Leitura, literatura e outros enredamentos: notícias de uma pesquisa

June 28, 2017 | Autor: Sônia Vinco | Categoria: FORMAÇÃO DE LEITORES
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LEITURA, LITERATURA E OUTROS ENREDAMENTOS: NOTÍCIAS DE UMA PESQUISA Sonia Vinco1

O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas — mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso me alegra, montão. (Fala de Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa)

De onde venho e as questões que trago Este artigo advém de minha dissertação de mestrado2, que, por sua vez, decorre de uma frase que me foi dita por um ex-aluno alguns anos depois de eu ter sido sua professora de Literatura3 no “Pedrinho4”, forma com que chamamos as Unidades de primeiro segmento do Colégio Pedro II5. Num encontro casual no pátio do colégio, ele, que já cursava o segundo segmento, me disse um dia: “Professora, eu me lembro até hoje das suas histórias.” Aquele garoto não fora propriamente o tipo de aluno normalmente tido como brilhante, que por algum motivo se destaca dos demais. No entanto, lembrava-se – e, ao dizê-lo, tinha um brilho especial nos olhos e aquele sorriso que acompanha a recordação de um prazer vivido. Lembrava-se, já adolescente, de histórias que me ouvira contar na sua turma das primeiras séries, as quais ele bem sabia que, tendo ou não autores conhecidos, não eram minhas, eram nossas, de todos aqueles que delas quisessem se apropriar. Aqui, tratarei de algumas questões que a formação de leitores me suscita no espaço escolar, apresentando os principais conceitos e noções com os quais dialoguei no 1

Graduada em Letras (Português/Literaturas) pela UFRJ. Mestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense. Professora do Colégio Pedro II- Rio de Janeiro (Unidade São Cristóvão I) desde 1987. 2

VINCO, Sônia Regina. Formação do leitor: um bicho de quantas cabeças?Dissertação de Mestrado defendida na faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, em setembro de 2006. 3

O primeiro segmento vem tendo, praticamente desde a sua fundação, espaço garantido na grade curricular para as aulas de Literatura, com duas horas-aula semanais e professoras específicas.

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Tradicional instituição federal de ensino do Rio de Janeiro, fundada em 1837. A primeira Unidade de primeiro segmento do ensino fundamental (São Cristóvão-USC I) foi criada em 1984. Esse segmento atende, hoje, a cerca de 2700 alunos. A USC I tem pouco mais de mil alunos.

processo de pesquisa, assim como direi um pouco do sinuoso percurso metodológico que trilhei.

Há treze anos venho sendo professora de Literatura para crianças. Trabalho, no meu cotidiano, com a palavra literária. Lido, no dia-a-dia profissional, com palavras grávidas de sentidos múltiplos, que podem nascer e crescer a partir das interlocuções que os leitores façam com os textos, mas não só. Eles também podem se ampliar no diálogo que os leitores estabeleçam com outros leitores. Pelos caminhos da vida, nas malhas das várias redes de que venho participando ao longo da minha formação como pessoa e como professora, venho aprendendo que tratar com a literatura na escola é coisa delicada. As muitas possibilidades significativas da palavra literária podem também ser esmagadas quando as opções metodológicas que fazemos não atentam para o valor polissêmico e a plurivocidade de sentidos que a literatura evoca. Umberto Eco (2002, p.12), analisando a relação intrínseca do texto com o leitor, no que tange ao seu poder de escolher os caminhos que percorrerá na experiência da leitura, alude a uma metáfora criada pelo escritor argentino Jorge Luis Borges, que compara o texto narrativo a um bosque. Este, para Borges, “é um jardim de caminhos que se bifurcam”, e, ainda que nele inexistam “trilhas bem definidas, todos podem traçar sua própria trilha, decidindo ir para a esquerda ou para a direita de determinada árvore, e a cada árvore que encontrar, optando por esta ou aquela direção”. Não é assim mesmo que fazemos quando diante de uma narrativa literária? A hipótese inicial que orientou minha pesquisa foi que as experiências de prazer com textos literários vivenciadas quando ainda se é leitor iniciante, ou mesmo antes, pela audição de histórias narradas ou lidas, parecem ser muito significativas nas relações futuras da pessoa com a leitura do mundo e da palavra. A escritora Ana Maria Machado (2002), dizendo sobre a importância da convivência da criança com textos literários e rememorando sua própria experiência, afirma: Engraçado como todas essas lembranças infantis ficam tão nítidas e duráveis. Talvez porque nas crianças a memória ainda está tão virgem e disponível que as impressões deixadas nela ficam marcadas de forma muito funda. Talvez porque sejam muito carregadas de emoção. (p.10)

Testemunhos de numerosos escritores, leitores que escolheram fazer da palavra sua matéria de trabalho, dizem também das influências marcantes que lhes trouxeram suas primeiras leituras. É ainda a autora que me auxilia com suas observações:

Em todos esses casos, o que me interessa destacar não é a variedade de leitura feita por gente famosa. Prefiro chamar a atenção para o fato de que esses diferentes livros foram lidos cedo, na infância ou adolescência, e passaram a fazer parte indissociável da bagagem cultural e afetiva que seu leitor incorporou pela vida afora, ajudando-o a ser quem foi. (ibid, p.11)

Essa idéia veio a fortalecer meu desejo de realizar uma pesquisa para procurar conhecer um pouco do caminho pelo bosque da leitura que vêm tendo os alunos do colégio que estudaram no “Pedrinho”. O trabalho com a leitura de textos literários feito na escola deixou neles as marcas de que fala a escritora? Tendo deixado, estarão eles se formando leitores? O que pode a literatura no processo sempre infindo de formação dos sujeitos? Perscrutando um pouco mais, outra questão emergiu: até onde nossas aulas têm sido espaços que se abrem para que os sujeitos possam experimentar formas de relação com a leitura que favoreçam sua constituição como experiência?

Uma pesquisa nas trilhas do cotidiano Dentre os dilemas que vivi durante o curso de Mestrado, um deles, que me desafiava incessantemente como um puzzle, foi o seguinte: minha pesquisa se insere mesmo no campo do Cotidiano? Não estarei tentando vestir-lhe uma indumentária que não lhe cabe? O principal motivo dessa dúvida era o fato de o foco central por mim imaginado referir-se a um passado, a algo já vivido, e não ao dia-a-dia presente. Mas, o que é o passado senão um presente de outro tempo que a memória revisita e com ele reflete e repensa? Uma das pedras que se interpunham no meu caminho era uma compreensão superficial do que fosse o cotidiano. É fato que, pela minha longa experiência em sala de aula, sabia que o cotidiano está longe de ser o espaço da mera repetição, longe de ser o lugar onde nada se passa. Mas, pensava de modo um tanto simplista, se o cotidiano é o dia-a-dia, eu deveria fazer observações das aulas! Como dizer de um cotidiano que há muito já não é?

No decorrer da pesquisa, entretanto, aprofundando leituras e compreensões, fui descobrindo que, sim, mais que um tempo presente ou pretérito, o que define uma pesquisa do cotidiano é o tipo de abordagem que ali se faz. O que a difere de outros modos de pesquisar são os caminhos, isto é, os métodos de que esse olhar se vale. Conforme Pais (2003):

É que toda pergunta é um buscar. E, como etimologicamente método significa caminho e como o caminho se faz ao andar, o método que nos deve orientar é esse mesmo: o de trotar a realidade (...), tentando ver o que nela se passa mesmo quando “nada se passa”.(id.,p.33)

Penso que, na verdade, a inexperiência me embotava ante a dificuldade que teria para tentar recompor um cotidiano através das memórias que me fossem trazidas. Como trotar uma realidade que já não é? E acabei por trotar a realidade da minha própria pesquisa, que se foi fazendo devagar - sem o ‘conforto’ de uma metodologia prédefinida, da qual bastasse ‘seguir os passos’-, procurando colher aqui e ali elementos que me auxiliassem a compreender que

a temporalidade do cotidiano não se reduz a uma temporalidade cíclica, repetitiva, vivida exclusivamente no presente; há lugar para uma história da vida quotidiana que, naturalmente, não deve ser encarada como uma história de tudo aquilo que se gera de uma forma repetitiva, banal, efêmera, fugaz. (ibid.,p.147)

Como recuperar da invisibilidade aquilo que no cotidiano se passa de forma fluida, deslizante, transitória (Pais, 2003)? A história do cotidiano é uma história de rotinas? Mas que significados são encobertos pelo uso mesmo dessa palavra? Foi lutando contra a hegemonia de um pensamento demonstrativo e catalogador (Certeau, 2003), traços de um modelo tradicional de ciência que está em mim, em cuja sombra fui formada e cuja seiva me alimentou, que, aos poucos, fui incorporando uma outra perspectiva à pesquisa. Movimento lento como a rotação da Terra, mas que produz dias e noites. Pais afirma que À sociologia do cotidiano interessa mais a mostração (...) do social do que a sua demonstração, geometrizada por quadros teóricos e conceitos (ou preconceitos) de partida, bem assim como por hipóteses rígidas que à força se procuram demonstrar num processo de duvidoso alcance em que o conhecimento explicativo se divorcia do conhecimento descritivo e compreensivo. (ibid., p.30)

Para continuar a caminhada, fez-se primordial procurar abandonar conceitos prévios, prognósticos, e abrir-me às imagens, sons, texturas, sabores, odores (Alves, 2002) que se me apresentariam durante a pesquisa. Tal movimento, se amplia as possibilidades de compreensão do real, está longe de ser fácil, uma vez que, na condição de professora do primeiro segmento do colégio e de ex-professora dos sujeitos da pesquisa, encontrava-me submersa nesse processo, seja pelo envolvimento com o trabalho de Literatura, seja pela percepção, forjada no decorrer do tempo, em relação ao trabalho do segundo segmento. Num curto intervalo temporal, fui tentando arduamente aprender a ver o que é nosso como se fosse estrangeiro e como se fosse nosso o que é estrangeiro (ibid., p.59). Então, entendendo que a história humana se faz na vida concreta, na vida acontecida a cada pessoa num determinado espaço-tempo, entendi ser possível e necessário buscar nos indivíduos, que são sínteses complexas dos fenômenos sociais (Pais, 2003), o ponto de partida para a compreensão daquilo que desejava. Por isso abandonei as trilhas épicas da macronarrativa, de uma história “limpa”, onde as asperezas, as rugosidades, as linhas sinuosas inerentes à complexidade da vida social podem tomar uma textura aveludada, uniforme, quiçá agradável ao toque, porém distante do real, da vida como ela é, conforme diria Nelson Rodrigues.

Fuxicos

E, como a vida é surpreendente, um dia, olhando dedicadamente a blusa que vestia uma colega, uma idéia me surgiu inesperadamente. Era uma peça artesanal, feita com a técnica chamada ‘fuxico’. Toda em flores de retalhos franzidos. Toda colorida de estampas diversas. Toda tecida em rede. No entanto era um todo: blusa. O que, antes do trabalho de união das partes/flores, não passava de um amontoado de fuxicos, virara bela peça de indumentária. A imagem se apoderou de mim. Passei a pensar por fuxicos. “Cerzidura ou remendo malfeito”, eis a definição que dicionários6 nos oferecem. Todavia, é difícil não se encantar com a beleza que extravasa das peças construídas pelas artesãs que, de posse de retalhos, normalmente sobras de tecidos usados para outros fins, vão formando pequenas ‘flores’. Cerzindo-as num todo, criam verdadeiras obras de arte para decoração ou indumentária, quase sempre multicoloridas. O real não tem esse teor, múltiplo e surpreendente? Procurar decifrar totalidades partindo das partes, eis o meu desafio, eis o enigma que a Esfinge me propôs. Mas os enigmas, convém não esquecer, junto ao lado opaco, obscuro, trazem também uma luminosidade latente (Pais, 2003). Cotidianos vividos por professores e por alunos. Imagens do social que podem ou não se interpenetrar, coincidir, mas que se cruzam, necessariamente, numa rede. E Pais, novamente, me auxilia: O caminho é chegar à realidade por partes. (...) A valorização da parte não significa necessariamente um equívoco de metonímia em que o todo é tomado pela parte, muito menos quando a parte é tomada como uma simples metáfora do todo. (ibid., p.68)

Morin (1996) trata de forma muito interessante a relação entre partes e todo. O todo contém as partes, mas as partes também contêm as qualidades do todo. O carbono que deu origem à vida está em cada um de nós, assim como os processos sociais. Valorizar as partes não significa negar o todo em que estas se inserem. Mas significa abrir-se a descobertas que “uma abordagem encurralada em formas definitivas, rígidas e inalteráveis do real” poderia obliterar (Pais,op.cit.,p.69). Pensando em termos de fuxicos, cada flor se inclui na rede em que se tece a vida. As artesãs nordestinas costumavam reunir-se para costurar e aproveitavam o ensejo para conversar ou fazer intrigas, mexericos... fuxicos. Durante a pesquisa, o que fiz eu? Conversei com professores, coordenadores, ex-alunos que cursavam o segundo 6

Essa definição consta dos dicionários AURÉLIO e HOUAISS.

segmento ou o ensino médio e até com um aluno do “Pedrinho”. Restos de histórias, de processos pessoais e coletivos foram se me apresentando. Dos “baús de suas memórias” vi surgirem muitos ‘retalhos’ dos cotidianos vividos. Escavei, também, minhas próprias impressões do que vivi e vivo como professora daquele colégio. E não só. Revirei meus guardados, achei tantas coisas... Muitas fontes – documentos biográficos - para dinamizar meu ‘jardim de fuxicos’. Assim, trotando a realidade, tratando de memórias minhas e alheias, fui urdindo os ‘fuxicos’ e tentando compor uma imagem interpretada (ibid.,p.66) do cotidiano de uma escola e do(s) seu(s) trabalho(s). Passeando por onde me levavam os discursos, busquei compor a imagem de um espaço – o lugar praticado pelas operações dos usuários de que fala Certeau (2003). As memórias dos sujeitos praticantes (Certeau, 2003) aparecem na dissertação em forma de narrativas. Narram eles e narro eu. Como diz Larrosa (2002, p.145-6), “se a vida humana tem uma forma, ainda que fragmentária, ainda que seja misteriosa, essa forma é a de uma narrativa: a vida humana se parece a uma novela.” Importante é entender, com o autor, que nossa vida não consiste numa sucessão de feitos, mas sim que os sujeitos se constituem na temporalidade dos relatos. São eles que convertem o tempo em tempo humano. Procurar descobrir quem somos “implica uma interpretação narrativa de nós mesmos, implica uma construção de nós mesmos na unidade de uma trama, e isso é análogo, então, à construção de um caráter, de uma novela”. A essa concepção se alinha necessariamente a percepção de que “só compreendemos quem é outra pessoa ao compreender as narrativas que ela mesma ou outros nos fazem”. Pais (op.cit.,p.64) também me ajudou a justificar minha opção quando afirma a importância dos relatos, dizendo que “a narração é um método, um caminho (odos) vasto e comum para chegar à realidade de qualquer coisa. Um caminho obscuro que se vai clareando à medida que se vai fazendo, isto é, à medida que o percorremos (...)”. Explica também que (...) as sociologias narrativistas definem-se pela sua discursividade metodológica – porque mais importante do que o mundo em si mesmo é a forma como ele é dito e pensado. (...) O mundo pensado e dito, o mundo relatado, é o mundo por excelência. A realidade não existe a não ser de forma interpretada. (ibid., p.66)

Minha opção pelos relatos se fundamentou, também, nos escritos de Michel de Certeau (op.cit., p.199-200). Ele sublinha que todos os dias os relatos7 “atravessam e organizam lugares”, pois “são percursos de espaços”. “Todo relato é um relato de viagem - uma prática do espaço”, diz Certeau, e “as estruturas narrativas têm valor de sintaxes espaciais”. Ao ancorar a pesquisa basicamente em relatos de cotidiano relacionados à leitura/literatura - meus, de outros professores e de alunos -, minha intenção foi enfatizar a noção de espaço proposta por Certeau, segundo a qual o espaço é o lugar praticado. Se é assim, é necessário que os sujeitos praticantes possam narrar sua prática. Fazer dos relatos matéria de reflexão é um desafio que lhes dá conseqüência.

De leitura e de leitores: algumas reflexões sobre experiência e linguagem André8, ex-aluno e sujeito participante da pesquisa, tentando explicar de onde surgiu seu gosto por ler, me disse o que dizem vários estudiosos do assunto: “Não sei... De mim mesmo... Eu aprendi a despertar o gosto... Eu aprendi a gostar... lendo!” Isso parece óbvio, mas nem sempre o óbvio ulula. Leitores, diz-se, são formados em contato com livros, com leituras significativas, com envolvimento. Leitores se formam na prática de atos de leitura, numa “contínua interação com um lugar onde as razões para ler são intensamente vividas” (Foucambert, 1994). Se cada um de nós se debruçar a pensar nos seus próprios caminhos de formação como leitor, embora certamente sejam diversos, ao menos um ponto eles terão em comum: formamo-nos leitores lendo. E melhores leitores nos tornamos se também temos espaço para dialogar sobre nossas leituras, nossos entendimentos. Diálogo é palavra que traz em seu cerne a ‘relação entre pessoas’ [di(a)-] e o logos, a linguagem. Diálogo é palavra que me remete a Paulo Freire (1982), que também me ajuda com suas palavras: Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles um novo pronunciar. Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão. (...)

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Certeau usa o termo relato na acepção que damos a narração. No capítulo VI da obra citada, discorre longamente sobre o assunto. 8 Aluno da antiga 8ªa série.

O diálogo é (...) encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu. (...) Se é dizendo a palavra com que, “pronunciando” o mundo, os homens o transformam, o diálogo se impõe como caminho pelo qual os homens ganham significação enquanto homens. Por isto, o diálogo é uma exigência existencial.(ibid., p.92-93)

Penso que o diálogo, entendido nessa perspectiva, tem extremo poder de nos enredar ao texto e ao outro, num processo infindo de criação de elos absolutamente imprevisível e, talvez por isso mesmo, apaixonante. Não é no exercício de pronunciar o mundo, de dizer as nossas palavras, que o vamos criando, vamos estabelecendo enredamentos, relações? Em que medida, na escola, de modo geral, e, mais especificamente, no tratamento da leitura de textos, consideramos essa questão? Ler é um trabalho mental que tanto mais se aprimora quanto maior for a capacidade do leitor de fazer interrogações semânticas ao texto que se lhe apresenta. É também “ser questionado pelo mundo e por si mesmo, é saber que certas respostas podem ser encontradas na produção escrita, é poder ter acesso ao escrito, é construir uma resposta que entrelace informações novas àquelas que já possuía”(Foucambert, op.cit., p.5). É decisão individual que, em última análise, relaciona-se profundamente à existência de um ambiente que lhe seja favorável. Creio que uma forte possibilidade da escola na tentativa de formar de leitores seja aceitar o desafio de procurar propiciar aos alunos o encontro da leitura e da escrita como experiência (Benjamin,1996; Larrosa, 2004) ou encarar as salas de aula como um espaço onde a leitura possa ter um lugar de formação (Larrosa,2002). O que significa isso? Benjamin (ibid., p.197), pensando as transformações que vinham sendo vividas pela sociedade européia da primeira metade do século XX, afirma que a experiência passava por um progressivo empobrecimento e que, por isso, a arte de narrar estava “em vias de extinção”. O poder de narrar, para Benjamin, está indissociavelmente ligado às experiências vividas pelo sujeito que narra, intimamente relacionado ao diálogo tecido “na substância viva da existência”, ou seja, nas malhas da experiência. Chama a essa tessitura “sabedoria”. Diz o autor (ibid.,p.198): “A experiência que passa de pessoa em pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores.” O narrador, diz Benjamin, se move nos degraus da experiência “para cima e para baixo, como numa escada. Uma escada que chega até o centro da terra e que se perde

nas nuvens”. A voz que conta, que canta, que dialoga precisa fazê-lo acoplada nas tramas do que é consistentemente vivido. “O primeiro narrador verdadeiro é e continua sendo o narrador do conto de fadas”, o qual traz em sua fala um saber que “vem de longe” (ibid.,p.202). Este “foi o primeiro da humanidade, e sobrevive, secretamente, na narrativa.” De que distâncias, ou de que proximidades,vem esse saber? É um saber radicalmente diferente da ligeireza das informações fragmentadas tão características da modernidade, a cuja emergência Benjamin assistia preocupado, já naquele tempo. Larrosa (2004, p.159), nosso contemporâneo, por sua vez, corrobora Benjamin, dizendo com veemência do valor da experiência. Como aquele, opõe experiência a informação. Lembra que “a experiência é o que nos passa, nos acontece, ou que nos toca” (ibid., p.154), o que é totalmente diferente daquilo que simplesmente passa ou que acontece ou que toca. Porque o sujeito é a medida da experiência. Só aquilo que se coloca para ele de verdade, na intensidade do vivido que deixa marcas, pode ser tido como experiência. “O tédio9 é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência”, diz Benjamin (op.cit.,p.204). E Larrosa (ibid.) continua: “tudo o que passa está organizado para que nada nos passe”. Para que nada nos aconteça verdadeiramente, para que nada se constitua para nós como... experiência. O mundo contemporâneo está marcado por um ritmo frenético e abreviado. Vivemos, hoje, num mundo de excessos e, por conseguinte, também de faltas (Larrosa, 2004). Para Larrosa, a experiência está apartada do sujeito moderno por causa desses excessos. Podemos estar informados – excessivamente- sobre muitas coisas, somos solicitados, ou obrigados, a ter opiniões sobre outras tantas, trabalhamos muito, e sempre nos falta muito tempo para tantas atividades. Esse sujeito, pretensiosamente, aspira a “conformar o mundo (...) segundo seu saber, seu poder e sua vontade” (ibid.,p.159). Quanta onipotência! E quanta impotência nos avassala!... Onde o ‘pássaro do tédio’ pode ter paz para construir seu ninho, palha por palha, palavra por palavra... experiência? O sujeito da informação não é, assim, o sujeito da experiência. Larrosa salienta que, ao contrário, “a informação não deixa lugar para a experiência” (ibid., p.154). O

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A palavra ‘tédio’ tem, em Português, carga semântica negativa: “sensação de enfado produzida por algo lento, prolixo ou temporalmente prolongado demais”, diz o Houaiss. Entretanto, entendo-a, na frase de Benjamin, como a necessária lentidão para que a nossas percepções amadureçam.

saber da experiência não deve ser confundido, para Larrosa, com “saber coisas, tal como se sabe quando se tem informação sobre as coisas”(ibid.). Não posso deixar de reconhecer que muito do que se faz e se vive acontece externamente ao sujeito, pois o mundo parece mesmo organizado para que nada nos passe. E eu me pergunto o que temos feito para promover rupturas nesse ciclo. Será que nossas aulas têm se constituído em espaços onde “aquilo que passa afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios”? (ibid., p.160) Para Larrosa, estas são algumas características do “sujeito da experiência”. Como trazer para as aulas a possibilidade da experiência da leitura? Marisa Lajolo (2002,p.15), preocupada com a qualidade das práticas escolares em relação à leitura de textos literários, diz que “ou o texto dá um sentido ao mundo, ou ele não tem sentido nenhum. E o mesmo se pode dizer de nossas aulas”. De outra maneira, diria que, para que faça sentido, o texto, na sala de aula, deve necessariamente integrar uma rede de que faça parte o sujeito que o lê, bem como contribuir para que o leitor avance na tessitura de outros significados para o fato de estar no mundo, pessoal e socialmente. É preciso, pois, que estejamos envolvidos como sujeitos na elaboração desse currículo. Kramer (2001) faz importante reflexão sobre leitura e escrita entendidas como experiência, apontando a “centralidade da narrativa como espaço de diálogo e de rememoração” e dimensionando “seu papel na constituição do homem como sujeito social, enraizado na coletividade” (ibid.,p.105-6). Reportando-se às diferenças estabelecidas por Benjamin entre vivência (reação a choques) e experiência (vivido que é pensado, narrado), sublinha que, para se constituírem como formadoras, “a leitura e a escrita precisam se concretizar como experiências”. É a possibilidade de relatar para o outro, isto é, de dialogar com o outro, que torna a vivência uma experiência. Então, quando uma ‘atividade de leitura’ pode se constituir numa ‘experiência de leitura’? Parece que quando essa atividade nos deixa marcas, nos dá condições de dialogar com o mundo, com a vida. Diz Kramer:

O leitor leva rastros do vivido no momento da leitura para depois ou para fora do momento imediato – isso torna a leitura uma experiência. Sendo mediada ou mediadora, a leitura levada pelo sujeito para além do dado imediato, permite pensar, ser crítico da situação, relacionar o antes e o depois, entender a história, ser parte dela, continuá-la, modificá-la. Desvelar.(ibid. p.107)

Tudo o que venho dizendo até agora conflui para a idéia da importância do diálogo entre sujeitos, quando se pensa a educação como prática formadora e transformadora. Isto me chama a tratar da concepção de linguagem que permeia meu discurso. A teoria da linguagem formulada por Bakhtin (2004) aponta para a idéia de que a língua não é um sistema estático de signos de que o falante lança mão para realizar seus atos comunicativos, como se fosse uma paleta com várias cores de tinta da qual escolhêssemos as mais convenientes para colorir uma tela em branco. Ao contrário, o autor afirma, o homem é forjado na e pela palavra. A linguagem não é, absolutamente, um já-dado. Ao invés, constrói-se permanentemente pelos atores sociais imersos na cultura. Na prática viva da língua, os signos (palavras) estão sempre impregnados de um conteúdo ou de um sentido ideológico. Sem ideologia, não há signo, porque o signo é produto das relações sociais. O caráter da linguagem é, portanto, essencialmente cultural, ideológico. A natureza dialógica da linguagem é um conceito básico da teoria bakhtiniana. A interação verbal, que se dá no movimento dialógico entre interlocutores, através da enunciação ou das enunciações (Bakhtin, 2004), tem dimensão muito mais ampla que a simples comunicação: o ser humano se forma num movimento contínuo de fluxo e refluxo do signo. Ou seja: “Ao expressarmos nossa compreensão sobre qualquer tema para uma outra pessoa, nossa palavra retorna sempre modificada para o interior do nosso pensamento.” (Jobim, 2003, p.112) Então, é através das interações verbais que o ser humano, criado na e pela linguagem, organiza sua atividade mental, isto é, sua consciência, e se constrói. E constrói o mundo dentro de si mesmo. A dimensão formativa da leitura está implicada nesses conceitos. Bakhtin considera que a compreensão de uma enunciação (formulada pelo texto ou por alguém) nos leva a fazer a esta uma réplica. Portanto, à palavra do outro, opomos uma contrapalavra. De réplica em réplica, no diálogo com o mundo, é que tecemos sentidos para este e para nós mesmos. Sendo assim, as atividades de leitura que promovemos nas aulas, muito mais que trazer ‘ilustração’, informações para nossos alunos, fazem sentido quando lhes favorecem encontros com o mundo, com o outro, consigo mesmos. Quando suscitam perguntas, questionamentos, elos. Quando tornam possível que os sujeitos pronunciem as próprias palavras.

Sujeitos, palavras, leitura, conhecimento, experiência. Muito tempo pensei que o conhecimento fosse algo a ser construído pelos sujeitos. Entendido desse modo, conhecer seria um processo gradual em que a uma aprendizagem se sobrepusesse outra e mais outra, como, num edifício, os andares vão se sobrepondo, até que... Mas aí subsiste uma concepção que talvez limite a compreensão da complexidade com/em que se tece o conhecimento. Um dia, encontrei com uma outra idéia, outra noção, relativa ao processo de conhecer: a de que não há, propriamente, uma hierarquização de saberes, começando dos mais simples até chegar aos mais complexos. A de que os sujeitos, na relação cotidiana com o outro e com o mundo da cultura, tecem seus conhecimentos em redes (Alves, 2000;2002). E seus fios se espalham pelos caminhos.

Cada aluno/aluna e cada professor/professora que entra no espaçotempo escolar carrega consigo a rede de subjetividade que é. Ou melhor dizendo, traz consigo as múltiplas redes nas quais vive, com seus diferentes processos de conhecer e com os vários conhecimentos nelas criados (...). (2000, p.47-8)

Todas as práticas sociais de que participamos nos levam a aprender, e esses saberes se enredam, estão sempre e permanentemente relacionados, como aponta Oliveira (2001). Assim, tanto os saberes formais quanto “o que vivemos na rua, na escola, em casa, nas conversas com os amigos, nas leituras que fazemos, na TV a que assistimos” estão emaranhados em nossas subjetividades e interferem nos sentidos que atribuímos ao mundo. Refletindo sobre tanto, aos poucos, fui delineando com maior nitidez minha principal pergunta de pesquisa: se compreendo o sujeito como um enredamento de subjetividades que está em constante formação no movimento das múltiplas experiências que vive, como e até que ponto os processos vividos na rede da escola vêm interferindo nas subjetividades dos alunos, especialmente na sua constituição como leitores? No cotidiano das aulas, as articulações que as crianças operam entre os saberes tecidos nessas redes se fazem ver, muitas vezes, e dão viço ao processo de aprendizagem. Quanto à formação de leitores, as redes familiares também têm importância enorme, muitas vezes até maior que a rede da escola10. Não 10

Pesquisas como Retrato da Leitura no Brasil (realizada entre 10 de dezembro de 2000 e 25 de janeiro de 2001, pela Câmara Brasileira do Livro- CBL/Sindicato Nacional dos Editores de LivrosSnel/Associação Brasileira de Celulose e Papel-Bracelpa e Associação Brasileira dos Editores de Livros-

desconsiderando sua existência, mas entendendo os limites da pesquisa e, de maneira nenhuma, pretendendo esgotar o assunto, voltei meu foco para as influências da escola no processo de formação dos alunos como leitores. O processo de perguntar me levou a perceber, também, esse duplo movimento em relação aos professores e professoras. Nós trazemos para o cotidiano da escola fios de outras redes, como também vamos sendo trans-formados pelas experiências vividas no contexto do trabalho (Santos apud Alves, 2000)11 , configurando, assim, possibilidades de renovação das práticas. Todos os sujeitos que participaram da pesquisa trouxeram, com seus ‘fuxicos’, a história do cotidiano, de diferentes "cotidianos" das diferentes épocas. Os professores contribuíram com suas memórias em relação às práticas do ensino de Literatura no primeiro segmento de São Cristóvão. Os alunos, lembrando do passado e falando do presente, disseram muito de sua formação, tanto no tempo do primeiro segmento quanto no restante de sua escolaridade no colégio. No decorrer da pesquisa, pude perceber diversas marcas deixadas pela escola na trajetória (Certeau, 2003) década um. Como a escola de primeiro segmento contribuiu para que cada sujeito seja o leitor que é?

Mas o que eu mais lembro é das histórias, eu gostava muito. [fala sorrindo] A gente sentava no chão... de pernas cruzadas... você sentava numa cadeira e ficava contando a história.(...) Ah, a gente lia muito, não é? De uma forma ou de outra eu fui influenciado também pelas minhas bases a ler, ler mais. Influenciado mesmo a ler, porque ler é uma coisa boa. Aí a gente aprendia isso na escola. (André, 8ªa série)

Adorava a aula de literatura! [risos] Eu adorava desenhar depois! (...) É, eu leio bastante. Nessa greve que teve agora eu li três livros direto... O auto da barca do inferno, de Gil Vicente, Nove idéias mais malucas da ciência- muito divertido! – e A casa da mãe Joana! (Ana Beatriz, 1º ano do ensino médio)

A trajetória de um sujeito, segundo Certeau, não é algo que se possa prever ou determinar absolutamente. Buscar compreender os fragmentos labirínticos das trajetórias dos alunos pelas malhas da leitura me impôs procurar mergulhar com todos os sentidos (Alves, 2002) no(s) cotidiano(s) em que eles vinham sendo formados. O que

Abrelivros) e Indicador Nacional de Analfabetismo Funcional (realizada anualmente pelo Instituto Paulo Montenegro, do Instituto Brasileiro de Opinião Pública (IBOPE), associado à Organização Não Governamental Ação Educativa) trazem notícias a esse respeito. 11 SANTOS,B.S. Pela mão de Alice- o social e o político na pós-modernidade. São Paulo, Cortez, 1995.

significa o mergulho de que fala Alves? Antes de tudo, uma postura políticometodológica. Entrar no lugar praticado de que fala Certeau (2003). Arriscar-me. Tentar descobrir significados na escola onde nós, praticantes ordinários, vivemos grande parte de nossas vidas. Onde somos felizes, infelizes... Onde se constroem, se encontram desejos, conhecimentos, esperanças, afinidades... Ou não. Desconstroem-se, desencontram-se, desespera-se, desafina-se. Ou, ainda, um pouco de tudo isso. Pelas ruas das cidades e – por que não?- pelas vias sociais, os caminhantes escrevem um texto sem poder lê-lo (ibid., p.171). Nós, os sujeitos ordinários, vivemos nossas práticas cotidianas, sem, contudo, escrevê-las, ‘preto no

branco’, como se

poderia dizer em linguagem popular. Numa sociedade marcada pelo valor da escritura, normalmente quem escreve sobre nós são outros. Quando escrevem. Quem abrir o Projeto Político-Pedagógico do Colégio Pedro II12 poderá constatar que, nas páginas onde a longa e pomposa história do colégio é contada, a criação dos “Pedrinhos” é registrada em duas linhas. Da Unidade São Cristóvão se fala: “Em 1984, foi criada, em São Cristóvão, a primeira Unidade de Ensino do Primeiro Segmento do Ensino Fundamental (da classe de alfabetização à 4ª série).” 13 E mais nada. Lembro-me ainda de que, no final dos anos de 1980, Marcelo, um colega de trabalho, costumava comentar, preocupado, que, no colégio, nós não registrávamos quase nada do que fazíamos; as coisas se diluíam na correnteza das práticas cotidianas e muitas vezes se perdiam no labirinto do tempo. Enquanto pesquisava, lembrava. Mesmo agora, quando escrevo, sua voz de vez em quando ressoa em minha memória. Do mesmo modo que ouvia Marcelo, as outras vozes que fui ouvindo durante a pesquisa se mesclaram no meu texto e continuaram reverberando, mesmo quando foi necessário colocar um ponto, ainda que não o final. Porque os fuxicos da memória apresentam possibilidades de inesgotáveis combinações.

Primavera de fuxicos No fim deste meu passeio pelo tempo da memória no cotidiano da escola, é necessário emendar alguns fuxicos. 12

Colégio Pedro II: Projeto Político Pedagógico. Brasília: Inep/MEC, 2002, p.29.

13

Conferir Colégio Pedro II: Projeto Político Pedagógico. Brasília: Inep/MEC, 2002, p.30.

Preciso lembrar que fazendo pesquisa, podemos encontrar o “outro” e também descobrir mais de nós próprios. Que aprendemos, mas também desaprendemos. E, olhando minha trajetória, me chama muita atenção o que desaprendi. Muitas vezes, mais do que aquilo que aprendi. Desaprendi o conforto das certezas E, tantas vezes, tive que desaprender sobre a segurança dos métodos. Achava no princípio que a trajetória de minha pesquisa fosse ser linear, mas o que encontrei foram redes de mil incertezas. Achava que fosse descobrir a resposta exata, mas, na verdade, permeei-me de mais dúvidas. Pensar em tudo o que fui (des)aprendendo me faz perceber o quanto o conhecimento é provisório. Poder retornar, através da reflexão chamada pelo processo de pesquisa, às experiências que vêm me constituindo professora e pessoa foi de uma importância imensurável. Essa importância, afirmo, se deveu ao fato de que percorri o caminho da pesquisa e da reflexão não apenas com o auxílio de uma memória pessoal e solitária, mas através da articulação entre a minha subjetividade e todas aquelas que fui encontrando pelo caminho. Um mosaico, fuxicos. Muitas memórias - pequenos cortes de tecidos - e as agulhas que usei para urdi-las são minhas, é verdade; mas estão enredadas no coletivo da escola.

Refletir sobre elas me aguçou os sentidos para

continuar meu mergulho nesse espaço de tantos encontros, mas também de desencontros. Cheguei mais perto da escola. Aproximei-me das (re)invenções do lugar praticado operadas por alguns dos tantos sujeitos anônimos que dão vida à escola pública. Poder conhecer, pelas vozes de quem viveu, pelas vozes dos praticantes do cotidiano escolar, um pouco de uma das possíveis histórias do “Pedrinho” me foi muito significativo. Saber um pouco de um processo que se deu no coletivo me confirma o quanto o grupo nos potencializa. Qualquer trabalho, por mais produtivo que seja, permanece aquém, se realizado solitariamente. Qualquer trabalho pode crescer infinitamente se tecido no diálogo com as diferenças, com o outro. A pesquisa com os alunos, por exemplo, me mostrou muito mais do que pude desenvolver no texto. Nas entrevistas, abordamos vários outros aspectos da relação que eles estabelecem com a leitura, dos livros e do mundo, na escola e fora dela. Falamos de biblioteca, de leituras não indicadas pelos professores, das imagens que cada um vem construindo a respeito do ato de ler, de seus gostos e atitudes leitoras, enfim.

As pesquisas de perfil quantitativo em torno da leitura da palavra escrita costumam destacar, em primeiro lugar, as práticas familiares, e, em segundo, as práticas escolares de leitura como proeminentes no processo de formação de leitores. No entanto, nesse terreno, não existem certezas de que uma ação redundará exatamente no que se espera. Formar leitores é um processo para o qual não há um método, se se entende método como um conjunto predeterminado de passos a serem seguidos, com garantia de sucesso. Embora essa receita não exista, parece que, de fato, alguns caminhos podem ter maiores possibilidades de êxito. Falo de possibilidades, não de garantias. Em relação ao papel da escola, os ex-alunos do “Pedrinho” me mostraram que as experiências vividas em seus primeiros anos de escolaridade, não só nas aulas de Literatura, mas em diversas outras atividades escolares, foram importantes para a constituição de subjetividades mais sensíveis à linguagem artística. Essas atividades semearam possibilidades. E, no que tange à sensibilidade para a literatura, a escola de primeiro segmento deixou marcas mais definidas em quatro dos seis entrevistados, que carregam, em seu baú de memórias, lembranças de prazeres com a leitura literária vividos nesse tempo. Apesar das contribuições significativas do “Pedrinho”, dois daqueles alunos não ficaram suficientemente mobilizados para a leitura durante os anos em que foram nossos alunos. A relação não é matemática. Mas nos interessa formar leitores. O entrecruzar dos fios de saberes de tantas redes – familiares, escolares e outras – me parece promissor. Se nossas subjetividades são forjadas na e pela linguagem, no que tange à escola, me parece que justamente quando, naquele espaço privilegiado para tal, se faz do texto lido matéria de reflexão, crescem as chances de que a leitura possa ser, para os sujeitos, experiência de formação, experiência de pensar o mundo pensando a si mesmos, e vice-versa. Isso não significa que sempre teremos sucesso. Ou, ao menos, respostas imediatas e visíveis. A imagem das práticas escolares em torno da leitura ocorridas no segundo segmento, conforme me foi descrita pelos sujeitos da pesquisa, não coincide exatamente com idéia que acabei de expor. Talvez ali o foco principal do trabalho esteja no estudo dos textos, e não propriamente na educação pela leitura, o que é bem diferente. Mas penso que uma compreensão mais apurada da escola de segundo segmento poderia ser propiciada por uma outra pesquisa, que mergulhasse exclusivamente nas práticas cotidianas de leitura ali desenvolvidas, buscando apreender os diferentes processos que ocorrem. Porém, não poderia me furtar a fazer algumas observações.

Parece que todos os enredamentos de que os alunos vêm fazendo parte ao longo de suas vidas se insinuam no movimento que eles estabelecem em relação à leitura tal como ela vem se dando depois que deixaram o primeiro segmento. Porém, a julgar pelo que ouvi, indago: teria a relação de alguns deles com a leitura continuado tão próxima, não fossem suas outras inserções sociais? Mesmo esses alunos não poderiam ter desenvolvido muito mais sua competência leitora, caso seu envolvimento com a leitura fosse mais instigado pelas atividades escolares? Todavia, pensar que, pelas características mais conservadoras da escola de segundo segmento, os alunos estariam fadados a não ler é estar cego às muitas nuances que podem estar presentes no complexo processo que é a formação de leitores. Apesar de me parecer claro que, para certos alunos, as influências do “Pedrinho” tiveram grande potência, as leituras obrigatórias e avaliadas através de notas não chegaram a afastá-los do prazer de ler. Certas leituras indicadas pela escola chegaram, inclusive, a ser tão marcantes para alguns, que hoje fazem parte de seu “baú de experiências” com a leitura literária. Quem saberá dizer ao certo quando uma leitura pode se constituir em experiência? É por não existir método que nos faça assegurar como ou quando o encontro apaixonante com a leitura acontecerá, e mesmo se ele ocorrerá, que temos que insistir sempre. E insistir, para mim, é também procurar driblar astuciosamente os duros esquemas institucionais que nos cobram uma rigidez inaceitável quando se trata de atrair alunos para os livros e tentar fazer das aulas espaços onde o desafio do conhecimento esteja presente e possa ser prazeroso. É por transitarmos sempre no terreno da incerteza que nos cabe não economizar sementes, que nos cabe lançá-las sempre e incessantemente. Tendo como norte a constante reflexão sobre nossas práticas, podemos ter maiores condições de perceber se aquilo que pensamos serem sementes está sendo recebido como tal. Além disso, não podemos abandonar uma única certeza: a de que não podemos prever o futuro dos frutos, sequer se eles existirão. Nas redes de subjetividades que somos, muitas vozes estão presentes. Algumas se fazem ouvir claramente, outras, por não serem tão eloqüentes, parecem nem existir. Mas tudo está ali. Mesmo que hibernando. Não sabemos ao certo se ou quando serão acordadas. Por isso, desejo concluir contando do diálogo para o qual fui chamada, bem depois do dia em que entrevistei Taís. Conversei com ela em novembro de 2005. Depois disso, ela se mudou para Portugal, onde sua mãe está estudando. Taís não tinha grandes

afeições por leitura, embora tivesse repetido, na entrevista, frases que afirmavam a importância da leitura, muitas ouvidas de sua mãe, que tentava seduzi-la para os livros. Ela me mostrou que um ambiente leiturizador doméstico, mesmo que possa exercer forte influência sobre a pessoa, também não garante absolutamente a formação de seus membros como leitores. Estava eu, certo dia, com o computador conectado ao MSN, num dia de fevereiro. De repente, veio o aviso de que a menina tinha acabado de se conectar ao site. Muitas vezes antes daquela ocasião, isso acontecera. Mas, naquele dia, algo fez a diferença: pela primeira vez, ela me chamou. -Taís: Sônia! - Sônia: Oi! -Taís: Não sei se vai adiantar alguma coisa, mas gostaria de acrescentar naquela entrevista que fizemos, que estou lendo Poesias de Fernando Pessoa. Comprei aqui em Portugal. No Chiado, tem uma estátua dele sentado, ontem tirei foto com ele. Quer ver? -Sônia diz: Jura?? Tá lendo poesia, é? - Taís diz: Estou. - Taís diz: Posso mandar as fotos que tirei? - Sônia diz: A poesia às vezes é meio "difícil", mas é só deixar rolar, entender pelo contexto! Manda a foto! - Taís diz: É mesmo. Percebo isso também! - Sônia diz: Mas fala: você conheceu o Pessoa aí ou aqui? Foi sua mãe? - Taís diz: Já conhecia as poesias dele, algumas só. Minha mãe que me ofereceu e eu aceitei. - Sônia: Essa sua mãe vale ouro! - Taís:Obrigada!

Já alguma coisa parece ter se modificado no mundo de Taís. Tanto que ela desejou dividir comigo. A constante insistência da mãe, as memórias de outros contatos, as atividades escolares... Quem saberá dizer quantas sementes dormem em cada subjetividade? Quem saberá dizer o que ou quem as acordará?

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