Leitura crítica de A Ciência no Pensamento Especulativo Medieval de Ricardo da Costa e O Aristotelismo Medieval e as Origens do Pensamento Científico Moderno de Beatriz H. Domingues

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Leitura crítica de A Ciência no Pensamento Especulativo Medieval de Ricardo da Costa e O aristotelismo medieval e as origens do pensamento científico moderno de Beatriz H. Domingues1 Cesar A. Zanin Filhoi Resumo: O trabalho examina os distintos conceitos de ciência através do tempo, com a constituição e a herança dos pensamentos platônico e aristotélico na história da filosofia através de sua apropriação medieval para a acomodação da fé religiosa abraâmica (aqui tratamos especialmente da cristã), em confronto com o pensamento científico – seja da filosofia naturalista pré-socrática, seja das ciências moderna e contemporânea –, através de uma análise crítica, de viés fisicalista, sobre os dois artigos acadêmicos em epígrafe.

Ricardo da Costa escolheu uma data emblemática para apresentar sua palestra A Ciência no Pensamento Especulativo Medieval: o Dia de Darwin na Ufes – comemoração do bicentenário de nascimento de Charles Darwin, em 2009. Não sei como a palestra foi recebida pelo público presente aquele dia, mas levando em conta o seu conteúdo, o emblema dessa data não poderia ser mais distinto. Darwin nasceu numa família e numa comunidade da tradição cristã anglicana, mas por conta de seus extensos estudos2, que culminaram no conceito da seleção natural e na publicação de A Origem das Espécies, se tornou agnóstico3. Independentemente das especulações a respeito de suas crenças e sentimentos mais íntimos, é inegável que sua obra teve grande impacto nos meios cultural, político e acadêmico desde a publicação em 1859, disparando a chamada controvérsia da criação versus evolução4.

1 Após troca de mensagens com Cesar Zanin na rede social facebook, onde este problematizou o papel da herança dos pensamentos platônico e aristotélico nos conceitos de ciência cunhados pelos padres e doutos da igreja, numa história da filosofia onde o pensamento científico iniciado com os naturalistas pré-socráticos só iria ser retomado a partir do renascimento, com a chamada revolução científica, o doutor Guilherme Almeida Ribeiro, professor de filosofia no ISERJ, sugeriu a leitura dos dois artigos em epígrafe, com o fim de demonstrar a partir de elementos já bem consolidados pela tradição historiográfico-filosófico o porquê de sua estranheza dessa oposição insustentável entre o naturalismo présocrático e a tradição platônico-aristotélica. Guilherme colocou que a Igreja foi responsável pelos primeiros observatórios astronômicos e pela criação das universidades, e que muitos estudiosos da "physis" se infiltraram aí e, com certa cautela, puderam fazer as coisas avançarem. 2 http://literature.org/authors/darwin-charles/the-origin-of-species/chapter-04.html 3 http://darwin-online.org.uk/content/frameset?viewtype=side&itemID=F1497&pageseq=1 4 http://www.geosociety.org/gsatoday/archive/22/11/abstract/i1052-5173-22-11-4.htm

Pois até então, em qualquer parte do mundo onde se encontravam os três ramos principais da religião abraâmica, a versão oficial sobre a origem das espécies era aquela que diz que o primeiro homem foi criado a partir de barro e a primeira mulher foi criada a partir de uma costela do primeiro homem, diretamente pela mão de deus, à sua imagem e semelhança, para domínio sobre a criação terrestre. Apesar de ainda presente em outras partes do ocidente5, atualmente a controvérsia tende a se concentrar nas comunidades cristãs protestantes dos EUA, já que o nível de apoio à evolução é extremamente alto na comunidade científica6 e até mesmo o papa Francisco a reconheceu recentemente. Porém, mesmo que predominantemente em círculos restritos, em muitos lugares ainda hoje persistem os debates7 8. As igrejas cristãs, por serem entidades religiosas, ainda gozam de estatuto ou reconhecimento privilegiado, ou pelo menos isenções ou incentivos fiscais/tributários, em países como El Salvador, Espanha, EUA, França, Haiti, Panamá, Paraguai, Peru, Polônia, República Dominicana e Brasil, mas dos quase 200 países reconhecidos pela ONU no mundo, hoje apenas seis deles são considerados estados confessionais cristãos, e apenas o Vaticano é considerado um estado teocrático cristão9. Até mesmo nos dias de Darwin, a maior das igrejas da cristandade já não ostentava mais tanto poder temporal quanto já deteve em outros tempos; a igreja católica desde 1805 vinha com seus estados papais tendo a continuidade ameaçada por Napoleão10; pouco antes houve o início da revolução industrial e a revolução francesa, botando fim ao absolutismo do direito divino dos reis11. É pertinente notar que nesse mesmo período houve por parte da igreja a desistência da proibição geral de livros que defendiam o heliocentrismo, em 175812,



5 Curry, Andrew (27 February 2009). "Creationist Beliefs Persist in Europe". Science 323 (5918): 1159.

doi:10.1126/science.323.5918.1159. PMID 19251601. "News coverage of the creationism-versus-evolution debate tends to focus on the United States … But in the past 5 years, political clashes over the issue have also occurred in countries all across Europe. … "This isn't just an American problem," says Dittmar Graf of the Technical University of Dortmund, who organized the meeting". 6https://web.archive.org/web/20060221125539/http://www.aaas.org/news/releases/2006/pdf/0219board statement.pdf 7 http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u11748.shtml 8 https://www.youtube.com/watch?v=jcltesRWMOw 9 Fundamental Law of Vatican City State, Art. 1, #1 10 De Cesare, Raffaele (1909). The Last Days of Papal Rome. Archibald Constable & Co. p. 423. 11 Burgess, Glenn (October 1992). "The Divine Right of Kings Reconsidered". The English Historical Review 107 (425): 837–861. doi:10.1093/ehr/cvii.ccccxxv.837 12 Heilbron, John L. (2005). "Censorship of Astronomy in Italy after Galileo". In McMullin, Ernan. The Church and Galileo. University of Notre Dame Press, Notre Dame. ISBN 0-268-03483-4.



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e o decreto aprovado pelo papa Pio VII, que finalmente permitiu em Roma a impressão de livros que ensinavam o movimento da Terra, em 182213. Mas antes dos dias de Darwin, se voltarmos um pouco mais, a sagrada congregação da inquisição destinava um tipo de tratamento bem característico aos chamados filósofos naturais – conhecidos assim por tratarem dos princípios do mundo material através de observação e racionalização ao invés de obedecer aos dogmas da igreja (precursores das ciências naturais como as conhecemos hoje) –, como por exemplo Giordano Bruno, executado na fogueira e Galileu Galilei, morto em prisão perpétua14, Nicolau Copérnico, Johannes Kepler e Isaac Newton, dentre tantos outros censurados e/ou incluídos no Index Librorum Prohibitorum15. A primeira imagem do artigo de da Costa, também emblemática, é Deus, Arquiteto do Universo, da Bíblia moralizante - Codex Vindobonensis 2554, França, de ano de 1230 aproximadamente. Os dois artigos em epígrafe seguem o viés da chamada tese de continuidade16. Esta tese começa com o filósofo da ciência francês Pierre Duhem e sua obra Sauver les Phénomènes. Essai sur la Notion de Théorie Physique de Platon à Galilée, de 1908; chama a renascença de mito e sustenta que a idade média foi na verdade tão fértil e profícua quanto os períodos históricos anterior e posterior a ela. Outro defensor da tese de continuidade, George Sarton, foi além e diz ter notado que o desenvolvimento da ciência chegou mesmo a estagnar durante a renascença; na introdução de seu livro Introduction to the History of Science de 1947 chega a afirmar o seguinte (p. 15): “It does not follow, as so many ignorant persons think, that the mediaeval activities were sterile. That would be just as foolish as to consider a pregnant woman sterile as long as the fruit of her womb was unborn. The Middle Ages were pregnant with many ideas which could not be delivered until much later. Modern science, we might say, was the fruition of mediaeval immaturity. Vesalius, Copernicus, Galileo, Newton were the happy inheritors who cashed in." 17

13 https://books.google.com.br/books?id=qj9QDWavbukC&pg=PA27 14 http://law2.umkc.edu/faculty/projects/ftrials/galileo/galileochronology.html 15 Grendler, Paul F. "Printing and censorship" in The Cambridge History of Renaissance Philosophy, Charles B.

Schmitt, ed. (Cambridge University Press, 1988, ISBN 978-0-52139748-3) pp. 45-46 16 http://web.maths.unsw.edu.au/~jim/renaissance.html 17 “Não faz sentido, como muitas pessoas ignorantes acham, que as atividades medievais eram estéreis. Seria tão tolo quanto achar uma mulher grávida estéril enquanto o fruto do seu útero não tiver nascido. A Idade



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A idade média costuma ser descrita com início ao fim da antiguidade, isto é, com a destruição da biblioteca de Alexandria18 (no ano de 48ac por Júlio Cesar ou no ano de 271 por Aureliano), com a ascensão do cristianismo como religião oficial de Roma em 380 ou então no ano de 476, com a deposição do último imperador de Roma – eventos esse que podem ser vistos como relacionados; e costuma ser descrita como tendo fim ao início da renascença, ou mais especificamente no ano de 1453, com a queda de Constantinopla, ou no ano de 1492, com a chegada de Colombo no continente americano, ou ainda no ano de 1517, com a reforma protestante. No que diz respeito ao que veio a ser chamado de ciência na acepção atual do termo, olhando para o passado podemos retroceder contiguamente até o ano de 1514, quando Copérnico produziu seu primeiro modelo satisfatório de um sistema centrado no sol, ao invés da versão oficial, desenvolvida na antiguidade por Platão, Aristóteles e Ptolomeu, e defendida pela igreja por cerca de 1500 anos, que dizia que a Terra era o centro do universo e que restava imóvel com sol e lua girando ao seu redor. Outro marco poderia ser o ano de 1547, com a publicação do livro de Copérnico descrevendo sua teoria. Este período iniciado com Copérnico é descrito com o termo revolução científica. Depois da publicação do livro Principia de Newton, em 1687, há um novo período de maturação que culmina em outra revolução científica, com a teoria da relatividade de Einstein consolidando o advento da ciência contemporânea nos primeiros anos 1900. Na verdade a primeira fase da revolução científica foi um período focado na recuperação dos saberes dos antigos (como o próprio nome renascença sugere). Mas antes de falar desses antigos, pois não se trata de quaisquer antigos, aqui uma introdução que pode ser de utilidade: Desde o chamado grande passo adiante, ou modernidade comportamental19, que ocorreu há aproximadamente 40 mil anos, com a mudança anatômica mais recente da espécie humana20 e o advento da comunicação intencional através de linguagem, o ser humano veio Média foi grávida de muitas ideias que não poderiam vingar até muito depois. A ciência moderna, poderíamos dizer, foi o gozo da imaturidade medieval. Vesalius, Copérnico, Galileu, Newton, foram os felizes herdeiros que aproveitaram.” 18 Canfora, Luciano (1990). The Vanished Library. University of California Press. ISBN 978-0520072558. 19 Klein, Richard (1995). "Anatomy, behavior, and modern human origins". Journal of World Prehistory 9: 167– 198. doi:10.1007/bf02221838 20 http://www.nature.com/nature/journal/v514/n7523/full/nature13810.html



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acumulando gradualmente sua capacidade cognitiva e seu repertório, e há quase 11 mil anos passou a se utilizar da religião de forma mais definida21. A religião fornecia respostas a muitas perguntas até então indissolúveis, através dos mitos; essas respostas moldaram a cultura humana e disso surgiu uma forte estrutura hierárquica (não mais baseada apenas na força física dos líderes dos bandos). Mas além disso, a religião e os mitos eram a maneira encontrada para entender a natureza e a realidade. Pode-se especular que todo esse conhecimento acumulado foi crucial para que a revolução neolítica se tornasse possível, o que trouxe a agricultura e decorrente explosão demográfica, resultando nas primeiras cidades-estados, geralmente teocracias.22 Com o tempo, ao serem transmitidos de geração em geração, no Mediterrâneo onde se consolidaria o mundo helênico, os mitos religiosos acabaram organizados em forma de poemas e Homero, que teria vivido há aproximadamente três mil anos, é considerado o grande poeta grego, seguido logo depois por Hesíodo.23 A partir de Homero os mitos se tornaram muito mais organizados, unificando culturalmente o mundo helênico arcaico, formando as novas gerações e ao mesmo tempo regulando muitas (ou mesmo todas as) esferas da vida das pessoas, como o resultado de uma hipotética soma de valores e competências típicas de instituições que hoje chamamos de igreja, escola e assembleia/tribunal.24 Eis algumas das características desses mitos religiosos gregos: politeísmo, deuses associados a aspectos da natureza; obediência ao destino; interação entre deuses e humanos; cerimônias e rituais executados principalmente sobre altares, tipicamente dedicados a um ou alguns deuses, representados por estátuas25; sacrifícios e libações; ritos de passagem; crença na existência de criaturas monstruosas (nem totalmente humanas, nem totalmente animais); crença na vida após a morte e na imortalidade.26

21 "The World's First Temple". Archaeology magazine. Nov–Dec 2008. p. 23.

22 Jean-Pierre Bocquet-Appel (July 29, 2011). "When the World's Population Took Off: The Springboard of the Neolithic Demographic Transition". Science 333 (6042): 560–561. 23 Johnston, Sarah Iles. Religions of the Ancient World: A Guide. The Belknap Press of Harvard. 24 At MIT.edu: Plato's Republic: Translated by Benjamin Jowett. Chapter 3, Section V. 25 Uma cerimônia célebre era o pharmakos, que envolvia a expulsão de um bode expiatório simbólico, como um animal ou escravo, de uma cidade ou aldeia durante um período de dificuldades. Esperava-se que assim, ao expulsar esta criatura, os problemas também estariam sendo levados do local, 26 Rohde, Erwin Psyche: The Cult of Souls and Belief in Immortality among the Greeks. Nova York: Harper & Row 1925 [1921]; Endsjø, Dag Øistein. Greek Resurrection Beliefs and the Success of Christianity. Nova York: Palgrave Macmillan 2009.



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Pois bem, se foi na chamada era axial de Jaspers – um suposto período de efervescência intelectual agrupando os avanços no pensamento humano de diferentes partes do mundo entre 800 e 200ac – que se originaram as grandes religiões organizadas do mundo (dentre elas as abraâmicas)27, o próprio Jaspers a descreve como "um interregno entre duas idades de grande império, uma pausa para a liberdade, uma respiração profunda trazendo a consciência mais lúcida"28, e não se poderia detectar motivo melhor para esta descrição do quanto a seguir: Aproximadamente quatrocentos anos depois de Homero e Hesíodo, a partir do século VI ac, com os mitos religiosos já arraigados na sociedade, numa região chamada Jônia (então parte da Grécia arcaica, hoje da Turquia), surgiram os primeiros filósofos do ocidente. Esses pensadores, também conhecidos como naturalistas, ou pré-socráticos, foram capazes de compreender a natureza e a realidade como ninguém antes. Eles usaram a observação da natureza e a racionalização para saciar a curiosidade e obter respostas, numa inédita transição do mythos para o logos.29 Tales de Mileto (640-546ac) foi o primeiro ser humano de que temos conhecimento a ter proposto explicações sobre fenômenos naturais sem apelar ao sobrenatural. Suas teorias retiraram dos seres míticos qualquer envolvimento com os fenômenos da natureza, buscando respostas na própria natureza – e como tal podiam ser discutidas, criticadas e refutadas.30 Um bom exemplo de como atuavam os naturalistas pré-socráticos é o atomismo, teoria introduzida por Leucipo no século V ac, desenvolvida por Demócrito (que tentou reconciliar os pensamentos de Parmênides e Heráclito)31, e mais de duzentos anos depois lapidada e adaptada por Epicuro (mesmo depois de ter sido rejeitada por Aristóteles, que sustentava que os elementos da matéria não eram compostos por átomos)32. 27 Christian, David (2004). Maps of Time: An Introduction to Big History. California World History Library 2.

University of California Press. p. 319. "Not until the first millennium BCE do the first universal religions appear. Though associated in practice with particular dynasties or empires, they proclaimed universal truths and worshiped all-powerful gods. [...] Most of the universal religions appeared in the hub region between Mesopotamia and northern India. They included Zoroastrianism and Manichaeism in Persia, Buddhism in India, Confucianism in China, and Judaism, Christianity and Islam in the Mediterranean world." 28 Karl Jaspers, 1953, quoted in Armstrong, Karen (2006), The Great Transformation: The Beginning of our Religious Traditions (1st ed.), New York: Knopf. p. 367. 29 Sambursky, Shmuel (1974). Physical Thought from the Presocratics to the Quantum Physicists: an anthology selected, introduced and edited by Shmuel Sambursky. New York: Pica Press. p. 3. 30 Arieti, James A. Philosophy in the ancient world: an introduction, p. 45 [1]. Rowman & Littlefield, 2005. 31 Andrew G. van Melsen (1952). From Atomos to Atom. Mineola, N.Y.: Dover Publications. p. 17. 32 Lloyd, Geoffrey (1970). Early Greek Science: Thales to Aristotle. London; New York: Chatto and Windus; W. W. Norton & Company. pp. 108–109.



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Alguns exemplos de descobertas feitas pelos sábios Anaximandro, Anaximenes, Xenófanes, Anaxágoras, Arquelau, Diógenes, Aristarco, Autólico, Pítaco, Bias, Melisso, além do supracitado Tales e tantos outros: sistema heliocêntrico (mais de 1500 anos antes de Copérnico), com cálculos das dimensões e distâncias do sol e da lua, eclipses, das dimensões e marés terrestres; aprimoramento na contagem do tempo; pensamento teórico evolucionista (cerca de 2000 anos antes de Darwin); os fundamentos de matérias tais como filosofia, matemática, astronomia, geometria, cosmologia, medicina, paleontologia, meteorologia, algumas experiências primitivas com magnetismo e esboços teóricos sobre gravidade e física de partículas, além do primeiro computador analógico33. Esse período de inovação não durou mais do que 500 anos; o heliocentrismo foi relegado em favor do geocentrismo, o atomismo foi relegado em favor do neoplatonismo e quase todas as teorias desse período acabaram relegadas a partir de algum momento até os primeiros anos da era cristã. O fim da biblioteca de Alexandria significou a perda definitiva de quase todo esse conhecimento. Na grande maioria dos casos, o que sabemos sobre as teorias dos naturalistas pré-socráticos é devido ao comentário de outros autores. Mas a principal conquista deles foi mesmo a descoberta do pensamento científico, demonstrando que para cada evento havia uma causa natural, buscando compreender a realidade de forma mais racional.34 Antes mesmo do fim do império romano, as teorias predominantemente idealistas e dualistas de Platão, e as teorias de Aristóteles – que tentavam reconciliar Platão com seu pensamento e de outros filósofos – (e as teorias de seus respectivos discípulos) eram a força motriz do pensamento ocidental, tendo sido apropriadas pela teologia cristã, na tentativa de conciliar a fé à natureza, ou melhor dizendo, impor seus dogmas. O título do artigo de da Costa não deixa de ser coerente, pois na idade média o pensamento ocidental voltou a ser especulativo, mas o título do artigo de Domingues pode transmitir engano (não transmitiria engano algum se a conjunção ‘e’ tivesse sido usada para indicar oposição, mas pelo conteúdo do artigo percebe-se que se quis indicar coordenação). 33 In search of lost time, Jo Marchant, Nature 444, #7119 (November 30, 2006), pp. 534–538,

doi:10.1038/444534a. 34 Lucio Rosso, The Forgotten Revolution, How Science was Born in 300BC and Why it had to be Reborn, pp 293-296.



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Domingues tenta associar o aristotelismo medieval às bases sobre as quais teria se edificado a ciência moderna “em começos do séc. XVII” (1986, p. 21) e mais adiante afirma que a “síntese aristotélico-tomista foi substituída pela filosofia de Descartes e a ciência de Galileu” (p. 31) – assim ignorando Copérnico. Ela corretamente afirma que “através dos séculos medievais, foi ocorrendo a assimilação do neoplatonismo pelo cristianismo” (p. 22), porém levando a crer que esta, seguida pela síntese aristotélico-tomista, seria a herança de toda a filosofia grega; nas 21 páginas de seu artigo, não menciona uma vez sequer os naturalistas pré-socráticos. A filosofia dos nominalistas é descrita por ela como de “excessiva racionalização” (p. 22) e as cinco “vias realistas da razão (aristotélica)” (p. 38), que servem de prova tomista para a existência do deus cristão, são abordadas como “um sistema de tal forma completo, [sic] que tudo encontrava lugar e explicação” (p. 40). Aqui as vias brevemente listadas: 1. Deus seria o motor primeiro de todo movimento; 2. Deus seria a primeira causa, não causada; 3. O necessário exige uma cadeia de causas que culmina necessariamente em deus; 4. A existência de uma verdade e de um bem em si; 5. Todas as operações dos corpos materiais tenderiam a um fim, mesmo quando desprovidas de consciência disso. E a inteligência primeira que tudo ordena seria deus. Para explicar como Tomás manteve as noções de finalidade e de hierarquia de Aristóteles, Domingues define que “embora o conhecimento comece pelo corpóreo, o processo é comandado pelo fim [...] (que) transcenderia o próprio homem, cuja vontade, mesmo que ele não tenha consciência, o conduz ao ser supremo” (p. 39-40). Levando em conta o viés idealista e dualista de Domingues ao tentar legitimar o tomismo como precursor da ciência moderna, ao mesmo tempo em que a teologia cristã finalmente pareceria conferir ao homem a capacidade de inquirir (com essa apropriação do aristotelismo), faz crer também na possibilidade de racionalmente proclamar a existência de deus, porém baseada unicamente em especulações (com o uso de conceitos como predestinação), em que o desconhecido é denominado deus ou seu desígnio, e não qualquer outra coisa, como por exemplo os deuses das outras religiões ou algo hoje desconhecido mas com possibilidade de ser descoberto futuramente (o deus cristão é uma dentre infinitas possibilidades) – raciocinando a partir dos efeitos para a(s) causa(s), contrariando assim até mesmo o conceito de dedução.

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Encarar a teologia medieval como precursora e base da ciência moderna, atribuindo às chamadas renascenças medievais o mesmo peso que teve o período em que ocorreu a revolução científica, em termos de avanços no conhecimento humano acerca da natureza e da realidade e principalmente em termos de liberdade de pensamento, pode ser considerado exatamente isso: uma dedução às avessas. Ambos os artigos se concentram em Tomás de Aquino, mas Domingues deixa de tratar da fundação das primeiras universidades no ocidente, o que pode parecer estranho, justamente porque isso costuma ser usado como argumento a favor da tese de continuidade. É incontestável o papel determinante da igreja católica na criação das primeiras universidades, mas não devemos esquecer que essas universidades evoluíram de escolas catedrais e monásticas da própria igreja entre os séculos XI e XIII35. Tomás de Aquino foi regente na Universidade de Paris no século XIII36, justamente durante o período das listas de teses censuradas com acusação de heresia. Essas listas foram precursoras do Index Librorum Prohibitorum37. O próprio da Costa diz que “a maior parte dos avanços científicos deste período resultou da experiência prática (não da ação educacional das escolas ou universidades)” (2009, p. 140). Acenando aos conceitos propostos por Hugo de São Vitor, Bernardo de Claraval e Ramon Llull, em seu artigo, da Costa discorre sobre as definições de ciência na idade média; elenca as etapas no desenvolvimento do conceito de ciência na idade média e observa como Isidoro de Sevilha no século VII associou ciência à filosofia, dentre outros: "Desde Boécio (480-524) – autor muito lido e comentado nos séculos XII-XIII, principalmente através dos escritos de Gilbert de Poitiers (c. 1076-1154) – os medievais ofereceram um sem número de definições do conceito. Uma das mais recorrentes era a que se baseava nos graus de abstração com que se contemplava o objeto de estudo" (2009, p. 133).

No artigo da Costa ilustra como, mais do que definições do conceito, diversos campos foram associados à ciência, como por exemplo teologia, gramática, retórica, dialética, música, tecelaria, a arte militar, arquitetura, a navegação, a agricultura, a caça e a pesca, o teatro, 35 Encyclopaedia Britannica: History of Education. The development of the universities. 36 Stump, Eleonore. Aquinas. [S.l.]: Routledge, 2003, pp. 10–11.

37 Grendler, Paul F. "Printing and censorship" in The Cambridge History of Renaissance Philosophy, Charles B.

Schmitt, ed. (Cambridge University Press, 1988, ISBN 978-0-52139748-3) pp. 45-46.



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mecânica, lazer, direito, literatura, ética, política, o papado e o clero, astrologia, anjos, paraíso e inferno, a virgem Maria, o Cristo, enfim, conceitos meramente acessórios ou inclusive alheios às questões sobre os limites da natureza e da realidade, impondo "a necessidade da adequação destes vocábulos particulares: as palavras certas integradas às coisas ditas para que o conteúdo de uma obra fosse considerado ciência" (p. 141). Da Costa enumera as diversas divisões filosóficas (terciária, quaternária) das “técnicas científicas e artesanais”, e lá se vão mais citações, mostrando as nuances de trivialidades sob a forma da metafísica aplicada que é esse tipo de filosofia – teologia apoiada em apropriações de um pensamento idealista e dualista; como ele mesmo diz: “na perspectiva medieval, a Teologia articulava e explicava todos os aspectos do conhecimento humano. De fato, isso era mais um desdobramento natural da filosofia de Aristóteles” (p. 139). Ao abordar Guilherme de Champeaux, da Costa diz que "a ciência foi considerada o prérequisito necessário para a busca da disciplina certa com a qual o letrado desenvolvia as virtudes necessárias para se aproximar de Deus" (p. 135). Ambos se eximem de tratar da questão da falta de liberdade que marcou toda a idade média, pois além de observar que “suas elites letradas ultrapassaram em muito o limite da vida sacral” (Domingues, p. 21), seria muito pertinente observar a relação dessas elites para com o resto da sociedade; na Suma Teológica - seu escrito mais importante, Tomás de Aquino afirma a respeito de todo aquele que for considerado herético pela igreja e que já tiver sido advertido duas vezes: “a Igreja, sem esperança de conversão, procura pela salvação dos demais excomungando-o e separando-o da Igreja; além disso, entrega-o [...] para ser exterminado assim deste mundo pela morte"38 Arnaldo de Bréscia, nascido entre 1090 e 1105, foi um monge católico e reformador religioso, discípulo de Pedro Abelardo. Condenado por rebelião, ele foi enforcado e seu corpo foi queimado numa fogueira, então suas cinzas foram jogadas no rio Tibre em 1155, para evitar que sua tumba se tornasse local de veneração de martírio. A “heresia” dele foi pedir que o clero abandonasse a riqueza material.39 38 Summa, II–II, Q.11, art.3.

39 Em 1882, após a queda do poder temporal papal, a cidade de Brescia erigiu um monumento ao seu ilustre

nativo. Grado Giovanni Merlo, La storia e la memoria di Arnaldo da Brescia, in: Studi Storici 32/4 (1991) p. 943–952.



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É significativo notar que o fim da antiguidade e o início da idade média temporalmente coincidem com a ascensão do cristianismo. O cristianismo primitivo era uma religião de minoria no império romano e os primeiros cristãos eram judeus ou gentios convertidos ao judaísmo – principalmente vindos das classes sociais mais baixas dos centros urbanos. Os cristãos foram perseguidos pelos romanos em torno do ano de 64 e entre os anos de 250 e 313, porém esporadicamente e apenas em áreas localizadas; somente por cerca de dez dos primeiros trezentos anos da igreja houve cristãos executados a partir de ordens de um imperador romano.40 Depois do ano 90 o cristianismo começou a ser reconhecido interna e externamente como uma religião separada do judaísmo rabínico, apesar de os cristãos continuarem a usar e reverenciar a bíblia judaica (velho testamento).41 O imperador romano Constantino I foi o primeiro responsável pela reviravolta na história do cristianismo42, e por consequência, na história do ocidente; em 313 emitiu o édito de Milão, que em teoria tinha o propósito de legitimar o laicismo em Roma, acabando oficialmente com toda perseguição religiosa43; e em 325 reuniu os bispos cristãos para o primeiro concílio de Nicéia, onde o objetivo era obter consenso e unificar o cristianismo em torno da mesma igreja, com a definição de pontos como a trindade, o credo niceno, a fixação da páscoa e a lei canônica.44 O outro responsável pela ascensão do cristianismo às mais altas esferas de poder temporal foi o imperador romano Teodódio I; entre 380 e 391 houve o édito de Tessalônica – tornando o cristianismo a exclusiva religião de estado, o primeiro concílio de Constantinopla e o início da perseguição ao paganismo45, com banimento de todas as práticas pagãs, abolição dos feriados pagãos, criminalização e fechamento de associações pagãs, destruição de templos, monumentos e símbolos pagãos, execuções e o fim dos jogos olímpicos da antiguidade.46 40 Moss, Candida (2013). The Myth of Persecution. HarperCollins. ISBN 978-0-06-210452-6.

41 GAARDER, Jostein et al. O livro das Religiões. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, pp. 191-192. 42 Clapp, Rodney (1996). A Peculiar People. InterVarsity Press. p. 23. "What might be called the Constantinian shift began around the year 200 and took more than two hundred years to grow and unfold to full bloom". 43http://wadsworth.com/history_d/special_features/ilrn_legacy/wawc1c01c/content/wciv1/readings/eusebi us.html 44 Richard Kieckhefer (1989). "Papacy". Dictionary of the Middle Ages. ISBN 0-684-18275-0. 45 Davies, Owen (2011). Paganism: A Very Short Introduction. New York: Oxford University Press. ISBN 9780191620010. 46 MacMullen, Ramsay (1984), Christianizing The Roman Empire AD 100–400, Yale University Press, ISBN 0300-03642-6. p. 90.



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A partir de então, à medida em que a igreja católica ia crescendo e aumentando seu poder temporal47, foram muitos atos violentos e de opressão, censura, apropriação e destruição; prisões, banimentos, execuções, massacres, cruzadas e inquisições, em várias partes do mundo. As perseguições, as conversões forçadas e os atos supra duraram cerca de 1500 anos e são fartamente documentados.48 49 Fica extremamente fácil entender porque a idade média teve tão poucos avanços científicos de grande relevo, quando comparamos seus cerca de 1500 anos de duração com os cerca de 500 anos desde a revolução científica até nossos dias, ou até mesmo com os cerca de 500 anos em que viveram os naturalistas pré-socráticos; desde o início da filosofia, todos os filósofos do ocidente foram religiosos, exceto nesses dois períodos; não é que o ser humano fosse menos curioso ou menos inteligente durante a idade média, é que não se podia questionar, não se podia raciocinar para além dos dogmas. Já no século XVIII d’Alembert observou muito bem: "Cependant la plupart des beaux esprits de ces temps ténébreux se faisaient appeler poètes ou philosophes. [...] La poésie se réduisait pour eux à un mécanisme puéril: l'examen approfondi de la nature, et la grande étude de l'homme, étaient remplacés par mille questions frivoles sur des êtres abstraits et métaphysiques; questions dont la solution, bonne ou mauvaise, demandait souvent beaucoup de subtilité, et par conséquent un grand abus de l'esprit." (1751, Introduction)50

As ideias dogmáticas, tidas como verdades absolutas, encontram-se geralmente registradas em um tomo sagrado, pois reveladas por um ou mais seres onipotentes, oniscientes e onividentes (deuses). Quando fatos naturais confrontam diretamente com os dogmas de uma religião, o que geralmente acontece quando procuram dar conta da compreensão dos fenômenos encontrados no mundo natural em que vivemos, as religiões acabam renegando tais fatos, ou os "ajustam" a seus dogmas, já que seus dogmas contraditórios não podem mudar para se ajustarem aos fatos.

47 Gardner-Smith, Percival. The Expansion of the Christian Church. Cambridge University Press. 1932. 48http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/cti_documents/rc_con_cfaith_doc_20000307_me mory-reconc-itc_en.html 49 http://www.theguardian.com/world/2000/mar/13/catholicism.religion 50 "Entretanto, a maioria das mentes boas desses tempos sombrios se diziam poetas ou filósofos. [...] A poesia para eles foi reduzida a um mecanismo infantil: um exame aprofundado da natureza e o grande estudo do homem, tudo isso foi substituído por mil questões frívolas sobre seres abstratos e metafísicos; questões cuja solução, boa ou ruim, muitas vezes demandava muita sutileza, e, portanto, um grande abuso do espírito".



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Já quando se trata do pensamento científico, como foi praticado pelos naturalistas présocráticos e a partir da revolução científica, as ideias jamais são tidas como verdades absolutas, uma vez que estão obrigatoriamente em perpétuo teste, em contínuo confronto com os fatos conhecidos, e com os que por ventura venham a ser descobertos; sempre abertas a mudanças para que possam se ajustar aos fatos de forma harmônica, e juntamente com estes, formando o que denomina-se por teoria científica. Assim, o método científico proíbe explicitamente a existência de dogmas dentro da ciência. A ciência e suas teorias evoluem com o tempo. Independentemente da validade ou não das teorias de Platão ou Aristóteles, não há como negar, eles foram grandes pensadores e doxógrafos importantíssimos. Religião não é o mesmo que espiritualidade; esta foi apenas apropriada por aquela. A espiritualidade pode ser definida como uma "propensão humana a buscar significado para a vida por meio de conceitos que transcendem o tangível, à procura de um sentido de conexão com algo maior que si próprio" (Guimarães, 2007, p. 89). A espiritualidade pode ou não estar ligada a uma vivência religiosa. Muitos cientistas atualmente sentem algum tipo de espiritualidade.51 Segundo Carl Sagan, "a ciência não é só compatível com a espiritualidade; é uma profunda fonte de espiritualidade" (1996). Sim, a espiritualidade é algo positivo (já quando apropriada visando ganância, por egoísmo ou através de corrupção, não). Se a religião organizada como a conhecemos já nos deu inúmeras provas de ser incompatível com nosso atual estágio evolutivo, certamente a culpa dos atos cometidos pelos religiosos em nome de seus deuses não podem ser jogados a Platão e a Aristóteles ou a suas teorias ultrapassadas. A evolução vai por altos e baixos, mas nunca para. Se a humanidade deixar de evoluir, é simples, acaba. 51 https://en.wikipedia.org/wiki/Relationship_between_religion_and_science#Studies_on_scientists.27_beliefs



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Bibliografia: SAGAN, Carl. O Mundo Assombrado Pelos Demônios: A Ciência vista como uma vela no escuro. São Paulo: Companhia das Letras. 1996. RUSSELL, Bertrand. A Perspectiva Científica, 3a edição. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 1969. SPINELLI, Miguel. Filosofia e ciência. São Paulo: EDICON. 1990. SARTON, George. Introduction to the History of Science 3. Williams & Wilkins for Carnegie Institution of Washington. 1947. P 15. DOMINGUES, Beatriz Helena. O aristotelismo medieval e as origens do pensamento científico moderno. In: LOCUS: revista de história. Juiz de Fora: vol. 2, n. 1, 1986. pp. 21-41. http://locus.ufjf.emnuvens.com.br/locus/article/view/2234 COSTA, Ricardo da. A Ciência no Pensamento Especulativo Medieval. In: SINAIS – Revista Eletrônica. Ciências Sociais. Vitória: CCHN, UFES, Edição n.05, v.1, Setembro. 2009. pp. 132-144. http://periodicos.ufes.br/sinais/article/viewFile/2739/2207 ARMSTRONG, Karen. The Great Transformation: The Beginning of our Religious Traditions (1st ed.), New York: Knopf. 2006. p. 367. GUIMARÃES, Hélio Penna. . "O impacto da espiritualidade na saúde física". In: Rev. Psiq. Clín. 2007. p. 89. D'ALEMBERT, Jean le Rond. Discours préliminaire. In: Encyclopédie, ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers. 1751. Introduction. http://xn--encyclopdie-ibb.eu/index.php/discours-preliminaire/1-discours-preliminaire

Wikipedia – the free encyclopedia https://www.wikipedia.org/ i Cesar Augusto Zanin Filho é tradutor, produtor, escritor e músico amador, estudante de Letras na

USP.



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