Leituras desobrigatórias 2010: Possíveis textos para prováveis leitores

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Leituras desobrigatórias 2010 Possíveis textos para prováveis leitores

Este relato detalha o trabalho que desenvolvi neste ano na turma em que sou professora voluntária de Literatura no pré-vestibular Resgate, curso popular destinado a alunos de baixa renda e lugar em que atuo pelo terceiro ano consecutivo, com sede na universidade, em Porto Alegre. O trabalho desenvolvido durante todo o ano culminou no evento que a turma e eu intitulamos de “Leituras Desobrigatórias”, uma vez que contava com a seleção de contos que não estavam como leitura obrigatória para a prova de vestibular. Apesar do alvo do vestibular ser redutor de um contexto social maior, é possível que o pré-vestibular popular seja um espaço que pode contribuir para gerar leitores ou, pelo menos, pode dar uma oportunidade para que a disciplina de Literatura não seja tão repudiada como é inicialmente. Impõe-se, então, a necessidade de aproximar alunos e obras, permitindo que as sensações de leitura sejam estimuladas, bem como compreender que ensinar o aluno a ler criticamente o mundo é papel do professor de Literatura

e

Português,

consequentemente.

Como

o

pré-vestibular

tornou-se

praticamente uma série subsequente à vida escolar dos vestibulandos, este espaço pode ser ressignificado para também ser um lugar de estudo para aprendizagem além-prova. A atividade aqui relatada aconteceu após cinco meses de duas aulas semanais, ou seja, em um momento em que os alunos não só já se interessavam pela disciplina como acompanhavam e realizavam as leituras dos livros obrigatórios para o vestibular. Além disso, demonstravam querer ler mais. A turma foi composta inicialmente por quarenta e cinco alunos de distintas idades, oriundos do ensino regular ou da educação de jovens e adultos. Alguns haviam concluído o colégio há pouco tempo; outros, muitos anos atrás; a grande maioria não praticava leitura de literaturas canônicas e não possuía intimidade com leituras literárias. Esses alunos após uma prova de conhecimentos básicos, seleção e análise de renda, entrevista individual e outra coletiva, chegaram à aula de literatura com pré-conceitos estabelecidos sobre a disciplina. Faziam afirmações como: “literatura é uma chatice”, “é uma lista de nomes de autores”, “são uns títulos e umas datas que a gente nunca lembra e não usa para nada”.

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A proposta nuclear das “Leituras Desobrigatórias” foi permitir que os alunos tivessem acesso a textos que não pertenciam a seus conhecimentos prévios de leitores e que o contexto do pré-vestibular também não costuma exigir, ampliando as possibilidades de leitura e autonomia para desenvolver um gosto literário próprio. Para isso, uma lista composta de dez contos foi proposta pelos alunos e por mim, a fim de contemplar afinidades diversas. Os contos escolhidos foram “O ex-mágico da Taberna Minhota”, Murilo Rubião; “O gato preto”, Edgar Allan Poe; “A morta”, Guy de Maupassant; “Uma galinha”, Clarice Lispector; “O espelho – esboço de uma nova teoria da alma humana”, Machado de Assis; “O melhor amigo de um garoto”, Isaac Asimov; “Em casa”, Anthon Tchekov; “A morta amorosa”, Theóphile Gautier; “O homem que subornou a morte”, Roberto Drummond; “A mãe que percebeu que era mulher antes de ter filhos”, Priscila Monteiro. Sobre o último conto selecionado, cabe dizer que foi escolhido para motivar os alunos a se sentirem autores de suas próprias produções, uma vez que a professora de Redação, com quem procuro desenvolver atividades integradas, havia dito que alguns alunos estavam produzindo textos literários e desenvolvendo prazer pela escrita. O número de contos (dez) pode parecer muito comparado com um trabalho que pudesse ser menor e mais minucioso, mas a proposta não era esgotar questionamentos. Pelo contrário: era gerar mais deles, provocando desejos de continuação, e também apresentar outros autores que não estão na lista dos mais citados em ambientes preparatórios para o vestibular. Um fator que dificulta bastante o acesso às leituras é o custo do livro, sendo mais um motivo de resistência à disciplina. Apesar da dificuldade em comprar livros, unanimemente os alunos acessavam emails na Internet no ambiente de trabalho, em casa ou em lugares públicos. Isso permitiu que as leituras fossem enviadas virtualmente. Elas foram encaminhadas com um mês de antecedência à data escolhida, que seria em um sábado, dia que não constava na grade de horários previstos, sendo, portanto, uma atividade extra. A seleção feita foi resultado de observação e debate com os alunos. Ao longo do ano, muitos mostraram interesse por ficção científica, clássicos e literatura fantástica. Os demais contos foram escolhidos pela aproximação que poderiam causar na turma: cenário urbano, doméstico, animais domésticos, questionamento de realidade e identidade construída a partir do externo, entre outros eixos temáticos que acabaram por gerar mais interesse do que os pensados inicialmente. Podemos considerar, então, que uma espécie de pré-leitura foi realizada para o mapeamento da predisposição apresentada pela turma.

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Os alunos estavam cientes de que não iria acontecer uma aula expositiva tradicional. As “Leituras Desobrigatórias” seriam um espaço para que leitores partilhassem suas leituras, sendo, portanto, desnecessário um mediador formal. Quem não havia conseguido ler algum dos contos a tempo, pôde fazer isso durante a própria atividade, pois estavam circulando versões impressas do arquivo enviado. A aula foi inaugurada com o comentário de um aluno que quis falar sobre sua sensação de leitura de “O gato preto”. Foram feitas relações com outros gêneros, especialmente cinematográficos, tendo destaque Quentin Tarantino. A estrutura do conto e seu andamento também foram considerados para compreendermos o efeito surpresa do final. Não havendo outras considerações dos colegas, passamos para outro título. O segundo conto foi o de Murilo Rubião, que também levantou comentários e comparações. Outros funcionários públicos da literatura (tais como Naziazeno, de “Os ratos”, e “O escrivão Isaías Caminha”), que foram trabalhados ao longo do ano, foram lembrados. A conversa encaminhou-se para o Brasil atual e a estrutura do trabalho, assim como a saturação no mercado de concursos públicos na última década. O andamento do conto mágico foi tematizado: a naturalidade com que os acontecimentos aconteciam com o protagonista sem que, com isso, houvesse maiores problematizações como seria em conto realista, por exemplo. Também a ideia de que o trabalho é ontológico e organiza a vida humana, mas que também pode nos matar aos poucos foi considerada. Os demais contos também receberam análise até que o silêncio nos levasse para o próximo título. Asimov e a vida em outro planeta, Tchekov e os conflitos internos, Maupassant e o fantástico, a personalização da morte em Drummond, a banalização da vida em Lispector, a noção de realidade em Machado. Para mim, como autora de um dos contos lidos, foi um privilégio imenso ter percebido que a protagonista estava viva, circulando entre as falas dos alunos, os quais retornavam ao texto para me mostrar passagens e mostrar suas considerações. Durante as discussões, outros gêneros discursivos foram sendo lembrados e escritos no quadro para quem sentisse interesse em anotar. Isso possibilitou a relação com mais autores não trabalhados. Exemplos disso foram títulos como “O escriturário Bartebly”, de Herman Melville; “Lavoura arcaica”, de Raduan Nassar; “O enfermeiro” e “Teoria do medalhão”, de Machado; “Beijo no asfalto”, de Nelson Rodrigues; e o escritor português Mario de Sá Carneiro. Todos eles entraram na história. Assim, ficamos além da hora prevista para o fim do evento, com o acréscimo ainda de uma hora. Iniciamos às

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8h30min e fomos até as 13h, momento em que fomos obrigados a devolver a sala cedida para o curso. Caso contrário, talvez a conversa tivesse se alongado muito mais. O grupo que fez parte das “Leituras Desobrigatórias” teve adesão de mais de 50% da turma. Os alunos que não puderam comparecer, me procuraram ao longo da semana seguinte, lamentosos por não terem podido ir à atividade, o que creio indicar concretamente a aprovação da disciplina após alguns meses de contato na experiência “pós-escola”. Foram objetivos do trabalho compreender relações entre literatura e atualidade; analisar estrutura do gênero conto; considerar linguagem trabalhada artisticamente; sistematizar efeitos a partir da estrutura e da linguagem escrita; permitir que alunos se posicionassem livremente, sem perguntas dirigidas para leitura, para que produzissem seus próprios conceitos de criticidade. Avalio que a discussão foi de alta qualidade. Creio que a aprendizagem foi alcançada, pois no encerramento da manhã a turma manifestou interesse em continuar a fazer atividades de “leituras desobrigatórias”, mesmo depois da prova de seleção para o vestibular. Com a minha presença ou não, eu gostaria que o projeto fosse levado adiante, pois sua continuidade demonstra a autonomia que os alunos podem ter em relação a interesses próprios de leitura, além da oportunidade de compartilhar experiências estéticas, desvinculando a imagem de que a professora é a detentora do saber e das indicações “corretas” para a leitura do mundo. Creio que relacionar Literatura, uma disciplina aparentemente distante da vida cotidiana dos alunos, à experiência estética próxima dos não-leitores (música no rádio, best seller, filmes, jornais de circulação) é um bom começo, pois, a partir disso, mobilizase o conhecimento prévio e uma espécie de valoração que pode conduzir a leituras de grande fôlego, como romances, iniciando a superação de um rompimento que Terzi afirma acontecer durante o período escolar: [...] na escola, o professor não respeita o aluno como alguém que tem algo a dizer e a contribuir no processo ensino-aprendizagem. Essa exclusão faz com que o aluno deixe de respeitar o professor e de nele confiar como alguém interessado em seu processo acadêmico, em sua aprendizagem. Não há, então, possibilidade de estabelecimento de intersubjetividade em qualquer que seja a interação proposta. [...] Por valoração entendemos que aquilo que está sendo ensinado deva ter um valor, deva ter um sentido tanto para quem ensina como para quem aprende. E é esse sento que faz com que os participantes considerem que vale

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a

pena

se

engajar

na

interação.

(TERZI,

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2002,

P.24)

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Levar o texto para ser acompanhado através de slides ou impresso tem sido recursos utilizados para ressignificar o ato da leitura. Com isso, é desmistificada a ação de ler, permitindo que os alunos se apropriem desta prática social, se assim o quiserem. A capacidade de leitura deve ser medida pela experiência estética de cada aluno, e isso deve ser valorizado pelo professor de Literatura: A qualidade do ato da leitura não é medida pela qualidade intrínseca do texto, mas pela qualidade da reação do leitor. A riqueza da leitura não está necessariamente nas grandes obras clássicas, mas na experiência do leitor ao processar o texto. [...] A compreensão não é um produto final, acabado, mas um processo que se desenvolve no momento em que a leitura é realizada. (LEFFA, 1996, P.14-15)

O trabalho que desenvolvo ao longo destes três anos baseia-se em prover oportunidades para que os alunos tenham a escolha de serem leitores proficientes (se assim o quiserem) dentro da própria língua, vinculando leituras ao cotidiano do aluno através de matérias correntes como jornal, texto bíblico e discursos orais para poder, então, iniciar o trabalho com leituras sofisticadas literariamente. Concordo com Candido quando ele afirma que “a experiência mostra que o principal obstáculo pode ser a falta de oportunidade, não a incapacidade” (CANDIDO, 1988, P. 259), além de que “O que há de grave numa sociedade como a brasileira é que ela mantém com a maior dureza a estratificação das possibilidades [...]” (CANDIDO, 1988, P.256). Acredito que esta realidade pode ser mudada através das possibilidades de leitura que os professores de Literatura podem sugerir (ou não) a seus alunos. As ferramentas de avaliação do desempenho dos alunos ficam restritas ao simulado e ao vestibular. O simulado deste ano foi elaborado por mim e por mais um colega, que também está lecionando na mesma turma. As questões foram consideradas por nós como “difíceis e cansativas”. Ainda assim, a média da turma foi de 15 acertos sobre 25 questões, indicando grande aproveitamento do conteúdo. Um número expressivo de alunos tem alcançado acertos acima da média na prova de seleção, e a expectativa é de que, neste ano, o mesmo diagnóstico se repita ou melhore1. Esta experiência das “Leituras Desobrigatórias” demonstra ser uma possibilidade de compreensão do que significa ser professor para alunos de pré-vestibular (e porque tem sido necessário existir esta etapa de preparação após o colégio), para além da avaliação ou dos índices de aprovação. 1

Este texto foi produzido em 2010. Em revisão para esta publicação, um ano depois, achei justo informar que no vestibular de 2011, mais de 60% dos alunos obtiveram aprovação em diversos cursos da UFRGS, com significativos acertos na prova de Literatura. Alguns deles, atualmente, cursam Letras e são meus colegas de área. Maiores informações sobre o curso: http://www.resgatepopular.org.br.

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REFERÊNCIAS CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. Perspectiva: SP, 1988. LEFFA, Vilson. Aspectos da leitura: uma perspectiva psicolingüística. Porto Alegre: Sagra: DC Luzzatto, 1996. TERZI, Sylvia Bueno. A construção da leitura: uma experiência com crianças de meios iletrados. Campinas: Pontes, 3ª edição, 2002.

Priscila O. M. Monteiro – graduanda em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul em mobilidade acadêmica na Universidade Federal de Minas Gerais. Em Porto Alegre, é pesquisadora de Literatura Brasileira e professora

em

pré-vestibular

popular.

Em

Belo

Horizonte,trabalha com estudos de edição, oralidade e letramento literário.

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