Leituras de mundo As identidades sociais e o texto nao verbal em materiais didaticos

June 7, 2017 | Autor: Evanir Pavloski | Categoria: Identidade cultural, Material didático, Leitura De Mundo, Texto não-verbal
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Leituras de mundo: As identidades sociais e o texto não-verbal em materiais
didáticos

Evanir Pavloski – UEPG

RESUMO: A importância atribuída à escrita na contemporaneidade resulta na
suposição de que a leitura dela deriva. Entretanto, uma análise diacrônica
das representações humanas, desde períodos anteriores ao advento dos signos
lingüísticos, demonstra um esforço de interpretação e significação da
realidade, que poderíamos caracterizar como leitura. Semelhantemente, nas
fases anteriores ao desenvolvimento do aparato neurofisiológico e ao
processo de alfabetização, o indivíduo é exposto constantemente aos mais
diferentes gêneros de texto, tanto orais quanto imagéticos. Tal condição
não apenas se mantém, mas também se intensifica e se pluraliza após o
letramento, proporcionando ao sujeito o trânsito e o diálogo com uma vasta
gama de textos verbais e não-verbais. No âmbito escolar, essa interação
textual entre produtor e receptor redunda não somente na formação cultural
e crítica do aluno, mas também no desenvolvimento de sua identidade ou
identidades sociais.

PALAVRAS-CHAVE: identidade, leitura, imagem;

A concepção da leitura como um processo dialógico, no qual não apenas
aspectos neurofisiológicos e cognitivos estão envolvidos, mas também
variantes sociais, culturais, históricas e econômicas, parece ter alcançado
o status de axioma na pós-modernidade. Entretanto, tal proposição é
constantemente associada apenas ao texto escrito. Essa conexão muitas vezes
automática, além de restringir sobremaneira o próprio conceito de leitura,
caracteriza-a como um corolário da escrita. Contudo, em uma perspectiva
semiótica mais ampla, a interação com objetos textuais verbais surge
consideravelmente depois da formação de uma capacidade leitora e analítica,
tanto em termos históricos quanto individuais. Como afirma Eliana Yunes,

As relações do homem com o mundo, inegavelmente, estão mediadas por
sua percepção e construídas pela linguagem. É bem verdade que a
natureza desta linguagem é de caráter social, pois a condição de sua
existência é a própria exigência de troca e comunicação. A forma de
designação do mundo pouco a pouco torna-se o próprio mundo. Mas, eis
que, na própria oralidade que antecede a escrita, se insinua o gesto
de criar sentidos. No mesmo ato em que se nomeia a natureza, o homem o
interpreta; ou seja, desde o primeiro olhar o homem significa, isto é,
atribui imaginariamente funções e designações: o homem lê (YUNES,
2002, p. 53).

Dessa maneira, as imagens que compõem o mundo são transformadas em
elementos de significação pelos indivíduos em fases anteriores ao advento
da escrita (em sua dimensão histórica) ou ao letramento (em sua dimensão
cognitiva). Essa modalidade de leitura, ainda que menos arbitrária do que
aquela que se debruça especificamente sobre o texto verbal, é influenciada
por aspectos culturais, históricos, econômicos e psicológicos que compõem o
universo referencial do sujeito leitor, produzindo formas diversas de
significação a partir de diferentes receptores. Tais variantes se
manifestam nas tentativas de representação do mundo e dos seres, as quais,
desde a pintura rupestre até o hipertexto, revelam-se cada vez mais como
leituras e discursos socialmente construídos.

Desde os primórdios, quando expressou nas paredes das cavernas seus
temores e desejos, grafando imagens de animais, quando codificou
sinais nas trilhas de caçadas, quanto atribui às formações de nuvens
presságios e expectativas, o homem procedia a uma escrita não-
alfabética que sinalizava uma leitura precedente. Nessa hipótese de
valorização da precedência da leitura, embora já se veja consignada
uma participação indescartável do leitor na produção do texto, corre-
se o risco de imaginar que, na codificação de uma mensagem, o sentido
esteja apenas imobilizado, uma vez que preexistiria à escrita. Este
gesto acarretaria em seguida a imobilidade da leitura, como de fato
ocorreu ai longo dos séculos, segundo as ideologias dominantes –
quando nasceram os "autorizados" a ler, isto é, a decodificar os
signos e a interpretar os sentidos já definidos a priori (...) Nos
dias de hoje, isto se nos afigura como possível paradoxo para os que
defendemos na recepção a condição de historicidade, que intervém na
leitura e cria sentidos pelos usos (YUNES, 2002, p. 54).

Assim, a escrita cristaliza a leitura de mundo por meio de sua própria
materialidade e restringe o seu potencial significativo a paradigmas
discursivos pré-estabelecidos socialmente.

Do mesmo modo como a escrita não suprimiu a oralidade, a cultura
midiática não extinguiu a condição do leitor dos que interagem no
magma secundário da oralidade que permanece intenso na cultura
alfabetizada. Contudo, está hoje, condicionada pelo reducionismo
imposto à linguagem pelas ideologias próprias da mídia. O mundo já
aparece interpretado consoante as vozes que os manipulam, dos
telejornais às telenovelas, dos comentários às entrevistas que alienam
contextos para naturalizar práticas (YUNES, 2002, p. 53-54).

Ainda assim, os signos nos rodeiam incessantemente, possibilitando
diferentes interpretações e evidenciando o caráter híbrido das
significações dominantes e amplamente disseminadas, aspecto que as tornam
objetos passíveis de análise.

Uma curta caminhada por uma rua movimentada de qualquer cidade média
do país serve para nos mostrar a infinidade de informações a serem
lidas em sinais luminosos, placas publicitárias, roupas, calçadas,
muros, informações diversas que vão compondo, no seu mosaico, o
desenho da esfinge a nos interpelar 'Decifra-me ou te devoro!
(CARNEIRO in YUNES, 2002, p. 64).


Diante disso, surgem na década de 70 na Alemanha as chamadas teorias
da recepção, que, unindo os conhecimentos de lingüistas e literatos, busca
não apenas valorizar o papel do leitor na construção do(s) significado(s) e
do(s) sentido(s) dos textos, mas também resgatar a sua autonomia crítica
nesse processo essencialmente produtivo. Associando-se aos conceitos da
semiótica, as teorias da recepção ultrapassam os limites do texto escrito e
promovem a análise de outros gêneros textuais inseridos no caleidoscópio de
significações possíveis que compõem o que consideramos a realidade,
incluindo, obviamente, os textos não-verbais.
Emoldurados ou não por signos lingüísticos, os textos imagéticos se
apresentam de forma abundante na contemporaneidade, caracterizando formas
específicas de leitura e reapresentação do mundo. Porém, muitas vezes o
caráter dialógico e analisável desses objetos passa despercebido. "Ainda
que não pensemos nisso quando lemos um cartaz, um quadro, um filme, temos,
internalizada na nossa estratégia pessoal de leitura, uma gramática da
imagem, ou, sendo mais preciso uma gramática das imagens – porque são
diversas em si" (CARNEIRO in YUNES, 2002, p. 66).
Nos livros didáticos, por exemplo, cujo objetivo é mais pragmático do
que estético, a imagem pode ser vista simplesmente como um elemento
acessório ao texto escrito ou tópico a ser estudado. Contudo, a própria
escolha das imagens a serem inseridas no material denota uma leitura de
mundo transformada em representação da realidade, constituindo, portanto,
um objeto passível de análise e interpretação, ou seja, um texto. Assim
caracterizada, a imagem pode ser analisada sob novos horizontes. Como
afirma Vincent Jouve,


O texto, como resultado de uma vontade criadora, conjunto organizado
de elementos, é sempre analisável, mesmo no caso das narrativas em
terceira pessoa, como "discurso", engajamento do autor perante o mundo
e os seres (...) Qualquer que seja o tipo de texto, o leitor, de forma
mais ou menos nítida, é sempre interpelado. Trata-se para ele de
assumir ou não para si próprio a argumentação desenvolvida (JOUVE,
2002, p. 21).


Como vimos, a produção de um texto decorre de uma leitura prévia de
mundo. Contudo, o caráter socialmente construído dessa produção e a
recorrência de certos padrões ideológicos de significação em detrimento a
outros, caracteriza-a como um discurso subjetivo cultural e historicamente.
Assim, a leitura enquanto processo dialógico coloca frente a frente não
apenas aparelhos cognitivos distintos, mas também identidades,
experiências, expectativas e ideologias. Como caracteriza Yunes, "a leitura
é uma investigação da tensão entre modalidades de significação, uma
desconstrução que não destrói" (YUNES, 2002, p. 23).
Dentre os aspectos citados, as identidades sociais têm recebido
especial atenção diante de um contexto pós-moderno marcado, ao mesmo tempo,
pela fragmentação e pela rearticulação dessas identidades. Como salienta
Stuart Hall,


Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as
sociedades modernas do final do século XX. Isso está fragmentando as
paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e
nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas
localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão
também mudando nossas identidades pessoais, abalando a idéia que temos
de nós próprios como sujeitos integrados (HALL, 2002, p. 09).

Percebemos na citação acima a referência aos dois pólos que, como
afirmamos anteriormente, constituem a dimensão dialógica da leitura, ou
seja, de um lado, os modelos de representação construídos social e
coletivamente, e de outro, a visão que o indivíduo tem de si mesmo dentro
dessa estrutura de significação. Assim, temos valorizado não apenas o
processo de construção de significado e sentido do texto, mas também de
reconstrução do próprio indivíduo diante do objeto textual e dos elementos
socioculturais que o compõe.

Construindo-se a si mesmo em um movimento permanente de verbalizar-se,
o sujeito se transforma em narrador de sua história. Por outro lado,
vê-se coagido por valores, princípios e idéias que antes lhe pareciam
tão naturais, e os descortina agora como produções discursivas
interessadas que submetem seu próprio discurso (YUNES, 2002, p. 117).


Dessa forma, percebemos o caráter discursivo da formação das
identidades sociais e a dinâmica característica da pós-modernidade, na qual
os modelos identitários são múltiplos e intercambiáveis de acordo com o
contexto no qual o indivíduo está inserido. Segundo esse ponto de vista, a
identificação poderia ser entendida, nas palavras de Hall, como
"construção, como um processo nunca completado – como algo sempre 'em
processo'. Ela não é, nunca, completamente determinada – no sentido de que
se pode sempre, 'ganhá-la' ou 'perdê-la'; no sentido de que ela pode ser,
sempre, sustentada ou abandonada. (Hall, 2005, p. 106) [grifos do autor].
Como afirmamos anteriormente, a leitura de imagens e objetos enquanto
esforço interpretativo da realidade por parte da criança antecede em muito
a alfabetização formal. Assim, dada a íntima relação entre essa capacidade
leitora e a percepção de modelos identitários, poderíamos afirmar que se
dá, a princípio, em um nível não-verbal e que se torna progressivamente
mais complexo com a inclusão da codificação lingüística, primeiramente oral
e, posteriormente, escrita. "Muito tempo antes de poder falar, a criança é
falada intensamente pelo seu ambiente, e não há uma palavra que não seja, a
um só tempo, designação de um conceito e discurso sobre o valor atribuído a
esse conceito pelo ambiente. Esse sistema de valores impregna completamente
o sistema lingüístico" (REVUZ apud SERRANI-INFANTE, p. 68).
Para autores como Fairclough, Berger e Luckmann, a interação inicial
da criança no universo doméstico e familiar constrói uma identidade
primária e individual que se conecta a outros paradigmas identitários de
acordo com o desenvolvimento do sujeito e sua inserção em outros núcleos de
socialização. "A socialização secundária é a interiorização de "submundos"
institucionais ou baseados em instituições. A extensão e caráter destes
são, portanto, determinados pela complexidade da divisão do trabalho e a
concomitante distribuição social do conhecimento" (BERGER & LUCKMANN, 1985,
p. 184-185).
Percebemos, portanto, que assim como a criança não ingressa na escola
desprovida de linguagem ou alheia ao seu uso, ela traz consigo para esse
novo ambiente de socialização uma identidade social previamente construída
como resultado de sua vida no núcleo familiar. A essa matriz serão
incorporadas novos horizontes de interação e identificação, resultando no
trânsito por parte do indivíduo entre diferentes funções e papéis sociais.
Indubitavelmente, a instituição escolar representa um ponto de
extrema importância nesse desenvolvimento particular e social do indivíduo.
Isso ocorre devido não somente às diferentes possibilidades de
identificação intrínsecas ao próprio ambiente, mas também pelas ainda mais
vastas conexões, referências e leituras de mundo que o letramento e o
acúmulo de conhecimento viabilizam.
Nesse contexto, os professores de língua inglesa encontram alunos que
possuem, além de uma considerável experiência com a interação e a
manipulação de linguagens, um referencial identitário muito mais amplo.
Entretanto, o estudo de um idioma estrangeiro implica em um processo de
estranhamento que se dá tanto ao nível do código e do discurso quanto ao
nível cultural.

Também, de um ponto de vista predominantemente discursivo, poder-se-ia
acrescentar: a segunda língua não é independente das redes de memória
ou das filiações sócio-históricas de identificação. Instanciada em
ressonâncias discursivas, a produção em segunda língua, por esse
processo ressonador, marca a possibilidade de uma desestruturação-re-
estruturação dessas redes e filiações (...) A interdiscursividade,
pela sua natureza, é desestabilizadora e prenhe de processos de
transformação de sentidos (SERRANI-INFANTE, 1997, p. 72).

A consolidação da posição dos Estados Unidos como potência econômica
no século XX acarretou um notável crescimento no nível de sua influência
cultural ao redor do mundo. Além da língua inglesa se afirmar como o idioma
das relações internacionais, sua difusão nos mais diversos países
representou também a propagação de elementos ideológicos característicos da
cultura estado-unidense. Tal processo não apenas atua diretamente na
formação das identidades sociais daqueles expostos a esse contato, mas
também fornece novas possibilidades de reconstrução identitária a partir de
paradigmas oriundos de leituras de mundo culturalmente distintas. Para
alguns estudiosos, como por exemplo, Kanavillil Rajagopalan, esse aspecto
atribui maior significância para um posicionamento crítico-ideológico dos
professores em sala de aula, com o objetivo de problematizar os
estereótipos sócio-culturais muitas vezes intrínsecos à cultura estrangeira
e aparentes por meio da enunciação. "O tempo em que vivemos exige de nós
novas formas de pensar e teorizar tais identidades, reconhecendo seu
caráter eminentemente político – ou seja, identidades lingüística,
cultural, etc. como bandeiras políticas, erguidas e exploradas conforme as
conveniências do momento" (RAJAGOPALAN, 2003, p. 112-113).
Entretanto, como vimos o aspecto discursivo não está restrito aos
textos verbais, mas pode ser reconhecido em outros elementos de
significação encontrados nos materiais didáticos, como por exemplo, as
imagens. Dado o escopo do presente trabalho apresentaremos apenas alguns
exemplos dessa relação entre a utilização de imagens e a veiculação,
plenamente consciente ou não, de modalidades de identificação culturalmente
marcadas passíveis de serem assumidas, adaptadas ou combatidas pelos
estudantes de língua inglesa.
Para tanto, utilizaremos o livro didático do ensino médio utilizado
nas escolas públicas do estado do Paraná, produzido pela Secretaria de
Estado da Educação e publicado em 2006 em sua segunda edição. O material de
língua inglesa teve como responsáveis as professoras Adriana Ribeiro
Siqueira Witzel, Ana Karina Sartori Ramos e Denise Pereira Valle.
Gostaríamos de salientar que a escolha da obra citada se deu tanto pela sua
efetiva e abrangente utilização em todo o estado quanto pela possibilidade
de uma coleta de dados a ser realizada posteriormente. Enfatizamos também
que as reflexões aqui desenvolvidas não representam críticas direcionadas
aos autores e organizadores da publicação, mas se configuram como uma
tentativa de problematizar os modelos identitários que compõem qualquer
representação da realidade humana e social.
Primeiramente, já na capa da seção destinada ao ensino da língua
inglesa é possível perceber duas imagens que servem como referência ao
conteúdo que será apresentado a seguir. De maneira sobreposta, fotos do
Palácio de Westminster e da Estátua da Liberdade realçam o título do livro.
Tais símbolos nos parecem escolhas mais do que razoáveis considerando os
conteúdos e os objetivos da obra. Enquanto signos, as imagens são
facilmente associadas às culturas britânica e estado-unidense, esferas nas
quais a língua ocupa uma posição preponderante. Além disso, a organização
do material exige uma resolução ao mesmo tempo metódica e estética para a
inclusão de imagens na capa, prerrogativas que podem levar a uma reflexão
mais pragmática sobre a dimensão simbólica desses textos.
Contudo, o potencial significativo implícito nas figuras pode servir
como índice para discursos cultural e ideologicamente construídos, ainda
que esse processo não tenha sido inteiramente determinado ou previsto.
Dessa forma, seria igualmente razoável questionar que outros elementos
culturais e ideológicos podem ser apreendidos como intrínsecos a tais
figuras? Que aspectos podem receber maior valorização a partir da opção por
essas representações específicas? Que leituras podem ser desenvolvidas a
partir delas?
Em primeiro lugar, seria possível desenvolver uma leitura desses
textos sob uma perspectiva historicista, ou seja, a representatividade
dessas imagens como ilustrações de uma narrativa e de um imaginário
coletivo nacional.
Por exemplo, o imenso relógio incrustado na torre do Parlamento inglês
em Londres pode ser lido como um símbolo do sistema de governo do Reino
Unido, o qual foi alcançado no século XVIII após movimentos de contestação
e combate ao absolutismo despótico. Tal conquista se insere em uma tradição
política marcada por reivindicações, conflitos e revoluções que
caracterizariam a índole contestadora e atuante do povo britânico. A partir
disso, um indivíduo pode encontrar nesse modelo de exercício de cidadania
uma possibilidade de identificação que, por sua vez, poderia conduzir a um
questionamento ou mesmo uma reestruturação da(s) sua(s) identidade(s)
enquanto cidadão brasileiro, buscando, a partir de então, uma participação
mais ativa nos rumos da sociedade. Dinâmica semelhante poderia ser
deflagrada também por uma leitura puramente sincrônica da imagem que
considerasse os aspectos positivos e negativos da própria estrutura
parlamentarista, levando o sujeito leitor a refletir sobre seu
posicionamento político ou ideológico. Indubitavelmente, outras várias
significações de ordem histórica e política poderiam ser atribuídas à
imagem, dependendo do conhecimento de mundo, do horizonte de expectativas,
das experiências pessoais e das identidades pré-estabelecidas pelo
indivíduo que a lê.
Do mesmo modo, o monumento erigido em homenagem ao centenário da
Declaração da Independência dos Estados Unidos pode produzir leituras
bastante distintas. No plano histórico, a Revolução Americana e os
princípios iluministas que a embasaram podem produzir uma linha de leitura
que, ao valorizar aspectos como a valorização da autonomia e a luta contra
a opressão, problematize os modelos identitários que o leitor assume na
esfera da cidadania. Essa modalidade de significação pode ser
potencializada pela análise do regime democrático instituído no país desde
sua autonomia política e que encontra na Constituição seu maior símbolo.
Outra possibilidade de recepção seria a valorização da identidade nacional
estado-unidense diante do patriotismo característico de representativa
parcela da população. Já no que se refere ao imaginário compartilhado tanto
por indivíduos nativos quanto de outras nacionalidades, a estátua pode ser
entendida como uma representação de uma terra de oportunidades e
prosperidade, onde, desde a chegada dos puritanos no século XVII, as mais
diversas etnias encontraram abrigo e contribuíram para a formação do que
idealisticamente se convencionou chamar de "sonho americano".
Não obstante, a hegemonia econômica dos Estados Unidos e suas ações na
política externa mundial produziram nas últimas décadas um modelo
identitário altamente crítico em relação à cultura estado-unidense. O
chamado antiamericanismo pode, em determinados casos, resultar em uma
leitura na qual a estátua do porto de Nova Iorque represente uma falácia de
um Estado imperialista e preconceituoso. Para Patrícia Helena Rubens Pallu,
a afetividade, aspecto intrínseco ao processo de leitura de qualquer texto,
em relação ao grupo social de onde provém a língua estrangeira pode ser
decisiva no desenvolvimento do aluno e aprendizagem do aluno. Se
considerarmos que falar outro idioma significa se inserir em um sistema de
significação diferente daquele no qual o indivíduo foi criado e, até certo
ponto, assumir a identidade dos membros dessa comunidade, a competência e o
desempenho lingüísticos podem ser prejudicados caso o sujeito não encontre
ou rejeite qualquer possibilidade de concretizar essa identificação.


À medida que o sujeito vai dominando a língua inglesa, mais ele
desenvolverá o sentimento de pertencer àquela comunidade e,
conseqüentemente, mais ele se deslocará de sua comunidade de origem,
mas tudo leva a crer que ele deverá estar inserido no contexto da nova
língua. Se isso não é feito, pode ser que o novo idioma que pretende
adquirir fique somente na dimensão do significado, ao que se pode
supor que ele apenas verbalize, mas não fale efetivamente (PALLU,
2008, p. 136).


No caso específico das imagens analisadas, o processo identitário com
os elementos culturais de cada nação pode ser feito separada ou
comparativamente. Baseado em aspectos afetivos ou ideológicos, o leitor
pode privilegiar uma cultura em detrimento à outra ou entendê-las como uma
linha de continuidade entre dois impérios de tradição anglo-saxã. É também
possível que a própria sobreposição das imagens seja interpretada como um
elemento simbólico da superioridade econômica estado-unidense na
contemporaneidade.
Por outro lado, a recepção das imagens pode se concentrar em elementos
culturais diversos que, não raras vezes, contribuem para a formação de
estereótipos que servem de substitutos para a diversidade identitária
contida em um mesmo grupo social. Poderíamos citar, por exemplo, os ideais
de formalidade e pontualidade atribuídos aos britânicos, assim como os
princípios de individualidade e independência associados aos estado-
unidenses.
Entretanto, o livro em seu conjunto tem como proposta evitar
justamente a cristalização de visões estereotipadas em relação aos povos
falantes da língua alvo. Para tanto, as autoras estabelecem uma linha
didático-pedagógica alicerçada no diálogo entre culturas e identidades que
se revela inerente a aprendizagem de uma língua estrangeira. As nove
unidades temáticas da obra são estruturadas a partir de uma perspectiva
transdisciplinar que, além de propiciar aos alunos uma interface com
diversos gêneros textuais, abre espaço para discussões sobre temas de
outras áreas do conhecimento como a sociologia, a história e a própria
lingüística. Nesse contexto, consideramos especialmente salutar a inclusão
de uma unidade que trata especificamente da influência da língua inglesa na
cultura brasileira. Parece-nos que essa estratégia metodológica reduz não
apenas o estranhamento inicial sentido por alguns alunos ao iniciarem o
estudo de uma comunidade lingüística e argumentativa diferente, mas também
o estigma do uso da língua materna em sala de aula ou da sua comparação
direta com o idioma que se busca aprender. Como afirma Lucia Maria Nunes,


Na tessitura da primeira língua irrompem discursos proferidos pelos
pais sobre a criança e sobre o seu mundo que fazem parte da estrutura
identificatória do sujeito. A língua estrangeira abre espaço para
outras significações que não provém do mesmo lugar, mas que são
normalmente aceitas pelo aprendiz mesmo quando não correspondem aos
atribuídos pela primeira língua (NUNES, 2010, p. 100).

Percebemos, dessa forma, que a língua materna e o sistema de
significações produzido por ela podem ser vir de ancoragem para um
alargamento dos horizontes de leitura e representação da realidade através
do contato com modalidades referenciais e identitárias construídas a partir
da língua estrangeira. "A aprendizagem de línguas estrangeiras esbarra na
dificuldade que há para cada um de nós, não somente de aceitar a diferença,
mas de fazê-la sua. Estar na LE, é como usar uma máscara, é ela que tem uma
identidade, é ela que representa uma função e um papel social, e cabe aos
indivíduos dar-lhe voz" (NUNES, 2010, p. 101).
Sob esse prisma, os textos imagéticos contribuem para que as
identidades primárias do sujeito, sejam elas nacionais, raciais ou étnicas,
possam ser pensadas sob a ótica da diferença e da diversidade, evitando a
assimilação de um discurso baseado em idealizações de inferioridade e
supremacia. Dessa forma, consideramos valorizado o axioma epistemológico,
segundo o qual o conhecimento pode ser mais facilmente desenvolvido quando
o "novo" se revela a partir do que já é conhecido. Assim nos parece ocorrer
tanto com a língua estrangeira quanto com a leitura de qualquer gênero
textual.
Na primeira unidade do material didático em questão, por exemplo, a
justaposição de imagens de William Shakespeare, de um cartaz de um filme
hollywoodiano e de uma charge do cartunista brasileiro Ziraldo pode abrir
caminho para uma leitura mais crítica das especificidades culturais de cada
nação e do papel da linguagem na construção dessas características.
Finalmente, consideramos importante salientar que os processos que
compõem o ato da leitura são múltiplos e diretamente influenciados por
aspectos subjetivos, tornando esse tipo de análise avessa a grandes
generalizações. Diante disso, nossa proposta se constituiu pelo
delineamento de algumas possibilidades de recepção de textos não-verbais,
visando demonstrar a dimensão simbólica e o caráter argumentativo latentes
nessas representações e passíveis de serem apreendidas, discutidas e
problematizadas por diferentes sujeitos leitores. Tratando-se
especificamente de textos inseridos em um material didático para o ensino
de língua estrangeira, a percepção do potencial de significação dessas
imagens e das suas possibilidades de identificação pode conduzir a um
aprendizado ao mesmo tempo mais sólido e mais consciente. Valorizar a
capacidade leitora dos indivíduos é possibilitar a eles a reflexão sobre
suas identidades, seus modelos culturais e sua autonomia, viabilizando um
encontro produtivo com a novidade e a diferença.


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