteca Nacional e pela FNLIJ, sendo incluído no catálogo White Ravens),29 fala que se deve destinar ao jovem um problema humano, e não apenas juvenil, por isso, em sua obra, procurou escapar de um mal de muitos livros juvenis: a composição dos personagens jovens a partir de adereços e estereótipos.

Muitos pensam que escolhi temas estranhos aos jovens para falar nesse livro, como a morte, velhice, doença, e perguntam se o objetivo era preparar o jovem para o sofrimento. Eu sempre respondo que eu não sabia que jovem não sofria. A minha lembrança na juventude é de ter mais sofrimento que hoje em dia. As angústias do jovem são talvez muito maiores que as do adulto, porque ele não tem a menor ideia do que vai ser da vida dele (SERRA, 2013, p. 129-130).

Suzanne acolhe o impulso do pai de mostrar aos jovens a realidade da guerra, da fome, da opressão: “Pensamos que os estamos protegendo [ao não falar sobre esses assuntos], mas, na verdade, só os prejudicamos.” Ao ser questionada sobre o impacto de mortes na história, ela retruca: “Isso não é um conto de fadas, mas uma guerra e, na guerra, há perdas trágicas.” De qualquer forma, não chega a ser uma trama brutal, porque está entremeada de suspense, romance e diversos detalhes que criam um universo inteiro, verídico (DOMINUS, 2011).

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Tradução minha. Fonte: www.scholastic.com/teachers/article/qa-hunger-games-author-suzanne-collins. Esse catálogo é publicado anualmente pela Internationale Jugendbibliothek, a maior biblioteca de literatura infantil e juvenil do mundo, ligada à IBBY, e trata-se de uma seleção de livros da produção mundial de literatura infantil e juvenil, servindo de referência mundial na indicação das melhores obras publicadas anualmente. 29

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Contudo, há críticos que consideram JV e outras distopias apenas um retrato da adolescência, e não de uma sociedade, como é o caso da resenhista Laura Miller, do The New Yorker: A ficção distópica deve ser o único gênero não adulto que costuma ser menos didático que sua contraparte adulta. Não se trata de persuadir os leitores a impedir que algo terrível aconteça, mas de abordar algo que está acontecendo, neste minuto, na psique tempestuosa dos leitores adolescentes (MILLER, 2010).

Ignorando o fato de que a distopia adulta também aborda situações que já ocorrem no presente, ela vê JV apenas como “uma alegoria delirante da experiência social adolescente” (Idem). Sem dúvida, essa é uma opinião compartilhada por muitos fãs, críticos e pais, que se sentem mais confortáveis pensando a série como uma história amena. Mas essa não é uma teoria que agrada a Suzanne: “Eu não escrevo sobre a juventude. Eu escrevo sobre a guerra. Para jovens” (DOMINUS, 2011). Além do mundo desolador, a complexidade ética de JV – abordada mais à frente – coloca críticos em dúvida acerca da afirmação de que o público leitor seria apenas o jovem. De todo modo, é interessante ver as opiniões dos leitores originais, citadas numa matéria da revista Veja. Para o fã paulistano Brunno Maceno, de 17 anos, a saga tem uma mensagem mais crítica. Você vê que a população de Panem passa fome porque a Capital desperdiça comida, e isso escancara diferenças sociais que existem no nosso país também. O caos que a autora narra no livro pode acontecer no futuro, se não agirmos para remediar os problemas sociais e ambientais (NOGUEIRA, 2012).

A carioca Iris Figueiredo, de 19 anos, acrescenta: “A maioria dos livros juvenis parte do princípio de que o adolescente não se preocupa com o mundo. Não é verdade. Em Jogos Vorazes, as situações vividas pelos personagens me ajudaram a enxergar a realidade.” A aspereza dos temas também foi o que atraiu a estudante Giovana Cyrillo, de 13 anos, representante da faixa que mais preocupa os críticos da série – nos Estados Unidos, o primeiro filme da franquia, que conta com cenas explícitas de violência, foi classificado para maiores de 13 anos. “O que me chamou atenção foi que a protagonista tem só 16 anos e tem que lutar para alimentar a mãe e a irmã. Não consigo imaginar como deve ser isso” (Idem, 2012). Após essas considerações iniciais, podemos partir para a análise propriamente dita, destrinchando os elementos que servirão de parâmetro no bojo da narrativa. Dentro 68

de um universo pós-apocalíptico, o espaço serve de ponto de partida, pois descreve as condições em que vivem os personagens e que provocarão a trama. Os demais aspectos selecionados foram tidos como os mais importantes na história, induzindo ao debate de questões sociais, políticas e culturais, como pobreza e fome; poder e manipulação; vigilância e reality shows; banalização da violência; lazer e estética. Além disso, a linguagem também se destaca por ser fator de manipulação e a resistência é um componente essencial da narrativa, que move quase todos os personagens. Já a seção sobre os Jogos Romanos e mitologia também será considerada, sobretudo porque nela ficam mais evidentes as inspirações e referências de Suzanne Collins. Por meio de todos esses elementos, pretende-se mostrar que a série Jogos Vorazes não é apenas uma narrativa superficial e comercial, mas tem sua qualidade literária.  Espaço Como já se sabe, Jogos Vorazes é uma distopia totalitária e pós-apocalíptica, seguindo as categorias descritas no capítulo anterior. Nela, o espaço tem uma função pragmática, pois serve de instrumento para o desenvolvimento da ação narrativa, cria uma atmosfera propícia ao desenrolar do conflito e ajuda a caracterizar os personagens. Ele é consequência da ação humana: guerra, destruição, opressão, miséria (COELHO, 1993, p. 73-4). Na história, houve desastres ambientais como seca, tempestades, incêndios e o derretimento das calotas polares. O nível dos mares subiu drasticamente e engoliu grande parte da Terra, obrigando as pessoas a batalhar pelo pouco sustento restante, talvez provocando uma guerra nuclear. Se isso de fato ocorresse, as áreas que sobreviveriam a essa inundação seriam as mais altas ou as mais baixas e as do interior, como várias partes da América do Norte – a exemplo do que aparece em JV. E isso poderia acontecer, segundo prognósticos, daqui a algumas centenas de anos. Segundo o governo, Panem é “uma resplandecente Capital de treze distritos unidos que trouxe paz e prosperidade a seus cidadãos” (JV, p. 24).30 Não há sinal de grandes construções e cidades que se assemelhem às atuais, provavelmente por causa da guerra. Sem levar em conta a Capital, só há casas, praças centrais, os Edifícios da

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Quando houver citações dos livros, serão usadas entre parênteses, antes das páginas, as siglas JV (Jogos Vorazes), EC (Em chamas), AE (A esperança).

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Justiça e as Aldeias dos Vitoriosos. Os distritos são como os gulags, os campos de prisioneiros soviéticos. A Capital foi construída no local onde ficavam as Montanhas Rochosas. O Distrito 12, onde mora Katniss, tem oito mil pessoas e fica nos antigos Montes Apalaches, onde há centenas de anos já se retiram carvão, logo os mineiros precisam escavar muito fundo, em jornadas de doze horas. O Distrito 11, por exemplo, tem grandes espaços abertos, de plantação, ao contrário do 8, um horroroso espaço urbano fedendo a resíduos industriais, com quase nenhuma natureza. Os produtos e/ou atividades dos distritos de 1 a 11, por ordem, são: artigos de luxo; armamento, guardas, mineração de pedreiras; equipamentos eletrônicos e tecnologia; pesca; pesquisa e manipulação genética; pesquisa e manufatura de drogas; madeireira; têxtil; processamento de comida para a Capital e de rações para os distritos; criação de animais; agricultura. O Distrito 13, supostamente destruído na guerra, tem uma elaborada cidade subterrânea, porque, com medo da guerra ou da destruição completa da atmosfera terrestre, os líderes governamentais planejavam fugir para lá. Uma estratégia que tem precedentes, pois o ex-presidente americano Eisenhower chegou a construir um abrigo antibombas que comportaria duzentas pessoas da equipe da presidência e da defesa do país. O Congresso americano e diversos outros órgãos governamentais ao redor do mundo também teriam recintos do tipo (GRESH, 2012, p. 99). Além dos distritos, ainda há espaço para as arenas onde ocorrem os Jogos, que começam a ser construídas anos antes de cada evento.  Pobreza e fome A questão da fome, da comida é de muita importância na série, como já se assinalou no começo deste capítulo. Assim como na vida real, o proletariado constitui 85 por cento da população – e o mesmo se dá em 1984, em que o Partido mantém o povo na pobreza, carente de necessidades básicas (GRESH, 2012, p. 24-5). A Capital precisa que os distritos forneçam tecidos, comida, carvão e outras matérias-primas, logo alimenta seus escravos pelo menos o suficiente para que eles possam trabalhar. A divisão de classes é extrema, entre os muito ricos e os muito pobres, como já se vê atualmente, dentro de cada sociedade e na exploração a países subdesenvolvidos, numa colonização camuflada. 70

Katniss afirma que “a fome nunca é a causa oficial da morte. É sempre a gripe, o abandono ou a pneumonia” (JV, p. 35). É a hipocrisia do desperdício de comida no mundo, em que nunca se pode admitir um problema óbvio, sob pena de ele precisar ser resolvido. Além disso, não é permitido usufruir do que se produz. Os habitantes do Distrito 11, da agricultura, não têm permissão para comer o que cultivam; se infringirem a lei, são chicoteados. O mesmo acontece no 12, onde só se tem o carvão comprado. A família de Peeta também produz e vende uma torta que é cara demais para eles mesmos poderem comer. Sempre tiveram comida suficiente, mas velha, de má qualidade. Apesar de isto não ser mencionado, muitas crianças nos distritos, devido à falta de alimentos, deviam ter a barriga inchada e corpos malformados, serem retardadas e morrerem de desnutrição. Quando a maioria delas chegasse à idade de se tornar tributo, seriam fracas, extremamente doentes, de raciocínio lento, pois têm apenas grãos como alimento e poucas possuem acesso à carne (GRESH, 2012, p. 47-8). No mundo atual, os governos são responsáveis pela fome e pelas mortes de milhões de crianças inocentes. E, como Katniss descobre, simplesmente jogar mais alimento para as pessoas pode não resolver o problema se o regime ainda tem controle sobre todos (Idem, p. 53). Dessa forma, Katniss e Gale são obrigados a caçar ilegalmente para sustentar a família; é um crime passível de morte. Além disso, pegar um alimento sem comprá-lo ou recebê-lo do governo leva a chicotadas. O arco de Katniss é uma raridade que deve ser escondida, até porque não se pode carregar armas. Os guardas, chamados de Pacificadores, e o prefeito compram carne fresca, por isso a menina afirma: “o apetite daqueles que estão no poder me protege” (JV, p. 23). Sua sobrevivência só é possível porque as próprias autoridades burlam as leis. Devido à fome e à necessidade de se sustentar, Katniss é uma personagem ambígua, como já se falou. No início, ela é apresentada como uma garota doce que provê a família e ama a irmã, mas também há um lado negro: ela odeia a mãe por sua atitude derrotada, passiva, apesar de isso ser consequência da morte do marido, e já tinha tentado afogar o gato: “A última coisa que eu precisava era outra boca para alimentar” (JV, p. 9). Depois, fica tudo bem porque ele se mostra um excelente caçador de ratos. Além disso, mesmo diante da alegria da irmã por ganhar uma cabra, Katniss vê o animal como fonte barata de sustento. Ali, imperava o utilitarismo. A família da mãe era da pequena classe de mercadores, vivendo na parte melhor do Distrito 12, mas abandonou a região para morar na Costura – a pior área – com o pai 71

de Katniss. “Tento me lembrar disso quando tudo o que consigo enxergar é a mulher que fica lá sentada, muda e inalcançável, enquanto suas filhas viram pele e osso. Tento perdoá-la por causa de meu pai. Mas, honestamente, não sou do tipo que perdoa” (JV, p. 14). Devido ao ambiente duro e opressor, Katniss torna-se uma pessoa insensível e, ao saber que o comportamento da mãe é fruto de uma depressão, pensa: “Talvez seja mesmo uma doença, mas é uma doença que não temos condições materiais de ter” (JV, p. 43). O sistema de seleção dos competidores dos Jogos Vorazes também entra no âmbito da alimentação, a começar pelo nome: colheita. Aos 12 anos, o jovem se torna elegível e pode ser sorteado até os 18 anos, logo compreende o período da adolescência. O número de vezes que o nome da pessoa aparece aumenta todo ano, alcançando sete no último ano. Se o jovem quiser, pode adicionar mais vezes seu nome e o de seus familiares, para que a cada acréscimo ganhe uma téssera, que é um escasso suprimento anual de grãos e óleo. Dessa forma, os pobres sempre têm mais chance de serem sorteados e cria-se um ódio entre os trabalhadores esfomeados e os que não necessitam de tésseras, como as famílias do prefeito e de Peeta. Esse é um modo de a Capital dividir os oprimidos, facilitando o controle; a condição social torna-se um impedimento contra a união pela liberdade. No outro extremo, os banquetes da Capital são orgias extravagantes de comida, uma referência aos tempos de Maria Antonieta (GRESH, 2012, p. 46). Quando estão cheias, as pessoas tomam líquidos para vomitar e poder continuar comendo. Não há desperdício de comida, mas esbanjamento – assim como estoques de suprimentos –, enquanto os distritos passam fome. É algo que se espera que as pessoas façam, é parte da diversão nas festas. Assim, não estão nem um pouco acostumadas com a escassez e qualquer perturbação no fornecimento é um impacto na vida delas. O nível de miséria é tão grande que o chefe dos Pacificadores do Distrito 12 atraía jovens esfomeadas para sua cama em troca de dinheiro, algo recorrente em zonas de baixa renda na realidade. E a pobreza fica patente por diversos outros indícios ao longo da série: queijo de cabra é considerado um presente para Prim no dia da colheita; biscoitos, suco de laranja, chocolate quente são luxos de que Katniss jamais poderia desfrutar; uma cesta de pãezinhos manteria sua família alimentada por uma semana; os aposentos da Capital são maiores que a sua própria casa.

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Na melhor das hipóteses, o Distrito 12 só tem duas ou três horas de eletricidade à noite: durante as transmissões dos Jogos ou quando alguma mensagem importante do governo é veiculada. Não há água quente, exceto se for fervida, e como quase ninguém tem condições de pagar um médico, os boticários são os curandeiros. O povo é mantido na miséria para que a Capital possa colocar em prática sua gula e viver na opulência, logo não é interesse dela acabar com a opressão e deve-se perpetuar o poder por meio da manipulação.  Poder e manipulação O presidente Snow é o Grande Irmão de Panem, só que de carne e osso, querendo dar a impressão de que tudo vê, para que os inimigos fiquem paranoicos, não se sintam seguros. Por meio de seu aparato de força, controla e oprime o povo, espiona a todos, desumaniza as pessoas e penaliza os que invocam a liberdade de expressão. Quando encontra o governante em sua casa, Katniss comenta: “Na minha cabeça, o presidente Snow deveria ser visto em pilares de mármore adornados com bandeiras gigantescas. É perturbador vê-lo cercado de objetos comuns em minha sala” (EC, p. 25). Essa é a imagem que ele quer passar: de alguém acima de todos, símbolo do país, que deve ser reverenciado e temido, como a figura do Grande Irmão, que possivelmente nem existe. Ele tem a voz de autoridade, que o povo incorpora. “É aquela [voz] a que se adere de modo incondicional, assimilada como uma massa compacta e, por isso, centrípeta, impermeável, resistente a impregnar-se de outras vozes, a relativizar-se” (FIORIN, 2009, p. 56). Snow manipula os fatos, dando uma carga negativa a uma possível rebelião, pois muitas pessoas morreriam, os sobreviventes enfrentariam condições péssimas e todo o sistema desmoronaria. Por isso, após os Jogos, é necessário continuar com a farsa do romance e convencer os espectadores, até mesmo casando com Peeta, em tese para controlar as rebeliões – à semelhança de Admirável mundo novo, o governo consegue controlar os relacionamentos amorosos. Porém, esse é apenas um jogo de Snow para manipular Katniss e desviar sua atenção, fazer com que ela não incite ainda mais as revoltas, pois nada do que ela pudesse fazer as impediria de ocorrer. Como em 1984, os jovens são peões nas mãos do governo: no clássico, eles são usados como espiões, até contra os próprios pais. Porém, em JV, também são os heróis, que salvam o povo de Panem das mentiras dos adultos, tendo acesso à verdade. Mas há 73

algo que se possa denominar “verdade”? Diante dos ataques rebeldes à transmissão do seu discurso, Snow brada que “a verdade e a justiça prevalecerão” (AE, p. 147), alegando que as investidas ocorrem porque as informações da Capital são incriminatórias. Segundo Pimlott (1989), nossa aceitação do conhecimento objetivo é volúvel e nosso domínio do passado é incerto (p. 389). “Se o governo esconde a verdade por tempo suficiente e se as fontes de notícias a ocultam por muito tempo, então o que nos resta? Será que alguém vai saber por que a civilização entrou em colapso?” (GRESH, 2012, p. 27). Assim como em 1984 e Fahrenheit 451, há um apagamento da história. Em JV, as pessoas só recordam por que estão sendo oprimidas, os dias de rebelião conhecidos como Dias Escuros, e não o que provocou o apocalipse. O fluxo livre de informação é censurado. A Capital inventa que Gale é primo de Katniss, para que não haja interferência na história romântica com Peeta, e Katniss comenta que muitas pessoas que os conhecem há anos parecem ter esquecido que eles eram apenas amigos. Além de leitura básica e matemática, grande parte do ensino no Distrito 12 remete ao carvão (inclusive, há um tour anual pelas minas como parte de um treinamento), exceto a palestra semanal sobre a história de Panem, que não passa de sermão sobre o que os distritos devem à Capital. “Deve haver algum relato real do que aconteceu durante a rebelião. Mas não passo muito tempo pensando nisso. Seja lá qual for a verdade, não vejo como ela me ajudará a colocar comida na mesa” (JV, p. 49). Por esse trecho, podemos ver como Katniss, a princípio, era apolitizada, ao contrário de seu amigo Gale, e se preocupava mais em sobreviver do que em mudar a situação que provocava sua luta pela sobrevivência – provavelmente essa é a intenção dos governos: fazer com que as pessoas pensem no imediato, não no longo prazo. Suzanne Collins comenta esse aspecto numa entrevista à Scholastic: O interessante de Katniss é que, quando a história começa, ela não é muito ciente da política. Há coisas que ela sabe sobre seu mundo que são verdadeiras ou falsas. Mas ninguém nunca a educou nessa área. Não é do interesse da Capital que ela saiba tudo sobre política. E só há um canal de TV, que é completamente controlado pela Capital. Então ela luta para juntar as coisas enquanto passa pela série, e é bem difícil, porque ninguém parece achar interessante educá-la.31

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Tradução minha. Fonte: www.scholastic.com/teachers/article/qa-hunger-games-author-suzanne-collins. Acesso: 12/07/2014.

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Mesmo em muitos governos democráticos, esse é o objetivo: manter o povo na ignorância para que permaneça o status quo. Quanto às mídias, talvez devido à destruição da guerra mundial, quase ninguém tem telefone, não há mais uso de internet nem de satélites e os supostos sobreviventes de outros continentes não se comunicam com Panem. As pessoas assistem à televisão apenas quando é obrigatório, porque é insuportável a mistura de propaganda oficial, filmes de guerra, mensagens do presidente e exibições do poder da Capital – incluindo clipes dos 75 anos dos Jogos Vorazes e reprises das bombas destruindo o Distrito 12. Na Capital, quando há uma transmissão de emergência, as televisões dos habitantes ligam sozinhas. Em JV, não se tem medo de ataques inimigos e da guerra, como em 1984 e Fahrenheit 451, mas existe a preocupação com torturas, fome e a seleção para os Jogos Vorazes. O poder aplica-se também a coerções físicas, às ameaças corporais. Erich Fromm (1961) afirma: “Poder significa capacidade de infligir dor e sofrimento ilimitados a outro ser humano” (p. 374). Como é o caso de Snow, que não vê problema em matar jovens, desde que haja um fim nisso. Katniss comenta que “a Capital possui uma criatividade quase infinita em matéria de arranjar meios de matar pessoas” (EC, p. 134). Para a Capital, não há limites na geração de anomalias que funcionam como armas. Durante a guerra, foram dispostos estrategicamente nos distritos ninhos de vespas geneticamente modificadas (um tipo de criatura chamada de bestante). A maioria das pessoas não tolera mais do que poucas picadas delas e algumas morrem imediatamente. São provocadas alucinações que levam à loucura e os insetos perseguem qualquer um que os perturbe, por isso recebem o nome de teleguiadas. Além disso, são criados pássaros mutantes, chamados de gaios tagarelas, que imitam vozes humanas em agonia, de pessoas queridas dos tributos; e bestantes que estraçalham inimigos da Capital, como os que possuem características dos tributos mortos nos Jogos. Fromm (1961) ainda questiona: “Pode a natureza humana ser modificada de tal maneira que o homem esquecesse seu desejo de liberdade, dignidade, integridade, amor – ou seja, pode o homem esquecer que é humano?” Segundo ele, a destruição do homem não é fácil, mas é possível (p. 370-1). “O poder é a capacidade de transformar uma pessoa viva num cadáver, ou seja, numa coisa” (p. 373). Peeta sofre o chamado telessequestro (sequestro psicológico), recebendo veneno de vespas teleguiadas, que ataca a parte do cérebro que controla o medo e o impede de discernir entre realidade e 75

invenção, enlouquecendo-o. São manipulados fatos e memórias para que ele passe a odiar Katniss, vê-la como uma ameaça à própria vida, um bestante; os neurônios guardam a recordação falsa em vez da verdadeira. A tortura de Peeta também serve para desestabilizar Katniss; não o machucam mais para tirar informações, mas para arruiná-la, para que não faça mais nada pela revolução. Ela não sente mais vontade de viver, tem pensamentos suicidas, toma remédios que a fazem alucinar, começa a enlouquecer. Outro tributo vitorioso, Finnick, também é minado pelo cativeiro da namorada, Annie. Por fim, Peeta é resgatado com muita facilidade: Snow pretendia entregá-lo, pois se tornou uma ameaça para Katniss; quem sabe assim ela o mata e carrega um peso na consciência. Os Jogos Vorazes também deixam sequelas e mostram que ser um vitorioso não garante nada: Katniss fica traumatizada, vendo ameaças em tudo, tendo pesadelos. Peeta pinta cenas dos Jogos na tentativa de exorcizá-las e igualmente tem sonhos ruins. Haymitch, mentor dos dois nos Jogos, torna-se alcoólatra depois de ganhar a sua própria competição e dorme sempre agarrado a uma faca, tendo medo do escuro. Não consegue aguentar sua vida e perdeu todos os próximos a ele (mãe, irmão, namorada) por ridicularizar a Capital, preferindo viver sozinho e não se unir a ninguém. Não foi morto para servir de exemplo aos tributos seguintes. Finnick é obrigado pela Capital a vender o próprio corpo: o presidente o dá como recompensa ou permite que as pessoas o comprem por uma quantia exorbitante. Ele não poderia recusar, senão seria morto alguém querido, numa prática comum com vitoriosos considerados “desejáveis”. Johanna, outra vitoriosa, fica viciada em morfina e passa a ter trauma de água por causa das torturas, na Capital, com o líquido, em que levava choques. Outros tributos vencedores, já de anos, apresentam-se bem envelhecidos ou arrasados por doenças, drogas ou bebida. Peeta prevê que, se só ele ou Katniss tivesse sobrevivido, seria “apenas mais uma atração do show de horrores” (EC, p. 225). A multidão enlouquece ao vê-los, pois são jovens, fortes e belos, a própria imagem do que os vitoriosos deveriam ser – nada mais do que o culto à beleza e a glamurização vigente entre celebridades e os que “venceram na vida”. Ainda no campo do sofrimento físico, a Capital corta a língua de supostos traidores, para que, literalmente, eles nunca mais tenham voz contra o governo. Assim, são chamados de Avox e passam a ser empregados na Capital; as pessoas só se dirigem 76

a eles para dar ordens, já que os habitantes da Capital não podem executar tarefas “inferiores”. Ao falar sobre esse tipo de tortura, que aparece logo no começo da saga, Lois Gresh – fã da série e autora de um almanaque sobre ela – retoma a velha discussão levantada anteriormente, ao comentar que tal castigo causa um grande impacto nos leitores, “que não estão esperando por uma coisa horrível dessas em um livro para jovens. [...] é claro que as torturas e a violência só pioram durante a trama, mas não estamos acostumados a ler coisas duras assim no começo de uma série” (2012, p. 107). Na verdade, não há um momento exato para elementos agressivos aparecerem em um livro e, mesmo se surgissem depois, não é garantia de que causariam menos impacto. A principal forma de manipulação e opressão são os Jogos Vorazes. Por meio deles, a Capital lembra que haveria poucas chances de sobrevivência caso fosse organizada uma rebelião. “Se erguerem um dedo, nós destruiremos todos vocês da mesma maneira que destruímos o Distrito 13” (JV, p. 25). Em represália à vitória de Katniss ludibriando até os Jogos, as minas de carvão ficam fechadas duas semanas e metade do Distrito 12 passa fome, até porque há escassez de comida, cujo preço aumenta. Salários são reduzidos, horas de trabalho estendidas, mineiros começam a trabalhar em locais altamente perigosos. A comida que o distrito recebe como prêmio chega estragada e aumentam as punições. Após a revolta no Distrito 8, a fábrica é explodida e a televisão mostra o enforcamento dos suspeitos de instigar o levante. Pouco importa se as penalidades prejudicarão o fornecimento da Capital: o essencial é punir de forma exemplar. Como costuma acontecer nos governos ditatoriais, existe a colaboração dos oprimidos com o opressor: formam-se Pacificadores no Distrito 2, pois a Capital não supriria a demanda, fora que os habitantes dela não conseguiriam levar uma vida de privações, como não casar nem ter filhos, além de se comprometer por vinte anos com o serviço militar. Entram pela honra, para terem penas absolvidas, para escapar da pobreza e de uma vida nas pedreiras. Além de impor a participação nos Jogos, a Capital obriga que todos se envolvam com eles. No dia da colheita, as pessoas recebem folga e todo mundo deve estar na praça, bem-vestido, exceto se estiver à beira da morte. Caso a pessoa não apareça, à noite, funcionários do governo verificam se esse é o caso, pois, se não for, a pessoa será presa. Depois da colheita, todos devem celebrar; muitos o fazem porque seus filhos foram poupados por mais um ano. Além disso, existe a obrigação de assistir aos Jogos 77

todo dia, tratando-os como uma festividade, um evento esportivo que coloca os distritos uns contra os outros. “É não só um tempo de arrependimento como também um tempo de agradecimento”, diz o prefeito. E Effie Trinket, representante da Capital no Distrito 12, sempre exclama: “Feliz Jogos Vorazes! E que a sorte esteja sempre a seu favor!” (JV, p. 25-6). Na reta final do evento, até as aulas são suspensas para que todos assistam. Ao fim da transmissão, devem voltar a trabalhar o mais rápido possível. O objetivo do governo é que os Jogos e a impotência do povo sejam lembrados constantemente. Estrategicamente situada mais ou menos na metade do período entrejogos, ocorre a Turnê da Vitória, em que os vitoriosos passam pelos distritos para participar de diversas comemorações, filmados o tempo todo e acompanhados avidamente pelo público. O povo precisa fingir que ama o vencedor – mas também não se deve desperdiçar tanta gente com o evento, a fim de não prejudicar o trabalho. A Capital planeja tudo passo a passo, pois não permite que Katniss e Peeta se encontrem com nenhum vitorioso antigo, que já tem status, pois o apoio de qualquer um deles seria politicamente perigoso. Os vencedores de cada edição dos Jogos tornam-se celebridades e passam a morar na Aldeia dos Vitoriosos, segregados, numa casa dez vezes maior que as da Costura, ao redor de um lindo campo verde florido. A discrepância é tão grande que um mês de ganhos de um vitorioso daria para sustentar uma família pobre por um ano. Além do mais, seu distrito recebe muitos prêmios, especialmente comida: cotas extras de grãos e óleo, e até mesmo “guloseimas” como açúcar, enquanto os distritos restantes morrem de fome. Dessa forma, gera-se divisão entre os distritos e alguns até competem para ser laureados, como será mostrado mais adiante. Para Katniss, o único ponto positivo da vitória é ver as famílias felizes e essa é uma deturpação provocada pela Capital. Só que os Jogos nunca têm fim, já que ela e Peeta serão obrigados a tornar-se mentores dos futuros tributos e ver os pupilos mortos ano após ano. A depressão é tão grande que Katniss não quer casar nem ter filhos, para não colocar uma criança naquele mundo, já que ser vitorioso não garante a segurança de ninguém da família: os filhos terão os nomes inscritos na colheita. Ainda durante os Jogos, ela pensa que morar na Aldeia dos Vitoriosos com a família, ser famosa e rica constituiria “um novo tipo de liberdade”, iludida pela propaganda da Capital. Mas, no mesmo instante, se questiona como seria o cotidiano dela, já que não haveria mais caça: “Se tirarem isso de mim, nem tenho mais certeza de 78

quem sou, de qual é a minha identidade. A ideia me assusta um pouco” (JV, p. 333) – o mesmo acontece quando ela é confinada no subterrâneo do Distrito 13 e exige sair para caçar. Apesar das agruras de sua vida antiga, ela a prefere, em detrimento da nova vida na Aldeia: “Nós mal conseguíamos nos manter vivas, mas sabia onde me encaixava, sabia qual era o meu lugar na trama bem-urdida que era a nossa vida” (EC, p. 13). Ela não quer se transformar em um “produto” da Capital, perder a personalidade tornando-se uma celebridade vazia, deslumbrada, esquecida de suas origens. Porém, como todos os vitoriosos, é obrigada a ter um talento, uma atividade que assume, qualquer coisa a respeito da qual se possa fazer entrevistas, já que não precisa ir à escola nem trabalhar. Portanto, é notório que a educação é vista como algo desnecessário se já há riqueza e fama; a vida deve ser voltada para o entretenimento – um pensamento bem em voga atualmente. Assim, Katniss finge que se interessa por design de roupas e atua para as câmeras. Como se não bastassem os Jogos, a cada 25 anos, marcando o aniversário da derrota dos distritos com comemorações em alto nível, ocorre o Massacre Quaternário, uma edição dos Jogos Vorazes com mudanças terríveis, que serve para refrescar a memória do povo sobre as consequências das rebeliões. No primeiro Massacre, para que os rebeldes lembrassem que seus filhos estavam morrendo por seus pais terem escolhido iniciar a violência, cada distrito fez uma votação para escolher os próprios tributos, tornando-os corresponsáveis pelo sacrifício de seus habitantes. No segundo, a fim de que ninguém esquecesse que, para cada cidadão da Capital, dois rebeldes haviam morrido, o governo exigiu que houvesse o dobro do número normal de tributos. Nesse ano, Haymitch venceu, mas os professores não entram em detalhes sobre a competição, talvez porque ele tenha ganhado de forma ilegal, assim como Katniss e Peeta, utilizando o campo magnético da arena como arma. É provável que, se o poderio da Capital perdurasse, também não se falaria muito sobre a vitória das amoras; o governo omite fatos para que a rebeldia acabe não incitando sentimentos indesejáveis. No terceiro Massacre, para que os rebeldes não esqueçam que até mesmo o mais forte dentre eles não pode superar o poder da Capital, os tributos saem do rol de vitoriosos, todos conhecidos entre si, pois voltam à Capital a cada ano por ocasião dos Jogos – o que lembra a situação de Battle Royale. Os vencedores eram a esperança encarnada e a Capital quer mostrar que até essa esperança era uma ilusão, sem 79

despedidas nem multidões saudando no caminho. É bastante improvável que aquele tenha sido o Massacre registrado 75 anos atrás, pois se encaixou perfeitamente com a situação, minando os levantes e matando Katniss. Em prol da opressão, ignora-se até a garantia de que os vitoriosos seriam dispensados das colheitas para sempre. Como já se falou, a grande estratégia de poder da Capital é dividir as pessoas. Isso ocorre já na seleção dos tributos, quando Katniss comenta: “A devoção familiar, para a maioria das pessoas, termina quando começa o dia da colheita” (JV, p. 33). Os distritos veem os demais com raiva por terem matado seus próprios filhos e não têm permissão para se comunicar entre si, logo, obviamente, os habitantes de um não podem se locomover até o outro, exceto ao realizar tarefas oficialmente sancionadas, como o transporte de carvão, por exemplo. Katniss imagina que os Idealizadores dos Jogos bloqueiem a conversa dela com Rue – uma aliada – sobre a vida em seus distritos, porque, mesmo parecendo inofensiva, eles não querem que as pessoas saibam uns dos outros, simpatizem entre si. Só os prefeitos dos distritos recebem notícias comprometedoras da Capital pela televisão, que, naturalmente, não são transmitidas para o povo, como informes sobre levantes. O governo censura toda e qualquer informação não oficial e oposicionista. A manipulação também envolve a exibição das ruínas do Distrito 13, que ainda estariam ardendo devido às bombas tóxicas, portanto não seria possível uma aproximação. Porém, nada mais é que uma tentativa de afastar qualquer pessoa de lá: é sempre usado o mesmo filme de pano de fundo, à frente das ruínas do Edifício da Justiça, em que aparece o mesmo tordo por alguns segundos. Assim, não exibem o que de fato acontece lá. Deturpando a memória da população, o governo divulga que o Distrito 13 produzia grafite, quando, na verdade, eram armas nucleares. Da mesma forma, o Distrito 2 é apresentado como o lar das pedreiras nacionais, sendo que o papel dele é o de centro de defesa da Capital, em substituição ao 13. Na realidade, a superfície do Distrito 13 foi destruída por bombas, mas toda a população refugiou-se no subterrâneo que já existia e o incrementou para transformá-lo num novo distrito. O desenvolvimento nuclear continua no Distrito 13 e é por isso que a Capital permitiu sua sobrevivência, remetendo ao medo de um apocalipse nuclear que existia na época da Guerra Fria, retendo as forças de Estados Unidos e União Soviética. Atualmente, ainda persiste a ameaça, com Rússia, Irã e Coreia do Norte, que rivalizam com a potência americana. Em tese, o Distrito 13 não ajuda os demais porque precisava 80

primeiro se reconstruir, desenvolver uma base rebelde na Capital, e todos deveriam se unir, o que foi permitido pela figura de Katniss. A Capital permitiu sua sobrevivência desde que ele se fingisse de morto, provavelmente achando que os habitantes do distrito não resistiriam.  Linguagem Um aspecto interessante presente no livro que tem relação estreita com a manipulação é o uso da linguagem para iludir e transformar a realidade. Como Roland Barthes (2007) assinala, a linguagem, a língua, aparece como “o objeto em que se inscreve o poder, desde toda eternidade humana” (p. 7). E Pimlott (1989) completa: “A linguagem é testemunho: ela contém camadas geológicas de eventos do passado e valores fora de moda” (p. 390). Em JV, há diversos termos que se encaixam na ideologia governista. A maior das ironias, por exemplo, é o guarda violento que impõe punições nos distritos ser chamado de Pacificador, pois a paz, na visão da Capital, é a submissão. A Aldeia dos Vitoriosos encerra pessoas que nada têm de vitoriosas, pois continuam oprimidas. E como dizer que ser a única pessoa viva numa competição sangrenta é uma vitória? Os Edifícios da Justiça são uma incógnita na série, pois não se veem julgamentos e, muito menos, justiça para o povo. No nome, os tributos já são considerados aqueles concedidos por obrigação, dever, mas também podem ter o significado de homenagem, lembrança: ou seja, eles fazem a população lembrar que deve algo ao governo. A nomenclatura de “Dias Escuros” também é mais uma manipulação da Capital para dar à rebelião uma carga negativa – pode-se, inclusive, fazer um paralelo com a Idade Média, chamada de “Idade das Trevas” para ser depreciada. O “Tratado da Traição” quer incutir no povo a ideia de as revoltas antigas terem sido um ato malévolo para com um governo que só queria o bem; é assinado após a vitória da Capital com leis para garantir a “paz” e também instituem os Jogos Vorazes. Além disso, no site fictício da Capital, criado para divulgar o filme,32 podem-se encontrar outras expressões enganosas: o Ministério de Informações, que se preocupa apenas em informar o que lhe convém; e a “iniciativa revolucionária”, que se refere ao governo – lembrando bastante o golpe de 1964, chamado de “Revolução”. 32

Fonte: www.thecapitol.pn/intl/br/capitolconcerns.

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Sobre esse assunto, Pimlott (1989) ainda comenta: Aqueles que evitam a verdade afastam-se assustados de palavras conhecidas e as substituem com suas próprias. [...] palavras curtas e apocopadas “que provocam um mínimo de eco na mente daquele que fala o idioma”, e que por fim torna impossível a construção de pensamentos heréticos (p. 390).

Nesse sentido, o sotaque afetado da Capital pode se encaixar: as vozes são estridentes; as palavras, abreviadas; as vogais, pronunciadas de forma esquisita... Não temos mostras disso no livro, mas pode ser um tipo de Novafala, a linguagem inventada em 1984 para que as pessoas pensassem menos, permanecessem alienadas. Além disso, percebe-se que as pessoas acabam sendo condicionadas pela eterna manipulação quando Katniss conta: “Ninguém vai entender a tristeza que sinto pelo assassinato de Thresh. A palavra me deixa em estado de alerta em um segundo. Assassinato! Ainda bem que não falei em voz alta. Isso não me daria muitos pontos na arena” (JV, p. 330). O público não vê a morte do tributo como um crime, mas como um jogo, algo natural, banalizado, que não deve ser exposto com uma palavra dessas.  Banalização da violência Para iniciar, é interessante destacar um comentário de Isis Gomes, presidente do Conselho Diretor da FNLIJ, que não leu os livros da série e só viu o primeiro filme: O enredo é de uma crueldade extrema, beirando a vilania e a degradação dos sentimentos humanos. E me pergunto se é necessária toda essa violência para comover o nosso jovem de hoje. A geração que viveu em 1968 também buscava uma fuga, e nessa época de conflitos a procura era pela evasão através dos valores da paz e do amor. Apesar de esse tipo de leitura não estar na escola, [...] eles precisam ter acesso a todos os assuntos para formar o seu senso crítico. Não devemos censurar, mas refletir sobre o porquê dessa temática, [...] desse encantamento com a violência (SERRA, 2013, p. 147).

É de se imaginar que, apenas tendo como base o longa-metragem, Isis tenha uma visão incompleta de JV e veja a questão da violência como um prazer jovem, e não como fonte de crítica. A jornalista Raissa Pascoal (2012) pontua que “a história de um reality show em que adolescentes são forçados a matar uns aos outros parece transmitir uma mensagem de violência [...]. No entanto, a série [...] se propõe ser um alerta para o

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que pode ocorrer com o mundo caso as pessoas não cuidem dele”. A já citada autora Lois Gresh complementa: A trilogia é uma reflexão, um espelho dos nossos tempos. Em minha opinião, ela é um aviso de que nós [...] precisamos nos unir e nos salvar de um futuro que, ainda que remotamente, pode ser parecido com o de Jogos Vorazes. Fome generalizada, crianças enviadas para o matadouro da guerra, colapsos ambientais, atos terroristas e guerra nuclear (PASCOAL, 2012).

A escritora ainda lembra que, na União Soviética stalinista, o prisioneiro só conseguia sobreviver se cuidasse apenas de si mesmo, não se preocupasse com os outros, e a violência era necessária para a autopreservação, exatamente como acontece com os tributos nos Jogos Vorazes. A manipulação para que se valorizem os Jogos e se banalize a violência chega ao ponto de criar uma “verdade móvel”, segundo a qual se pode acreditar em duas crenças contraditórias ao mesmo tempo, apesar das provas em contrário – o que, em 1984, é chamada de “duplipensamento”. Algo que já ocorre no presente e não é meramente um prognóstico (FROMM, 1961, p. 376). Por exemplo, apesar de toda a falta de liberdade, nos Distritos 1, 2 e 4, existem os Carreiristas, tributos que tradicionalmente treinam para os Jogos e são os “cachorrinhos de estimação” da Capital (JV, p. 178), quase sempre ganhando os Jogos. Seus distritos consideram uma grande honra ser escolhido e, claro, vencer a competição, logo não existe voluntariado. A despeito da crítica acima sobre a violência na série, pode-se dizer que sua sanguinolência não chega a ser brutal, pois não incorre em descrições desagradáveis e sádicas: as cenas estão na trama por um motivo, não por gratuidade. Além disso, a violência possui nuances psicológicas e até mesmo os mais cruéis e sangrentos jovens lutadores podem ser vistos como vítimas do treinamento que receberam, criações inocentes da crueldade ou fraqueza adultas (DOMINUS, 2011). Mas até onde vai a ingenuidade? Para a resenhista Susan Dominus, JV opõe-se a um livro como O senhor das moscas, em que as crianças tornam-se seres cruéis por conta própria, mas, ainda assim, no Massacre, os competidores têm plena consciência de suas ações. A naturalização da violência também transparece no ponto de vista de Effie Trinket, que considera uma barbárie a situação primitiva do Distrito 12, mas não a chacina dos Jogos. A Capital trata as arenas como sítios históricos (a cada Jogo, uma nova é construída), preservados após as competições, tornando-se destinos populares 83

para os visitantes da elite em férias: passar um mês, rever os Jogos, passear pelas catacumbas, visitar os locais onde as mortes ocorreram, participar de uma recriação das cenas. O clima de naturalidade acaba impregnando também Katniss com o passar do tempo. No início da série, ela comenta: “A parte mais horrorosa é que se eu puder esquecer que se trata de pessoas, não vai fazer a menor diferença [em relação a matar animais]” (JV, p. 47). Em tempos de guerra, os soldados podem começar a ver os inimigos como apenas objetos, como “os outros”, e se admitir qualquer tipo de violência: os meios justificariam os fins e a legítima defesa seria uma alegação constante. No primeiro livro, Katniss mata animais para sua família não passar fome. E o motivo da sobrevivência é o mesmo para matar durante os Jogos Vorazes, além de, em alguns casos, ser retaliação. Sobre isso, Lois Gresh (2012) destaca: “nos identificamos tão fortemente com Katniss que queremos que ela saia dos Jogos como vencedora, e sabemos que isso significa que ela tem que matar várias [pessoas]” (p. 132). Em Jogos Vorazes, porém, ela ainda identifica-se com diversos adversários e com aqueles que choram por eles. Em meio à batalha do segundo volume, ela já pensa como uma assassina, mas também se culpa, em A esperança, pelas mortes terríveis de seus companheiros, de muitos do Distrito 12, de civis em geral, ainda que aceite a missão de liderar a ofensiva contra a Capital como o Tordo. Porém, ela fantasia maneiras de matar Snow e revela: “Sonhos não muito adequados a uma adolescente de dezessete anos, imagino, mas bastante prazerosos” (EC, p. 349). Katniss, definitivamente, não é uma heroína tradicional, algo que ainda abordaremos mais à frente.  Jogos Romanos e mitologia Entre as referências de JV, há muitas ligadas à Roma Antiga. Em uma entrevista para a Scholastic, Suzanne explica que mandou “os tributos para uma versão atualizada dos jogos de gladiadores romanos, o que mostra um governo implacável que lança as pessoas à morte como forma de entretenimento. O mundo de Panem, especialmente a Capital, está cheio de referências a Roma” (GRESH, 2012, p. 59). Em outra entrevista, ao USA Today, Suzanne afirmou que, se houvesse TV na Roma Antiga, os gladiadores teriam sido estrelas pop (p. 62); eles até desfilavam em carruagens, para a alegria dos

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fãs, como fazem os tributos. E, igualmente, se empanturravam em banquetes antes das lutas mortais e tinham patrocinadores, que lhes davam privilégios no combate. Na Roma Antiga, matavam-se milhares de homens, mulheres, crianças (além de animais) num só evento por meio de técnicas escabrosas de tortura. As orgias e banquetes eram parecidos com os do Capital: eles comiam, riam, bebiam e tinham cabelos e roupas espalhafatosas, assistindo a bestas selvagens trucidarem as vítimas – retomadas pelos bestantes da Capital. Alguns gladiadores também eram “brinquedos” sexuais descartáveis, como Finnick, e os romanos puniam os desobedientes com chicotadas em praças e outros lugares públicos. Um dos principais elementos que remete a Roma é o nome de Panem, vindo da expressão romana “Panem et circenses” (pão e circo), em referência ao excesso de comida da Capital e à “diversão” dos Jogos Vorazes. Os distritos servem para fornecer os dois elementos: o resultado é que os habitantes da Capital desistiriam de suas responsabilidades políticas em troca da fartura e do entretenimento. A guerra acaba com tudo isso, pois não há mais nenhum dos dois. Suzanne ainda revela outra referência romana na entrevista à Scholastic: “a figura histórica de Espártaco foi um grande modelo para a trama dos três livros e para Katniss. [Ele] foi um gladiador que escapou da arena e comandou uma rebelião contra um governo opressor que acabou levando à chamada Terceira Guerra Servil” (p. 68). Também é interessante notar que, em meio aos conflitos, Espártaco força centenas de prisioneiros romanos a lutar como gladiadores e a matar uns aos outros. Exatamente como acontece no fim de A esperança, quando se decide fazer os últimos Jogos Vorazes com crianças da Capital. Por fim, há referências também em diversos nomes romanos de personagens (alguns, na verdade, gregos): Plutarch, Seneca, Venia, Octavia, Cinna, Portia, Flavius, Darius, Lavinia, Coriolanus, Fulvia, Claudius, Cato, Enobaria, Purnia, Romulus, Brutus, Cressida, Messalla, Castor, Pollux – esses últimos, gêmeos, obviamente vindos da mitologia grega. Há ainda o uso de termos latinos. O ágape diz respeito a qualquer refeição de confraternização, especialmente de caráter social e político, e aparece na história como momento em que os Idealizadores forçam os tributos a se reunirem para tirar os Jogos da monotonia. A cornucópia é um vaso em forma de chifre, geralmente transbordando de flores e de frutas, outrora símbolo mitológico da fertilidade e riqueza, que em JV 85

tanto é um chifre serpenteado enchido durante a colheita das safras nos distritos quanto um chifre dourado gigante recheado de suprimentos e ferramentas dentro dos Jogos. A téssera, já explicada, tem diversas acepções que se aplicam à série: uma placa de identificação para objetos e escravos; uma pequena peça que servia como bilhete de entrada nos espetáculos de anfiteatros ou arenas; um cubo ou dado para jogar. Ainda no âmbito greco-romano, Suzanne, que ama peças clássicas, revelou ter se inspirado no mito de Teseu para construir a trama: “Quando eu era criança, eu era fanática por mitologia grega e esse era um dos meus mitos preferidos.”

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. Nessa

história, sete homens e sete mulheres são ofertados como tributos à Creta, jogados num labirinto onde vive o Minotauro, e Teseu consegue matar o monstro e sair da armadilha. Katniss seria o Teseu do futuro, pois escapa com vida da arena e luta contra o Minotauro da Capital.  Vigilância e reality shows Assim como em 1984 e Fahrenheit 451, o mundo de JV é dominado por câmeras. Mesmo no meio do nada, na Campina, Katniss fica preocupada de estar sendo ouvida e se refugia na floresta, onde se sente livre para dizer o que sente, ser quem realmente é, longe da vigilância perpétua. Ela aprendeu a controlar a língua e a mascarar as feições, para que ninguém pudesse ler seus pensamentos, preocupada também, como sempre, com a irmã: “Prim poderia começar a repetir minhas palavras e então como é que ficaríamos?” (JV, p. 12). Ela não deve mostrar fraqueza, para não ser identificada como alvo fácil por seus competidores, e esconde o rosto para poder sofrer sem ser vista pelo público. Por todo lado, as telas dominam as mentes. Há telões na colheita, que é transmitida ao vivo para todo o país, assim como durante os Jogos, na praça, com imagens de primeira qualidade. Há reprises das transmissões das colheitas, que são escalonadas ao longo do dia para que todas possam assisti-las ao vivo. Durante os Jogos, há comentaristas convidados, que discorrem sobre o comportamento dos participantes, reportagens especiais sobre cada um dos últimos oito tributos restantes, entrevistas com amigos, familiares e mentores. Após o evento, ocorre a noite do vitorioso, que dura três horas e repete os momentos mais importantes dos Jogos. As 33

Fonte: http://g1.globo.com/globo-news/noticia/2012/03/coluna-livro-camera-acao-traz-jogos-vorazespara-o-globo-news-literatura.html.

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câmeras perseguem os vencedores, saturando a audiência de imagens de Katniss e Peeta. Percebe-se, assim, toda a espetacularização em torno de um torneio violento, o que parece algo absurdo. Acerca dessa questão, Suzanne comentou numa entrevista:

Apesar de eu achar que alguns desses programas [reality shows] podem ser bem-sucedidos em diferentes níveis, também há a empolgação do voyeur ao ver pessoas sendo humilhadas, chorando ou sofrendo fisicamente. E é isso que eu acho muito perturbador. Há um potencial de tirar a sensibilidade do público e, quando eles veem notícias trágicas reais, não sofrem impacto. Tudo se mescla em um só programa. E eu acho muito importante, não só para os jovens mas também para os adultos, garantir que eles façam a distinção. Porque o jovem soldado morrendo no Iraque, isso não vai acabar no intervalo comercial. Não é algo fabricado, não é um jogo. É a sua vida. 34

A autora está falando de reality shows que realmente existem e da reação do público, pois há uma tendência muito grande de explorar o sensacionalismo. Em Fahrenheit 451, a fuga do protagonista é assistida ao vivo por milhões de espectadores, num prenúncio do mundo atual dos reality shows. Em JV, a questão da mídia e da imagem tem uma presença ainda mais pesada e crucial para a trama, refletindo a sociedade atual, em que “os jovens estão over imagéticos” (PRADES; LEITE, p. 85). Gregorin Filho (2011) salienta ainda que “a percepção das imagens é bastante estimulada na adolescência, em razão do crescente aumento do uso das tecnologias da informação e da comunicação” (p. 68). Uma cena que demonstra o ponto a que se pode chegar o grotesco em prol do visual é a em que a mulher morta por Katniss tem a maquiagem retocada antes de ser filmada pela Capital. Nesse universo midiático e de aparências, o que não faltam são elementos bizarros. Os patrocinadores existem para subvencionar os tributos, ou porque estão apostando neles ou porque querem se gabar por terem escolhido o vencedor, e as dádivas sobem de preço à medida que os Jogos avançam. Os Jogos não são um concurso de beleza, mas aparentemente os tributos mais atraentes conseguem mais patrocinadores. Com base nos treinamentos anteriores aos Jogos, os tributos recebem notas, que influenciam nas escolhas dos patrocinadores.

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Tradução minha. Fonte: www.scholastic.com/teachers/article/qa-hunger-games-author-suzanne-collins.

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A impressão dada nas entrevistas também conta muito, forjando um personagem que o público queira “conhecer”. Os espectadores “amam” os participantes e, a princípio, não ficarão satisfeitos por verem os vitoriosos de volta à arena no Massacre, já que criaram laços, veem celebridades como amigas, mas Katniss prevê que “vão esquecer tudo isso assim que o sangue começar a espirrar” (EC, p. 208). É a conexão efêmera e superficial com o mundo da fama. Mais importa como a pessoa é percebida, não como ela é de fato: um jogo das aparências, presente atualmente à exaustão. Katniss exibe-se como uma boa caçadora e não demonstra perplexidade, confusão, medo diante dos fatos; ela tem experiência de como lidar devido a toda a uma vida assistindo aos Jogos. Nesse sentido, Katniss e Peeta fingem amizade e depois um namoro para aumentar sua popularidade e angariar patrocinadores e dádivas: são os amantes desafortunados. O país embriaga-se de felicidade com o pedido de casamento de Peeta a Katniss e vota em opções de vestido de noiva, sentindo-se parte daquela história midiática. O drama da volta dos dois à arena é apenas um componente dos “melhores Jogos de todos os tempos” (EC, p. 206), destituído de todo seu valor humano. Assim, a estratégia no Massacre passa a ser não agradar aos fãs, mas mostrar-se implacável, considerando a atitude da Capital imperdoável, numa tentativa de voltar o público contra o governo. O “golpe de misericórdia” é a falsa revelação de que Katniss está grávida, e os tributos do Massacre se dão as mãos, na primeira demonstração de unidade entre os distritos desde os Dias Escuros. Nesse dia, o governo não passa reprise das entrevistas e os habitantes da Capital ficam confusos com a situação, pois nunca foram politizados, nunca se opuseram a qualquer atitude do governo, conduzidos de forma alienada. De qualquer forma, naturalmente, quando entraram na arena, alguns dos tributos deixaram a união de lado para se matar e Katniss se questiona: “O que [eu] poderia imaginar? Que a cadeia de tributos de mãos dadas na noite de ontem resultaria em alguma espécie de trégua universal na arena? [...] E vocês todos se conheciam, penso. Você se comportavam como se fossem amigos” (EC, p. 292). Na hora do espetáculo, as identidades são esquecidas. Em meio a tantas falsidades, Katniss pondera: Não consigo decidir se a lua é real ou meramente uma projeção. [...] Por algum motivo, desejo muito que essa seja a minha lua, a mesma que vejo da floresta que cerca o Distrito 12. Isso me daria algo a que me agarrar no mundo surreal da arena, onde a autenticidade de tudo deve ser colocada em xeque (JV, p. 332). 88

Nesse mundo, a sinceridade e espontaneidade acabam sendo bastante valorizadas, como é o caso do discurso de Peeta sobre como é de fato estar na arena, que deixa Panem hipnotizada: “assassinar pessoas inocentes [...] custa tudo o que você é” (AE, p. 31). Nunca antes um vitorioso descrevera de uma forma tão crua, não estetizada, glamurizada. Mas, obviamente, tal discurso só foi possível porque fazia parte de uma transmissão manipuladora de Snow. Tudo é pensado segundo a sociedade do espetáculo, que nada mais é que a sociedade atual. Numa edição dos Jogos, por exemplo, a maior parte das pessoas morreu de frio e, sobre isso, Katniss comenta: “Todas aquelas mortes tranquilas e sem luta foram consideradas muito pouco atraentes na Capital” (JV, p. 47). Os Jogos não podem ser monótonos, sem mortes ou brigas, logo os Idealizadores criam situações para “estimulá-los”, de preferência em um lugar sem nada para atrapalhar a visão, e às vezes até matam tributos só para lembrarem que têm poder. O clímax da competição em Jogos Vorazes ocorre quando Cato é lentamente devorado pelos bestantes: nenhum espectador conseguiria tirar os olhos do programa e, sob o ponto de vista dos Idealizadores, essa é a palavra final em entretenimento. Não há regras nos Jogos, mas, como o canibalismo “não cai bem” junto ao público da Capital, os Idealizadores resolvem arquitetar a morte de um tributo para que o vencedor não fosse um maluco. Apesar de toda a violência e brutalidade, há a hipócrita visão de que os Jogos não devem ter a reputação manchada e, acima de tudo, a audiência é que governa as decisões, como muito se vê na televisão contemporânea e, pior, nos fatos reais. O romance de Katniss e Peeta, em especial, eleva a audiência e proporciona um dia razoavelmente interessante aos Jogos, sem necessidade de lutas e sangue, mas também dá aos Idealizadores a ideia da mais dramática disputa final da história, em que um deve matar o outro. Para completar a espetacularização, muito frequentemente, filhos de vitoriosos são sorteados para os Jogos, em um processo tão constante que parece manipulação para que haja uma carga extra de dramaticidade e o público se excite, pensando no “azar” da família. Assim, Katniss prevê que o seu filho com Peeta certamente iria para os Jogos, dando-lhe mais um motivo para não ter filhos. No mundo midiático, as pessoas parecem não poder mais ter vida própria.

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 Lazer e estética Ainda na seara do culto à imagem, podemos focar agora o consumismo e a questão estética. A citação de Ligia Cademartori (2009) aplica-se perfeitamente a esse assunto: Em nossa época, toda prática cultural ocorre no marco da sociedade de consumidores, de que fazemos parte, caracterizado por ter estabelecido relações entre as pessoas à imagem e semelhança das relações entre consumidores e objetos de consumo, de modo a deixar confusos os limites entre gente que consome e coisas a serem consumidas (p. 122).

As pessoas desejam “se transformar em produtos admirados e desejados, mesmo que seja graças a uma visibilidade atingida por apenas alguns minutos” (Idem, ibidem). Essa é a realidade exibida na Capital e, obviamente, espelha a mentalidade de um bom número de pessoas em nossa sociedade. A vontade de ser o centro das atenções começa logo pelo próprio ambiente: ao chegar à Capital, Katniss a descreve com edifícios magníficos, num arco-íris de matizes. Carros cintilantes correm em avenidas, pessoas vestem-se de modo esquisito, com penteados bizarros e rostos pintados, “que nunca deixaram de fazer uma refeição” (JV, p. 67). Katniss comenta que os membros da sua equipe de preparação “são tão inumanos quanto um trio de aves coloridas ciscando aos meus pés” (JV, p. 70), mas a forma de pensar deles é tão diferente que, após todo o tratamento na protagonista, eles exclamam: “Agora você está quase parecida com um ser humano!” (Idem, ibidem). A ideologia vigente é de que, para ser humana, a pessoa deve passar por um salão de beleza e não ter quaisquer pelos e cicatrizes – não muito diferente da “ditadura da estética” que vigora; sem se cuidar, a pessoa pode ser chamada de “bicho”. Dessa forma, um rosto machucado por chicote escandaliza mais pela mácula na beleza do que pela violência exposta. Os habitantes da Capital fazem dezenas de plásticas extravagantes, dentro da denominada automodificação: implantam garras e bigodes, desenham padrões decorativos, tingem as peles e inserem pedras preciosas sob sua superfície, tudo para acompanhar as volúveis tendências de moda da Capital. Os vitoriosos também lançam moda, mesmo sem querer; o tordo de Katniss é copiado por todos, colocado em tudo quanto é adereço e roupa, mas, obviamente, não visto como símbolo da rebelião e, sim, de status. Uma das vitoriosas, Enobaria, por exemplo, ganhou mordendo os adversários e ficou tão famosa por isso que teve os dentes cosmeticamente modificados, banhados 90

em ouro, ficando com pontas afiadas. Simulando esse mundo de moda, maquiagem e futilidade, foi, inclusive, criado um site promocional (http://capitolcouture.pn), mas que acaba contradizendo a própria crítica que a série faz, pois vende roupas reais como se fossem glamurosas. Os distritos não usufruem das artes e de esportes, nada que exija esforço intelectual. A cultura quase não existe, resistente em apenas algumas músicas e danças, sendo que há censura sobre certas canções, por tratarem de violência. Só a Capital desfruta do entretenimento, aliás, vive para ele; prova disso é que festas e pratos suntuosos são pontos altos da vida dela e, após o fim dos Jogos, todos ficam entediados e ansiosos pela visita de Katniss e Peeta e pelo evento seguinte. De fato, as mentalidades são muito opostas, como Katniss nota: No Distrito 12, parecer velho significa mais uma conquista, já que tantas pessoas morrem cedo. [...] Uma pessoa rechonchuda é invejada porque não está ralando como a maioria de nós. Mas aqui [na Capital] a coisa é diferente. Rugas não são desejáveis. Uma barriga pronunciada não é sinal de sucesso (JV, p. 137).

O povo da Capital é mostrado como um povo amoroso, divertido e não desprezível, mas eles fecham os olhos para o que é feito com os distritos e não assumem a responsabilidade pela conduta da elite. Gale questiona a importância que Katniss dá aos membros da equipe de preparação, pois é óbvio que sabem que os jovens lutam até a morte para divertirem a Capital. Porém, veem isso com naturalidade, porque são criados com isso. Ao falarem sobre os Jogos, eles só dizem o que faziam ou sentiram em cada momento: tudo se refere a eles, não aos jovens mortos. E, apesar dos laços com Katniss, um dos motivos que mais os faz lamentar sua possível morte na arena é perder o “bilhete de entrada” para grandes eventos sociais. Não contentes com essa atitude, ainda consideram uma honra começar a ser mentora num Massacre Quaternário. E Effie, também habitante da Capital, compartilha essa opinião ao fazer a Katniss uma pergunta absurda, após ela se voluntariar no lugar de Prim: “Não quer que ela lhe roube a glória, não é?” (JV, p. 30). Diante da alienação da Capital, Katniss se pergunta: “Como eu passaria as horas que agora dedico vasculhando a floresta em busca de sustento se a comida fosse assim tão fácil de conseguir? O que eles fazem o dia inteiro, essa gente da Capital?” (JV, p. 73). É uma sociedade que vive parada diante das telas e dos espelhos. 91

 Resistência Uma das questões mais importantes de JV, presente em toda distopia, é a resistência. Segundo Alfredo Bosi (2002), “o seu sentido mais profundo apela para a força da vontade que resiste a outra força, exterior ao sujeito” (p. 11), o que é o caso na série. De acordo com o escritor de literatura jovem Eduardo Spohr, em entrevista à revista Bang!, há um fascínio geral em torno de protagonistas rebeldes, algo que também é uma constante mitológica. Ele lembra que a grande maioria dos heróis são figuras que se rebelaram contra um sistema vigente e elenca pessoas como Jesus, Buda e Maomé e personagens como Luke Skywalker, de Star Wars, e os robôs de Isaac Asimov. “Assim como esses heróis [...], nós também temos dentro de nós o desejo de nos rebelarmos contra as imposições sociais. No fundo, o que queremos é escolher o nosso próprio destino [...]. Todas as pessoas têm [...] o poder de fazer coisas incríveis, mas, às vezes, esse potencial está adormecido” (p. 78). A estética da obra leva à ética, à política, já que nenhum artista deixa de expor valores e antivalores por meio de seus personagens. É um processo interno ao foco narrativo, “uma luz que ilumina o nó inextricável que ata o sujeito ao seu contexto existencial e histórico” (BOSI, 2002, p. 26). Por meio da obra, o jovem (ou um leitor de outra idade) vê a possibilidade de encontrar força nas adversidades, e a resistência, a mobilização lhe mostram o poder de ter algo para defender, lutar, que o faça se sentir parte da sociedade, se ver como cidadão. “A relação entre literatura e leitor pode atualizar-se tanto no terreno sensorial como estímulo à percepção estética, como também no terreno ético enquanto exortação à reflexão moral” (JAUSS, 1974 apud ZILBERMAN, 2011, p. 43). Um dos símbolos de resistência mais emblemáticos da série é o do tordo. Durante a rebelião dos “Dias Escuros”, a Capital criou bestantes para serem usados como armas. Um deles era um pássaro especial, conhecido como gaio tagarela, que tinha a capacidade de memorizar e repetir conversas humanas, passando informações dos rebeldes. Quando estes perceberam, começaram a fornecer mentiras e os pássaros foram abandonados na natureza para morrer. Só que eles cruzaram com fêmeas de tordos, gerando uma nova espécie que podia reproduzir cantos dos pássaros e melodias humanas, ainda que tendo perdido a habilidade de enunciar palavras. Ou seja, um

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pássaro que se negou a morrer, originário de outro que foi usado contra o governo, apesar de criado por ele.35 Uma explicação para o simbolismo do tordo (e talvez uma inspiração para Suzanne) pode vir de um clássico americano de Harper Lee, O sol é para todos [título original: To Kill a Mockingbird]. Na história, um personagem dá às crianças armas de ar comprimido e os alerta que, apesar de poderem acertar todos os gaios que quiserem, devem lembrar que é um pecado matar um tordo. Confuso, o menino protagonista recebe a explicação: tordos nunca machucam outras criaturas e, ainda por cima, deleitam as pessoas com suas canções. Tordos representam vítimas inocentes e gaios são pássaros fortes, agressivos. A fusão dos dois gera vítimas que são forçadas a se rebelar contra forças opressoras, como Katniss. Ela se tornou uma vítima da Capital através dos Jogos Vorazes, então se tornou líder do movimento de resistência, batizada de Tordo. O tordo ainda tem mais simbolismos na história, pois suas canções lembram a Katniss do pai, que assobiava ou cantava músicas para os pássaros repetirem, e o broche de tordo que passa a ser seu distintivo havia pertencido a um tributo assassinado na arena. Katniss quer pensar mais além, quer sonhar. Diz Manuel Rivas que “todos os direitos humanos são importantes mas se nos amputassem o direito a sonhar perderíamos todo o resto” (2010, p. 1). Segundo ele, é nos jovens que aparece a energia insurgente, que não pode estar subordinada nem receber ordens mas também não oprime. Um símbolo do sonho na série é uma canção antiga, “Bem no fundo da campina”, que promete um amanhã bem mais esperançoso do que “este horroroso período de tempo que chamamos de hoje”, nas palavras de Katniss. Ela a canta para embalar a morte de Rue, a menininha de 12 anos: “Aqui seus sonhos são doces e amanhã serão lei [...] Esqueça suas tristezas e aquele problema estafante / Porque quando amanhecer de novo ele não será mais tão pujante” (JV, p. 251-2). O amanhã, o amanhecer são metáforas de um futuro melhor. Em Jogos Vorazes, Peeta diz que quer morrer como ele mesmo e não ser transformado num monstro: quer manter sua identidade, mostrar à Capital que ela não tem controle total sobre ele, que não é apenas uma “peça”. Katniss demora a entender 35

No original, mockingbird [tordo] e jabberjay [gaio tagarela] formam mockingjay, título americano do 3º livro da série, em alusão ao Tordo, nome dado a Katniss. Mockingbird também pode ser traduzido, ao pé da letra, como “pássaro que zomba/escarnece” e mockingjay, como “falso gaio”.

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esse pensamento, pois está voltada apenas para o pragmatismo, para se manter viva, mas, após o assassinato de Rue por outro menino, compreende: “Odiar o garoto do Distrito 1, que também parece muito vulnerável na morte, soa inadequado. É a Capital que odeio. Por fazer isso com todos nós” (JV, p. 253). “Lembre-se quem é o inimigo”, alerta Haymitch: não os outros tributos, mas a Capital, que deixa as pessoas morrerem de fome, torturam-nas e as matam na arena. Katniss se identifica até com Cato, o Carreirista do Distrito 1, pois também pode perder facilmente a capacidade de julgamento em meio a um acesso de cólera. Diante das pessoas mortas, Katniss vê que as invectivas de Gale contra a Capital também não são despropositadas: “A morte de Rue me forçou a confrontar minha própria raiva contra a crueldade, a injustiça que infligem sobre nós” (Idem). Em desafio ao pensamento de que todos devem se odiar, ela decora o corpo da menina com flores silvestres para que toda Panem possa ver e faz um gesto em homenagem a ela (naturalmente, o vídeo da noite dos vitoriosos não mostra essa parte). Em sinal de gratidão, o Distrito 11, de Rue, envia um pãozinho deles para Katniss. “O que isso não deve ter custado às pessoas do Distrito 11, que nem conseguem se alimentar direito...” (JV, p. 255), pensa a protagonista. Diante desse teor de resistência, pode-se dizer que JV é uma literatura dirigida aos que “estão vivos antes de morrer”, aos que têm necessidade de questionar, de viver dignamente, não apenas passar pela vida mecanicamente. Os personagens estão prostrados, mas querem se pôr de pé, se erguer, se elevar. Querem “cores para o futuro”, se pôr em marcha frente ao desconhecido, porque algo terrível pode ocorrer: o abandono, a impossibilidade do encontro, da harmonia (RIVAS, 2010, p. 3-4). O que define sua condição humana é essa capacidade para lutar contra a injustiça, o desafeto, a perda, a subtração (p. 7, 10). O que impulsiona Katniss à frente é a imagem de Prim, ansiosa, assistindo a ela, e a promessa feita a Rue de vencer. Assim como os Jogos seriam uma punição para quitar uma dívida eterna dos distritos com a Capital, as pessoas se veem constantemente em dívida no livro, e a solidariedade e a gratidão são formas de se rebelar e infringir regras, demonstrar união. Katniss tem “débitos” com diversos personagens, como Peeta, Gale, Haymitch, Finnick; Thresh tem com Katniss; o Distrito 13 tem com Peeta. A grande rebelião de Katniss, na verdade, começou quando ela teve a ideia de comer amoras envenenadas junto com Peeta, fazendo a Capital fracassar pelo fato de os 94

Jogos não terem nenhum vitorioso. A ausência de um vencedor macularia a ilusão trazida pelo evento. Então começam os Jogos Vorazes verdadeiros, no mundo real: a Capital torna-se a piada de Panem e, para demonstrar seu poder, exige dos dois uma encenação dos amantes desafortunados. Agora, as pessoas queridas de Katniss estão em perigo também. “Se uma garota do Distrito 12, logo esse!, pode desafiar a Capital e escapar incólume, o que os impedirá de fazer o mesmo?” (EC, p. 28), questiona Snow. A garota em chamas (remetendo ao carvão do distrito), logo do distrito mais insignificante, acendeu uma fagulha, que pode levar a um inferno, na visão da Capital. Katniss é o fogo, que queima mais intensamente na escuridão. Segundo James DeFronzo, professor emérito associado da Universidade de Connecticut, os cinco critérios necessários para uma rebelião são: o descontentamento das massas; dissidência da elite; motivo unificador; crise do Estado; permissividade do mundo (GRESH, 2012, p. 39). Todos encontram-se presentes na série, exceto a permissividade, já que Panem não tem contato com o restante do planeta. Katniss deu esperança ao povo e ele prefere morrer lutando a morrer de fome e de trabalho. Não se pode mais fugir, mas ficar e batalhar pelos que não podem escapar. Katniss tem medo de que Prim sofra por causa da rebelião, mas percebe que ela já sofreu muito devido à Capital: mataram o pai, quase a deixaram morrer de fome, escolheram-na para tributo e a fizeram ver a irmã lutar para sobreviver. Katniss percebe que a Capital é frágil, pois depende dos distritos para os suprimentos e até os Pacificadores. Se proclamarem a liberdade, ela entra em crise. Além disso, como dissidência na própria Capital, há um grupo secreto que tem por meta destruir o regime, e um dos membros é o chefe dos Idealizadores, Plutarch. O descontentamento das massas já se via logo no começo da série, quando Katniss se voluntaria. Effie Trinket pede uma salva de palmas ao público e recebe das pessoas como resposta a “forma mais ousada de protesto que conseguem. O silêncio” (JV, p. 31). Todos tocam os três dedos médios da mão esquerda nos lábios e os mantêm nessa posição, um gesto que costuma ser visto em enterros e significa agradecimento, admiração, adeus a alguém que se ama. Naturalmente, a recusa é considerada atraso pelos comentaristas da Capital. O motivo unificador, claro, é o Tordo. Enquanto Katniss viver, a revolução viverá: ela é a que sobreviveu apesar dos planos maléficos, cuja mera imagem, presença, serve de incentivo. Seu comportamento serve de exemplo para todos. Porém, 95

é difícil tomar posse desse posto, devido ao medo de fazer mais pessoas sofrerem ou morrerem. Mas a amizade, o companheirismo, os sentimentos são uma parte do Distrito 12 que o governo não consegue destruir. Para sobreviver em meio a tanta pressão e à necessidade de agir, Katniss não poderia ceder à pura subjetividade, que levaria ao desespero e à loucura, ou à mera acomodação ao mundo externo, à discriminação, indiferença, injustiça, que seria uma forma de morte. Ela deve permanecer no que Graciela Montes (1999) chama de fronteira indômita, uma difícil e intensa fronteira de transição, onde se encontra a liberdade: não limitada pelas demandas próprias nem pelas condições do mundo externo (p. 51-52). Ela e todos os rebeldes desejam escapar da “estúpida conjura para separar os seres humanos desde a infância” (RIVAS, 2010, p. 12), da divisão social que é “uma fonte de equívoco e sofrimento” (BOSI, 2002, p. 26). O Distrito 13 parece ser a libertação de toda essa segregação e privação. Lá, não há mais escassez de alimentos, violência, perigo. Para sobreviver, os habitantes adotam um regime militar muito restritivo, treinam jovens de pelo menos 14 anos para as forças armadas, veem os recém-chegados como uma nova leva de reprodutores. Todos têm disciplina e frieza exageradas. Ao sobreviver, o distrito superou todas as expectativas: aprendeu a ser autossuficiente, transformou seus cidadãos num exército e construiu uma nova sociedade por conta própria, onde o utilitarismo impera e o desperdício é um crime. Nesse ambiente, Katniss vê a perspectiva de Prim ser médica como um futuro que a rebelião pode proporcionar, algo que nunca ocorreria no Distrito 12. Contudo, não há maniqueísmo em JV e o Distrito 13 não é o paraíso e mostra-se em suas falhas e, mesmo, com muitas semelhanças em relação à Capital. Habitantes da Capital, como os membros da equipe de preparação de Katniss, também são tratados de forma desumana, deixados seminus, cheios de hematomas e acorrentados à parede por tentarem pegar mais comida do que era permitido, já que estavam acostumados à fartura e à falta de limites. A mãe de Katniss fica consternada ao ver que também há violência no Distrito 13, pois idealizava um lugar bondoso e perfeito. Katniss continua a ser manipulada e é uma arma nas mãos do Distrito 13 e da presidente Coin: apesar de ser o Tordo, não fica por dentro das decisões, não é considerada confiável. Ela ouve seguidas mentiras, justificadas como sendo para seu próprio bem. Mas a verdade é que, logo que terminar sua utilidade (unir os distritos), Katniss será descartada, provavelmente até morta. Isso porque, após o fim da guerra, o 96

apoio dela é de suma importância, por ser o símbolo da rebelião. A influência dela, possivelmente contra Coin, é perigosa e, se ela morrer, inflamará a rebelião, haverá uma mártir. Não à toa, quando o Distrito 13 acha que Katniss morreu nos conflitos, Coin entra no meio da transmissão do discurso de Snow se apresentando como a liderança dos rebeldes e enaltecendo o Tordo, colocando-o como motivação para a rebelião: “Glórias para a garota que sobreviveu à Costura e aos Jogos Vorazes, e em seguida transformou um país de escravos num exército de combatentes pela liberdade” (AE, p. 316). Dessa forma, Katniss não consegue confiar no novo governo e em suas intenções, portanto exige que, num pronunciamento gravado, Coin prometa não punir Peeta, Johanna e Enobaria, pois eles não teriam culpa pelo abandono do distrito, pagando com torturas na Capital – inclusive, Peeta é menor de idade. Como a presidente não pode aparentar se curvar à vontade de alguém, pois perderia autoridade, ela estabelece que, se Katniss fizer qualquer desvio na missão, seja em motivação ou em ação, a imunidade será retirada e o destino dela também será determinado pela lei. Katniss é, mais uma vez, manipulada, uma peça em um jogo, como já fora durante os Jogos Vorazes, o Massacre, no falso casamento com Peeta, nas mentiras que Haymitch lhe contara para esconder o plano do Distrito 13. A ética, a mentalidade no distrito também não é a mais correta, influenciando até Gale. O melhor amigo de Katniss segue o mesmo “código de regras” que Snow ao criar armadilhas que ultrapassam os limites da ética e se aproveitam das fraquezas e impulsos humanos, ao montar estratégias para as batalhas. Tanto pensa como o inimigo, a Capital, que começa a agir como ele, sem perceber que matar os adversários a qualquer custo para impedir ataques pode ter a mesma lógica que criar os Jogos para impedir que os distritos se rebelem. Já Plutarch, ex-chefe dos Idealizadores e um dos líderes rebeldes, lamenta não existirem mais diversos tipos de armas que havia antes do apocalipse – por causa da atmosfera, da falta de recursos ou de escrúpulos morais – como se, diante de tanta carnificina, ainda fosse preciso mais armamento. Além disso, ele achava que os altos escalões teriam privilégios, um “esqueminha paralelo” (AE, p. 52), ficando isentos das regras rígidas do Distrito 13. Ele defende que, mesmo com um mercado negro no Distrito 12, Katniss e Gale não se tornaram pessoas corruptas, por isso não há nada de mau em transgredir normas. 97

Um dos elementos mais marcantes, em que o Distrito 13 se assemelha muito à Capital, é o das propagandas e manipulações televisivas, que têm a imagem como elemento fundamental. O distrito possui toda uma equipe, chamada de “Defesa Especial”, para vestir Katniss, escrever seus discursos, orquestrar suas aparições – “como se isso não soasse horrivelmente familiar”, comenta a garota (AE, p. 17) – e ela precisa desempenhar seu papel de autoridade, o que inclui manter a farsa do romance, para que a audiência não perca a simpatia por Peeta. Diante das câmeras, Gale é retratado apenas como companheiro rebelde. Um traje de Tordo fora especialmente desenhado e sua personalidade e visual “rebelde” devem ser forjados: cicatrizes mais atraentes, curativo ensanguentado cenográfico e diversos elementos inventados que mais lembram estratagemas da Capital, como uma frase de efeito que invoca a “fome por justiça” (dentro do espírito do nome “Jogos Vorazes”). Katniss reflete: “Na condição de rebelde, imaginei que ficaria mais parecida comigo mesma. Mas pelo que vejo uma rebelde que aparece na TV tem os próprios parâmetros com os quais deve conviver” (AE, p. 71). Fulvia, assistente de Plutarch, que deveria estar acostumada com brutalidades por sempre assistir de perto aos Jogos, passa mal ao ver a feia cicatriz de Katniss no braço, mas a verdade é que ela está acostumada a ver coisas agradáveis mediadas pela TV. Por fim, a equipe percebe que, para que o incentivo aos rebeldes funcione, Katniss precisa ser ela mesma, sem roteiros, como nas diversas situações em que emocionou o público, por isso ela é mandada para o combate, com a explicação de que perdeu o falso bebê após o choque elétrico na arena. Com a aparência mais humana, ela gera identificação entre o povo; na espontaneidade é que ela age melhor, como se não houvesse câmeras, e o público gosta, como lembra Plutarch: “As pessoas ficam sempre bem mais corajosas com uma audiência” (AE, p. 155). Ela não faz o corte militar para que pareça o máximo possível com a menina na arena. Criam-se Assaltos Televisivos, uma série de “pontoprop” (pontos de propaganda) com Katniss, para serem transmitidos para toda Panem, burlando o controle total da Capital sobre as veiculações televisivas. São discursos contra o governo, inéditos na TV, e fazem efeito nos distritos, que ganham ânimo para a luta. Há diversas outras transmissões estratégicas. O Programa Tordo salienta alguns dos melhores momentos de Katniss entrecortados por cenas de levantes e tomadas de 98

guerra. Na série “Nós lembramos”, a cada programa, Finnick narra um tributo aos tributos mortos, lembrando o motivo pelo qual os rebeldes lutam; ele sofre muito, pois conhecia vários, mas Plutarch acha que assim é verdadeiro, apreciando explorar as emoções. Há também entrevistas com Katniss e Gale sobre o Distrito 12 e filmagem dos destroços, o que, para Katniss, é uma violação de privacidade. Fazem-se pontoprop do casamento de Finnick e Annie; da preparação dos rebeldes para invadir a Capital, incluindo Peeta, para mostrar que ele não está a favor de Snow. Tudo é válido para incitar a guerra, mesmo que de forma distorcida. Katniss serve no Esquadrão 451 – uma referência a Fahrenheit 451 –, chamado de Esquadrão Estelar, pois invadirão a Capital sendo filmados e, no fim, serão exibidos os destroços de guerra. Igualmente, Katniss prepara-se para as câmeras no momento da execução de Snow. No fim das contas, o distrito rebelde age de forma idêntica a seus inimigos. Snow recebe tratamento especial quando é feito prisioneiro, talvez para estabelecer um precedente para presidentes, como Coin: “Afinal de contas, quem é que pode saber quando o poder dela própria se esvairá?” (AE, p. 382). Katniss descobre que o Distrito 13 jogou bombas sobre crianças e jovens com uma nave da Capital, facilitando a adesão de todos aos rebeldes, e obviamente o ato é transmitido ao vivo. Por meio de Snow, Katniss ainda fica sabendo que Coin só queria a rebelião para tomar o poder, deixando que a Capital e os distritos se destruíssem enquanto o 13 ficaria ileso. O próprio distrito é que dera início aos levantes dos Dias Escuros e depois abandonara os demais quando a situação se revertera. Coin manipulou Katniss para desviar a atenção de Snow e talvez tenha autorizado o envio de Prim à batalha para que, com a morte dela, obtivesse a adesão do Tordo. Nesse cenário, Katniss se dá conta de que não há “mocinhos” naquela história, que a ânsia pelo poder é mais forte que tudo, como destaca Pynchon (2003): Apesar da derrota do Eixo [na Segunda Guerra], a vontade de fascismo não havia desaparecido; [...] longe de ter conhecido seu fim, ela talvez ainda não tivesse nem alcançado seu ápice: a corrupção do espírito e a irresistível dependência humana do poder já estavam havia muito estabelecidas (p. 404-5).

Depois da morte de Prim, Katniss fica muda, em estado de choque. Todo o esforço empreendido nos Jogos, a preocupação constante com a irmã deram num vazio. Em Jogos Vorazes, Katniss se voluntaria para salvar Prim, mas em A esperança a 99

menininha sucumbe à guerra, os outros jogos vorazes. Katniss descobre que Gale ajudou a construir alguns dos explosivos que mataram Prim seguindo o “código de regras” antiético, e não consegue mais ter nada com ele. Agora, devido às explosões dos conflitos, a garota em chamas fica toda cheia de queimaduras e cicatrizes, transformando-se, segundo ela, em “uma bizarra colcha de retalhos de pele” (AE, p. 378), com cabelos queimados. Plutarch afirma que, após a vitória sobre a Capital, será formada uma república democrática, que dera certo no passado. Mas Katniss é descrente, pois os “ancestrais” deixaram o planeta destroçado pelas guerras: “Visivelmente não davam a mínima para o que poderia vir a acontecer com as pessoas que viveriam depois deles” (AE, p. 96). É uma crítica contundente à nossa sociedade atual, que movida pela ganância e pelo poder, destrói cada vez mais o mundo e a si mesma. Finda a guerra, quando se esperava a paz, um círculo vicioso forma-se, mostrando mais uma vez como o mal não está apenas de um lado, que o inimigo pode estar dentro de cada um. Surpreendentemente, após uma votação entre os vitoriosos restantes, opta-se por uma última edição dos Jogos Vorazes com as crianças ligadas diretamente aos que tinham mais poder na Capital – o que remete à já citada batalha forçada por Espártaco. Para Coin, a decisão é válida porque é um equilíbrio entre a necessidade de vingança e o mínimo desperdício de vidas: não se poderia aniquilar todos da Capital porque é necessário manter uma população sustentável. Ou seja, poupam-se vidas por uma questão demográfica, não por pensamentos misericordiosos. A rebelião foi por causa dos Jogos, mas o fim dela retorna ao mesmo lugar, algo que Beetee considera um precedente ruim: é preciso parar de enxergar os outros como inimigos e se unir pela sobrevivência. E Katniss imagina se ocorrera uma reunião do tipo 75 anos atrás, ao fim dos Dias Escuros: “Nada mudou. Nada jamais mudará agora” (AE, p. 397). Transtornada com as revelações sobre a manipulação do Distrito 13 e vendo que Coin nada mais era que um novo Snow, Katniss a mata, temerosa de que os Jogos Vorazes perdurassem eternamente e de que o novo governo também fosse uma ditadura. Presa, Katniss sofre de estresse pós-traumático, que provoca tendências suicidas e dependência de drogas, perdendo a vontade de viver, de se ver como algo diferente de uma pessoa terrível, uma máquina de matar. Ela receia não quererem matá-la e, sim, usá-la novamente, mas pensa: “Não tenho mais nenhum compromisso com aqueles 100

monstros chamados seres humanos. Eu mesma me desprezo por fazer parte deles” (AE, p. 405). Por dois anos, Katniss sofreu todo tipo de manipulação e está desiludida com tudo o que presenciou. Por fim, seu julgamento ocorre – naturalmente, televisionado, como um espetáculo – e ela é apresentada como uma lunática abalada por traumas de guerra, que deverá ficar confinada na Aldeia do Distrito 12, sendo monitorada por Haymitch. Ninguém sabe o que fazer com ela após a guerra, mas, se outra se tornar iminente, Plutarch admite que ela seria útil, um símbolo poderoso. A imagem ainda faz toda a diferença: o mundo mudou mas continua o mesmo. Ele completa, com tom agourento: – Agora estamos naquele período tranquilo onde todo mundo concorda que os nossos horrores recentes jamais deveriam se repetir [...] O pensamento em prol do coletivo normalmente possui vida curta. Somos seres volúveis e idiotas com uma péssima capacidade para lembrar das coisas e com uma enorme volúpia pela autodestruição (AE, p. 407).

O ex-chefe dos Idealizadores resume bem o que todo o livro representa: como o individualismo e a sede de poder podem levar a humanidade à destruição e, o pior, como se pode esquecer tão facilmente as lições do passado e cometer os mesmos erros. No fim, Katniss demonstra um dos sinais que atestam a entrada na idade adulta, como já se falou no Capítulo 2: adquiriu uma nova maneira de amar o outro e de amarse a si mesmo. Ela percebe que amava mesmo era Peeta, o garoto que já salvara sua vida mesmo quando não se conheciam pessoalmente, dando-lhe comida, e que é um contraponto ao seu fogo inflamado. No epílogo, após mais de vinte anos, ela revela que teve dois filhos: “Foram necessários cinco, dez, quinze anos para que eu concordasse” (AE, p. 418). Ela escreve um livro com memórias de tudo o que passou, incluindo recordações de Haymitch sobre vinte anos de tributos, e recebe uma proposta de ter um programa de canto na TV. As arenas foram completamente destruídas, memoriais foram erguidos, acabaram-se os Jogos, mas os professores dão aulas sobre o passado: é importante marcá-lo bem na memória. Katniss precisará explicar aos filhos por que os pesadelos jamais acabarão, contar-lhes sobre o passado sem deixá-los “mortos de medo”... Seria de um possível retorno àquela condição, dada a corrupção da humanidade? Os filhos brincam na Campina, sem saber que ali é um cemitério, mas o espírito da música “Bem no fundo da campina” é o que marca as circunstâncias, tendo sido concretizada. 101

O final de JV segue a característica apontada por Julie Millward (2006): “As distopias têm como característica terminar sem resolução, deixando em aberto as possibilidades e, assim, encorajando o leitor a contemplar sua contingência” (p. 20). Apesar do tom lúgubre, de todas as sequelas, pode-se dizer que JV tem um contraponto otimista. Segundo a editora Kate Egan, esse seria um aspecto que distingue a distopia jovem da adulta: “O fim não precisa ser feliz, mas deve haver esperança. Uma janela é deixada aberta.”36 A resenhista Devon Maloney (2014) ainda acrescenta: “Esses livros são bem-sucedidos porque, ao contrário do desenlace tradicional do gênero [...], eles dão esperança aos jovens que vivem numa distopia real, onde raramente encontra-se otimismo.” Apesar de todo o jogo de poder e manipulação, pode-se dizer que “o horizonte último dessa experiência [a leitura] não é a verdade, mas o amor, forma suprema da ligação humana” (TODOROV, 2012, p. 81). Só na união e na solidariedade é que o mundo não se tornará uma distopia.

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Tradução minha. Fonte: http://blog.sarahlaurence.com/2010/11/interview-with-kate-egan-editor-of.html

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5. Conclusão

A literatura adolescente e jovem é um campo muito amplo e ainda pouco explorado, especialmente a categoria YA. Este trabalho buscou, justamente, contribuir para o desenvolvimento de um melhor panorama da área. Após uma grande discussão sobre uma literatura genérica, sem rótulos, e uma específica, categorizada, pôde-se atingir o objetivo geral e mostrar que existem divisões e públicos variados, mas que isso não tira a qualidade e a riqueza de cada uma. Pelo contrário, ainda mais levando-se em conta que um livro escrito para determinado nicho pode muito bem atingir leitores de outras faixas etárias. Contudo, para que se vençam os preconceitos e a literatura jovem ganhe status e mais atenção do mundo acadêmico, é necessário que os próprios leitores não tenham vergonha de se assumirem como tais. Lois Gresh (2012), a já mencionada autora de um almanaque sobre JV, deixa transparecer que vê a obra de que é fã com certa inferioridade: No fim os leitores devem deixar de lado a descrença durante a leitura de ficção científica e fantasia. Se há pontas soltas que parecem um pouco desconexas ou ilógicas, dizemos a nós mesmos que a história foi um bom passeio, os livros foram muito bem-escritos, amamos certos personagens e as histórias tiveram um impacto profundo e emocional. O que mais queremos? (p. 102-3)

Ou seja, pelo fato de ser ficção científica, fantasia, distopia, a narrativa não precisaria ter uma coerência interna – uma visão equivocada de Gresh, visto que os aspectos levantados antes desse trecho não são incoerentes. Já na visão de uma leitora como a consultora de projeto Grazielle Sobrinho, Em chamas seria uma “história boba, que descanse a mente”,37 uma afirmação que talvez seja apenas fingimento devido ao pensamento dominante de que livro jovem best-seller é um constrangimento, ainda mais para uma mulher como ela, de 30 anos. É claro que, como em toda categoria da literatura, é preciso “separar o joio do trigo”, filtrar o que tem qualidade do que não tem e, mesmo entre as obras que não estejam entre as melhores, extrair o que de útil e profundo ali possa haver. Em meio ao 37

Fala de uma matéria jornalística sobre leituras no metrô. Fonte: MORI, Letícia. Leituras de subsolo. Revista São Paulo, Folha de S. Paulo, 23 mar. 2014. p. 21. Disponível em: www1.folha.uol.com.br/saopaulo/2014/03/1429093-saiba-o-que-passageiros-do-metrode-sp-leem-durante-o-trajeto.shtml

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boom de distopias (assim como em todos os temas que viram moda no mercado a cada período), é também necessário ser crítico, vendo os pontos positivos e negativos, como a caça por autores que escrevam livros do gênero apenas como forma de preencher lacunas, não necessariamente por ter alguma qualidade – mas, novamente, isso não é exclusividade da ala jovem; talvez nela se veja o processo de forma mais acentuada. A constante pressão nas editoras e sobre os escritores é ainda maior no mundo atual de mídias, redes sociais e interatividade com os fãs, que cobram e exigem. Para a jornalista Michelle Dean (2014), o fato é que, “quando os leitores se apaixonam por um livro, desejam mais e mais dele, aceitando imitações cada vez mais pálidas do original, até que tudo se torna tão desgastado e trivial que passa a ser inviável”. 38 Esse fenômeno pode ser visto desde o lançamento da série Harry Potter e suas cópias. Porém, o fato de que a distopia agora atinge um público mais específico não lhe tira o crédito mas apenas se trata de um processo de expansão, também visto em outros gêneros que antes eram restritos – e, devido às obras jovens, os clássicos novamente ganharam destaque. Além disso, as novas distopias trazem questionamentos e realidades que atingem ainda mais leitores, por sua abordagem distinta. Segundo Nelly Novaes Coelho (1993), O que hoje define a contemporaneidade de uma literatura é sua intenção de estimular a consciência crítica do leitor; levá-lo a desenvolver sua criatividade latente; dinamizar sua capacidade de observação e reflexão em face do mundo que o rodeia; e torná-lo consciente da complexa realidade-em-transformação que é a sociedade, onde ele deve atuar (p. 134-5).

Com base na análise do capítulo anterior, pode-se dizer que a série Jogos Vorazes é uma obra contemporânea, pois incita o leitor a refletir criticamente sobre a sociedade atual, que banaliza a violência; incentiva o consumismo e o culto à beleza; estimula a vigilância constante e o voyeurismo; dissemina a pobreza e a fome; manipula informações em vista de um projeto de poder. E, a partir da reflexão, a pensar mudanças e atuações dentro da sociedade. A trilogia é um exemplar especial dentro dessa nova leva de distopias que ainda merece ser muito estudada, pois cada série trabalha elementos diversos na temática pós-apocalíptica. De acordo com Ursula K. Heise, a alta da distopia se deve ao fato de que ela é muito mais interessante e efetiva narrativamente, pois “estamos mais conscientes do 38

Tradução minha.

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fato de que todos no mundo não compartilham o mesmo ideal, especialmente com relação a gênero, raça e religião” (MALONEY, 2013),39 logo utopias são implausíveis. Porém, Ursula alerta que de nada adianta a distopia ser popular se não implica consequências reais. Nesse sentido, ganham importância as análises de obras distópicas que dialoguem com problemas atuais e proponham soluções, assim como discussões nas escolas e outras instituições que prezam a educação e a cidadania, fazendo uma ponte entre os jovens, sua literatura e o mundo que os cerca, dando sentido ao que leem. Haverá sempre futuros a serem temidos, mas cabe a cada um batalhar para que o temor não se sobreponha à ação. E com a literatura tudo fica mais fácil.

39

Tradução minha.

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6. Anexo

Fonte: www.dylanglynn.com/utopia-dystopia

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Ilustração baseada na história da série

Fonte: www.nytimes.com/imagepages/2011/04/10/magazine/mag-10collins-t_CA0.html

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Propagandas da Capital exaltando os distritos Fonte dos pôsteres e dos textos traduzidos: https://br.cinema.yahoo.com/noticias/confira-sete-p%C3%B4sters-in%C3%A9ditos-donovo--jogos-vorazes-153432932.html

Distrito 3 - Tecnologia Irmãos e irmãs do Distrito da Tecnologia, o Ministério de Informações da Capital saúda seus esforços benevolentes para contribuir com o mundo tecnológico de nossa grande nação. As mentes altamente inteligentes do Distrito 3 estão por trás de algumas das mais avançadas conquistas de Panem, por isso nós lhe agradecemos. Nós da Capital lutamos para criar um ambiente seguro e harmonioso, e suas infinitas contribuições nos permitem fazer desse objetivo uma realidade. Nunca se esqueçam de como os seus atos superiores colocam nosso maravilhoso país no rumo certo. Nunca se esqueçam de como os seus projetos se conectam diretamente com a história de Panem. Nunca se esqueçam da significância que o seu trabalho garantiu. Permitam que esta amostra exemplar de heroísmo distrital aumente sua fé e confiança em um sistema que os aprecia como um todo; como pode atestar a adorável Fibre Bissette, os códigos que são escritos, os fios desemaranhados e as utilidades inventadas contribuem para o bem-estar de seu Distrito e, consequentemente, para o bem maior de Panem. 108

Distrito 4 - Pesca As estações mudam e as marés sobem, mas os cidadãos do Distrito 4 mantêm sua dedicação sem fim em alimentar o coração da Capital. Nós os saudamos, árduos trabalhadores do Distrito da Pesca, e suas contribuições valiosas para a sociedade. Trazido a vocês pelo Ministério de Informações da Capital, este display comemorativo da adorável Naida Dolan representa o melhor do heroísmo do Distrito 4! Lembrem-se do valor de suas ações, que são responsáveis diretas do crescimento e unidade do país como um todo. Todo peixe que fisgam, todo nó que apertam e toda onda do oceano que conquistam ajudam a manter a corrente constante de nosso elegante sistema e fortalece os laços entre Panem e seu povo. Nenhuma contribuição é pequena e todo impacto é crucial. Enquanto conhecem as peças inspiradoras que o Ministério de Informações da Capital fez sobre seu Distrito, lembrem-se de que somos Uma Panem. Apoiem a Capital e apertem esse laço inquebrável. 109

Distrito 6 - Transporte A Capital homenageia os grandes esforços do Distrito 6 por seus notáveis progressos no mundo dos transportes. Honramos os heróis do cotidiano do Distrito dos Transportes e estimamos a comunidade que busca excelência, progresso e harmonia! A estrada para a unidade não tem fim, mas juntos podemos caminhar rumo à prosperidade. Panem vive para servir ao povo e, em retribuição, cada Distrito deve viver para seu dever. Sejam pioneiros em seu campo de atuação e nos ajudem a enriquecer as vidas de nossos cidadãos. Apreciamos o amor e compromisso que todo cidadão demonstra em seu trabalho. Das jovens mentes que absorvem a cultura e história de nossa grande nação aos homens e mulheres que trabalham o dia inteiro para proteger nosso sistema, todo trabalho é essencial para o crescimento de Panem. Em tempos de luta, indecisão ou dificuldades, encontrem encorajamento em Malcolm Kastel e sua postura exemplar, e lembrem-se da importância de suas tarefas. Ao caminhar pela estrada para a unidade, pedimos que façam sua parte e mantenham-se informados. 110

Distrito 7 - Madeira Irmãos e irmãs do Distrito da Madeira, vamos nos unir em celebração de seus fervorosos esforços para fazer de Panem uma nação maravilhosa! Para honrar seu distrito, o Ministério de Informações da Capital lançou este display comemorativo como exemplo da quintessência do heroísmo do Distrito. Que Elias Haan e sua sabedoria introspectiva inspirem sua contínua defesa dos ideais de paz e unidade da Capital e a proteção de nossa “Panem Única”. Enquanto vocês utilizam as mais belas florestas para fornecer aos seus irmãos a mais bela e uniforme madeira, lembrem-se de que a Capital valoriza sua dedicação à sociedade. É seu dever como cidadãos de Panem proteger o sistema que trabalhamos arduamente para conceber. Abracem os desafios de trabalho árduo e lembrem-se do papel fundamental de vocês na preservação de nosso país. Nós da Capital admiramos sua força e elogiamos sua lealdade. Devemos todos nos manter tão altivos quanto os poderosos carvalhos que derrubam, e trabalhar juntos para construir e preservar um futuro melhor. 111

Distrito 9 - Grãos A Capital saúda e elogia os cidadãos do Distrito dos Grãos! Temos notado seus alegres esforços e, para honrar o espírito beneficente da “Cesta de Pães” de Panem, nós esperamos que encontrem inspiração contínua em Triti Lancaster como modelo de heroísmo do Distrito 9. Do minuto em que o sol agracia o céu com seu brilho até o momento em que silenciosamente se esvai dentro da noite, vocês abraçam seus deveres com o maior cuidado. O tempo, amor e dedicação que vocês dispensam ao trabalho permitem que nossa nação trabalhadora dê sempre um passo além no caminho de ser a nação que sempre quisemos. Dizer que a Capital aprecia a dedicação seria um eufemismo, pois sua fidelidade é tida em nossa mais alta estima. Continuem com esta lealdade para nos ajudar a manter cada semente em seu lugar de direito. Ajudem-nos a arar qualquer obstáculo que esteja em nosso caminho. E, acima de tudo, ajudem-nos a nutrir Panem em nossa busca por paz e unidade. 112

Distrito 10 - Pecuária A Capital celebra o espírito e a camaradagem do assíduo Distrito da Pecuária. Nós honramos todos os dias nossos heróis do Distrito 10 por produzir a mais fina carne, tosquiar a lã mais macia e utilizar o brilhante sol da Capital em seus recorrentes esforços. Trabalhar em grupo é um brilhante exemplo de grandeza que, como sabemos, este país é capaz de produzir. Trabalhar em unidade para nos tornarmos os cidadãosmodelo que, como sabemos, este país criou. Trabalhar em unidade para ratificar a solidariedade de nosso sistema. O Ministério de Informações da Capital pede que tomem Felix Stam como exemplo de diligência, lembrando-se de seus ardentes esforços. Somos gratos para sempre aos cidadãos que fazem contribuições incontáveis para a sociedade. Juntem-se à Capital para estreitar os laços entre os Distritos. 113

Distrito 12 - Mineração Para nossos irmãos e irmãs do Distrito 12 dizemos: “Bravo!” Seu honrado trabalho ético e sua perseverança não passaram em branco e a Capital aprecia seu comprometimento a serviço da nossa grande nação. Agora, mais do que nunca, vocês devem se lembrar da importância de nosso sistema e do bem maior que ele propiciou. Continuem com suor no rosto e ferimentos nos dedos. Deixem que a fuligem descanse em seus pés. Vocês são a luz que brilha nas minas de carvão que exploram. Tenham orgulho de suas cicatrizes de trabalho: elas significam o amor pelo seu país. Nenhum cidadão é jovem demais para suportar os esforços de construção do Distrito da Mineração e, por consequência, dos galantes esforços de Panem. Tomem Lily Elsington como exemplo nesse display criado para vocês pelo Ministério de Informações da Capital. Juntem-se à Capital e apoiem seus tributos para fortalecer o laço que nos torna um só. 114

Fonte das fotos abaixo: http://veja.abril.com.br/noticia/celebridades/o-mundo-cruel-erentavel-da-distopia-infantojuvenil

Montagem publicada na internet por fãs da saga Jogos Vorazes compara os protestos no Brasil com o início da revolução em Panem

Manifestantes usam frases e imagens da série em protestos no Brasil

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