Leituras Contemporâneas do Teatro Antigo

July 1, 2017 | Autor: K. Azevedo | Categoria: Teatro
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0 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA CENTRO DE ESTUDOS INTERDISCIPLINARES DA ANTIGUIDADE

CEIA-UFF

CADERNOS DO CEIA

No. 2 - 2008

Leituras Contemporâneas do Teatro Antigo Katia Teonia Costa de Azevedo Silvia Damasceno (ORGANIZADORES)

Niterói - 2008

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Copyrigth2008: Todos os direitos desta edição reservados ao Centro de Estudos Interdisciplinares da Antiguidade (CEIA), da Universidade Federal Fluminense (UFF). Capa: foto do teatro de Epidauro Contra-capa: Mosaico da Musa do teatro, Lesbos. (mitologia.tripod.com) Diagramação: Prof. Ms. José Roberto Paiva

AZEVEDO, Katia Teonia Costa de, DAMASCENO, Silvia (org). Cadernos do CEIA. Ano 1 No 2 Niterói: Centro de Estudos Interdisciplinares da Antiguidade – CEIA – da Universidade Federal Fluminense (UFF), 2008. 144 pp. ISSN 1981-6782 CDD 930 Palavras-chave: 1 – História; 2 – Politeísmo; 3 – Cultos; 4 – Divindades; 5 - Teatro

Cadernos do CEIA Publicação Semestral do Centro de Estudos Interdisciplinares da Antiguidade

Universidade Federal Fluminense CEIA – Instituto de Letras e Instituto de Ciências Humanas e Filosofia Campus do Gragoatá, Bloco C, sala 310 São Domingos – Niterói – Cep: 24.210-350 Tel: (21) 2629-2603 Página na rede mundial de computadores: http://www.ceiauff.rg9.net Correio eletrônico: [email protected]

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2 ISSN 1981-6782 CADERNOS DO CEIA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA CENTRO DE ESTUDOS INTERDISCIPLINARES DA ANTIGUIDADE CEIA-UFF

EDITORES RESPONSÁVEIS Dr. Ciro Flamarion Santana Cardoso – UFF Dra. Silvia Damasceno – UFF Dr. Alexandre Carneiro Cerqueira Lima – UFF CONSELHO EDITORIAL Dra. Adriane Silva Duarte – USP Dra. Claudia Beltrão da Rosa – UNIRIO Dr. Fabio de Souza Lessa – UFRJ Dra. Glória Braga Onelley – UFF Ms. Katia Teonia Costa de Azevedo - UFF Dra. Maria de Fátima de Sousa e Silva – Universidade de Coimbra Dra. Sonia Rebel de Araújo – UFF CONSELHO CONSULTIVO Dr. André Domingos dos Santos Alonso – UFF Dra. Adriene Baron Tacla – CEIA/UFF Ms. Manuel Rolph de Viveiros Cabeceiras – UFF Dr. Marcelo Aparecido Rede - UFF Dra. Maria Bernadete de Carvalho Rocha – UFF Dra. Maria Regina Candido – UERJ Ms. José Roberto de Paiva Gomes – NEA/UERJ

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3 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO 4 ARTIGOS O conceito de mimese em Aristófanes 7 Adriane da Silva Duarte Privilégio do ritmo cômico no teatro indiano clássico 20 Carlos Alberto da Fonseca Le mythe de l’origine (Sur les mises en scène de la tragédie grecque, et Les Bacchantes de Klaus Michael Grüber) 33 Christophe Triau Dois caminhos da herança clássica 66 Djalma Thürler A ética em cena: Filoctetes de Sófocles 79 Fernando Brandão dos Santos A técnica do trajo - Uma lição ao vivo de crítica teatral em 106 Aristófanes Maria de Fátima Sousa e Silva A farsa e a tragédia dentro de O rei da vela 129 Matildes Demetrio dos Santos AUTORES

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4 APRESENTAÇÃO O Centro de Estudos Interdisciplinares da Antiguidade (CEIA), ao longo dos seus dez anos de existência, buscou divulgar os Estudos Clássicos entre os estudiosos da Antiguidade Clássica. Realizando jornadas anuais, minicursos e criando grupos de estudos, o CEIA promoveu o diálogo entre estudiosos e pesquisadores de Estudos Clássicos, do Brasil e do exterior. Hoje, o CEIA oferece ao público um outro instrumento de veiculação dos estudos relacionados à Antiguidade: Cadernos do CEIA, periódico que oferecerá aos leitores a apreciação de importantes trabalhos concernentes à Antiguidade Clássica. É com grande satisfação que o periódico Cadernos do CEIA lança seu segundo número com o volume Leituras Contemporâneas do Teatro Antigo. Neste número, foram agrupados alguns dos trabalhos apresentados no I Ciclo do Pensamento e da Ação Teatral, evento realizado entre os dias 11 e 14 de setembro de 2007, no Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense (UFF). Os artigos aqui reunidos apresentam estudos sobre autores dramáticos da Antiguidade Clássica Grega, Romana e Indiana e da Modernidade, fundamentados, em geral, na teoria aristotélica. Esta edição do Cadernos do CEIA traz seis artigos de estudiosos e pesquisadores nacionais e internacionais. A Professora Doutora Adriane da Silva Duarte discorre, em seu artigo, sobre um dos recursos mais interessantes da arte, segundo a estética de Aristóteles – a mimese. Neste trabalho, a autora identifica as afluências entre as compreensões aristofânicas e platônicas do termo, usando, para isso, os estudos teóricos de Eric Havelock e passagens de algumas comédias de Aristófanes, tais como As Nuvens, As Tesmoforiantes e Lisístrata e os textos de Platão: Íon, Hípias Menor e A República.

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5 Analisando aspectos do teatro indiano antigo, o Professor Doutor Carlos Alberto da Fonseca, Professor Titular da Universidade de São Paulo, oferece aos leitores o texto da sua conferência proferida durante a V Semana de Estudos Clássicos, realizada entre os dias 28 e 31 de maio de 1990 na SBEC/Araraquara, que se intitula Privilégio do Ritmo Cômico no Teatro Indiano Clássico. O Professor Christophe Triau da Université Paris 7 – Denis Diderot apresenta um trabalho sobre a montagem de tragédias gregas, em geral, e em particular sobre a adaptação d`As Bacantes feita pelo diretor alemão Klaus Michael Grüber, em 1974. Propondo uma leitura intertextual baseada nas teorias poéticas antiga, como a de Aristóteles, e as contemporâneas de Marc Escola e Terry Eagleton, o Professor Doutor e diretor teatral Djalma Thürler expõe aos leitores uma visão da tragédia e do trágico na cultura clássica e moderna. A tragédia sofocliana Filoctetes é o objeto de estudo do Professor Doutor Fernando Brandão dos Santos, que nos apresenta com base em uma análise dos discursos de Odisseu, Neoptólemo, Filoctetes e Héracles, reflexões éticas e morais, não somente sobre o caráter das personagens, mas também sobre a crise de valores que a sociedade ateniense vivia no final do século V a.C. Em A técnica do trajo - Uma lição ao vivo de crítica teatral em Aristófanes, a criação poética aristofânica é novamente abordada, agora pela Professora Catedrática da Universidade de Coimbra, Maria de Fátima Sousa e Silva, que nos apresenta um estudo sobre a importância do figurino e da transformação visual no contexto cênico e como tal recurso pode contribuir para o processo de mimese. O teatro brasileiro é o tema abordado pela Professora Doutora em Literatura Brasileira Matildes Demetrio dos Santos. Com um estudo sobre a peça O rei da

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6 vela do poeta Oswald de Andrade, a pesquisadora comprova a presença de elementos da farsa e da tragédia na criação poética modernista. Segue, portanto, neste volume, um conjunto de estudos sobre o teatro que perpassam as idades antiga e moderna, tratando, não apenas da teoria e da criação, mas também da ação teatral. Esperamos, desta forma, contribuir significativamente para a propagação do saber e convidamos o leitor a compartilhar desta prazerosa e enriquecedora leitura. Katia Teonia Costa de Azevedo Silvia Damasceno

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7 O conceito de mimese em Aristófanes Adriane da Silva Duarte FFLCH/USP RESUMO: O presente artigo apontará convergências entre a compreensão aristofânica e platônica do termo mimese. PALAVRAS-CHAVE: Mimese, Poética Antiga, Aristófanes, Platão. ABSTRACT: The current paper intends to show the convergence between the aristophanic and platonic understanding of the mimesis term. KEYWORDS: Mimesis, old Poetic, Aristophanes, Plato O objetivo desse artigo é apontar certas convergências entre a compreensão aristofânica do termo mimese, quando aplicado a um contexto literário, e a platônica, chamando a atenção para o quanto a percepção da natureza mimética da obra de arte e do seu processo criativo estava disseminada no cenário intelectual ateniense ao final do século V a.C. e antecedia sua formulação mais completa e conhecida n’ A República. O intervalo entre as comédias aristofânicas que abordam a questão e a redação do referido Diálogo Filosófico é de cerca de cinqüenta anos. Como se sabe, o termo mimese é central à reflexão platônica sobre a poesia como ela se apresenta n’A República, assumindo ali uma multiplicidade de sentidos que faz com que o autor de um livro já clássico sobre Platão e seu contexto cultural, Eric Havelock, a denominasse “palavra protéica”, “a mais instável do vocabulário” do filósofo (Havelock, 1996: 47 e 37), por estar submetida por ele a uma série de metamorfoses no decorrer de sua obra. A razão disso está no salto conceitual que se verifica da primeira vez em que a palavra é mencionada, no livro III (392 d), quando é associada ao modo dramático de enunciação do discurso,

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8 por oposição ao narrativo ou misto, até a acepção que adquire no livro X, quando é empregada para designar toda a representação artística da realidade e, em particular, a poesia. A essa altura do Diálogo, no livro X, o ingresso dos poetas na cidade ideal é vedado sob alegação de serem eles praticantes de uma atividade que compromete o intelecto dos cidadãos, já que a poesia seria apenas uma cópia do que está dado no plano sensível, onde residem os artefatos concretos. Estes artefatos, por sua vez, seriam reproduções do plano inteligível, onde se situam as Formas ou a essência perfeita de tudo o quanto é. O poeta, dessa perspectiva, não passa de um ilusionista, cuja arte carece de fundamento e desvia o homem do que é verdadeiro. A imagem do espelho que reflete tudo que existe, mas não de forma consistente, ilustra bem essa idéia. Essa última acepção do termo é própria do pensamento de Platão e não creio que possa ser encontrada em outra parte, mas as etapas intermediárias da reflexão, que envolvem o exame dos efeitos da mimese nas atividades de criação, performance e recepção artística, desenvolvidas sobretudo no livro IIII da República, se insinuam em outros autores e, nesse sentido, sua presença na obra de Aristófanes é significativa. A comédia grega antiga é um gênero literário que passa em revista, nem sempre com fidelidade, as tendências intelectuais de seu tempo, parodiando o comportamento e o estilo de seus expoentes. Um exemplo claro disso é o retrato de Sócrates, em As Nuvens, onde se faz a fusão entre o filósofo, como é apresentado nos diálogos platônicos, e os sofistas que refuta. Assim, apesar da reclamação que o Sócrates platônico guarda contra a sua caracterização cômica na Apologia de Sócrates, os personagens partilham características comuns.1 A questão da mimese se insinua 1

Para maior detalhamento, cf. Duarte, A. S. (2004: 61-66).

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9 nesta comédia na própria condição do seu coro, que tem a capacidade de adotar o aspecto dos seres que contemplam do alto. Diante do espanto de Estrepsíades com a forma feminina que as Nuvens assumem em cena, já que as tomava por orvalho e vapor (v. 330) na aparência de flocos de lã (v. 343), Sócrates explica que (v. 348-355): 2 “Elas se transformam em tudo que desejam. Se vêem um fulano de longa cabeleira, um desses selvagens peludos, como o filho de Xenofanto, para ridicularizar a mania dele, tomam a forma de centauros. [...] E agora, você está vendo, viram Clístenes e por causa disso mudaram-se em mulheres...”

Ou seja, o Sócrates aristofânico já demonstra interesse no processo mimético de caracterização. Mas, apesar desse trecho promissor, vou concentrar minha análise no prólogo d’ As Tesmoforiantes, comédia em que se estabelece melhor o contexto artístico da discussão, já que nela contracenam os tragediógrafos Agatão e Eurípides, além de um parente seu, e que tem por tema a natureza da composição trágica. Também vou me referir ao prólogo d’ Os Acarnenses, cuja cena em que o herói cômico vai à casa de Eurípides em busca de recursos dramáticos para impressionar o coro hostil guarda muitas semelhanças com o trecho anteriormente mencionado, e ao debate literário d’ As Rãs. As Tesmoforiantes foi encenada em 411 a.C. e se passa durante a realização das Tesmofórias, festival dedicado a Deméter e Perséfone que, por ser voltado para propiciação da fertilidade, reunia apenas as mulheres casadas, vetando-se a participação masculina. Nesse cenário, as mulheres resolvem vingar-se de Eurípides por manchar sua reputação ao criar heroínas de moral duvidosa como Fedra e 2

As citações d’ As Nuvens seguem a tradução de Gilda Maria Reale Starzynski (São Paulo: DIFEL, 1967).

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10 Estenobéia em suas tragédias. Para escapar a sua fúria, o tragediógrafo decide recorrer ao colega Agatão, cuja afetação, somada à aparência franzina e imberbe, colaboraria para que ele ingressasse incógnito no Tesmofórion, passando-se por uma das celebrantes dos ritos, e, valendo-se de sua habilidade com as palavras, defendesse Eurípides. Eurípides observa que somente Agatão poderia falar como ele (v. 187), de modo que o poeta mais jovem é apresentado de certa forma como uma imitação de seu colega mais velho. Essa sugestão de que Agatão constitui uma versão do próprio Eurípides remete em chave irônica à autoparódia que Aristófanes faz de uma cena criada por ele quatorze anos antes em Os Acarnenses. Lá é Eurípides que recebe a visita de Diceópolis, um camponês exilado na cidade devido à Guerra e que, perseguido pelo coro de carvoeiros acarnenses, busca ajuda para defender-se diante deles. Ele imagina que poderia suscitar sua piedade se valendo de alguns adereços que evocassem personagens miseráveis criados por Eurípides, o mais trágico dos tragediógrafos, segundo Aristóteles. Se em Os Acarnenses, o herói cômico busca a solução de seus problemas no baú do poeta trágico, em As Tesmoforiantes a referência é a comédia. Se Eurípides escolhe Agatão devido aos seus dotes retóricos, estes nada valeriam não fosse a sua aparência delicada, que favorece o travestimento. Desta vez, é o seu próprio baú que o comediógrafo revira. A mimese será explorada ainda de outros modos. Ao chegar à porta de Agatão, Eurípides avista seu criado oferecendo um sacrifício propiciatório em favor do patrão que, no interior da casa, compõe um canto coral. Assim como o criado de Eurípides em Os Acarnenses, que antecipava o estilo elevado e rebuscado de seu patrão tragediógrafo, o criado de Agatão em As Tesmoforiantes é uma versão do patrão, a quem emula. Mais do que imitar o estilo do patrão, introduzirá as questões de poética que dominam o prólogo, a

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11 começar a das causas da poesia. Segundo ele, a poesia se deve a duas causas: à inspiração e à técnica. Assim, ao entrar em cena, declara (vv. 39-42): 3 “Que toda gente silencie e mantenha fechada a boca, pois habita o interior da casa de meu senhor um tíaso de Musas a compor.”

O criado parece creditar a capacidade criativa de seu patrão ao convívio com a divindade que o inspira: são as Musas que compõem. Essa idéia é bem disseminada no mundo antigo e se encontra desenvolvida nos primeiros diálogos de Platão, como se pode constatar nessa passagem do Íon (534): 4 “Pois é certo que os poetas nos dizem que é colhendo nas fontes de mel de certos jardins e vales das Musas que nos trazem as melodias - tal qual as abelhas, também eles próprios dessa maneira voando. E estão dizendo a verdade: porque o poeta é coisa leve, e alada, e sagrada, e não pode poetar até que se torne inspirado e fora de si, e a razão não mais esteja presente nele. Até conquistar tal coisa, todo homem é incapaz de poetar e proferir oráculos. Uma vez, portanto, que poetam e falam muitas e belas coisas sobre os fatos - como você sobre Homero - não por arte, mas por uma porção divina, cada um é capaz de poetar belamente só isto - aquilo para o que a Musa o lançou: um ditirambo, outro encômios, outro hiporquemas, outro versos épicos, outros jâmbicos...”

Sócrates leva Íon, o rapsodo, a admitir que a poesia é fruto de inspiração e não de uma arte ou técnica poética e que, portanto, não pode ser tomada como expressão do conhecimento humano, uma vez que o poeta não é 3As

citações d’ As Tesmoforiantes são traduções de minha autoria (São Paulo: Martins Fontes, 2005). 4 As citações do Íon seguem a tradução de André Malta (Porto Alegre: L&PM, 2007).

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12 responsável por aquilo que compõe. Curiosamente, ao dar seqüência ao sacrifício, o criado de Agatão descreve a atividade do tragediógrafo como um ofício técnico (vv. 4957): Pois ele, Agatão de belos versos, nosso chefe, está em vias de ... [...] ...colocar as escoras, fundações de um drama. Verga novos aros dos versos, outros torneia, outros ainda cola e forja frases, emprega antonomásias, modela, arredonda, despeja no molde...

Ao comparar a arte do poeta à do arquiteto, do carpinteiro, do escultor, o criado ressalta o domínio por parte de seu patrão de procedimentos técnicos que regem a sua atividade. Outra vertente da poética antiga, que tem por expoentes Aristóteles e Horácio, considera que a poesia resulta do domínio de uma técnica, que pode ser ensinada e julgada. O criado coordena ambas as acepções atribuindo a força criadora de Agatão ao poder das Musas e à habilidade técnica. Com a entrada do próprio poeta em cena, a discussão ganha novos contornos. Agatão, à altura do verso 95, deixa-se rolar porta afora sobre o enciclema 5 e dá uma amostra do que estivera a compor: um canto coral em que a líder do coro dialoga com o grupo de jovens troianas durante a celebração das divindades protetoras de Tróia. Mnesíloco, o parente de 5 O enciclema é uma plataforma sobre rodas que, projetada através da porta do cenário, era usada pelos encenadores gregos para revelar o interior de uma habitação. Ou seja, no caso de As Tesmoforiantes, não é Agatão que deixa sua casa, mas os espectadores que são admitidos nela, de modo a contemplar o resultado do processo criativo descrito pelo criado.

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13 Eurípides, carente do refinamento de maneiras dos tragediógrafos, expressa o ponto de vista do homem comum e não se contém diante do canto e da aparência de seu autor: ambos são efeminados (v. 131). É preciso dizer que Agatão surge numa veste amarelo-acafrão tipicamente feminina, assim como são femininos os acessórios que usa: a rede de cabelo, o corpete e o espelho. Esses elementos contrastam com o frasco de óleo, o punhal e a lira, atributos masculinos que designam as atividades do atleta, do guerreiro-caçador, do poeta, respectivamente. A androginia da figura deixa o parente estupefato (vv. 141-143): “E você mesmo, menino, será que é criado como homem? Então, cadê o seu membro? Cadê o seu manto? Cadê suas sandálias lacônicas? Ou será como mulher? Mas cadê as mamas?”

A resposta de Agatão é a seguinte (vv. 148-156): “Eu uso as roupas de acordo com a minha disposição. Um poeta deve estar de acordo com as peças que compõe e comportar-se de acordo com elas. Por exemplo, sempre que compõe peças sobre mulheres, deve-se fazer o corpo participar de sua natureza. [...] Mas sempre que se compõe sobre homens, no corpo tem-se o necessário. Aquilo que não temos, isso a imitação captura.”

De acordo com sua visão, o poeta, ao compor, deve imitar o objeto que deseja representar. Assim, se desejar pôr em cena jovens troianas, é preciso portar-se como elas para conferir um caráter de verossimilhança a seu canto. Daí a presença dos acessórios femininos em sua indumentária. O que poderia parecer uma caracterização grosseira de comédia encontra respaldo tanto em Platão quanto em Aristóteles. O Estagirita, na Poética, julga que os poetas mais

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14 persuasivos são os que experimentem as mesmas sensações que querem transmitir através de seus personagens, imitando-lhes o gesto (1455ª 27): 6 “Deve também reproduzir [por si mesmo], tanto quanto possível, os gestos [das personagens]. Mais persuasivos, com efeito, são [os poetas] que naturalmente movidos de ânimo [igual ao de suas personagens] vivem as mesmas paixões; por isso, o que está violentamente agitado excita nos outros a mesma agitação e o irado, a mesma ira. Eis por que o poetar é conforme a seres bem dotados ou a temperamentos exaltados, a uns porque plasmável é a sua natureza, a outros por virtude do êxtase que os arrebata.”

Antes de Aristóteles, Platão havia desenvolvido na República um raciocínio semelhante. No livro III, Sócrates explica como, ao compor, o autor de obras dramáticas, ao buscar criar um discurso que reproduza o estilo de seus personagens, o faz por imitação, seja “na voz ou na postura” (393c): 7 “Mas, se ele [i.e., o poeta] pronuncia um discurso como se fosse outro, não diremos que, nesse momento, faz que sua fala se assemelhe o mais possível a de cada um que, segundo indicação sua, terá a palavra? [...] E fazer-se semelhante a um outro, ou na voz ou na postura, não é imitar aquele a quem se faz semelhante? [...] Nesse caso, parece-me, ele e outros poetas constroem a narrativa por meio da imitação.”

Como nota Havelock (1996: 39), a observação faz mais sentido quando se aplica a um ator ou rapsodo e não ao poeta, pois é a performance que parece estar em foco. É como se, para Platão, as duas tarefas estivessem sobrepostas. Mas Aristófanes parece estar familiarizado com esta idéia e corroborá-la ao representar Agatão a declamar enquanto 6

As citações da Poética seguem a tradução de Eudoro de Souza (Coimbra: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1986). 7 As citações da República seguem a tradução de Anna Lia A. A. Prado (São Paulo: Martins Fontes, 2006).

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15 compõe, incorporando os diversos papéis dramáticos que cria, como demonstra sua exibição diante das visitas. Também em Os Acarnenses a mesma concepção da criação poética como mimese aparece. Desta vez quem rouba a cena é Eurípides. Diceópolis, o herói cômico, pede ajuda do tragediógrafo para, ao menos na aparência, suscitar a piedade do coro de carvoeiros que o ameaça de morte. Como apontado antes, em As Tesmoforiantes o comediógrafo parodia a si próprio e, portanto, as semelhanças entre as duas comédias passam longe da coincidência. Dessa forma, o roteiro é o mesmo. Chegando a casa de Eurípides, Diceópolis é recebido por um criado cujo discurso emula o do patrão e que lhe informa enigmaticamente que o poeta “está e não está”, ou seja, seu espírito está fora, à caça de versinhos, mas ele próprio está lá dentro, entregue à composição de tragédias (vv. 398-400). Depois de uma breve espera, Eurípides também vem à cena sobre o enciclema e o quadro que surge diante de Diceópolis esclarece o tema da tragédia a que o poeta está compondo. Eurípides, vestindo andrajos, deita-se com os pés para o alto, de modo a não os pousar no chão. Isso acontece porque está criando um herói mendigo e coxo, sua especialidade, segundo Diceópolis. O herói cômico percebe que o processo de criação do tragediógrafo comporta a imitação dos traços característicos de seus personagens, o que vem a ilustrar bem, descontado o exagero cômico, o quanto à mimese participava do processo de composição artística. Quanto à performance propriamente dita, especialmente no que diz respeito ao teatro, é mais evidente a participação da mimese, já que o ator reproduz o discurso e a atitude designados pelo poeta, não cria no sentido estrito do termo. Novamente As Tesmoforiantes mostra bem como isso se dá. Primeiro, ainda no prólogo, Mnesíloco é transformado

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16 no mais novo personagem do tragediógrafo. Diante da recusa de Agatão de atuar em favor de seu colega, o parente oferece-se como voluntário, cabendo-lhe executar o papel que Eurípides lhe atribuiu: “faça comigo o que quiser”, diz ele (v. 212). Sua transformação em mulher, condição necessária para ter acesso ao Tesmofórion onde Eurípides seria julgado, dá-se à vista de todos, no palco. Personagens e espectadores assistem às etapas de sua investidura: depilação, figurino e, por fim, as recomendações do “diretor de cena” Eurípides (vv. 266-268): “O nosso homem aqui é também mulher, ao menos na aparência. Se falar, trate de ser bem mulher na voz e na persuasão.”

E, embora seja desmascarado em seu primeiro papel, Mnesíloco toma gosto pelo ofício e passa a encarnar uma série de heróis euripidianos, como Telefo, Éax, Helena e Andrômeda, nas paródias que se sucedem na comédia. Antes de começar a recitar as falas de Helena, heroína da tragédia homônima, o parente observa (v. 849-851): “Com que outra peça eu o [Eurípides] atrairia? Já sei! Vou imitar a sua nova Helena. Estou usando uma veste feminina de qualquer forma.”

O emprego do verbo mimésomai, imitar, para caracterizar a função do ator, deixa claro que há um vínculo mimético entre ator e a personagem a que dá vida. Por fim, resta observar que, em Platão, a mimese está presente também no momento da recepção, o que é mais problemático, porque ela desempenharia uma função paidêutica: aprende-se através da imitação. Platão, no livro III da República, discute se os guardiões na cidade ideal devem ou não ser imitadores e, em caso afirmativo, o que devem imitar. A conclusão é a seguinte (395 c-d):

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17 “Mas, se imitam, que imitem já desde a infância a quem lhes convém imitar, isto é, os corajosos, os moderados, os piedosos, os que têm a nobreza do homem livre e tudo que tem essas qualidades. Não pratiquem nem sejam hábeis no imitar atos impróprios de um homem livre ou outro vício para que não venham a tê-los na realidade, como fruto da imitação. Não percebeste que, se as imitações perduram desde a infância vida adentro, as imitações se tornam hábitos e natureza que mudam o corpo, a voz e o pensamento?”

Também Aristófanes atesta este raciocínio. Em sua comédia As Rãs, ele imagina Eurípides e Ésquilo no Hades debatendo que qualidades deve ostentar um bom poeta. Concordam que cabe a ele tornar melhores os cidadãos nas cidades (v. 1011). Quando questionado por Dioniso, o juiz da contenda, o que fizera para isso, Ésquilo responde (vv. 1021 ss.)8: “Criei um drama cheio de Ares. [...] Os Sete Contra Tebas. Todo e qualquer homem que assistisse essa peça com paixão desejaria ser um destruidor! [...] Foi daí [dos poemas homéricos] que a minha cabeça tirou o modelo e pôs em cena muitas virtudes dos Pátroclos, dos Teucros de coragem de leão, para incitar o cidadão a tentar igualar-se a eles, quando ouvisse a trombeta. Mas, por Zeus! Não punha em cena Fedras prostitutas nem Estenobéias e ninguém jamais soube que eu tivesse posto em cena uma mulher apaixonada...”

E quando Eurípides quer saber que mal causaram suas Fedras e Estenobéias à cidade, Ésquilo não hesita em apontar a corrupção de nobres esposas, que seguiram o exemplo dessas heroínas sem caráter (v. 1051). Também Sócrates, na República (395 e), acha inconcebível que os futuros guardiões, sendo homens, imitem mulheres, sobretudo “quando insulta o marido ou quando disputa com os deuses e se vangloria por julgar-se 8

As citações d’ As Rãs seguem tradução inédita de Anna Lia A. A. Prado.

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18 feliz, ou então quando infortúnios, dores e lamentos a cercam”. E conclui o filósofo, evocando Fedra e outras personagens femininas trágicas: “Longe de nós permitir-lhes que imitem uma mulher doente ou apaixonada ou sofrendo as dores do parto!” Em As Tesmoforiantes a mimese também é abordada através desse viés. Após presenciar a “performance coral” de Agatão, Menesíloco descreve como a experiência o afetou (vv. 130-133): “Que doce canção, ó soberanas Genetílides! E também efeminada, uma carícia com a língua, lasciva, de modo que, ao ouvi-la, sinto cócegas no assento.”

Embora a canção não seja de natureza erótica - tratase, como já apontado, de um hino às divindades protetoras dos troianos -, a atuação de Agatão no papel das jovens e o modo musical empregado contribuíram para que o espectador, durante a recepção da obra, fosse afetado pelas paixões que ela suscita. Deduz-se dessas passagens que, para os gregos, o espectador (e no âmbito de uma cultura oral todo processo de recepção poética requeria um espectador) imitava o que via em cena. Afinal, como observa Havelock (1996: 45), então a poesia não era mero entretenimento, ficando “evidente que os poetas em geral e Homero em particular não eram apenas considerados como uma fonte de instrução em ética e habilidades, mas também desfrutavam de uma espécie de caráter institucional na sociedade grega”. Com base nisso, é permitido associar a mimese ao desempenho do artista, do ator e do público de poesia, elos básicos da cadeia do aprendizado antes da generalização da cultura escrita. Os textos de Aristófanes que examinamos também apontam para o quanto essa discussão já estava madura entre

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19 os gregos quando foi retomada por Platão n’ A República e levada às últimas conseqüências: a necessidade de banir o poeta da cidade ideal. Afinal, em outra de suas comédias, As Aves, em que homens e pássaros fundam em conjunto uma cidade nos ares, Aristófanes também promove a expulsão dos poetas. Coincidência? REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARISTÓFANES. As Nuvens. Tradução, introdução e notas de Gilda Maria Reale Starzynski. São Paulo: Difel, 1967. _____________. Duas Comédias: Lisístrata e As Tesmoforiantes. Tradução, apresentação e notas de Adriane da Silva Duarte. São Paulo: Martins Fontes, 2005. ARISTÓTELES. Poética. Tradução, prefácio, introdução comentários e apêndices de Eudoro de Souza. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1986. DUARTE, A. S. Sócrates, mestre de retórica. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia. São Paulo, n. 14, p. 61-66, 2004. HAVELOCK, E. Mimesis. In Prefácio a Platão. Tradução de Enid Dobránsky. Campinas: Papirus Editora, 1996, p. 37-52. PLATÃO. Sobre a inspiração poética (Íon) & Sobre a mentira (Hípias Menor). Introdução, tradução e notas de André Malta. Porto Alegre: L&PM, 2007. ____________. A República. Tradução de Anna Lia Amaral de Almeida Prado. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

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20 Privilégio do Ritmo Cômico no Teatro Indiano Clássico* Carlos Alberto da Fonseca USP RESUMO: A reflexão sobre o teatro levada a efeito pela cultura ocidental deixou-se direcionar, no que diz respeito aos gêneros dramáticos, pelos limites e pelos alcances da tradição do pensamento aristotélico e nos acostumamos a examinar a questão nos termos de uma oposição entre tragédia e comédia. Na Índia, entretanto, e pelo menos, a questão foi resolvida de outra maneira pelos teóricos e pelas práticas teatrais com o desenvolvimento da teoria dos rasa, os “temperos” ou as “emoções” que devem temperar, dar têmpera, aos textos estruturados com o objetivo de representação cênica. Neste artigo são reunidos alguns dados sobre o contexto social da Índia antiga para se tentar compreender como foram ali encaminhadas as reflexões sobre os gêneros em questão. PALAVRAS-CHAVE: teatro indiano; teatro sânscrito; tragédia e comédia; gêneros dramáticos; teatro antigo. RÉSUMÉ: La reflexion sur le théâtre donnée par la culture occidentale a trouvé son chemin, quando on parle sur les genres dramatiques, par les biais des frontières et des horizons de la tradition de la pensée d’Aristote et nous nous sommes limites à voir cette question comme uma oposition entre tragédie et comédie. Dans l’Inde, toutefois, et au moins, la question se pose d’une autre manière par les téoriciens et par les pratiques théâtrales par le developpement de la théorie des rasa, les “assaisonnements” ou les “émotions” qui doivent structurer les textes destines à *Conferência

proferida durante a V SEMANA DE ESTUDOS CLÁSSICOS, SBEC/Araraquara, 28-31.05.1990.

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21 la représentation scénique. Dans cet article ils se sont réunis quelques donnés sur le contexte social de l’Inde ancienne pour la compréhension de la question des genres. MOTS-CLÉS: Théâtre indien; Théâtre sanskrit; Tragédie et comédie; Genres dramatiques; Théâtre ancien. Conta a lenda que o príncipe Gautama, do clã dos øakya, que habitava a região de Kapilavastu, no atual Nepal, vivia cercado do maior luxo possível, no desfrute de todas as benesses do poder outorgado e exercitado pelos xátrias, imerso num cotidiano em que, com a proteção do rajá Çuddhodana, seu pai, não existiam o conhecimento do sofrimento e das truculências das leis e seus dissabores, nem a visão e a sensação da fome que grassava no reino e nas terras vizinhas, nem a menor noção da miséria material em que viviam os pobres, nem a menor crítica à opulência dos que, como ele, eram ricos. Já casado com a princesa Yaśodharà, sua prima, a quem escolhera num concurso de beldades, nem suspeitava das mazelas e da corrupção que grassavam nos meandros da economia, alimentadas pelos desmandos dos fiscais, dos comerciantes, dos industriais, dos banqueiros... Foi então que lhe sobreveio, perto dos trinta anos de idade, o primeiro “estalo”. Num passeio à cidade, sozinho, sem os seguranças que sempre o acompanhavam, o príncipe Gautama viu um velho, decrépito e faminto, e pela primeira vez pensou na velhice. Noutra ocasião, nas mesmas condições, viu um doente morrendo à míngua no meio da rua, e pela primeira vez pensou na morte. Noutra ocasião, ainda só, viu um asceta em meditação, e pela primeira vez pensou num caminho para a libertação interior e exterior. E, pouco tempo depois, logo após o nascimento de seu filho, Rahula, abandonou a família e o palácio em que morava e construiu seu próprio caminho - uma tentativa de resposta a duas perguntas sempre lembradas pela tradição: “como pode

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22 rir alguém que conhece a velhice, a doença e a morte? como pode haver alegria e riso quando o mundo está em conflito constante?” Seis anos depois o príncipe Gautama passou a ser conhecido como Buddha, o Iluminado, um Despertado para a consciência dos problemas humanos, e um guia para a trilha de um caminho da libertação interior e exterior. Circunspecto, muito circunspecto, quase sizudo, recomendando a meditação, a internalização do conhecimento, como a atitude fundamental e a disposição de vontade para a caminhada que propunha. Nos 45 anos que ainda viveu não se cansou de falar das quatro nobres verdades (que envolvem o sofrimento e o desejo) e da impermanência das coisas. Mas, principalmente, pregou a idéia central de que o “eu”, como um conceito totalizante do ser, é uma crença falsa que carece de realidade correspondente, de fundamento, e que tem causado danos profundos a toda a humanidade: a partir do momento em que há a consciência de um “eu”, vêm um “meu”, um “tu”, um “teu” e assim por diante; estabelece-se de imediato a concorrência entre os muitos “eus” e “teus” e “meus” e “teus”, prevalecendo então aquele que tem mais força ou o que induz os demais a concordar com o tal suposto eu; isso contribui para o surgimento do desejo, do egoísmo, da avidez, do ódio, do apego e de um grande etc. que compõe o capítulo das paixões e dos sentimentos humanos - a origem de todo o sofrimento humano. Para o Buddha, a crença na existência de um eu é a fonte de todas as perturbações existentes, desde as individuais (como por exemplo o ciúme) até as universais (como a guerra). No eu, na expressão do eu, está centralizado todo o conflito humano. Os Budismos - conjuntos de doutrinas que conservam ou reformulam parcialmente os ensinamentos desse Buddha - centralizam sua orientação nas estratégias de fuga aos tentáculos das sensações experimentadas pelos

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23 órgãos dos sentidos e pelos processos da mente. O conjunto dessas sensações, tornadas consciência, deve ser substituído por um estado “sem grilhões” (nirvàõa) em que o ser humano não se vê mais preso à roda da vida cotidiana, o sa§sàra, que é para os Budismos um verdadeiro inferno de vergonha íntima a ser eliminado sob pena de se viver uma vida infinita de dor. A doutrina formulada por esse Buddha entre os séculos VI e V a.C., a veemência com que ela é apresentada e a insistência com que é repetida nos séculos seguintes imediatos só são mais claramente compreendidas se se observar o pano-de-fundo contra o qual elas se recortam. Essa doutrina é uma novidade, oferece um caminho novo para aquilo a que se chama muito genericamente de “dimensão espiritual” do ser humano. Mais do que uma novidade, entretanto, ela se apresenta como oposição a um outro caminho, já velho de alguns séculos, que vinha sendo proposto pelos brâmanes que procediam a uma revisão das propostas védicas bastante estritas de subordinação inquestionável do homem ao plano macrocósmico/divino e de sua salvação apenas pela prática ritualística. A hegemonia, durante o período védico, de vivência eminentemente agrícola, do conceito de çta - a “ordem” dos mundos natural/cósmico regrada pelos deva “pulsações/divindades” e assentada na śraddhà “colocar crença / credo”) vinha, ao longo do período bramânico, evoluindo para a via da explicação do “eu” (àtman) como um complexo de vertentes pragmáticas, filosóficas, religiosas, afetivas, psíquicas, intelectuais, etc. do qual emergia um indivíduo absolutamente senhor de suas vontades e possibilidades e que apresentavam como conceitos fundantes o dharma (correlato da “ordem” agora vista em termos culturais, políticos, sociais etc), a bhakti (o caminho soteriológico da identificação do sujeito com um Senhor supremo), o karman (a ação do sujeito, estando estabelecido que ele é o único

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24 responsável pelas conseqüências de seus atos e de seu comportamento) – como bem dão conta as elucubrações das Upaniùad e o fio condutor do conteúdo das narrativas dos poemas épicos Mahàbhàrata e Ràmàyaõa. O príncipe Gautama, ainda menino e adolescente, com toda probabilidade deve ter ouvido as preleções dos brâmanes sobre esse tema do reconhecimento, da exaltação e da valorização da individualidade - como deve ter, também, percebido, já adulto, que o caráter libertário dessa proposta bramânica não se realiza efetivamente, pois que permaneciam as desigualdades sociais e as contingências existenciais negativas. Donde sua proposta: é na eliminação do querer que está a salvação do homem, a resposta para uma vida sem angústias: a salvação do homem está na extenção, dentro de si mesmo, do seu “eu”. Por outro lado, é certo que a velhice e a morte continuaram a chegar inexoravelmente, com a dor que as acompanha; que a doença continuou a se abater sobre os homens com seu cortejo de mil caras; que a desigualdade social continuou a oferecer seus quase infinitos nichos. Só que a catarse acontecia, para os budistas, dentro do próprio adepto, através da impessoalização de sua relação com o mundo - diferentemente da proposta bramânica, que, aceitando e estimulando o “eu”, projetava para uma divindade escolhida pelo adepto, e na sua devoção aela, a obra de sua salvação. Assim, pode-se dizer, resumidamente, que a diferença fundamental entre os Budismos e os Bramanismos (e sua projeção futura, o Hinduísmo) repousa num confronto: de um lado estão os Budismos e seu caráter introvertido, de sonegação da experiência sensorial; de outro lado, os Bramanismos e seu caráter extrovertido, de incentivo à experiência pessoal, de conhecimento e tomada de posse do mundo pelos sentidos (indriya) e pela filtragem e pelas operações mentais levadas a efeito pelo manas. Bem, e o que tem isto a ver com o teatro

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25 indiano clássico e, dentro dessa prática teatral, com sua dimensão cômica? Para começar a estabelecer esta relação, não existe, para o teatro indiano clássico, o chamado “teatro sânscrito”, a oposição estrutural entre “comédia” e “tragédia”. Existem, sim, vários gêneros rotulados pelos estudiosos dos últimos dois séculos como “comédia” e muitos outros informados com base apenas na tradução dos termos originais que os designam - e mesmo aqueles referidos como “comédia” possuem termos técnicos originais que não nos levam ao conceito explícito de riso; por outro lado, existem cenas nessas “comédias” e nessas “não-comédias” que apresentam todas as características do que se poderia rotular como “seqüências trágicas/dramáticas”; finalmente, não existe nenhum gênero em que a situação dramática fosse crescendo do início ao fim da peça, culminando aí num grau de tensão insuportável procedimento que, em poucas palavras, conviria à “tragédia”. Quer dizer: existe um nítido privilégio do ritmo cômico, abandonado às vezes pelo sentimento de pena/dor/compaixão, mas que não leva a uma prática do ritmo trágico. Pode-se perceber, com esta explanação tão sumária, que estes conceitos não são operacionais para uma análise consistente do teatro indiano clássico - muito embora a oposição “comédia” vs “tragédia” se desenhe em alguns manuais de literatura sânscrita. Não se está, porém, em nenhum beco-sem-saída: sabe-se muito bem onde está a chave: a teoria adrede desenvolvida para as artes de representação na Índia antiga privilegia justamente, como móvel de criação e de crítica, não só teatral, mas para toda a literatura, a “emoção”, o “sentimento” - o rasa, termo e conceito trazidos para a Poética lá da cozinha, onde denominava o “tempero”, o “gosto”, o “sabor”. Aqui, então, se amarra a explanação inicial: os

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26 budistas, afora alguns recitativos/autos de enaltecimento da vida trilhada por alguns adeptos exemplares na direção da eliminação do “eu” e da dor do viver, não produzirão nada em termos de teatro - não contribuirão com mais nada para o repertório do teatro indiano clássico ou não, a não ser como personagens ridicularizadas justamente em função de sua doutrina; os adeptos do Bramanismo, por outro lado, e diferentemente, levarão esta arte a dimensões inimagináveis, construída com gêneros estruturados segundo uma escolha quase ilimitada de recursos também quase tão ilimitados quanto as possibilidades emotivas e existenciais/sociais das personagens. Conscientes das profundas diferenças entre os seres humanos e da variabilidade possível de expressão dessas diferenças em contextos e situações tão diversificados em que um ser humano, um “eu”, possa estar envolvido, os teóricos desse teatro - todos eles bramânicos - codificaram, no que diz respeito aos personagens principais masculino e feminino, 768 possibilidades diferentes para cada sexo, às quais se deve acrescentar a extensa lista de “tipos” característicos, colhidos todos eles na observação cuidadosa da realidade social e de sua potencialidade dramática enquanto convertidos em pattra, “vasilha/personagem” no palco, cada um desses tipos com psicologia e esquemas de comportamento próprios, análises e definições oriundas, com toda certeza, da observação das inumeráveis castas e subcastas, cada uma delas definida sempre em termos da função social do indivíduo condicionado a ela desde o nascimento. É importante notar, ainda, que foram sistematizadas, de maneira diferente por teóricos diferentes em épocas diferentes, listas diferenciadas de gêneros teatrais: de uma lista para outra alguns gêneros são mantidos, outros desaparecem e outros são incluídos, cada um deles sempre com a especificação dos devidos componentes diferenciadores - e estas incorporações ou eliminações de gêneros podem bem dar uma idéia da atenção do teórico às

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27 novas disposições existenciais reveladas pelos autores que estavam em consonância ou sintonia com as modificações sociais. Como se pode ver, e sem estabelecer nenhum grau de comparação com outras estéticas teatrais da Antigüidade clássica, os indianos antigos - com licença para a expressão - “foram fundo” nessa questão, também. Mas não foram todos os indianos antigos: apenas a grande porção da sociedade que não aderiu à introversão budista - que, por sinal, mesmo tendo sido pensamento dominante e oficial durante os séculos IV a II a.C. em algumas regiões, viu-se obrigada a procurar espaços externos (China, Tibete) e tem como última manifestação o Zen-budismo, nem um pouco extrovertido. Foi, assim, contra o espelho da censura budista à emoção que se reafirmou, que se radicalizou até, a vontade bramânica do direito ao sentimento e à sua expressão. Se isto era uma conversa para fazer a massa não prestar atenção às contingências penosas da situação existencial e também um ítem para consumo interno do prazer dos dominadores - isto diz respeito a outra ordem de considerações. O importante é que não se perca de vista um fato central: não parece haver outra maneira de entender esse teatro radicalmente cômico /ou não-trágico/ senão a de devolvê-lo ao próprio meio em que foi produzido, senão vinculá-lo aos seus produtores e fruidores, senão colocá-lo no ponto de encontro de algumas coordenadas ideológicas que aglutinavam aquele momento histórico daquele povo. Não adianta falar aqui de influências herdadas ou de elementos emprestados ao repertório dos atores gregos do exército de Alexandre: elas certamente existiram, mas foram vestidas à maneira indiana. Como foi referido acima, todos os gêneros catalogados pelos teóricos do teatro indiano clássico deviam se conformar ao fato poético-estrutural de apresentarem um rasa “sentimento” principal coadjuvado por outros considerados acessórios. O que diferencia basicamente os

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28 gêneros é o fato de que cada um desses “formatos” admite um ou alguns rasa e proíbe terminantemente outros e, também, o fato de que esse sentimento admitido para a fórmula genérica escolhida pelo dramaturgo determinara as personagens e os ambientes em que elas se movimentarão. É essa a linha de determinação que se impõe ao autor do texto: gênero escolhido ⇒ rasa(s) permitido(s) ⇒ personagens adequadas ⇒ ambientes possíveis. Fica evidente que tanto mais difícil será o trabalho do autor do texto quando mais limitado ele for pela receita do gênero escolhido. Se ele escolher, por exemplo, elaborar um vyàyoga “espetáculo militar” (lit. “dilaceração”), ele terá que se haver exclusivamente com o sentimento heróico, com guerreiros (e uma guerra é igual a outra). Se, por outro lado, ele escolher elaborar um óima “drama fantástico” (lit. “acuo, cerco, sítio”), não poderá incluir os sentimentos erótico e cômico e, em conseqüência, não pode utilizar personagens que remetam a seres humanos, mas apenas a deuses, semideuses e demônios, no uso de suas faculdades para a magia, a feitiçaria, os combates, os furores, os eclipses etc. - e nestas coisas não existe amor nem riso. Assim como fizeram com relação à catalogação das 1536 personagens principais masculinas e femininas numa amostra de afinada e refinada análise psicológica e ambiental -, os teóricos do teatro indiano clássico, na análise das emoções humanas, isolaram os oito sentimentos básicos, que no entanto se multiplicam em nuances ilimitadas, seja pela seqüência em que eles se colocam na peça, seja pelo espelhamento que um produz ao se projetar sobre outro, seja pelo recurso a disposições emotivas secundárias determinantes, passageiras ou conseqüentes. Deixando-se de lado aqueles gêneros em que não há lugar para o humor, não se considerando, ainda, aqueles gêneros em que o humor é secundário (melhor

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29 dizendo: em que o riso brota esporadicamente com base numa afirmação tola, num chiste, na narração de algo engraçado sucedido à personagem), pode-se detectar dois grupos de gêneros em que o humor é algo buscado com insistência, mas de maneiras diferentes. No primeiro deles, o riso brotaria, por um lado, de uma certa inversão de valores e ambientes operada com relação ao gênero mahànàñaka “grande representação” e, por outro, da presença obrigatória do bufão. No segundo desses grupos, o riso brotaria exclusivamente do confronto de personagens tidas como ridículas, grosseiras, provenientes geralmente dos meios heréticos e sectários radicais. Para falar do primeiro desses grupos, é preciso antes compreender a “grande representação”, o mahànàñaka. O termo quer dizer, também, “grande ator” (assim, no masculino), e as peças pertencentes a este gênero constituem o exemplo mais acabado de obediência a todas as regras estruturais formuladas: apresentam as 5 “matérias de base” (arthaprakçti), as 5 “situações morais” (avasthà) e os 5 “nexos” (sa§dhi); têm de 5 a 14 atos; o herói - a grande figura em cena -, extraído de algum relato lendário, descendente de grandes reis ou ligado a alguma dinastia divina, deve ter um caráter nobre e superior, ilibado, conhecedor de todas as leis e juiz correto, administrador eficiente, etc. Se algo lhe acontece que desminta uma só dessas boas qualidades, é porque foi vítima inconsciente de algum malefício. Mesmo nos casos em que o enredo parece girar ao redor de uma história de amor, ela é apenas o pretexto para a demonstração da heroicidade desse super-homem. Também nos casos em que ocorre o humor, com o auxílio do Bufão, essas cenas apenas cumprem a função de aliviar a alta tensão instaurada, não são o desenvolvimento do humor em si. Quanto à heroína, também ela é de elevada categoria social e moral. Pois bem, um grãozinho de sátira se instala, no reflexo deste gênero, no gênero chamado prakaraõa, que tem

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30 sido definido como “comédia burguesa”, mas que significa “reelaboração”. Existe aí um outro nivelamento das tensões. O herói, que continua sendo o destaque, não é mais um rajá, mas um ministro, um brâmane ilustre ou um comerciante mas sempre do tipo “super” na sua função: enfrenta todos os obstáculos que surgem à sua frente e termina como vencedor. Acontece que ele não tem um reino para administrar, ou um código de leis pelo qual zelar, ou ancestrais divinos ou lendários a quem prestar culto com seu caráter ou suas ações: não há um bem, um legado heróico a defender. Ele está envolvido na conquista de uma mulher, um bem de coração. A ação não se passa no espaço do reino, mas da sua capital; não no tempo da lenda, mas no agora da platéia. Em decorrência, a disciplina no cumprimento da função, embora deva estar presente em todos os momentos, se vê passada para um segundo plano e ocupa a cena uma história de amor - em princípio de fácil solução, mas problematizada com um certo grau de frivolidade para que seja ressaltada, aí também, a “heroicidade” do personagem. Continua tudo sendo muito “super” - mas está-se num nível visível de imitação de comportamento: e, afinal, esse trio brâmane/ministro/comerciante não é mais do que figuras comuns numa capital. A heroína pode ser tanto uma mulher de excelentes virtudes ou uma cortesã. Se ela for uma cortesã, eis aí a deixa para um desfile quase interminável de debochados, libertinos, gatunos, velhacos, patifes, jogadores, traficantes de escravos e de mulheres - todo o bas-fond de uma grande cidade. Ainda um grão de sátira: o gênero nàñikà “pequena comédia heróica” (lit. “imitação”) tem em cena, como personagem masculina principal, o mesmo rajá da “grande representação”, tão “super” quanto aquele - mas agora o fator de sua heroicidade (uma batalha, por exemplo) passa ao pano-de-fundo do enredo, que é elaborado com

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31 base também numa conquista amorosa. Os atos guerreiros e administrativos são delegados a auxiliares e rajá se vê livre para, com a ajuda das frases de espírito e das trapalhadas do Bufão, chercher a segunda, a terceira ou a quarta femme desua vida. Este rajá é apenas uma pálida sombra daquele ”super” da “grande representação”: a todo momento se fala da batalha de sangue em que seus exércitos estão envolvidos mas ele está efetivamente preocupado é com a batalha de beijos que seus sentidos almejam. Como parte do segundo grupo, aqueles gêneros que trabalham o humor em si, deve-se dar destaque a três deles. No ha§sikà “a cisne”, o riso brota do contraste que se estabelece no palco entre um pária, um miserável social sem refinamento algum, e uma mulher de finura de modos e de sentimentos delicados. No seu devido contexto, as peças desse gênero devem ter feito grande sucesso, como também devem ter sido bem sucedidas as peças do gênero óipikà “empilhamento”, também em um ato, em que um personagem, só em cena, completamente desprovido de inteligência, provoca uma onde de risos às custas das tolices que diz a personagens sem voz. Inegavelmente, porém, o ápice do humor em si, utilizado agora como sátira, provocação, foi conseguido pelas peças do gênero prahasana “farsa” (lit. “pró-riso”), das quais se conhecem 25, algumas delas encenadas até hoje e apreciadas com a mesma flexibilidade de maxilares e de espírito. Têm apenas um ato; dos 5 nexos exigidos para a maioria dos gêneros, apresentam apenas dois: a exposição, que prepara, já comicamente, o conflito, e o desfecho, que agudiza as cenas introdutórias ao mesmo tempo que termina abruptamente com uma sugestão de pano-rápido. Costumam ser classificadas em três tipos: é “pura” quando os personagens são hereges, brâmanes que vivem à sombra do respeito que deve ser demonstrado aos bons brâmanes, escravos, indivíduos ricos e folgazões - todos eles

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32 apresentados nos melhores deseus modos e de suas linguagens; é “baixa” quando possui eunucos, cortesãs, guardas de harém, libertinos, ascetas apaixonados, jovens galanteadores e soldados; é “mista” quando apresenta, num desfile de espertalhões de origem variada, personagens dos dois tipos anteriores. No capítulo dos hereges, os personagens mais freqüentes são os monges e as monjas budistas e os adeptos e as adeptas de seitas diversas de adoradores de øiva - figuras francamente exóticas num universo cultural em que Viùõu era o deus salvador bramânico mais ocupado. Nos séculos em que as farsas foram privilegiadas como forma cômica, de VII a XII d.C., a lembrança daquele Buddha já se havia transferido para o alto do Himalaia. O Bramanismo vencera aquela disputa, mas o Islamismo já fazia ouvir a voz de seu Profeta.

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33 Le mythe de l’origine (Sur les mises en scène de la tragédie grecque, et Les Bacchantes de Klaus Michael Grüber) Christophe Triau Université Paris 7 – Denis Diderot RÉSUMÉ: Pour le théâtre occidental moderne, la tragédie grecque représente un véritable mythe : celui de l’origine. Elle nous présente un matériau à la fois distant et familier, dont toute mise en scène apparaît comme une affirmation esthétique particulière, une revendication théâtrale. Deux grands pôles se distinguent dans les mises en scène du dernier demi-siècle, partagés entre reconstitution et transposition : d’un côté les démarches qui s’attachent à retrouver ou à réinventer une origine perdue, et avec elle une dimension rituelle et un sentiment du sacré ; de l’autre celles qui s’inscrivent dans la prolongation d’une filiation, insistant sur la dimension politique de la tragédie grecque, usant de l’historicisation et de l’actualisation – ce qui n’empêche pas que de l’archaïque y fasse retour. Car sans doute l’origine ne se retrouve-t-elle pas, mais ne peut-elle se présenter à nous que par résurgences ou “survivances”. Et sans doute les mises en scènes qui rendent le mieux compte du rapport à l’origine sont-elles celles qui mettent en jeu la distance même que nous avons à elle, qui nous confrontent à son étrangeté et cultivent son énigme comme son “aura ”. C’est le cas de la mise en scène des Bacchantes par Klaus Michael Grüber (Berlin, 1974), qui articule effets d’éloignement et très fortes présences, activant, dans sa relation au spectateur, le proche et le lointain dans un rapport dialectique qui est bien le régime de l’origine. MOTS-CLÉS: Mise en scène. Tragédie grecque. Grüber. Sellars. Vitez. Mnouchkine. Bacchantes.

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34 RESUMO: Para o teatro ocidental moderno, a tragédia grega representa um verdadeiro mito: o de origem. Ela nos apresenta um material, ao mesmo tempo distante e familiar, do qual toda representação aparece como uma afirmação estética particular, uma reivindicação teatral. Dois grandes pólos distinguem-se nas representações dos últimos cinqüenta anos, divididos entre reconstituição e transposição: de um lado, abordagens que se limitam a encontrar ou a reinventar uma origem perdida, e com ela, uma dimensão ritual e um sentimento do sagrado: de outro, aquelas que se inscrevem na prolongação de uma filiação, insistindo na dimensão política da tragédia grega, usando a “historização”e atualização – o que não impede que o arcaico retorne.Pois, sem dúvida, a origem não é encontrada, e apresenta-se-nos apenas por ressurgências ou “sobrevivências”.E, sem dúvida, as representações que .melhor dão conta da origem, são aquelas que colocam em jogo a própria distância que temos em relação a ela, que nos confrontam com sua estranheza e cultivam o enigma como aura. È o caso da representação de Bacantes por Klaus Michael Grüber (Berlim, 1974), que articula efeitos de afastamento e presenças muito fortes, ativando na sua relação com espectador o próximo e o longínquo, em uma relação dialética que é bem o regime da origem. PALAVRAS-CHAVE: Representação. Tragédia grega. Grüber. Sellars. Vitez. Mnouchkine. Bacantes La tragédie grecque : notre mythe de l’origine Pour le théâtre occidental moderne, la tragédie grecque constitue plus qu’un répertoire, plus qu’une forme historique, et plus qu’un modèle : elle est à proprement parler un mythe, un mythe fondateur, le mythe de l’origine. C’est le récit si bien connu et si inconnu d’une fondation, une référence commune mais ouverte à une multiplicité de lectures, de ré-appropriations, d’interprétations ; une légende

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35 à laquelle la scène se réfère sans cesse pour se légitimer et se (ré-)identifier, une réalité historique devenue une fiction à laquelle la scène théâtrale a régulièrement recours pour s’interroger, se ré-inventer au sens fort du terme. Une fiction, pour les praticiens du théâtre, non pas parce qu’elle échapperait à l’étude philologique et historique, mais les inéluctables points aveugles de notre connaissance archéologique ou historique du théâtre grec, son irréversible éloignement temporel, et les multiples visages contradictoires qu’elle a déjà pu prendre au fil du temps dans les imaginaires lui confèrent ce statut. Elle est se présente donc à nous dans le double statut qui la caractérise comme origine : comme une matière à la fois extrêmement proche, fondement de ce que nous sommes, réservoir d’archétypes qui nous sont familiers (sur l’individu, l’intime ou l’inconscient, la famille, la politique), mais aussi, simultanément, comme un récit lointain, dont l’éloignement est intrinsèque et la constitue pleinement. C’est pour cela que toute mise en scène d’une tragédie grecque apparaît particulièrement significative, symptomatique, révélatrice9 : comme une affirmation esthétique (et idéologique) particulière, mettant en évidence des choix qui président à l’esthétique et à la conception même du théâtre revendiquée par tel ou tel metteur en scène, à travers les questions suivantes : quelle Grèce, quel tragique — quel théâtre, en fin de compte se retrouve alors revendiqué, affirmé ? C’est donc le statut même de la tragédie grecque — son caractère originel (un commencement absolu pour le théâtre tel que l’Occident le conçoit) et l’inéluctable éloignement de cette origine même — qui lui donne cette dimension 9

Il est évident qu’il en est grandement de même dans la philologie et l’interprétation : il n’est qu’à prendre pour exemple le cas de l’invention du « tragique » par la philosophie allemande du XIXe siècle.

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36 matricielle et en fait l’objet d’une telle ré-appropriation/réinvention perpétuelle. Mais cela est redoublé par la contradiction active qui l’habite, par sa nature même de « genre en conflit », comme la définit bien Nicole Loraux dans La Voix endeuillée : un conflit qui « oppose entre eux non des thèmes ou des contenus, mais les éléments même qui constituent la tragédie comme forme théâtrale et comme discours doté de sens » (LORAUX, 1999 : 120-121). C’est celui qui existe entre les dialogues et les passages lyriques (entre le « dramatique » et le « lyrique », donc, auquel on pourrait adjoindre l’ « épique » des récits de messagers, par exemple), et derrière lui la confrontation entre l’action, l’agôn porté par les protagonistes (les « agents » — drontes) et leurs discours, et les commentaires ainsi que la danse et le chant portés par le chœur ; c’est aussi « la co-présence d’une référence politique très accentuée et de la mise en scène de comportements que l’on peut qualifier d’antipolitiques ; [et] surtout, sous-tendant peut-être tous les autres couples, le rapport à la fois conflictuel et constitutif entre logos [le discours, la parole construite] et phônè [le cri, la plainte] » (LORAUX, 1999 : 121). Et l’on pourrait rajouter bien sûr, à la suite de Nietzsche, l’opposition entre la clarté et l’obscurité, Apollon et Dionysos. La tradition veut cependant faire naître l’un de ces éléments de l’autre (dans une évolution allant d’Eschyle à Euripide). On établit alors un mouvement, un développement : les protagonistes sortant du chœur ; l’individu sortant de la masse collective (et s’avançant pour prendre la parole, en son nom, devant la communauté représentée par le chœur) ; le dialogue et le « jeu » naissant de la danse et du chant ; l’argumentation sortant de la plainte commune et de la cérémonie religieuse ; la politique sortant du rituel ; la fiction sortant de l’évocation commémorative ; etc. Bref, on inscrit ainsi la tragédie grecque dans le cours d’une téléologie, qui permet de lui assigner deux pôles : d’un

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37 côté une destination (le théâtre dialogué argumentatif, le « drame », le « théâtre des idées » et la confrontation civique et politique ; la Grèce/l’Occident de la démocratie et de la rationalité), et de l’autre une source (le rituel, l’irrationnel, le spirituel ; l’Asie, fantasmée). Ce mouvement peut alors être lu et interprété (c’est alors un choix, idéologique) soit comme un progrès (à prolonger), soit comme une dégradation (entraînant une nostalgie, et donc la potentielle recherche d’une essence — rituelle — perdue) — interprétation entraînant autant de choix différents de la part des praticiens. Mais, en tant que mythe, c’est justement comme lieu d’intrication, d’indétermination des deux qu’elle vaut ; comme le moment originel où les deux sont encore coprésents, en tension et dans la virtualité de leurs devenirs et de leur scission. Non pas dans une fusion harmonieuse10, mais dans leur conflictualité active. La tragédie grecque devient alors le modèle de la forme complète, totale du théâtre, contenant toutes ses virtualités : la matrice initiale, avant l’entrée dans le champ de la détermination, et avant toute scission historico-religieuse du monde occidental. C’est bien comme un tel champ de tension(s) que la tragédie grecque peut fonctionner comme mythe originel. Et c’est bien en tant que tel lieu de contradiction qu’elle nous intéresse, qu’elle nous dit toujours et à chaque fois quelque chose du théâtre, qu’elle est le lieu de réappropriations multiples, privilégiant et exploitant l’une ou l’autre de ces virtualités. Lieu de contradiction et de tensions, également, en ce qu’elle reste — et je me réfère encore à Nicole Loraux, entre autres — un lieu du dissensus, non du consensus ; qu’elle n’est jamais, ni dans sa forme ni dans ce qu’elle 10

C’est cependant un autre mythe que celui de la forme harmonieuse, de l’équilibre du « bel animal » — c’est celui construit par et à partir d’Aristote, donnant lieu à des théories normatives.

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38 expose par les fictions et le discours, le lieu de la résolution et de l’établissement de la doxa, mais celui de l’exposition de ce qui sépare, et de l’irrésorbable. Pour reprendre une nouvelle formule de Nicole Loraux : ce qu’elle expose et met en jeu, c’est « le lien de la division ». Position paradoxale, liée à sa position en marge, intégrée mais non intégrée à la fois : comme le dit le titre d’un chapitre de La Voix endeuillée : « Le théâtre de Dionysos n’est pas sur l’agora. Où le lecteur comprend que la tragédie ne se résume pas à une représentation maîtrisée que la Cité veut donner d’ellemême » (LORAUX, 1999 : 28). Elle ne s’y résume pas, ce qui ne veut pas dire qu’elle ne relève pas en partie de cette aspiration à une représentation maîtrisée ; mais elle échappe toujours à tout processus de résorption, d’assimilation ; espace d’exception, elle reste en marge ou plus précisément entre-deux, maintenant ainsi une part pour l’expérience de l’altérité et l’irrésorbable, elle-même toujours autre et irrésorbable. En cela, elle pose bien la question, essentielle, de la communauté (théâtrale en premier lieu, et plus largement politique, la première se voulant le miroir de la seconde) ; par conséquent, le rapport à la tragédie grecque et à sa mise en scène s’ancrera tout particulièrement sur la question du traitement de l’élément qui apparaît comme l’incarnation et/ou le relais de cette communauté : le chœur (et ce dès l’Œdipe roi de Max Reinhardt, en 1910, au cirque Schuman de Berlin, et ses centaines figurants accompagnant 27 choreutes). Le chœur, origine de l’origine, en quelque sorte ; question récurrente, éternel serpent de mer de l’assemblée théâtrale, qui fait particulièrement retour au XXe siècle, que ce soit dans les revendications d’un théâtre populaire, dans les aspirations politiques et libératrices du théâtre des années 70, ou à la fin du siècle, lorsque le théâtre se reposera de façon aigue la question de son rapport au public et au monde, tandis que, les utopies communautaires qui avaient

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39 pu sous-tendre les idéologies du siècle ayant été mises en crise, la question de la communauté fera retour, comme à nu11. Filiation assumée ou origine à retrouver : tendances de la mise en scène de la tragédie grecque Quadrature du cercle : la tragédie antique présente le rêve d’un théâtre total, un horizon à retrouver — recoupant tous les rêves de théâtre de telle ou telle époque : l’origine recoupe alors évidemment l’utopie. En pleine recherche de l’accomplissement d’un théâtre populaire, Barthes peut ainsi écrire, en 1953, dans la revue du même nom (Théâtre populaire, juillet 1953, article « Pouvoirs de la tragédie antique », repris in BARTHES, 2002 : 35), que « seul un théâtre vraiment populaire pourrait retrouver cette double fonction de la tragédie antique, à la fois Fête et Connaissance, dénouement solennel du temps laborieux et incendie des consciences ». Mais derrière l’aspiration à la totalité, il y a bien le risque de l’indétermination, et donc la nécessité du choix. Le même Barthes, devenu brechtien, constate deux ans plus tard (« Comment représenter l’antique ? », Théâtre populaire, septembre 1955, repris in BARTHES, 2002 : 147), à l’occasion d’une critique de L’Orestie de Jean-Louis Barrault, dont il condamne le caractère composite, la « confusion des styles » (entre exotisme et snobisme parisien : un « mélange naïf de Crète et de Faubourg Saint-Honoré ») : « Chaque fois que nous, hommes modernes, nous devons représenter une tragédie antique, nous nous trouvons 11 Je ne reviendrai pas en détail sur ce point, mais je signalerai juste que c’est évidemment le modèle du chœur qui est alors reconvoqué et réinterrogé ; non pas tant, d’ailleurs, dans le cadre de mises en scène du répertoire grec, mais comme une référence plus large et plus diffuse : toute une génération de metteurs en scène des années 1990 expérimenteront ainsi des formes de « choralité ». Voir le n° 76-77 de la revue Alternatives théâtrales, « Choralités » (TRIAU, 2003).

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40 devant les mêmes problèmes, et chaque fois nous apportons à les résoudre la même bonne volonté et la même incertitude (…). C’est qu’en fait, conscients ou non, nous n’arrivons jamais à nous dépêtrer d’un dilemme : faut-il jouer le théâtre antique comme de son temps ou du nôtre ? faut-il reconstituer ou transposer ? faire ressentir des ressemblances ou des différences ? Nous allons toujours d’un parti à l’autre sans jamais choisir nettement, bien attentionnés et brouillons, [entre (pseudo-)archéologie et effets esthétiques modernes] propres, pensons-nous, à montrer la qualité éternelle de ce théâtre. » (Barthes, en bon brechtien qu’il vient de devenir, choisira finalement que « notre seul rapport possible à la tragédie grecque est dans la conscience que nous pouvons avoir de sa situation historique ».) Archéologie ou éternité ; reconstituer ou transposer — telle est bien la question : retrouver ou prolonger l’origine. Bien sûr, les réponses seront multiples, mais ce sont bien autour de ces pôles que vont se constituer les deux tendances de la mise en scène de la tragédie grecque. 1- RETROUVER L’ORIGINE PERDUE Le premier pôle serait donc celui voyant dans la tragédie grecque une origine perdue que la mise en scène s’attacherait alors à retrouver, ou à réinventer : le rapport à l’origine y est donc de l’ordre de la nostalgie. Plus spécifiquement, ce qu’elle cherche à retrouver, à restaurer, c’est la dimension cérémonielle, rituelle, du théâtre, pour transmettre au spectateur (et faire éprouver à l’acteur) un sentiment du sacré, l’expérience d’une transcendance, que le monde contemporain aurait perdu. La Grèce est alors convoquée comme le moyen de revenir à une civilisation et à une forme de théâtre manifestant et cultivant un rapport plus proche de l’homme à lui-même, à la nature, au cosmos, au « divin », et pose une aspiration mystique comme horizon

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41 de ce théâtre. C’est la démarche de metteurs en scène s’inscrivant dans la lignée d’Artaud, et dans le sillage des recherches de Peter Brook, du Living Theatre et de leur Antigone de 1967, ou de Jerzy Grotowski. La Grèce et les rituels ainsi recréés ouvrent sur un « ailleurs » (évidemment fantasmé…), incarnant le rêve d’un équilibre perdu, en opposition à la sur-rationalité et à l’éclatement du corps social propres au monde occidental moderne. Elle devient le moyen de « rééinventer non seulement le théâtre, mais également l’Homme avec ses gestes originels ou primordiaux » (LEVASSEUR-LEGANGNEUX, 2004 : 183) — une immédiateté et une vérité perdues. Les traces pour re-créer cette dimension rituelle, on ira alors les chercher d’une part dans le matériau textuel et historique lui-même (rythmique et sonorités de la langue, recherche sur la musique grecque archaïque), d’autre part dans la référence à d’autres modèles rituels existants. Très fréquemment (c’était déjà le cas avec l’Orestie de Barrault), ces metteurs en scène vont alors puiser dans les fonds traditionnels des cultures extra-européennes (Asie, Proche-Orient, Afrique… ; ou même européennes, mais liée à des communautés — rurales, surtout — s’étant préservées de la modernité), et du côté de formes théâtrales qui ne se seraient pas encore séparées de leur origine religieuse, abordées généralement de manière extrêmement syncrétique, selon un imaginaire (souvent, il faut l’avouer, un fantasme occidental) hétérogène dans ses sources et ses références. C’est bien alors un déplacement géographique qui représente souvent le moyen permettant de contourner la distance historique, l’éloignement de l’origine, pour réinventer une Grèce qui serait une sorte d’anté-histoire, comme encore hors de l’Histoire. Ainsi à la recherche, « à l’écoute de la vibration originelle » (G. Banu, in BANU, 2001 : 61), et au nom d’une sorte d’essentialité et d’immédiateté, ces démarches

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42 revendiquent alors, si l’on reprend les dichotomies que nous avons déjà évoquées : Dionysos au lieu d’Apollon, et les modèles de l’incantation et de la transe, plutôt que celui de l’argumentation rationnelle ; le chœur, le chant, le cri, la danse éventuellement, plutôt que l’agôn, le dramatique et même la fable ; l’expérience des sensations plus que l’intelligibilité ; la phonè contre le logos et l’herméneutique. Elles recherchent une ritualisation dont l’étrangeté première de la forme, excédant la signification et la représentation, devra ne pas être un élément de « distanciation » mais se faire oublier pour emporter le spectateur, arracher l’individu à lui-même, à ses limites, à son appréhension rationnelle. Par conséquent, pour ce qui est du rapport construit entre la scène et le public, la relation recherchée est de l’ordre d’une communion, comme des retrouvailles festives de l’unité (sensible) du corps social, du corps physique dans sa dimension « dionysiaque ». Je ne prendrai, rapidement, qu’un seul exemple, particulièrement caractéristique : celui de la Trilogie antique créée, entre 1973 et 1976, par le metteur en scène roumain Andrei Serban, constituée de Médée (Euripide et Sénèque), des Troyennes et d’Electre. Serban (qui avait peu avant participé à l’expérience d’Orghast, spectacle créé par Peter Brook à Shiraz-Persépolis, qui brassait divers mythes de l’humanité et se jouait dans une langue entièrement inventée pour l’occasion, à partir des modèles de langues archaïques) déclare alors, exemplairement : « Je vois deux types d’acteur : l’acteur d’aujourd’hui entièrement pris par le souci d’expression de soi et l’acteur de le Grèce antique pris par le souci de transmettre des sensations, des émotions et des idées pour le profit commun : l’éveil de la conscience. Ce dernier veut nous faire sentir en nous-même, dans notre corps, la vie que

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43 d’habitude nous ne sentons pas »12 (cité par D. Violeta Dima in BANU, 2001 : 65). Médée, par exemple, est jouée en latin et en grec, Les Troyennes et Electre en grec ancien : Serban considère que c’est dans la langue archaïque même que gît ce qu’il cherche, ce rapport autre au monde, et l’énergie qu’il s’emploie à retrouver. Le travail auquel il se livre porte alors sur les sonorités, sur la voix, et non sur la signification : cela voudra dire, dans les spectacles, sur le cri, le hurlement, le chuchotement, accompagnés par des mouvements simples, assez hiératiques, ou par des passages relevant de la transe (ainsi pour Cassandre dans Les Troyennes). Et l’on ne s’étonnera pas de l’importance fondamentale de la musicalité, ne serait-ce qu’à travers l’omniprésence, dans Les Troyennes, de la musique composée par Elizabeth Swados, qui puisait son inspiration dans diverses traditions populaires, comme les chants de deuil roumain. Enfin, on remarquera que les dispositifs scéniques de la Trilogie impliquent une intégration du public et des acteurs dans un même espace, et une prise à parti physique de celui-ci : il n’y a que dans Electre que les spectateurs sont assis dès le début, mais dans Médée l’entrée dans le spectacle fonctionne comme un voyage initiatique (le spectateur est invité à pénétrer, tout d’abord, dans un étroit couloir, où il est comme assailli de bruits, de sons, de présences, avant de se retrouver dans une sorte de boîte noire), tandis que dans Les Troyennes, l’espace, explosé, mouvant, englobe spectateurs et acteurs. Evidemment, toutes les revendications de la part essentielle du rituel dans la forme même de la tragédie grecque n’impliquent pas l’adhésion de la part du metteur en scène contemporain à l’horizon mystique que je viens de développer. Elles fonctionnent également, plus simplement, comme constat d’une donnée inscrite indéfectiblement, dans 12

Je souligne.

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44 la forme qui nous est léguée, et participent, tout simplement, de la recherche de formes théâtrales à même de faire entendre ce matériau-là, tout à le confrontant à aujourd’hui ; et comme un « réservoir » de formes pour la théâtralité. La tétralogie des Atrides (Iphigénie à Aulis et L’Orestie) créée par Ariane Mnouchkine et le Théâtre du Soleil, au début des années 90 peut apparaître comme exemplaire de cela. Il y a bien là convocation de cultures extra-européenne (le kathakali, en particulier, pour le chœur), dans l’idée de rendre compte de la part rituelle intrinsèque à la forme de la tragédie grecque. Mais Mnouchkine n’en fait pas un rituel participatif. Déjà, le chœur danse — les protagonistes aussi, parfois — à l’unisson, mais le coryphée ne chante pas, mais parle, généralement — pour que ce soit compréhensible, dit Mnouchkine ; et surtout, elle instaure un rapport scénique frontal — alors même que le théâtre du Soleil a plusieurs fois, dans ses spectacles, mêlé acteurs et spectateurs dans un même espace. Il y a distance et non fusion, et ce n’est pas la vérité religieuse de ces modèles qui est convoquée, mais leur étrangeté — esthétiquement séduisante —, Mnouchkine se les réappropriant comme des formes théâtrales. Elle parle à ce propos de la recherche de « l’étranger le plus proche possible » : il y a bien un rapport dialectique qui se noue ici, articulant le proche et le lointain, justement, qui fait notre rapport à la tragédie grecque. Et il ne s’agit pas non plus d’une démarche purement formelle, esthétisante, de la recherche d’une théâtralité qui deviendrait autoréférentielle : cette forme est là pour servir un questionnement bien politique, « raconter » (selon une logique épique, contenue dans le principe même du cycle, de la tétralogie des Atrides) la naissance de la démocratie — pour aujourd’hui. C’est à une communauté de citoyens (qu’elle accueille, festivement, dans son théâtre) que Mnouchkine s’adresse toujours, et la « tétralogie » des Atrides du Soleil était en fait une pentalogie, puisqu’elle se prolongeait dans le

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45 spectacle suivant, La Ville Parjure : une pièce contemporaine d’Hélène Cixous, qui reprenait le même modèle formel de la tragédie grecque, dans le même espace scénique et la même esthétique que Les Atrides, mais pour traiter d’un scandale politique bien réel et alors bien actuel : celui du sang contaminé. Peut-être Mnouchkine réussissait-elle alors quelque chose de la quadrature du cercle que j’évoquais plus haut (et du « théâtre populaire » que cherchait Barthes en 1953 ?) : la ritualisation servait une théâtralité qui elle-même ne refusait pas la politique mais au contraire interrogeait la démocratie telle qu’Eschyle la racontait pour questionner le présent le plus concret — qui assumait une filiation historique. 2 LA FILIATION PROLONGÉE L’autre pôle — celui de l’historicisation ou de l’actualisation — se situerait en effet, lui, non pas du côté de la nostalgie, mais du côté de ce que l’on pourrait appeler la filiation, de la prolongation. Au sacré, il privilégie le politique, et si la tragédie grecque lui apparaît comme fondatrice, c’est parce qu’elle instaure le théâtre comme lieu de débat, de représentation mimétique et de fiction. La Grèce à laquelle elle réfère n’est donc pas celle d’un archaïsme anhistorique et religieux, mais, au contraire, celle de la naissance de la démocratie athénienne, de la politique, du débat rationnel, etc. De l’entrée dans l’Histoire : en cela, elle est déjà prise dans l’historicité (elle l’ouvre, l’initie), dans un monde dont l’homme est responsable et qui est (en partie) maîtrisable et transformable, pour reprendre des termes brechtiens. Car c’est évidemment plutôt la lignée du théâtre brechtien que caractérise une telle lecture — c’est, par exemple, ce que le Barthes de 1955 exprimait (« notre seul rapport possible à la tragédie grecque est dans la conscience que nous pouvons avoir de sa situation historique », comme nous le citions plus haut).

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46 La distance, réelle, qui nous sépare de la tragédie grecque n’est donc pas infranchissable — elle est historique : elle ne renvoie pas à un « ailleurs », mais en la reprenant on se situe dans la poursuite d’une évolution. Par conséquent, c’est un matériau transposable, qui peut se soumettre à un discours critique (on l’interprète, et on se positionne par rapport à ce qui y est exposé), et l’attention se porte alors sur le sens, et donc plus particulièrement sur la fable et sur les protagonistes. En le reprenant, comme les tragédies ellesmêmes reprenaient les mythes existant comme un matériau, la mise en scène contemporaine ne ferait que prolonger ce que justement le théâtre, en se différenciant du rituel, a instauré. Un matériau un peu spécial, cependant, originel, qui permet de reposer alors comme des fondamentaux, de grandes questions politiques et éthiques traversant le temps (celles de la justice, du droit, du pouvoir, des relations entre les hommes), que la tragédie grecque offrirait dans leur plus simple contradiction, à nu : son éloignement historique est plutôt perçu comme renvoyant à une enfance, où les problématiques se posent comme pour la première fois, comme débarrassées d’une accumulation de couches interprétatives et historiques — c’est ainsi que Peter Stein dit trouver chez les Grecs et chercher sur la scène des « formes claires et simples pour parler de choses compliquées » (cité par V. Arditti in BANU, 2001 : 89). La communauté ici en question est la communauté politique : celle de la Cité. Par conséquent, on insistera plus sur le chœur en tant que commentateur de l’action représentée, et comme représentant du peuple : il deviendra le miroir d’une communauté de spectateurs critiques, communauté rationnelle, non fusionnelle mais potentiellement divisée, appelée à débattre, à transporter ensuite hors du théâtre les questions que la scène aura soulevées. Il peut être chanté et musicalisé, mais c’est dans

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47 un principe d’intégration dans la fable d’une « couleur locale » et d’un concret référentiel, de contextualisation, et généralement sa position fera sens, ou fera aussi sens : convoquant une voix plus populaire, plus paysanne par exemple, plus marginale par rapport aux puissants représentés et aux lieux du pouvoir (ainsi dans l’Œdipe-roi monté par Matthias Langhoff à Barcelone en 1991, le chœur était l’image d’une communauté rurale du Tiers-Monde). En règle générale, le matériau sera historicisé, et le plus souvent actualisé : par exemple dans le dyptique sur Œdipe conçu par Jean-Pierre Vincent en 1991 comme — encore une fois — une interrogation pour notre temps sur les fondements de la démocratie, Œdipe aura successivement toutes les apparences d’un politicien contemporain (costume, discours au micro…), pour Œdipe tyran, puis d’un clochard pour Œdipe à Colonne. Et c’est un dispositif bi-frontal (où les spectateurs se voient et se font face) qui est alors choisi par Vincent, comme le plus « démocratique ». La Grèce antique y sera citée ponctuellement (éléments de costume, de décor), mais comme un simple rappel, une référence historique indiquée par quelques signes scéniques, dans une logique de distanciation, un léger décalage un peu ludique — et dans d’autres cas le metteur en scène pourra plutôt recourir à une sorte d’abstractisation, destinée à accentuer un caractère d’éternité des questions soulevées. Reste à savoir comment, malgré tout, quelque chose de « l’archaïque », de l’origine, peut faire retour dans certaines de ces mises en scènes ostensiblement politiques, contemporanéisantes et « matérialistes » (où l’évocation du sacré n’est pas de l’ordre d’une croyance transcendantale, mais bien celle d’un fait collectif, social — ou éventuellement la référence à des valeurs éthiques partagées ou à partager). Pour cela, je prendrai l’exemple de ce qui apparaît comme le cas le plus extrême de l’appropriation au

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48 présent du matériau de la tragédie grecque : celui de deux mises en scènes de l’américain Peter Sellars. La mise en scène que Sellars fait des Perses en 1993 repose sur une adaptation manifeste du texte. Le spectacle est créé après la première guerre du Golfe et en référence directe à celle-ci : l’adaptation textuelle de Robert Auletta insère ostensiblement ces références contemporaines, explicitement (par exemple à travers l’usage d’un langage plus moderne ou l’évocation des armes utilisées par les Américains, comme les missiles Tomahawk ; il le fait cependant dans une disposition formelle encore versifiée), et l’évocation de la guerre donnera également lieu, entre autres, à une bande-son elle-même explicitement référentielle (bombardement, etc.). Pour Sellars, le recours aux Perses est un moyen d’aller voir, comme le faisait Eschyle, du côté des vaincus ; et surtout, le metteur en scène américain présente ce choix du passage au théâtre (antique) pour aborder ce sujet comme une réaction spécifique à la couverture télévisuelle (celle de CNN, en particulier) qui avait été faite de cette guerre. Contre l’image et la propagande, en réaction à la version télévisuelle de la guerre (on n’y a rien vu, en fait, et surtout rien entendu de l’humanité réelle concernée), le théâtre lui apparaît comme un moyen de poser autrement, et mieux, des problèmes politiques — et de faire l’expérience de l’autre, des victimes, des vaincus. Ce qui permet, me semble-t-il, que cela fonctionne, c’est-à-dire qu’il ne s’agisse pas d’une dénaturation de la pièce, d’un plaquage, c’est qu’à côté de la multiplicité et de l’explicite des références, Sellars recourt, par contre, à une très grande simplicité de moyens scéniques — sans qu’il s’agisse pour autant (la contextualisation explicite l’exclut) d’un procédé d’abstractisation. Il n’y a pas de décor, le plateau est nu : seules les présences humaines et les mots restent donc ; cet espace vide peut évoquer bien sûr le désert, et peut-être aussi un monde détruit, mais dans cette

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49 nudité, il y a sans doute également une évocation de l’essence originelle de la pièce d’Eschyle13. Le spectacle de Sellars joue donc d’un contraste très fort entre la surdétermination de la référence historique et l’indétermination de l’espace ; il fonctionne sur une tension entre cette actualisation, sur-manifestée, et une exposition la plus simple qui soit, comme à nu. Le jeu entre les deux permet alors que l’archaïque, l’ancien, et avec lui l’archétypal, fasse retour (et sans doute un certain « sacré » avec lui). On pourrait citer quelques moments où cette impression de « retour », de « résurgence » se manifeste spécifiquement : le récit du messager traité sur le mode d’une dissociation, puisqu’il est à la fois dit par un acteur et dansé par un danseur (masqué) ; le long temps passé par Xerxès et la reine à invoquer le spectre de Darius, en silence et par de petits gestes ; le récit de Darius, lui aussi dissocié entre l’acteur qui le mime (c’est un acteur sourd-muet qui joue Darius) et le texte qui est dit simultanément. On passe, dans ces moments, de la guerre, de la débauche sonore en particulier, à l’intime, la famille, et surtout à un autre temps, un « temps (…) devenu la mesure de l’humain » (LESCOT, 2003 : 313) : celui d’une mise à nu qui sous la référence actuelle (et sans la supprimer pour autant) peut rejoindre l’archétypal. Et ce que l’on éprouve alors sensiblement, tout particulièrement, c’est l’expérience du passage de aner à brotos (de l’homme au mortel — à travers l’expérience de la catastrophe, l’homme éprouve qu’il est mortel), et le deuil comme irrésorbable de la tragédie, que Nicole Loraux place au cœur de sa lecture de la tragédie grecque. Lorsqu’il monte, en 2002 à la MC93 de Bobigny (dans la banlieue nord de Paris, à forte population immigrée), Les Enfants d’Héraklès, Sellars continue de 13 « Et l’on songe à ce désert d’où serait né le Verbe… » (LESCOT, 2003 : 313)

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50 considérer la représentation d’une tragédie grecque comme un moyen de poser frontalement des questions au réel et de renvoyer directement à des enjeux de société et d’actualité. Il monte la pièce d’Euripide, dans un dispositif minimal, pour aborder la question des réfugiés, de l’exil, de l’immigration et du droit d’asile dans le monde ; il fait accompagner les représentations de forums et de débats avec des associations, fait jouer les enfants d’Héraklès (et non le chœur) par des adolescents de Bobigny, et le chœur des citoyens athéniens par des deux non-acteurs assis à une table, lisant leur texte… Il prend ainsi au premier degré le modèle de la tragédie grecque comme lieu du débat démocratique devant la Cité assemblée pour traiter de cas politiques concrets. Actualisation assumée, confiance absolue dans l’actualité du mythe antique et dans l’assemblée théâtrale comme lieu renvoyant chaque citoyen à sa responsabilité politique14, permettant de parler du monde et d’envisager qu’il change. Et sa mise en scène instaure un dispositif absolument distancé, avec un jeu d’une très grande simplicité, posant très minimalement les situations sur un plateau quasi-nu. Mais là encore, c’est justement cette absence d’apprêt, de reconstitution, qui fait que perce par fulgurances le sentiment d’un tragique comme archaïque, échappant à la référence : dans le jeu d’une musicienne orientale qui chante, très doucement, certains des stasima ; dans l’image très simplement jouée (plus « montrée » que « jouée », en fait) de la fille d’Héraklès, sacrifiée pour ses frères, s’avançant, après un petit tressaillement, un très court moment d’arrêt, de peur, et s’allongeant sur une simple bâche plastique dans laquelle on la roule pour être égorgée. 14

Comme lieu où des citoyens s’assemblent comme les Athéniens le faisaient « pour parler des choses les plus angoissantes d’une société, pour en parler avec de la danse, de la poésie [et] élever le niveau de (…) discussion pour avoir une vraie démocratie » (SELLARS, 1994 : 20).

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51 Là encore, des images comme archétypales font retour. Les temps, alors, se croisent, s’entrechoquent et se mêlent. Remarquons que ces effets s’incarnent tout particulièrement dans des images qui renvoient à des rites (l’évocation de Darius, le sacrifice), mais qui sont traités par Sellars dans la plus grande simplicité, la plus grande humanité, qui ne sont pas théâtralement ritualisés, mais plutôt distanciés. Rituels sans ritualisation, sacré sans cérémonie, à travers lesquels se manifestent comme une origine résurgente, au sein d’un dispositif à priori complètement contemporanéisant. L’origine résurgente, l’origine comme écho Sans doute l’origine ne peut-elle revenir que d’une telle manière : par résurgences, par survivance (j’emploie ce terme de « survivance » comme l’a utilisé le philosophe et historien de l’art Aby Warburg, lorsqu’il parlait de survivance de structures et d’images anthropologiques dans des œuvres de la Renaissance ou de la modernité). Une telle « image survivante »15 resurgit, comme un refoulé, dans de tels nœuds dialectiques de temporalité. Car l’origine ne se retrouve pas, ni ne nous accompagne dans l’évidence d’une permanence : elle fait retour. Il y a une image très belle dans la mise en scène de 1986 d’Electre par Antoine Vitez. Pour sa troisième mise en scène du texte de Sophocle (Vitez l’a en effet monté tout au long de sa carrière, en 1966, en 1971 et donc finalement en 1986, à chaque fois avec la même actrice pour le rôle éponyme, Evelyne Istria), celui-ci a fait, avec son scénographe Yannis Kokkos, le choix d’une transposition réaliste, a priori celle d’une Grèce « contemporaine » mais qui s’avère à la fois contextualisée et décontextualisée ; elle se 15 Je reprend ici le titre d’un livre de Georges Didi-Huberman consacré à Warburg, éditions de Minuit, 2002.

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52 situerait en fait entre les années 1950 et aujourd’hui, et semble croiser (ou tisser) la Grèce éternelle, celle de la dictature des colonels (une période historique mais encore très proche — comme s’il fallait un « palier » pour remonter le temps…), et un pur présent. C’est donc une Grèce, poétique, rêvée comme un carrefour des temps, qui est ainsi convoquée sur la scène, une Grèce « contemporaine » où se perpétueraient des structures antiques. On voit et entend, en fond de scène, ce qui pourrait être le Pirée, aujourd’hui ou il y a quelques décennies. Cette Grèce apparaît comme un peu urbaine, mais semble également encore villageoise… Grèce moderne, mais telle que Vitez la rêve via la tragédie antique, mais aussi via le poète Yannis Ritsos, référence extrêmement importante pour lui. Dans cette contextualisation poétique se mêlent les temps. Autre exemple de survivance inscrit au cœur de la scénographie : l’intérieur privé que présente le décor est dominé par un haut mur, derrière lequel se devine une terrasse et la ville : un grand mur avec trois portes rappelant lointainement la skênê, et surmonté de statues. Vitez pourra écrire à son propos qu’il « représente toute la Grèce, mur nu, abandonné sur un terrain vague par l’effet d’une démolition inachevée, on voit encore le crépi des murs, les volets sont intacts, les vitres ont été enlevées, il reste des meubles où vivent et meurent, comme des fantômes, les rois et les reines du monde antique, mais les statues des dieux au faîte se sont retournées, nous ne devrions pas les voir, on dirait que les dieux regardent vers nous »16… La caractérisation du chœur témoigne d’un principe similaire : les choreutes sont des voisines d’Electre ; quant au coryphée, c’est une sorte de mendiant aveugle et digne, évoquant les traits d’Œdipe, ou d’Homère, sous la figure d’un simple voisin, à qui on sert un verre d’ouzo lorsqu’il passe. On le voit, la mise en scène de 16

« Le réalisme enchanté » (VITEZ, 1997 : 188).

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53 Vitez instaure une contextualisation très concrète mais qui est tout le temps traversée comme d’une mémoire, transparaissant à l’occasion comme en filigrane. À un moment, le Coryphée allume un poste de radio : ce qui en sort, pendant quelques secondes, c’est le texte de la pièce en grec ancien17 ; comme si à la surface de cette Grèce moderne, mais rêvée déjà, surgissait une bouffée inattendue de l’origine sous-jacente. Origine résurgente, traces ponctuelles et comme inattendues de survivances – celles d’une origine absente et présente à la fois… C’est bien un rapport dialectique qui s’établit ainsi, et sans doute est-ce là en fin de compte le véritable régime de l’origine. Proche et lointaine, disais-je en introduction ; et c(e n’)est sans doute (que) dans un tel croisement de temps que l’on peut la retrouver. Car elle échappe autant à la seule actualisation, prosaïsante, qu’à la tentative de reconstitution fantasmée. Sa « survie » se joue dans notre rapport avec elle, qui s’inscrit dans nos imaginaires, et avec ce qu’elle a de partageable. Elle se donne toujours dans une distance, comme peut l’écrire le dramaturge et philosophe Jean-Christophe Bailly, dans un texte (« La face cachée de l’origine », in BANUBLEZINGER, 1993 : 223-224) écrit à l’occasion d’un ouvrage sur Klaus Michael Grüber : « …l’origine (…) nous présente toujours deux faces qu’on ne peut pas voir en même temps : une face visible, qui est celle de la filiation, et une face cachée, qui est celle dont l’écho se maintient et qui ne peut se maintenir que comme écho. L’origine, en tant que source, fonde la tradition. En tant que face cachée, elle ne fonde rien et se dérobe. L’origine se 17

Cela apparaît aussi, bien évidemment, comme l’image d’une résistance — face à Egisthe, face aux colonels ; le texte poétique sort de la radio comme les messages codés des résistants français sur Radio Londres.

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54 dédouble en épisode natif de la culture et en tache aveugle de la pensée. Or, nous le savons bien, c’est du côté de la tache aveugle qu’en vérité est la fondation. » « Mais une origine est comme un ballon posé sur la mer : quand on nage pour l’attraper, il s’éloigne, et si on l’abandonne, il reste en place ou suit le courant, ce qui revient au même. La solution la plus juste étant peut-être, envers l’origine, de ne pas chercher à l’attraper et de ne pas l’abandonner non plus. De la regarder à distance, dans cette distance où ce qui demeure reste dans son coin et où ce qui s’en est allé ne revient pas. Se tenir dans la fidélité de l’écho sans prétendre remonter à la source, entendre la tonalité de ce qui demeure en se défiant de la filiation, qui l’enrobe et le trahit, (…) que l’ancienneté ne soit pas un âge mais un tact, une façon de toucher les choses ou d’accepter qu’elles nous touchent (…). »18 Et sans doute les mises en scène qui rendent le mieux compte du rapport à l’origine sont-elles celles qui ne relèvent strictement ni de la filiation, ni de la communion cérémonielle, mais qui prennent en compte la distance même que nous avons à jamais à cette origine, qui la mettent en jeu sur la scène. Non pas seulement pour nous la présenter comme à (réapprendre à) lire (c’est l’image initiale de L’Orestie de Peter Stein, en 1980 : celle d’un livre difficile à décrypter), ou comme quelque chose d’à jamais perdu et incompréhensible (c’est ce qui sous-tendait L’Orestie mécanisée de Luca Ronconi en 1972), mais pour la mettre en images poétiques, et nous confronter ainsi à l’irréductible étrangeté de cette forme, et en cultiver l’énigme. Qui nous confrontent, en fin de compte, à son « aura » : cette « unique apparition d’un lointain, si proche soit-elle » comme la définit Walter Benjamin.

18

Je souligne.

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55 C’est pourquoi je prendrai comme dernier exemple la mise en scène des Bacchantes par Klaus-Michael Grüber — en 1974 dans le cadre « Projet Antique » de la Schaubühne, dont le principe était justement d’interroger notre rapport à la tragédie antique. Remarquons tout d’abord que Grüber est un metteur en scène qui a peu souvent monté des textes de l’Antiquité : ces Bacchantes furent sa première tentative de cet ordre, ce n’est que plus de dix ans plus tard, en 1986, qu’il produira un Prométhée enchaîné très sobre, et il faudra à nouveau attendre jusqu’à 2003 pour le voir monter une nouvelle tragédie antique, Œdipe à Colone. Mais peut-être plus significatif est le fait qu’il ait longtemps porté le projet, au début des années 1980, d’un autre spectacle, qui devait être créé à Ségeste et joué en plein air dans les théâtres grecs de Sicile, et qui fut finalement créé en 1988 au Piccolo Teatro de Milan : La Medesima strada. Il s’agissait là non pas d’une représentation de tragédie, même s’il commençait par Sophocle avec la célèbre scène de l’affrontement entre Créon et Antigone (représentés sur une sorte d’estrade en fond de scène, et dont les ombres resteraient ensuite empreintes sur le mur du fond…), mais d’un spectacle consacré aux présocratiques, Parménide, Héraclite et Empédocle, dans un espace représentant une place de village sicilien. Les Présocratiques, c’est-à-dire l’avant de l’Athènes « classique » et tragique. On le voit, Grüber est sans doute du côté du logos — pour l’interroger — mais pas n’importe lequel : un logos archaïque, fragmentaire, énigmatique, d’une certaine manière entre prélogos et logos… Une autre origine — et un autre rapport à l’origine ; dans les discussions de préparation de ce projet, Grüber aura d’ailleurs cette phrase qui nous en dit beaucoup sur la nécessité d’une vision indirecte : « ce devrait être comme dans les films américains quand on voit une voiture de dos ; de face on est aveugle, mais dans le rétroviseur on

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56 voit tout ce qui est derrière » (AILLAUD – BAILLY – GRÜBER, 1989 : 121)… Notons également que la Grèce, Grüber l’a aussi abordée, indirectement, à travers le filtre de Hölderlin, dont il montera, juste après avoir créé Les Bacchantes, Empédocle en 1976, et Hyperion (Winterreise, 1977) au stade olympique de Berlin — ce stade néo-/pseudohellénique construit par les nazis pour les JO de 1936… C’est dire combien pour Grüber plane derrière la tragédie grecque tout un héritage allemand — celui du romantisme, de la philosophie allemande du tragique, de Nietzsche, et aussi du nazisme —, et c’est déjà un peu cela qu’il met en scène, également, avec Les Bacchantes en 1974. On a beaucoup interprété la mise en scène des Bacchantes par Grüber en termes d’opposition entre « deux mondes, un monde archaïque face à un monde éclairé. Irrationalité et rationalité, violence de la nature et temps modernes » (G. Rühle, in BANU-BLEZINGER, 1993 : 211) : une telle interprétation recoupe d’ailleurs une lecture courante de la pièce établissant une dichotomie très stricte entre Penthée et Dionysos. Mais tout l’intérêt de cette mise en scène vient bien plutôt de la manière dont elle brouille les contradictions trop établies, dont elle se pose comme profondément énigmatique, et qu’elle nous fait apparaître la pièce dans une distance, une étrangeté particulière — irréductible à nos lectures contemporaines et à nos saisies rationnelles : un lieu d’énigme troué d’évidences ; qu’elle nous confronte, sans nous en tenir un discours, à notre rapport dialectique à ce matériau mythique et originel. C’est dans un grand espace blanc que Grüber représente la pièce : plancher blanc et hauts murs blancs sur les trois côtés, percé de trois portes (dont une en hauteur) pour celui du fond : un espace vide d’un lisse clinique. C’est dans cet espace qu’entre Dionysos, sur un lit à roulettes comme un lit d’hôpital, poussé par un homme à plastron jaune et avec un masque d’escrimeur — c’est ainsi que

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57 seront costumés tous les gardes de Penthée, et servants de scène — qui le laisse après l’avoir installé au milieu de la scène, où il dira le prologue. Le contraste est d’entrée fortement posé entre le décor, le costume des gardes et le lit d’hôpital, et son corps nu, dont le sexe est cependant couvert d’un sexe ostensiblement factice (ce sera le cas de tous les hommes nus dans le spectacle) : un contraste, a priori entre nature et culture, qui est déjà à l’œuvre dès la première minute, dès que s’allument les néons qui éclairent le plateau, au fond droit de la scène, où l’on voit derrière une vitre un espace terreux dans lequel se tiennent deux chevaux : la simple présence de ceux-ci (ils n’auront de fonction dramatique que pour la courte séquence du départ de Penthée vers les montagnes) accompagnera tout le spectacle. Une autre présence accompagnera d’ailleurs le cours du spectacle, ponctuellement cette fois-ci, celle d’un personnage en frac et chapeau haut-de-forme, semblant surgi de la fin du XIXe siècle, qui apparaîtra par moments à travers une ouverture, regardant la scène : intrusions fugaces d’une autre temporalité, image de l’homme d’une certaine modernité (celle dont nous sommes héritiers) confronté au passé ici représenté, et autre figure incongrue dans cet univers scénique. Tissant poétiquement les temps, ce personnage apparaît également comme une figure de wanderer (figure d’ailleurs héritée du romantisme allemand, et faisant ainsi le pont entre l’Antiquité et notre contemporanéité via l’héritage que j’évoquais plus haut) telle que Grüber les affectionne (on en retrouvera un, contemporain cette fois, l’année suivante dans son Faust-Salpêtrière) : présence énigmatique accompagnant de son regard sur l’énigme même présentée sur la scène, miroir et relais neutre de notre propre regard. Ce prologue est, dans la mise en scène de Grüber, à proprement parler le lieu d’un pro-logos, voire un pré-logos :

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58 c’est pour Dionysos (joué par Michael König), d’abord balbutiant (« Ich… Ich… Bin… Bin… Ich bin… Ich bin… Dionysos »), le lieu de l’advenue au langage, à la parole, du passage de l’inarticulé à l’articulé ; il s’agit de se mettre à parler, de nommer, de se nommer : d’accéder au langage et à l’individuation. C’est bien le moment d’une naissance — ce que l’arrivée sur le lit d’hôpital, comme au sortir d’un accouchement, peut accentuer —, marquant le passage d’un Dionysos entre folie et enfance (celle d’un Dionysos infans, et serrant dans ses mains une chaussure de femme comme la seule trace restant de sa mère Sémélè « accouchée par la foudre » de Zeus) au Dionysos ayant revêtu « l’apparence mortelle » : le lieu de l’entre-deux, entre l’homme et le dieu, le temps de l’incarnation du dieu prenant forme humaine (« morphèn t’émèn métébalon eis andros phusin », v. 54). La fin du prologue voit alors l’entrée du chœur, qui va subvertir complètement l’espace : une des choreutes se dirige vers un interrupteur et change la lumière, et toutes se mettent alors, sur une musique de percussions, à démembrer le plancher même de la scène : arrachant de nombreuses lattes, elles font apparaître, en dessous, de la terre, des salades, etc. La violence d’une telle image est cependant étrangéifiée par le calme très grand avec lequel elles transforment ainsi l’espace, méthodiquement et en parlant d’une diction tranquille, et vaquent à certaines occupations (l’une pile du sable sortant d’un robinet, une autre déchire un morceau de tissu… ; elles transforment le lit d’hôpital abandonné par Dionysos en autel en l’honneur de celui-ci), comme absentes à elles-mêmes. Point d’orgue de cette fouille, entre subversion et exhumation archéologique, les choreutes sortent alors de terre deux vieillards : Tirésias et Cadmos, tous deux enduits d’une substance blanche et granuleuse. L’espace blanc et propre a donc été subverti par l’invasion des choreutes ; il restera ainsi pendant environ une

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59 demi-heure, jusqu’à la fin du dialogue entre Cadmos et Penthée. Après celui-ci, Penthée déclenche un gigantesque nettoyage du plateau : une voiture-balayeuse, qui était rangée au fond de la scène, entre et nettoie tout le plateau, tandis que les hommes de Créon reclouent les planches arrachées pour refaire place nette. C’est sur cet espace que se poursuivra la représentation : sur un plateau uniformément blanc mais où persisteront, isolées, quelques petites traces du saccage précédent : dans un espace blanc et comme clinique, mais désormais sous-tendu par ce qui en a été un temps exhumé — chargé, dans la mémoire du spectateur, de cette nature invisible, brièvement resurgie et à nouveau refoulée. Il y a donc bien, à première vue, quelque chose comme la confrontation d’une modernité et d’un archaïsme : d’un côté, l’aspect « clinique » de l’espace, la voiturebalayeuse, les costumes des gardes de Créon ; de l’autre, les corps nus des protagonistes, seulement couverts d’un simple sexe factice. Mais ce que l’on constatera, c’est que cette modernité comme cet archaïsme ne sont absolument pas référentiels, ne renvoient pas à une modernité ou un archaïsme réels mais bien plutôt à un imaginaire poétique de la modernité ou de l’archaïque : les masques d’escrime des gardes en sont le meilleur exemple. La nudité elle-même n’est jamais véritablement naturelle, troublée par les sexes factices (et, pour Penthée, par la peinture dont est enduit son bras gauche, comme un morceau d’armure à même le corps) ; et lorsque le Bouvier fera son apparition, aussi nu et sale qu’il apparaisse, accompagné de deux chiens auquel il donnera des morceaux de viande crue à manger, il n’en sera pas moins monté sur des cothurnes… Grüber creuse ainsi au maximum les écarts, mais il le fait en troublant les assignations référentielles que l’on pourrait en faire, et surtout il le fait par une sur-artificialisation. Kleist, à la fin de Sur le théâtre de marionnettes, écrivait : « Mais le Paradis est verrouillé (…) ; il nous faudrait donc

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60 faire le tour du monde pour voir s’il n’est peut-être pas rouvert par derrière » — pour retrouver la grâce, ou l’innocence perdue. En reprenant le même type de métaphore, je serais tenté de dire que pour tendre vers quelque chose de l’origine et essayer d’y confronter le spectateur, Grüber fait un tel détour, passe ainsi, pour une part tout du moins, par l’infini de la facticité, et de l’étrangeté. Cette étrangeté — cette distance — passe aussi beaucoup par le temps (le spectacle dure 3 h 20) : non pas seulement une lenteur qui serait à l’œuvre dans la diction ou les mouvements, mais surtout la présence de grands moments de silence, de déplacements simples, d’attentes qui trouent le déroulé global de la pièce — et qui peuvent laisser place, dans l’agôn (ainsi entre Dionysos et Penthée), à des éruptions de violence d’autant plus fortes. C’est par le biais de ce temps-là, en fin de compte, que passe une certaine ritualité, et un certain sacré. Mais cette ritualité potentielle, au contraire des éléments de figuration (transpositions, modernes ou pseudo-antiques), n’est pas théâtralisée — et si un certain sentiment de sacré perce à travers cette étrangeté, c’est justement parce qu’elle n’est en rien spectacularisée. Elle repose simplement sur la présence, et permet le temps d’une autre perception : une appréhension phénoménologique. C’est ainsi celle qui se noue ainsi face à certaines présences isolées qui ramènent l’animalité : les deux chevaux présents derrière leur vitre durant tout le spectacle, bien sûr, mais aussi les chiens du bouvier. Ces présences — et de même les présences humaines — ne sont pas dramatisées : elles sont tout simplement là, à la fois dans leur évidence et dans leur énigme. Des présences que l’on verrait comme pour la première fois, comme la scène semble se présenter pour la première fois (mais cette fois terriblement, là où la scène grüberienne joue plutôt d’un calme comme indifférent à la dramatisation) à l’esprit du messager dans son très long récit

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61 de la mort de Penthée — le souvenir resurgissant semblant s’imposer à son regard, mot à mot (le langage naissant, là encore, comme sans préméditation), image par image, comme s’il ne l’avait jamais encore vu ni vécu. C’est ainsi que, paradoxalement — et dialectiquement —, ce que l’on pourrait rattacher à l’ordre d’un « sacré » passe ici, d’une certaine manière, par le plus grand « matérialisme ». Bernard Sobel (metteur en scène marxiste français) formule d’ailleurs d’une telle manière paradoxale (à propos d’autres spectacles) ce qui lui semble une particularité de la démarche de Grüber, en la comparant à celle du cinéaste Robert Bresson : « lorsqu’un cinéaste profondément religieux veut montrer Dieu, il bute sur un problème parce que cela ne se voit pas. Il faut donc que son écran devienne profondément matérialiste pour, qu’à un moment donné, on sente quelque chose qui est de l’ordre de la présence du divin. Je dirais qu’il y a chez Grüber une nostalgie de cette présence, peut-être est-il en définitive profondément religieux. Chez lui existe cette déchirure, cette coupure entre être dans l’histoire et être dans l’éternel. » (in BANU-BLEZINGER, 1993 : 174) Cette déchirure entre l’histoire et l’éternel (dichotomie fondamentale des questionnements sur la mise en scène de la tragédie grecque, nous l’avons vu), Grüber ne prétend en rien la nier ni la subsumer. Et le rapport phénoménologique qu’il instaure dans la perception de la scène est à l’opposé de la désignation d’une quelconque transcendance : le « sacré » qui est alors en jeu passe dans la seule activité du regard, dans l’expérience immanente des présences, offertes à l’activité (contemplative ? auratique ? éthique ?) d’un regard non prédéterminé, à neuf, dans un voir qui dépasse toute dichotomie et ne veut en résoudre mais noue alors l’évidence d’un être-là comme naturel, et de toute éternité, et l’étrangeté de ce que l’on voit comme pour la première fois — l’évidence et la distance de l’origine.

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62 Tous ces effets d’éloignement et d’étrangeté s’articulent donc à de très fortes présences : éloignées de notre reconnaissance, celles-ci s’offrent pourtant dans un « être-là » indubitable. Tout le cadre spatial et temporel du spectacle sert ce traitement de la présence : le rythme, la grandeur de l’espace, le blanc même sur lequel les acteurs se détachent, ou l’or des lumières venant de derrière les portes. Ces lumières et couleurs ne valent pas tant pour leur symbolisme potentiel qu’en tant que cadres d’une expérience phénoménologique de perception, sur lesquels se détachent les corps et les matières : redoublant une certaine texture des corps nus, d’une nudité pas exactement « naturelle », que le reflet des lumières (les néons du plafond, ou celles plus vives venant des portes des murs) font apparaître comme artificialisée, parfois quasi-statuaire ; ou celle de ces corps enduits d’étranges matières comme ceux, sortis de la terre et comme érodés par le temps de Cadmos et Tirésias, ou celui, enduit d’un liquide gluant et visqueux, entre miel et boue, qui dégouline et tombe en petits blocs tout au long de son récit, du messager, ou encore celui, dégoulinant d’un faux sang luisant, d’Agavè revenant du massacre de son fils. La représentation de Dionysos se révèle bien évidemment particulièrement symptomatique. Comment, en effet, représenter ce dieu fait homme, qui se montre sous forme humaine mais est dieu, et demande à être reconnu comme tel — ainsi se présente le Dionysos double d’Euripide (VERNANT, 1972) — ? Le début du spectacle, cette naissance, comme nous l’avons vu, ce moment originel, s’ouvrait sous le signe du passage — et l’on restera toujours, tout le long et à tous les niveaux de la représentation, dans ce régime de l’entre-deux (intrinsèque à Dionysos, il caractérisera aussi le chœur, et ce sera également, en fin de compte, celui de Penthée — interprété par Bruno Ganz —, cet être rigide et rationnel contaminé par le désir dionysiaque — devenant animal et mangeant la viande des chiens du

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63 bouvier, devenant progressivement lubrique pour finir déguisé en femme). Dionysos est caractérisé par l’étrangeté qui peut être celle de la texture de son corps, plus encore que les autres, selon les manières dont il peut prendre la lumière — par exemple pris dans la blancheur d’un projecteur latéral se découpant à travers la porte du mur de droite, lors de sa première confrontation avec un Penthée d’abord pris dans l’ombre. Entre la simple et brute nudité et l’étrangeté plastique qui peut s’y attacher par moments, Dionysos oscille ainsi, visuellement, entre l’humain et le mythique. Mais c’est sans doute, plus encore, le regard de Dionysos qui est particulièrement frappant dans le spectacle : son regard est fixe, comme perdu au loin, et fréquemment posé sur un point légèrement décalé par rapport à son interlocuteur (ainsi lorsqu’il accueille Penthée travesti : se tenant derrière lui, l’ayant pris dans ses bras et lui parlant, il ne le regarde pourtant pas, mais son regard, comme absent, se perd au loin), tout autant que par rapport au public. Il regarde et ne regarde pas ; il est là et n’est pas là. Comme la Grèce antique sur la scène, comme le chœur des Bacchantes, fortement présentes mais, en extase, paraissant toujours comme absentes à elles-mêmes, il est simultanément présent et comme absent, comme ailleurs. Nous regardant et ne nous regardant pas frontalement : proche et lointain à la fois, comme le regard de Dionysos, c’est sans doute ainsi que le mythe de l’origine qu’est la tragédie nous regarde. La fin de la mise en scène de Grüber est, elle, par contre, traitée sur le registre de l’intimité ; un seule lampe descend des cintres et éclaire le centre de la scène, où sont assis sur des chaises Cadmos et Agavè, une fois l’extase divine de celle-ci terminée. Le père fait doucement, précautionneusement, prendre conscience à sa fille de son acte. Le moment tragique de la reconnaissance se fait ici dans le

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64 calme d’une douleur au plus proche de l’humain. Sur le fond toujours présent de cette étrangeté, on passe cependant à un mode de théâtralité plus intime : nous laissant interroger, après la catastrophe, notre rapport individuel à cela — celui par lequel on essaiera de recoudre les restes fragmentaires de ce qui est à jamais perdu, comme Agavè se met à recoudre le vêtement, c’est-à-dire le corps, de son fils à jamais disparu. Dans cette relation finale, après l’éloignement qu’instaurait la majorité du spectacle, on retrouverait peutêtre, pour reprendre l’image de Kleist que je citais tout à l’heure, non pas le Paradis ni même la grâce, mais l’origine ; en tout cas, sans filtre, l’évidence du texte et de la douleur humaine — irrésorbable, et commune — qui y est alors en jeu. Son écho ; sa proximité, par le détour de son irrémédiable éloignement. BIBLIOGRAPHIE : AILLAUD Gilles, BAILLY Jean-Christophe, GRÜBER Klaus Michael, La medesima strada, Paris, Christian Bourgois, 1989 BARTHES Roland, Ecrits sur le théâtre, Paris, Points Seuil, 2002 BANU Georges (sous la direction de), « Tragédie grecque, défi de la scène contemporaine », Etudes théâtrales n° 21, Louvain, 2001 BANU Georges et BLEZINGER Marc (sous la direction de), Klaus Michael Grüber. Il faut que le théâtre passe à travers les larmes, Paris, éditions du Regard, 1993 BENJAMIN Walter, « Petite histoire de la photographie », in Œuvres, tome 2, Paris, Folio-Gallimard, 2000, pp. 295321 DIDI-HUBERMAN Georges, L’Image survivante. Histoire de l’art et temps des fantômes selon Aby Warburg, Paris, Minuit, 2002

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65 EURIPIDE, Les Bacchantes, texte établi et traduit par H. Grégoire et J. Meunier, Paris, Les Belles Lettres, 2006 KLEIST Heinrich von, sur le théâtre de marionnettes, in Petits écrits, Œuvres complètes, tome 1, Paris, Le Promeneur – Gallimard, 1999, pp. 211-217 LEVASSSEUR-LEGANGNEUX Patricia, Les tragédies grecques sur la scène contemporaine. Une utopie théâtrale, Presses universitaires du Septentrion, 2004 LORAUX Nicole, La Voix endeuillée, Paris, Gallimard, 1999 LESCOT David, « La tragédie grecque : entre le déferlement et l’ascèse », in MAURIN Frédéric (sous la direction de), Peter Sellars, « Les Voies de la création théâtrale » tome 22, Paris, CNRS éditions, 2003, pp. 305-326 SELLARS Peter, Conférence, Paris, Actes Sud – Papiers, 1994 TRIAU Christophe (sous la direction de, avec la collaboration de BANU Georges), « Choralités », Alternatives théâtrales n° 76-77, Bruxelles, 2003 VERNANT Jean-Pierre, « Le Dionysos masqué des Bacchantes d’Euripide », in VERNANT Jean-Pierre et VIDAL-NAQUET Pierre, Mythe et tragédie en Grèce ancienne, tome II, Paris, Maspéro, 1972, réed. Paris, La Découverte, 2001, pp. 237-270 VITEZ Antoine, Ecrits sur le théâtre, tome 4, Paris, P.O.L., 1997

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66 Dois Caminhos da Herança Clássica Dr. Djalma Thürler RESUMO: O artigo é uma visita sumária a duas perspectivas relativas ao entendimento de tragédia e de trágico que, apesar de pertencerem a diferentes paradigmas, se cruzam e que os laços entre o gênero, considerado por Aristóteles o mais nobre, e a idéia de trágico, que permaneceu muito para além da "morte da tragédia", são bem estreitos. O texto também aponta para uma possível desmontagem de uma visão por vezes generalizante e perigosamente cristalizada do trágico e da tragédia. É desde logo significativo que nos últimos meses de 2002 e já em 2003 tenham surgido dois estudos sobre o conceito de trágico, respectivamente, por um crítico francês – Marc Escola – e por um crítico inglês conceituado, Terry Eagleton. Enquanto o primeiro apresenta uma seleção de ensaios "clássicos" que organiza e comenta, o segundo não só faz a crítica das diversas teorias que foram construindo esse conceito e a percepção de trágico que dele hoje temos, como se propõe apontar os lugares onde o trágico está presente tanto nas artes e letras como nas práticas sociais contemporâneas. PALAVRAS-CHAVE: tragédia e trágico; Marc Escola e Terry Eagleton; práticas sociais contemporâneas. ABSTRACT: The article is a brief visit to two perspectives on the understanding of tragedy and tragic which, although belonging to different paradigms, cross themselves, and the ties between genre, considered by Aristotle the most noble, and the idea of tragic, which remained well beyond the "death of the tragedy," are very close. The text also points to a possible dismantling of a vision sometimes general and dangerously crystallized of the tragic in the tragedy.

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67 It is significant that in the last months of 2002 and already in 2003 two studies on the concept of tragedy have emerged, respectively, for a French critic - Marc School and a highly regarded English critic, Terry Eagleton. While the first presents a selection of "classic" essays that organizes and comments, the latter not only does the criticism of the various theories that have been building this concept and the perception of tragic that we have today, but also proposes to indicate the places where the tragic is present both in the arts and letters and in the contemporary social practices. KEYWORDS: tragedy and tragic which; Marc Escola and Terry Eagleton;contemporary social practices. A visita inevitavelmente incompleta que procurarei fazer aqui à herança clássica implica que abordemos, ainda que sumariamente, algumas questões relativas ao entendimento de tragédia e de trágico. Como se vê, a tarefa não é fácil e várias são as perspectivas por onde a encetar. Parece óbvio que tragédia e trágico, apesar de pertencerem a diferentes paradigmas, se cruzam e que os laços entre o gênero, considerado por Aristóteles o mais nobre, e a idéia de trágico, que permaneceu muito para além da “morte da tragédia”, são bem estreitos. Acrescente-se a esta constatação o fato de tragédia e filosofia surgirem a partir de certa altura ligados no pensamento ocidental e de, como vem sendo dito, não ter sido por acaso que nasceram na mesma civilização. É desde logo significativo que nos últimos meses de 200219 e já em 200320 tenham surgido dois estudos sobre o conceito de trágico, respectivamente, por um crítico francês 19

Le tragique. Textes choisis et présentés par Marc Escola, Paris: Garnier Flammarion, 2002. 20 Terry Eagleton, Sweet Violence. The idea of the tragic, London: Blackwell Publishing, 2003.

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68 – Marc Escola – e por um crítico inglês conceituado, Terry Eagleton. Enquanto o primeiro apresenta uma seleção de ensaios “clássicos” que organiza e comenta, o segundo não só faz a crítica das diversas teorias que foram construindo esse conceito e a percepção de trágico que dele hoje temos, como se propõe apontar os lugares onde o trágico está presente tanto nas artes e letras como nas práticas sociais contemporâneas. Gostaria de apresentar resumidamente estas duas perspectivas, pois as considero muito produtivas na desmontagem de uma visão por vezes generalizante e perigosamente cristalizada do trágico e da tragédia. Escola, que inicia o seu livro com o resumo de um acontecimento percebido/recebido como trágico pelo senso comum – o acidente que matou a princesa Diana – vai, na sua introdução, colocar diversas questões no sentido de orientar a nossa leitura dos excertos escolhidos de entre ensaios e ficção dramática, de Aristóteles a Nathalie Sarraute21. Estes surgem reunidos sob tópicos recorrentes, comuns e doxais (a fatalidade trágica, a culpa trágica, nascimentos da tragédia, a sintaxe do trágico e o trágico após 21 Nathalie Sarraute: "A escrita de Nathalie Sarraute, escritora francesa de origem russa, se apresenta como uma literatura radical de subversão aos padrões e termos da literatura e escrita do séc. XX. Sua literaturacaracterizada por uma linguagem intimista levou Deleuze a afirmar que “em seu trabalho filosofia e romance se confundiam absolutamente”. A refutação do realismo tradicional e da literatura engajada, as tentativas sistemáticas de liquidação do sujeito, do personagem, dissolução da intriga, degradação da cronologia, rejeição de referenciais e, sobretudo seu desejo de adaptar as técnicas de escrita à transformação rápida e constante do mundo, foram os desencadeadores de novos modos de expressão literária, onde a linguagem não remete a um sujeito, mas, a um vazio fundamental, ou como diria Foucault “ao vazio do homem desaparecido”. (in: BOCCA, F. V. ; DAÓLIO, Marly Alves . Nathalie Sarraute, a literatura e a filosofia.. In: VI Mostra de Pesquisa da PUCPR, 2004, Curitiba. Caderno de Resumos da VI Mostra de Pesquisa da PUCPR. Curitiba : Ed. Universitária Champagnat, 2004. v. 1. p. 116-116.)

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69 o trágico), alguns dos quais organizam também o texto introdutório numa tentativa de problematizar mais do que de normativizar. Um primeiro aspecto apontado diz respeito a incontornável situação histórica em que nasce a tragédia e que, para muitos, se tornou principal explicação da sua gênese. Escola recupera uma tese já transmitida por Fernand Robert (1962: 56-57) e revisitada em 1972 por Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet, segundo a qual a criação institucional da tragédia veio corresponder a estratégias políticas de criação de um gênero “literário” (o poema, por conseguinte, e não o espetáculo) destinado ao povo, encerrando por isso a expressão de um momento de transição (e de confronto) entre a tradição mítica que as lendas heróicas (comuns à epopéia) re(a)presentam e os novos valores da ordem jurídica e política da cidade grega. É a constituição da justiça ateniense que justifica o desenvolvimento da tragédia e a importância fulcral, na sua sintaxe, do erro e do crime dele decorrente. O herói que não se sabe cidadão e que a ação vai revelar em choque com a comunidade dos homens parece ser um outro dos núcleos fundadores da tragédia. Escola faz notar que esse confronto está formalmente realizado na estruturação interna da tragédia, através da separação entre skéné e orchestra, entre herói e coro. Esse confronto põe, sobretudo, descoberto o sentido da ação do herói, torna patente a interrogação dolorosa acerca da responsabilidade do herói pelos seus atos. A tragédia constrói-se sobre a ambivalência do herói trágico que ao mesmo tempo age segundo o seu caráter e é movido por um poder que o transcende. Esta ambivalência, tão evidente em Édipo-rei de Sófocles, é fonte de efeito trágico, porque a existência do homem é revelada como integrando uma ordem superior, sendo essa revelação do domínio incontornável de uma força religiosa o que dá sentido aos seus atos.

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70 Um terceiro aspecto decorre desta interrogação sobre a responsabilidade do erro ou do crime do herói: a culpa trágica. Ela possui também uma dupla faceta. Por exemplo: Orestes é culpado moralmente perante a ordem divina por ter praticado uma ação violenta, ter assassinado Egisto e Clitemnestra, e é culpado racionalmente no plano restrito da lei humana, por ter errado segundo o seu caráter e as leis da polis. Assim, duas ordens coexistem: o homem surge como joguete dos deuses estando erro, culpa e infelicidade confundidos num mesmo plano; e a culpa e a infelicidade surgem dissociadas do erro cometido por responsabilidade do homem. É essa progressiva humanização da culpa que Eurípedes parece ter introduzido na tragédia grega. No entanto, a contribuição mais interessante de Escola para este debate infindável reside, quanto a mim, na dissociação entre tragédia e sentimento do trágico e na consideração deste último como efeito da nossa percepção. Ausente da caracterização da tragédia feita em escritos contemporâneos desta prática, o trágico seria uma construção retrospectiva surgida apenas a partir do séc. XVIII, com o Classicismo francês. Por conseguinte, perante uma tragédia, confrontados com aporias e indiferenciações que nos parecem sem resposta e que se tornam lugares de tensão, fazemos intervir as nossas categorias, inexistentes na Antiguidade, mas que nos permitem explicar um vazio de sentido. É nessa medida que Escola nos aconselha, finalmente, a abandonar a idéia de um trágico transhistórico, transmodal e transgenérico, capaz de uniformizar e aproximar práticas distantes e diversas na história da humanidade. Terry Eagleton, crítico de orientação marxista e continuador de Raymond Williams na área dos Estudos

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71 Culturais na Grã-Bretanha, também parte da significação comum do termo trágico, e sua contribuição consiste em abordar a questão pelo ângulo da representação da dimensão perecível do que é humano, contra a imposição tradicionalmente construída da dimensão gloriosa e heróica transmitida pela tragédia e pelo trágico. A proposta interpretativa de Eagleton é, pois, construída sobre a crítica das diversas perspectivas teóricas (em “ruínas”) que desde a aristotélica, fundadora, até as mais recentes e sofisticadamente pós-modernas alinham dicotomias caracterizadoras e decretam ora que a tragédia morreu, ora que já não serve para dar conta das interrogações do homem. Mas o aspecto para o qual Eagleton chama a nossa particular atenção consiste na separação que a teoria foi estabelecendo entre tragédia enquanto arte e a tragédia da vida real, distinção que ignora o entendimento comum de tragédia e de trágico. E a razão para essa opção da teoria reside, segundo Eagleton, no fato de se aceitar que dignidade e heroísmo do sofrimento configurado pela arte não encontram correspondência na vida, dominada pela desordem e pela mediocridade. Percebe-se que subjacente ao pensamento do crítico inglês existe a idéia de que não é desejável omitir do estudo da tragédia e do trágico os usos comuns de um conceito, pois também eles configuram formas de arte do passado e do presente, ao configurarem a cultura onde nascem essas mesmas formas de arte. No seu uso comum, assim como no seio de um discurso teórico, tragédia e sentido trágico são entendidos como expoentes máximos ou valorizações exaltantes, quer de uma arte, quer de uma experiência humana e o crítico inglês inventaria e comenta algumas das afirmações que têm construído a vulgata acerca da tragédia e do trágico, confrontando-as com um conjunto vasto de textos ficcionais

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72 (romances e peças de teatro), muitas vezes em divergência com essa vulgata. Na possibilidade de viver imaginariamente situações violentas ou interditas, reside, provavelmente, a razão política, mas também profilática da existência da tragédia e Aristóteles, ao associar o prazer ao efeito de terror e piedade inerente à composição trágica, deixava já transparecer a primordial função da tragédia. A partir desta constatação, sustentada, aliás, pelo pensamento de Nietzsche, Eagleton vai desenvolver a sua proposta. A tragédia, através da violência das ações representadas, de uma violência vivida como “doce” pelos espectadores, fala-nos da desordem e da sua inevitabilidade para a refundição dos valores primordiais da humanidade; coloca-nos perante as conseqüências terríveis da luta pela afirmação da liberdade e da justiça, à custa de escolhas que colocam o sujeito em crise, isto é, numa situação limite ou de ruptura. Antígona é, aliás, para muitos analistas, a configuração exemplar da trágica intransigência, da não abdicação do valor supremo, da lei dos deuses defendida contra a lei da polis, ou ainda, manifestação de desejo de superação dos limites humanos. Eagleton estabelece na parte final do seu estudo uma fronteira entre visão racionalista e visão modernista do mundo, defendendo a idéia de que a tragédia não morreu com o modernismo, mas que se tornou parte dele. Percorre, então, os paradoxos sobre que assenta a nossa sociedade, o principal dos quais reside na negação da tragédia da vida real com base numa visão pós-moderna da existência, marcada pela desagregação da subjetividade, pela incapacidade de reconhecer valores universais, pela indiferenciação, para concluir que a idéia de tragédia e de trágico tornou-se tão banal no século XX que em vez de ser vivida imaginariamente nos palcos, ela se espalha pela cidade

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73 e pelo mundo, deixando à literatura e à filosofia a tarefa, talvez hipócrita, de denegá-la. Podemos, então, dizer que, a partir do século XIX, o pensamento filosófico se apropriou da tragédia, que assim evoluiu no sentido de ser percebida como lugar de debate ideológico e não de representação de ações humanas. Retenhamos, neste passo, alguns fios condutores: a conjuntura política interpelando o indivíduo, a encarnação do conflito na figura do herói, a percepção do trágico associado à vida real e às suas aporias, a amplificação dos valores que a tragédia e o trágico manifestam e, finalmente, um aspecto que é comum ao teatro e ao sonho: a possibilidade de viver imaginariamente a violência. Fios que recordaremos ao lermos a dramaturgia brasileira contemporânea que revisitou a tragédia antiga. Essa leitura exige, todavia, que destaquemos alguns aspectos caracterizadores da tragédia e com os quais trabalharão (mesmo quando os omitem na criação final) os autores a que aludirei. Esses aspectos não se concretizam de modo explícito ou em “pastiche”, mas por via da existência de uma linhagem quase incontornável (se bem que não única) no teatro ocidental e que parte de Aristóteles para modelar o drama pelo menos até ao realismo-naturalismo. Vários estudiosos do teatro antigo chamam a nossa atenção para o fato de ser muito pouco o que sabemos acerca da prática teatral no mundo greco-romano, dado o caráter efêmero do espetáculo e a escassez de documentos que a ele se reportem inequivocamente, permitindo o seu restauro imaginário. Sabemos que houve teatro, num formato semelhante àquele que somos hoje capazes de reconstituir, no fim do século V a.C e que terá talvez existido antes dessa data. Refiro-me ao teatro e não aos textos que podemos ler e sobre cuja composição discorreu Aristóteles na sua Poética (escrita cerca de 340 a.C.). Algumas tragédias e comédias, nem sempre

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74 completas, constituem quase o único material que sobreviveu à efemeridade do evento teatral, já que, além de máscaras, outros testemunhos surgem em segunda mão, sujeitos a critérios de representação nossos desconhecidos: por exemplo, alguma iconografia em vasos, relevos ou esculturas. A precariedade da relação referencial, que podemos estabelecer entre estas representações, e as práticas teatrais a que supostamente estão ligadas, são hoje reconhecidas mesmo no seio de uma disciplina recente e à procura de reconhecimento como é a Iconografia Teatral. A prudência não invalida, todavia, a exploração dessa documentação iconográfica pela História do Teatro, gesto que se está a tornar cada vez mais freqüente e patente nas reedições de manuais, bem como em estudos especializados. É, pois, o texto quase o único “documento” que possuímos emanando do evento teatral e desde há muito ele é olhado mais como objeto literário do que como elemento que participou numa ação, num processo, num acontecimento que envolveu ainda outros elementos (atores, espaço teatral, música, canto, movimento e dança): a opsis que Aristóteles subalterniza na Poética, mas que, na segunda metade do século XX e apesar das limitações documentais que referi, constituiu o foco de interesse de encenadores e de helenistas. Sabe-se que uma das formas constitutivas desse teatro consistia num hino cantado por um ator que encarnaria o herói e cujas infelicidades eram assim narradas e mais tarde dialogadas com um coro. Quase todas as tragédias que chegaram até nós tratam de questões relacionadas com o poder e a liberdade: a sua legitimidade ou a sua legitimação perante um poder maior, o dos deuses, e as conseqüências funestas que provoca uma ação afrontando a ordem humana regida pelos deuses.

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75 São ações de heróis e descendentes de deuses e a dimensão em que se movem não é sagrada, mas histórica: é o tempo dos heróis fundadores da Ática. As fábulas dão a ver as aventuras de heróis gregos abordadas por um prisma atual e colocadas a serviço da polis, dos valores da cidade dos homens, o que sustenta a já mencionada tese da ligação da tragédia com as transformações sociais e políticas de Atenas. Valores novos e o debate que suscitavam configuram-se na tragédia através das ações inventadas pelos tragediógrafos a partir dos mitos tradicionais já conhecidos de todos. De Ésquilo a Eurípides, e apesar do magro corpo de textos de que dispomos, é possível reconhecer a evolução que se processa no sentido de uma menor presença dos deuses em cena e em ação e de uma maior abstração dos valores que motivam a conduta dos heróis. Este aspecto é importante para o nosso ponto de vista acerca da persistência fecunda da tragédia ou da idéia de trágico ao longo dos tempos. A questão do sacrifício, da revolta, da luta pela liberdade, contra a ordem estabelecida, da vida que emerge da morte, dos domínios do irracional e do pulsional que a sociabilização limita foi incorporada na reflexão filosófica substituindo-se, deste modo, a tragédia enquanto forma artística fixa pela tragédia como categoria do pensamento ocidental. A estrutura da tragédia, apesar da evolução no tratamento da matéria lendária e da composição tão variada, se tivermos em conta as formas fixas preconizadas por Aristóteles, assenta na alternância de partes cantadas e partes faladas. O uso do verso jâmbico explica-se, talvez, pelo fato de permitir criar um efeito de cumplicidade com o espectador sem deixar de provocar, todavia, a distância que implicavam fábulas, máscaras coreografia e o próprio espaço teatral. Aliás, parece evidente a ligação hoje irrecuperável

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76 entre o ritmo produzido na língua grega pelas diferentes medidas usadas e música e dança que acompanhavam a enunciação/recitação. Produzia-se, pois, um contraste entre fala e canto expresso em ritmos diferentes (breve/ longa no jâmbico, ou longa/ breve no troqueu). A parte cantada estaria ligada ao funcionamento do coro, às suas deambulações pelo espaço, mas também à organização simétrica das suas intervenções e era constituída por estrofe e antístrofe, juntando-se-lhes por vezes um epodo. Outros cânticos do coro, os estásimos, podiam, além disso, surgir entre os episódios, instaurando cortes na ação. O párodo, depois do prólogo, assinalava a entrada do coro e era constituído pelo relato dos acontecimentos anteriores e antigos que anunciavam a crise iminente, no que apresenta alguma semelhança com a função da exposição na dramaturgia clássica francesa. O final da tragédia era assinalado por um canto chamado êxodo, coincidindo com a saída do coro. As interpelações líricas do corifeu a um dos atores durante o diálogo tinham uma dimensão lírica assinalada por diversos tipos de versos. Ao longo da história da tragédia irá aumentando a quantidade de cânticos dos atores em dueto ou em monólogo, o que reforça talvez a idéia de que o canto era muito importante no espetáculo, mesmo que o fosse por corresponder a uma inflação da figura do ator na economia da tragédia. Algumas das características formais da tragédia grega desapareceram aparentemente dos textos que a partir do Renascimento a imitavam. No entanto, será talvez mais justo afirmar que encontraram diferentes modos de se adequarem às línguas e aos regimes literários que a recriaram, como procurarei mostrar no caso brasileiro. É vasto o elenco de encenações das tragédias antigas e de textos contemporâneos que manifestam explicitamente

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77 a sua dívida para com os textos fundadores da história do teatro. Num caso e noutro é do nosso momento histórico que olhamos fábulas, mitos e figuras da Antiguidade. Talvez por isso, não sejam pacíficas essas revisitações. Duvida, pois, da eficácia das soluções encontradas para reproduzir a sonoridade e o ritmo do verso e da língua grega. Esta questão, como veremos ao analisarmos obras nossas contemporâneas, é pertinente não apenas no que se refere à encenação, mas também no que toca à reescrita das fábulas em línguas modernas. A transformação da tragédia deu-se ainda na Antiguidade porque ela se encontrava em sintonia perfeita com a sociedade; foi incorporando, comentando as tensões entre a vivência social de uma tradição religiosa e a progressiva abstração dos valores da polis, da cidade dos homens. Não admira, portanto, que a sua presença no campo teatral e dramático das idades moderna e contemporânea mereça ser analisada de outra perspectiva: não tanto do lugar literário para onde foi remetida, e mais do lugar filosófico e cultural que nela elege o efeito trágico. Talvez, por isso, hoje se regresse à tragédia pelo caminho do trágico e suas convenções estruturais, seus conceitos e suas temáticas nos tempos; cada qual com suas especificidades e re-significações. BIBLIOGRAFIA ARISTÓTELES. Poética. Coleção: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. ESCOLA, Marc. Le tragique :Textes choisis et presentes. Paris: Garnier Flammarion, 2002. EAGLETON, Terry, Sweet Violence. The idea of the tragic. London: Blackwell Publishing, 2003. ÉSQUILO. Orestia, Agamemnon, Coeforas, Eumenides, tradução do grego, introdução e notas; Mario da Gama Kury, Rio de Janeiro : J. Zahar,1996.

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78 EURIPIDES. Medeia, Rio de Janeiro : J. Zahar,1991. ROBERT, Fernand. A religião grega. São Paulo: Martins Fontes, 1988. ROSENFIELD, Kathrin Holzermayer (org.) Filosofia e Literatura: o Trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. SÓFOCLES. A Trilogia Tebana — Édipo Rei, Édipo em Colono, Antígona. Tradução: Mário da Gama Kury.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,2002. VERNANT, Jean-Pierre. As Origens do Pensamento Grego. Rio de Janeiro: Difel, 2003. ________. O universo, Os Deuses, Os Homens. São Paulo : Cia Letras, 2000. ________ e VIDAL-NAQUET, Pierre 1988. Mito e Sociedade na Grécia Antiga. São Paulo: Brasiliense, 1988. WILLIAMS, Raymond. Tragédia Moderna. Tradução: Betina Bishof. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

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79 A ética em cena: Filoctetes de Sófocles22 Fernando Brandão dos Santos FCLAr/UNESP RESUMO: O presente estudo toma o Filoctetes de Sófocles, encenado em 409 a. C em Atenas como base para as reflexões éticas que suscita. O confronto entre as personagens principais da peça – Odisseu, Neoptólemo, Filoctetes e Héracles (deus ex machina no final) traz para a cena os debates de ordem moral, de relacionamento humano entre pares iguais em um ambiente de hostilidade figurado pela guerra de Tróia. PALAVRAS-CHAVE: Filoctetes, Sófocles, ética. ABSTRACT: The present study takes Sophocles’ Philoctetes, staged at Athens in 409 b. C. as base for the ethic reflexions it suscitates. The confrontation among the main characteres of the play – Odysseus, Neoptolemus, Philoctetes and Heracles (deus ex machina at the end) brings to the scene the moral debates, human relationship among equal pairs in ambiance of hostility figured by the Troyan war. KEYWORDS: Philoctetes, Sophocles, ethics. 1. O Filoctetes de Sófocles O Filoctetes é a última peça de Sófocles a ser encenada enquanto ele ainda estava vivo. Seu Édipo em Colono teria sido apresentado por um filho ou um neto também chamado

22 Não poderíamos deixar de assinalar aqui nosso agradecimento à Profa. Dra. Silvia Damasceno pelo gentil convite para que participássemos da VIII Jornada de Estudos Interdisciplinares da Antiguidade, na Universidade Federal Fluminense, organizada pelo “Centro de Estudos Interdisciplinares da Antiguidade”; uma honra e uma alegria.

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80 Sófocles, em 405 a. C. após sua morte, que teria acontecido em 406 a. C.23 O mito de Filoctetes, o herói que nos últimos dias da guerra de Tróia mata Páris com as armas herdadas de Héracles, pelos dados de que dispomos, era bastante recorrente na tradição literária grega. Entretanto, a maior parte da documentação dos textos versando sobre Filoctetes e sobre as narrativas que circundam a sua figura, ou seja, poemas, peças teatrais, sem mencionar as representações iconográficas, encontram-se desaparecidos ou em estado fragmentário24. Na verdade, a única peça que se conservou até os nossos dias é Filoctetes, composta por Sófocles. O tema da guerra é apenas o pano de fundo diante do qual a discussão dos valores entre Odisseu e Neoptólemo e Neoptólemo e Filoctetes se levantarão e ocuparão nossas preocupações durante o espetáculo, compondo o que aqui chamamos, então, de a ética em cena. 2. Personagens da trama A espacialidade do Filoctetes nos possibilita o exame da construção do imaginário que cumpre um papel de duplo aspecto: para as personagens da peça ele cumpre diferentes funções: por exemplo, para Filoctetes representa o espaço do isolamento, do abandono; para Neoptólemo significa o espaço da iniciação guerreira; a trama que se observa neste 80 23 Usamos para a tradução, salvo indicação, o texto Philoctete-Oedipe à Cologne, estabelecido por Alphonse Dain, “Belles Lettres, Paris, 1974, seguindo muitas vezes as indicações da edição comentada J. C. Kamerbeek, SOPHOCLES, Part VI -The Philoctetes, Leiden, 1980. 24Veja de José Ribeiro Ferreira e Carlos Guimarães, Filoctetes em Sófocles e em Heiner Müller, Coimbra, Faculdade de Letras, 1987, para um levantamento das representações iconográficas do herói Filoctetes.

81 espaço privilegiado permite ver a composição da ação e da tensão dramáticas da peça.25 Assim, dentro de um espaço que se opõe por si só ao espaço da civilidade, a atuação das personagens em cena ganha proporções mais claras e mais nítidas. Mas quando se fala de personagem aqui, é preciso ter em mente, não como uma categoria psicológica, tão comum para nós, tão sem correspondência no mundo antigo, mas sim como uma construção de um tipo especial de homem em que se aglutinam valores comuns de uma sociedade tradicional. Seguramente, por outro lado, temos na tragédia o esboço da construção daquilo que entendemos hoje por pessoa, com todas as categorias psicológicas, tais como a vontade, o desejo, etc. No Filoctetes, mais do que em qualquer outra peça de Sófocles, as personagens se apresentam dominadas pelos traços de caráter, que mais tarde serão considerados os traços do indivíduo.26 Todas as personagens que entram em cena nesta peça são do sexo masculino e, é preciso notar, que esta é a única peça de que as personagens femininas não tomam parte. O primeiro argumento dessa ausência seria o fato que de que a peça trate de um tema tipicamente militar. De fato, todas as personagens têm um posto definido dentro dessa hierarquia. No entanto, o mundo da guerra presente no ideário das três personagens principais, está ausente da ação. Tróia é o espaço onde se dá a batalha, a dança sangrenta de Ares. No entanto, está longe e só aparece no discurso das personagens. O que temos em cena é uma clara dissensão gerada dentro da própria armada grega que põe em dificuldade um projeto de conquista do inimigo, que é a tal 25

“O deserto no homem desertado: reflexões sobre a concepção cenográfica da tragédia Filoctetes de Sófocles, in ALFA, v. 34 (1991), pp. 161-67. 26 Veja Albin Lesky, A tragédia grega p. 142.

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82 conquista de Tróia, já determinada pelos próprios deuses em seus oráculos. Além das três personagens principais, temos personagens secundárias, tais como o mercador e o coro de marinheiros, que são, na verdade, uma extensão de Odisseu, aparentemente subordinado ao jovem Neoptólemo. Por fim, deus ex machina, que tem sua extensão imediata figura nas armas, no oráculo prevendo a cura de Filoctetes e sua efetiva participação na vitória dos gregos contra os troianos, e na própria ferida de Filoctetes. Aqui o recurso do deus ex machina não é apenas uma solução para uma saída impossível. Justamente por se apresentar com desdobramentos dentro da própria ação dramática, tais como o papel das armas, o papel do oráculo, o papel da doença, a presença divina de Héracles enquanto manifestação do sagrado, vem fazer com que a ação desenvolvida até ali tome um rumo contrário, invalidando, por assim dizer, todos os projetos feitos pelos homens e privilegiando o projeto esboçado no oráculo, que é o projeto dos deuses. Dessa forma configura-se a aporia trágica, já que mesmo entre as personagens há um desencontro de projetos, pois estão centrados em ideários antagônicos. Todos os projetos humanos, por sua vez, estão em desacordo com aquilo que os deuses deliberaram. 2.1. Odisseu Assim, o Odisseu que aparece no Filoctetes é uma das personagens mais intrigantes do teatro de Sófocles e sua ação na peça merece bastante atenção, pois em nome do poder constituído, da armada argiva, escudado nos homens que estão no comando, a saber, Agamêmnon e Menelau, tem uma atuação que poderia ser chamada de maquiavélica, se não estivéssemos incorrendo em anacronismo. Odisseu não hesita em ter uma atitude inescrupulosa para conseguir o que almeja, que é levar as famosas armas de Héracles para Tróia. Todos os comentadores do texto são unânimes em

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83 reconhecer que o Odisseu de Filoctetes é muito diferente do Odisseu do Ájax e está carregado de características que o aproximam de um sofista do século V a. C. Em seu livro The Ulisses Theme, W. B. Standford discute todo o processo de degradação por que passa a figura desse herói tradicional da literatura grega, examinando inclusive sua presença na literatura contemporânea.27 De fato, seu papel de defender a qualquer custo a armada grega através de um sóphisma (v. 14) um plano arquiteto para enganar com palavras e roubar as armas de Filoctetes (v. 55 em diante) é levado até o fim da peça. Aliás, cabe ressaltar que Sófocles explora no Filoctetes exatamente a tradicional oposição entre as figuras de Odisseu e Aquiles, ao colocá-lo em cena com o filho de Aquiles, Neoptólemo.28 O Odisseu do Filoctetes, para Charles Maurice Bowra, é assim, como todas as outras personagens humanas da peça, alguém que ignora, ao tentar fazer cumprir o oráculo de Heleno a seu modo, todo o plano divino a respeito do Filoctetes e o destino de suas armas sagradas. Daí viria “a perturbação inetivável”, que exigiria a intervenção do deus exmachina na final da peça29. Com certeza, a questão do oráculo e seu papel na ação têm de ser considerada com atenção pelo leitor/espectador. R. G. A. Buxton indica-nos que a discussão da validade do oráculo estaria numa discussão mais ampla, envolvendo a complexa e mutante disposição das escolhas humanas - hesitação e decisões de Neoptólemo, Odisseu e mesmo de Filoctetes.30 27

Oxford, 1968, p. 108. Essa oposição já está estabelecida na Ilíada, IX, vv. 185 e seq.; também foi explorada por Platão no Hípias menor. 29 Sophoclean Tragedy, Oxford, 1944, p. 265. 30 “Blindness and Limits: Sophocles and the Logic of Myth”, JHS, vol. C (1980), p. 36. A discussão aberta por Bowra dá prioridade à questão teológica do texto. Cf. também Joe Park Poe in “Heroism and Divine 28

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84 O caráter de Odisseu se define mais claramente à medida que tem como contraponto, no prólogo, Neoptólemo e depois pelo confronto mais distante com o próprio Filoctetes, protagonista da peça. Aliás, no prólogo, as duas figuras em cena, Odisseu e Neoptólemo, têm o mesmo destaque. O que dá o primeiro elemento de tensão dramática à peça é justamente a diferença de seus caracteres31, tensão que será mantida até o final. Odisseu chama o filho de Aquiles, no prólogo, com um longo vocativo (vv. 3-4), dando um tom solene ao evocar justamente a valentia do pai de Neoptólemo, e ao pôr em destaque a physis de Neoptólemo em oposição, na verdade, a tudo que ele vai apresentar em seguida. Em todo o prólogo, Odisseu demonstra ser o senhor do discurso e parece ter a exata dimensão do quanto e do que é necessário falar. Interrompe sua narrativa para começar a esboçar como ele próprio é odioso a Filoctetes (cf. vv. 45-47; 70-75, etc.): Então, Odisseu sabe que se for encontrado por Filoctetes, corre o risco de ser morto. Mas Odisseu tenta enredar Neoptólemo em seu projeto de conquista das armas de Filoctetes. O tom de ameaça a Neoptólemo também, se o plano falhar, não aparece só nessa passagem, mas também em outras e o caráter violento de Odisseu é ressaltado em várias passagens (vv. 75-76; 1255-57, entre outras). E assim, quando o jovem solicita a Odisseu esclarecimentos sobre o seu plano (v. 49), Sófocles põe-nos diante de um herói completamente destituído dos valores tradicionais de um guerreiro, sobretudo destituído da piedade em relação ao outro, ao companheiro de armas, Justice in Sophocles’ Philoctetes”, Lugduni, 1974, p. 26 e 28 para as questões da falta de entendimento do divino por parte dos humanos. 31 Usamos a palavra “caráter” aqui com o sentido de traço psicológico, o mesmo que define uma personalidade humana.

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85 ainda que não seja amigo. O comportamento de Odisseu neste paço caminha para aquilo que será depois identificado como o típico comportamento do indivíduo, muito embora sempre use o nome do conjunto do exército para escudar suas ações. Segundo Standford, a hostilidade em relação à figura de Odisseu começa a crescer na poesia lírica do período arcaico, ao lado dos poetas que ressaltam o seu aspecto nobre, por saber suportar os sofrimentos.32 Mas é no Filoctetes de Sófocles que Odisseu aparece como vilão e, o que antes poderia ser considerado com um comportamento típico de um herói, agora chega às raias da depravação de caráter.33 Mas, enxergar em Odisseu apenas o vilão da peça pode fazer-nos perder certos matizes com que Sófocles traçou a ação dentro da trama. O que se coloca em jogo com a personalidade atualizada e associada à idéia que se fazia dos sofistas no século V a. C., é uma discussão sobre os valores da sociedade grega, sobretudo sobre a sociedade ateniense. Odisseu oferece ao jovem a oportunidade de conquistar a sabedoria (v. 119). Neste oferecimento reside o cerne da discussão que atravessa a peça inteira, porque, como notou Standford, sophós poderia siginificar “perito”, “experto” em uma técnica mas também tinha um valor guerreiro, isto é, heróico, que era seu sentido mais antigo, entre os inúmeros significados que poderia assumir.34 Na verdade, o que Sófocles faz com esse termo é justamente explorar as ambigüidades que ele comporta para tirar-lhe os efeitos dramáticos. Para Odisseu o termo sábio e corajoso podem ter um sentido prático, compreendendo toda a sua configuração na 32

Ulysses’ Theme, “Growing hostility”, pp. 90-101. Ulysses’ Theme,“The Stage Villain”, pp. 102-117, sobretudo p. 110. 34 Veja Ulysses’ Theme, p. 109. Veja-se também de F. B. Santos, “O termo sophós no Filoctetes de Sófocles”, XII Anais de Seminários do GEL, Ribeirão Preto, SP, (1993), pp. 1138-1145. 33

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86 peça como um caráter cuja ação se pautas por outras relações de interesse que visam sobretudo ao lucro, à vitória, ao sucesso individual, ainda que sempre coloque a coletividade à frente em seus discursos. Para Neoptólemo, por sua primeira reação, quase visceral, contra a proposta indecorosa de Odisseu, essas mesmas palavras têm um outro sentido por causa, sobretudo, de sua maneira de perceber a realidade, ou, como se acentua, no texto, por sua disposição natural, por sua physis. Para Neoptólemo, com certeza, elas têm, primeiro, um sentido guerreiro. A. W. H. Adknins também alerta-nos para a abrangência do sentido de sophós.35 Mas vale a pena ressaltar que na literatura grega é mais comum encontrarmos o par kalós kagathós e toda a possível variação com esses termos, mas, parece-nos, que Sófocles aqui quebra esse par substituindo-o pela expressão sophós kagathós. Com isso obtém uma maior tensão e ambigüidade advindas dos termos, que reaparecem no momento em que Neoptólemo resolve devolver as armas a Filoctetes (vv. 1229-1249). O que também cabe ressaltar ainda é que o que Sófocles faz também não é apenas um jogo de palavras com sentido cambiante. O que temos no palco são personagens revestidas de valores distintos, com diferente apreensão da realidade, muito embora ocupem o mesmo espaço dramático. O conflito entre as duas personagens é detectável, então, pelo uso da linguagem, que, por sua vez, no nível da aparência, mantém-se única, mas, atrelada à ação das personagens, revela diferentes formas de ver o mundo, os diversos modos de construção do imaginário, por assim dizer.

35

Moral Values and Political Behaviour in Ancient Greece, New York, 1972, pp. 101.

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87 2.2. Neoptólemo, o filho de Aquiles O filho de Aquiles, no Filoctetes, é um jovem inexperiente em relação aos assuntos da guerra e está de fato cumprindo a sua primeira missão de caráter estritamente militar.36 Seu percurso na peça é comparável a um rito de iniciação. O jovem aparece em cena num primeiro momento revestido de valores arcaizantes, oriundo de sua própria physis que é ser filho de Aquiles, ou seja, Neoptólemo é quase uma réplica do que seria seu pai. Neoptólemo acompanha Odisseu por um desejo de kléos, isto é, de honra, de glória, de fama guerreira. E é preciso entender que esse desejo de honra na versão arcaizante está ligado ao desejo de um reconhecimento do outro, ou melhor dizendo, ao desejo do reconhecimento da comunidade guerreira, àquilo que os outros dirão ao seu respeito.37 Assim, R. P. Winnington-Ingram afirma que Neoptólemo é uma criança, filho de um pai famoso, recém chegado de Ciros para uma sociedade de outros guerreiros famosos. O seu acompanhante também tem um nome consagrado entre a elite guerreira e Neoptólemo está impressionado com Odisseu, “a quem, sem dúvida, deseja impressionar. Quando ouve que seu papel é fazer parte da trapaça, recua; isso não está na tradição de Aquiles, não é consoante com sua phýsis.”38 É bom lembrar que Odisseu, para cooptar o jovem para seu plano, sempre evoca a origem paterna de Neoptólemo, chamando-o “filho de Aquiles” (vv-3-4; v. 50, vv. 79-80; v. 96, entre outros). Cada um desses usos apresenta uma certa coloração. No prólogo, a primeira vez em que ocorre tem uma função de nos informar quem é a 36

Esta é a idéia de Bernard M. W. Knox, The Heroic Temper: “This expedition to Lemnos is in fact his first exploit.”, Berkeley, 1983, 122. 37 Veja-se de A. J. Podleki, “The power of the word in Sophocles”, GRBS, vol. 7 (1966), p. 238. 38 Sophocles: an interpretation, Cambridge, 1980, p. 283.

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88 personagem que acompanha Odisseu (vv. 3-4); na segunda, apenas o identifica pela origem (v. 50), já que o que se segue é a proposta de enganar Filoctetes. Na terceira vez (vv. 7980), no momento em que Odisseu está na conclusão de sua argumentação em favor de sua trapaça, ele visa a demonstrar o reconhecimento de Odisseu às diferenças do caráter entre os dois. No quarto vocativo (v. 96), como disserta J. C. Kamerbeek, Odisseu mais uma vez tenta introduzir-se nas graças de seu acompanhante, referindo-se ao seu pai como um nobre. “Depois introduzindo o argumento tirado de sua própria experiência: mostra que as palavras são mais poderosas que os fatos.”39 Ainda se pode observar que Neoptólemo é tratado ao longo da peça como uma criança. Harry C. Avery faz um cálculo que indica que só Filoctetes o chama de pai~ ou tevknon, pelo menos umas cinqüenta e duas vezes.40 Assim, a relação de Odisseu e de Filoctetes com Neoptólemo está marcada por uma espécie de hierarquia que se estabelece entre os homens mais velhos e o mais jovens, sendo que com Filoctetes ainda há o elo de amizade entre Filoctetes e Aquiles, o que os torna ainda mais próximos, sem contar da amizade de Filoctetes com Héracles.41 A primeira reação de Neoptólemo à proposta de Odisseu (vv. 86-95) é a mais esperada possível porque corresponde exatamente àquilo que se espera do filho de Aquiles, isto é, porque reage de acordo com sua “natureza”, portando de acordo com sua linhagem nobre. Sua aceitação em participar do plano enganoso de Odisseu passa por esse mesmo viés. Confirmam-se os seus valores mesmo quando aceita enganar Filoctetes porque julga estar conquistando o reconhecimento da comunidade guerreira. Por isso, como 39

The Philoctetes, part VI, Leiden, 1980, p. 40. “Heracles, Philoctetes, Neoptolemus”, HERMES, nº 89 (1961), p. 285. 41 Idem, ibidem. 40

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89 bem notou B. M. W. Knox, Neoptólemo e Odisseu são estranhos companheiros42. É assim que Odisseu, conhecendo a natureza do jovem, evoca em sua proposta o status heróico e hierárquico do jovem (vv. 50-53). O jovem, embora seja de linhagem nobre, deve respeitar a escala hierárquica. Odisseu expõe seu plano que, de acordo com um código guerreiro, no entanto, seria algo inescrupuloso, indecoroso, vergonhoso. Por isso mesmo, conclui: Sei também que não é de tua natureza dizer essas coisas nem maquinar coisas sórdidas, mas, certamente, é doce tirar lucro da vitória. Ousa: mais tarde justos pareceremos; porém, agora, por uma pequena parte indecorosa do dia, entrega-te a mim, e, depois, no tempo restante, sê aclamado o mais escrupuloso de todos os mortais! (vv. 80-85)

Com essa conclusão, Odisseu resumo tanto o seu caráter como o seu modo de agir, constratando o seu modo de agir com a natureza de Neoptólemo. Além de empregar termos como tecnevsqai kakav, que revelam a ação de Odisseu, Sófocles destaca seu caráter pragmático com a expressão “é doce tirar lucro da vitória”. O aspecto pernicioso de Odisseu aparece de outro modo, quando o mercador, que, a nosso ver, é uma extensão de Odisseu diz que de Odisseu se dizem palavras “vergonhosas e injuriosas, astucioso” (vv. 606-08). Mas examinando o termo kth~ma (vantagem, lucro), encontramos algo mais revelador: a vantagem liga-se à idéia de comércio, de transação política, típica de um herói que no texto se caracteriza pelos excessos advindos da “civilização”, pelos excessos de “urbanidade”, desenhando a imagem de um indivíduo que usa de manobras táticas para obter fins políticos. 42

The Heroic Temper, p. 121.

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90 Na verdade, o modo de agir de Odisseu aqui também se pauta sobretudo pelo uso relativizador da palavra, como Atenas viu desenvolver pelo próprio vicejar da escola sofística no século V a. C. Sófocles dispunha, na verdade, de um vasta tradição que propunha a figura de Odisseu avesso ao confronto físico, avesso ao combate corpo a corpo, mas afinado ao uso excelente da palavra.43 Mas a excelência da palavra de Odisseu está comprometida com a idéia de lucro e de vitória a qualquer preço. Ressalte-se que esse seu domínio aparece sob diversas formas: ODIS. Filho de pai honesto, eu também, quando era jovem, tinha a língua inativa, mas a mão ágil; mas agora, por experiência própria, vejo que para os mortais a língua, não as ações, tudo conduz. (vv.96-99)

Aqui temos o que é o mais valoroso para Odisseu: a palavra, através dessa metáfora que até nossos dias mantémse. Senhor absoluto do “falar”, Odisseu no Filoctetes, colocase como um hierofante guiando o jovem inexperiente como o dono de um saber cujo domínio reside, na verdade, na pura manipulação da palavra. Sua única proposta é que o jovem engane Filoctetes pela palavra (cf. vv. 54-55). Neoptólemo quer saber se ele não julga vergonhoso dizer mentiras, ao que ele responde: ODIS. Não, se a mentira traz a salvação (v.109). E para Odisseu a salvação está associada imediatamente ao lucro: ODIS. Quando se faz algo para lucro, não convém hesitar. (vv. 111)

Se não fosse um ingênuo anacronismo, diríamos que estamos diante de um Maquiavel do mundo antigo, pois é evidente que, para Odisseu, “os fins justificam os meios”, máxima que vulgarizou o pensamento do autor de O Príncipe. Odisseu, então, ainda pode ser entendido como uma espécie 43

Ulysses’ Theme, sobretudo as anotações de W. B. Standford sobre a origem de Odisseu, e também L. R. Farnell, Greek Hero Cults and Ideas of Immortality, Oxford, 1921.

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91 de eminência parda, já que, quando é necessário apontar o responsável pelos seus atos, encontramo-lo sob ordem de outrem ou sob o escudo dos próprios deuses (Cf. os vv. 6; v. 75-76; vv.989-90; vv. 1007-08; vv. 1293-94). O contraste entre a figura de Odisseu e Neoptólemo é bem marcado no prólogo, constituindo-se em mais um elemento de tensão dramática. Assim, guiado por esse Odisseu, o jovem filho de Aquiles é levado a um mergulho no mundo da dissimulação. Notemos que o mesmo espaço que serve para isolar, literalmente, Filoctetes do contato com aquilo que hoje chamamos de civilização, ou seja, a forma de vida organizada pela pólis, seve para que o jovem deixe seu mundo original, anule seus valores temporariamente e, a partir de novos instruções, volte à sua disposição natural modificado. É a Lemnos que Neoptólemo vem com Odisseu como ajudante de instruções (vv. 24-25). O jovem não contesta em nenhum momento essa definição de papéis feita por Odisseu. Há entre eles, desde o prólogo, um acordo tácito, que aparece diluído sob a forma de ameaça (vv. 73-76). Odisseu é quem dita as regras da encenação a ser feita diante de Filoctetes. O objetivo principal dela é roubar (e*kklevyei", vv. 55, agarrar, tomar (lavbein, v. 101), caçar (qhrateva, v. 116), enganar (dovlo", v. 102) e dizer mentiras (yeudh~ levgein, v. 100). Esse vocabulário, como bem mostrou Pierre Vidal-Naquet no Mito e tragédia na Grécia antiga, está ligado também aos ritos de iniciação dos jovens ao mundo dos adultos guerreiros.44 Ora, para que ocorra a passagem do jovem para o mundo adulto, a neutralidade do espaço não é suficiente. Além do afastamento físico, é preciso que ocorra o afastamento moral, isto é, que o jovem abandone sua própria natureza e atravesse um território desconhecido, em que o jovem se 44

Cf. “O Filoctetes de Sófocles e a Efebia”, São Paulo, 1999, pp. 125-145.

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92 mostra absolutamente inepto. Do que se pode observar nas iniciações da diferentes culturas humanas, esse afastamento do mundo original implica, inclusive, um ferimento que aparece sob a imagem de um sacrifício ou até mesmo de uma morte simbólica para um segundo renascimento.45 Neoptólemo afastado da casa paterna, Ciros, afastado do conjunto cívico, o exército grego acampado em Tróia, em Lemnos é convidado a se afastar de sua própria fuvsi". Sua primeira recusa em aceitar a tarefa proposta por Odisseu revela seus valores arcaizantes (vv. 86-95). Como todo iniciado, Neoptólemo sofre um ferimento, porém, não físico, mas de ordem moral, que aparece já no prólogo (a*lgw~, v. 86 as palavras que me custam ouvir) e que reaparece no momento em que decide revelar a Filoctetes o plano de Odisseu (v. 899). A dor moral de Neoptólemo contrasta com a dor física de Filoctetes, que é real e que tem desdobramentos no campo da moralidade e da ética também. A dor de Neoptólemo é somente moral e revela o corte profundo que sofreu em sua fuvsi": FILOC. Será que a repugnância da doença te persuadiu a não mais me levar como marujo? NEOP. Tudo é repugnante, quando, a própria natureza tendo abandonado, fazem-se coisas não convenientes. (vv. 900-04)

Para Neoptólemo, ter enganado Filoctetes é indecente e ele próprio é motivo de reprovação e vergonha (ai*croV" fanou~mai, v. 906) e passa até ali por um processo que precisa ser desvelado (ou*deVn se kruvyw, v. 915). Ao revelar todo o plano de Odisseu a Filoctetes, o jovem retorna à sua própria natureza identificada em Filoctetes. No 45

Cf. para a discussão sobre as iniciações de adolescentes o artigo “The Archetype of Initiation”, de J. L. Henderson in Man and his symbols, New York, 1978, pp. 120-28.

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93 entanto, por ter aceitado e ter participado do plano enganoso - o que faz com certa maestria -, o jovem deixa de ser jovem para ingressar no mundo adulto e conhece agora as regras do jogo do poder. Neoptólemo não é agora apenas um homem preparado para o combate, para isso bastavamlhe o caráter e a disposição física, herdados do pai, mas por ter participado de um processo de conquista que leva em conta o poder enganoso das palavras, enxerga o mundo com outros olhos. Em uma palavra, o jovem vindo de um mundo heróico, agora olha o mundo com os olhos da pólis e suas necessidades. 2.3. Filoctetes A personagem principal da peça é o Filoctetes, figura em torno da qual toda a ação dramática se desenvolve, como é característico nas peças de Sófocles. Sua entrada em cena é retardada, passando por um prólogo e por um párodo inteiro. Diferente da entrada majestática e solene em cena de um Édipo, no Édipo Rei, como bem assinalou David Seale, a entrada de Filoctetes “é uma visão que causa espanto e piedade, seu corpo coberto com peles de animal e seu pé ferido.”46 Sua primeira manifestação verbal em cena não é uma fala, mas um grito: “Ai, estrangeiros! (v. 219). O poeta ao retardar a entrada em cena de Filoctetes cria assim uma expectativa dramaticamente interessante que torna mais significativa sua aparição. Filoctetes nota que os homens diante dele são gregos pelo aspecto da roupa, mas deseja ouvir-lhes a voz (vv. 223-24). Então, a palavra aqui tem uma função diferente da que tem para Odisseu. Aqui ela se torna um sinal de reconhecimento e de identidade. Filoctetes reconhece seu aspecto grotesco e repelente aos estrangeiros (vv. 224-25), mas em nome da amizade exige uma resposta. À resposta curta e calculada de 46

Vision and Stagecraf, p. 31.

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94 Neoptólemo (vv. 232-33), Filoctetes explode em exclamações de alegria ao ouvir o som da voz humana, sobretudo o som da língua grega. Ao “não reconhecimento” de Neoptólemo, a alegria do início do episódio cede lugar para um sentimento adverso (vv. 354-59). Em uma sociedade, que privilegia a palavra falada como forma de comunicação e como forma máxima de preservação da memória, o rumor (klhdwvn, v. 255), que tem sua origem na mesma raiz de klevo", isto é, no verbo klevw, é aquilo que se diz do outro e, ao mesmo tempo, a única forma de não ser esquecido, de receber o reconhecimento do outro pelos feitos realizados ou sofridos.47 Assim, o esquecimento dos sofrimentos padecidos por Filoctetes ultrapassa a dor física causando uma chaga moral. Filoctetes, a quem o coro já assinalara no párodo pertencer às primeiras famílias, portanto de estirpe nobre, é vítima da afronta dos Atridas e de Odisseu. É preciso notar que o isolamento de Filoctetes lembra em muito o afastamento de Aquiles na Ilíada, que praticamente se marginaliza do combate por ter sido injustamente afrontado pelos Atridas, mormente por Agamêmnon.48 Como notou Joe Park Poe, o isolamento forçado do Filoctetes tem diferenças do de Aquiles, porque “Aquiles se auto exila enquanto Filoctetes é um paria. Ele não põe em movimento a série de eventos que o destroem nem toma decisão própria qualquer que seja até cerca do verso 1350 de uma peça de 1470 versos.”49 Diferentemente de Aquiles que cria o seu próprio isolamento, a Filoctetes impõe-se uma vontade exterior que 47 Cf. Odisséia, canto V, vv. 209-312 e o artigo de Jean-Pierre Vernant “A bela morte e o cadáver ultrajado”, in DISCURSO, nº 9 (1979), pp. 4041. 48 Veja “The role of the bow in the Philoctes”, em que Philip Whaley Harsh lê a recusa de Filoctetes semelhante à recusa de Aquiles na Ilíada, in AJP, nº 81 (1960), p. 410. 49 Heroism and Divine Justice in Sophocles’ Philoctetes, Lugdini, 1974, p. 13.

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95 é a vontade dos deuses. Filoctetes não deseja outra coisa a não ser a companhia dos outros guerreiros e o reconhecimento deles.50 Bernard M. Knox já havia notado que Filoctetes é o mais solitário dos heróis de Sófocles.51 Mas ainda como adverte J. P. Poe, o único estudioso que percebeu a exata dimensão da solidão de Filoctetes é Jan Kott.52 Para Jan Kott, “Filoctetes é lançado à mais baixa condição humana.”53 É a um nobre de origem, possuidor de armas poderosíssimas (v. 105), gloriosas (v. 654), sagradas (vv. 65556), que Neoptólemo, persuadido por Odisseu, engana. Filoctetes vê no jovem um amigo a quem, durante o ataque de sua doença, entrega de boa vontade, sem a necessidade de persuasão, as armas sagradas, tão desejadas por Odisseu. Como já se observou, o andamento da ação dramática no Filoctetes é lenta, arrastada. A entrega das armas é demorada, no segundo episódio, seguida do ataque da doença, uma espécie de convulsão, que a personagem tem em cena diante dos olhos do público. E é esse estado quase moribundo de Filoctetes que vai provocar a mudança na decisão de Neoptólemo, que abre o terceiro episódio (a partir do v. 865). A recusa de Filoctetes aceitar a proposta do jovem, que de certa forma ainda é a proposta de Odisseu, leva a peça a uma aporia que só se resolve com a aparição de Héracles, que no final o Neoptólemo garante que vai levar Filoctetes para casa e não para Tróia. 2.4. Héracles Segundo H. D. F. Kitto, Sófocles teria criado no público um desconforto, pois todo o ateniense ali presente 50

Idem, ibidem, pp. 13-14. The Heroic Temper, p. 32. 52 Heroism and Divine Justice, p. 17. 53 The Eating of the Gods, p. 262. 51

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96 no teatro sabia que Filoctetes teria ido a Tróia, foi curado de sua chaga e matou Paris com as gloriosas armas de herdadas de Héracles.54 Sófocles teria, então, utilizado de um expediente para resolver um problema sem solução? Tecnicamente seria perfeito o uso de um deus ex machina. Alguns estudiosos vêem nesse recurso uma clara influência da técnica dramatúrgica de Eurípides, já que nas peças restantes de Sófocles esse recurso não é usado. Mas a resposta que nos parece mais plausível, tendo em conta o andamento da peça, da ação dramática, é a de Karl Reinhardt que, mesmo considerando o uso do deus ex machina como uma influência de Eurípides, postula que em Sófocles ela receberia um espírito novo55. Se a influência de Eurípides está só na forma, é preciso var qual é o tratamento novo que Sófocles teria imprimdo ao uso do deus ex machina. Como solução para o nó da intriga indissolúvel por si mesma, ainda que seja exeterior à ação, a chegada de Héracles é algo que poderia, com certeza, caracterizar-se como uma solução fácil, como um expediente para arrematar um assunto que se esgotou. Ainda seguindo as reflexões de Karl Reinhardt, sabemos que o deus ex machina não vem desatar um nó inextricável, mas que sua presença arquetípica já se podia vislumbrar desde o princípio da peça e sua aparição é necessária porque restabelece a medida em que homem é medido.56 Mas que Héracles é esse que aparece ex machina no Filoctetes? O Héracles que surge no êxodo atribui sua intervenção ao próprio Zeus. Sua voz não pronuncia os lovgou" humanos, mas muvqou", resultados de uma deliberação divina, do próprio Zeus (taV DioV" te fravsswn bouleuvmata soi/kateretuvsswn q’ o&doVn h$n stevllh/, 54

Greek Tragedy, London, 1966, p. 308. Sophocle, Paris, 1971, p. 248. 56 Idem, ibidem. 55

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97 tanto para te confirmar as deliberações de Zeus/ como para reter o caminho pelo qual partes, vv. 1415-16). Sua fala não é um discurso qualquer que pode ser submetido a um contradiscurso, ao discurso do outro, mas sim é um discurso único, que só tem uma possibilidade de exeqüibilidade. Assim a intervenção de Héracles impede que as ações humanas resultem em uma perda irreparável e ao mesmo tempo inadmissível: que Filoctetes voltasse a casa e não fosse à Tróia munido das armas sagradas. Na verdade, há uma estreita relação entre toda a história de Filoctetes e a morte apoteótica de Héracles, associando-as num relato de sofrimento, libertação e de conquista de glória imortal. Héracles, sendo filho de Zeus com Alcmena, uma mortal, é um dos poucos que consegue a imortalidade depois de ter sido incinerado vivo. A morte de Héracles foge aos padrões humanos e mesmo heróicos, porque o deus não morre em campo de batalha ou de velhice. Queimado enquanto ainda vivia, Héracles tem no Hades seu espectro que corresponde à sua porção humana. Sua amizade com Filoctetes fica selada pelo gesto de generosidade de Filoctetes ser o único que tem coragem de atear fogo à sua pira funerária no monte Eta. Como um h&rw~"-qeov"57 tem um culto híbrido, pois é venerado como um deus olímpio, recebendo um culto olímpio, como também é venerado como um herói, recebendo um culto ctônico.58 É a partir desse duplo aspecto de Héracles é que é possível estabelecer algumas ligações dele com todo o desenvolvimento da ação do Filoctetes. Pierre Vidal-Naquet alerta-nos que o Héracles invocado e manifesto no Filoctetes “não é o Héracles arqueiro, o caçador, matador de animais selvagens, mas

57

Essa expressão aparece pela primeira vez em Píndaro, Iª Pítica. Cf. M. S. Silk, “Herakles and Greek Tragedy”, in Greece & Rome, vol. XXXII, nº 1 (1985), p. 5. 58

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98 como um pai de Filoctetes, é o& cavlkaspi" a*nhVr, “o guerreiro de escudo de bronze”, um Héracles hoplita.”59

Porém, sua primeira manifestação na peça dá-se através de um objeto de cena de suma importância para a ação dramática: o arco, que é um objeto desejado por Odisseu em detrimento de Filoctetes. É desejado também por Neoptólemo, que vê nele uma espécie divindade. Podemos dizer que, pela sua importância e significação dentro da ação dramática que as armas representam, na ausência de Héracles, a sua presença emblemática. Para Filoctetes ainda o arco significa a manutenção da vida, pois com ele caça animais selvagens para sua sobrevivência do modo mais primitivo. Por outro lado, o arco é um instrumento que causa a morte e seu destino último é o de, nas mão de Filoctetes, matar Paris, caçar, por assim dizer, o inimigo. Filoctetes, ao usá-lo apenas para seu sustento, desvia-o se sua a*rethv, imprimindo-lhe a extensão de seu próprio estádio selvagem. Mas a que se deve o próprio estádio selvagem de Filoctetes? Novamente outra conexão com Héracles, agora, com o seu sofrimento. Ao livrar Héracles do sofrimento, Filoctetes herda as armas, mas deverá, como seu donatário, sofrer as conseqüências da posse das poderosas armas sagradas e, não é à toa que Filoctetes recomenda cuidado ao jovem quando as entrega (vv. 776-78). A doença de Filoctetes, por seu turno, estaria imediatamente associada ao aspecto subterrâneo de Héracles. Os indícios são muitos. A própria ferida no pé, oriunda de uma picada de serpente bastaria para que, embora fosse divina, como afirma por duas vezes Neoptólemo (vv. 191-200 e vv. 1328), revelasse o aspecto ctônico de sua natureza. O seu abandono em uma ilha vulcânica e por isso mesmo por excelência atribuída a Hefesto, deus por excelência também ctônico. A caverna em 59

Mito e tragédia na Grécia antiga, p. 140.

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99 que Filoctetes se mantém vivo, além de apontar para uma idéia de moradia primitiva, é vista como um ponto de intersecção entre o mundo inferior, ctônico e o mundo superior. A própria deusa Terra-mãe, invocada em um dos interlúdios líricos coral (vv. 351-402) aparece sob seus aspectos subterrâneos e noturnos. Além disso, se há um desencontro de ideário entre Odisseu e Neoptólemo, assinalado desde o prólogo, há diferenças ainda por resolver entre Neoptólemo e Filoctetes. A união indevida entre o jovem e o guerreiro, que visa, em última instância, a punir os gregos com a deserção, é uma afronta à proclamação do oráculo de Heleno, conhecida até o final da peça por ambos. Assim, como observou Anthony J. Podlecki, com a vinda de Héracles, temos “a elocução de uma voz divina contra a qual não pode haver objeção nenhuma.”60 O discurso humano por excelência, o lógos, gera desentendimento, ambigüidades e está em crise. A desmoralização de Odisseu nessa peça pode ser entendida como uma visão crítica ao uso retórico da linguagem emprega pelos sofistas, ou uma crítica ao entendimento que sofística fazia da linguagem. Em 423 a. C., Aristófanes já fizera em As Nuvens uma crítica severa à toda formulação sofística de conhecimento, perpassando pelo uso da linguagem. No Filoctetes, Sófocles, problematizando quase que os mesmos tópicos tocados por Aristófanes, ressalta a necessidade do aprendizado pelo sofrimento para que se alcance o reconhecimento. Héracles apresenta-se, então, como um modelo ético, não só para Filoctetes, também para Neoptólemo e para todo o público: E a ti primeiramente mencionarei o meu destino, por tantos sofrimentos sofrer e suportar, imortal excelência obtive, que podes ver. 60 “The power of the word in Sophocles’ Philoctetes”, GRBS, vol. 7 (1966), pp. 244-45

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100 E a ti, fica sabendo, cabe isso sofrer, para, a partir destes sofrimentos, teres vida gloriosa. (vv. 1418-21)

Portanto, Héracles justifica todo o sofrimento de Filoctetes, destruindo qualquer conjectura sobre sua fonte. E esse sofrimento só faz sentido na medida em que é uma etapa para o alcance de uma vida gloriosa e obter uma excelência imortal (a*qavnaton a*rethvn, v. 1420). A W. Adkins chama a atenção para o sentido da palavra areté no final do século V. A conotação de disputa entre os iguais perde o seu lugar para, na cidade, ganhar a idéia de cooperação mútua.61 Essa idéia de cooperação aparece quando Héracles recomenda uma forma do combate hoplítico: (...) E a ti, filho de Aquiles, o seguinte aconselharei, pois nem tu sem ele és forte para capturar a planície de Tróia, nem ele sem ti, mas igual a dois leões aliados vigiai, ele a ti e tu a ele. (...) (vv. 1433-37)

Neste momento também, Héracles está conferindo ao jovem o status de um homem igual a Filoctetes62. Assim, a proposta de Héracles oposta à de Odisseu recupera a necessidade da aliança entre dois homens. O arco recupera o seu papel de instrumento apenas, meio, não fim. O objetivo é alcançar a vitória, matando Paris. A aparição de Héracles é a aparição de um agente recosmizador, restabelecendo a piedade até então negligenciada por todos (vv. 1440-44). Acima de tudo está a piedade (eu*sevbeia) que se confunde com o próprio Zeus. Héracles associa a excelência imortal à tolerância nas adversidades, uma idéia já comum à aristocracia guerreira. O próprio Filoctetes exalta o 61

Moral Values and Political Behaviour in Ancient Greece, p. 99 Veja a conclusão de Pierre-Vidal Naquet em Mito e tragédia na Grécia antiga, p. 139.

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101 seu próprio caráter nobre justamente por que foi capaz de suportar os dez anos de Lemnos, numa palavra: manteve-se (eu*kavrdio", v. 535). Charles Segal entende que em termos humanos a ação da peça está completa no verso 1408, porque ambos estão confirmados em grandeza “heróica de sua natureza essencial: “Neoptólemo em sua coragem, companhia e sentido de honra; Filoctetes em sua capacidade de suportar o sofrimento, sua força de desejo e integridade moral.”63 Portanto, a dimensão humana

está limitada, restando ao homem a piedade, que aqui aparece independente dos mortais. Héracles, obtendo de Filoctetes sua ida a Tróia, garante também a perfeição do oráculo. Sua intervenção reveste a viagem de Filoctetes de uma aura em que estão excluídos Odisseu e os Atridas - seus nomes sequer são mencionados nesse momento. Filoctetes acata o verbo de Héracles de forma absolutamente diferente do que fez com as proposições de Neoptólemo. Parece que a reconciliação não se dá apenas no nível das relações interpessoais, mas também em seu interior ocorre uma mutação que se reflete na sua forma de apreender o mundo. Lemnos, que abre a peça, também a fecha. De um espaço íngreme, inóspito para a vida, passa a um local verdejante, cheio de pradarias e fontes, prenhe de vida (v. 1452-68). A ameaça de subversão da ordem estabelecida por Zeus está impedida. 2.5. À guisa de conclusão Não comentei aqui o coro composto pelos marinheiros que acompanham Odisseu e Neoptólemo na missão, nem a participação do marinheiro disfarçado de mercador, já que são uma extensão de Odisseu. O que quis ressaltar é que Sófocles parece-nos estar preocupado com o 63

“Philoctetes and the imperishable piety”, HERMES, 105 (1977).

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102 poder da palavra usada entre os homens. Se a tragédia grega, é um acontecimento absolutamente inserido em seu contexto histórico, como foi afirmado por Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet, o Filoctetes é uma clara expressão desse envolvimento do homem com seu tempo. Não se desconhecem as profundas crises por que passava a sociedade ateniense por volta de 409 a. C. com a guerra. No Filoctetes, a guerra não é questionada em sua natureza, em seus efeitos, como muitas vezes se pode depreender dos textos de Eurípides. Sófocles utiliza-a apenas como um pano de fundo que dá realce à ambição da vitória sem escrúpulos, à recusa do combate sem reflexão. Não podemos dizer, a partir do texto que Sófocles seja partidário das guerras. O foco mais importante está na idéia da correção dos atos humanos. O deus surge para não permitir que os desvios produzidos pelo discurso humano levassem a vitória. A vitória, o ganho é o reconhecimento da vontade divina. A trama urdida por Odisseu teve de dar lugar à trama divina que se reveste de piedade. A piedade, encarnada na própria vinda de Héracles, restabelece a vida, inclusive modificando o próprio espaço. Filoctetes sai de Lemnos para Tróia onde conquistará a excelência imortal prometida somente por Héracles. Durante o espetáculo de quase uma hora meia, que é o tempo que duraria uma encenação do Filoctetes, vemos desfilar diante de nossos olhos personagens que encarnam valores morais e o conflito entre os diferentes caracteres ganham realce. Bruno Snell, num brilhante artigo intitulado “From Tragedy to Philosophy”, propõe que a tendência de Eurípides em suas últimas peças é passar do drama à Filosofia, tomando como base de sua análise a Ifigênia em Áulis. Talvez, o mesmo possa se aplicar às duas últimas peças de Sófocles, o nosso Filoctetes e Édipo em Colono,

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103 justamente pela aproximação com o modo de fazer tragédia de Eurípides.64 Tentamos mostrar aqui que no Filoctetes o uso da palavra revela o caráter das personagens e com isso Sófocles adensa mais a discussão sobre a crise de valores que a sociedade ateniense vivia no final do século V. 3. Bibliografia ADKINS, A. W. K. Moral Values and Political Behaviour in Ancient Greece. New York; WW. Norton & Co. Inc., 1972. AVERY, H. C. “Heracles, Philoctetes, Neoptolemus” in HERMES, nº 89 (1961), pp. 279-97. BOWRA, C. M. Sophoclean Tragedy. Oxford: Oxford Clarendon Press, 1944. BUXTON, R. G. A. “Blindness and Limits: Sophocles and the Logic of Myth”. in The Jounal of Hellenic Studies, vol. C (1980), pp. 22-37. HARSH, P. W. “The role of the bow in the Philoctetes”. in American Journal of Philology, nº 81 (1960), pp. 408-414. HENDERSON, J. L. Man and His Symbols. New York, 1978. KITTO, H. D. F. Greek Tragedy. London, 1966. KNOX, B. M. The Heroic Temper. Studies in Sophoclean Tragedies. Berkeley: University of California Press, 1983. KOTT, Jan. The Eating of the Gods. London: Methuen, 1974. FARNELL, L. R. Greek Hero Cult and Ideas of Immortality. Oxdord: Clarendon Press, 1921. 64

Veja “Quando Eurípides influencia Sófocles: um estudo sobre a estruturação da poesia trágica grega”, in Teatro em Debate, São Paulo, 2003, pp. 105-118.

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104 FERREIRA, J. R. e GUIMARÃES, C. Filoctetes em Sófocles e em Heiner Müller. Coimbra: Faculdade de Letras, 1987 PODLEKI, A. J. “The Power of Word in Sopocles’ Philoctetes”. in Greek, Roman, and Byzantine Studies, vol. 7 (1966), pp. 223-50. POE, J. P. Heroism and Divine Justice in Sophocles’ Philoctetes. Lugduni Batavorum: E. J. Brill, 1974. REINHARDT, Karl. Sophocle. Trad. francesa de Emanuel Martineau. Paris: Ed. Minuit, 1971. SANTOS, F. B. dos. “O deserto no homem desertado (reflexões sobre a concepção cenográfica da tragédia Filocetes de Sófocles”. in: ALFA, São Paulo, vol. 34 (1991) pp. 161-167. ___. “O termo sophós ( sofov") no Filoctetes de Sófocles”. in XII Anais de Seminários de GEL, Ribeirão Preto – SP, vol. II (1993) pp. 1138-1145. ___. “Quando Eurípides influencia Sófocles: um estudo sobre a estruturação da poesia trágica grega”, in Teatro em Debate (L. Facchin e Maria Celeste C. DEZOTTI (org.). São Paulo/Araraquara: Cultura Acadêmcia e Lab. Editorial, 2003, pp. 105-109 SILK, M. S. “Heracles and Greek Tragedy”. in Greece & Rome, vol. XXXII, nº 1 (1985), pp. 1-22. SEGAL, Charles. Tragedy and Civilization. An Interpretation of Sophocles. Cambridge/London: Harvard University Press, 1981. ___. “Philoctetes and The Imperishble Piety”, HERMES, 105 band, heft 2 (1977), pp. 133-158. SNELL, Bruno, “From Tragedy to Philosophy”, in SEGAL, E. Oxford Readings in Greek Tragedy. Oxford: Oxford University Press, 1983. SOPHOCLE. Philoctète-Oedipe à Cologne. Tome III. Texto estabelecido por Alphonse Dain e traduzido por Paul Mazon. Paris, “Les Belles Lettres”, 1974.

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105 SOPHOCLES. Philoctetes. The Plays of Sophocles. Part VI. Editado por J. C. Kamerbeek, Leiden, E. J. Brill, 1980. STANDFORD, W. B. The Ulisses’ theme. A Study in the Adaptability of a Traditional Hero. 2nd Ed. Oxford: Basil Blackwell, 1968. VERNANT, Jean-Pierre e NAQUET, Pierre-Vidal. Mito e tragédia na Grécia Antiga. Trad. de vários. São Paulo: Perspectiva, 1999. VERNANT, Jean-Pierre, “A bela morte e o cadáver ultrajado” in DISCURSO nº 9 (1977), pp. 31-62. WINNINGTON-INGRAM, R. Sophocles: an Interpretation. Cambridge: The Alden Press, 1980.

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A técnica do trajo Uma lição ao vivo de crítica teatral em Aristófanes Maria de Fátima Sousa e Silva Universidade de Coimbra RESUMO: Ao longo da sua carreira teatral, Aristófanes teoriza com frequência sobre a importância do trajo no processo de mimesis, que dá origem à criação literária. Assim o trajo serve não apenas para conformar a natureza do poeta com a obra criada, como também para estimular no actor, e através dele no espectador, uma determinada impressão ou emoção. Nesta perspectiva, Aristófanes presta atenção às inovações que se vão introduzindo, com sucesso, na tragédia, sobretudo com os poetas nova vaga, Eurípides e Ágaton; Acarnenses e Tesmofórias são, desta caricatura, exemplos significativos. Mas a própria comédia procede a inovações ousadas, de que Rãs são o mais notável exercício. PALVRAS-CHAVE: mimesis – trajo – efeitos de cena ABSTRACT: During his career, Aristophanes makes a lot of considerations on the importance of the costume in building mimesis, a concept fundamental to the dramatic creation. So the costume is useful not only to adapt the poet’s nature to his play, as well as to stimulate in the actor, and through him in the spectator, an impression or an emotion. Under this perspective, Aristophanes pays attention to the innovations being successfully introduced in tragedy, mainly by revolutionary poets as Euripides or Agathon; Acharnians and Thesmophoriazusae are impressive examples of this kind of caricature. But comedy itself also makes extreme innovations, being the Frogs a remarkable exercise on costume potentialities. KEYWORDS: mimesis – costume - performance

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107 Esta é a opção de um sujeito com miolo e bom senso, que muito navegou já: a de viajar sempre com vento de feição, e de não se manter, como se de uma pintura se tratasse, numa atitude rígida, única e permanente. Rãs 534-538 São estas as palavras com que o coro de Iniciados saúda, em Rãs, a capacidade que o deus do teatro, Dioniso, vem mostrando, nas lonjuras e perigos dos caminhos infernais, de alterar, a cada momento e em harmonia com as circunstâncias, a sua identidade, por uma oportuna e simbólica troca de trajo. Sob o grotesco da situação de um deus cobarde revestido da pele de um herói, o coro, com clarividência, registra uma lição de técnica teatral, essa a carácter com a verdadeira identidade do patrocinador da arte dramática: a de um criador que sabe, de acordo com o desafio de cada exigência particular de uma criação, ajustarlhe os agentes / actores, através de uma mobilidade de que o trajo é um elemento essencial. Nesta sua índole versátil, o fenómeno teatral difere, pelo tipo de sugestão ou de adaptação de que é capaz, da pintura, que ao produzir a mimesis - a imitação ou recriação – se satisfaz com traços fixos e permanentes. Uma sugestão poderosa de vida, que é própria da reprodução cénica, está ausente daquela de que a pintura é capaz. Há, porém, um pressuposto em que as duas artes coincidem: a construção que cada uma promove da figura representada segue uma estratégia orientada do exterior para o interior, de uma configuração superficial e visual, até uma dimensão psicológica, que deverá ter correspondente na sua natureza65. Cabe ao Ágaton66 cómico (Tesmofórias 149-152),

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Sobre a reflexão artística promovida por Aristófanes nas suas produções, cf. M. F. Silva, Ensaios sobre Aristófanes (Lisboa 2007) 11-27.

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108 como símbolo de uma concepção extrema de produção teatral - de resto na linha do Eurípides mais inconformista e inovador -, teorizar, na cena de Aristófanes, sobre a matéria. A culminar uma carreira de profissional de teatro e inúmeras experiências já testadas, o autor de Tesmofórias reconhecia, na caricatura de Ágaton que punha em cena, uma competência natural para doutrinar: ‘Quando se é poeta, deve-se agir de acordo com as peças que se produz, e adaptar-se-lhes o modo de vida’. A que acrescenta a necessária exemplificação (151-152, 154-156): ‘Por exemplo, se se faz peças com mulheres, é preciso que o corpo participe dessa natureza67. (…) Se se faz peças com homens, tem-se no corpo essa outra característica. E aquilo que não possuímos consegue-se pela imitação’. Com estas palavras, Ágaton produzia a ocorrência mais antiga do conceito de mimesis, um princípio de criação artística que se tornou fundamental na teorização poética posterior (cf. Platão, República 392d, 598b;

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Ágaton foi considerado o quarto poeta trágico em qualidade, depois dos três célebres, Ésquilo, Sófocles e Eurípides. A crítica que lhe é feita em Tesmofórias faz-se eco das muitas vozes que se ergueram para lhe louvar os atractivos físicos, que fizeram dele um elemento distinto dos efebos kaloí que Platão imortalizou nos seus diálogos (cf. Protágoras 315d, Simpósio 174a, 212e, 213c). Este homem, tão dotado pela natureza e pela fortuna, encontrou na tragédia um caminho fácil para a glória. O próprio Aristófanes, na caricatura que faz da sua arte polida e trabalhada, da música sinuosa e exótica, lhe assinala os méritos e as novidades, aproximando-o, de resto, de Eurípides nas preferências inovadoras. Aliás, os dois se movimentam na mesma atmosfera cultural, a que o saber sofístico imprimiu uma marca nova e revolucionária. Sobre a personagem de Ágaton e o aproveitamento caricatural que dela fizeram os cómicos, vide W. R. Roberts, ‘Aristophanes and Agathon’, Journal of Hellenic Studies 20 (1900) 44-56; R. Cantarella, ‘Agatone e il prologo delle Tesmoforiazusae’, in Komoidotragemata (Amsterdam 1967) 7-15; M. F. Silva, Crítica do Teatro na Comédia Antiga (Lisboa 21997) 384-411. 67 Cf. infra 167.

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109 Aristóteles, Poética 1447a 16)68. Na concepção que defende, mimesis sobrepõe-se à physis, porque, mesmo se a conformidade entre a natureza do criador parece indissociável da obra criada e só ela capaz de lhe garantir autenticidade, a imitação funciona como um aliado a suprir distâncias; por esse processo meramente técnico, o artista ganha versatilidade e liberta-se dos limites com que a natureza o condiciona; a obra criada, essa, torna-se refém de um claro artificiosismo. A marca de um verdadeiro génio denuncia-se, inevitavelmente, pelo exterior. É incompatível com uma arte autêntica (ámouson, 159) um exterior ‘grosseiro e peludo’. Ágaton faz deste princípio um tópico tradicional de que os bons poetas líricos do passado foram exemplos (Tesmofórias 160-170). Assim Íbico, Anacreonte e Alceu69, responsáveis por um refinamento poético indesmentível, adoptaram uma imagem exterior ao mesmo tempo expressiva e conveniente; do mundo oriental importaram o luxo e um subtil exotismo, de que um turbante e um regime de vida efeminado, ‘à iónica’, funcionaram de logótipo. A mesma teoria se viu importada pela tragédia, desde logo por Frínico70, que, por 68

Sobre a discussão do famoso conceito e sobre o sentido em que é usado neste passo, cf. G. F. Else, ‘Imitation in the fifth century’, Classical Philology 53 (1958) 81; F. Muecke, ‘A portrait of the artist as a young woman’, Classical Quaterly 32 (1982) 54-55; G. Mastromarco e P. Totaro, Commedie di Aristofane II (Turim 2006) 452-453. 69 Ainda que estes três poetas não fossem todos originários da Iónia, adaptaram-lhe o tom e o requinte. Íbico, que provinha de Régio, na Magna Grécia, e Ancreonte de Ceos, na Iónia, desenvolveram a sua actividade poética na corte de Polícrates de Samos, durante o séc. VI a. C. Alceu viveu, no séc. VII a. C., em Lesbos, uma ilha não distante da costa iónica. Sobre a actividade poética que desenvolveram, vide M. H. Rocha Pereira, Estudos de História da Cultura Clássica I (Lisboa 102006) 216, 236-240. 70 Frínico foi um tragediógrafo anterior a Ésquilo e contemporâneo das Guerras Pérsicas, nas primeiras duas décadas do séc. V a. C. Uma das

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110 ser belo, compunha também belas peças. Ou, na distorção cómica que o velho Parente de Eurípides pode fazer das palavras de Ágaton, por outros tantos que, na tragédia, deixaram um traço de grotesco ou de incapacidade: ‘Então é por isso que Fílocles71, que era feio, compunha peças feias, Xénocles72, que era mau, compunha peças más, e Teógnis73, que era frio, compunha peças frias’. suas produções mais célebres intitulou-se Fenícias e teve por tema a derrota de Xerxes, isto é, um contexto afim do dos Persas de Ésquilo. Na comédia, Frínico é referido com admiração, como objecto de uma perene popularidade. Da sua produção dramática, os mais velhos conservavam uma grata recordação (Vespas 269 sq.); nos seus ouvidos, as melodias do poeta tinham deixado a marca inesquecível de uma doce suavidade (Aves 748 sqq.). Envolto em manifesto requinte, Frínico parece incluído num universo ‘à iónica’, bem condimentado de um luxo asiático (Vespas 219 sq.). 71 Fílocles era sobrinho de Ésquilo e a sua categoria como trágico é atestada pelo facto de ter saído vencedor no concurso em que Sófocles apresentou o Rei Édipo. Apesar desta proeza, a comédia ridiculariza-o sempre como mau poeta. Cratino (fr. 323 K.-A.) comenta o modo pouco hábil como Fílocles estruturava as intrigas. Como poeta lírico, a aspereza das suas criações valeu-lhe as alcunhas de ‘filho da salga’ (schol. Aves 281, Vespas 461 sq.), ou de ‘cotovia’ (Aves 1295). Em resumo, o parentesco com Ésquilo não ia além dos laços de sangue, sem envolver os dotes das Musas (cf. Teleclides fr. 15 K.-A.). 72 Quanto ao poeta trágico Xénocles, filho de Cárcino (cf. Tesmofórias 441), Rãs 86 refere-se-lhe como um mau poeta. Platão Cómico (fr. 143 K.-A.) qualifica-o de ‘sujeito dos mil e um artifícios’, numa referência ao uso exagerado de máquinas que fazia no seu teatro, e também à arquitectura complexa das intrigas que criava (cf. schol. Paz 792). Apesar destes testemunhos pouco abonatórios, Eliano (História Verdadeira 2. 8) alude à vitória alcançada por Xénocles, em 415 a. C., sobre Troianas de Eurípides. Além do teatro, o nome deste filho de Cárcino aparece ligado à oratória, que teria cultivado com bastante êxito (cf. 440-442). Por fim, Vespas 1474-1537, parodia os novos esquemas coreográficos em que Xénocles, juntamente com os irmãos, se exibia. 73 Este tragediógrafo aparece associado à mesma ideia de frieza artística em Acarnenses 138-140. Se comparado com o talento de um Ésquilo, a sua inferioridade é manifesta (Acarnenses 10 sq.).

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111 Percebemos, portanto, que a relação que se constrói entre poeta e criação – quer de ordem natural e autêntica, como de artifical ou mimética – inclui uma imagem exterior, o primeiro espelho de uma atitude ou de um carácter. Esta harmonia, em que assenta uma arte de qualidade, constitui uma norma a que os melhores poetas se submeteram; é dessa verdade porta-voz o Ésquilo cómico (Rãs 1058-1061) quando estabelece: ‘Para grandes sentenças e pensamentos, força é criar uma linguagem à altura. Além disso, é natural que semi-deuses usem termos grandiloquentes e, pela mesma ordem de razões, que o trajo que vestem seja também mais imponente do que o nosso’. Não deixa de ser expressiva a ordem pela qual o velho trágico enuncia os elementos do ‘todo-personagem’: como essenciais, a linguagem e o pensamento são evocados em primeiro lugar, deixando ao trajo a posição mais modesta de um acessório secundário. Ou seja, o processo criativo aqui previsto, além da coerência, assenta num movimento inverso ao que Ágaton defendia: construída sobre um miolo coeso e forte, à personagem adere, por fim, um revestimento exterior, sugestivo, mas com a função de um simples acabamento, estético sem dúvida, mas lateral perante os verdadeiros alicerces da construção74. Sob a simplicidade dos comentários cómicos, avultava a questão mais profunda da criação da personagem e da dosagem a conferir a cada um dos seus inevitáveis atributos. Eurípides revestiu, na produção trágica ateniense do séc. V a. C., o papel de um inovador inconvencional e a primeira caricatura que Aristófanes faz da sua intervenção enfatiza precisamente a questão do trajo. O Eurípides que vem a cena em Acarnenses, sobre o ekkyklema75 e rodeado de 74

Igual hierarquia é defendida por Aristóteles na Poética. Sobre o uso do ekkyklema no teatro grego, vide A. W. PickardCambridge, The Theatre of Dionysus in Athens (Oxford reimpr. 1956), 100-

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112 um guarda-roupa farto de andrajos, é o poeta que encheu o teatro de reis mendigos, num esforço por cobrir a ruína que os cerca do aparato de trajos e de acessórios76. Na necessidade em que o herói desta comédia, Diceópolis, se encontra de dirigir, a um auditório adverso, um discurso convincente (416-417) – qual Télefo euripidiano77 -, Aristófanes encontra pretexto para criar em cena, sob os olhos do público, a famosa personagem do trágico. Trata-se, portanto, de vestir um actor, peça a peça, com o trajo que melhor convém à situação que tem de enfrentar, com a colaboração do maior expert em suscitar piedade (383-384, 436)78. À medida que a figura se vai compondo, não só o público é chamado a aderir progressivamente a uma recriação caricatural, como o próprio actor, cada vez mais palavroso e insistente, reconhece o efeito com que ‘um gole de Eurípides’ o vai estimulando à interiorização do papel que 122; P. Arnott, Greek Scenic Conventions in the fifth century B. C. (Oxford 1962) 78-88; O. Taplin, The stagecraft of Aeschylus (Oxford 1977) 442 sq.; C. W. Dearden, The stage of Aristophanes (London 1976) 50-74; A. M. Dale, ‘Interior scenes and illusion’, in Collected Papers (Cambridge 1969) 259-271; N. C. Hourmouziades, Production and imagination in Euripides (Atenas 1965) 93-108. 76 Esta é uma característica do teatro euripidiano que Ésquilo acentua, em Rãs 842, 1063-1064, como globalmente identificadora da arte do adversário. Sobre este motivo euripidiano e a sua caricatura na comédia, vide F. Muecke, ‘I know you by your rags. Costume and disguise in fifth century drama’, Antichthon 16 (1982) 17-34. 77 Sobre a paródia que Aristófanes aqui produz da peça que Eurípides apresentou em 438 a. C., o Télefo, vide H. W. Miller, ‘Euripides’ Telephus and the Thesmophoriazusae of Aristophanes’, Classical Philology 43 (1948) 174-183; H. Hansen, ‘Aristophanes’ Thesmophoriazusae: Theme, structure and production’, Philologus 120 (1976) 165-185; M. F. Silva, Crítica do Teatro na Comédia Antiga (Lisboa 21997) 112-131. 78 A ideia de que a tragédia possui uma capacidade efectiva de criar piedade é um conceito saliente e por demais assinalado, na expressão que Aristóteles lhe deu na Poética. Vide, a propósito desta noção, D. M. Lucas, Aristotle. Poetics (Oxford reimpr. 1972) 273-290.

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113 lhe cabe. Logo o trajo tem essa dupla interferência, exterior sobre o auditório, e íntima, como arrimo do actor na encarnação da personagem (447, 451-452). Por seu lado, o criador, obedecendo ao princípio da conformidade com a obra criada que Ágaton haveria de proclamar em Tesmofórias79, adopta a postura e envolve-se no contexto mais adequado às suas preferências artísticas: ei-lo que aparece, ‘de pés no ar’ (399, 410-414), como um verdadeiro artista de coxos, e cercado de farrapos qual especialista no desenho de mendigos. Está estabelecida a necessária harmonia entre a atitude mimética do poeta, a obra criada, o actor e o público, que justifica a popularidade que os ‘reis andrajosos’ de Eurípides ganharam como seu traço peculiar. De há anos já que os Atenienses se vinham habituando a esta preferência do poeta; Diceópolis procura afinal os trapos ‘daquele teu drama já antigo’ (415), o célebre Télefo de 438 a. C., que, mais de dez anos passados (os Acarnenses são de 425 a. C.), vinha ainda à memória de todos como uma imagem inesquecível, verdadeiramente o mais mendigo dos muitos mendigos euripidianos. Mas a galeria é longa; por isso, o esquecimento de Diceópolis sobre o nome concreto do famoso pedinte – tantos eles são – e as sucessivas hipóteses colocadas por Eurípides, numa tentativa de lho recordar, permitem um percurso sobre os andrajos personalizados que enchem o guarda-roupa do poeta; ao mesmo tempo que se vasculha no armário dos trapos, cada rei mendigo é recordado por uma agravante, social ou física, que lhe aprofunda os traços. Quem sabe os de Eneu80, ‘o 79

Vide supra. Eneu era rei de Cálidon, na Etólia. O seu nome é aparentado ao do vinho; teria sido a ele que Dioniso, segundo a lenda, fez presente do primeiro pé de vinha plantado na Grécia. Esta figura anda ligada a três mitos: atribui-se-lhe a responsabilidade de um flagelo que caiu sobre Cálidon, por se ter esquecido de honrar Ártemis com um sacrifício no fim das colheitas; como pai de Dejanira, vemo-lo incluído dentro do 80

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114 pobre do velhinho’ (418-419), ou os de Fénix81, que além de pobre era ‘cego’ (421), ou os de Filoctetes82, que era também ‘pedinte’ (424-425), ou então os de Belerofonte83, que, além ciclo de Héracles; por fim, intervém ainda na lenda do seu neto Diomedes. É este descendente o seu único apoio na velhice, quando, enfraquecido pelos anos, se vê desapossado do trono por traição dos seus sobrinhos. 81 Fénix era filho de Amíntor da Beócia. Este rei tinha uma concubina que provocava os ciúmes da mãe de Fénix, a ponto que ela suplicou ao filho que seduzisse a sua rival, restituindo-lhe assim o marido perdido. Porém Amíntor teve conhecimento desta conspiração contra os seus amores adúlteros e, como castigo, vazou os olhos do filho. Pobre e cego, Fénix encontrou asilo junto de Peleu, que o fez curar por intervenção do centauro Quíron. Mais tarde confiou-lhe a educação de seu filho Aquiles e enviou-o a Tróia para orientar o jovem pupilo na conquista da glória. 82 Filoctetes foi o mortal escolhido por Hércules para depositário das suas armas, depois da morte do herói. Este exigira-lhe, porém, o juramento de que não iria nunca revelar o local da sua morte. Depois de muito pressionado, Filoctetes faltou à palavra dada; esta foi a causa da sua infelicidade. Embora tivesse embarcado para Tróia com o exército aqueu como representante da Tessália, o herói não chegou ao seu destino. Durante um sacrifício na ilha de Ténedo, onde a tripulação tinha desembarcado, Filoctetes foi mordido num pé por uma serpente. A ferida assim contraída exalava um cheiro tão nauseabundo que, por sugestão de Ulisses, os companheiros abandonaram-no na ilha de Lemnos. Aí permaneceu, solitário e enfermo, durante dez anos, ao fim dos quais os Aqueus voltaram para buscá-lo, já que um oráculo tinha revelado que, sem as armas de Hércules, lhes seria impossível tomar Tróia. Só a muito custo o herói se deixou convencer a seguir os que outrora o tinham abandonado, para finalmente fazer vergar o inimigo. 83 Belerofonte, culpado de crimes de morte, deixou Corinto e foi refugiar-se em Tirinto, onde, pela sua indigência, despertou a piedade e depois o amor de Estenebeia, a esposa do rei. Impotente para se fazer corresponder, a rainha acusou-o traiçoeiramente ao marido de ter querido violentá-la. Por intervenção deste, Belerofonte foi sujeito a uma série de provas difíceis e por fim reabilitado. No auge da sua fortuna, ousou empreender, montado sobre o cavalo alado Pégaso, uma viagem ao Olimpo. Irritado com esta ousadia, o deus supremo ordenou que um moscardo lhe mordesse a montada e assim provocasse a queda do herói. Depois de cair sobre um espinheiro, Belerofonte partiu errante pelo

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115 de mendigo, era ‘coxo’ (426-427). Mas não, aquele que Diceópolis traz na memória era mais desgraçado e mais mendigo do que todos eles (420, 422, 425), verdadeiramente o padrão da classe, ‘coxo, pedincha, palavroso, danado para falar’ (428-429). Requintados em imundície, rendados pelos buracos da miséria, os trapos de Télefo84 aparecem finalmente, ao lado dos de Tiestes85 e dos de Ino86 (429-435).

mundo, coxo, cego, solitário e perseguido até ao derradeiro dia da sua existência. 84 Télefo era um dos filhos de Hércules e o que mais se lhe assemelhava em valentia. Possuía o trono da Mísia, onde os Gregos haviam de desembarcar, a caminho de Tróia. Em luta com os invasores, Télefo, apesar da sua coragem, teve de ceder perante Aquiles, que o feriu com a lança. Informado por Apolo de que a cura dos seus males dependia dos Argivos, o rei da Mísia foi ao encontro destes em Argos, e ofereceu-se para os conduzir a Tróia a troco do remédio para os males que o afligiam. Mesmo esfarrapado e pedinte, não conseguiu fazer-se ouvir. A conselho de Clitemnestra, Télefo toma como refém o pequeno Orestes, o único argumento que teve poder para abalar a indiferença dos inimigos. 85 Tiestes, filho de Pélops e Hipodamia, era irmão de Atreu. A rivalidade que se estabeleceu entre os dois irmãos pela posse de Micenas e de Aérope, mulher do segundo, atingiu tais extremos de violência, que Atreu deu a comer a Tiestes a carne dos seus próprios filhos. Atingido pela desgraça, este parte errante e, para satisfazer a sede de vingança que o asfixiava, gera um filho incestuoso, Egisto, que será o assassino do tio e do filho deste, Agamémnon. 86 Leucótea é o nome de Ino, depois que se transformou em deusa marinha. Esta mulher, irmã de Sémele, um dos amores terrestres de Zeus dos quais se gerou Dioniso, era casada com o rei Atamas da Beócia de quem tinha dois filhos. Durante um ritual báquico Ino desapareceu, o que permitiu que o marido contraísse novo casamento com Temisto, de quem teve também dois filhos. Ao descobrir que afinal a mulher que julgava morta permanecia viva, Atamas trouxe-a de volta ao palácio, sem lhe revelar a identidade. Em conversa, Temisto confidenciou-lhe a sua intenção de matar os filhos de Ino, o que naturalmente despertou a fúria da mulher ameaçada; por sua intervenção, o crime ocorreu não como previsto, mas vitimando os filhos da própria assassina. Em fuga da ira de

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116 Dispensados ao actor improvisado, Diceópolis dá-se conta da falta de múltiplos acessórios ‘a condizer’ com os trapos (438), num retoque infindável de pormenores: o barrete mísio (439), que o identifica como bárbaro, o bastão (448) a amparar-lhe os passos de coxo, e, numa inflação de minúcias inúteis mas expressivas, o cesto chamuscado (453455), a escudela esbeiçada (458-459), uma tigela rachada com uma esponja dentro (463), umas folhas para forrar o cesto (469), a completar o retrato do pedinte. Neste cuidado com a caracterização exterior, Eurípides investe boa parte do sentido e do efeito das suas criações, o que o leva a temer, com o empréstimo generoso de todos estes acessórios, que esteja a desfalcar ‘toda a sua tragédia’ (464, 470). É esta a primeira imagem, vibrante de elementos concretos, que Aristófanes produz de um artista que havia de seguir e criticar, com atenção, ao longo de toda a sua carreira, com a agressividade que merece um divergente e a minúcia devida a um génio. O próprio sucesso que a cena de Acarnenses deve ter colhido junto do público incentivou o caricaturista a voltar ao mesmo padrão anos mais tarde, em Tesmofórias (411 a. C.), associando desta vez as novidades euripidianas com as ousadias que a tragédia nova vaga ia assimilando, através dos nomes mais representativos de uma jovem geração de criadores, de que Ágaton conquistou, sem dúvida, um primeiro lugar em visibilidade. Tratava-se, em Tesmofórias, de caricaturar o Eurípides criador de intrigas romanescas e aventurosas, centradas sobre o destino instável de um par romântico, com visibilidade particular para o seu elemento feminino; Helena87 Atamas, Ino lançou-se ao mar. Apiedadas da sua sorte, as divindades marinhas transformaram-na numa Nereide. 87 Nesta versão do mito troiano, inspirada em Estesícoro (PMG 192), Eurípides narra o rapto que Páris perpetrara na Grécia, não de Helena, mas de um fantasma feito à sua semelhança. Entretanto a verdadeira

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117 e Andrómeda88, as tragédias apresentadas a concurso no ano anterior (412 a. C.), com assinalável sucesso, convidavam a esse exercício de paródia os comediógrafos. Aristófanes não só obtém efeito da proximidade temporal das produções sobre que se foca, ainda muito presentes na lembrança de todos, como aprofunda o grotesco das situações com um jogo de transferência sexual; se Eurípides reveste, na cena cómica, o papel do galã das suas próprias produções, a intervenção feminina é confiada a um parente do poeta, velho, balofo e ridículo, que há que converter numa bela heroína, à altura da formosa Helena ou da não menos esbelta princesa da Etiópia. Eis o motivo da visita – paralela à que Helena, por vontade de Zeus, era transferida para o Egipto à guarda do rei Proteu. No início da tragédia, sete anos passados sobre o fim da guerra de Tróia, morto já Proteu, Helena vê-se assediada pelas pretensões do novo monarca, Teoclímeno, à sua mão. Defensora intransigente da fidelidade ao marido, Helena refugia-se junto ao túmulo do soberano já falecido. É aí que Menelau, no regresso de Tróia, depois de um naufrágio que o lança contra as costas do Egipto, a vai encontrar. Após um vibrante reencontro, os dois esposos preparam um plano de fuga, que passa pelo ludíbrio de Teoclímeno e para o qual contam com a conivência de Teónoe, irmã do pretendente egípcio. No reencontro dos esposos régios de Esparta, nos perigos e ameaças, no reviver, agora no Egipto, da aventura troiana, na fuga e salvação assenta o plano romanesco desta famosa versão euripidiana. 88 Segundo o mito, o casal régio da Etiópia, Cefeu e Cassiopeia, por ter de alguma forma ofendido Posídon, viu o seu território inundado e atacado por um monstro marinho. Vozes proféticas anunciaram a Cefeu a única salvação: expor a filha, Andrómeda, junto ao mar para ser devorada pelo monstro ameaçador. A custo, o rei anuiu. Foi quando, solitária, apavorada, a jovem princesa aguardava o sacrifício, que Perseu, o herói voador, de regresso de uma façanha contra a Górgona Medusa, a avistou das alturas; fascinado por tanta beleza e infortúnio, o belo herói prontificou-se a enfrentar o monstro em troca da mão gentil da donzela por quem o seu coração batia com calor. Também neste caso, o perigo, o amor à primeira vista, a beleza e fragilidade da vítima, o denodo apaixonado do salvador, e por fim a salvação e o happy end marcam uma nova concepção de tragédia.

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118 Diceópolis fizera à mansão de Eurípides em Acarnenses – que desta vez se faz à casa de Ágaton. Nesta comédia em que, como vimos, alguma teorização é acrescentada ao motivo da caracterização mimética do poeta e da personagem, a própria caricatura envereda por fórmulas múltiplas e particularmente subtis. Mnesíloco, como um potencial em branco que é preciso adequar a exigências imprevistas, irá sofrer uma dupla metamorfose: de velho tonto e ridículo numa réplica grotesca de Ágaton, um jovem, elegante e intelectual, antes de reviver as aventuras das duas heroínas de Eurípides do ano anterior, Helena e Andrómeda. A inadequação dos modelos com o cabedal humano disponível é a principal fonte de ridículo. Pelo caminho, a conversa entre Eurípides e o parente, a propósito de Ágaton, o alvo da viagem que empreendem, proporciona, pelas perguntas ingénuas de Mnesíloco acolhidas por uma vaga discordância de Eurípides, um primeiro retrato do ausente. Antes que ele apareça, também sobre o ekkyklema, com as atitudes e os acessórios de uma criatura exótica, a sua imagem fica traçada nas linhas essenciais (tal como antes o Eurípides ‘de pés no ar’ chega ao nosso convívio, antes propriamente da sua aparição, pelo testemunho de um criado) por uma espécie de diálogo preambular. Que alguém, por nítida confusão, aplique a Ágaton os traços de um morenaço, forte e de barba rija (31-33), é, fora de cena, hilariante, para todos – e muitos são - os que conhecem a nova estrela da tragédia; mas dentro dela é não menos risível face à sua vinda iminente. Antes, porém, um servo, empenhado em silenciar a natureza para que se propicie um ambiente inspirador da poesia (39-48), encarrega-se de caracterizar os versos redondos, articulados, cinzelados, elaborados do seu senhor (52-57). Um esclarecimento se proporciona ainda como justificativo da visita, além de elucidativo sobre o visitado: de Ágaton,

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119 Eurípides espera que se alie às dificuldades que o afligem, como seu procurador ideal, o único intelectual capaz de lhe representar os interesses; isto é, simbolicamente, o seu verdadeiro continuador na subtileza da criação de uma novíssima tragédia. E essa colaboração passa por um esforço mimético e criativo, para que Ágatom dispõe de todas as potencialidades naturais: o de se fazer passar por mulher entre as mulheres, no festival das Tesmofórias, para defender Eurípides da ira das suas piores inimigas (90-92, 184-186). A comprovar todas as expectativas em aberto, Ágaton faz finalmente a sua epifania. Um primeiro olhar sobre a aparição e Mnesíloco esfrega os olhos de espanto (97-98): ‘Estou vesgo ou quê?! Cá por mim, aqui, não vejo homem nenhum! É Cirene89 que eu vejo!’. De acordo com a pose de grande dama, o canto que lhe sai dos lábios é suave, erótico, capaz de produzir cócegas nos fundilhos (100, 130133). Atónito, Mnesíloco traduz, numa catadupa de perguntas, a incompreensão perante um paradoxo, a estranha combinação de um homem-mulher, nos seus traços físicos e opções de vestuário (136-145): ‘O que tem a ver uma lira com uma túnica cor de açafrão90? E uma pele com uma redinha? E um lécito com um corpete? (…) Que aliança é essa de um espelho com uma espada? E tu, meu rapaz, será que és mesmo homem? Então onde tens o coiso? E o teu manto? E os sapatos espartanos? Ou serás mulher? Mas então onde tens as maminhas?’ Afinal a própria confusão convém ao gay que é Ágaton, que, aliás, se esforçou por adaptar a aparência à natureza que nele é tendencialmente feminina (148-152, 171172). Temos agora a convicção da escolha acertada de 89

Trata-se do nome de uma conhecida cortesã, que Ágaton sugere pela atitude a atavios (cf. Rãs 1327-1328). 90 Era o trajo habitual das mulheres e dos sujeitos efeminados.

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120 Eurípides; Ágaton possui, de facto, o potencial que melhor serve à personagem que se pretende criar no momento: a de uma respeitável matrona, que se transformará na defensora de Eurípides perante uma assembleia feminina que lhe é adversa (situação paralela, de resto, à que Diceópolis se preparava para enfrentar diante dos Acarnenses). E este não é um pormenor de somenos; Eurípides compara até o ajuste de um Ágaton ‘bonito, branco de pele, bem barbeado, com voz de mulher, delicado, gentil’ com a sua própria incapacidade para o papel, velho, grisalho e barbudo como é (190-192). Reservas que se tornam tanto mais expressivas quando, perante a recusa de Ágaton, o papel vem a caber a Mnesíloco, o mais inesperado dos actores para a função. O esforço mimético que a situação impõe ao poeta é tremendo, mas o resultado – há que reconhecê-lo -, quando está em causa uma caricatura, é supremo. Deste actor improvisado, vestido de Ágaton, até os corvos se hão-de rir (939-942)! Mais exuberante do que a cena da metamorfose de Diceópolis em mendigo é a de Mnesíloco em matrona. Mas, como antes o guarda-roupa de Eurípides, também o toucador de Ágaton responde na perfeição a todas as necessidades. Depois de despir a roupa que traz vestida (213-214) – como condição para envergar uma outra identidade -, Mnesíloco é sujeito a uma barbeadela e a uma depilação, numa cena de grande espalhafato cómico, para que Ágaton contribui com a navalha e a tocha (215-248). Conseguido um molde mais adequado, inicia-se, com a generosidade de Ágaton igualmente, a caracterização da personagem: a túnica amarela (253), o corpete (255), a redinha e o turbante (257-258), a capa (261) e os sapatos (262-263). Devidamente ataviado, Mnesíloco, pelo menos na aparência, converteu-se em mulher; falta adequar-lhe o tom de voz e o teor do discurso, que sejam tipicamente femininos (266-268), para que a composição da figura, de fora para dentro, fique completa.

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121 É chegada então para Mnesíloco a hora de desempenhar o seu papel; no terreno do festival feminino, a matrona improvisada vai ser posta à prova, numa assembleia que visa condenar Eurípides, o mais figadal inimigo das mulheres. Em breve, porém, Mnesíloco se vê perseguido por terríveis suspeitas; antes de mais, porque o discurso que faz, de defesa da legitimidade das acusações que o trágico dirigiu contra as mulheres, soa estranho na unanimidade de pontos de vista, femininos, que o cercam; depois porque a denúncia chega pela voz cúmplice de um efeminado Clístenes, o maior aliado das mulheres. Assim se prepara, para a cena de disfarce, a inevitável contrapartida do reconhecimento com o despir da matrona (636-650), ou seja, com o retorno do actor à condição inicial de parente de Eurípides. Despojado apenas em parte dos acessórios femininos e preso ao pelourinho, o procurador do poeta das Helenas e das Andrómedas está pronto a enveredar por outras metamorfoses. Pretende, por esse meio, renovar as cenas de salvação, com que Eurípides animara as suas intrigas do ano anterior, e obter, com a conivência do poeta, a possibilidade de fuga. Se a situação do prisioneiro é sugestiva, o trajo não deixa de ser uma primeira adjuvante (850-851): ‘Já sei ! Vou imitar a Helena que ele compôs há pouco tempo. Tanto mais que estou vestido com roupa de mulher’. Alertado à distância pelos versos do prólogo da sua peça que o comparsa vai recitando, Eurípides aparece no papel de Menelau, também ele mais um dos reis esfarrapados do poeta, porque vítima de um naufrágio (871-873). Que o exterior que exibe, com mais uns farrapos retirados do seu inesgotável guarda-roupa, é convincente provam-no as reacções que desencadeia. A mulher de vigilância ao prisioneiro não tem dúvidas em identificar no desconhecido um náufrago (882) e nos trapos que o envolvem os restos de uma vela (934-935); em vez de piedade, porém, o recémchegado suscita-lhe dúvidas e hostilidade, prevendo nele um

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122 ladrão infiltrado. Pelo que o resultado do estratagema se frustra, apenas para dar lugar a nova tentativa. A sugestão vem agora do próprio Eurípides, que reaparece em atitude de Perseu, convidando o cúmplice, ainda uma falsa mulher atada ao pelourinho, a encarnar Andrómeda, a jovem princesa da Etiópia (1010-1012). Importantes para concretizar o ajuste específico ao novo papel são as cadeias (1012-1013), que outrora agrilhoavam à morte uma princesa na plenitude da vida e que agora amarram o pobre Mnesíloco à ordem da autoridade pública91. Por isso a personagem, quebrando a ficção que a submete ao papel de uma Andrómeda, que entoa lamentosa monódia, se queixa ‘daaquele sujeito que a barbeou, vestiu de amarelo e a mandou para um exótico e desconhecido lugar’, onde lhe pôs a vida a prémio (1034-1045). Do lado do salvador – um Eurípides que não recusa o compromisso de livrar de apuros o seu cúmplice, garantindo à aventura o consagrado happy end – a cosmética não é menos eficiente; do herói salvador, que é Perseu neste momento, ele enverga as asas e o escudo com a Górgona (1098-1104), como insígnias inconfundíveis, uma espécie de senha convencional entre a cena e o anfiteatro. Ainda que sugestivos e dramaticamente dispostos, os processos inovadores que Eurípides introduziu na tragédia deixam atónitos e desconfiados os espíritos menos sensíveis ou preparados para os avanços que a arte lhes propõe. Por isso, nem a mulher de guarda ao prisioneiro nem o polícia se deixam ‘ludibriar’, ou seja, se deixam

91 O sinal equivalente de imobilidade e sofrimento, na paródia anterior de Helena, era dado pela menção do véu, apenas sugerido numa citação de versos da peça euripidiana (Tesmofórias 889-890). Aliás a convenção do véu a sugerir dor e luto obedecia a um antigo recurso trágico, de que Ésquilo soubera extrair potencialidades magistrais (cf. Rãs 911-912) com os seus Aquiles ou Níobes, sentados imóveis, de rosto oculto, silenciosos, quais imagens lancinantes de infortúnio.

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123 envolver por uma apate92, ‘ilusão cénica’, procurando nos sucessivos episódios do último Eurípides uma lógica que não encontram. Ao mesmo tempo que apurava os padrões de caricatura da comédia, Aristófanes lançava também um olhar crítico sobre a própria arte, um processo de auto-análise que havia de desfechar em glória, com a subtileza literária investida em Rãs, que valeu à peça o mais estrondoso e merecido sucesso. Os efeitos de trajo e os paradoxos de identidade que provocam apoiam, na peça de 405 a. C., um questionamento fundamental sobre a excelência da produção teatral e o seu papel na polis. Posto em cena como protagonista, Dioniso, o deus do teatro em pessoa, submetese a uma viagem, de sentido ritual, que o consciencializa, no confronto com diversos obstáculos e percalços, da própria identidade e do para quê da arte que patrocina93. Este movimento, expressivo de uma reflexão profunda, por parte de um poeta maduro, encontra na insegurança do trajo um código de sinais eficiente. Sujeito a sucessivas trocas, cumulado de acessórios incompatíveis, o exterior da personagem é, ao longo da catábase, o desenho de uma permanente interrogação. Dessa prioridade cénica em que o poeta aposta dá sinal o momento de abertura (1-18), onde um Dioniso / 92

Apate é o termo que designa a conivência perfeita entre a ficção teatral e o público; nas palavras de Górgias (Encómio de Helena 8, Fr. B 23), ela é conseguida quando o poeta atinge a excelência na arte de criar ilusão e o público, depois de mobilizadas as suas emoções, na de se deixar envolver pela mesma ilusão. Este é um termo vulgar em Platão, mas estranhamente ausente da Poética, apesar de o conceito parecer aflorar em 1460a 13, 1461b 11. Sobre o assunto, vide T. G. Rosenmeyer, ‘Gorgias, Aeschylus and apate’, American Journal of Philology 76 (1955) 225-260; N. W. Slater, ‘Space, character and apate; transformation and transvaluation in the Acharnians’, in Tragedy, Comedy and the polis (Bari 1993) 397-415. 93 Sobre o problema de identidade e significado da figura de Dioniso em Rãs, vide M. F. Silva, Ensaios sobre Aristófanes, 167-181.

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124 patrão contracena com um Xântias / criado carregado de bagagens, no que é um sketch tradicional94. Que o escravo, sob o peso dos pacotes, se lastime e debite o catálogo dos palavrões com que a tradição lhe permite algum consolo, sob as reprimendas do senhor, constitui a trama inevitável do episódio. Mas, desde logo, Aristófanes introduz, numa estrutura mais ou menos fixa, a confusão inovadora; na ânsia de impedir os consabidos palavrões, mais agressivos quando o patrão é o deus do teatro e, portanto, o árbitro do bom gosto literário, Dioniso antecipa-se a proferi-los para os proibir, criando sobre o factor linguagem um inusitado processo de transferência. Quem é quem, na cena costumeira? Agastado com as proibições e a concorrência, Xântias lamenta a triste sorte que lhe coube de, da cena habitual, reter apenas a parte custosa, o transporte das tralhas, sem a compensação doce das grosserias. Se as insígnias do servo são, na abertura, o pomo da discórdia – vara e pacotes o logótipo de um carrejão -, um outro aspecto essencial, o trajo do senhor do teatro, para o público em presença desafiador desde o primeiro momento, merece, poucos versos adiante, uma justificada exploração cómica. Mais alguns passos percorridos em cena e eis Dioniso, de túnica amarela com que a tradição vestiu o deus efeminado, armado da pele de leão e do cacete, emblemas do mais machão dos heróis gregos, Hércules, que bate à porta do modelo inspirador, o super-homem seu irmão. Escancarada a barreira que os separa, uma simples porta, eis que ambos se posicionam frente a frente, como imagem devolvida por um espelho deformante. Por um processo que, para nós, já não é novo – aquele que Mnesíloco usara diante da aparição de Ágaton em Tesmofórias -, um interrogatório surpreendido de Hércules sublinha a estranheza paradoxal da figura de Dioniso, que todo o 94

Cf. M. F. Silva, Ensaios sobre Aristófanes, 275-295.

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125 teatro, mais ou menos conscientemente, já tinha constatado (40-47): ‘Não, não consigo deixar de rir, ao ver uma pele de leão em cima de uma túnica amarela. Que ideia foi essa? O que tem a ver um par de sandálias com um cacete?’ Em causa está uma confusão de sexos e de identidades, feminino e masculino, Dioniso e Hércules, sobrepostos numa só pessoa. Depois de uma confusão de linguagem, é agora uma anarquia de identidade que se instala. O propósito é, porém, compreensível e à altura da competência do deus do teatro em matéria de mimesis como fundamento da arte; se começou por envergar as insígnias próprias de um herói que ousou descer às trevas infernais, é porque o deus do teatro se propõe repetir-lhe a façanha (108-109); isto é, vestir o actor para o incentivar a revestir um papel e o que lhe falta suprilo pela imitação. A estranheza reside apenas no facto de que a nova identidade não substitui a primeira, antes se lhe sobrepõe produzindo uma tensão inconciliável, entre um Dioniso que não deixa de o ser, apesar de pretender encarnar Héracles. Depois de caracterizado o actor, há que pô-lo em cena e fazê-lo funcionar. Esta é também a experiência a que Dioniso se sujeita, a de percorrer, como antes Hércules, as veredas do Hades. Consciente do papel que lhe está atribuído, o deus que pisa a cena infernal suspira pelo contexto que lhe dê a necessária deixa (283-284; cf. 463): ‘Bem eu gostaria de dar de caras com um desses monstros e viver uma aventura digna desta parafrenália’. Propósito que antecede a aparição do primeiro inimigo, porque então é a natureza frágil do próprio Dioniso que vem ao de cima. Com as insígnias de Hércules não se produziu mais do que uma criação mimética, que o actor não conseguiu verdadeiramente assimilar. A um ruído suspeito (285-296), a anunciar fantasmas, perante a fúria de Éaco, o porteiro infernal outrora privado do cão Cérbero (464 sqq.), ou face ao ressentimento de uma estalajadeira um dia burlada por

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126 um calote (549 sqq.) – outras tantas dívidas ou incómodos por Hércules deixados em aberto e para que parece chegada a hora da vingança sobre a sua imitação -, Dioniso reage; primeiro pelo susto, pobre cobarde que foge e se esconde, numa cedência à sua costela de efeminado. Até a túnica, colorida de uma mancha suspeita, recebe e assinala, ao vivo e a cores, uma reacção fortemente emotiva do anti-herói (308309, 479-490). Mais eficaz é, no entanto, o jogo de acessórios que um profundo sentido teatral lhe dita: o de trocar de insígnias e, ao mesmo tempo, de identidade com o comparsa, Xântias, o escravo carregado de bagagens, dotado de um coração, mesmo assim, mais viril do que o do improvisado herói (494-497): ‘Já que és destemido e valente, põe-te na minha pele. Toma lá o cacete e a pele de leão, visto que não tens dores de barriga, que eu sirvo-te de carrejão’. Logo parece haver, no potencial do escravo, qualidades que o aproximam mais do papel de herói que as circunstâncias exigem. Este é um facto que as sucessivas trocas – por força dos perigos e das benesses pontuais, que as tem também o inferno – nunca irão desmentir. Que o escravo assimila rapidamente a natureza correspondente às insígnias do herói que reveste comprovao o nome que de imediato ele mesmo sugere para a personagem que se cria, Heraclexântias, numa fusão coesa de actor e papel (499-500). A contento com o novo estatuto, ei-lo pronto a dar ordens a Dioniso, com a naturalidade própria de um senhor perante o seu criado (521-523). Porque, afinal, que um vulgar ser humano, para mais escravo, se transforme no filho de Alcmena nada tem de estranho; é um simples milagre de mimesis, ‘a capacidade de simulação’ (530-531; cf. 582-583). Como à ameaça de Éaco se seguiu um convite inesperado e sedutor para um banquete, da parte de Perséfone, outrora seduzida pelos encantos de Hércules, já Dioniso exige de volta acessórios e identidade e alija o papel de subalterno (524-528). Troca

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127 passageira, no entanto, porque logo a fúria ameaçadora de uma estalajadeira, que o reconhece como Hércules, lhe vem cobrar uma dívida, apesar de um pormenor destoante - ‘Não esperavas que eu, lá porque usas sandálias, te reconhecesse’, 556-557 – o repor na pele do cobarde. Mesmo se a princípio renitente, Xântias aceita de novo entrar no jogo e volta a ser Hércules, o que proporciona, por parte do Coro, uma lição de coerência (590-596): ‘Tu, uma vez que voltaste a vestir o trajo que antes tinhas, trata de me animar esse coração, de pôr outra vez um ar façanhudo, em memória do deus de que assumes o papel. Porque se te apanho com macacadas, a mandares bocas foleiras, voltas de novo aos pacotes’. Para a inesgotável confusão e imitação a que são sujeitos os dois viajantes restam, como prova final, os açoites: que cada um, pela resistência a uma sova, dê prova de identidade, na certeza de que um deus não sofre com as bordoadas – tratamento de escravo para se separar o trigo do joio, um deus de um mortal. Antes, porém, é preciso despi-los (641), para que as pancadas lhes firam a pele, é evidente. Mas também para que o despojar dos acessórios de uma ficção abra caminho à clarificação definitiva da sua verdadeira identidade. BIBLIOGRAFIA R. Cantarella, ‘Agatone e il prologo delle Tesmoforiazusae’, in Komoidotragemata (Amsterdam 1967) 7-15. G. F. Else, ‘Imitation in the fifth century’, Classical Philology 53 (1958) 73-90. H. Hansen, ‘Aristophanes’ Thesmophoriazusae: Theme, structure and production’, Philologus 120 (1976) 165-185. D. M. Lucas, Aristotle. Poetics (Oxford reimpr. 1972). G. Mastromarco e P. Totaro, Commedie di Aristofane II (Turim 2006). H. W. Miller, ‘Euripides’ Telephus and the Thesmophoriazusae of Aristophanes’, Classical Philology 43 (1948) 174-183.

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128 F. Muecke, ‘I know you by your rags. Costume and disguise in fifth century drama’, Antichthon 16 (1982) 17-34. F. Muecke, ‘A portrait of the artist as a young woman’, Classical Quaterly 32 (1982) 41-55. W. R. Roberts, ‘Aristophanes and Agathon’, Journal of Hellenic Studies 20 (1900) 44-56. T. G. Rosenmeyer, ‘Gorgias, Aeschylus and apate’, American Journal of Philology 76 (1955) 225-260. M. F. Silva, Crítica do Teatro na Comédia Antiga (Lisboa 21997). M. F. Silva, Ensaios sobre Aristófanes (Lisboa 2007). N. W. Slater, ‘Space, character and apate; transformation and transvaluation in the Acharnians’, in Tragedy, Comedy and the polis (Bari 1993) 397-415.

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129 A farsa e a tragédia dentro de O rei da vela Matildes Demetrio dos Santos UFF RESUMO: Este estudo procura estudar a construção estética de O rei da vela, 1933, detectando o pensamento de Oswald de Andrade sobre nacionalismo e dependência cultural no Brasil do início do século vinte. PALAVRAS-CHAVE: Oswald de Andrade - Teatro Brasileiro – Nacionalismo – Dependência Cultural ABSTRACT: This work intends to study O rei da vela, 1933, trying to study its esthetic construction and the thinking of Oswald de Andrade on nationalism and cultural dependence in Brazil from the beginning of the twentieth century. KEYWORDS: Oswald de Andrade – Brazilian Theater – Nationalism – Cultural Dependence Na dura criação de um enjeitado – o teatro nacional Oswald de Andrade Para Caroline

Oswald de Andrade, como escritor para o teatro, fez parte do grupo inicial do movimento modernista de 1922 e sua formação cultural foi incentivada pelos postulados transgressores das vanguardas européias do início do século vinte e, paradoxalmente, pela idéia de um nacionalismo preocupado com a idéia de que o Brasil precisava construir seu caminho a partir de propostas ideológicas mais efetivas, reagindo contra as forças reacionárias. Fiel às idéias da Antropofagia, movimento que encabeçou desde 1928, Oswald acreditava no caráter desmistificador da escrita e seu teatro, apesar da passagem do tempo, revela ainda a força insaciável do antropófago que devora, mastiga e engole as

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130 idéias que mais lhe apetece. Tempos antes de se dedicar ao teatro,95 Oswald de Andrade já se definia como um homem de esquerda, produzindo uma forte oposição ao governo de Getúlio Vargas. Em viagem pela América do Sul, ele encontrou Luís Carlos Prestes exilado, junto com a mãe e a irmã, em Montevidéu. Conversaram durante três noites seguidas e Prestes o convenceu de que só uma revolução popular poderia mudar os destinos do Brasil, livrando-o da dependência estrangeira. Para realizar esse projeto, ele havia aceitado o convite da III Internacional e, em breve, se mudaria, com a família, para a então União Soviética. Agitado por essas idéias, Oswald de Andrade voltou a São Paulo, e fundou, com Patrícia Galvão, a Pagu, e Queiroz Lima, O Homem do Povo, jornal em que denunciava o cinismo, o latifúndio, a venda da terra e seus produtos ao imperialismo americano. Enraivecido, estampava sua irritação para com as elites brasileiras que se deixavam corromper de forma escandalosa. O inconformismo político do Estalinho, pseudônimo adotado por ele, se revestida de ironia e sarcasmo ao afirmar: “Dum país que possui a maior reserva de ferro e o mais alto potencial hidráulico, fizeram um país de sobremesa. Café, açúcar, fumo, bananas” (Andrade, 1985, p. 1). O grupo editou apenas oito números, pois o local foi invadido por estudantes que se revoltaram contra as denúncias feitas pelo jornal à Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Oswald, no entanto não deixou de colaborar, escrevendo artigos para os jornais de São Paulo e do país, em que proclamava: “Só seremos felizes sobre a terra quando toda a humanidade, num mundo redimido, comer à mesma mesa, com a mesma fome justa satisfeita, 95

Oswald de Andrade escreveu três peças teatrais: O rei da vela (1933); O homem e o cavalo (1934) e A morta (1937). A edição consultada é de 1978. Os trechos citados serão acompanhados da indicação do algarismo numérico referente ao Ato em que estão inseridos para facilitar a consulta dos que têm edições diferentes.

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131 sob o mesmo tendal de fraternidade e de democracia” (Andrade, 1972, xix). Em O rei da vela, Oswald de Andrade não moderou sua revolta e se valeu de elementos de construção da farsa e da tragédia para dramatizar o atraso da economia nacional, inventando personagens que se humilham para conseguir dólares dos Estados Unidos, sem medir as conseqüências. Abelardo I é um rico fabricante de velas, que empresta dinheiro a juros e se vale da miséria alheia para aumentar e manter seu patrimônio. Heloísa de Lesbos, noiva do agiota, pertence a uma antiga família de fazendeiros de café. Tem estirpe mas não tem dinheiro e, na ordem capitalista, o prestígio do nome vale como um bem de consumo, que compensa a decadência financeira. Por isso, Abelardo I, aprumado na vida, mantinha a noiva porque ela lhe abria as portas da alta sociedade, lugar onde o dinheiro conta muito, não importando como foi obtido. Heloísa, por sua vez, ao se lançar na aventura do casamento arranjado, pensava em recuperar o brilho do passado, consciente do papel que lhe cabia como parte do acordo entre ambos, se prestando à degradante situação de objeto de troca: HELOÍSA – Então vou brincar de jacaré com o Americano. ABELARDO I – Vai! Ele é Deus Nosso Senhor do Arame... Brinca, meu bem. (2.º Ato, p. 107)

Na peça, a reflexão sobre a questão do subdesenvolvimento nacional se afunda na negatividade absoluta. Abelardo I, representante da burguesia nacional, oscila pateticamente entre o cinismo e a violência, preso à certeza de que carrega nas costas o peso da dependência colonial. Sua identidade e sobrevivência existem por deferência e obra do colonizador. A uma constatação de Heloísa sobre a dívida brasileira com a Inglaterra que montava a trezentos milhões de libras, ele retruca:

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132 -É provável! Mas compromisso é compromisso! Os países inferiores têm que trabalhar para os países superiores como os pobres trabalham para os ricos. Você acredita que New York teria aquelas babéis vivas de arranha-céus e as vinte mil pernas mais bonitas da terra se não se trabalhasse para Wall Street de Ribeirão Preto à Cingapura, de Manaus à Libéria? Eu sei que sou um simples feitor do capital estrangeiro. Um lacaio, se quiserem! Mas não me queixo. É por isso que possuo uma lancha, uma ilha e você... (1.º Ato, p. 84)

A conversa continua como estratégia para apreender o preço pago pela condição de gente inferior, que se submete ao Outro, mais poderoso. Todos os personagens recebem um sentido ideológico. Abelardo I é cínico e inescrupuloso. Enriqueceu fabricando e vendendo velas, produto altamente rendoso num país medieval e supersticioso em que ninguém se atreve a ultrapassar os umbrais da eternidade sem uma vela na mão. E também lucrava com o setor elétrico que, por não acompanhar a modernização, levava o país a sofrer com as crises geradas pelos racionamentos de energia. Descrente das possibilidades do mercado financeiro local, Abelardo I preferia colocar o dinheiro no exterior a investir no próprio país. A elite social, representada pela família de Heloísa, esbanjava o que não tinha e prevaricava de forma vergonhosa. O pai, o velho Coronel Belarmino, exibia uma incompetência vaidosa. A mãe, Dona Cesarina, se exteriorizava de forma ambígua. Etti Fraser, que encarnou a personagem na famosa encenação do Grupo Oficina em 1967, explicava que encontrou inspiração para compor a tal senhora, observando duas mulheres da alta sociedade paulistana: da cintura para cima, agia como uma dama refinada; da cintura para baixo, era provocante e luxuriosa. A “fidalga”, D. Poloca, irmã do coronel, enganava duplamente: em público defendia o nome e a tradição da família, opondose ao casamento de Heloísa com um plebeu. Longe das

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133 testemunhas, flertava com o noivo da sobrinha. Todos esses personagens sobreviviam ao ritmo de suas extravagâncias, desprovidos de afetividade, banalizando tudo mais: a João dos Divãs, era a irmã sapatão; Totó Fruta-do-Conde, o irmão pederasta; Perdigoto, bêbado e jogador, era o pior deles, pensava em organizar uma milícia patriótica para meter medo nos colonos inconformados com a exploração dos patrões. Abelardo I sabia que atraia para si a vergonha e o escândalo ao ocupar um lugar no mundo que há pouco o ignorava: - Crápulas! Sujos! Um é o Totó Fruta-do-Conde! O outro, este bêbado perigoso. Virou fascista agora. Minha cunhada veio sentar de maillot no meu colo para eu coçar-lhe as nádegas... com cheques naturalmente. A sogra caída... a outra velha... E eu que devo me sentir honradíssimo... por entrar numa família digna, uma família única. (2. º Ato, p. 105)

O palco da representação é povoado por homens e mulheres desprovidos de herança cultural, costumes e crenças que estampam, através de suas condutas, a descrença e a falta de saída para o caos social e político que dominava o país. Abelardo I, apesar do teor indignado de seu discurso, não se revolta nem busca a independência, pois é parte integrante da viciosa engrenagem capitalista. Assim, ele abre todos os créditos para Mr. Jones, que irrompe no palco em franca camaradagem sexual com Heloísa. Em nenhum momento, ele o rechaça. Ao contrário, fornece todas as ocasiões para que o gringo se sinta à vontade em meio à anarquia e futilidade reinantes. A um comentário malicioso de D. Cesarina sobre “os brinquedos brutos” do Americano com Heloísa, Abelardo I justifica sua atitude desleixada, acentuando sua superioridade de homem moderno que julga absurdo reagir movido pelo ciúme. Na verdade, o personagem não aprendeu a ser de outro modo e com isso não se livra de suas pressões e constrangimentos:

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134 - Mas D. Cesarina! Eu me prezo de ser um homem de minha época! A senhora quer que eu perca tempo em ter ciúmes? ( Imita dramaticamente um casal em choque.) [...] Um homem feio daquele! Eu fui lá só por causa do recado! – Maldita! Pum! Pum! (Ri.) Oh! Oh! Ah! É isso? Essa ridicularia que divertiu e ensangüentou gerações de idiotas. É isso... O ciúme! ( 2.º Ato, p. 92)

Para melhor caracterizar a personalidade escandalosa desse protagonista, Oswald de Andrade fez uso da técnica do desdobramento: Abelardo I tem o seu duplo em Abelardo II, reduplicando pelo simulacro a concepção de que o personagem se oferece como repetição no outro: espelho do dependente que insiste no jogo das analogias, fazendo com que ele se apresente como espetáculo para si mesmo. Nas rubricas do autor, Abelardo II é caracterizado como domador de feras de um circo. Calça botas de cano longo, tem os cabelos engomados e enormes bigodes retorcidos. Usa monóculo, tem um chicote e um revólver na cinta (1.º Ato, p. 65). Abelardo II é igualmente diabólico, falso e porcalhão. Os aspectos negativos e contraditórios que caracterizam a personalidade de um se reduplicam no outro. Abelardo II espreita Abelardo durante todo o tempo, esperando a chance de lhe aplicar um golpe e se tornar dono da situação. A oportunidade surge no 3.º Ato, quando Abelardo II trai o patrão e rouba todos os seus bens. Por esse gesto se repete a história dos governos ditatoriais que pipocam nos países subdesenvolvidos. Um a vez no poder, Abelardo II apropria-se de todos os bens do opositor, se instalando como o novo “Rei da Vela”, inclusive fazendo-se noivo de Heloísa. Demasiadamente cínico, ele diz: “Heloísa será sempre de Abelardo. É clássico!” (3. º Ato, p. 121). Não há duelo ou resistência por parte do vencido e a troca de posição transcorre em meio ao discurso em que Abelardo I atribui a si mesmo a culpa pelos erros e pecados cometidos ao longo da vida. Completamente arruinado, ele

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135 chega ao final de seu percurso, confessando que seu destino é a morte, como castigo por sua opção pelo dinheiro a qualquer preço. Essa lição de humildade se resume na frase proferida no 3.º Ato, p. 113: “O Rei da vela não será indigno do Rei do Fósforo!” (Agita o revólver). Heloísa tenta persuadilo a fugir e recomeçar num outro lugar. Ele discorda e, num discurso caudaloso, explica seu gesto como solução edificante para o personagem, algo como uma “moral da história”: - Recomeçar... uma choupana lírica. Como no tempo do romantismo! As soluções fora da vida. As soluções no teatro. Para tapear. Nunca! Só tenho uma solução. Sou um personagem do meu tempo, vulgar, mas lógico. Vou até o fim. O meu fim! A morte no Terceiro Ato. Schopenhauer! Que é a vida? Filosofia de classe rica desesperada! Um trampolim sobre o Nirvana! ( Grita para dentro.)

Com o intuito de problematizar a tênue fronteira entre realidade e ficção, o discurso de Abelardo I não respeita a unidade dramática e busca aproximações fora do contexto dramático, ocasionando um texto curioso e fragmentado, confrontado com a presença da platéia, em que desvela os truques técnicos do teatro e recuperando métodos de dramatização já transformados em clichês pelo teatro convencional: - Olá Maquinista! Feche o pano. Por um instante só. Não foi àtoa que penhorei uma Casa de Saúde. Mandei que trouxessem tudo para cá. A padiola que vai me levar... (Fita em silêncio os espectadores.) Estão aí? Se quiserem assistir a uma agonia alinhada esperem! (Grita.) Vou atear fogo às vestes! Suicídio nacional! Solução do Mangue! (Longa hesitação. Oferece o revólver ao Ponto e fala com ele.) Por favor, seu Cireneu ... (Silêncio. Fica interdito) Vê se afasta de mim esse fósforo... (3.º Ato, p. 113-114)

Voltando a Oswald de Andrade, ele constrói a cena de derrocada do personagem de forma a provocar o espectador, obrigando-o a interagir com o que está

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136 acontecendo no palco. Ele quebra com a ilusão teatral, exemplificando elementos que, normalmente, se escondem, fora do alcance da platéia. De outro modo, deixa claro que seu teatro rejeita os procedimentos artísticos que contribuem para a fabricação de fantasias e possibilitem a evasão da realidade. Ao nível do enredo, a sucessão de Abelardo I, seguida à sua derrocada, perpetua a tragédia do capitalismo caseira, dependente, subjugado ao poderio americano. Os três atos de O rei da vela são marcados por essa idéia. Os dois Abelardos servem ao fim a que se destinam e seus atos expressam a desumanidade dos que tudo fazem para enriquecer. O escritório onde trabalham é descrito como um local ameaçador. Há uma porta de ferro, deixando ver as grades de uma jaula. No interior, há um armário com gavetas etiquetadas. Os títulos são variados, desordenados, com toques de humor negro: uns remetem a ações executadas pelos credores, Penhoras e Liquidações; outros qualificam os credores ou indiciam situações a que foram conduzidos, Protestados, Malandros, Impontuais, Prontos, Suicídios e Tangas . A demonstração prática das relações de domínio prossegue à medida que a cena é invadida pelas vítimas dos usurários. Abelardo I ordena e Abelardo II obedece de chicote em punho. Homens e mulheres, desempregados, endividados, lesados, doentes, desesperados, aparecem atropelados nas grades como mercadorias empilhadas, sem serventia de uso. Os executores dessa situação conversam entre si: ABELARDO I - Não faça entrar mais ninguém hoje, Abelardo. ABELARDO II - A jaula está cheia... Seu Abelardo! ABELARDO I – Mas esta cena basta para nos identificar perante o público. Não preciso mais falar com nenhum dos meus clientes. São todos iguais. Sobretudo não me traga pais que não podem comprar sapatos para os filhos... (1.º Ato, p. 68)

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137 Com total liberdade formal, o personagem inclui o espectador na cena representada, rompendo a ligação empática tradicional e produzindo um efeito de distanciamento, deixando claro que o texto falava dos males do capitalismo através de seus executores. Na cena do 1.º Ato, página 82, Heloísa não vê com bons olhos as ações perpetradas pelo noivo e expressa a inquietação que invade sua alma ao perceber que ele só se preocupava em explorar os clientes e aumentar os seus lucros. Abelardo I não se intimida e expõe objetivamente as atitudes tomadas, desvelando os movimentos mais íntimos de seu caráter: - Já sei... Os degraus do crime... que desci corajosamente. Sob o silêncio comprado dos jornais e a cegueira da justiça de minha classe! Os espectros do passado... Os homens que traí e assassinei. As mulheres que deixei. Os suicidados... O contrabando e a pilhagem... Todo o arsenal do teatro moralista dos nossos avós. Nada disso me impressiona nem impressiona mais o público...

A exposição pública do protagonista é a meta perseguida por Oswald de Andrade que insiste em transformar o espectador em observador crítico, mobilizando-o pela reflexão, na contramão do “teatro moralista dos nossos avós”, que tratava dos assuntos num tempo passado e, no final, buscava a catarse que purificava a platéia. Abelardo é um objeto, movido pelo seu ser social. Os seus conflitos não se resolvem e emergem sempre que confrontados com a situação que o envolve. Oswald de Andrade considera que a engrenagem do sistema capitalista provoca a degradação moral das sociedades dependentes. Diante de Mr. Jones, todos os personagens se prestam a macaquices absurdas. Bons sentimentos, como amor, amizade, respeito e solidariedade desaparecem. O dinheiro amesquinha, manchando e pervertendo as relações sociais. Nessa linha de pensamento, os personagens não são pessoas diferenciadas e singulares

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138 mas fantoches que atuam como alegorias do que se pretende denunciar e nas imagens que se movem em O rei da vela, os espectadores reconhecem a arrogância, a brutalidade, a cobiça, a falsidade, a ira, a luxúria, a traição. De modo que Abelardo I é uma personificação de todas as fraquezas humanas. Sua necessidade de acumular bens e adquirir posição de mando é óbvia, porém cada palavra sua pode ser insuportavelmente patética, porque ele não engana a ninguém e é refém de tudo o que condena. Ele é o primeiro a reconhecer os perigos de se perseguir o dinheiro num mundo regido pelas armadilhas do capitalismo. Por isso, a situação de Abelardo I nunca é cômoda. Ele vê e interpreta todos os seus atos com irônica clareza, funcionando ora como algoz ora como vítima. Com Heloísa e seus clientes, Abelardo é soberano e seu poder mantém todos sobre seu dependência e domínio. Além deles, sua posição é frágil. A presença do Americano é uma afronta e, a todo instante, é defrontado com a figura de Abelardo II, que conspira contra ele, pronto para destruí-lo. Na cena final do 3.º Ato, quando Abelardo I deixa cair a cabeça para trás, ele morre com a consciência de que o seu capital vai mudar de dono mas não de classe: através de herança ou de roubo, o dinheiro se conserva nas mãos dos mais ricos. Num lance rápido, patrão e subalterno, ladrão e lesado se fundem numa só pessoa: Abelardo II abraça Heloísa e ocupa o centro da cena. Ouvem-se os acordes da Marcha Nupcial. O final, de acordo com o simbolismo que reina na ideologia capitalista, rei morto, rei posto. Abelardo I cai, Abelardo II o substitui para que a engrenagem geradora de ambições não pare de funcionar. Desse modo, em O rei da vela, Abelardo I não vale por si mesmo pois traz o seu Outro, como moeda de troca, marcando seu trágico destino. Na alegoria captada por Oswald de Andrade, o capitalismo é um sistema de governo em que todos os homens são substituíveis. Abelardo II trai o

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139 seu senhor porque o que realmente importa é a posição a alcançar. Ambos desperdiçam a vida na vã perseguição do dinheiro, tornando-o um fim em si mesmo. A tragédia dessa certeza, entretanto, se reveste de humor, pois à seriedade da mensagem alegórica se vão incorporando recursos cênicos provenientes da comédia e do circo. Os cenários são exagerados e os personagens se vestem com roupas de mau gosto, excessivamente coloridas, indiciando fantasias de sexo e poder. É a “espinafração da burguesia”, como explica Abelardo II. Na ilha de lazer de Abelardo I, cenário do 2.º Ato, o teatrólogo superpõe vários signos conotando diferentes mensagens. Na rubrica, há a indicação de que a ilha deve recriar a idéia de um paraíso tropical, com palmeiras e pássaros assoviando de forma estridente. No terraço da casa, deveria ter vasos com cactos verdes, uma rede do Amazonas e um mastro ostentando a bandeira americana. Proliferação de materiais expressando a euforia nativa sob a vitória simbólica da bandeira estrangeira, dominando a posição superior, livre e solta no ar. Desfilando em cena, aparecem provocantes “morenas seminuas. Homens esportivos, hermafroditas, menopausas”, todos vestidos de acordo com a “mais furiosa fantasia burguesa equatorial” (p. 87). Por sugestões do próprio Oswald, o coronel Belarmino, velho patriarca rural, deveria entrar em cena, fumando um matarato de palha e vestido rigorosamente com roupas de jogador de golfe. A matriarca, D. Cesarina, vulgar mas esnobe, abanaria um leque enorme de plumas e estaria vestida com um maiô que reproduzisse as calçadas de Copacabana, com as pernas de fora. Cenário lúdico e extravagante habitado por pessoas exóticas e carnavalescas, tudo embaralhado e desajustado, resultando numa visão estilizada do Brasil e sua gente, obediente à política de boa vizinhança norte-americana da época que propagava, através

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140 dos filmes protagonizados por Carmem Miranda, o lado excêntrico e exótico da vestimenta brasileira. Perversamente tão sem lugar quanto a ilha de Abelardo é a composição do ambiente de trabalho do agiota em que há também um acumulado de objetos e peças vistosas, de diferentes materiais e tendências estéticas que atuam como mostruário de uma cultura superficial. No interior da sala, configurando o modernismo do proprietário, tem um telefone, um sinal de alarme e máquinas de escrever. O escritório funciona ainda como um lugar intermediário capaz de absorver os barulhos que vêm de fora, através das janelas e da sala, ao lado, reproduzindo a rotina de trabalho de uma grande cidade. Para a construção desse cenário, Oswald de Andrade instrui: Em São Paulo. Escritório de usura de Abelardo & Abelardo. Um retrato da Gioconda. Caixas amontoadas. Um divã futurista. Uma secretária Luís XV. Um castiçal de latão. Um telefone. Um sinal de alarma. Um mostruário de velas de todos os tamanhos e de todas as cores. [...] Pela ampla janela entra o barulho da manhã na cidade e sai o das máquinas de escrever da ante-sala. (1.º Ato, p. 63)

A reprodução da Gioconda é o ícone escolhido para ostentar um pretenso conhecimento artístico. Ao referir-se ao famoso quadro de Leonardo da Vinci, Abelardo I exibe uma eloqüência florida, que nada explica: “ – A Gioconda... Um naco de beleza. O primeiro sorriso burguês...” (1.º Ato, p. 82). Colocar no mesmo ambiente, um divã futurista, uma secretária Luís XV, um castiçal de latão e um mostruário de velas que tornam a sala pesada e confusa ao olhar, ao mesmo tempo em que refletem a confusão de gosto do proprietário. Não admira que Abelardo I improvise e manifeste sua ignorância em qualquer atividade. Por exemplo, quando erra, trocando o nome de Verdi, autor de Aída, por Wagner ao abordar intimamente sua secretária, Dona Aída como: “Aída loira... Aída de Wagner. Como é?

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141 Não precisa de um Radamés? (1.º Ato, p. 75-76). No modo de agir, falar ou vestir-se, Abelardo I mostra desconhecimento das regras sociais e sempre desejoso de aparentar uma cultura que não possui, representando metáfora ou simbolicamente o brasileiro pedante, falsamente instruído. Cenários com altos rendimentos estéticos, diálogos caricaturados e personagens vazios de conteúdo forçam reflexões constantes, tirando a tranqüilidade do espectador. De fato, O rei da vela não é um teatro mágico e prazeroso, apesar do humor e do tom de comédia. O texto é um arrazoado de teses em função das quais os próprios personagens e o público precisa estar vigilantes, quase que obrigados a tomar posição face à ousadia de sua mensagem. BIBLIOGRAFIA 1. Obras do Autor ANDRADE, Oswald de. Do Pau-Brasil à Antropofagia e às utopias. Manifestos, teses de concursos e ensaios. In: Obras completas. 2.ª ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978, v. VI. ___________________ . Ponta de lança. In: Obras completas. 3.ª ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1972, v. V. __________________ . Teatro. In: Obras completas. 3.ª ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978, v. VIII. 2. Crítica, História e Teoria Literária BOAL, Augusto. Teatro oprimido e outras poéticas políticas. 4ª ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1983. BENJAMIN, Walter. A origem do brama barroco alemão. São Paulo, Brasiliense, 1984. ________________ . “Que é o teatro épico? Um estudo sobre Brecht”. In: Magia e técnica, arte e política. Ensaio

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142 sobre literatura e história da cultura. São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 78-91. COSTA, Iná Camargo. A hora do teatro épico no Brasil. São Paulo, Editora Paz e Terra, 1996. SILVA, Armando Sérgio de. Oficina: teatro ao te-ato. São Paulo, Perspectiva, 1981.

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143 AUTORES Adriane da Silva Duarte Doutora em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo Professora Assistente da Universidade de São Paulo de Língua e Literatura Grega [email protected] Carlos Alberto da Fonseca Pós Doutor em Lingüística pela Universidade de São Paulo Professor Titular da Universidade de São Paulo [email protected] Christophe Triau Université Denis Diderot, Paris, França [email protected] Djalma Thürler Doutor em Literatura Comparada e Indústria Cultural [email protected] Fernando Brandão dos Santos Doutor em Letras Clássicas Professor Assistente da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara (UNESP) [email protected] Maria de Fátima Sousa e Silva Professora Catedrática da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra [email protected] Matildes Demetrio dos Santos Doutora em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Professora Adjunta do Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense [email protected]

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