Leituras matutinas: modernidade, utopias e heterotopias na imprensa joinvilense (1951-1980)

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CLÓVIS GRUNER

LEITURAS MATUTINAS: MODERNIDADE, UTOPIAS E HETEROTOPIAS NA IMPRENSA JOINVILENSE (1951-1980)

Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção de grau de Mestre em História, Cursos de Pós-Graduação em História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Dr. Sérgio Odilon Nadalin Co-Orientadora: Prof Dra Ana Maria Burmester

CURITIBA 2002

UFPR

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANA SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

COORDENAÇÃO DOS CURSOS DE PÓS GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

Rua General Carneiro, 460 6o andar fone 360-5086 FAX 264-2791

PARECER

Os Membros da Comissão Examinadora designados pelo Colegiado dos Cursos de Pós-Graduação em História para realizar a argüição da Dissertação do candidato CLOVTS MENDES GRUNER sob o título " Leituras Matutinas: modernidade, utopias e heterotopias (1951-1980) para obtenção do grau de Mestre_ em História, após haver realizado a atribuição de notas são de Parecer pela com conceito sendo-lhe conferidos os créditos previstos na regulamentação dos Cursos de Pós-Graduação em História, completando assim todos os requisitos necessários para receber o grau de Mestre. Curitiba, 16 de agosto de 2001.

2i Examinador

A Simone pela historia que construímos juntos

AGRADECIMENTOS A muitos parecerá clichê. A outros, uma obrigação formal. Ledo engano. Por mais solitário que seja o trabalho de pesquisa e a escrita de uma dissertação, o resultado final não seria possível sem a participação, direta ou indireta, de um coletivo solidário e afetivo. Por isso, concluído o percurso, é hora de agradecer. Dessa vez minha família - meus pais Arno e Nice, e meus irmãos Claudio e Carla - acompanhou apenas à distância a construção desse trabalho. Mas tenho certeza que, apesar da centena de quilômetros a nos separar, agora tanto quanto na época em que escrevi minha monografia, pude contar com o apoio e a torcida de cada um deles. A Arselle, ex-professora e orientadora e, desde então, amiga de todas as horas, devo entre outras coisas o despertar de minha paixão pela história. Infelizmente, ela não pode acompanhar essa pesquisa, ocupada que estava com afazeres outros. Mas há, aqui, um pouco de tudo o que aprendi com ela. A pesquisa documental foi realizada no Arquivo Histórico de Joinville. Embora tenha recebido de todos a atenção necessária à boa realização do meu trabalho, sinto-me na obrigação de agradecer especialmente ao Isaias. Seu auxílio e prestatividade foram importantes para agilizar minha pesquisa, realizada em condições adversas: sem financiamento ou bolsa de qualquer espécie, precisava me deslocar semanalmente a Joinville e aproveitar ao máximo o curto período de permanência no Arquivo antes de voltar a Curitiba, onde resido e trabalho desde o final de 99. Minha aprovação no mestrado em História da UFPR, foi uma das embora-não a única - razões pelas quais troquei minha cidade pela capital paranaense. E foi durante a realização dos créditos e nos seminários de dissertação e tese que esse trabalho começou a ser construído. Os colegas de curso Emerson, Marcos Menezes e Ana Molina, e os professores Magnus Pereira, Carlos Alberto Lima e Ana Luiza Sallas, leram e debateram comigo versões parciais e, em alguns casos, fragmentadas dessa dissertação. Leitores mais recentes, ao "grupo de orientação da Aninha" - Flávio, Rafael, Sandra, Vidal e, de novo, Menezes - agradeço as sugestões e comentários críticos, bem como o bom-humor reinante nas nossas reuniões mensais. Os primeiros meses na nova cidade teriam sido mais difíceis não fosse a acolhida pelo grupo de "estrangeiros" que, como eu, vieram de algum lugar do mapa para Curitiba. Entre eles, Sidinalva desempenhou um papel especial. Ela mal me conhecia, mas confiou em mim o suficiente para me fazer ingressar no corpo docente do curso de História da Universidade Tuiuti do Paraná, onde encontrei um ambiente intelectualmente estimulante e afetivamente caloroso. Ela também leu os três primeiros capítulos e, apesar dos meus tropeços no calendário, sua leitura atenta apontou questões pertinentes em minha escrita. Carminha e Gerson leram e comentaram o primeiro capítulo, e seus apontamentos, críticas e sugestões foram fundamentais para amadurecer minha argumentação. Valdete leu o terceiro, e sua aprovação me deixou mais seguro quanto a minha abordagem e a argumentação que desenvolvi. Erivan leu tudo, do

começo ao fim, à exceção da conclusão, e o cuidado com que leu e comentou cada capítulo, só fez aumentar o respeito que já tinha por ele. A banca de qualificação, composta pelas professoras Maria Ignés de Boni e Etelvina Trindade, leu, comentou, sugeriu e, principalmente, estimulou a finalização desse trabalho. Maria Ignês participou ainda da banca de defesa, juntamente com a professora Margareth Rago, a quem agradeço pelos comentários e sugestões pertinentes, frutos de sua leitura crítica e cuidadosa. Essa versão fmal que os leitores têm em mãos, "limpa" e normatizada, é resultado de um trabalho realizado a seis mãos. Uma parte em Joinville, onde a Rose revisou pacientemente os originais, enviando-me on line os arquivos de "coisas estranhas" que destacava ao longo de sua leitura. A outra foi feita em Curitiba, onde a Angela colocou todas as notas de rodapé, referências bibliográficas e de fontes de acordo com as normas técnicas. Além de formatar o trabalho de maneira a deixá-lo visualmente mais uniforme e "limpo". Por fim, Rafael traduziu para o inglês meu resumo. Dos meus alunos, aqueles que se aventurarem por essas páginas certamente encontrarão algumas reflexões e discursos que lhe são familiares. E é importante dizer-lhes do seu quinhão de responsabilidade pelo resultado final desse trabalho, desde o momento em que, pelo encontro e o diálogo com eles, refaço continuamente meu percurso. Espero que, ao concluir a leitura dessa dissertação, eles se despeçam do que eram antes de iniciá-la, assim como semanalmente eu me despeço do que sou (ou daquilo que eu era) sempre que deixo a sala de aula. Não poderia colocar um ponto final sem antes dizer de minha gratidão aos professores Sérgio Nadalin e Ana Maria Burmester, orientador e co-orientadora. De estilos diferentes, ambos souberam ser profissionais e mestres na hora e na medida certas, sem por isso me privarem daquela liberdade necessária e, a meu ver imprescindível, à criação intelectual. O que mais posso desejar, a não ser que o resultado final desse trabalho esteja à altura da inteligência e da sensibilidade de ambos? Como agradecer a Simone, que soube e sabe ser tantas, mesmo sendo uma: leitora, cúmplice, amiga e mulher, meu porto alegre e seguro? Foi ela quem primeiro me encorajou a recomeçar minha vida em Curitiba. E que nunca deixou de me incentivar, mesmo diante das dificuldades emocionais e materiais dos primeiros meses. Foi ela ainda quem suportou com paciência e galhardia minhas ausências para a pesquisa às fontes e as inúmeras noites em que passei acordado, à frente dos livros, fichamentos ou do computador. E que acompanhou, leu e comentou cada nova página. Ainda que eu dispusesse de todo o tempo, de todo espaço e de todos os megabytes que meu desejo pudesse mensurar, eles seriam insuficientes para dizer-lhe da importância de sua presença em meu cotidiano. Mas não posso deixar de agradecer-lhe, principalmente, por escolher embarcar comigo nessa aventura a que chamamos vida, que é maior que a maior das montanhas-russas. Enfim, a todos os meus cúmplices, força sempre. "Nada mais vai me ferir. É que eu já me acostumei, com a estrada errada que eu segui e com a minha própria lei." (Renato Russo)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: UMA LEITURA DOS SILÊNCIOS

1

1 A COMEMORAÇÃO E O OLVIDO: A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA HISTÓRICA

19

1.1 OS VIVOS E OS MORTOS

21

1.2 MANIPULAR O TEMPO, FORJAR A IDENTIDADE

29

1.3 CARNE E PEDRA: A MEMÓRIA SOLIDIFICADA

37

1.40 DEUTSCHTUMS

O ESPÍRITO DA HISTÓRIA: CRÍTICA À CRÍTICA

HISTORIOGRÁFICA

45

1.4.1 A construção de um consenso

46

1.4.2 ... e a crítica de um consenso

59

2

TENSÕES DO TEMPO: O ANTIGO, O NOVO E O SEMPRE NOVO

67

2.1A CIDADE, OBJETO DE DESEJO

69

2.2UMA CAPITAL PARA O CAPITAL

74

2.3 CENÁRIOS EM RUÍNAS

85

2.4 UM ESPECTRO RONDA A CIDADE

97

2.5 PREVER PARA MELHOR PROVER

118

3 A OUTRA MARGEM DO RIO

133

3.1 A INDÚSTRIA, A NOSSA VOCAÇÃO

135

3.2LUZES DA CIDADE

141

3.3 A TRADIÇÃO COMO FRONTEIRA OU A PARADA DO VELHO NOVO

157

APÊNDICE - UM BALCÃO DE GRANDES NOVIDADES

166

4

170

UMA CIDADE EM ANGÚSTIA

4.1 POÉTICA PARA UM PRESENTE IMPERFEITO

173

4.2 A PRAÇA É DO POVO

182

4.3 "O CRIME PASSEIA PELAS RUAS"

196

4.4 DUAS NOVELAS EXEMPLARES OU DE COMO SÃO NARRADOS OS GRANDES CRIMES 4.5 VIGIAR A CIDADE, DEFENDER A SOCIEDADE

207 215

CONSIDERAÇÕES FINAIS: DISCIPLINAR, MAS NÃO DISCIPLINADA

225

FONTES

233

BIBLIOGRAFIA ESPECÍFICA

236

BIBLIOGRAFIA GERAL

239

GRUNER, Clóvis. Leituras matutinas: modernidade, utopias e heterotopias na imprensa joinvilense (1951-1980). Curitiba, 2002. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Dr. Sérgio Odilon Nadalin Co-orientadora: Profa. Dra. Ana Maria Burmester

RESUMO O objetivo desse trabalho é acompanhar a modernização urbana de Joinville, principalmente as mudanças provocadas nas sensibilidades e sociabilidades dos joinvilenses, sob a perspectiva de uma história dos marginais. Partimos do seguinte problema: é uma utopia, a de construir uma cidade moderna e progressista, mas também moral e espacialmente "higienizada", que sustenta, justifica e legitima a "modernização". O revés desta utopia não tarda a aparecer, o aumento das "margens", sejam elas geográficas ou simbólicas, que desestabilizam, de dentro, as aspirações utópicas das elites locais. Inspirados tanto em Benjamin, quanto em Foucault, procuramos "1er a história a contrapelo" para tornar visíveis suas dispersões e descontinuidades. Utilizamos como fonte privilegiada a imprensa, buscando analisar, em seus discursos, as representações da modernidade e o seu avesso - o aumento nos índices de violência, por exemplo. Outras fontes utilizadas, especialmente aquelas oriundas do poder público, permitiram estudar as tentativas das autoridades de restabelecer, guardar e manter a ordem urbana, respondendo as insistentes reivindicações da imprensa. Ao longo desse percurso, foi possível olhar a cidade como um espaço polifónico, cenário de tensões e de lutas, de contradições e conflitos. De histórias plurais. Palavras chaves: imprensa, modernidade, marginais

GRUNER, Clóvis. Early-morning reading: modernity, utopias and heterotopias in the press of Joinville (1951-1980). Curitiba, 2002. XXX p. Dissertation (Master's degree in History). History Graduate Program, Universidade Federal do Paraná. Tutor: Prof. Dr. Sérgio Odilon Nadalin Co-tutor: Profa. Dra. Ana Maria Burmester

ABSTRACT The aim of this work is to accompany the urban modernization of Joinville, and especially the changes to the sensibilities and sociability of the people of the city, under the perspective of a history of the outsider. We begin with the following question: it is a utopia to build a modern, progressive city, but also spatially "hygienic", supporting, justifying and legitimizing this "modernization". It is not long before a setback of this utopia appears: the augmentation of the "margins", be them geographical or symbolical, which destabilize, from within, the Utopian aspirations of the local elite. Drawing from both Benjamin and Foucault, we seek to "read history against the grain", in order to render its dispersions and continuities visible.. We utilized the printed press as our primary source, seeking to analyze, through its discourses, the representations of modernity and its opposite - the growing crime rates, for instance. The other sources consulted, especially those emanating from the public administrations, allowed us to study the attempts, by administration officials, to restore, uphold and maintain an orderly city, as an answer to the insistent claims made by the press. Throughout our path, we have been able to look at the city as a polyphonic space, home to tensions and struggles, contradictions and conflicts, to plural histories and stories. Keywords: press, modernity, margins

1

INTRODUÇÃO: UMA LEITURA DOS SILÊNCIOS

Devo falar, não tendo nada a dizer, a não ser as palavras dos outros. Não sabendo falar, não querendo falar, devo falar. Samuel Beckett

Desde os anos 80 - ou, pelo menos, de forma mais explícita a partir daí - a história vem empreendendo uma releitura - e, em alguns casos, mesmo uma ruptura dos chamados "paradigmas iluministas" (o marxismo e os Annales, por exemplo) e a construção de outras formas de pensar, 1er e escrever o passado. Não se trata de um "progresso" ou "evolução" do conhecimento histórico. Antes, pelo contrário, os historiadores vêem-se, desde então, frente ao permanente desafio de refazer seus percursos

e

construir

novos

discursos

capazes

de

responder,

ainda

que

provisoriamente, à crise que perpassa sua disciplina e seu ofício. É verdade que nem a crise, nem seus sintomas, constituem por si só uma novidade. As chamadas "ciências humanas", em última instância, desenvolveram-se e se consolidaram criando e superando "crises": de definição de objetos e metodologias, de ruptura e superação de paradigmas, de construção de novas teorias, entre outras. Por outro lado, no que tange à história, se a ainda atual "crise dos paradigmas" tem um caráter sui generis (por exemplo, o de solapar a posição por vezes cômoda de uma história "princesa das ciências e do conhecimento"), nem por isso ela significa, necessariamente, o colapso da disciplina e do conhecimento históricos. Há de se repensar os lugares da história, entendida aqui, grosso modo, como "um dentre uma

2

série de discursos a respeito do mundo" e que, ao apropriar-se do mundo, lhe atribui um sentido e um significado.1 Mas, afinal, de que mundo falamos, se à história e ao historiador cabem falar do passado, tirando-o do esquecimento, e não de um presente vivido, carente ele próprio de um sentido? É possível, pelo passado, significar o presente? Não nos parece casual que, pari passu à crise da história, foi também nos anos 80 que alguns dos valores mais caros à cultura Ocidental -

aqueles que, historicamente, atestaram sua

"superioridade" frente a outras civilizações - passaram a ser questionados e relativizados. Se a queda do muro de Berlim é, por certo, um evento emblemático deste momento, nem por isso seu significado pode ser apreendido em si mesmo. Não foi apenas um muro que caiu: ruiu também uma idéia de Ocidente. E, com ela, um passado que atribuía um sentido ao seu presente e apontava uma direção ao seu futuro. O "no future" dos punks, esbravejado a plenos pulmões desde o final dos anos 70, ganha aqui novos contornos: trata-se de rejeitar toda pretensão a uma utopia universalista e igualitária, desejosa de projetar um mundo harmonioso e igualitário. Pouco importa como ela se apresenta: as utopias, consciente ou inconscientemente, parecem ter em comum tanto seu apego a uma sociedade racionalmente concebida e planejada; quanto uma incômoda recusa à diferença, como se, nas sociedades futuras por elas projetadas, o preço a se pagar pelo conforto material fosse a negação da alteridade. Vivemos talvez em um tempo "pós-utópico", mais que pós-moderno. A ausência de um projeto de futuro comum como que fragmentou a própria ação política, 1

JENKINS, Keith. A história repensada. Trad de Mário Vilela. São Paulo: Contexto, 2001, p. 23.

3

fazendo emergir discursos, reivindicações e "identidades" antes encobertos sob o véu de categorias universais e abstratas - a humanidade ou as classes sociais, para citarmos dois exemplos significativos. O estatuto da diferença e a afirmação das especificidades são parte e conteúdo de movimentos os mais diversos: das ONGs ecológicas, aos grupos gays. E se o historiador "faz para o passado as perguntas que sua própria sociedade lhe dirige"2, talvez possamos encontrar aí uma possibilidade de construir uma resposta - e uma entre outras tantas - à questão que perpassa a história: por que e como conhecer o passado? Depositária da herança iluminista, à história cabia a tarefa de desvendar no passado a "verdade" sobre o homem, sua identidade fundadora, suas origens; inscrever a trajetória da "humanidade" em um tempo não apenas linear e homogêneo, mas universal. Mesmo o marxismo e as primeiras gerações dos Annales,

que

revolucionaram a seu modo e em seu tempo a escrita da história, reeditaram em outros termos a pretensão a uma "história global" - ou, se preferirmos, uma "história total". O esgotamento desses modelos denuncia, de certa maneira, o mal-estar que nos acometeu diante dos impasses a que nos conduziu o nosso próprio projeto de civilização. As questões colocadas a partir de agora aos historiadores apontam a urgência de uma crítica ao próprio conceito de progresso, para investigar no interior mesmo dessa noção o que foi negado, excluído da história. É preciso deslocar-se do centro para as margens e, nesse movimento, construir uma outra relação possível com o passado, renunciando à pretensão rankeana de explicá-lo como uma "realidade objetiva", de falar dele como "ele realmente foi". 2

SCHM1T1, Jean-Claude. A história dos marginais. In.: LE GOFF, Jacques. A história nova. Trad, de

4

Sob o ponto de vista genealógico, para citarmos Foucault, não se trata de buscar no passado a idealidade das origens, mas o momento em que nascem, historicamente, os saberes e os discursos que constituíram os objetos históricos - e o próprio sujeito.3 Não mais explicar o "real", mas desconstrui-lo enquanto discurso. Em outras palavras: o passado não nos é dado. Ele é uma construção social, conceituai, lingüística e discursiva. As sociedades criam e legitimam sua própria forma de se relacionar com o passado, como escrever a sua história. E o fazem historicamente. Concordamos com Lowenthal quando ele diz que "assim como somos produtos do passado, também o passado conhecido é um artefato nosso".4 Ora, o historiador escreve sobre o passado a partir das fontes e documentos escritos, orais, visuais - que nos chegam de tempos pretéritos. Se elas nos informam sobre o que homens e mulheres faziam ou pensavam em determinado tempo e geografia, nem por isso elas são um retrato fiel de como essas sociedades viviam. Elas são também artefatos históricos e culturais, portanto, representações do passado, construídas a partir de um olhar, de determinados códigos e valores. Ao 1er essas fontes e, pela leitura e a escrita, construir - ou inventar - o passado, o historiador está representando o já representado, atribuindo-lhe outros significados e sentidos.5 E nunca é demais lembrar que é no interior de um "campo de força", dos "jogos de poder", que essas interpretações e representações são produzidas e legitimadas como verdade. Cada época lança luz sobre alguns saberes e, ao fazê-lo, obscurece outros. A

Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 264. 3 FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogía e a história. In.: Microfisica do poder. Trad. e org. de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1989, pp. 15-37. 4 LOWENTHAL, David. Como conhecemos o passado. Projeto Historia: Trabalhos da Memória. São Paulo: EDUC, a , 17, nov. 1998, p. 113.

5

história cabe detectar um estado de forças em que aqueles aparecem. Porque é no conflito e na tensão entre diferentes campos e posições que se constróem e se impõem normas de interpretação, transformando valores, conceitos, costumes e palavras em coisas, naturalizando-os. Talvez um de nossos principais desafios hoje, como historiadores, seja o de desnaturalizar a história, interpretar as interpretações, mostrar que o que é não tem sempre sido e que aquilo que nos parece natural é construído historicamente.6 Como reivindicava Benjamin, "escrever a história a contrapelo". Já nos anos 70, Michel de Certeau chamava a atenção dos historiadores: alguma coisa estava fora da ordem. "O historiador não é mais o homem capaz de constituir um império. Não visa mais o paraíso de uma história global. Circula em torno de racionalidades adquiridas". E conclui: "Trabalha nas margens. Deste ponto de vista se transforma num vagabundo".7 Esse deslocamento do "centro" para as "margens" não é outra coisa senão uma exigência do presente em 1er com outros olhares, e construir a partir de outros discursos, o seu passado. Afinal, não falávamos antes do esgotamento dos modelos e referências que, durante décadas, sustentaram nossa visão de mundo? E que, em parte, este descentramento de uma identidade universal ou, pelo menos, Ocidental, fez emergir movimentos que reivindicam outras identidades, alijadas da história: negros, mulheres, homossexuais e outras tantas "minorias"? Num certo sentido, trata-se de um retorno às fontes, para buscar nesses discursos, geralmente autorizados, perenes no tempo, seus silêncios e exclusões. Embora, em última instância, se fale ainda do centro, essa fala agora é construída por 5

CHARTEER, Roger. O mundo como representação. In.: À beira da falésia: a história entre certezas e inquietude. Trad, de Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2002, p. 61-79. 6 VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Foucault revoluciona a história Trad, de Alda Baltar e Maria Auxiliadora Kneipp. Brasília: UnB, 1982. p. 151-181.

6

um outro viés. Trata-se de interpretar como os saberes de cada época delimitaram normas morais e de conduta, estabeleceram padrões de comportamento e de costumes e, a partir deles, construíram suas próprias fronteiras e modos de reconhecimento daquilo que estava fora, às margens. Ainda que indiretamente, foi uma história dessas margens, portanto uma história dos marginais, que passou a ser escrita. Perpassandoa, a tentativa de interpretar como cada sociedade se relacionou com grupos que, ao mesmo tempo próximos e distantes, eram normalmente representados e estigmatizados Q

não por aquilo que eram, mas pelo que não eram. Porque é na fronteira que se estabelecem as diferenças. O "outro" é sempre o estranho: os que se julgam iguais não podem ver a si mesmos como diferentes. Um cuidado então se impõe: ainda que os grupos marginais criem, deliberadamente ou não, seus próprios códigos de sociabilidades, no mais das vezes avessos às instituições e normas sociais, os registros de sua passagem normalmente nos chegam por meio das fontes oficiais: tribunais de inquisição, crônicas e artigos de jornais, processos crimes, registros policiais, relatórios médicos, etc. São fontes que permitem ao historiador uma aproximação com as sociabilidades e a cultura dos grupos marginais, mas que nos falam, ainda, do centro e da relação que este constrói com as suas margens.9 É, pois, no interior das relações de poder que estes depoimentos

7

CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Trad, de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p. 87. 8 GEREMEK, Bronislaw. Os filhos de Caim - vagabundos e miseráveis na literatura européia (14001700). Trad, de Henryk Siewierski. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 7-11. 9 SCHMITT, Jean-Claude. A história dos marginais..., p. 280-88.

7

são construídos. E, para lembrar de novo de Foucault, se essas "vidas infames", condenadas ao esquecimento e ao limbo, conquistam seu direito à história, elas o fazem através de seu encontro com o poder e os saberes e discursos que o sustentam: o saber da ciência, os discursos médico e jurídico, entre outros. Só é possível falar delas, recuperá-las e interpretá-las "a não ser fixadas nas declamações, nas parcialidades tácticas, nas mentiras imperiosas que supõem os jogos de poder e as relações com ele".10 É pois, pela Razão, aquela que se julga portadora de uma verdade capaz de ordenar o mundo, que podemos 1er, no passado, as rupturas e as descontinuidades de nossa história. Ler, enfim, o avesso da Razão e da civilização que ela pretendeu instaurar. Num certo sentido, foi essa Razão (pelo menos desde o século XVIII, com o Iluminismo) o motor das utopias modernas, à esquerda e à direita, que almejavam a construção de um mundo harmônico, fundado na ordem e no progresso. As grandes cidades foram, tanto na Europa quanto no Brasil, "laboratórios" privilegiados de experimentos os mais diversos, porque sintetizavam a seu modo as aspirações utópicas baseadas na capacidade criativa e criadora do homem: a um só tempo, elas significavam a desnaturalização e a fabricação da vida. Da Paris de Haussman, ao Rio de Janeiro de Pereira Passos, são inúmeros os exemplos de como, a partir da intervenção da técnica, conjugada aos desejos de ordenação e normatização do espaço urbano do Estado, as metrópoles transformaram-se em verdadeiros "laboratórios" da modernidade.

10

FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. In.:0 que é um autor? Trad, de Antônio Fernando Cascais e Eduardo Cordeiro. Lisboa: Vega, 1992. p. 98.

8

Localizada ao Norte de Santa Catarina, Joinville, com seus aproximadamente 500 mil habitantes, está distante de ser uma metrópole, na acepção do termo - ainda que a tenham denominado, em função do seu parque industrial, de "Manchester" catarinense. Mas, nem por isso seu desenvolvimento urbano se deu ao sabor do vento. Embora os primeiros sinais de uma ainda tímida urbanização apareçam já nas primeiras décadas do século XX, foi a partir dos anos 60 que a cidade viu acelerar o ritmo "modernizante" de sua geografia. E foi a partir daí que as ações de modernização do espaço urbano passaram a ser dirigidas por um planejamento que não pretendia apenas intervir com ações imediatas, mas procurava estabelecer metas e resultados a médio e longo prazos. O objetivo desse trabalho é acompanhar esse processo de modernização, e não apenas no que ele tem de visível - a presença do poder público agindo na e sobre a cidade, ampliando ruas e avenidas, construindo praças, mapeando-a e delimitando os espaços de trabalho e de lazer, urbanizando-a, enfim. Mas também, e principalmente, as mudanças provocadas a partir dele nas sensibilidades e sociabilidades dos joinvilenses. E se concordamos com Benjamin quando ele diz que "nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie",11 nos interessa ainda perceber onde, no interior mesmo do projeto de modernização levado a cabo em Joinville, instaurou-se a face da barbárie. Para dar conta deste intento, partimos do seguinte problema: é uma utopia, a de construir uma cidade moderna e progressista, mas também moral e espacialmente "higienizada", que sustenta, justifica

11

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In.: Magia e técnica, arte e política. Trad, de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1993. p. 225. (Obras Escolhidas, v. 1)

9

e legitima aquele projeto. Em uma palavra: uma "cidade disciplinar".12 O revés desta utopia, no entanto, não tarda a aparecer. Pode-se mesmo dizer, com relativo grau de segurança, que ele sempre esteve lá. Ironicamente, quanto mais as elites locais investiam na concretização de seu desejo, o de ordenar e normatizar o espaço urbano e os corpos que circulam por ele, mais visíveis se tornam aquelas sociabilidades que, a seu modo, resistem e/ou transgridem a norma. Ou seja, em que pesem as intenções de fazer da cidade um lugar de sons uníssonos, a polifonia, a pluralidade e a diversidade continuam a ser as marcas de seu cotidiano. Talvez possamos falar, fazendo coro a Calvino, que "as cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que todas as coisas escondam uma outra coisa".13 A pesquisa

orientou-se

então

em

duas

direções,

em nosso

entendimento,

complementares. Primeiro, procuramos 1er os discursos que nos falam sobre a modernidade, buscar neles os sinais de como ela foi percebida por uma parcela da população joinvilense. Ao mesmo tempo, a intenção foi analisar os esforços empreendidos, especialmente pelo poder público, no sentido de administrar, planejar e disciplinar o desenvolvimento urbano local. E porque meios e discursos se buscou legitimar essas ações. Uma segunda direção foi tentar encontrar, no interior desses mesmos discursos, os indícios de rupturas e dissonâncias ao projeto de modernização então em andamento. Inspirados tanto em Benjamin 14 quanto em Foucault15,

12

RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: A utopia da cidade disciplinar - Brasil 1890-1930. São Paulo: Paz e Terra, 1997. 13 CALVINO, Italons cidades irtvisíveis.lvãd. de Diogo Mainardi. São Paulo:Cia. Das Letras, 1995. p. 44. 14 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história..., p. 225.

10

procuramos "1er a historia a contrapelo" para tornar visíveis suas descontinuidades. Ainda em Foucault, fomos buscar o conceito de "heterotopia",16 empregado nesse trabalho como a possibilidade de 1er, nas relações cotidianas da cidade, formas de in

"contestação simultaneamente mítica e real do espaço"

e das pretensões utópicas que

incidem sobre ele. E ainda que tenhamos, em função mesmo das fontes, privilegiado os discursos e práticas instituidores de uma ordem utópica, procuramos construir uma leitura capaz de mostrar as dispersões e fraturas no interior daquela utopia. Para tanto, ousamos alargar

o uso do conceito de heterotopia, pensando-a não apenas como

formas de contestação à ordem que aparecem, por exemplo, nas diferentes formas de ocupação dos espaços e territórios urbanos por aqueles grupos considerados marginais. No contexto deste trabalho,

encontramos

as heterotopias

também

naqueles

manifestações que, em maior ou menor grau, expressam o espanto, a contradição, o choque, e o desencanto com a modernidade. Em outras palavras, entendemos que não apenas as ações e práticas, mas também as sensibilidades e sentimentos podem ser heterotópicos e, portanto, desestabilizadores da ordem e o do poder. Uma pergunta então se impõe: como buscar os indícios da construção destas práticas desestabilizadoras do poder? Ora, se pretendemos aqui 1er e interpretar um fragmento do passado e, a partir dessa leitura, construirmos um discurso e uma narrativa a respeito dele, a necessidade de recortar desse passado um objeto, e de localizá-lo no tempo, faz-se quase imperiosa. No nosso caso, por opção teórica tanto quanto política, a escolha recaiu sobre aquilo que Jean-Claude Schmitt define como 15

FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogía..., p. 15-37. FOUCAULT, Michel. Outros espaços. In.: Ditos & escritos Trad. de Inés Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. v.3, p. 411-422. 16

11

"história dos marginais".

18

Na prática, procurou-se não o acesso aos "fatos do

passado" - posto que eles não existem em si - , mas registros, indícios de acontecimentos que possibilitaram, a partir de um diálogo com estas fontes, nos aproximar daquelas experiências construídas no cotidiano como alternativas capazes de fragilizar normas e ordens. Essa preocupação é ainda maior se estamos buscando construir uma história cujo registro de "passagem" pelo espaço urbano de alguns de seus principais personagens -

criminosos, prostitutas, bêbados,

desocupados,

mendigos - , é sempre feito pelo outro, o não-marginal. A história dos marginais, nos alerta Schmitt, é fragmentada, e contá-la implica trabalhar, quase sempre, a partir daqueles discursos e documentos oficias, preservados não para serem o registro da "infâmia", mas para fixar, no tempo, a memória do "vencedor". Já falávamos sobre isso acima: é a partir do seu encontro com o poder que a "vida dos homens infames" torna-se visível e acessível ao historiador.19 O discurso da imprensa, fonte privilegiada dessa pesquisa, oferece nesse sentido uma possibilidade de leitura em mão dupla: construído a partir do centro, ele tem por princípio consolidar a imagem de uma "cidade ideal". Sua função é política e se insere em uma relação de poder que tem como projeto esquadrinhar a cidade, delimitando espaços e personagens "perigosos" e "deteriorados". Mas o mesmo discurso voltado à ordem contém também elemeptos que pps permitem buscar os indícios dessas "outras 17

FOUCAULT, Michel. Ouffoa espaços..., p. 416. SCHMITT, Jean-Claudç. 4 história dos marginais..., p. 261-290. 19 SCHMITT, Jean-Claude. A história..., A argumentação que defendo aqui, e que perpassa todo o trabalho, tem como base, entre outros: FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames..., p. 89-126. Por fim, tenho a obrigação ética de externar minha gratidão ao historiador Antonio Benatti. Não o conheço, mas a leitura de sua obra foi decisiva para dar o rumo final a minha própria pesquisa. Ver: BENATTI, Antonio Paulo. O centro e as margens - prostituição e vida boêmia em Londrina (1930-1960). Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1999. 18

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cidades" no interior da .cidade ideal, suas heterotopias. Não se trata de apreender as práticas marginais tais e quais elas ocorreram, de 1er na imprensa a fala do marginal, do excluído. Mas de pensá-las a partir das representações que dela faz a imprensa joinvilense, seja em textos e matérias de cunho jornalístico, ou nas crônicas e reminiscências de seus colunistas. Além disso, ao narrar os acontecimentos do dia-adia, tanto o cronista, quanto o jornalista, não os apresentam de maneira imparcial. A construção do "fato jornalístico" faz-se a partir de uma leitura de mundo e de uma influência sócio-cultural que o parcializa, mostrando-o sempre em fragmentos, nunca em sua totalidade. Cabe então, ao historiador, operar uma segunda leitura deste, 20

atribuindo-lhe um novo significado. Nos documentos do poder público - Plano Básico de Urbanismo, Plano Diretor, programas e relatórios de governo e projetos de lei da Câmara de Vereadores - , procuraremos estabelecer o paralelismo de uma situação social que se agrava e que exige, tanto uma demanda repressiva e punitiva - com o incremento do policiamento e de ações voltadas à segurança pública, por exemplo - , quanto minimizadora dos conflitos e contradições que emergem no espaço joinvilense - com a urbanização da cidade e a criação, especialmente pelas empresas, de programas de assistência social, entre outras práticas. Por fim, os depoimentos colhidos no Núcleo de História Oral do Arquivo Histórico de Joiftville (AHJ) trazem a lembrança e a interpretação de Agradeço, especialmente, a professora Ana Maria Burmester, que não apenas me apresentou ao trabalho de Benatti, mas chamon-ftie a atenção para a possibilidade de, a partir dele, dar um novo rumo à minha dissertação. 20 A bibfiogfafia consultada sobre a prática e os discursos da imprensa encontra-se ao final desse trabalho. Destacamos aqui aqueles títulos considerados de maior relevância para a argumentação que defendemos ácima: BOURDlEU, Pierre. A influência do jornalismo. In.: Sobre a televisão. Trad, de Maria Lúcia Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. HARA, Tony. Caçadores de notícias: Mstória e crônicas policiais de Londrina 1948-1970. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2000. TRAQUINA, Nelson (org.). Jornalismo: questões, teorias e "estórias". Lisboa: Vega, 1993.

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personagens que viveram alguns dos momentos analisados nesse trabalho - a urbanização, a industrialização e a migração, principalmente. A estrutura da dissertação procura, dentro do possível, seguir uma ordem cronológica que julgamos importante para acompanhar o processo de desenvolvimento urbano de Joinville, seus conflitos e contradições. Mas, como empreendemos ao longo de nossa escrita uma discussão acerca da memória coletiva construída, entre outras coisas, para legitimar a utopia de uma "cidade disciplinar", começamos nossa narrativa por um evento que julgamos significativo na elaboração da memória oficial de Joinville: o centenário da cidade, em 9 de março de 1951, analisado no primeiro capítulo, "A comemoração e o olvido: a construção da memória histórica". O centenário de Joinville é uma data significativa pelo que ela comemora, tanto quanto por aquilo que faz lembrar: a presença dos primeiros imigrantes, os traços germânicos da colonização, o esforço e o trabalho empregados na construção da cidade. Trata-se de, pelos discursos, construir uma memória oficial e histórica, tendo como base a identidade germânica (em especial a alemã). Essa evocação do passado será recorrente nas décadas seguintes. Ainda que com pequenas variações, a presentificação do passado será tanto uma forma de significar a utopia de que falávamos acima, quanto uma maneira de tentar assegurar a disciplina e a ordem - e aqui, mais uma vez, trata-se de relações de complementaridade, e não de oposição. O segundo capítulo, "Tensões do tempo: o antigo, o novo e o sempre novo", procura flagrar a cidade no momento em que a modernização dá seu impulso decisivo. No inicio dos anos 60, a imprensa assiste maravilhada às transformações urbanas de Joinville. Imagens da modernidade são veiculadas em crônicas, editoriais e artigos de

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opinião. Umas mais, outras menos, essas imagens remetem quase sempre a uma vontade, consciente ou não, de acelerar o "ritmo do progresso". Nas representações do período, Joinville deixou de ser uma "menina" e transformou-se rapidamente em "mulher", metáfora que pode ser traduzida ainda nos termos de alguns dos cronistas do período: de uma pequena colônia à província; de província, à cidade com ares de "metrópole cosmopolita". O sonho da modernidade, no entanto, produz seus monstros. Junto com o desenvolvimento e suas benesses, os joinvilenses convivem diariamente com o aumento nos índices de violência, com os mendigos que invadem o centro da cidade, com o jogo e a prostituição. Para um leitor contemporâneo, de certa forma familiarizado com o sangue que escorre diariamente dos jornais, talvez pareça exagero o zelo e a preocupação com que a imprensa joinvilense dos anos 60 aborda a criminalidade. Mas é preciso tomar cuidado com os pré-conceitos e os juízos de valor apressados, sob o risco de parecermos anacrônicos. O que está a se fazer aqui é uma tentativa de apreender a forma como uma parcela da comunidade joinvilense - a classe média, especialmente, leitora privilegiada dos jornais - percebe a sua cidade, vive o seu cotidiano e a experiência da modernização. Ainda que nossa tentativa se dê mediada por documentos e discursos que são uma representação

daquelas

experiências, é preciso levar em conta não apenas o desejo, mas a angústia, os anseios e medos daqueles que viveram um tempo que não pode ser friamente medido por nossos próprios valores. Entre outras razões, porque nós temos a "consciência" do passado, ao passo que aqueles que o viveram, não o tinham do futuro - o nosso

15

presente a partir de onde lemos, interpretamos e construímos não "o" passado, mas 21

um fragmento, no mais das vezes dispersos, dele. E se a cidade cresce, é hora de planejar seu crescimento. Na parte final do capítulo

segundo,

discutiremos

como,

lado-a-lado

com

as

imagens

do

desenvolvimento, caminham aquelas que remetem à necessidade, urgente, do planejamento urbano. As justificativas dispensam as sutilezas: é preciso um projeto que dê conta de disciplinar o desenvolvimento, harmonizando-o e assegurando o bemestar da população. Em 1965, a prefeitura encomenda o primeiro Plano Urbanístico de Joinville. Até o final da década, lideranças políticas e empresariais discursam e palestram sobre as virtudes do planejamento. Em comum, o entendimento de que a modernidade deve ser instaurada a partir de um projeto capaz de, a um só tempo, estimular e disciplinar o desenvolvimento da cidade, evitando o caos e a desordem. Quando o primeiro Plano Diretor é, finalmente, aprovado e sua execução iniciada, Joinville vive talvez o período mais dramático de seu crescimento. Estamos no começo dos anos 70, a industrialização atinge proporções inéditas e a migração, idem. O terceiro capítulo, "A outra margem do rio", analisa esse período e alguns dos discursos construídos em torno dele. Em sua grande maioria, eles procuram inscrever a industrialização recente na história da cidade, diagnosticando os traços de uma "vocação" que acompanha Joinville desde os seus tempos de Colônia Dona Francisca. Uma parte da historiografia e de obras econômicas referenda essa abordagem - ainda que academicamente. A intenção é tentar 1er esse desenvolvimento historicamente, e não como uma tendência natural, dada desde os primordios da colonização. Além 21

LOWENTHAL, David. Como conhecemos o passado..., p. 110-118.

16

disso, pretende-se ainda pensá-lo como parte do próprio crescimento urbano da cidade. Ou seja, não se trata de determinar qual dos "fenômenos" antecede ao outro, determinando-o. Mas articulá-los, mostrando como, também no caso de Joinville, urbanização e industrialização compõem um elemento comum nos discursos das elites locais. Foi, principalmente, para suprir a indústria em crescimento com mão-de-obra disponível, que se estimulou a partir dos anos 60 a migração para Joinville. Primeiro, de outras cidades de Santa Catarina e, já nos anos 70, do Paraná. Nossa intenção é tanto analisar o impacto da presença do migrante na cidade, quanto os dispositivos acionados para tentar a sua "integração" ao projeto disciplinar de que falamos. De antemão, podemos adiantar que é no discurso sobre as virtudes do trabalho que as elites locais encontrarão um instrumento para tentar assegurar a manutenção da ordem e da disciplina. A recorrência à memória e à história são necessárias então: assim como a indústria, também o trabalho é uma "vocação". Um torna o outro possível: o trabalho permitiu o progresso, o progresso se sustenta e se consolida pelo trabalho. Grosso modo, a intenção é construir, a partir dele, uma noção de ordem e de norma, integrando tudo e todos - em especial os forasteiros - à "sociedade do trabalho". E de tentar vislumbrar, em um horizonte não muito distante, a realização de uma utopia: a de uma cidade moderna, fundada na ordem e no progresso. A essa noção de modernidade, utópica, concebida a partir de uma harmonia que lhe é intrínseca, contrapõem-se as heterotopias, práticas que, no cotidiano da cidade, aparecem não apenas como o avesso daquela utopia, mas como o atestado de sua impossibilidade. Em outras palavras, são elas quem denunciam as ilusões totalizantes

17

do "espaço real", "no interior dos quais a vida humana é compartimentalizada".

O

quarto e último capítulo, "Uma cidade em angústia", procura acompanhar as maneiras pelas quais se leu e representou, na década de 1970, as modificações do cenário urbano. A essas alturas, o que uma ou duas dezenas de anos antes era promessa, já é "realidade". A migração provocou não apenas a ocupação desenfreada da periferia, o crescimento populacional e uma nova distribuição demográfica, mas mudanças significativas nas feições da cidade, nos seus modos e costumes. Os discursos desse período procuram significar, de pontos de vista diferentes e em alguns casos divergentes, essas experiências e as novas sociabilidades urbanas. Na literatura, por exemplo, perpassa um desencanto com um presente que, de certa forma, esvaziou de sentido aquelas utopias de felicidade e bem-estar do passado. Os poetas, especialmente, denunciam a atomização e a desumanização como resultados diretos da modernidade. A desagregação, a fragmentação e a desintegração do espaço público são a expressão da incapacidade de se estabelecer, na cidade que cresce horizontal e verticalmente, laços efetivos de solidariedade. E o que resta é a violência. Violência que na imprensa ganha outros contornos. Se na literatura ela se expressa, grosso modo, pela desumanização e atomização de que falávamos acima, nos jornais ela tem um nome com que identificá-la mais facilmente: delinqüência. Desde os mendigos que ocupam as praças públicas até os crimes de morte, a imprensa não poupa esforços para descobrir, denunciar, nominar, indicar os lugares e personagens perigosos. Mas, mais que simplesmente constatar e descrever o aumento nos índices de criminalidade, ela cumpre um papel fundamental na produção dessa violência. Trata-se 22

FOUCAULT, Michel. Outros espaços..., p. 420-421.

18

de, ao criar ou pelo menos aumentar o clima de medo, pânico e angústia, justificar aqueles discursos e ações que almejam, pela vigilância da cidade, a defesa da sociedade. É esse o papel, entre outros, dos "homens públicos", e os "nobres edis" joinvilenses não pouparão esforços para reivindicar, junto ao governo do estado, um maior e mais bem aparelhado contingente policial. As intenções são claras: se os discursos não foram suficientemente competentes, será pelo policiamento e a vigilância que se garantirá a paz no espaço público e a ordem urbana; a cidade disciplinar e, se possível, disciplinada. Um último comentário, antes de encerrarmos essa introdução. O que tentamos fazer ao longo dessa dissertação, ainda que de forma mais explícita nos dois capítulos finais, foi uma leitura dos silêncios. Se a linguagem e os discursos tendem a sedentarizar os significados, estabilizando-os e disciplinando-os, cabe-nos interrogar e apreender os significados em seu movimento originário, antes de sua apropriação pela linguagem e de sua organização pelos discursos.

Dito de outra forma e no contexto

de nossa pesquisa, tentamos recuperar aquelas falas e experiências que, intimidadas pelos discursos do poder, silenciaram-se - ou foram silenciadas. É verdade que, ao fazê-lo, corremos nós mesmos o risco de, num certo sentido, procedermos aquela organização, estabilização e disciplinarização de que falávamos logo acima. Por outro lado, parece-nos também que, ao final, não escrevemos apenas uma história dos grupos e sociabilidades marginais. Mas das memórias e sensibilidades,

dos

sentimentos e ressentimentos marginais.

23

ORLANDI, Eni Puccinelli. Asformas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas: Unicamp, 1992. p. 29-40.

19

i A COMEMORAÇÃO E O OLVIDO: A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA HISTÓRICA As manchetes, estampadas em letras garrafais nas capas dos dois matutinos joinvilenses, não deixavam margem de dúvida aos leitores acerca da importância da data.24 Joinville, a "pequena Alemanha tropical", cidade dos Príncipes, das Bicicletas e das Flores, epíteto que lhe foi conferido pessoalmente por um presidente da República, completava 100 anos de fundação.25 A programação, sob responsabilidade da Sociedade Amigos de Joinville, seria apreciada pessoalmente pelo príncipe D. Pedro, neto da Princesa Izabel e do Conde D'Eu.

Os pontos altos: a inauguração do

Monumento ao Colono, a sanção, durante o evento, da lei que alterava o nome da praça da Bandeira para "Praça do Centenário"27 e o desfile das bicicletas, no dia 10 pela manhã, com a participação de um "histórico veículo", a mais antiga bicicleta de Joinville. A fiarmo-nos nas edições subseqüentes, as festividades ocorreram sem registros de desordem, apesar do grande fluxo de pessoas presentes ao centro da cidade, onde aconteceram os eventos. Entusiásticamente, o editorial do Jornal de Joinville parabeniza o "magnífico exemplo de espírito de ordem, disciplina e cordena" do povo joinvilense, que soube não apenas comemorar a passagem do aniversário de sua cidade, como recebeu com cordialidade, alegria e simpatia, desde as autoridades

24

UM SÉCULO de vida. A Notícia. Joinvile, 09 mar. 1951. v. 29, n. 5.328, p. 1; JUBILOSAMENTE, comemora Joinville cem anos de fecunda existência Jornal de Joinville, 9 mar. 1951, v. 33, n. 55, p. 1. 25 Em visita à cidade, o presidente Afonso Pena, encantado com as flores que a adornavam, teria comentado que "Joinville é o jardim do Brasil". 26 ESTA na cidade o Príncipe D. Pedro. A Notícia, Joinvile, 09 mar. 1951, v. 29, a 5.328. p 1. 27 O novo nome não vingou: o lugar até hoje é conhecido como Praça da Bandeira. 28 PROGRAMA dos festejos. A Notícia, Joinvile, 09 mar. 1951, v. 29, n. 5.328. p. 1.

20

convidadas ao mais simples e anônimo dos "forasteiros". "As festividades estão se processando em um ambiente calmo, cordial e animador", constata o editorial. Todos os esforços foram empreendidos para "ser evitada qualquer exteriorização de 29

animosidade, que, siquer, de leve, pudesse empanar o brilho dos festejos". Até aí, nenhuma surpresa. Afinal, foi o mesmo Jornal de Joinville que, no seu editorial de um dia antes, afirmava não restar dúvida "que se pode considerar bastante elevado, sob vários aspectos, o nível de civilização já atingido por Joinville nesses cem OA anos de existência".

O mínimo a se esperar, então, é ordem e cordialidade

condizentes com o seu grau de civilidade. Se não por outro motivo, pelo menos em respeito à memória daqueles que, um século antes, aportaram às margens do Rio Cachoeira, a bordo da Barca Colón, para plantar, em terras virgens, a semente da civilização. Porque, num certo sentido, a festa trazia, em seu interior, uma estranha dialética. Para comemorar o tempo presente, era preciso refazer o passado. A celebração da vida e dos vivos, era também a celebração da morte e dos mortos. Sua redenção póstuma. O 9 de março de 1951 foi uma festa. Mas foi também um rito fúnebre.

29

DEMONSTRADO em alto grau o espírito de compreensão e cordena do povo. Jornal de Joinville, 10 mar. 1951, v. 33, n. 56, p. 1. 30 JUBILOSAMENTE, comemora Joinville cem anos de fecunda existência Jornal de Joinville, 09 mar. 1951, v. 33, a 55, p. 1.

21

1.1 OS VIVOS E OS MORTOS

Sua alma acercara-se da região habitada pela vasta legião dos mortos. Pressentia a existência errática e perambulante dos mortos, embora fosse incapaz de apreendê-la. Sua própria identidade desaparecia num mundo cinzento e incorpóreo; o mundo sólido, antes construído e habitado por esses mortos, dissolvia-se, esvaia-se. James Joyce

Em "Os mortos", último conto da antologia "Dublinenses", Gretta revive, depois de uma noite entre a família e os amigos, embalada por velhas canções "3 1

executadas ao piano, uma de suas lembranças de juventude.

A um atônito Gabriel,

seu marido, com quem construíra ao longo dos anos uma relação sólida, repleta de "carinho e felicidade e desejo", narra aqueles meses que, longe no tempo, mas presentes na memória, enamorou-se do jovem Michael Furey. E o que a princípio parecera a Gabriel uma paixão de juventude, adquire, pela narração de Gretta, uma outra dimensão e significado. Morto ainda jovem ("Acho que morreu por mim", confessa Gretta), Michael permanece na lembrança da protagonista menos como aquilo que foi e significou no passado, e mais pelo que, revivido na memória, veio a ser no presente. Resignificado no e pelo tempo, o frescor e a felicidade que uniram Michael e Gretta na juventude ("Fui feliz ao lado dele, naquela época"), transformaram-se em um sentimento outro. A experiência da morte, fez nascer o amor. A impossibilidade do amor, a lembrança. Cujo significado é duplamente simbólico: primeiro como rito de sepultamento que exorciza a morte, inscrevendo-a no discurso.

31

JOYCE, James. Os mortos. In.: Dublinenses. Trad, de José Roberto O'Shea. São Paulo: Siciliano, 1993. p. 177-222.

22

Segundo, porque dá à morte um lugar no passado, ao mesmo tempo em que possibilita, pela linguagem que inventa e molda esse passado, não apenas atribuir-lhe um significado no presente, mas ao presente. Em outras palavras, buscar na recorrência ao que está morto, a identidade do que somos no presente - aquilo que está vivo, e vive. Porque, a exemplo de Gretta, não buscamos na memória nossas experiências tal e qual a vivemos. Nós as refazemos a partir de nossos desejos, sentimentos, sensações, valores, etc. E é esse presente que atribui ao passado um significado, ao mesmo tempo em que esse, revivido e inscrito na linguagem, atribui um significado ao presente.32 Nas palavras de Certeau, a narratividade, "que enterra os mortos", é também um "meio de estabelecer um lugar para os vivos". A evocação à ficção de Joyce pode apontar uma possível interpretação da festa do centenário de Joinville, além de abrir possibilidades de esclarecer o que, numa primeira leitura, pode parecer paradoxal: a afirmação de que o 9 de março de 1951 foi uma festa e um rito fúnebre. Mesmo uma leitura apressada das edições especiais de "A Notícia" e do "Jornal de Joinville", faz saltar aos olhos o entusiasmo com que os redatores se reportam ao passado, mais que ao presente, para celebrar os cem anos da cidade. Nada original, dirão alguns: é senso comum as "cidades" comemorarem suas datas natalicias evocando suas "origens". Mas o que pretendemos aqui é fazer uma leitura desses discursos para tentar extrair deles o que está para além da superfície.

32

BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In.: Magia e técnica, arte e política. Trad, de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1993. p. 197-221 (Obras escolhidas, v. 1) 33 CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Trad, de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000, p. 107.

23

Acreditamos que eles não somente "evocam", mas "constróem" um passado, estabelecendo no interior dessa construção um lugar para o presente. São significativos, nesse sentido, os editoriais de "A Notícia" e do "Jornal de Joinville". Em ambos, perpassa uma linguagem que não é apenas laudatoria: o que se pretende, é criar um sentimento tanto de continuidade quanto de identificação com a colonização e seus personagens. O Jornal de Joinville recomenda que (...) Na apreciação da obra do homem, será justo que o historiador de amanhã se fixe, com o devido carinho, nos quadros dos acontecimentos e exalte os esforços ingentes daqueles bravos 117 alemães e 74 noruegueses que o barco "Colon", vindo de Hamburgo, deixou, em 9 de março de 1851, nas margens do rio Cachoeira para que dessem início - sabe Deus como - á (sic) colonização.34

O sentimento de continuidade entre a origem e o vivido é reforçado com chamados à ordem que atribuem aos leitores, os joinvilenses de

1951, a

responsabilidade por preservar e continuar o empreendimento colonizador iniciado por seus antepassados:

Deve o joinvilense trazer á (sic) memória, a luta e o sacrifício vencidos por nossos antepassados que aqui plantaram a semente do progresso e a viram germinar, regada com o suor profícuo do trabalho. (...) Necessário é, a cada joinvilense, lembrar-se que assim como seu avô e seu pai o foram, é ele também uma peça viva da complexa engrenagem dessa grande usina.35

Mas é preciso atribuir um valor a esse chamamento, fazer valer a pena sentir-se "também uma peça viva" dessa "grande usina" de progresso e civilização que se tornou Joinville. Assim, pari passu aos discursos que fundam e fixam, no tempo, a origem da cidade, busca-se construir uma identificação não apenas com o "sentido" da

34 35

JUBILOSAMENTE..., 9 mar. 1951, v.33, a 55, p. 1. UM século de vida. A Notícia, Joinville, 9 mar. 1951, v.29, a 5328, p. 1.

24

colonização, mas com seu cotidiano mais mundano e os esforços empreendidos pelos colonizadores. Tarefa facilitada, de certa forma, pelas próprias condições adversas vividas pelos primeiros imigrantes germânicos que aportaram em Joinville: a instabilidade na imigração - havia ocasiões em que vinham menos colonos que o contratado, outras em que vinha gente demais - , a falta de capital necessário à execução dos planos - apesar dos subsídios concedidos a então Colônia Dona Francisca, esses eram aquém do esperado e chegavam, normalmente, com atraso - , entre outros. Além, evidentemente, das dificuldades com as condições climáticas e naturais - não bastasse o calor, a colônia era um imenso manguezal e apenas parte das 36

terras provou ser fértil. O cenário, especialmente o natural, era perfeito à representação que se constrói em torno do imigrante: a rotina difícil dos primeiros anos oferece as condições propícias à heroicização dos colonizadores, cuja obstinação, força e vontade de vencer prevaleceram sobre a natureza bruta e selvagem, imprimindo nela a marca do progresso e da civilização. Que fazer, no entanto, se em 1951 os joinvilenses já não vivem as mesmas dificuldades enfrentadas um século antes? Ao atribuir, pela narração, uma inteligibilidade à epopéia colonizadora, os discursos do centenário fazem mais que fundar as origens "objetivas" da cidade. O tempo pretérito serve não apenas para descortinar o princípio de todas as coisas visíveis - poder desfrutar do "conforto e das comodidades de uma terra civilizada", no dizer do "Jornal de 36

Há uma bibliografia relativamente vasta acerca da colonização germânica em Santa Catarina e, em especial, Joinville. Como se trata, aqui, de um relato meramente factual, utilizamos como referência a obra de: FOUQUET, Carlos. O imigrante alemão e seus descendentes no Brasil. Trad, de Guido Pabst. São Paulo: Instituto Hans Staden, 1974, p. 33-35. Na historiografia regional, uma das principais obras de referência sobre o tema é: FICKER, Carlos. História de Joinville: subsídios para a crônica da colônia Dona Francisca Joinville:

25

Joinville". Ele funda e fixa também aquilo que atribui um sentido e um significado ao "ser" joinvilense. Unindo presente e passado sob o mesmo signo, apelando à continuidade do projeto colonizador e civilizador, o que está em jogo é a cristalização de uma identidade una, coesa, perene no tempo. E que será construída buscando-se, no passado, os conteúdos pertinentes à consolidação de uma memória que, tornada presente, une os vivos e os mortos pelo sentimento de pertencer a uma mesma e única história. Trocando em miúdos, a memória da colonização será o fio de Ariadne que permitirá, enfim, aos mortos, reencontrar o caminho de volta para casa. No trajeto, no entanto, algo se transformou: no encontro entre os "heróis" do passado e as novas gerações, importa menos aquilo que se viveu e mais aquilo que a experiência da colonização pode significar aos homens e mulheres do presente. Esse movimento de consolidação de uma identidade, profundamente articulada à construção da memória do grupo, aparece de forma ainda mais interessante se lembrarmos que, há poucos anos, a comunidade joinvilense, constituída em 1951 de maioria teuto-brasileira, sofreu a violência institucional e estatal da Campanha de Nacionalização. Entre 1937 e 1945, durante o Estado Novo, Joinville e outras cidades catarinenses de colonização germânica foram consideradas áreas de risco à Segurança e Soberania Nacional. Em Joinville, a intervenção nacionalizadora de Vargas foi dirigida pela 5 a Região Militar, sob o comando e supervisão do General Meira de Vasconcelos, auxiliado pelo 13° Batalhão de Caçadores, este último sediado na cidade. A ordem era clara: na expressão de uma historiadora joinvilense contemporânea, é

Ipiranga, 1965, especialmente os capítulos iniciais, onde o autor aborda os primeiros anos da colonização e o processo de adaptação dos imigrantes à nova terra.

18

26

"proibido ser alemão", era hora de "abrasileirar-se".

A assimilação à força de uma

"identidade nacional", brasileira, passava obrigatoriamente pela negação, por parte do imigrante, do apego a qualquer valor ou tradição considerada estrangeira. Entre as primeiras medidas adotadas pelo governo ditatorial de Getúlio Vargas, estavam a proibição do uso da língua alemã e a nacionalização do ensino. Ambas atingiram em cheio a comunidade joinvilense, que se viu tolhida, da noite para o dia, da liberdade de usar o idioma cotidiano de uma significativa parcela de seus integrantes, e de algumas 38

de suas principais escolas, entre elas a já tradicional Deutsche Schule. A situação se tornou ainda mais delicada com a entrada do Brasil na guerra: a propaganda oficial do Estado reforçava o sentimento nacionalista contra estrangeiros, especialmente os de origem germânica, italiana e japonesa. No caso dos germânicos, estes eram vistos como, além de inimigos internos, propagadores do nazismo. Ao mesmo tempo, as ações militares e policiais se tornaram mais rígidas: aparelhos de rádio

e

outros

utilitários

foram

apreendidos,

bens

foram

seqüestrados,

correspondências eram censuradas e as denúncias contra teuto-brasileiros que falassem alemão ou se comportassem de maneira suspeita, estimuladas. Os clubes e associações culturais e recreativas foram fechados. Vivendo sob ameaça da violência da polícia, do exército e mesmo de conterrâneos de origens outras, à comunidade teuto de Joinville

37

Trata-se do título de um artigo da professora e historiadora Ilanil Coelho. COELHO, Ilanil. É proibido ser alemão: é tempo de abrasileirar-se. In.: GUEDES, Sandra (org.). Histórias de (i)migrantes: o cotidiano de uma cidade Joinville: Univille, 2000. 38 Hoje Colégio Bom Jesus, pertencente à comunidade luterana de Joinville.

27

restou, como alternativa, um silencio que poderia parecer, naqueles anos conturbados, uma recusa de suas "origens" e de sua "identidade".39 Mas é preciso interpretar esse silêncio. À margem dos "jogos de palavras", onde discursos competentes autorizam e desautorizam verdades e sentidos, ele pode ser uma forma de resistência que, subliminarmente, desafia a ordem e o poder.40 Em Joinville, nos anos imediatamente posteriores ao fim do governo Vargas, as ações dos teuto-brasileiros mostram que o silêncio forçado não apenas foi incapaz de apagar os registros que atribuíam um sentido e um significado ao seu "estar-no-mundo", como alimentou a memória, fortalecendo num certo sentido os dispositivos culturais característicos da "germanidade". Por outro lado, a visibilidade do sentimento germânico pós-45 traz em seu bojo novos significados. A tensão e mesmo a fragilidade vividas nos anos da Nacionalização exigem um refazer das sensibilidades, frente a um cenário que se transformara. É preciso, pela linguagem e pelo discurso até então silenciados, fazer com que o "diferente" permaneça o "mesmo", afirmando no presente uma identidade cuja origem está no passado, preservada na memória. Dizer o "antigo" para significar o "novo" ou, nas palavras de Eni Orlandi, "é recorrendo ao já-dito que o sujeito resignifica. E se significa".41 As comemorações do centenário da cidade são o ensejo ideal a este "fazer lembrar" aquilo que, na verdade, nunca foi esquecido. Ao celebrarem a epopéia dos primeiros colonizadores, os joinvilenses de 1951 - e, especialmente, os de origem 39

Sobre a campanha de nacionalização em Joinville ver, especialmente: COELHO, Ilanil. A campanha da nacionalização em Joinville. São Carlos: 1993. (Dissertação) Mestrado em Ciências Sociais - UFSCAR. Sobre a colonização alemã ver SEYFERTH, Giralda. A colonização alemã no Vale do ltajcú-Mirim. Porto Alegre: Movimento, 1974, e SEYFERTH, Giralda. Nacionalismo e identidade étnica. Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura, 1981.

28

germânica - fazem mais que simplesmente prestar sua homenagem aos fundadores. Se lá, em 1851, foi preciso lutai" e vencer o isolamento e as condições naturais de uma terra virgem e selvagem, cem anos depois a comunidade venceu e sobreviveu à perseguição e ao estigma, perpetrados pela violência política e a furia nacionalista do Estado Novo. Inscrevem, assim, a sua própria experiência na história de heroísmo e de coragem daqueles que venceram as vicissitudes da vida cotidiana para erigir a civilização, obra e herança das quais os joinvilenses são, por direito, os continuadores. E, ao fazê-lo, constroem a sua memória, buscando nela uma identidade com um passado cuja unicidade e coesão são capazes de atribuir um sentido e um significado ao presente.

40 41

ORLANDI, Eni Pucinelli. As formas..., 1992, p. 63-96. ORLANDI, Eni Pucinelli. As formas..., p. 90.

29

1.2 MANIPULAR O TEMPO, FORJAR A IDENTIDADE

A realidade Sei que é mais ou menos Do que nós queremos Só nós somos sempre Iguais a nós próprios. Ricardo Reis

O papel da memória na construção da identidade de um grupo ou comunidade vem ganhando relevância pelo menos desde a obra já clássica de Maurice Halbwachs, publicada postumamente em 1950.42 De maneira geral, podemos afirmar, com Lowenthal, que "relembrar o passado é crucial para nosso sentido de identidade: saber o que fomos confirma o que somos".43 Mas, se nos permitirmos uma corruptela, podemos dizer também: "construir o passado é crucial para nosso sentido de identidade: inventar o que fomos confirma o que somos". E poderemos nos perguntar, mais livremente: de que passado falamos? E, nesse passado, qual identidade nos interessa "preservar"? Se levarmos em conta as cicatrizes recentes da experiência vivida alguns anos antes do centenário, parece-nos que o movimento de construção e afirmação da memória e da identidade "joinvilenses" confirma o argumento de Pollak: "[a memória] ao definir o que é comum a um grupo e o que o diferencia dos outros, fundamenta e reforça os sentimentos de pertencimento e as fronteiras sócioculturais".44 Em outras palavras: longe de ser um atributo interno do grupo, a sua

42

HALB WACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. de Laurent Léon Schaffter. São Paulo: Vértice, 1990. Além de Halbwachs, ver também: POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro: editora, v. 2, a 3, 1989. e POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos. Rio de Janeiro: editora, v. 5, a 10, 1992. No Brasil, uma das principais obras de referência sobre o tema é: BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. 43 LOWENTHAL, David. Como..., 1998, p. 83. 44 POLLAK, Michael. Memória, esquecimento..., p. 3.

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identidade é construída a partir da relação com o outro. Pois é pelo olhar de fora, do estrangeiro, que se estabelece o estatuto da diferença: os iguais não podem ver a si mesmos como diferentes.45 No caso dos joinvilenses de origem teuto, a situação-limite vivida durante a Campanha de Nacionalização parece ter reforçado esse sentimento de coesão interna e a necessidade de diferenciação em relação ao "não-germânico". A identidade se afirma, negando: o grupo diz o que quer ser pela recusa do que, no outro, lhe é estranho. Como parte desse processo de afirmação de uma identidade, há aquilo que chamaremos aqui de um trabalho de reenquadramento da memória. E se a inspiração vem de Pollak, é preciso explicitar as razões pelas quais utilizamos o conceito de forma diversa ao seu uso original. Acreditamos que já há, em Joinville, uma memória oficial construída, "enquadrada", que atribui ao passado um significado que é mais ou menos comum a todos - e a própria festa de 9 de março parece demonstrar isso. O que ocorre a partir da década de 1950, e que tem nas comemorações do centenário seu "nascimento",

se visto sob uma perspectiva simbólica,

é um processo

de

ressignificação daquela memória já enquadrada e tornada oficial. Um trabalho necessário se levarmos em conta as mudanças pelas quais a cidade está passando neste momento, a começar pela paulatina modificação na sua demografía. Se são outros os ouvintes, são outros também os discursos e os significados atribuídos à memória, ainda que, num certo sentido, os conteúdos permaneçam inalterados.46

45

BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras. In.: POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne. "Teorias da etniädade". Trad. de Élcio Fernandes. São Paulo: Edusp, 1998, p. 191-97. 46 O conceito de "enquadramento da memória", que inspira as discussões que seguem nesse parágrafo, é de Michael Pollak, em: POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio..., 1989, p. 3-15.

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Esse movimento de ressignifícação ocorre em três estágios que, aparentemente distintos, são, na verdade, complementares. Primeiro, trata-se de conferir ao passado um valor positivo, modelando e ordenando os acontecimentos de forma a conferir-lhes um caráter mítico e místico, origem primeira de todas as coisas. "Arrancada ao tempo", no dizer de Bourdieu47, a memória desse passado esvazia-o de seu conteúdo histórico, negligenciando, por exemplo, as razões políticas da imigração germânica ÂQ

para o Sul do Brasil.

Num segundo momento, trata-se de estabelecer entre o ontem e

o agora uma relação de continuidade, retendo do passado aquilo "que ainda está vivo ou capaz de viver na consciência do grupo que a mantém [a memória]".49 A herança será um mecanismo discursivo recorrente: é preciso honrar o legado dos antepassados, "que aqui plantaram a semente do progresso e a viram germinar, regada com o suor de profícuo trabalho".50 No "Jornal de Joinville" esse legado atende pelo nome de "civilização", também ela fruto da "semente do progresso":

Não resta dúvida que se pode considerar bastante elevado, sob vários aspectos, o nível de civilização já atingido por Joinville nesses cem anos de existência. 47

BOURDIEU, Pierre. Razões práticas - Sobre a teoria da ação. Trad, de Mariza Côrrea. Campinas: Papirus, 1996. p. 74-82. 48 Depois de um breve período de refluxo, a Lei das Colonizações, de 1836, marca o reinicio de uma política "liberal" do governo imperial no que tange às imigrações. Ela permite a nativos e estrangeiros, empresas e particulares, a fundação de colônias em terras pertencentes ao Estado. Duas razões, em especial, motivam essa mudança: a necessidade de povoar, com lavradores e artesãos, principalmente, áreas ainda pouco exploradas economicamente, e garantir as fronteiras nacionais em regiões limítrofes, povoando-as. Do outro lado do Atlântico, os motivos da emigração eram vários: dos econômicos, políticos e ideológicos, ao simples gosto pela aventura e pelo desconhecido. Há de se levar em conta o fato significativo de que, ao passar para a mão de particulares a responsabilidade pela imigração, o governo imperial transformou-a em um negócio atraente e lucrativo. Segundo Fouquet, "a habilidade de inúmeros agentes e profissionais promotores, que trabalhavam para os países que precisavam de imigrantes ou para as companhias de colonização, colonizadores particulares ou empresas de navegação", foi responsável pelo deslocamento de centenas de famílias européias para o Brasil. O mesmo autor nos chama ainda a atenção para o fato de que "a atividade desses agentes era bastante mal afamada, contudo impunham-se eles, caracterizando-se por sua frieza e falta de escrúpulos. Quem neles por um instante confiava e lhes dava consentimento,raramenteescapava." FOUQUET, Carlos. O imigrante alemão.... 1974, p. 65-69 e 98-106. 49 HALB WACHS, Maurice. A memória coletiva..., p. 81. 50 UM Século De Vida. A Notícia, Joinvile, 0 9 mar. 1951, v. 29, n. 5.328, p. 1.

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(...) Eduardo Schoroeder poderia, se vivo fosse, contar á (sic) geração que neste momento desfruta plácidamente das comodidades que apresenta uma terra civilizada, o quanto de amargura, e de decepção, de lutas intensas, sofreu aquela boa gente que orientava, acostumada a um ambiente melhor na velha Europa. (...) Trabalharam a terra, criaram o gado, deram frutos as plantações, apareceram as primeiras estradas e as casas foram se enchendo dos gritos alegres da criançada. Era a redenção. Era a fartura que vinha, era a glória que chegava para os primeiros povoadores da terra que era linda e fértil. E nela viveram e nela morreram, legando aos descendentes o exemplo da dedicação ao trabalho construtivo, ao labor honesto, que engrandece o homem e torna respeitadas as nações.51

Por fim e por último, há a socialização dessa memória. Mais precisamente, as formas como, pelos discursos, ela unificou as representações da identidade produzida no seu interior, a "imagem de si, para si e para os outros"; a forma como o grupo se representa internamente mas também, e principalmente, a imagem que representa de si para os outros.52 Trocando em miúdos, o movimento pelo qual essa memória, ao designar uma identidade ao grupo, torna-se ela própria uma "memória oficial", não apenas organizando o passado, mas tornando-o uma referência comum. Michael Pollak sugere que, ao analisar as funções políticas das "memórias oficiais", é preciso ater-se ao trabalho de organização de seus conteúdos e às formas pelas quais eles são representados pelos discursos, superando assim as leituras e interpretações que recorrem à "montagem" ideológica, "por definição precária e frágil", cujo objetivo é sustentar e legitimar a dominação de uma classe ou grupo sobre outro. Segundo ele, "a referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementaridade, mas também as oposições irredutíveis".53

51

Em outras palavras, o trabalho de

JUBILOSAMENTE, comemora Joinville cem anos de fecunda existência Jornal de Joinville, 09 de mar. 1951, v. 33, a 55, p. 1. 52 BOSI, Ecléa. Memória e sociedade... p.. 53-56. POLLAK, Memória e identidade social.., 1992, p. 205-207. 53 POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio... p. 9

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organização, de reenquadramerito da memória, é também parte dos jogos políticos e das relações de poder: se nossa lembrança é sempre menor que o passado e se, portanto, relembrar pressupõe o esquecimento, o que é preciso olvidar para que "a lembrança do que fomos confirme o que somos"? Voltemos rapidamente ao conto de Joyce: é a partir do desaparecimento de Michael Furey que Gretta revive sua "história de amor", identificando-se com esse passado. Sua lembrança, no entanto, é construída tendo como referência suas experiências vividas desde a morte de Michael e o desejo de, ao reviver na memória um amor tolhido ainda na juventude, suprir em parte sua angústia presente. Para que ele signifique no presente, é preciso ressignificá-lo no passado, ainda que, na conjugação das lembranças, seja necessário apagar os rastros que indicavam a quase impossibilidade da realização amorosa: Gretta é uma aristocrata, filha de uma tradicional família de Dublin; Michael, um garoto que trabalhava no gasómetro.54 Também em Joinville, o trabalho de reenquadramento da memória dá-se a partir de um recorte que, do presente, extrai do passado os conteúdos necessários à sua legitimação. Apagados os rastros que sinalizam as descontinuidades e as rupturas do tempo histórico, resta o tempo linear e homogêneo de uma memória tornada oficial e, por fim, socializada. Os dispositivos acionados na produção dessa memória trazem, ao historiador, uma sensação de déjà vu: as narrativas sobre o passado são organizadas sempre do ponto de vista dos grandes nomes e de seus feitos, dos ácontecimentos ímpares. No entanto, além da produção de discursos que visam imprimir à cidade a marca indelével de suas origens, as ações no sentido de socializar e tomar comum essa

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origem inscrevem-na naquele tempo homogêneo e linear de que falávamos antes, condição necessária à identificação entre o vivido e o já morto, mas revivido pela linguagem. Assim, na interpretação que fazem do passado, os discursos da imprensa não apenas apagam as rupturas e descontinuidades da história, mas eliminam as diferenças entre aquele e o presente. Fazem, em suma, com que os homens e mulheres de 1951 procurem encontrar um significado para suas experiências no cotidiano de homens e mulheres que viveram em um longínquo 1851, tornado próximo pelos discursos que atribuem a uns e outros uma mesma identidade. Sentados a uma mesa comum, os vivos e os mortos compartilham um mesmo mundo, pesam-lhe sobre as costas as mesmas responsabilidades. A missão de uns, é agora dever de outros. Mas é preciso levar em conta, nesse processo de socialização da memória, pelo menos dois fatores que convergem para um novo perfil demográfico da cidade. Primeiro, o seu relativo crescimento - no início da década de 50 viviam em Joinville cerca de 42 mil pessoas. Segundo, a experiência da perseguição sofrida durante o Estado Novo, da qual já falamos, cujo desenlace, segundo Ternes, aponta finalmente para "os primeiros sinais de efetiva integração".55 Não seria demais, portanto, arriscarmos o palpite de que, a essas alturas, os discursos não se voltam mais apenas à comunidade germânica de Joinville. Sob a égide da integração e do crescimento (e, mais adiante, veremos como o crescimento populacional será necessário à sustentação do desenvolvimento econômico de Joinville), é preciso redefinir quem são os joinvilenses: "joinvilense foi o que aqui aportou, vindo pelo "Colón", e o que, natural

54 55

44.

JOYCE, James. Os mortos..., 1993, p. 177-222. TERNES, Apolinário. História de Joinville: Uma abordagem críticaJoinville: Meyer, 1981.p. 263-

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de outras terras aqui veio trabalhar, é aquele que aqui tem sua família, seu lar, seus amigos, é enfim, o povo todo desta comuna".56 Embora pequeno, esse extrato merece alguns comentários antes que sigamos adiante. Não deixa de ser significativa a afirmação de que os joinvilenses foram os que aportaram, cem anos antes, vindos da Europa, e aqueles que, nascidos em "outras terras", escolheram Joinville para "trabalhar". O silêncio sobre os joinvilenses nascidos no hiato entre a fundação e as comemorações do centenário não chega a ser incômodo. Ele apenas corrobora o que vemos defendendo: não há ruptura em uma identidade cuja principal característica é estar fixa no tempo. Mas há os naturais de outras "terras". E entre esses e os nativos é preciso criar um mecanismo de integração e identificação. E, antes da família, do lar ou dos amigos, é o trabalho, herança do colonizador, que o torna joinvilense. Uma hierarquização, no mais, coerente com outras passagens dos editoriais, tanto de "A Notícia" quanto do "Jornal de Joinville", já que o progresso e o "elevado nível de civilização" da cidade repousam sobre o trabalho dos pioneiros. Em suma, o caráter laborioso dos mortos alimenta o espírito os vivos, e integra nativos e os "de fora" na missão de salvaguardar a sua memória. Mas há algo nesse movimento de integração que não pode nos escapar. Acima, falávamos do apagamento das diferenças entre passado e presente no processo de construção da identidade. Ao integrar os migrantes, os discursos apagam também os seus traços plurais e diacríticos, "colando" neles uma identidade construída a sua revelia, tomando-os como integrantes de uma comuna "desde sempre". Há aqui uma significação do tempo que é percebido ora em uma dimensão religiosa (quando se 56

UM século de vida...., 1951, v.29, n. 5328, p. 1.

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reporta ao passado), ora teleológica (quando fala do futuro): "Esse patrimônio é sagrado! Jamais poderá diminuir! Deverá sim, sempre aumentar, para que no dia em que o entregarmos a nossos filhos, possamos estar com a consciência tranqüila, própria cn

daqueles que sentem a satisfação e o conforto do dever cumprido".

E podemos dizer,

junto com Lowenthal, que não apenas o passado, masCOtambém o futuro, podem ser adaptados "a fim de enriquecer e manipular o presente".

57 58

id., p. i LOWENTHAL, David. Como conhecemos o passado..., 1998, p. 103.

37

1.3 CARNE E PEDRA: A MEMÓRIA SOLIDIFICADA

- Por que falar das pedras? Só o arco me interessa. Polo responde: - Sem pedras o arco não existe. A memória é redundante: repete os símbolos para que a cidade comece a existir. ítalo Calvino

A cerimônia constava da programação do centenário com início marcado para as 9h25. É possível que tenha havido um pequeno atraso, mas os jornais não nos falam disso. Uns minutos a mais ou a menos eram irrelevantes, se levarmos em conta a razão pela qual uma "avultada massa populacional, a maior até hoje reunida em praça pública"59, além evidentemente de autoridades civis e militares, se reuniram na praça da Bandeira. E foi diante de um público heterogêneo, mas irmanado no orgulho e no entusiasmo, que o prefeito Rolf Colin inaugurou solenemente, na manhã de 9 de março de 1951, o Monumento ao Colono. A obra, encomendada a Fritz Alt60, retratava em granito e bronze o início da então Colônia Dona Francisca. As primeiras centenas de imigrantes chegados à colônia eram representadas por uma família - pai, mãe e filho e por seus instrumentos de trabalho - o carroção e ferramentas usadas na lavoura. Os olhares altivos miram o horizonte, representação simbólica de um futuro a ser desbravado e foijado.

59

MONUMENTO ao colono: enorme a multidão que assistiu á inauguração. Jornal de Joinville, 10 mar. 1951, V. 33, n. 56, p. 7 60 Fritz Alt, nasceu em 1902, na cidade de Lieh, na Alemanha. Estudou escultura em seu país natal, antes de mudar-se para o Brasil em 1922 - primeiro para o Rio de Janeiro e, depois, Joinville. Morreu em março de 1968. Atualmente, sua antiga residência é um museu que leva o seu nome, onde são expostos suas esculturas e objetos de trabalho. Ver: HEINZELMANN, Sílvia. Fritz Alt. Joinville: Fundação Cultural de Joinville AHJ/MAJ, 1991.

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Tão ou mais entusiasmados que o público a que se dirigem, os matutinos locais enfatizam em seus textos "o tributo da cidacle e cias gerações novas de Joinville" aos imigrantes, "homens que lançaram os fundamentos de nosso progresso e de nossa grandeza":

Deve-se, em verdade, aos pioneiros, aqueles que vieram de longínquas plagas para aqui estabelecer os princípios de uma nova vida, o marco inicial de uma cidade que hoje se faz orgulho de Santa Catarina. Justo é esse preito de reconhecimento que se traduz pela inauguração de hoje, pois que representa a expressão dos sentimentos de gratidão do povo aos homens que, enfrentando todas as adversidades, deram início à obra que hoje nos compete continuar e concluir, como legatários de uma herança de trabalho, de dever e de honra. Expressando fases das mais significativas da chegada dos imigrantes, traduzindo com emoção os sentimentos desses homens e dessas mulheres que vieram de terras distantes para aqui instalar-se numa nova Pátria, a obra magnífica de Fritz Alt (...) nos dá a compreensão verdadeira do que significou para este pedaço do Brasil a vinda desses emissários de uma civilização mais antiga, aos quais devemos o esforço inicial de nossa existência coletiva e as bases fundamentais de nosso progresso. (...) ali não está apenas uma obra de arte, mas também a expressão magnífica de um feito que enobrece e engrandece um povo. 61

Se lidas apressadamente, as palavras de "A Notícia" parecem repetir, ad nauseam, o que já havia sido dito em seu editorial. A diferença é o caráter perene não das palavras, mas da coisa que elas representam e significam. Se a memória é socializada pelos discursos, que unificam as dispersões da história, é preciso interpretar a pedra talhada e feita monumento também como um discurso, para então tentar apreender suas funções sociais e políticas como parte do trabalho de r

reenquadramento daquela.

E Pollak quem nos chama a atenção para o fato de que,

além dos discursos que privilegiam os acontecimentos e os grandes nomes, também os objetos materiais - monumentos, estátuas, prédios - cumprem um papel na construção 61

O MONUMENTO aos colonizadores. A Notícia, Joinvile, 09 mar. 1951, v. 29, n. 5.328, p. 24. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade..., p.53-56. Ver, também: LE GOFF, Jacques. História e memória. Trad, de Bernardo Leitão. Campinas: Editora da Unicamp, 1996. p. 535-540. 62

39

e legitimação da memória oficial, que é assim "guardada e solidificada nas pedras". Pontos de referência do passado, elas se integram a um "sentimento de filiação e de origem", tornando-se progressivamente um "fundo cultural comum a toda a humanidade".63 O que não impede, segundo o mesmo Pollak, que os nascidos nos locais dessas heranças se sintam especialmente orgulhosos: embora tenham se tornado um "patrimônio universal", as pirâmides do Egito e a Torre Eiffel, por exemplo, continuam sendo nativas do Egito e da França, parte da paisagem desses países. O fato de serem uma referência internacional não as torna menos "nacionais". Aliás, é essa "identidade", que as üga a um país, a um território, uma de suas principais características. Os artífices do Monumento ao Colono, por certo, não ambicionavam torná-lo um patrimônio da humanidade mas, resguardadas as devidas proporções, também em Joinville constituiu-se, a partir de um elemento material, a integração de "sentimentos de filiação". Contudo não se perdeu de vista que, se a identidade é comum, a origem não necessariamente o é. Para sermos mais específicos: todos os joinvilenses, mesmo aquele que "natural de outras terras que aqui veio trabalhar", têm motivos para olhar com orgulho e respeito o Monumento ao Colono. Eles continuam a obra dos pioneiros, iniciada cem anos antes com um carroção e alguns poucos instrumentos de trabalho. Vivem, em seu dia-a-dia, o horizonte futuro almejado por aquela família de granito e bronze, que simboliza os sonhos e esperanças de outras famílias, essas de carne, mas de vontade e coragem tão resistentes quanto a pedra. Sonhos e esperanças que, também como a pedra, resistiram ao tempo. Mas, porque eram humanos, de carne, 63

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio..., p. 10-11.

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ousaram transformá-lo, forjando em meio às dificuldades "as bases fundamentais do nosso progresso". Por outro lado, o monumento parece falar mais diretamente à comunidade teuto-brasileira que, sem o ônus da escolha, nasceu e cresceu em Joinville. Porque não está a se falar da origem de uma cidade, como se ela nascesse e crescesse por si só, ou pela mão demiúrgica de um ente cuja vontade determinasse todas as coisas. O que se diz naquela imagem esculpida em granito e bronze é a "expressão magnífica de um feito que enobrece e engrandece um povo", responsável pela construção de uma cidade e, nas palavras dos jornais, de uma "civilização". Trata-se, portanto, do fragmento de um passado que não é compartilhado, a priori, por todos os joinvilenses, mas apenas por aqueles de ascendência germânica nascidos em Joinville. Ele se torna um "fundo cultural comum" no momento em que, pelos discursos, os homens e mulheres do presente são integrados a uma origem que é a manifestação primeira de uma identidade que busca, no passado, uma significação para o presente. A consolidação dessa imagem - a simbólica, mais que o monumento de pedra que a representa implica, a exemplo do que falávamos algumas páginas atrás, tanto a sua inscrição num tempo linear e homogêneo, quanto o apagamento dos rastros e indícios de trajetórias históricas plurais, seja no passado ou no presente. Uma prática que, aliás, precede a construção dos monumentos públicos. Antes de guardar e solidificar a memória nas pedras, é preciso organizar e enquadrar seus conteúdos, estabelecendo o que deve ser lembrado e esquecido pela história. Objeções podem ser feitas a essa argumentação, partindo da constatação de que, se os primeiros imigrantes eram germânicos, não haveria outra maneira de Fritz Alt

41

retratá-los. Além disso, o monumento foi uma homenagem do poder público aos fundadores num período da história (estamos em 1951) em que a maioria da população ainda era de teuto-brasileiros - e, portanto, descendentes dos colonizadores. Alguns poderão dizer ainda que estamos exagerando em nossa crítica, deturpando os "fatos" para que eles se encaixem na "teoria". Registradas as oposições e respeitado o direito à pluralidade, permitam-nos que apresentemos nossa defesa. É verdade que, do ponto de vista oficial, os primeiros imigrantes eram germânicos - alemães, suíços e noruegueses, principalmente.64 Também o é, e já dissemos isso, que por ocasião do seu centenário uma parcela significativa da comunidade joinvilense era de ascendência germânica. Não estamos nos opondo a essas "evidências irrefutáveis", nem tampouco ao direito dessa comunidade de se sentir orgulhosa ou mesmo homenageada, ainda que indiretamente, com um monumento construído em honra aos seus antepassados. Nossa intenção é discutir as relações de poder que são, por assim dizer, o "pano de fundo" na construção dessas imagens e na produção desses discursos e, mais por opção teórica e política que por implicância pessoal, tentando aplicar na prática do nosso ofício o que aprendemos com Nietzsche - por sinal, um alemão! - , escrevendo a história "a marteladas". Historiadores não são neutros ou imparciais. Eles fazem escolhas.

64 E dizemos "do ponto de vista oficial" não apenas porque se escolheu o 9 de março de 1851 como a data de fundação da cidade, mas também porque a historiografia local considera a história de Joinville a partir desta data. Não conhecemos nenhum trabalho que estude de forma significativa, por exemplo, o cotidiano dos habitantes da região onde hoje se localiza Joinville, antes da chegada da barca Colón. Para efeito de clareza, é importante que se registre que as terras vendidas à empresa responsável pela colonização tinham uma extensão menor do que a sua área total hoje. Com o passar dos anos, novos lotes foram sendo agregados ao primeiro, contribuindo para o crescimento geográfico da cidade. Em pelo menos dois trabalhos encontramos rápidas menções a pessoas que já viviam na região antes da chegada dos primeiros imigrantes. Ver: FOUQUET, Carlos. O imigrante alemão..., p. 31-35, e SCHNEIDER, Adolfo Bernardo. A fundação de Blumenau e de Joinville. Joinville: Fundação Cultural, 1983.

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E é importante dizer ainda que não estamos necessariamente estabelecendo uma "cartografia do poder", e menos ainda procedendo sua mera hierarquização. Nos interessam especialmente o seu caráter relacionai e microfísico, sua positividade - a forma como, mais que pela repressão, pela força de dizer "não", ou ainda pela sua dimensão jurídica, o poder se legitima pela sua capacidade de permear e atravessar todo o corpo social, de "produzir coisas, induzir ao prazer, formar saberes, produzir discurso".65 A intenção - e também a pretensão - é tentar desvendar os mecanismos e as relações de poder naqueles lugares onde, a princípio, ele é simbólico, menos visível, exercido muitas vezes "com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem".66 No caso do Monumento ao Colono, além do que já foi discutido anteriormente, é necessário levar em conta ainda alguns outros aspectos. Primeiro, a forma como, ao erigir em pedra uma memória oficial, cujo trabalho de organização e enquadramento elegeu e construiu uma determinada leitura do passado, as autoridades locais registraram de maneira indelével na geografia da cidade uma interpretação tornada não 67 apenas verdade, mas perpetuada como tal, transformada em um "ato de fé".

Ora, se a

produção e legitimação de uma verdade implica que outras possíveis verdades sejam silenciadas, nos parece mais ou menos óbvio que ao transformar a memória oficial em uma "verdade histórica", outras leituras e interpretações tiveram seus rastros apagados. Trocando em miúdos: ao fixar uma memória e uma identidade unas e coesas à cidade, 65

FOUCAULT, Michel. Verdade e poder. In.: Microfisica do poder. Trad, e org. de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1989. p. 8. 66 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad, de Fernando Tomaz. Lisboa: Difel, 1989, p. 7-15. Ver também: BOURDIEU, Pierre. Razões práticas - sobre a teoria da ação..., p. 91-135.

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foi preciso empreender uma operação de "monopólio sobre o passado", cujos discursos estabelecem o estatuto daquilo que é verdade, e deve ser lembrado, e do que precisa ser esquecido para que aquela verdade seja legitimada. A escolha de uma praça central, local de fluxo constante e mesmo obrigatório para alguns, precisa ser pensada também como um dos mecanismos de exteriorização do poder. Trata-se de um esforço para impor ao presente e ao futuro a "imagem de si, para si e para o outro".68 Não apenas a memória oficial, mas também a identidade que ela funda: a cidade há de crescer, e não importa se mais ao Norte ou ao Sul, o "centro" permanecerá sempre o coração intocado e intocável da urbs. E, nele, o Monumento ao Colono, representação daquilo que está fora de todo tempo, "expressão tangível da permanência".69 Por fim e por último, a intervenção do poder público no espaço urbano perpetua em uma praça central a sua "versão da história", num momento em que Joinville começa a apresentar os primeiros sinais de um crescimento econômico e populacional que se aceleraria na década seguinte. E ao fixar um lugar privilegiado para a memória, carrega de significados políticos e simbólicos a própria geografia da cidade, marcando-a com os traços de uma identidade perene, capaz de sobreviver para além das oscilações da história. A intervenção de um discurso sobre o passado em uma praça central faz com que tempo e espaço, conjugados, expressem valores que se

61

FERRO. Marc. A história vigiada. Trad, de Doris Sanches Pinheiro. São Paulo: Martins Fontes, 1989., p. 54-60. 58 Além de Pollak, exaustivamente citado ao longo deste capítulo, devo a inspiração para essa breve discussão a: MARTINS, Ana Luiza. A invenção e/ou eleição dos símbolos urbanos: história e memória da cidade paulista. In.: BRESCIANI, Maria Stella (org.). Imagens da cidade - Séculos XIX e XX. São Paulo: ANPUH/Marco Zero, 1994, p. 177-190. 69 FREIRE, Cristina. Além dos mapas - Os monumentos no imaginário urbano contemporâneo. São Paulo: Annablume, 1997, p. 95.

44

YO

reportam não apenas ao "agora", mas também a um amanhã que é devir.

Nesse

sentido, é de uma ironia quase premonitória o encerramento da matéria do "Jornal de Joinville" sobre a inauguração do Monumento ao Colono que, segundo seu autor, "permanecerá, ereto e imponente na Praça da Bandeira, como um atestado eloqüente da gratidão do povo de Joinville aqueles que, há cem anos, aqui chegaram com a missão pacificadora de concorrer para o maior progresso de Santa Catarina e do Brasil".71 Parece-nos que, consciente ou inconscientemente, a intenção era de que não apenas o monumento permanecesse, "ereto e imponente", mas também uma memória forjada para legitimar uma identidade que, fundada no passado, significa o presente e aponta uma direção para o futuro.

70

FREIRE, Cristina. Além dos mapas..., pp. 90-130. MONUMENTO ao colono: enorme a multidão que assistiu á inauguração. Jornal de Joinville, 10 de mar. 1951, v.33,n. 56, p. 7. 71

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1.4 O DEUTSCHTUM E O "ESPÍRITO DA HISTÓRIA": CRÍTICA À CRÍTICA HISTORIOGRÁFICA

Quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado. George Orwell

Para quem nasceu e cresceu em Joinville, tornou-se "natural" associá-la à cultura e à tradição germânicas, ao "Deutschtum". O que viemos tentando empreender até aqui foi desnaturalizar essa associação e discutir, ainda que parcialmente, a construção dessa imagem e os meios pelos quais ela foi "naturalizada". Partindo dos festejos do centenário da cidade, procuramos mostrar que, pelos discursos, organizouse e legitimou-se uma "memória oficial", tornando-a uma referência com vistas a integrar e unificar as dispersões, rupturas e descontinuidades históricas. No caso de Joinville, especificamente, o principal dispositivo acionado na constituição do que Pollak define como um "fundo cultural comum", foi a identidade étnica dos primeiros colonizadores que, impermeável ao tempo e às oscilações da história, permanece viva como elemento de coesão e continuidade entre passado e presente. Se concordamos que a memória é construída, e que ela desempenha um papel fundamental na constituição da imagem que um indivíduo ou um grupo foija de si, para si e para o outro, estamos afirmando então que também a identidade é uma construção. Ou seja, ela não é perene, fixa no tempo e no espaço. Mas forjada histórica e culturalmente. É Pollak também quem afirma que "o trabalho de enquadramento da memória se

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alimenta do material fornecido pela história".72 Nossa intenção aqui é tanto inverter quanto radicalizar a afirmação e mostrar como, na produção historiográfíca joinvilense, a escrita da história se alimentou do material fornecido pela memória.73 Num segundo momento, tentaremos fazer uma leitura crítica de urna das obras recentes da historiografia local e por razões que achamos por bem explicar74: desde o início dos anos 90, historiadores joinvilenses vêm desenvolvendo novas abordagens historiográficas, relendo fontes já manuseadas e imprimindo-lhes novas interpretações, ou construindo novos objetos a partir de fontes ainda não consultadas. Parte desse trabalho de reescrever a história regional tem como propósito fazer a crítica das "versões oficiais", daquilo que se convencionou chamar, equivocadamente, de "história positivista". Passada uma década desde que essa produção veio à luz, pensamos que é preciso continuar a tarefa iniciada por esses autores, fazendo agora uma crítica da crítica historiográfíca. Num certo sentido, essas obras deixaram de ser meras referências bibliográficas e se tornaram também, a seu modo, fontes de pesquisa histórica. E, como tais, devem ser tratadas, lidas e interpretadas.

1.4.1 A construção de um consenso...

Em 1951, algumas instituições e personalidades ilustres da cidade receberam, como parte das comemorações pelos cem anos, um exemplar do "Álbum Histórico do

72

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio..., p. 9. CERTEAU, Michel de. A escrita da história..., p. 93-119. 74 MEURER, Bellini. Entre flores e manguezais: a construção do real em Joinville. São Paulo, 1993. Dissertação (Mestrado em História). Falta nome do setor/curso, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 73

47

18

Centenário", editado pela Sociedade Amigos de Joinville.

Embora não se trate

exatamente de urna obra historiográfica, o álbum merece menção por ser, até onde sabemos, o primeiro trabalho sistemático sobre a história de Joinville. Assim, de certa maneira, ele "inaugura" a produção historiográfica local, aproximando os leitores joinvilenses de uma interpretação escrita da história - ainda que reconhecidamente institucional, já que a Sociedade Amigos de Joinville foi criada sob os auspícios da prefeitura para organizar as comemorações do centenário. E talvez também (mas não só) por seu caráter oficial, encontre-se nele uma versão um tanto mais rebuscada daqueles discursos veiculados pela imprensa no 9 de março. Similaridades que aparecem já no prefácio, assinado por Albano Schulz, presidente da Sociedade:

Cultuar a memória dos pioneiros da civilização de Joinville, enaltecer o trabalho ordeiro e pacífico dos seus filhos e glorificar as tradições da cultura de um povo, foi o objetivo primordial da presente publicação, que traduz, em suas páginas singelas e expressivas, toda a magnitude e a pujança do civismo e do patriotismo de uma comuna que pontifica entre os maiores centros culturais de Santa Catarina e do Brasil. (...) No multicolorido dos jardins particulares, contrastado pelas espessas colunas de fumo das chaminés das centenas de fabricas, a urbe apresenta um misto de grandeza, orgulho e felicidade de sua gente, que se identifica com os princípios e tradições legados pelos colonizadores desta rica gleba.76

O tom laudatorio prossegue, transitando entre a memória oficial e o esforço de articulá-la a uma escrita, se não acadêmica, capaz pelo menos de traduzir a intenção de legar, à posteridade, um trabalho que sobreviva ao caráter fugaz dos editoriais e crônicas dos jornais. Assim, quando se referem aos "aspectos da cultura e da nossa 75

ÁLBUM histórico do centenário. Organizado pela Sociedade Amigos de Joinville. Curitiba: Gráfica Mundial, 1951.

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civilização", os autores reforçam aquele movimento que inscreve a história do presente às suas origens passadas, estabelecendo uma laentmcaçao que so se justifica se pensada no interior de um tempo contínuo,

que não admite rupturas ou

descontinuidades:

Na árdua tarefe de sacrifícios e perseverança, em busca de um ideal com que sonharam em terras distantes, os primeiros colonizadores de Joinville escreveram nas páginas de nossa história um capítulo de bravura e devotamento á (sic) causa da civilização e do progresso desta rica comuna. Intimeratos pela sua tempera ferrea (sic), pelo seu caráter moldado na cultura de uma raça de homens afeitos às grandes lutas pela vida, os pioneiros da fundação de Joinville transpuseram todos os obstáculos opostos pela adversidade do destino e aqui ergueram o pedestal do monumento que hoje sintetiza o nosso progresso. Confiantes nos destinos de sua nova pátria, esses heroicos (sic) desbravadores e pioneiros da civilização joinvilense legaram á (sic) posteridade um dos exemplos mais edificantes e digno de uma geração de homens desassombrados e obreiros. (. ..)77

O uso da metáfora do livro - "escreveram nas páginas de nossa história" - é significativa: pode-se 1er uma obra historiográfíca de trás para frente, ou intercalando as suas partes. Mas mesmo a mais estropiada das leituras não consegue eliminar completamente o fato de que o sentido encerrado em um livro - e não nos importa agora discutir as múltiplas possibilidades de interpretação desse sentido pelos seus diferentes leitores - depende em muito da continuidade, da unidade e da coesão de seus capítulos. Discussões teóricas à parte, permanece no imaginário do leitor dito "comum" a opinião de que um livro de verdade precisa ter um começo, um meio e, preferencialmente, um fim. E que um fio narrativo coerente o conduza da primeira à última página sem maiores percalços.

76 77

Id., p. 7. Id., p. 255.

49

Ora, a citação reproduzida acima parece referendar a metáfora: os pioneiros não escreveram qualquer capítulo, mas o primeiro capítulo nas "páginas da nossa história". É preciso continuar a escrever esse livro de forma que ele possa ser lido de acordo com o que se espera dele, com unidade e coesão, perpassado por uma narrativa coerente que permita ao leitor entender o final pelo começo e vice-versa. O sentido de toda a trama está lá, no princípio. E preciso apenas saber o que e como 1er. E como garantia de que as armadilhas da interpretação não provoquem entendimentos distorcidos, dá-se tudo mais ou menos mastigado: quem e quais são os seus personagens e acontecimentos decisivos. Se tentarmos uma leitura mais política e menos metafórica, podemos dizer que se produz, pelos discursos, um "regime de verdade" que, ao legitimar uma interpretação sobre o passado, consagra uma forma de organização do presente, encobrindo e recusando no interior de relações de poder, possíveis transgressões 78

daquela leitura que se pretende única e absoluta.

Justificam-se assim, recorrendo-se a

uma identidade perene e irredutível, as estratégias de dominação que resgatam, no passado, elementos para a construção de um mito capaz de criar a imagem de uma comunidade e de uma cidade ideais, ordeiras e pacíficas. Recusando ou minimizando a influência de outras culturas como também constitutivas de um modus vivendi, consolida-se uma identidade cujo objetivo é, mais que unificar referências, homogeneizar a forma como o grupo percebe a si e, principalmente, ao outro.79

18

FOUCAULT, Michel. Verdade e poder. In.: Microfisica do poder..., p. 1-14. SERPA, Élio Cantalício. A identidade Catarinense nos discursos do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina. Revista de Ciências Humanas. Florianópolis: UFSC, v. 14, a 20, p. 63-79, out. 1996. 79

50

Essa herança será encontrada em trabalhos posteriores, que mantêm com o Álbum Histórico do Centenário uma relação de aproximação - porque referendam, ainda que a partir de uma outra linguagem e com abordagens diversas, as noções de memória e história daquele - , e distanciamento - já que se tratam de trabalhos, além de autorais, mais próximos a uma produção historiográfíca propriamente dita. Analisemos rapidamente dois deles. Em "Era uma vez um simples caminho", de Elly Herkenhoff - ou "dona" Elly, como é respeitosamente tratada pelos seus conterrâneos - , o caráter germânico traduzse num ideal de harmonia e progresso presentes já nos primeiros anos da Colônia. Liderando essa caminhada rumo à concretização de uma utopia de desenvolvimento estão os "grandes homens" que, imigrantes também, dedicaram sua vida e seu suor ao bem-estar de seus patrícios.80 Uma perspectiva presente não apenas na obra da "historiadora", mas também na da poetisa: os versos dos poemas "O pioneiro" e "Ser idealista", excertos literários que encerram o Álbum do Centenário, falam do "louro, o nórdico imigrante", que veio de longe e "erguendo a prece a Deus, sorriu de olhar confiante ao mundo tropical que, em êxtase, mirou".81 Daí em diante, a epopéia do "louro imigrante" é cantada em versos que mitificam o trabalho e a audácia daqueles que, apesar da saudade do país natal, romperam "a selva, a um só tempo hostil e generosa" para "por sobre as cinzas ir arquitetando de novo o mundo ideal de perfeições".

80 81

HERKENHOFF, Elly. Era uma vez um simples caminho. Joinville: Fundação Cultural, 1987. HERKENHOFF, Elly. O pioneiro e Ser idealista In.: Álbum histórico..., p. 265.

51

A perspectiva não é muito diferente em Adolfo Bernardo Schneider, ainda que, 82

aparentemente, ele trilhe outros caminhos . Preocupado em enaltecer a figura quase heróica dos colonizadores, ele se debruça mais sobre o cotidiano das "pessoas comuns" que sobre os grandes feitos dos líderes e homens públicos da colônia. Sua intenção, no entanto, é enaltecer o imigrante mostrando, aos leitores do presente, as privações vividas por seus antepassados nos primeiros anos da Colônia. Mais: ao descrever as dificuldades e a luta pela sobrevivência em uma terra estranha e hostil, Schneider traça uma linha evolutiva que culmina na afirmação da vocação de progresso e desenvolvimento de Joinville, construídos com os braços e o suor dos germânicos que para cá vieram. Tal intenção, ele a expressa em um ditado alemão, livremente traduzido pelo autor: "A primeira geração de imigrantes, 83a morte, à segunda geração, a miséria, à terceira, o pão, a estabilidade e o bem-estar". Apesar das sutis diferenças, um traço comum perpassa as obras de Elly Herkenhoff e Adolfo Bernardo Schneider: o cunho memorialístico. Netos de imigrantes e nascidos nos primeiros anos do século XX, ambos trazem fortes lembranças de um tempo ainda muito próximo aos primeiros anos da Colônia. Os documentos, quando os há, são utilizados com o fim quase único de respaldá-las. Não há um diálogo, mas uma apropriação das fontes pela memória, com a predominância, 82

SCHNEIDER, Adolfo Bernardo. Nossa boa terra - contos e crônicas da terra dos príncipes. Joinville: Ed. do autor, 1984. 83 SCHNEIDER, Nossa boa terra..., p.55. Em sua dissertação de mestrado, Bellini Meurer nos chama a atenção para o fato de que, originariamente, o ditado deveria ser traduzido simplesmente por "À primeira geração, a morte; à segunda, a miséria; à terceira, o pão" (Der ersten Generation den Tod, der Zweiten die Not, der drei ten das Brot). Tanto a palavra "imigrantes", quanto as noções de "estabilidade" e "bem-estar" foram acrescidas na tradução de Adolfo Schneider. Ver: MEURER, Bellini. Entre flores e manguezais: a construção do real em Joinville ..., p. 139. Não há como saber se essa recriação do original alemão foi consciente ou não. Mas ela é igualmente significativa, não importa o caso: o presente imprime, aos vestígios do passado, novos significados, que não são perenes, mas construídos a partir de nossas experiências e da forma como percebemos

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em diversos momentos, desta sobre aquelas. Em seus textos e pesquisas há uma preocupação centrai em enaltecer a "boa terra" e o trabalho de seus antepassados, avós e pais, que venceram as adversidades cotidianas e transformaram um extenso manguezal na "Cidade das Flores". No final, o que sobra é o desejo de atribuir um estatuto de "história" àquela memória oficial acerca das origens e da identidade de Joinville e dos joinvilenses - ou, pelo menos, uma parte deles. É diferente o percurso traçado pelo jornalista e historiador Apolinário Ternes. Nos anos 80, Ternes produziu duas obras - "História econômica de Joinville" e "História de Joinville: uma abordagem crítica" - que foram, e sob certo aspecto ainda são, referências para estudiosos e pesquisadores da história local. Ao contrário de Herkenhoff e Schneider, no entanto, Ternes não nasceu em Joinville, não descende de imigrantes germânicos, nem estudou na "Deutsche Schule". E, principalmente, conheceu uma Joinville pós-campanha de Nacionalização e em pleno processo de desenvolvimento econômico e crescimento demográfico. Nem por isso sua obra procura refletir mais acuradamente sobre o papel da germanidade na constituição da cidade - ele a toma simplesmente como um "fato", base sob a qual se foijou o "destino" da cidade. Em suma, sua abordagem reafirma pela escrita histórica, a memória oficial. Qual a diferença, então? Ternes não quer mais simplesmente enaltecer a terra ou o imigrante. Sua preocupação central é consolidar um discurso acerca das origens da cidade, mas partindo de uma abordagem pretensamente distanciada e objetiva (e não crítica, como pretende o autor), sem os

o mundo e o tempo em que vivemos. E é a partir de nossa percepção do presente que interrogamos ou interpretamos o passado.

53

resquícios passionais presentes em seus antecessores. Distancia-se deles, segundo suas palavras, utilizando um "método científico universal, fundamentado na Lógica Pura".0"* Sua primeira obra, escrita em parceria com Cyro Ehlke, demonstra já as intenções de seu "projeto histórico".85 Responsável pela segunda parte do livro, onde se

debruça

sobre

as

condições

sócio-culturais

e

econômicas

da

Joinville

contemporânea, Ternes traça um perfil ufanista da cidade que "explode em progresso, numa fulminante arrancada para o futuro". Poesia - nos seus jardins e praças bem arrumadas - e realidade - com o desenvolvimento urbano e industrial acelerados fundem-se em uma só paisagem e em um só povo, caracterizado pelo "quase neurótico apego às tradições culturais e de milenar polimento da civilização européia". Mais adiante, Ternes observa que "predomina ainda na formação populacional de Joinville o povo loiro, de origem européia", o que talvez explique tratar-se de um "povo culturalmente desenvolvido. Educado. Respeitador do bom senso. Polido. Trabalhador 86

e criativo", apesar de "toda a miscigenação". Como explicar essa "eloqüente demonstração do trabalho" se não pela história? Na estréia de Ternes em carreira solo, depois de sua parceria com Cyro Ehlke, salta aos olhos a estreita relação de continuidade entre uma e outra: é como se, na segunda, ele fosse buscar no passado as justificativas e explicações necessárias para a apoteose que descreve na primeira.87 Tudo faz sentido: usando um método cientifico e abandonando "de vez a história factual e descritiva para se aprofundar apenas nos acontecimentos chaves", ele procura "nas raízes primeiras da própria história européia 84

TERNES, Apolinário. História de Joinville, uma abordagem crítica. Joinville: Meyer, 1981. p. 13. EHLKE, Cyro; TERNES, Apolinário. Joinville - 1851-1975. Itajaí: Uirapuru, 1975. 86 EHLKE ; TERNES, Joinville -1851-1975..., p. 53-5. 85

54

SS (...) compreender a essência da cultura joinvilense".

E quem paga a conta são os

Annales: "O autor, mesmo alinhando-se na corrente de Fernando (sic) Braudel e da escola francesa, buscou na metodologia de Edmund Husserl (1859-1938) a sua base científica".89 O livro, de penosa leitura, é organizado em nove capítulos. Nos quatro primeiros, Ternes descreve o contexto histórico europeu na primeira metade do oitocento, a situação brasileira no período de fundação da Colônia Dona Francisca, as condições da Província de Santa Catarina no mesmo período e, por fim, "o que foi e o que representava, na época, a Sociedade Colonizadora. O empreendimento do Senador Mathias Schroeder, sua audácia; o planejamento; os primeiros obstáculos, enfim, o 87

Op.cit. Ibid., p. 11. 89 A explicação de Ternes para a forma como procurará utilizar e conciliar a fenomenología de Husserl e a "longa duração" de Braudel é no mínimo frágil, se não risível: "Assim, todas as análises e interpretações têm como premissa básica o acontecimento, ficando portanto, no terreno simples e objetivo da Lógica Pura dos fatos" (gnfos nossos, maiúsculas do autor). Cf.: TERNES, Apolinário. História de Joinville - Uma abordagem crítica..., p. 13. Nada mais distante do próprio Braudel, para quem os acontecimentos eram como "uma agitação de superfície, as ondas que as marés elevam em seu poderoso movimento. (...)". "Para além do seu clarão [dos acontecimentos], a obscuridade permanece vitoriosa." Ver BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a história. Trad, de J. Guinsburg e Tereza Cristina da Mota. São Paulo: Perspectiva, 1992, pp. 14 e 23, respectivamente. Mesmo a perspectiva de estudar a história de Joinville inscrita em um tempo longo aparece, na obra de Ternes, de maneira equivocada. A "longue durée" de Braudel é mais complexa do que pensa nosso esforçado historiador. Não se trata apenas de, pelo levantamento exaustivo da documentação, "descrever" a evolução de uma comunidade ou cidade, desvendar o sentido de sua história. Grosso modo, a longa duração visa ao estudo das permanências e estruturas da história, cuja ênfase é outra característica que afasta a história escrita por Braudel daquela voltada aos acontecimentos. E, por estrutura, entenda-se aqui "o caráter repetitivo das atividades dos indivíduos e grupos e que define os limites de atividade, do crescimento demográfico, da produção agrícola. A descrição de uma estrutura leva à sua história: as mudanças internas, as crises conjunturais, os movimentos cíclicos, as tendências à estagnação e ao crescimento". REIS, José Carlos. Escola dos Annales - A inovação em história. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 105. O artigo de Braudel foi publicado originalmente em 1958, na revista Annales. Há uma tradução para o português, "História e Ciências Sociais. A longa duração", em: BRAUDEL, Fernand Escritos sobre a história..., pp. 41-77. Se tivéssemos, enfim, de encontrar algo que pudesse ter dado a Ternes a sensação de identificação e filiação ao historiador fiancés, teríamos de concordar com a crítica de Dosse ao próprio Braudel, cujo percurso como historiador, segundo ele, acabou por construir um homem que "nada pode contra as forças seculares que o condicionam e contra os ciclos econômicos da longa duração. (...) O homem perdeu todo o domínio sobre sua própria historicidade, ao ser devorado por ela e ao sofrê-la, espectador e objeto de sua própria temporalidade". DOSSE, François. A história em migalhas - dos Annales à Nova História. Trad. de Dulce da Silva Ramos. São Paulo: Ensaio/Campinas: Editora da Unicamp, 1992, p. 119. Uma discussão crítica da herança braudeliana e da polêmica levantada por Dosse pode ser encontrada, entre outros, em: REIS, José Carlos. Escola dos Annales..., pp. 102-107. A esse respeito, ver 88

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quase fracasso de tudo" 90 É só a partir do quinto capítulo que o autor, finalmente, começa a nos falar da Colônia Dona Francisca, do "período de adaptação" e da "construção do destino". A escolha da epígrafe, retirada de Tolstoi, dá o tom do que espera o leitor: "A vida desses homens se passava no trabalho árduo e eles estavam contentes com ela". E estamos apenas na página 107. Daí em diante, ao longo de outras quase 170, o que se descortina é um desfilar de argumentos, todos farta e cientificamente documentados, que buscam dar a entender "toda a estrutura e processo civilizatório joinvilense". Sobre a participação do "elemento germânico" nesse "processo civilizatório", Ternes é especialmente eloqüente:

Mas analisemos detalhadamente a evolução deste espírito liberal e democrático dos alemães que para cá vieram. Sem dúvida que estes homens e mulheres pertenciam à Alemanha do "coração", à Alemanha da paz, que dera os gênios que orgulham a cultura germânica. (...) E desde lá, Joinville cresceu sob o signo do liberalismo, habitado por um punhado de homens empreendedores e ciosos de seus deveres, de suas obrigações, mas também de seus direitos.91

Em suma, graças à confluência de diferentes fatores, que vão do caráter nato do "elemento germânico" - o que veio para cá, que fique bem entendido - às condições naturais e estruturais, os imigrantes conseguiram concretizar, no tempo (geografia, espaço, estrutura, longa duração... Percebem a filiação a Braudel?), "uma destinação histórica (...) para provarem a si mesmos e às gerações futuras que eram capazes e dotados de talentos inegáveis para construírem ou desencadearem um processo civilizatório

altamente

humano,

economicamente

produtivo

e

espiritualmente

também: BURKE, Peter. A Revolução francesa da historiografia: a Escola dos Annales, 1929-1989. Trad, de Nilo Odália. São Paulo: Editora UNESP, 1991, pp. 45-78. 90 Id, p. 14-15.

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gratificante".92 O resultado desse "processo histórico" configuraria na "marcha para o progresso" que Joinville vive já a partir das primeiras décadas do século XX. Um desenvolvimento que é uma resposta dos joinvilenses aos "estímulos do tempo e da história". Mesmo com o "encolhimento" da tradição e da cultura germânicas no período do Estado Novo e a posterior "integração", causa da miscigenação de que falava no livro anterior, escrito com Cyro Ehlke, Joinville permanece fiel às suas origens, demonstrando com seu crescimento econômico e industrial que os imigrantes germânicos estavam certos sim em querer realizar aqui sua "destinação histórica". Uma das provas "reais e indesmentíveis" do destino de grandiosidade de Joinville e, em especial, de seus colonizadores e descendentes, será analisada em um livro posterior, "História econômica de Joinville", escrito sob encomenda da QO

Associação Comercial e Industrial de Joinville - ACIJ.

Projeto tão ambicioso quanto

o anterior, nele Ternes tenta compreender "o processo histórico pela reflexão dos fatores econômicos, certamente os mais decisivos na história dos povos".94 O discurso é aparentemente outro. A ênfase nos aspectos econômicos não significa, porém, que o autor tenha mudado sua perspectiva "fenomenológica", de ater-se à "Lógica Pura dos fatos". Mudaram simplesmente os financiadores. Assim, voltando-se aos primeiros anos da colônia, Ternes reconhece a aspereza e as adversidades vividas pelos primeiros imigrantes. Não para vislumbrar, em meio às dificuldades, a harmonia, a exemplo de Herkenhoff e Schneider, mas para apontar as razões que explicam a vitória, pela persistência e a capacidade, de uns, e a derrota de outros: "O imigrante 91

Ibid., p. 185-90. Ibid., p. 193-94. 93 TERNES, Apolinário. História econômica de Joinville. Joinville: Meyer, 1986. 92

57

alemão, nas três primeiras décadas, enfrentou (...) imensas dificuldades de ordem ambiental e de infra-estrutura, além, é claro, desta terrível ruptura cultural". Apesar disso, "os mais capazes conseguiram constituir um segmento mais elevado, político, cultural e economicamente".95 Pronto: de uma canetada o autor reconhece, a um só tempo, as adversidades enfrentadas, o choque cultural vivido pela mudança para um país estranho (e, dentro deste país, para uma região ainda mais estranha e pouco povoada) e, principalmente, a existência de diferenças sociais já nos primordios da Colônia, onde "os mais capazes conseguiram constituir um segmento mais elevado, político, cultural e economicamente". Estariam explicadas e justificadas aí, nas origens, a organização social, política e econômica de Joinville. É tudo uma questão de "capacidade". E, movidos por ela, este "segmento mais elevado" e seus descendentes construíram uma cidade que "caminhou a passos largos rumo ao progresso". Observador objetivo dos acontecimentos, um "cientista", Ternes abandona Braudel para poder consolidar a imagem do homem europeu como símbolo de trabalho e de progresso, cuja síntese final é a figura do empresário, um ser quase divino, dotado de um "magnetismo e de uma força interior bem maior que a maioria dos mortais".96 A obra de Ternes é emblemática daquilo que falávamos no início deste apêndice: de que uma parte da produção historiográfica joinvilense se alimentou do material fornecido pela memória, tornada oficial, erigida à condição de verdade e consagrada, enfim, pela historiografia. Uma escrita que incorpora as mesmas premissas dos trabalhos de enquadramento da memória, ainda que as organize sob

94

Id., p. 7. Id„ p. 86. 96 TERNES, Apolinário. História econômica de Joinville..., p. 188. 95

58

outros discursos: a idéia de progresso do povo e da cidade de Joinville, expresso na "marcha da história", no interior de um tempo linear, homogêneo e... vazio/ E é por intermédio dessa consagração, e voltamos agora ao axioma original de Pollak, que a história "alimenta a memória". E a alimenta, entre outras razões, porque legitima "cientificamente" uma interpretação do passado forjada no interior de lutas e de conflitos pela posse da história - ou seja, a forma como lemos e interpretamos não o passado, mas uma parte dele. E, principalmente, a forma como ele é organizado e oficialmente interpretado

e

narrado,

legitimando

verdades

e

excluindo

ou

marginalizando leituras contraditórias. Trata-se, em última instância, de um "campo de força", 98 onde o que está em jogo é o "direito à história" e o poder de permitir, impedir, classificar, organizar, delimitar o que é ou não é "verdade": o que deve ser lembrado e esquecido pela história, o seu "regime de verdade" - com o perdão pela repetição. Dito de outra forma, o que se lê em boa parte da produção historiográfíca joinvilense, e na de Ternes em especial, é a construção daquilo que de Decca denominou de memória histórica, "alguma coisa híbrida e bastante ameaçadora (...) Nem memória, porque alheia à experiência do vivido, nem história, porque destituída de seu valor crítico com relação ao passado".

97

99

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In.: Magia e técnica..., p. 229. A idéia de história como um "campo de força" e as discussões que seguem são inspiradas em: JENKINS, Keith. A história repensada..., especialmente p. 23-59. Ver também: LOWENTHAL, David. Como conhecemos o passado..., p. 104-118. 99 DECCA Edgar de. Memória e cidadania. In.: CUNHA, Maria Clementina Pereira (Org.) O direito à memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: DPH, 1992, pp. 129-136. A citação encontra-se na página 133. Em trabalho anterior, de Decca propõe, ao discutir a construção da "memória histórica", que esse processo é também parte do "exercício de dominação", que "edifica o futuro ao mesmo tempo que refaz o passado, qualificando tanto os agentes como o seu próprio sentido". Embora fale da "Revolução de 30", a passagem cabe também no contexto de nosso trabalho. Cf.: DECCA, Edgar de. 1930 - O silêncio dos vencidos: Memória, história e revolução. São Paulo: Brasiliense, 1997, pp. 71-110. A citação encontra-se na página 108. Por fim, há ainda o trabalho de Pierre Nora, para quem a passagem da memória à história, e a constituição de uma memória histórica, implica o apagamento daquela: "No coração da história trabalha um criticismo destrutor 98

59

1.4.2 ... e a crítica de um consenso

Foi no começo dos anos 90 que outras abordagens da história de Joinville começaram a ser construídas, acompanhando a própria renovação historiográfica em voga no Brasil pelo menos desde a década anterior. O crescimento da cidade e uma maior visibilidade de suas contradições e conflitos, acreditamos, está entre as razões dessa "virada metodológica". Mas não é só: são outros os olhares e as sensibilidades. As mãos que teclam uma nova escrita da história joinvilense são principalmente aquelas do migrante que chega à cidade neste período, oriundo principalmente da classe média dos grandes centros urbanos - um perfil adverso daquele de 20 ou 30 anos antes. A intenção é escrever uma "outra" história e, ao mesmo tempo, proceder a novas leituras de uma produção dita "oficial", de suas fontes e referências. É o que faz, por exemplo, o trabalho de Bellini Meurer.100 Nele, o autor busca compreender, transitando pela historiografia, o jornalismo, a literatura, as artes plásticas e a arquitetura locais, a construção do imaginário em Joinville. Sua preocupação move-se, principalmente, na direção de tentar apreender o que chama de distanciamento entre um "imaginário" homogêneo, onde prevalece um ideal de trabalho, ordem e harmonia, e o "real", marcado pela "divisão social, econômica e cultural bastante acentuada". O suporte para a consolidação deste "real", bem como seu encobrimento por um "mesmo imaginário", Bellini encontrará entre as

de memória espontânea. A memória é sempre suspeita para a história, cuja verdadeira missão é destruí-la e a repelir. A história é a deslegitimação do passado vivido." Cf.: NORA, Pierre. Entre memória e história - A problemática dos lugares. In.: Projeto História: A história oral. São Paulo: EDUC, nr. 10, dez. 1993, p. 9. 100 MEURER, Bellini. Entre flores e manguezcãs: a construção do real em Joinville. São Paulo, 1993. Dissertação (Mestrado em História). Departamento de História - Pontificia Universidade Católica de São Paulo.

60

"instituições articuladas sincrónicamente", tais como a maçonaria, a igreja, entidades empresariais e pequenas agremiações de cunho artístico e esportivo fundadas, a maioria delas, durante os anos iniciais da Colônia. Em sua narrativa, parece não existir dúvidas de que o "Deutschtum", o espírito germânico, perpassa toda a produção de um imaginário acerca da cidade. E a germanidade que está na base da construção de ritos, símbolos e práticas discursivas que criam e consolidam a imagem de "Cidade das Flores", ordeira e harmônica, em meio à pobreza e às desigualdades sociais dos manguezais. Uma abordagem inovadora, principalmente se levarmos em conta a produção imediatamente anterior, voltada a enaltecer os aspectos sempre positivos da colonização. Mas nem por isso isenta de problemas. E esses aparecem já em seus objetivos. Buscando uma "linearidade histórica", Meurer centra sua atenção no desvelamento das "condições originárias da cidade", que "traçaram, indubitavelmente, os destinos da população".101 Origem, destino e linearidade: três conceitos que amarram a abordagem em uma camisa-de-força de onde não consegue escapar. Para sustentá-la, ele propõe que, em determinados momentos da história de Joinville, aconteceram "períodos de fechamento da sociedade". Neles, o imigrante já não se sentiria mais alemão, embora não se sentisse ainda brasileiro. Esse conflito, que sugere possibilidades interessantes de pensar a trajetória destes europeus no "Novo Mundo", é pouco investigado. Ele aparece apenas para sustentar o tal "fechamento da sociedade". Desprovido de um sentimento de pertencimento, longe da antiga pátria, mas não completamente integrado à nova,

61

restaria ao imigrante germânico voltar-se unicamente à Colônia. Aqui, ele reconstruiria e reconstituiria seus antigos hábitos e costumes, forjando em terras brasileiras uma comunidade

com a "alma germânica".

E é esse

espírito

que vai traçar,

"indubitavelmente", os destinos da população. Em outras palavras: na leitura crítica que opera do discurso e da historiografia oficial, Meurer se lança em direção a um outro extremo, ele próprio tão rígido quanto o primeiro, o de atribuir ao "espírito germânico" um papel quase onipotente e onipresente. Sua face humana se materializa apenas no uso maquiavélico que dele fizeram os donos do poder e suas instituições. A nosso ver, algumas distorções conceituais estão na base desse equívoco. A concepção de sociedade, inspirada nos modelos clássicos da sociologia, é a primeira delas - e aqui, assumo o risco de simplificar o pensamento e as obras que inspiram Meurer. Em seu trabalho, ele concebe e descreve uma sociedade cindida dos indivíduos que a constituem. Esses, ou detêm um poder que os autoriza a construir um "imaginário" a partir de sua própria visão de mundo e interesses de classe, lançando mão de mecanismos os mais diversos; ou, no outro extremo, são submetidos a essa ordem construída a sua revelia. Em Weber, Meurer busca a referência necessária para tentar problematizar a presença de um ethos germânico na construção desse "mesmo imaginário" que tem por objetivo mascarar o "real", se transformando assim em instrumento fundamental de um projeto de dominação. Uma "ação racional referente a fins", que não apenas persegue seus objetivos, e o faz a partir de uma razão instrumentalizada como, no interior mesmo da ação, faz emergir seu(s) sentido(s).

101

102

MEURER, Bellini. Entre flores..., p.2-4. CASTRO, Ana Maria de; DLAS, Edmundo Fernandes. Dürkheim, Weber, Marx, Parsons Introdução ao pensamento sociológico. São Paulo: Editora Moraes, [199-?]. p. 114-118. 102

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Legitimado um imaginário que encobre o real e é confundido com esse, os valores privilegiados da elite burguesa são impostos como verdadeiros e absolutos, por meio de dispositivos de coerção e dominação social. Como em Dürkheim, aos indivíduos não restaria outra alternativa a não ser submeter-se a uma ordem construída e imposta de fora, acima deles.103 Perpassando essa concepção estática de sociedade, está a idéia de luta de classes, ela própria assustadoramente desigual: afinal, apenas um grupo (ou classe), possui a consciência necessária de sua condição e posição no interior das relações sociais (é uma "classe para si"). Alienados e aprisionados por uma falsa consciência (é apenas uma "classe em si"), aos trabalhadores resta a exploração e a submissão, encobertas pelo "mesmo imaginário". No interior desse primeiro equívoco está inscrito um segundo. Em seu trabalho, ele descreve o "imaginário" como algo externo ao "real", encobrindo-o e mascarandoo. Não nos parece exagero dizer que, no caso, o uso do conceito confunde-se com o de ideologia, cujos aparelhos de construção e consolidação se expressam nas mais diferentes formas e linguagens. E, no caso de Joinville, é o discurso étnico o elementochave para se entender a dominação de uma elite de origem germânica sobre os trabalhadores, em sua maioria migrantes. Mais precisamente, trata-se de uma imagem construída para sustentar a exploração de classe e a desigualdade. As flores encobrindo e escondendo os manguezais. Embora sejamos solidários ao autor no que tange a sua crítica às desigualdades sociais, parece-nos que há aí uma lacuna: a de historicizar a construção desse imaginário. Mais preocupado em descortinar o véu de mentiras que encobre a 103

Ibid., p. 85-88.

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realidade da cidade e, pelas quais o poder, entendido como substância, permanece na mão de alguns poucos, ele discute muito pouco por meio de que relações - e relações de poder, construídas historicamente - se constituiu uma imagem de cidade e o que, afinal, esse imaginário representa. Como no famoso seriado de ficção científica, ele pensou encontrar a verdade lá fora, numa ideologia que existe externamente à sociedade onde se constituiu,104 quando ela estava lá dentro, provisória, frágil, relativa, como são todas as verdades, construídas pelos indivíduos na e em sociedade, num jogo de relações marcadas pela tensão e pelo conflito.105 Acreditamos que é possível subverter a leitura que Meurer desenvolve, e tentar uma outra interpretação possível da presença do "Deutschtum" na constituição da cidade. Para a nova morada, os imigrantes trazem em sua bagagem as referências culturais de sua pátria de nascimento. Embora legalmente ligados ao Brasil, não eram ainda brasileiros, porque os laços simbólicos e afetivos aos quais mantinham-se atrelados os faziam sentir-se germânicos, estrangeiros em uma terra estranha e pouco habitada. Além disso, o relativo isolamento geográfico nos primeiros anos da colônia contribuiu para que reproduzissem os seus hábitos de origem. Mas esses costumes não receberam, no Brasil, os mesmos significados que tinham na Europa. E não apenas porque comunidade nenhuma vive em isolamento absoluto, seja do ponto de vista geográfico ou cultural, mas porque eles receberam, aqui, funções diversas daquelas que exerciam lá. Tratava-se, em primeiro lugar, de estabelecer traços de diferenciação, 104

"A verdade está lá fora". Mote do seriado de ficção científica "Arquivo X", criado por Chris Carter. ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. p. 11-60. Para essa discussão, nos valemos também do trabalho de Jurandir Malerba, cfine.: MALERBA, Jurandir. Sobre 105

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construindo, através do apego a uma cultura nacional, uma "imagem de si" na sua relação com o outro.106 Além disso, havia a necessidade de segurança interna, de afirmar uma identidade ao grupo, recorrendo-se a um passado estável, em contraposição a um presente marcado pelo risco e a imprevisibilidade. Assegurava-se, ainda, a aspiração a um futuro que garantiria, às gerações vindouras, a herança necessária à continuidade de sua história: um código de crenças e valores vistos como imutáveis, porque perenes, aquém e além do tempo. Essa identidade primeira se constituiria como a origem de uma história que é concebida como evolução e progresso. Fundamental nesse processo, o passado é consolidado como tradição, cujos signos podem ser encontrados na produção historiográfíca e em outros discursos que o reproduzem e difundem - a imprensa e os monumentos públicos, por exemplo. Elemento de coesão e unidade, a referência a uma história e a uma memória comuns aos joinvilenses se dará pela construção de uma identificação com os primeiros imigrantes, aqueles que ousaram construir, em meio às adversidades e em um solo selvagem e primitivo, o signo do progresso. O que significa buscar uma origem que está para além da própria fundação da colônia, ou seja, a Alemanha, a "pátria-mãe". A distância, na geografia e no tempo, é preenchida pela presença do espírito germânico, o Deutschtum, elemento constitutivo da cidade desde

Norbert Elias. In.: MALERBA, Jurandir (org.). A velha história - teoria, método e historiografia. Campinas: Papirus, 1996, pp. 73-91. 106 Manuela Carneiro da Cunha chama de "cultura de contraste" o processo pelo qual a cultura original de um grupo étnico se transforma em situações de diáspora ou de intenso contato. Segundo ela, não se trata apenas de perda ou de fusão: ela adquire novas funções em situações diversas daquela de origem. Embora admita a existência de uma "bagagem cultural", ela chama a atenção para a necessidade de que ela seja sucinta, já que "não se levam para a diáspora todos os seus pertences". Ver: CUNHA, Manuela Carneiro da. Antropologia do Brasil, p. 88-108. Ver também: BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras. In.: POUTIGNAT, Philippe; STREEFF-FENART, Jocelyne. "Teorias da etnicidade", p. 191-97.

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o seu nascimento. 107 A história, tornada concreta em símbolos e monumentos, será o elo que une passado e presente pela construção de uma "comunidade simbólica", cuja principal característica é sua a-temporalidade. Ao contrário do que propõe Meurer, acreditamos que não há dicotomía entre o "real" e o "imaginário", mas representações,109 Aquilo que nós denominamos de "real" é, também, constituído pelo "imaginário". O segundo não encobre ou dissimula o primeiro mas, pela linguagem e pelo discurso - verbal ou não - o representa e o institui, é parte dele.110 Evidentemente não se trata de tomar a defesa daqueles que outros já trataram de condenar. Tampouco queremos pintar uma história cor de rosa, ainda que nossa geração tenha se fartado de 1er Pollyana, a menina e a moça. A intenção é outra: não querendo fazer da história um tribunal, pretendemos tecer uma narrativa capaz de dar conta da pluralidade de tramas e personagens nela contidos, de suas rupturas e descontinuidades. Porque há algo de que já falamos aqui e que não nos custa lembrar: esse passado ideal e idealizado foi foijado no interior de relações de poder, de um "campo de força" onde, litigiosamente, se instituiu e legitimou um 107

A idéia de uma memória construída como signo de identificação e de poder de uma comunidade é discutida por Elias, para quem a "imagem-nós" é foijada tendo como referência um passado comum, elemento fundador de uma tradição que estrutura o presente e embala as aspirações ao futuro. Cf.: ELIAS, Norbert. Os alemães. A luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Trad, de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. p. 129-45. 108 As reflexões desenvolvidas nesse parágrafo e as que seguem são inspiradas também no conceito de "comunidade imaginada", desenvolvido por Benedict Anderson em: ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. Trad de Lólio Lourenço de Oliveira. São Paulo: Editora Ática, 1989. p. 9-16. A esse respeito ver também: HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. p. 47-65. 109 Sobre o conceito de representação utilizado nessa passagem, estamos nos apoiando especialmente em Chartier, para quem as representações coletivas constróem e delimitam uma identidade, "marcam de modo visível e perpétuo a existência do grupo, da comunidade ou da classe": CHARTIER, Roger. O mundo como representação... p. 61-79. 110 MALERBA, Jurandir. Para uma teoria simbólica: conexões entre Elias e Bourdieu. In.: CARDOSO, Ciro Flamarion; MALERBA, Jurandir (org.). Representações: contribuição a um debate transdisciplinar. Campinas: Papinis, 2000, pp. 199-225. Sobre a noção de imaginário e seu uso pelos historiadores, uma discussão sucinta e esclarecedora pode ser encontrada também em: PESAVENTO, Sandra Jatahy. Em busca de uma outra

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"regime de verdade". Mas é sempre bom, historiadores que somos, não perdermos de vista que mesmo - e principalmente - as relações de poder e dominação são também construios históricos e precisam, portanto, ser historicizadas. E que, ao invés de julgarmos o passado, talvez estejamos cumprindo melhor nossa "função social" se conseguirmos ouvir e fazer ouvir, como nos versos de Ana Cristina César, aquele "silêncio que não é mudez".

história: Imaginando o Imaginário. Revista Brasileira de História: Representações. São Paulo: ANPUH/Marco

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2 TENSÕES DO TEMPO: O ANTIGO, O NOVO E O SEMPRE NOVO

No dia 10 de novembro de 1960, personalidades ilustres da comunidade joinvilense, todos membros do Rotary Clube, reuniram-se para um evento de caráter especial: uma palestra com o engenheiro Gunther Wetzel, que discorreu sobre o tema urbanismo.111 A conferência iniciou com uma explicação etimológica do termo e uma explanação sucinta sobre as mudanças ocorridas nas cidades nas últimas décadas. Em sua maior parte, no entanto, Gunther Wetzel chamou a atenção dos presentes para a urgência de planejar o crescimento urbano, as vantagens de um desenvolvimento sustentado por uma "ação racional (...)" e "previsão inteligente". A presença de um urbanista entre a "elite econômica" joinvilense é sintomática. E para entendê-la,

faz-se necessária

uma breve incursão no processo

de

desenvolvimento urbano de Joinville. Foi ainda no começo do século XX que Joinville viveria seu primeiro ciclo de urbanização, especialmente durante a gestão de Procópio Gomes. Com cerca de 18 mil habitantes, a cidade recebe investimentos no seu embelezamento, em saneamento e na limpeza e melhoria das estradas e, em 1902, os primeiros serviços de iluminação pública. Em sua sempre incontida tendência a olhar com ufanismo o "progresso joinvilense", o historiador Apolinário Ternes registra que "(...) Joinville tinha realizado duas grandes proezas: transformara-se na mais importante e progressista das colônias fundadas em meados do século XIX

e já

Zero, v. 15, n. 29, p. 9-27, 1995. '11 O QUE é urbanismo? Pelo doutor Gunther WetzeL A Notícia, 20 nov., 1960, v. 38, n.8182, p. 1 e 7.

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esboçava, de forma consistente e irreversível, o destino de uma irrefreável 112 urbanização. Transformava-se rapidamente em cidade". Com os primeiros sinais da industrialização, nas décadas de 30 e 40, reforça-se também a preocupação em disciplinar e organizar a vida urbana, e que não era 113

exclusiva do poder público.

Em outras palavras: ao progresso da cidade,

corresponde a elaboração de estratégias de manutenção da ordem, condição fundamental à sua sustentação. A valorização do trabalho e a busca de uma harmonia étnica e de classes são os pilares básicos de produção destes discursos. A intenção era garantir a ordem e a disciplina necessárias ao desenvolvimento industrial. A preocupação aumentava na proporção direta em que as contradições e conflitos oriundos deste crescimento se mostram de forma mais cristalina.114 A grande "revolução industrial", no entanto, aconteceria principalmente a partir dos anos 50. E, a exemplo do que ocorreu nas primeiras décadas do século XX, ela modifica

também

o

cenário

urbano

joinvilense.

Para

Apolinário

Ternes

"começaríamos a pagar o preço da industrialização que centenas de cidades européias tiveram de pagar, no instante em que aqui chegavam os primeiros imigrantes alemães, suíços e noruegueses, em março de 1851. Um século antes lá. A partir de 1951, aqui".115 Analisar o "preço" a ser pago pela industrialização, mas também as novas sensibilidades produzidas com a modernização urbana da cidade e as primeiras ações com vistas a disciplinar o seu desenvolvimento, é o objetivo deste capítulo. 112

TERNES, Apolinário. A construção da cidade. São Bernardo do Campo: Bartira, 1993. p. 115. Uma discussão mais detalhada sobre o desenvolvimento econômico e industrial de Joinville será feita no terceiro capítulo desse trabalho. 114 COSTA, Iara Andrade. A cidade da ordem: Tensões sociais e controle (Joinville: 1917-1943). Curitiba, 1996. Dissertação (Mestrado em História). Departamento de História, Universidade Federal do Paraná. 113

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2.1 A CIDADE, OBJETO DE DESEJO

Nenhum rosto é tão surrealista quanto o rosto verdadeiro de uma cidade. Walter Benjamin

No início da década de 60, viviam em Joinville cerca de 45 mil pessoas. Praticamente o dobro da população quando das comemorações do centenário, em 1951, e o suficiente para fazer dela a terceira cidade do estado, atrás apenas da capital, Florianópolis, e da quase vizinha Blumenau.116 O crescimento populacional imprime um novo desenho na paisagem urbana local e, nas palavras do jornalista Heráclito Lobo, em artigo publicado em 1957, Joinville é uma cidade de "duas faces":

Cidade de àspectos (sic) opostos, Joinville tem que ser vista e sentida, nas aparências e no íntimo de sua vida para poder ser conhecida. Por seus calmos cenários urbanos, edificados sobre a tranqüilidade e a pacatês das existências plácidas, não trai a febril inquietação de trabalho que constitui o fundo de suas existência afadigada, operosa e produtiva. Joinville é a cidade silenciosa. Não há nela os estridentes roncos de buzina e klaxons, (...) toda a sinfonia rumorosa e irritante que faz enfermar os ouvidos das grandes metrópoles barulhentas e agitadas. Existem as sirenes, existem os automóveis, existem os rádios. Mas parece que todos se guiam pela disciplina e educação que nascem, como instinto, das sugestões do panorama tranqüilo que é o todo da cidade desapressada e discreta. E, entretanto, uma vida profundamente intensa, nas dramáticas convulsões da fecundação do progresso, se processa nas entranhas jovens da cidade-menina, onde se desenvolve o germe da grandeza futura, lançado pela mão do trabalhador."7

115

TERNES, Apolinário. A construção da cidade..., p. 166. Ao contrário dos outros dois estados da região - Paraná e Rio Grande do Sul -, que concentram uma numerosa população em suas capitais, além de suas cidades de porte médio, Santa Catarina se caracteriza por sua pequena população e pela inexistência de uma "grande cidade". No decorrer dos anos 70 e 80, como veremos adiante, Joinville torna-se a mais populosa das cidades catarinenses, ultrapassando inclusive Florianópolis. Sua população, hoje, é de aproximadamente 500 mil habitantes. 117 LOBATO, Heráclito. Página antiga para o dia de hoje. A Notícia, 9 de março de 1957, v. 35, n. 7.085, p. 8. 116

70

Era esse cenário, ao mesmo tempo bucólico e progressista, provinciano ainda, mas anunciando em suas "entranhas" laboriosas o germe do progresso, que se transformava. Num certo sentido, Heráclito Lobo parece estar se despedindo do passado, ao mesmo tempo em que o evoca para iluminar o futuro:

Joinville é, assim, essa cidade de duas faces, ou melhor, que tem como toda gente, um exterior e um interior e que não esbanja em leviana aparência o valor que possui, guardado mas sempre pronto a ser exibido aos que desejam ve-lo (sic) e pelo seu interesse provam merecer a iniciação nos segredos de sua estupenda vitalidade. Esses segredos, muita gente o tem penetrado. E por isso muito se tem falado de Joinville - falado "de bem" está claro. E como tôda (sic) jovem de bôa (sic) reputação que ouve elogios, a cidade vai se tornando vaidosa, e porque é feminina, quer se fazer garrida. Seu maquillage está ainda em princípio mas nestes 16 anos já surgem aqui e ali, os aspectos da faceirice. Cuidemos dela para que assim continue, fazendo-o em homenagem aos longínquos antepassados que primeiro pizaram (sic) seu solo generoso e hospitaleiro.118

Ainda que seja, segundo nosso articulista, o trabalho aquele elemento que integra as "duas faces" da cidade, tornando-a una ainda que sua aparência seja ambivalente, nos interessam nesse momento duas passagens de seu artigo que, em meio às descrições de sua "vida profundamente intensa", passam quase despercebidas. Referimo-nos àquelas em que Joinville é apresentada como "cidade-menina" e "jovem de bôa reputação", de uma vaidade "feminina" que já não esconde completamente, por detrás de sua "maquillage", os "aspectos da faceirice". A metáfora, que sexualiza a cidade, tornando-a e tomando-a como objeto de um desejo, ganha novos significados se lida retrospectivamente, em relação, por exemplo, àqueles artigos que exaltavam a força indómita do imigrante que "plantou a semente" da civilização em meio à "mata

118

Ibid., p. 8.

71

virgem".119 Plantada em ventre fértil, a semente germinou, deu frutos, e Joinville se tornou menina. Dá agora seus primeiros sinais de maturidade, é hora de conhecer seus segredos, de permitir que sua vaidade floresça. Mas há de se cuidar dessa passagem, delicada, da puberdade à vida adulta. "Jovem de bôa reputação", Joinville há de se tornar mulher sem, no entanto, perder seus encantos e recatos de menina. É sobre isso, parece-nos, que nos fala uma parte das crônicas e artigos publicados em "A Notícia" ainda no alvorecer da década que surpreende Joinville em pleno crescimento - e que, lembre-se, apenas inicia. Num primeiro momento, as mudanças parecem encontrar eco positivo nas páginas do principal jornal local. Em editorial publicado nos primeiros dias de janeiro, "A Notícia" elogia "a boa aparência que a nossa cidade vem apresentando de dia para dia". E elenca algumas das razões:

São os grandes prédios que se estão erguendo nos mais variados pontos, as bonitas construções residenciais, as modernas instalações de algumas lojas e também, com justiça, o trabalho de remodelação dos passeios nas principais ruas. (...) Para encerrar, vamos registrar os nossos votos de que estes melhoramentos prossigam, a fim de que a nossa querida Joinville possa dia a dia melhor aparência apresentar, para satisfação de todos nós que aqui nascemos e desejamos ver a nossa terra num constante progresso.120

A fala dessa e de outras crônicas podem parecer, numa primeira leitura, um exercício, um tanto quanto superficial até, de descrição. Como um retratista, o jornalista parece querer passar para o papel os caracteres que, do exterior, definem a "fisionomia" da cidade. Mas há algo mais nessa escrita. Ao descrever a sua "boa aparência", elogiando-lhe as novas feições, há um voltar-se para dentro da cidade e, do

119

PRIMEIRO mata virgem; depois, colônia; e por fim, cidade grande e próspera. Jornal de Joinville, 9 de março de 1951, v.33, n. 55, capa e p. 2. 120 COMENTÁRIO do dia. Joinville com outra aparência A Notícia, Joinville, 10 de janeiro de I960, v. 37, n. 7924, p. 8.

72

seu interior, esboçar algo mais que um mero retrato. Trata-se de uma tentativa de, ao 1er seus textos, interpretar seus discursos e decifrar seus signos, traçar-lhe sua "fisiognomía".121 Uma tentativa que não é gratuita, mas expressão e tradução de uma experiência singular vivida naqueles anos de desenvolvimento: a da modernidade. E que é tanto "desencantamento do mundo", na tradição weberiana do termo - o de secularização

e

racionalização

da

vida

-,

quanto,

e

principalmente,

seu

"reencantamento": ao retirar do domínio divino o poder de vida e de morte, a modernidade não apenas atribuiu um sentido secular à história. Ao fazer do homem artífice de todas as coisas, ela matou Deus para elevar a uma potência até então inimagináveis a capacidade criativa e criadora do homem. 190 ' Uma breve digressão irá nos auxiliar em nossa trajetória.

E principalmente ao

longo do século XIX que o processo de secularização, iniciado no Renascimento, adquire seu momento maior. De "cúmplice" na obra da criação, o homem, tal como um novo Deus, não se limita mais a apenas conhecer e dominar. Mas faz de seu conhecimento um instrumento capaz de criar novas formas de vida, desnaturalizando a natureza e transformando-a em objetos, coisas. Ora, este progresso revela uma nova face da modernidade: a Razão, por si só, não é mais a fonte suprema de desocultamento da realidade. Não é a idéia, em si, que apreende, compreende e

121

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Trad de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1989, especialmente p. 9-180, (Obras Escolhiodas, v. 3). Ver também: BOLLE, Willi. Fisiognomía da metrópole moderna: representação da história em Walter Benjamin. São Paulo: Edusp, 2000, especialmente p. 23-45 e 271-312. 122 As reflexões que seguem são inspiradas, principalmente, em: ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993, pp. 260-338. Parte da argumentação, é devedora ainda de: BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo..., p. 9-98.

73

transforma o mundo - o cogito cartesiano. Mas o "fazer", a ação. Desmistificando as aparências, ele é a fonte reveladora da realidade e instrumento do conhecimento. Há, a partir daí, uma inversão que permanece ainda hoje como um dos resultados da modernidade: a da hierarquia entre a vita contemplativa e a vita activa, a valorização do homo faber e uma nova relação com o conhecimento. Se ele não é mais dado pelos sentidos, pela fé ou pela Razão pura, cabe pensá-lo como construção humana. Daí, a possibilidade da fabricação de um mundo artificial, que desse sentido a própria existência humana, torna-se agora cada vez mais real. Se o homem é o artífice de sua própria realidade, cabe a ele mobilizar, pela inteligência conjugada à prática, os instrumentos necessários à construção de um espaço que será humano não apenas porque resulta da sua capacidade criativa e criadora, mas também - e especialmente porque alijado da natureza. A vitória do homo faber, segundo Hannah Arendt, é também a do "mundo do trabalho" - entre outras razões, porque o trabalho é a expressão máxima da capacidade humana de apropriar-se da natureza não apenas para satisfazer suas necessidades, mas para submetê-la a sua vontade, transformando-a. Ora, esta vitória implica também a valorização excessiva da fabricação que, subordinando o conhecimento à técnica, instrumentaliza-o. Mais que isso: constrói uma imagem que coloca o homem, enquanto produtor, na condição de superioridade em relação a um mundo que ele mesmo constrói e fabrica. Um dos reflexos desta imagem na sociedade contemporânea, em especial a partir do século XIX, está na supremacia do cientificismo e do tecnicismo, na automatização da vida. Quando postos a serviço do capital, a ciência e a técnica edificaram um mundo onde as coisas têm seu valor medido pelo mercado: um novo fetiche, o da mercadoria,

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e do espetáculo que a sustenta e legitima - a moda, a propaganda - , representam o mundo em uma dimensão imagética, onde tudo é desejo a ser realizado e/ou consumido. Assim, pelo mercado e pela mercadoria, o capitalismo moderno reencanta o mundo, ao mesmo tempo em que atualiza e banaliza os seus mitos. E, ao fazê-lo, mostra-se ainda mais eficiente que a religião: afinal, todos os dias são dias de consumo.

2.2 UMA CAPITAL PARA O CAPITAL

Quem guarda os portões da fábrica? Renato Russo

Cenário de experiências, palco de inflexões, a cidade dos séculos XIX e XX seria o espaço por excelência da realização da utopia moderna: ela representa, a um só tempo, â possibilidade de desnaturalização e de fabricação da vida. Constitutiva de novas sensibilidades, ela é o emblema da capacidade humana de sobrepujar-se à natureza, fazendo avançar o progresso e a história.123 Símbolo da vitória da técnica e da ciência, a cidade é, além da realização de um projeto racional, espaço de construção de uma civilidade, cuja síntese sejam, talvez, as pretensões de ordenação espacial e a eugenia - tanto física quanto moral - que perpassam os discursos e as práticas dos planejadores urbanos.

123

BRESCIANI, Maria Stella. Metrópoles: as faces do monstro urbano. Revista Brasileira de História: Cultura & cidades. São Paulo: ANPUH/Marco Zero, v. 5, a 8/9, set., 1984-abr., 1985, p. 39.

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É no planejamento que as pretensões de ordenação espacial encontram sua possibilidade de concretude. A remodelação urbanística, se é uma experiência estética, tem ainda outros significados: redesenhar a cidade implica também construir fronteiras simbólicas que nomeiam novos padrões morais e de comportamento.124 Estabelece-se, a partir do "centro", aquilo que está à sua "margem" e que é preciso integrar - ou simplesmente excluir. Em outras palavras, planejar e organizar racionalmente a cidade é também disciplinar, vigiar e controlar. Fazer prevalecer, pela norma, o que é normal. Sabemos, pela história, que essas pretensões nunca se realizaram em sua plenitude. Em que pesem as tentativas de totalizar, homogeneizar e ideologizar a cidade, as práticas urbanas são plurais, polifónicas.125 Assim pensada, a cidade, mais que um habitai, apresenta-se ao historiador como um lugar de experiências e invenções, tensões e conflitos, de estratégias e táticas, de relações de poder. Esse caráter plural e polifónico das cidades e das relações nela construídas expressa ainda uma outra característica da modernidade: a de um "mundo desenfreado".126 Estabelece-se uma descontinuidade em relação à cultura e os modos de vida "pré-modernos", proliferando relações que determinam não apenas uma diversidade de estilos de vida, mas inúmeras possibilidades de combinações entre eles. O mundo moderno põe em circulação elementos culturais que favorecem a emergência 124

CHOAY, Françoise. A história e o método em urbanismo. In.: BRESCIANI, Maria Stella (org ). Imagens da cidade - Séculos XIX e XX. São Paulo: ANPUH/Marco Zero, 1994. Sobre o planejamento urbano e sua constituição histórica, ver: TOPALOV, Christian. Os saberes sobre a cidade: tempos de crise? Espaço & Debates. São Paulo: NERU, v. 11, n. 34, 1991. Uma discussão mais conceituai e "técnica" do urbanismo contemporâneo pode ser encontrada em: RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz. Urbanismo: olhando a cidade, agindo na sociedade. In.: PECHMAN, Robert (org.). Olhares sobre a cidade. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1994. 125 CANEVACCI, Massimo. A cidade polifónica: Ensaio sobre a antropologia da comunicação urbana. Trad, de Cecilia Prada. São Paulo: Studio Nobel, 1993. p. 13-26. 126 GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. Trad. de Raul Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 1991, pp. 11-60.

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de novas significações e sociabilidades. Um dos desdobramentos mais visíveis dessa condição é o descentramento das referências e identidades, antes fixas e estáveis. Ao erigir um mundo com a face humana, o homem tornou-se não apenas seu arquiteto, mas responsável por atribuir a ele um significado que não pode mais ser encontrado numa dimensão cósmica, metafísica ou espiritual. Assim como o mundo, seu sentido deve ser humano, demasiado humano. Num certo sentido, a "aventura da modernidade", como a definiu Berman, revela as duas faces de um sonho: é agradável i

devaneio e fantasia, mas também pesadelo; é a um só tempo fortuna e vertigem.

r

E

"encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor - mas ao mesmo tempo 1 08 ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos". A recorrência ao passado é um porto seguro para essa aventura no escuro. Mas não se trata mais de recorrer ao passado tal e qual ele é representado, por exemplo, nos discursos do centenário de Joinville. Lá, como vimos, trata-se da construção de uma memória oficial que inscreve, em um tempo linear, as origens primeiras - e, portanto, explicativas - daquilo que a cidade era no presente. Importava, portanto, atribuir um significado a um tempo pretérito, em cuja dimensão mítica e mística encontrava-se um sentido ao curso da história. Naquelas experiências que começam a ser construídas principalmente a partir dos anos 60, com a cidade movimentando-se ao ritmo da modernidade, era outra também a relação com o tempo. Seu significado não estava mais em algum lugar do passado, mas naquilo que era projeto, sonho e utopia de 127

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar - A aventura da modernidade. Trad, de Carlos Felipe Moisés e Ana Maria Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 85-125. 128 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido..., p. 15.

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futuro, de um "imprevisível amanhã" - e do qual o presente era apenas um momento de irrupção em direção ao progresso.129 Trata-se, nas palavras de Sevcenko, de um 130

passado "revisitado e revisto para autorizar a originalidade absoluta do futuro".

O

que não significa abandonar ao léu a lembrança "daquilo que fomos e somos", mas de inscrever essa identidade em uma nova ordem, capaz de justificar e legitimar as aspirações ao progresso, sem perder de vista o fato de que esse futuro é tributário dos sonhos e esperanças do passado. O artigo de Heráclito Lobato parece tanto ser um prenúncio quanto uma síntese, ainda que prematura, desse movimento discursivo: o de representar uma cidade onde os signos da modernidade e do progresso convivem com a "educação e a disciplina" de um lugar pacato e provinciano. O passado cumpre, assim, uma dupla função: ele é a origem daquilo que está aquém do presente e, portanto, fonte e alimento às utopias futuras. Mas, também, é aquele lugar de que não se pode,esquecer, sob o risco de a "cidade-menina" ter manchada sua "reputação". Em um longo editorial, onde reivindica o slogan de "capital do Norte" a Joinville, o editorialista de "A Notícia" vai direto ao assunto: Desde a fundação da Colônia Dona Francisca, pairava na alta destinação de Joinville um sentido progressista que distingüiria sempre o desenvolvimento desta bela cidade. Basta evocarmos a maneira sistemática e planificada da colonização (originária de Hamburgo) para compreendermos que a fundação étnica obedeceu um esforço dirigido pela vontade criteriosa de pioneiros instalados aqui. (...) Hoje, uma cidade moderna e urbanamente acolhedora faz de Joinville um convite à habitação e à desenvoltura progressista do seu potentoso parque industrial. A Colônia Dona Francisca de outrora, foi convertida na cidade de palpitação vanguardeira dentro da vasta comunidade catarinense. (...) Atualmente Joinville já atingiu a sua amplitude industrial e daqui para frente, a multiplicação do progresso crescerá na ordem direta do passar do tempo. Queremos dizer, o desenvolvimento ocorrido no espaço de dois anos passados, ocorrerá (com maior diversificação) nos seis meses vindouros, e assim por diante, numa espantosa eclosão de êxitos

129

RAMA, Angel. A cidade das letras. Trad, de Emir Sader. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 76-101. SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole - São Paulo sociedade e cultura nos trementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 228. 130

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sucessivos. O avanço industrial é a garantia básica da nossa cidade. Através das chaminés das fábricas joinvilenses, o progresso resfolega na sua marcha irreversivel e colossal.131

A exemplo do artigo publicado dez anos antes, o trabalho e o progresso são representados como constitutivos da "identidade local", seu "destino". A ênfase, no entanto, é maior. Aliás, se voltarmos ao capítulo anterior, veremos que os discursos acerca da importância do trabalho na construção da cidade já estão presentes na comemoração do centenário. E poderíamos dar outras voltas no parafuso e encontrar 132

referências à aliança "trabalho X progresso" em tempos ainda mais remotos.

Essa

aparente coesão precisa ser lida a contrapelo: não nos parece mero acaso que, à intensificação do crescimento e desenvolvimento urbanos de Joinville, cresçam também as referências ao trabalho e ao seu "potentoso parque industrial". Porque, nesse caso, mais que sua função produtiva, o trabalho exerce principalmente suas funções simbólica e de adestramento: o de estabelecer um padrão de "regularidade" na administração da cidade - e dos corpos que transitam pela cidade.133 A intenção é estender o domínio do trabalho - e do controle necessário à produção - ao espaço público, disciplinando-o.134 Analisemos com um pouco mais de vagar essa afirmação. Falávamos, antes, que uma das características da modernidade foi a submissão do conhecimento à técnica e a conseqüente hipervalorização do homo faber - em suma, a automatização da vida. Essa é, ao menos em parte, correlata àquilo que Bresciani definiu como "mecanização do mundo": ao fazer da máquina o emblema da 131

JOINVILLE capital do Norte. A Notícia, Joinville,15 set. 1967, v. 45, n. 10201, capa. Sobre isso, ver: COSTA, Iara Andrade. A cidade da ordem: Tensões sociais e controle..., especialmente p. 15-46. 133 FOUCAULT, Michel. O olho do poder. In.: Microfisica do poder..., p. 209-227. 134 FOUCAULT, Michel. Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1982). Trad, de Andrea Daher. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. p. 25-44. 132

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modernidade, o discurso cientificista e tecnicista instituiu o "império da necessidade", onde as coisas têm utilidade quando objetivadas - e, no capitalismo, a "objetividade" das coisas é medida pelo seu valor de mercado. Paradoxalmente, o homem tornou-se a 135

"inutilidade maior" em um mundo que ele mesmo criou. Tanto na Europa quanto no Brasil, aos discursos dignificadores do trabalho aliam-se práticas que devem garantir a ordem e a disciplina, direcionando a energia dos trabalhadores à atividade produtiva. Essencial à administração e docilização dos corpos, o tempo será objeto de um crescente controle e instrumento de poder. A uma noção antes sideral e marcadamente subjetiva, o tempo passa a obedecer a um novo ritmo: o da máquina. O uso do relógio representa, mais que um avanço tecnológico, a possibilidade de se "medir" o tempo, controlando-o e subordinando-o às necessidades produtivas. Nas palavras de Thompson, com a industrialização, "o tempo torna-se dinheiro - não passa, gasta-se." Um sentido moral também lhe é atribuído, e o perfil do trabalhador ideal no auge da Revolução Industrial passa, necessariamente, por saber usar de forma útil o seu tempo, não desperdiçando-o em atividades consideradas ociosas e perniciosas, tais como as festas e bebedeiras, os jogos e a prostituição.136 Uma das faces mais acabadas destas práticas de sujeição a uma ordem disciplinar, é a organização científica do trabalho proposta por Taylor no princípio do século XX. Baseado num rígido controle do tempo e do corpo, o taylorismo propõe, 135

BRESCIANI, Maria Stella. Lógica e dissonância - Sociedade de trabalho: lei, ciência, disciplina e resistência operária Revistra Brasileira de História: Sociedade e trabalho na história São Paulo: Anpuh/Marco Zero, v. 6, n. 11, p. 1-44, set., 1985/fev. 1986. 136 THOMPSON, E. P. O tempo, disciplina de trabalho e o capitalismo industrial. In.: Costumes em comum - Estudos sobre a cultura popular tradicional. Trad, de Antonio Negro et al. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 267-304. Uma abordagem também interessante do fenômeno da industrialização, cuja interpretação se recusa a vê-la apenas como um acontecimento tecnológico, pode ser encontrada em: DECCA, Edgar de. O nascimento das fábricas. São Paulo: Brasiliense, 1986.

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basicamente, "possibilitar o aumento da produtividade do trabalho 'economizando tempo', suprimindo gestos desnecessários e comportamentos supérfluos no interior do processo produtivo".137 Para tanto, Taylor partiu de alguns princípios fundamentais que passavam, principalmente, pela padronização das atividades dentro da fábrica, pela seleção e treinamento "científico" dos operários e pela apropriação de seu saber, que deveria ser reelaborado em um outro nível, hierarquicamente superior. A hierarquia era, para o taylorismo, fundamental a uma organização racional e científica das atividades fabris. Por ela se assegurava o controle total da fábrica e da produção. Era ela, também, a principal responsável pela separação entre o trabalhador e seu saber. No dizer de Rago e Moreira: "A ciência do trabalho deve ser desenvolvida 133

sempre pela gerência e nunca estar de posse do trabalhador".

Individualizar o

trabalhador, apartando-o tanto de seu "fazer" quanto de seu "fazer-se", ao mesmo tempo em que o uniformiza, indiferenciando-o, transformando-o em um "homem-boi", 139 um "soldado do trabalho": eis, genericamente, o projeto taylonsta. Projeto disciplinador que se estendeu para fora das fábricas. Tratou-se, grosso modo, de uma reorganização do espaço urbano tendo, como pano de fundo, intenções eugênicas nem sempre veladas.140 Em Joinville, como em outras cidades, a estratégia 137

RAGO, Margareth; MOREIRA, Eduardo. O que é taylorismo. São Paulo: Braáliense, 1987, p. 10. Ibid, p. 22. 139 Uma breve abordagem acerca do taylorismo se faz necessária, por entendermos que parte da orientação e do discurso presentes na organização da ordem e da disciplina em Joinville, baseia-se nestes princípios. Uma discussão mais detalhada sobre os temas da industrialização e da cultura operária em Joinville foi realizada em trabalho anterior. Ver: GRUNER, Clóvis. Ordem, disciplina e dissonância na Joinville do trabalho - o olhar da imprensa (1960-1980). Joinville, 1997. Trabalho de Graduação - Curso de História, Universidade da Região de Joinville. 140 A historiografia brasileira é relativamente bem sortida, tanto no que diz respeito à cultura operária quanto às mudanças urbanas ocorridas ao longo do século XX. Uma síntese de ambas pode ser encontrada em: BATALHA, Claudio H. M. A historiografia da classe operária no Brasil: trajetórias e tendências, p. 145-158, e BRESCIANI, Maria Stella. História e historiografia das cidades, um percurso, p. 237-258. Ambos os textos em: FREITAS, Marcos Cezar de (org.). Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998. 138

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foi, além de associar o trabalho ao progresso, instituir a ordem como condição fundamentai à obtenção daquele - e a bandeira brasileira, com seu lema positivista, hasteada em praça pública, fazia o favor de não deixar falhar a memória dos joinvilenses. A imprensa fazia sua parte, reafirmando um universo simbólico onde o joinvilense é identificado por seu caráter laborioso, ordeiro e disciplinado

-

características que se tomam ainda mais marcantes porque representadas, pelos discursos, como absolutamente coerentes entre si:

A melhor prece é o trabalho. Mais próximo de Deus estão os que trabalham e ajudam o próximo a trabalhar, do que os que vivem a blasonar virtudes e não agem. A ociosidade é a mãe de todos os vícios, afirma com toda propriedade um outro prólogo popular. Só o ruído abençoado do trabalho pode quebrar o silêncio das almas que adormecem no berço das futilidades humanas. Trabalhemos que da vida/ A missão engrandecida/ E ser bom, fazendo o bem/ - soube dizer um notável poeta. Todos estes ditirambos são-me inspirados pela intensa vida de trabalho e de ação constante do povo joinvilense. (...) Toda e qualquer idéia de progresso está necessariamente ligada à idéia de trabalho. (...) Estão próximos os tempos em que todos estes belos sonhos se converterão em belas realidades! Saudando o operoso povo joinvilense (...) estando o povo que mais trabalha mais próximo de Deus, deve também nele o sentimento religioso alcandorar-se constantemente à prática da caridade, fora da qual não há salvação.141

Lembremos que, alguns meses depois, um editorialista de "A Notícia" reivindicaria a Joinville o slogan de "Capital do Norte". As razões elencadas fazem coro ao artigo de Arnaldo Thiago, ainda que, para nossa alegria de leitores contemporâneos, o anônimo articulista tenha renunciado à poesia de gosto duvidoso. Não seria o primeiro título reivindicado para a cidade. Alguns anos antes, Raulino Rosskamp - que nos anos 70 seria eleito vereador pelo MDB - autoproclama a cidade "capital do trabalho":

141

THIAGO, Arnaldo S. Aos que trabalham, a minha saudação. A Notícia, Joinville, 07 jan. 1967, V.44, n. 9995, p. 2.

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A Manchester Catarinense está festejando mais um aniversário de sua fundação. Sim, 111 anos são passados quando aqui, em pântanos e matas febrosas, estabeleceram-se os primeiros imigrantes. (...) Nós, que pertencemos à atual geração, vemos ao nosso redor, portanto, uma cidade em crescente expansão. (...) Com as intenções fixas num ideal supremo, nobre e dignificante de moralização e de construção, devemos, nós, filhos desta terra, unir na prática todas as forças, para a concretização dos sonhos de todos - felicidade e bem-estar.142

Em seu texto, Rosskamp parece ser mais sensível na apreensão e interpretação do "espírito de seu tempo". Não recorre nostálgicamente ao passado, como Heráclito Lobato: quando o evoca, o faz para homenagear os antepassados e, pela lembrança, invocar sua "tempera laboriosa" nos espíritos dos homens presentes. Ao contrário de Arnaldo Thiago, que apela ao transcendental - "a melhor prece é o trabalho", "o ruído abençoado do trabalho", "estando o povo que mais trabalha mais próximo de Deus" - , o "ideal supremo" de Rosskamp é temporal: a "moralização" e a "construção" de um futuro que é de "felicidade e bem estar" para todos. E que será, nisso estão de acordo os articulistas, obra e fruto do trabalho, "resultado da inteligência do empresário e da capacidade do operário, conjugados".143 Lidos em conjunto, os três artigos parecem expressar uma vontade que, invisível, os perpassa e lhes dá a direção: o desejo de construir, pelo trabalho, um futuro baseado em uma idéia de progresso que é "felicidade e bem estar" para todos, mas que não poderá prescindir da ordem, condição fundamental à sua realização. O que se desenha aí é a construção de uma utopia: a da cidade ideal e idealizada, a um só tempo moderna e progressista, mas também harmônica e moralmente "higienizada". Uma utopia que, como veremos mais adiante, sustenta-se a um só tempo pelas práticas 142

8567, p. 3.

ROSSKAMP, Raulino. Joinville, capital do Trabalho. A Notícia, Joinville, 9 mar. 1962, v. 40, n.

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de exclusão e inclusão, num jogo de tensões permanentes: é preciso "excluir" o que é anormal, para "inclui-lo" a uma ordem que se julga necessária (disciplinar, produtiva, etc.). Mas, a condição para "inclui-lo" a esta ordem é "exclui-lo" do convívio social, ainda que em um universo simbólico e discursivo. No caso de Joinville um esboço, ainda que simplificado, pode ser exposto da seguinte maneira: são merecedores de integrar uma cidade virtuosamente constituída aqueles que "trabalham e ajudam o próximo a trabalhar", já que é o trabalho a base moral dessa sociedade. A ociosidade, "mãe de todos os vícios", está à margem, porque sua negação absoluta. A recusa ao ócio, portanto, é condição sine qua non à integração na "sociedade do trabalho". Entre outras razões, porque o seu abandono pressupõe a possibilidade de tornar o indivíduo produtivo - no sentido material e moral do termo. Novas objeções podem ser feitas aqui, dessa vez por aqueles que recorrerão ao emaranhado de boas intenções, libertadoras e liberadoras, que normalmente perpassam as utopias. Aos novos interlocutores, gostaríamos de lembrar, com Foucault, que as utopias "são os posicionamentos sem lugar real. (...) É a própria sociedade aperfeiçoada ou é o inverso da sociedade mas, de qualquer forma, essas utopias são espaços que fundamentalmente são essencialmente irreais".144 Trocando em miúdos: se são "lugares sem espaço real", as utopias não são um privilégio deste ou daquele grupo e nem sempre, necessariamente, inspiraram movimentos de emancipação política. Aliás, há de se levar em conta uma característica mais ou menos comum às utopias: a sua aspiração à hegemonia e à repetição, e o desejo de constituição de um 143

HERKENHOFF, Paulo Estellita. Impressões de Joinville. A Notícia, Joinville, 16 dez. 1967, v. 45, a 10280, p.2.

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mundo padronizado, onde não há lugar para o que não é regulamentado. E, nesse sentido, não causa surpresa que as modernas técnicas de planejamento urbano sejam, em parte, credoras dos "idilios geométricos" de Fourier. Inscrita em uma ordem discursiva, a utopia de uma "cidade ideal", moderna, produtiva e higienizada, aspirou delimitar a forma como Joinville deveria ser percebida, apreendida e desejada. Foi pela produção de representações simbólicas do social que se constituíram, em parte, novas sensibilidades que classificam e atribuem um valor ao espaço urbano e às experiências nele construídas.145 No imaginário local, o trabalho, conjugado a uma identidade originária, fixada em algum lugar do passado, mas presente na memória oficial da cidade, foi parte da constituição e legitimação de um habitus que internalizou, como subjetividade, produções "objetivas" que são parte das relações de poder e de dominação.146 Çoube ao poder público e às elites locais um papel fundamental na produção e reprodução dessas representações sociais e de buscar, em torno delas, um consenso no caso, o de que "através das chaminés das fábricas joinvilenses, o progresso resfolega na sua marcha irreversível e colossal". Um consenso que é expressão do poder e da violência simbólicos exercidos pelo Estado e suas instituições ao esquadrinhar, classificar e regular práticas sociais no sentido de instaurar, em torno da vida cotidiana, percepções comuns do espaço social entre indivíduos social e

144

FOUCAULT, Michel. Outros espaços. In.: Ditos & escritos. Trad, de Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. v.3, p. 414-15. 145 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Muito além do espaço: por uma história cultural do urbano. Estudos históricos. Rio de Janeiro: FGV, v. 8, n. 16, 1995, p. 279-290. 146 Segundo Bourdieu, "o habitus é esse princípio gerador e unificador que reproduz as características intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida unívoco, isto é, um conjunto unívoco de escolhas de pessoas, de bens, de práticas." BOURDIEU, Pierre. Razões práticas - Sobre a teoria da ação..., p. 21-22.

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culturalmente diferentes.147 Tentativa que tem sua contrapartida - ou contradiscurso nas resistências e dissonâncias também cotidianas e nem sempre institucionais e institucionalizadas. Mas que por vezes encontra respaldo aos seus "chamados à ordem". Não na obediência cega ou alienada de uma "falsa consciência" submissa a uma ideologia ou imaginário maquiavelicamente construídos. Mas na predisposição de determinados atores de se mobilizar em torno daquilo que reconhecem ser os "seus" valores mais profundos - ainda que, efetivamente, não o sejam.

148

2.3 CENÁRIOS EM RUÍNAS

Acreditei ter uma idéia da profundidade da cidade! Eis o prodígio que não pude explicar: quais os níveis dos outros bairros acima ou abaixo da acrópole? Rimbaud

No segundo artigo sobre suas impressões de Joinville, Paulo Herkenhoff discorre sobre o que considera um saudável hábito dos joinvilenses: a fotografia.

A memória pode conservar as impressões, mas de maneira imprecisa. Muitos momentos que desejaríamos não esquecer, se perdem no tempo. O joinvilense, entretanto, com seu espírito empreendedor, sabe guardar mais viva na lembrança, acontecimentos e pessoas, fotografando-os. E por isso o movimento fotográfico é extraordinário. Muitas centenas de retratos são batidos diariamente. As festas, bailes, banquetes, casamentos, visitas, tudo é alvo para a máquina fotográfica.

147

BOURDIEU, O poder simbólico..., p. 7-15. "É essa submissão dóxica dos dominados às estruturas de uma ordem social da qual suas estruturas mentais são produto que o marxismo impede de compreender, porque permanece encerrado na tradição intelectualista das filosofias da consciência: na noção de 'falsa consciência' (...) é 'consciência' que está demais, e falar de 'ideologia' é situar na ordem das representações, suscetíveis de transformação através dessa conversão intelectual que chamamos de 'tomada de consciência', o que se situa na ordem das crenças, isto é, nas mais profundas das disposições corporais." Ia: BOURDIEU, Razões práticas - Sobre a teoria da ação...., p. 117. 148

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As crianças com suas diversas idades. Os amigos. Os moradores. O casal e a família, tudo é motivo para fotografia.(. . .) O joinvilense não se importa, de modo gerai, com o preço dos retratos e dos filmes. O que ele quer é fotografar e ser fotografado. Em todo lar existe o álbum e ali está toda a seqüência da vida.(...)149

Deixemos de lado, por enquanto, o "espírito empreendedor": difícil imaginar o que alhos têm a ver com bugalhos. No que nos concerne, queremos nos ater um pouco no extraordinário "movimento fotográfico" local e tentar atribuir a ele alguma outra significação além da aparente. Ou seja, o de tentar perceber a relação entre o hábito de fotografar tudo e todos, e as mudanças ocorridas na sensibilidade dos joinvilenses - ou de uma parte dos - com a experiência da modernidade. Em seu trabalho sobre a reprodutibilidade técnica da obra de arte, Benjamin aponta duas mudanças fundamentais na apreciação da obra de arte com o advento da modernidade.150 O primeiro efeito: com a possibilidade de reprodução, a obra perdeu aquilo que ele definiu como sua "aura": "a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja".151 Entre outras coisas ela permite, no caso da fotografia, por exemplo, reproduzir o "real" em diferentes ângulos e perspectivas. Num certo sentido, quanto mais se afasta e se desprende do original que lhe serve de modelo, maior sua capacidade de captar passagens, expressões, cores e nuances imperceptíveis ao olho humano, de expressar "a natureza daquilo que a natureza não é", como queria Picasso. Como um de seus desdobramentos - o segundo efeito - , tem-se, pela mediação da técnica, a fragmentação do "real", que perde sua integridade e coesão "naturais". 149

HERKENHOFF, Paulo Estellita. Impressões de Joinville. A Notícia, Joinville, 19 dez., 1967, v.45, a 10282, p.2. 150 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In.: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1993. p. 165-196. (Obras escolhidas, v.l).

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Também com o tempo ocorre movimento semelhante. Como no conto de Calvino, nos apropriamos do instante vivido não no momento presente, mas no amanhã quando, 152

diante da imagem que o fixa, o revivemos pela lembrança.

*

Mas aquele já não é mais

o instante vivido: é uma reprodução, mediatizada pela técnica; nem nossas sensações são expressão da experiência, mas uma lembrança dela, representada pela imagem que a eterniza. Este tema - o da dispersão do tempo - Benjamin já o havia explorado em trabalho anterior, "Pequena história da fotografia" que, em alguns aspectos, anuncia 153 reflexões que serão ampliadas e amadurecidas posteriormente.

Trata-se, em linhas

gerais, da possibilidade de, pelos recursos técnicos oferecidos pela fotografia, "eternizar" o instante único, fixando em um tempo perene a imagem e seus personagens. Mas, como dito anteriormente, aquele instante reproduzido e fixado em papel será um suporte da memória, que reconstituirá a experiência captando de sua representação pictórica não seu sentido primeiro, mas "o lugar imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em minutos únicos, há muito extintos".154 Esse desejo de eternizar o tempo parece responder a uma necessidade própria da modernidade. Em sua quase insana busca pelo novo, sua ânsia pelo progresso e o futuro a qualquer preço, a modernidade imprimiu ao cotidiano das cidades, especialmente, um ritmo lancinante de mudanças que "dissiparam as bases de uma cultura de referências 151

Ibid., p. 170. CALVINO, Italo. A aventura de um fotógrafo. In.: Os amores difíceis. Trad, de Raquel Ramalhete. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 51-64. 153 BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia Ia: Magia e técnica, arte epolítica. São Paulo: Brasiliense, 1993. p. 91-107. (Obras escolhidas, v.l). O texto em questão é de 1931, cinco anos mais jovem que "A obra de arte...", datado de 1936. 154 BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia..., p. 94. 152

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estáveis e contínuas".155 Essa experiência, que é também a da vertigem, não apenas empobreceu a experiência do passado, cujo sentido edificante em si mesmo tornou-se obsoleto para o presente, para só ter um significado se projetado em direção ao futuro. Ela apagou, do presente mesmo, as possibilidades de constituição de uma experiência duradoura: como na relação com o passado, toda experiência presente deve ser posta em circulação, fazer parte do fluxo ininterrupto de mudanças, integrar o balcão de novidades cujos produtos renovam-se incessantemente. E a lógica do mercado, que se alimenta do que é novo, transformando em relíquias as novidades de ontem. Assim, se num primeiro momento a modernidade parece ter alargado o tempo, projetando para um futuro-mais-que-perfeito as experiências do agora, ela na verdade o fragmentou. Porque já não se vive o presente, cujo sentido é disperso e fugidio. A fotografia cumpre, assim, a função de, ilusoriamente, fixar no tempo aquele instante que não pode ser plenamente vivido - ou só o pode frágil e transitoriamente. Estranho paradoxo: pela técnica, a modernidade quer preencher uma ausência de sentido em cujo tecido encontram-se as suas próprias digitais. Quer tornar sólido aquilo que desmancha no ar.156 Num certo sentido, essa necessidade de renovação é parte do próprio projeto histórico da modernidade que, ao estabelecer uma cisão com o antigo, precisou construir seus próprios meios de compreender-se a si própria "como a atualidade da

155

SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole...., p. 32. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar.... ,p. 85-125. Sobre o empobrecimento da experiência na modernidade ver: BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza Ia: Magia e técnica..., p. 114119. 156

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época mais recente".157 Construída sobre as ruinas do passado, ela precisou positivar o novo, condição necessária para legitimar o apagamento dos rastros em cujo vazio imprimiu sua visibilidade. Significativo nesse sentido é o texto-legenda publicado em "A Notícia". São duas fotos: a primeira, a demolição de um antigo edifício na rua 9 de Março, centro da cidade, construído em 1874 "por um sapateiro de sobrenome Stein", e agora pertencente a Raul Schmidlin. Na segunda, um "clichê" do projeto dos edifícios Thereza Schmidlin e Verena Stock, cujas obras iniciariam assim que os trabalhos de demolição fossem concluídos. A nota explica que os dois condomínios contarão com 11 lojas no piso térreo, e 12 apartamentos nos andares superiores. Ligando-os, "uma vistosa galeria (...) interligando duas grandes artérias comerciais" (as ruas 9 de março e XV de Novembro). E encerra: "São lances do progresso que modificam a feição da cidade. E o que é mais importante, para melhor, com o antigo 158

dando lugar ao moderno". A imagem de "A Notícia", onde em uma mesma página convivem a destruição e a criação, "o antigo dando lugar ao moderno", sugere ainda uma segunda interpretação. Ela nos remete à fragilidade das pretensões duradouras da modernidade. Ao acelerar o ritmo do tempo, celebrar o fluxo ininterrupto das mudanças e a emergência do sempre novo, ela não apenas apaga os rastros do passado - revisitandoo apenas para respaldar suas aspirações ao progresso - , mas faz ruína de si mesma, num processo autofágico em que é preciso destruir-se para dar lugar ao devir. Contraditória e paradoxalmente, o mesmo movimento que afasta, também aproxima o 157

HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Trad, de Ana Maria Bernardo et alii. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1990. p. 13-22. 158 O PROGRESSO modifica a feição da cidade. A Notícia, Joinville, 28 set., 1967, v.45, a 10214, p. 8.

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antigo do novo por um traço que lhes é comum. Neles, o que se revela é sempre o passado ou o futuro, "ruínas e obras se confundem". Não há lugar, em ambos, para o presente, cuja caducidade é uma das características da modernidade - e também sua condição de permanência.159 Transpostas para o cotidiano, essas "paisagens urbanas" se revelam não apenas em sua materialidade: elas perpassam os hábitos e os costumes dos joinvilenses. O choque provocado pelas mudanças ocorridas ao longo dos anos 60 faz emergir novas sensibilidades que, se por um lado, dão as boas-vindas às modificações pelas quais passa a cidade, por outro revelam a inquietude e o espanto diante delas. Alguns discursos publicados na imprensa parecem expressar a constatação, por parte dos "formadores de opinião", de que o preço a pagar pela modernidade pode ser mais alto do que eles mesmos supunham. E de que, no limite, a ausência de um centro estável de referências transformou em ruínas não apenas prédios e casas antigas, mas também a sensação de segurança e estabilidade, os seus "calmos cenários urbanos, edificados sobre a tranqüilidade e a pacatês das existências plácidas".160 Radialista e cronista de "A Notícia", Charles Weber foi um dos tradutores desse sentimento de perplexidade. Alguns de seus textos expressam um desassossego com o ritmo da cidade, mesmo que esse se manifeste recorrendo a metáforas, elas mesmas significativas, da luta do homem contra a natureza:

159

PEIXOTO, Nelson Brissac. Paisagens urbanas. São Paulo: Editora SENAC;Marca D'Água, 1996, p. 232. A esse respeito ver ainda: GAGNEBIN, Jeanne Marie. Baudelaire, Benjamin e o moderno. In.: Sete aulas sobre linguagem, memória e história. Rio de Janeiro: Imago, 1997. p. 139-154. LOBATO, Heráclito. Página antiga para o dia de hoje. A Noticia, Joinville, 9 mar. 1957, v.35, n. 7085, p. 8.

91

O homem e a chuva. (...) O homem pode nascer em qualquer canto do mundo, pode viver em qualquer parte do mundo, uma vez no seu habitat. Pode até nascer em Joinville, a nossa cidade, se bem que aqui a parada é mais dura no que se refere à sobrevivência e vocês todos sabem disso (preço da carne, principalmente - além dos aumentos desse começo de ano, em muitos artigos de primeira necessidade). A chuva é água que se despenca das nuvens do céu e, com exceção dos desertos, pode cair em qualquer parte do mundo em garoa ou a cântaros, como em Joinville, provocando estragos de graves conseqüências. O homem e a chuva. O homem em Joinville não perde tempo. Levanta-se pela manhã para enfrentar o batente na defesa do pão nosso de "cada dia mais caro", e a primeira coisa que pensa ao dar de si, ainda embaixo dos cobertores é: "Será que hoje chove?" A chuva, que não dorme, vive por aí correndo os céus, não tem nada a fazer senão cair, e resolve cair, pelo menos na nossa cidade, cai valendo mesmo.(...) O homem e a chuva. Se chega tarde ao serviço, a culpa é da chuva, Se, andando por aí, engole uns traguinhos para esquentar e chega em casa meio "grogue", a culpa é da chuva.(...) E, como em nossa cidade o homem tem mesmo que trabalhar, o jeito é sair, pela manhã, de casa e enfrentar a chuva. Cai o homem na chuva e cai a chuva no homem.(...)161

E se, nessa crônica, a chuva é o pretexto para se falar das mazelas cotidianas (a carne cara, os aumentos de início de ano e a rotina de trabalho), em outras Weber dispensa as figuras de linguagem. Em artigo publicado alguns dias depois de suas reflexões sobre as intempéries joinvilenses, elogia a cidade e seus habitantes, "homens que trabalham de sol a sol", mas encerra com um alerta: "Joinville é, realmente, uma boa cidade, cresce como todas as cidades (...) e, no seu crescimento, exige também 1 AO modificações na sua estrutura". Os debates em torno dos desequilíbrios provocados pelo crescimento urbano, aliás, foram freqüentes, seja na imprensa ou entre lideranças políticas e empresariais, ao longo dos anos 60. Nas páginas de "A Notícia", cronistas e articulistas se debruçaram especialmente sobre os problemas decorrentes do aumento no número de veículos na cidade. De ícone da modernidade, o carro transformou-se rapidamente em uma ameaça de proporções assustadoras. Verdadeira obsessão, o trânsito mereceu colunas e mais colunas, crônicas e editoriais, todos denunciando o descalabro e a 161 162

WEBER, Charles. Nosso comentário. A Notícia, Joinville, 6 jan., 1967, v.44, a 9994, p.3. Id., p. 43

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irresponsabilidade com que o tema era tratado. O assunto, evidentemente, não passou despercebido por Charles Weber, que anota, em uma de suas crônicas:

Se a gente tivesse tempo para anotar tudo o que acontece na cidade e comentar a respeito, uma página como essas seria pouco, diariamente. Tudo depende, também, da forma como se analisa este ou aquele fato. Os ônibus circulares daqui, agora correndo mais ou menos dentro dos horários estabelecidos, de quando em quando dão seu "showzinho" pelas ruas principais. E que um ou outro motorista, mais disposto, talvez, resolve botar o "pé-na-tábua", correndo além do normal, com arrancadas violentas e paradas bruscas nos pontos, fazendo os ocupantes dos veículos sacolejar de um lado para o outro, muito inconfortavelmente. Os que viajam de pé, então, sofrem horrores. A gente sai de casa com a sobremesa por cima da comida, no estômago, e chega no ponto de parada com a dita por baixo da outra dita. Até aí, entretanto, não há problema maior já que o caso é chegar no trabalho em tempo. (...)163

As reclamações, no entanto, são de bem antes da crônica de Weber - e geralmente sem o seu bom humor. Como um dos editoriais de "A Notícia" que denuncia o problema já em 1961, cobrando das autoridades públicas "medidas de provimento e de prevenção" não apenas de efeito imediato, mas "pela perspectiva de '

um futuro de alguns anos".

1 fid

Os números parecem justificar, em parte, as razões para

a preocupação dos jornalistas e articulistas: no início dos anos 50, a cidade possui cerca de 400 automóveis e apenas 15 ônibus.165 Na metade da década seguinte, a frota é de 2.600 unidades166 - um crescimento geométrico que, por certo, justificava o clima de pânico. Que, aliás, prescindia de qualquer estatística: em nenhum dos artigos pesquisados há qualquer menção ao número de veículos rodando pelas ruas da cidade. Há, apenas, a preocupação com os males do trânsito, especialmente para a vida dos transeuntes e ciclistas - e dos próprios condutores. E para que não soe exagero de 163

Id., p. 43 CRESCE a população e crescem os problemas da cidade. A Notícia, Joinville, 22 jan., 1961, v. 39, n. 8234, p. 8. 165 TERNES, Apolinário. A construção da cidade..., p. 161. 164

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nossa parte o uso da expressão "pânico", deixemos que fale por nós um instante o editorial de "A Notícia" publicado nos primeiros dias de 1960:

Em sua corrida vertiginosa rumo ao progresso, Joinville - a terra das fabricas - caminha também para uma fiase de apreensões, no que tange ao movimento de suas ruas. Vez por outra, nas andanças pelas principais artérias da cidade, temos registrados fatos os mais impossíveis de serem imaginados, tais as circunstâncias em que de se desenrolaram. Vejamos o caso das motocicletas, lambretas & cia. Alguns mocinhos, não se sabe porque cargas d'água, resolveram fazer uso de tais veículos para corridas desenfreadas, tomando a atual rua Dr. João Colin (ex-rua Duque de Caxias) para pista de competições macabras. Do modo como vão ocorrendo as coisas, é bem possível que tais mocinhos estejam apostando corrida em demanda ao abismo. Ainda domingo último, o repórter pode constatar com os olhos que Deus lhe deu, um fato que não deve ficar no esquecimento, haja vista as conseqüências que o mesmo poderia ter trazido consigo, enlutando lares de famílias joinvilenses. Um mocinho, montado na sua "big motocicleta" em companhia de um jovem, achou-se no direito de fezer evoluções em toda a extensão daquela artéria.(...) Posteriormente aquele fato, na mesma noite de domingo, uma lambreta passou por determinado local da rua dr. João Colin em velocidade simplesmente espantosa e, lá com os nossos botões, chegamos a matutar: isto deve ser um avião super-sônico que deve ter passado por aí, nunca uma lambreta. Mas era uma lambreta mesmo.167

O artigo prossegue, chamando a atenção dos jovens, principalmente, para os riscos às suas vidas e às alheias, diante do que nosso repórter define como "impulsos da idade" que terminam por "enervar a paciência dos outros". Entre apelos à boa consciência e ao respeito pela segurança e à integridade física, o que soa mais forte é a mensagem final, de tom apocalíptico: "Vamos agir assim, somente assim. De outra maneira só nos restará um destino: corrida para o abismo, corrida para a própria morte". A freqüência com que o assunto é debatido nas páginas do jornal merece uma reflexão, ainda que rápida - como rápidos eram os veículos que trafegavam pela 166

SOCIEDADE SERETE DE ESTUDOS E PROJETOS. Plano Básico De Urbanismo. Joinville, Prefeitura Municipal, nov., 1965 . v. 2

94

cidade. Num certo sentido, ele é a materialização daquelas características de que falávamos acima: velocidade, fluxo constante, vertigem. A ação corresponde àquilo que o próprio tempo exige dela e a velocidade, mais que "impulsos da idade", parece ser um impulso de uma era, a dos extremos, no dizer de Hobsbawm. Se é a juventude a principal protagonista desses novos rituais urbanos, nada a estranhar: é especialmente a ela que os apelos do mundo moderno são dirigidos: é preciso testar, por à prova, as fronteiras entre a "vida" e a "morte". Na pior das hipóteses, morre-se jovem e jovem se permanece: pelo menos na morte todos podem ser um pouco como James Dean. A aceleração do tempo, cuja representação moderna é a velocidade com que as coisas e as pessoas transitam, é também uma forma de interagir com um espaço em permanente mudança. Ela responde àquilo que Virilio definiu como "crise de dimensão" - sem as referências de um espaço substancial e homogêneo, investe-se na exploração dos espaços e formas fracionados e atomizados. E a "arquitetura do improvável": como criar um mundo de imagens estáveis, se os antigos referenciais e padrões físicos e arquiteturais foram deformados ou destruídos? Como se fixar em um lugar se a velocidade aboliu as noções de dimensão física, de tempo e de espaço?168 A "corrida para o abismo, corrida para a própria morte" é, nesse sentido, uma metáfora condizente com as próprias representações da modernidade. A diferença, e nesse caso bastante significativa, é que lá se tratava de um deslocamento e da perda de referências simbólicas - mesmo quando expressas fisicamente, como a demolição de antigos

167

SOUZA, Arão Tito de. Corrida para o abismo. A Notícia, Joinville, 7 de janeiro de 1960, v. 37, a

7922, p. 8.

168

7-19.

VIRILIO, Paul. O espaço crítico. Trad, de Paulo Roberto Pires. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993. p.

95

prédios, por exemplo - , daquilo que atribuía um sentido e mesmo uma identidade à cidade e seus habitantes. Aqui, eram vidas que estavam em jogo. Os articulistas, aliás, não deixavam seus leitores esquecer disso. E se, a alguém mais insensível ou indiferente, a vida humana pouco importava - à exceção da sua própria - fazia-se com que o problema passasse a ser também de sua alçada: afinal, o barulho provocado pelo trânsito incomoda e perturba a paz dos que ficam - sejam eles insensíveis ou não. Além de ser um atestado de incivilidade, como frisa um articulista que assina com as iniciais "A.S.P.":

(...) Joinville, a bem dizer, foi tomada de supetão pela volúpia da baderna pública através de milhares de veículos a motor de explosão que infernam as suas ruas: é automóvel, é caminhão, é ônibus, é motocicle, é lambreta, é vespa, numa balburdia que azucrina, abala, enerva. Um verdadeiro desafío ao sistema nervoso do joinvilense, um verdadeiro escárnio às mais rudimentares regras de educação pública, de civismo, de respeito. Polícia - não existe, e quando existe, fez ouvidos moucos. E o povo que agüente: o trabalho nos escritórios sofre; sofrem os homens em atividades externas; as donas de casa, sofrem; a barulheira infernal dos veículos adentra venezianas e janelas cerradas.(...) Um forrobodó, um insulto ao renome de Joinville, pacata e ordeira, nas mãos de indivíduos embotados, de educação ausente, de abuso e descaramento presentes nos tubos de escapamento, no clangor das businas.(...) As autoridades joinvilenses sumiram ou não percebem deste estado de coisas que brada aos ceus na mais desenfreada balburdia abusiva jamais sofrida. Não haverá quem, em Joinville, ensine educação a esse bando de estupidifícados, vaidosos na demonstrativa do potencial de seus motores? Esperemos.169

Ao que tudo indica, o anônimo articulista continuou a esperar. Em que pesem os apelos constantes, Joinville chega ao final da década com os problemas do trânsito ainda sem solução. A imprensa se mobiliza, e A Notícia chama para si o direito e o dever de propor iniciativas que resolvam de vez a questão: alargamento de ruas,

169

ASP. Cidade barulho. A Notícia, Joinville, 9 nov., 1960, v.38, n. 8173, p. 8.

96

especialmente as centrais170, observância ao Plano Piloto da cidade e descentralização do trânsito, desafogando o centro da cidade,

e aumento de medidas repressivas, com

uma maior atuação da polícia172, são as principais medidas sugeridas. Os leitores também opinam, e expressam sua preocupação: apelam ao bom senso dos motoristas, mas reservam aos "volantes irresponsáveis" sua ira: exigem "medidas enérgicas" das autoridades, tais como a "cassação de cadernetas de motoristas, apreensão de carros" dos "anormais que querem aparecer pelo barulho e pela velocidade".173 Por fim, exaustos, os editorialistas apelam à vaidade dos joinvilenses - e do poder público em especial - , recomendando pura e simplesmente,

que se imite "as medidas

repreensivas" adotadas em Blumenau174:

Nas suas atuais preocupações, o Departamento de Trânsito de Blumenau está dedicando especial atenção ao problema e um esquema previamente montado foi pôsto em funcionamento, destinado a surpreender, à noite, esses marginais do volante. Seria realmente bastante sugestivo e sumariamente importante, se idênticas providências fossem tomadas em Joinville, não somente à noite, mas também durante o dia, de modo a possibilitar que se trafegue com mais segurança dentro do perímetro urbano, eis que, a continuar como está, com os carros desenvolvendo a qualquer hora, velocidades acima de 40 quilômetros horários e com o crescente aumento de veículos em circulação, estamos sujeitos a presenciar, a qualquer momento, uma catástrofe de proporções maiores do que as que já tivemos.175

E se, afinal, o trânsito era um problema de difícil solução, e talvez o mais impactante entre os "embaraços" provocados pelo desenvolvimento, havia um outro 170

TRÂNSITO: problema sério. A Notícia, Joinville, 4 jul., 1969, v.47, a 10744, p. 2. CRESÇAMOS com ordem A Noticia, Joinville, 21 jua, 1969, v.47, n. 10733, p. 2; OLHANDO o futuro. A Notícia, Joinville, 5 jul., 1969, v.47, a 10745, p. 2. 172 TRÂNSITO: maior cuidado. A Noticia, Joinville, 29 jul., 1969, v.47, n. 10765, p. 2. 173 BORTOLINI, Balduíno. Velocidade e tráfego. A Noticia, Joinville, 10 out., 1969, v.47, n. 10828, p. 2. 174 Uma breve explicação, especialmente aos leitores de outras plagas: cidades de características semelhantes - o processo de colonização, o desenvolvimento industrial e a população, por exemplo -, Joinville e Blumenau fazem jus ao título de "cidades-irmãs": a relação fraternal entre os dois municípios disfarça uma rivalidade latente. Ambos disputam, entre si, o privilégio de ser a "mais importante das cidades catarinenses" uma disputa pautada, principalmente, no potencial econômico e industrial das duas cidades. Mas que perpassa também a forma como cada uma delas organizou e administrou o seu crescimento - em outras palavras, quem é mais urbana e, portanto, mais moderna e desenvolvida. 175 EMITE-SE Blumenau. A Noticia, Joinville, 14 dez., 1969, v. 47, a 10883, p. 2. 171

97

que, ao longo da década, disputou em pé de igualdade os espaços privilegiados na imprensa. Menos visível, mas nem por isso menos preocupante, a segurança pública mereceu também as atenções dos jornalistas e de seus leitores - e revelou, a seu modo, a face obscura da modernidade.

2.4 UM ESPECTRO RONDA A CIDADE

A polícia atravanca as ruas com sua ansiedade Allen Ginsberg

Os leitores de "A Notícia" foram surpreendidos, em seu café da manhã, por uma notícia indigesta: a morte de "Dalvina de tal", assassinada no interior da boate "Buraco Quente" por um de seus clientes. Impressionante cena de sangue verificou-se na tarde de ontem na casa de meretrício denominada "Buraco Quente". Naquela alcova Juvelino da Luz, solteiro, residente à rua São Pedro esquina com Procópio Gomes, trabalhador do curtume de propriedade do sr. Conrado Kuehne, no bairro Itaum, teve qualquer desavença com a pensionista de nome Dalvina de tal e em conseqüência disparou contra a mesma um tiro que a foi atingir na testa. Dado conhecimento do feto às autoridades, compareceram esta ao local, fazendo transportar a vítima para o Hospital, onde foi atendida pelos doutores Baschurg e Cabral, que constataram a necessidade de ser a mulher submetida a uma operação. Dalvina, porém, já vinha deitando sangue pela boca e do orifício produzido pelo projétil da arma de fogo estavam escorrendo os miolos. Dada a gravidade do estado não suportou ela por muito tempo os sofrimentos, vindo a felecer logo após ter dado entrada no Hospital, antes que os médicos pudessem fezer qualquer coisa em seu benefício. Quanto ao autor do crime, encontra-se foragido, estando a polícia no seu encalço. A vítima do estúpido crime contava cerca de 25 anos de idade e nos círculos do "bas-fond" era conhecida pela alcunha de "Jipão".176

Com a prisão de Juvelino, o jornal pôde, já no dia seguinte, trazer à luz novas informações, incluindo o nome completo da vítima. A morte de Dalvina Fagundes dos

176

MATOU a mundana com um tiro na cabeça. A Notícia, Joinville, 17 fev., 1960, v.37, a 7957, p. 8.

98

Reis, ou "Jipão", teria sido acidental. Juvelino não tinha intenção de matá-la: a arma disparou enquanto ele a manuseava inocentemente, "em brincadeira", acreditando que estava descarregada. Por que se evadiu do local? Porque o tiro chamou a atenção de outras moradoras, atraindo-as para a sala onde ele e Dalvina se encontravam. Temendo "qualquer reação da parte delas", fugiu. Sem registro de porte, a arma - provavelmente roubada, segundo a polícia - Juvelino a comprou de um desconhecido. E assim, o que 24 horas antes foi descrito como um "estúpido crime", torna-se agora quase uma fatalidade do destino. O jornal justifica-se: "Esta a versão que ele deu aos fatos e que 177

não se pode corroborar ou negar visto não ter havido testemunhas".

E o ano estava

apenas começando. É verdade que, no início da década de 60, o número de crimes ditos hediondos, como o assassinato de Dalvina, era relativamente baixo - ou, pelo menos, sua aparição na imprensa. "A Notícia", por exemplo, não tinha ainda uma página policial fixa - o que só viria a acontecer nos anos 70. Mantinha a coluna "Registro policial", que nem mesmo diária era. Quando o assunto merecesse mais que um mero registro, o jornal lhe dedicava uma matéria, normalmente nas páginas finais da edição. Há mesmo um longo período, durante o ano de 67, em que as reportagens sobre crimes de qualquer espécie praticamente desaparecem - curiosamente, ao mesmo tempo que silencia sobre o assunto em suas páginas locais, o jornal dedica diariamente um generoso espaço às notícias policiais vindas da sucursal de... Blumenau! Mas não nos deixemos levar pelas aparências. Joinville é, lembremos, uma "cidade de aspectos opostos", e os seus "calmos cenários urbanos" não disfarçam 117

TERIA sido acidental a morte da mundana. A Noticia, Joinville, 18 fev., 1960, v.37, n. 7958, p. 8.

99

apenas "a febril inquietáção de trabalho que constitui o fundo de sua existencia afadigada, operosa e produtiva". Eles escondem também sociabilidades construídas à margem daquelas pretensões à ordem e à "tranqüilidade e pacatês das existências plácidas". E sobre as quais a imprensa e as autoridades lançam um olhar que pretende delimitar, sob um ponto de vista moral, o lugar que lhes cabe na cidade que desejam construir. É esse desejo - a utopia da cidade ideal, de que falávamos há pouco - que irá nortear as práticas discursivas e não-discursivas que delimitam as novas fronteiras urbanas. É em torno dessa delimitação que se irá construir uma geografia simbólica da cidade. No centro do mapa está uma Joinville que é, a um só tempo, moderna e progressista, mas também harmônica e moralmente "higienizada". Às margens estão a 17Ä

"desordem e a selvageria", no dizer de Ternes

.

«

«

- tudo aquilo que é preciso integrar,

chamar à ordem, disciplinar. E se o trabalho é a base sobre a qual aquela utopia se sustenta e legitima, será a partir dele também - e da ordem que ele pretende instaurar que se produzirão os discursos que tencionam atribuir um significado àquilo que escapa à ordem e à norma. Em outras palavras, pelo poder do discurso, nominar o anormal e, ao atribuir-lhe um nome, fazer incidir sobre ele as marcas do poder. Tratase de um mecanismo de inclusão, necessária, e que precede um segundo, de exclusão ao nominar o outro, fixam-se parâmetros de visibilidade e identificação que serão, sempre, estabelecidos a partir do ponto de vista e da posição ocupada por aquele que nomina. Transformado em norma, é a partir desse ponto de vista que se define o estatuto da diferença, que se afirma ao negar: o outro será representado e estigmatizado não por aquilo que é, mas pelo que não é. 178

TERNES, Apolinário. História econômica..., p. 246.

100

A eficácia dessa ação, no entanto, depende de sua legitimação. Se os discursos e as práticas não são neutros, mas produzem significados, é sempre importante termos em vista que esses são a representação de interesses, sejam individuais ou de grupos. De certa forma, eles traduzem uma determinada interpretação das coisas e, ao transformá-la em palavras, em discursos, estabelecem no interior de um universo simbólico o seu regime de verdade.179 É, pois, no interior de relações sociais e de poder que são geradas as diferenças, que só são visíveis desde que estabelecidas do exterior delas mesmas: "só se torna uma diferença visível, perceptível, não indiferente, socialmente pertinente, se ela é percebida por alguém capaz de estabelecer a diferença - já que, por estar inscrito no espaço em questão, esse alguém não é indiferente e é dotado de categorias de percepção, de esquemas classificatórios, de um gosto, que lhe 180 permite estabelecer diferenças, discernir, distinguir". A imprensa exerce um papel político fundamental nesse trabalho de legitimação social. Construídos a partir do centro, seus discursos têm por princípio consolidar, especialmente entre a chamada classe média - onde está a maioria de seus leitores - , a imagem de uma "cidade ideal". Sua função é não apenas esquadrinhar a cidade, delimitando espaços e personagens "perigosos" e "deteriorados", mas tentar buscar, em torno dessas fronteiras, um "consenso" capaz de reivindicar, respaldar e legitimar ações preventivas e, se necessário, repressivas. De certa forma, ela produz

as

diferenças transfigurando em relações de sentido, pela narrativa, as relações de força e de poder. Seus discursos são parte daquela violência simbólica que, em nome da 179 180

BOURDEEU, Pierre. Razões práticas.... p. 35-52 e 91-136. Ibid., p. 23.

101

ordem e da norma, estigmatiza. E, pelo estigma, segrega, exclui e nega a diferença que ela mesma produziu.581 Em Joinville, a marca da infâmia, pelo menos nos anos 60, será principalmente o ócio. Ainda que a recusa ao trabalho continue sendo um motivo forte na imprensa policial da década seguinte, os discursos serão outros, como veremos mais adiante. Entre os cronistas, editorialistas e articulistas dos sessenta, perpassa uma certa unanimidade: Joinville continua uma terra de oportunidade para todos. Basta querer trabalhar. Como diria Ternes, muitos anos depois, em sua obra consagrada à história econômica local: é tudo uma questão de vontade. E justamente porque tudo é uma questão de vontade, há ainda mais e mais motivos para o desconforto e mesmo a irritação por parte de alguns. Em uma de suas crônicas, Charles Weber dispara sem dó nem piedade contra os mendigos que levam a vida "na base da valsa":

Tida e havida, além fronteiras, como cidade do trabalho, decididamente industrial e progressista, Joinville ostenta para todos que a visitam, um panorama de beleza e força econômica invejáveis. A nossa cidade, de feto, é um lugar onde quem pretende arranjar o que fezer, trabalhar para o próprio sustento, não terá muito que procurar, salvo se desejar apenas "moleza" para levar a vida na "base da valsa". Aliás, um dos pontos que pesam negativamente no conceito de nossa cidade é o feto de proliferar por todos os cantos, esse enxame de pedintes, carregando como formigas da economia alheia, ajeitando-se como pode para viver sem trabalhar, daquilo que conseguem. (...) Também não são todos, realmente, os que pedem, que o fezem por comodismo ou preguiça, pois casos há, em que por absoluta penúria ou doença, se vê, o pobre, na contingência de apelar para a caridade alheia. Dentre eles, entretanto, existem aqueles que podendo ser úteis em qualquer coisa, preferem decorar aquela ladainha dolorosa e balbuciada, com cara de vencido pela vida para amolecer o coração dos joinvilenses.182

Registradas, resguardadas e perdoadas as exceções - a penúria e a doença - , Weber faz uma breve radiografia da mendicância em Joinville e descobre em suas

181 182

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico..., p. 7-15. WEBER, Charles. Nosso comentário./! Notícia, Joinville, 14 jan., 1967, v. 44, a 10001, p.3.

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andanças, atônito, que a maioria daquele "enxame de pedintes" prefere isso ao trabalho. E o que segue é a furia:

Dar conselhos, sabemos, é a coisa mais fácil do mundo e, por várias vezes, em palestra com um outro pedinte, procurando saber de sua vida mais amiúde, arriscamos a opinar a respeito de trabalho, por mais leve que fosse, esperando pela reação daquele. Invariavelmente a resposta era sempre a mesma: Não adianta moço, a esmola ainda dá mais do que o trabalho. E dentro da coisa não deixamos de também de notar a vivacidade, melhor dizendo a "malandragem" de certo pedinte quando em palestra com o mesmo perguntamos porque, ao invés de pedir esmolas não tentava vender alguma coisinha para garantir um pouco do seu sustento, por exemplo amendoim torrado ou mesmo cocadinha. A resposta da malandragem não se fez esperar: - Vender cocada não é problema... o negócio é achar alguém para mastigar ò coco para depois fazer a cocada. Como resposta boba provoca resposta boba, não vacilamos em retrucar que seria fácil resolver o problema: Era só contratar meia dúzia de gente velha que anda por aí mastigando chicletes sem ter chicletes na boca e... pronto! Apesar de tudo, entretanto, o problema do pedinte em Joinville é algo mais sério do que se possa imaginar e sua solução não depende apenas de paliativos e, sendo o mal generalizado, não seríamos nós os mais entendidos para resolver o assunto.183

Weber podia não se considerar a pessoa mais entendida para "resolver o assunto", mas havia aqueles que buscavam as soluções, pretensamente duradouras e não apenas paliativas, como recomenda nosso cronista. Cinco anos antes da crônica de Weber, o mesmo matutino traz, em seu "Comentário do dia", a alvissareira notícia dos planos de fundação da "Cidade de Deus", que "se destina a recolher e abrigar famílias comprovadamente pobres, num esforço para extinguir nas ruas da cidade o espetáculo doloroso da miséria sem amparo". O projeto, uma iniciativa da Assistência Social Católica de Joinville, é ambicioso: serão 128 moradias, com um conjunto de oito instalações sanitárias para cada grupo de 16 casas, dois galpões para oficinas, uma escola com três salas de aula, um prédio para administração e serviços médicodentários, uma capela e um parque infantil, mais áreas destinadas à horticultura, fruticultura e criações de animais. O empreendimento nunca saiu do papel, mas a

183

Id., p. 3

103

forma como ele é recebido pela imprensa e noticiado aos leitores é um bom exemplo da percepção que a classe média joinvilense tinha da pobreza - e dos meios para erradicá-la: (...) Dessa forma as famílias comprovadamente pobres terão ali o seu této, condições de higiene e preservação da saúde, instrução e assistência religiosa, além de meios para prover a subsistência e a própria recuperação social. Haverá ainda ambiente próprio à recreação das crianças, no parque infantil a ser também construído. Parece assim viável o empreendimento e sem dúvida êle merecerá toda a colaboração e apoio dos joinvilenses. Achamos oportuno focalisá-lo (sic) neste momento, pois é justamente neta antevéspera das festas natalinas, quando se espera e se deseja que a alegria das comemorações cristãs habite todos os lares, que mais nos impressionam os contrastes de uma sociedade onde o desequilíbrio econômico se faz sentir tão duramente para tantos. As famílias joinvilenses, que testemunham nestes dias, mais do que comumente, a exibição dolorosa da necessidade na constante romaria da pobreza às portas dos lares mais felizes, sem dúvida receberão com a mais generosa compreensão a iniciativa da fundação da Cidade de Deus e a ela darão o seu apoio e o seu estímulo para que se efetive e se seja abençoada na sua piedosa inspiração essa grande obra da solidariedade cristã.184

Tanto no artigo de Weber quanto no editorial, o principal problema do malestar parece residir no fato de que, com seu espetáculo miserável, a pobreza provoca uma fratura no interior de um imaginário social que sobrepõe à "cidade que se tem" e a "que se quer": a cidade já construída e a que está por construir, a do desejo, nas representações que fazem de Joinville a imprensa e seu público, não apenas residem no 185

interior de uma mesma utopia, mas integram-se nela, configuram um único espaço. O "enxame de pedintes" que infesta as ruas da cidade - e o seu centro, principalmente - vira do avesso a utopia: a visão de mendigos sentados nas calçadas, vivendo da "caridade alheia", revela quão frágeis são ainda as bases que a sustentam. É preciso, 184

CIDADE de Deus. A Notícia, Joinville, 20 dez., 1962, v.40, n 8800, p. 8. PES AVENTO, Sandra Jatahy. Entre práticas e representações: a cidade do possível e a cidade do desejo. Ia: PECHMAN, Robert; RIBEIRO, Luiz César de Queiroz (Org.). Cidade, povo e nação. Gênese do urbanismo moderno, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996, especialmente, p. 377-380, Uma breve, mas interessante discussão sobre o imaginário social, da mesma autora, pode ser encontrada em: PESAVENTO, Sandra Jatahy, Em busca dç uma outra história; Imaginando O Imaginário, Revista Brasileira de História: 185

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então, reforçá-las. E se Joinville é uma cidade cuja história e sociedade se assentam sobre o valor positivo do trabalho, será também por ele que essas pessoas, estranhas e alheias a ela, serão recuperadas e reintegradas. Pela caridade, sim, atributo de todo bom cristão. Mas também, e principalmente, pela atividade produtiva, que restabelece as fraquezas, tanto físicas quanto morais. Repetem-se, num certo sentido, aquelas ações, descritas por Bresciani, das elites francesas e inglesas em relação às classes populares no auge da revolução industrial, no século XIX, e que visavam, pelo 186 trabalho, docilizar os corpos e as mentes. Não causa surpresa, portanto, que a mendicidade tenha mobilizado, além da imprensa e dos católicos, a atenção e os esforços do poder público. O Código de Posturas, em vigência desde 1956 (e que só seria revisado 18 anos depois), define em artigo 20 do capítulo I, Título II ("Dos bens públicos municipais"), que os "bens de uso comum, são as ruas, praças e outros logradouros, que podem ser usados por qualquer cidadão, contanto que respeite o costume, higiene e a tranqüilidade pública". Mais adiante, no artigo 39 do capítulo II ("Das praças e jardins"), proíbe: "a-) caminhar sobre os gramados, danificar os canteiros e deles recolher flores ou tirar mudas das plantas existentes; b-) danificar ou remover bancos; c-) armar barracas, 187

fazer pontos de vendas ou reclames, sem prévia licença da prefeitura".

*

E se o código

preocupa-se em disciplinar o uso do espaço público, em seu relatório de gestão, apresentado em 1965, o prefeito Helmut Fallgater vai além da disciplina. Extrapolando Representações. São Paulo: ANPUH/Marco Zero, v. 15, a 29, p. 9-27, 1995. Sobre o conceito de "representação" ver, em especial: CHARTIER, Roger. O mundo como representação..., p. 61-79. 186 BRESCIANI, Maria Stella. Londres e Paris no século XIX: O espetáculo da pobreza. São Paulo: Brasiliense, 1984. O conceito de "corpos dóceis", que não é empregado pela autora, é de: FOUCAULT, Michel.

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as normas legais, num flagrante entendimento de que pedintes não são "qualquer cidadão" e que são moralmente incapazes de respeitar "o costume, higiene e a tranqüilidade pública", ele propõe "uma solução para o afastamento dos mendigos":

Está a prefeitura em entendimento com os dirigentes "vicentinos" (da Sociedade São Vicente da Paula, no bairro Boa Vista) para que aceitem, mediante contribuição mensal da Prefeitura e a construção de um prédio especial, o internamento de todos os mendigos que circulam na cidade angariando esmolas. Por feita de meios financeiros e de tempo, o plano ainda não foi levado à execução, mas, não poderá deixar de interessar aos futuros administradores, como incumbência a desempenhar.188

Os dois projetos de internamento possuem mais em comum além do fato de nunca terem se concretizado. Ambos pretendem afastar os mendigos que "circulam pela cidade", desocupando o espaço público e poupando os transeuntes do "espetáculo doloroso da miséria sem amparo". Perpassa, nesse discurso, muito mais que uma prática social ou de caridade: é de uma guerra de concepções e de lugares que se está a falar. Grosso modo, uma guerra que delimitou limites e fronteiras entre os espaços privado e público, e os papéis que devem ser desempenhados no seu interior. Se aquele é lugar de intimidade e familiaridade, de segurança e conforto, ou mesmo de trabalho; este é determinado pela lógica do capital e pela pretensão científica de ordenação racional: funcional, hierarquizado, disciplinado e higienizado. Ele deve ser um local de circulação - de mercadorias e de pessoas - e deslocamento. Seu uso comum, para fins

Vigiar e punir - História da violência nas prisões. Trad, de Ligia Pondé Vassallo. Petrópolis: Vozes, 1989, p. 125-52. 187 JOINVILLE. Prefeitura Municipal. Lei n.414/56. Código De Posturas E Código De Obras. Joinville. 188 JOINVILLE.Prefeitura Municipal. Prefeito Helmut Fallgater presta conta de seus cinco anos de administração - 1961-1965, p. 186. Os grifos são meus.

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recreativos, deve obedecer a essa lógica: daí a necessidade de delimitar os locais adequados - as praças, por exemplo - e disciplinar o seu uso. É diversa a concepção e o uso que dele fazem os grupos populares e marginais, como os mendigos, por exemplo. Para eles há entre os espaços público e privado uma solidariedade e articulação. Essa flexibilidade e mobilidade lhes permite apropriar-se da cidade, num duplo sentido. Primeiro, porque eles a lêem e interpretam a partir de seus próprios códigos e experiências, atribuindo-lhe assim outros significados, que não são melhores nem piores que os da pequena, média ou grande burguesia, mas divergentes.190 Segundo, porque a cidade é o seu lugar vital: de moradia, de sobrevivência, de trocas e relações econômicas, sociais e culturais.191 E ao se apropriarem e fazerem um uso diferencial do solo urbano, ele deixa de ser simplesmente um "espaço" para se constituir em "território". E o que lhe dá feição são as práticas e estratégias de controle que atuam sobre um determinado lugar. É a luta pelo monopólio do controle sobre esse território que chamamos de "guerra de lugares".192 Mas há mais. Não encontramos, em nossa pesquisa, maiores detalhes acerca da proposta do ex-prefeito Helmut Fallgater aos vicentinos. Mas é legítimo imaginar que 189

ARANTES, Antonio A. A guerra dos lugares. Revista do Patrimonio Histórico Artístico Nacional: Cidade. Rio de Janeiro: IPHAN, n. 23, p. 191-203, [199-?]. 190 O uso de "apropriação" é inspirado em: CHARTIER, Roger. O mundo como representação..., p. 6179. Sobre as diferenças do conceito em Chartier e Foucault ver: VAINFAS, Ronaldo. Historia das mentalidades e historia cultural Ia: CARDOSO, Ciro Flamarion ; VAINFAS, Ronaldo. Dominios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 127-162. Importante também para a discussão que tento desenvolver sobre as leituras e usos divergentes do espaço urbano é o artigo de Gilberto Velho, cf. : VELHO, Gilberto. O estudo do comportamento desviante: a contribuição da antropologia social. In.: Desvio e divergência - uma crítica da patologia social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. 191 PECHMAN, Robert Moses. Os excluídos da rua: ordem urbana e cultura popular. Ia: BRESCLANI, Maria Stella (org.). Imagens da cidade - SéculosXIXe XX. São Paulo: ANPUH/Marco Zero, 1994. p. 29-34.

ela incluía, além da reclusão dos mendigos, medidas semelhantes àquelas da Assistência Social Católica: higiene, saúde, educação e trabalho. Práticas modelares daquilo que, páginas atrás, definíamos como utopia de "inclusão" e "exclusão". Aparentemente, a oferta de um lugar para morar, por si só, já se configura como uma ação integradora. Completam a medida, a assistência médica, parque infantil, escolas, etc., além, evidentemente, das precauções de higiene necessárias a assegurar a "qualidade de vida". Mas não esqueçamos que essa inclusão ao bom modo de vida burguês é, antes de qualquer coisa, duplamente excludente. No sentido físico da palavra, a intenção é integrar não através de medidas de rearranjo social ou econômico, por exemplo, que visem uma melhor distribuição das riquezas. Mas pelo "afastamento" e "internamento" - a reclusão, portanto - em relação ao espaço público. Numa acepção mais simbólica, as medidas propostas excluem porque reforçam o estigma: incapazes de sobreviver do seu próprio esforço, incompetentes física e moralmente de garantir o seu sustento, mendigos e pedintes continuam sendo, mesmo que longe dos olhos, o que sempre foram: párias em uma sociedade edificada sobre o trabalho.193 Por fim e por último, a reclusão dos indesejados é ainda uma estratégia de submetê-los a um duplo controle, como bem observou François Béguin:

Um controle econômico pelo viés dos instrumentos que são propostos para produzi-lo; um controle político visto que, passando para o campo dos que têm alguma coisa a perder, os pobres tornam-se acessíveis, quando não solidários de políticas de defesa da propriedade ou da "qualidade de vida". Controles cujos limites não são percebidos, já que o conforto nunca 192

Ainda que o uso da expressão "guerra de lugares" seja uma dívida nossa com Antonio Arantes (cfme. nota 80), a diferenciação entre "espaço" e "território" é inspirada em: FOUCAULT, Michel. Sobre a geografia. In.: Microfisica do poder..., p. 153-165. 193 Sobre a noção de estigma que orienta essa discussão ver, especialmente: GOFFMAN, Erving. Estigma - Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Trad. de Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988.

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provoca um fenômeno qualquer de saturação, sempre há novos elementos para completá-lo, intensificá-lo, aperfeiçoá-lo, diversificá-lo.194

Os mendigos, no entanto, não são os únicos motivos de preocupação. Se, ao menos em tese, há para eles a solução rápida do internamente, o mesmo não se pode dizer da jogatina ilegal e da prostituição, que correm soltas pela cidade. O problema é que, diferente dos pedintes, jogadores e prostitutas não são visíveis a "olho nu". E talvez por isso, ainda que seu espetáculo seja visualmente menos degradante, eles sejam mais perigosos: "como detê-los?" é a pergunta que perpassa as páginas da imprensa e que se fazem também as autoridades municipais. Cronista atento ao cotidiano de sua cidade, Charles Weber não poderia deixar de tocar nos assuntos em seus comentários. Sua abordagem do jogo do bicho, aliás, aparece quase tão "malandra" quanto a prática dos jogadores:

(...) Logo em seguida um amigo nosso, aproveitando uma carona a pé, até o centro da praça, puxou uma conversa meio esquisita a respeito do jôgo do bicho. Disse que alguém em Joinville estava bancando, assim na surdina, o tal joguinho, e perguntava se não sabíamos quem poderia aceitar uma fézinha. Efetivamente não sabemos se alguém está se aventurando a levantar um "pé-de-meia" na base do bicho, mas que o tal de "bicho" é duro de morrer isso é. Quando há, surgem as queixas daqueles prejudicados, geralmente dos familiares do viciado na fézinha e então a polícia bronqueia, os banqueiros "serenam" e tudo volta à normalidade. Quer dizer, socegam (sic) até que a barra esteja limpa outra vez para voltar assim de mansinho como quem não quer nada.195

E como ninguém sabe de nada, já que o jogo é praticado "à boca pequena", é sempre uma boa pauta quando, finalmente, a polícia consegue desmontar uma banca:

194

BEGUIN, François. As maquinarias inglesas do conforto. Espaço & Debates. São Paulo: NERU, v.ll,n. 34, p. 39-54, 1991. 195 NOSSO comentário. A Noticia, Joinville, 01 set., 1967, v.45, a 10192, p.3.

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Em diligência das mais sigilosas, no dia de ontem, a Polícia local conseguiu deitar mãos em vários elementos que trabalhavam como cambistas do conhecido jogo-do-bicho nesta cidade. Nos últimos dias, o Coronel Olavo Rech, Delegado Regional de Políc is dc «/OinviiiSj rcc6D6ti inúmeras denúncias de que o citado jogo campeava quase que abertamente em Joinville, muito embora seja proibido. Foi então que na manhã de ontem o Delegado Regional de polícia determinou ao Comissário Morelli que efetuasse investigações em tôrno do assunto e detivesse os contraventores. Em companhia do Investigador Raul e de um outro policial civil, o Comissário Morelli iniciou as diligências, já tendo conhecimento da trajetória que era cumprida diariamente pelos agenciadores.196

Na ocasião, foram desmontadas três bancas. Uma delas, funcionava no Bar e Quitanda Popp, na rua João Colin, centro da cidade, e duas na rua Santa Catarina, zona Sul, nos bares Pinheiro e Demethê. Apesar de, na batida, ter detido vários cambistas, a polícia não conseguiu "deitar mãos" no principal homem da hierarquia: apesar do sigilo que envolveu a diligência, o banqueiro Batatinha conseguiu fugir ao flagrante. A polícia tentou ainda a sua casa, na rua Max Colin. Inutilmente: não se pega fácil a malandragem. Na guerra de nervos entre polícia e bicheiros, a imprensa, é claro, estava do lado da primeira. Mesmo frustrada a tentativa de prender Batatinha, o delegado mandou, pela reportagem de "A Notícia", um recado a ele e aos demais contraventores: "Nosso trabalho vai prosseguir nos próximos dias e não vamos parar enquanto não conseguirmos deter os banqueiros responsáveis pelo jôgo do bicho, em nossa cidade". Parece-nos que é preciso procurar outras razões, além da pura e simples ilegalidade, para a perseguição desenfreada ao jogo do bicho. Num nível mais simbólico, os jogos são não apenas uma forma de resistência e desafio à lei, em seu aspecto formal, mas a própria pretensão racional de organização das coisas e das pessoas - e das relações das pessoas entre si e delas com as coisas. Michel de Certeau

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nos alerta para esta característica dos jogos, "operações disjuntivas (produtoras de acontecimentos diferenciadores)". Neles, as regras são transitórias, construídas e absorvidas a partir das experiências intercambiadas entre parceiros ou grupos de jogadores. O improviso, a sutileza, a capacidade de agir de acordo com as novas situações apresentadas a cada lance, que os caracterizam, estão presentes também nas práticas cotidianas.197 Não deixa de ser interessante que muito jogos continuam, ainda hoje, sendo considerados nocivos à lei - embora sejam encontrados e praticados à luz do dia em bares e botequins, principalmente. Além disso, a prática do jogo é, freqüentemente, associada a outros hábitos considerados nocivos. A começar pela vadiagem que se, por si só, já é condenável, é ainda mais quando responsável pela desestruturação dos lares e famílias. Em um de seus registros policiais, sob o título "Queixou-se", "A Notícia" publica em março de 68 a queixa de Maria Ligia Budal Arins. Naqueles dias, ela compareceu à subdelegada do bairro Itaum para reclamar contra o marido, Jaime Budal Arins. Além de estar desempregado há meses, tendo ela de arcar sozinha com as despesas da casa, Jaime vendeu utensílios domésticos e a bicicleta da mulher, que ela usava no deslocamento para o trabalho, para quitar dívidas de jogo.198 Maria Ligia provavelmente não era a única esposa a ter motivos para queixas - embora poucas delas tivessem a coragem de comparecer à polícia. Principalmente porque, para as autoridades policiais e morais,

196

POLÍCIA surpreendeu e deteve ontem vários cambistas do 'Jôgo do Bicho'. A Notícia, Joinville, 13 dez., 1968, v.46, a 10580, p. 8. 191 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: Artes de fazer. Trad, de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 83-86. 198 QUEIXOU-SE. A Notícia, Joinville, Io de março de 1968, Ano XLVI, a 10341, p. 8.

Ill

além da vadiagem, a fronteira entre o jogo e a bebedeira é tênue. E dessa com a freqüência assídua a bares, botequins e, no limite, aos prostíbulos, mais ainda. O já citado Código de Posturas de 1956 dedica uma série de seus artigos a normatizar a abertura e funcionamento de cafés, bares, botequins e restaurantes, incluindo-se as "casas que explorem jogos permitidos, como 'snooker', 'bilhar', etc.". Entre outras coisas, o Código obriga esse locais a "manter absoluta limpeza no local" e a "manter suas instalações sanitárias no mais rigoroso asseio". Os funcionários devem estar vestidos convenientemente e é "proibido vender bebidas alcoólicas a pessoas já embriagadas, sob pena de multa".199 É claro que, entre a letra da lei e as práticas, há uma distância a ser considerada. E não apenas porque o poder público não tinha a estrutura necessária para fiscalizar e fazer cumprir a lei. Normalmente, bares e botequins são espécies de "zonas neutras", lugares que escapam à norma porque, no mais das vezes, as sociabilidades ali construídas representam uma alternativa possível de preservação de uma certa integridade diferencial. Os bares, a cachaça no final do expediente, o encontro com os amigos de botequim, são possibilidades de reencontro com o sentimento de "pertencimento", de construção de uma comunidade concreta, mas capaz de preservar as diferenças e a pluralidade.200 Um problema para as autoridades, obrigadas a montar estratégias de controle às transgressões que, com relativa freqüência, ultrapassam o limite do tolerável. Uma das formas encontradas foi tentar coibir a prática da prostituição. O que não era tão fácil quanto se possa imaginar:

199

JOINVILLE. Prefeitura Municipal. Lei n.414/56. Código De Posturas E Código De Obras. Joinville. "(...) e mesmo quando um observador apaixonado (...) observa, com razão, que as comunidades de base plural desapareceram em nossa 'sociedade compartimentada', quando observa que hoje vale o 'cada um por si', não pode deixar de reconhecer que o único lugar 'onde a comunicação resiste é o bar'. (...) É conhecido que, 200

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muitos prostíbulos funcionavam em bairros populosos ou mesmo na região central, disfarçados com alvarás, expedidos pela própria prefeitura, de bares "comuns". Para os proprietários, era estratégico: como em última instância trata-se de relações de mercado - eles tinham um produto a oferecer e vender - , era preciso estar o mais próximo possível de seus potenciais clientes. Para as autoridades municipais e a polícia joinvilense, um incômodo. De novo o ex-prefeito Helmut Fallgater, esse verdadeiro Haussman tupiniquim de sangue germânico, pensou ter encontrado uma saída. Em seu relatório de governo, sob o título "As casas de tolerância em Joinville", lê-se: "A Administração teve por propósito afastar do Centro da cidade e de outros lugares onde se haviam localizado as casas de tolerância, pretendendo centralizar, ou melhor, fixá-las em zonas apropriadas, para melhor controle e observação da Polícia". O projeto era, sob a ótica de quem pretendeu internar mendigos, perfeito: em um terreno de 250 mil metros quadrados, as casas seriam construídas em fileiras, separadas das ruas por faixas de terras de 40 a 50 metros, inteiramente cobertas por bambuzais ou árvores altas, com apenas uma entrada de cinco metros à vista, "tudo ficando seguramente bastante isolado". O projeto, também esse, ficou apenas no papel: com o terreno já comprado e as máquinas trabalhando "já lá fazia 14 dias", uma comissão, liderada por um pastor e um vereador, protestou, não contra o projeto em si, mas contra a sua localização. "Houve que interromper toda a ação conjunta da Delegacia de Polícia e Prefeitura Municipal que há tanto tempo se esforçam por dar solução a êsse problema, ficou suspensa, na espera que a Comissão que protestava, conseguisse outro local para a fixação dessas

quando num vilarejo ou num bairro um bar fecha suas portas, é um pouco de vida que cessa." MAFFESOLI,

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casas".201 Inviabilizado o projeto de isolamento das "casas de tolerancia", o jeito era continuar buscando alternativas mais práticas - e, quem sabe, menos controversas. Para conter o avanço da prostituição, valia até a colaboração interestadual. Em fevereiro de 60, a polícia de Joinville foi solicitada, pela de Blumenau, a investigar a presença na cidade de Leonina Borges Basilio. Segundo nota publicada em "A Notícia": "A referida mulher saiu de Blumenau em companhia do motorista de caminhão Euclides Silveira (vulgo Pinduca), trazendo ainda consigo uma menina de 12 anos, de nome Marilze. A autoridade blumenauense presume que Leonina tenha vindo para Joinville afim (sic) de montar aqui uma casa de meretrício."

Coerente:

afinal, a polícia local já tinha problemas demais com as suas próprias prostitutas e casas de meretrício. E as dores de cabeça aumentariam: alguns dias depois, os policiais teriam de esquecer um pouco de Leonina para atender ao chamado do "Buraco Quente", onde se deparariam com a agonia de "Dalvina de tal", conhecida no "basfond" como "Jipão", atingida com um tiro na cabeça por um de seus clientes, Juvelino da Luz.203 Nós já conhecemos o final dessa história: "Dalvina de tal", a mundana, cujo nome completo - Dalvina Fagundes dos Reis - os leitores só viriam a conhecer no dia seguinte, morreu logo após dar entrada no hospital. Na polícia, o autor do disparo disse que tudo não passou de um lamentável e trágico acidente. Dalvina estava morta. Não houve testemunhas. Logo, "não se pode corroborar ou negar" a versão de Juvelino.204

Michel. A conquista do presente. Trad, de Mareia de Sá Cavalcante. Rio de Janeiro: Rocco, 1984, p. 61. 201 JOINVILLE. Prefeitura Municipal. Prefeito Helmut Fallgater presta conta de seus cinco anos de administração - 1961-1965. p. 277. 202 TERIA vindo para Joinville exercer o meretrício. A Notícia, Joinville, 12 fev.,1960, v.37, a 7953, p. 8. 203 MATOU a mundana com um tiro na cabeça. A Notícia, Joinville, 17 fev., 1960, v.37, a 7957, p. 8. 204 TERIA sido acidental a morte da mundana. A Notícia, Joinville, 18 fev., 1960, v.37, n. 7958, p. 8.

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Diferente do que aconteceu em outubro, com a morte de Jair Mamede, bancário, 30 anos, casado e pai de dois filhos. Um crime fartamente testemunhado e ainda mais delicado que o de Dalvina: o autor do assassínio, Aristiliano Basilio Corrêa, era policial. Segundo a matéria publicada em "A Notícia", Aristiliano e um amigo, de nome Osvaldo, estavam sozinhos em uma "casa de diversões noturnas", localizada no bairro Nova Brasília. A uma certa hora da madrugada, Osvaldo insistiu em dançar com duas das mulheres da casa, Normélia e Esther, que se recusaram, alegando já estarem acompanhando Jair e alguns amigos. Irritado e incitado pelo companheiro Aristiliano, Osvaldo resolveu tirar satisfações com Jair que, segundo testemunhas, se preparava para deixar o local. Na confusão, Osvaldo acerta um soco em Jair, que não reage. Enquanto outros freqüentadores tentavam afastar Osvaldo, Aristiliano se aproxima, "já de arma em punho e, apesar de nenhuma resistência de Jair, desfechou-lhe à queima-roupa dois tiros que atingiram a vítima no ventre, causando-lhe morte instantânea". O policial disparou ainda outros três tiros, que não chegaram a atingir ninguém. Não satisfeito, "lançou mão de uma cadeira, desfechando dois golpes sobre a vítima, já cadáver, e ainda quebrou várias cadeiras, copos, garrafas, etc." No desfecho da reportagem, a sentença do repórter:

O soldado Aristiliano deve ser bandido por natureza. Seus precedentes assim o demonstram, pois já certa feita ferira a faca um civil, numa casa de tolerância posteriormente, ainda no mês de agosto, no salão Voss, desfechou três tiros contra José João Siqueira, conhecido por João Serrano. Não se compreende como, com tais antecedentes, ainda estivesse ele no destacamento policial desta cidade, portando arma que afinal lhe ensejou a prática de um crime covarde.205

205

POLICIAL assassinou barbaramente funcionário bancário. A Notícia, Joinville, 12 out., 1960, v.37, n. 8150, p. 8.

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Um mês depois o jornal volta ao assunto, informando aos seus leitores a denúncia feita ao Juiz de Direito, pela promotoria pública, de Aristiliano e Osvaldo, que haviam se entregado à polícia alguns dias depois do crime. Entre elogios à justiça, pelo zelo e rapidez no "cumprimento de sua nobre missão", sobram farpas para a polícia:

A esta altura dos acontecimentos, qualquer cidadão de bom senso lamenta o fato de que as duas outras transgressões de Aristiliano em nossa cidade, não estejam arroladas nesse processo, como deveriam, aliás. Como se sabe, Aristiliano deu uma facada num civil, no meretrício "Cerejeira". Mais tarde, em frente ao salão Rolando Voss, disparou três tiros em João Serrano, sem contudo o matar. E a tudo isso a nossa autoridade policial da época fechou os olhos, como que incentivando a periculosidade deste elemento, comprovadamente portador de baixos instintos. Uma das razões que motivou revolta da opinião pública, neste rumoroso crime do bancário, foi justamente a falta de responsabilidade de uma autoridade que tem por obrigação defender a coletividade contra os bandidos. Embora seja inoportuno, mesmo assim é de se perguntar: por que não se instaurou o competente inquérito policial em ambos os casos? Por proteção ou por outras razões?206

A situação toda chega a ser irônica se voltarmos um pouco atrás nas edições de "A Notícia". Assinado por Ururay de Carvalho, o artigo publicado na edição de 15 de junho pretendia apresentar, aos leitores, o que é a instituição policial. O perfil traçado é bem diferente daquele de alguns meses depois:

Prezado leitor - Pretendemos de uma maneira singela, simples, mostrar ao público ledor o que, realmente, vem a ser uma polícia, como devem funcionar seus orgãos, suas atribuições, etc... POLÍCIA, segundo os dicionários, é a incorporação incumbida de manter a boa ordem, o respeito às leis. A polícia, como a medicina, tem as suas subdivisões. Assim como numa cidade de pequena densidade demográfica, existe um só médico e este faz clínica geral, também o policial, o delegado, é obrigado a atender todos os casos que requerem a assistência policial. Numa cidade de grande população, como nas capitais e outras, a polícia é subdividida em várias delegacias. A função policial não pode ser exercida ad libtum, à vontade do policial. Este está subordinado a certos princípios morais. Não pode o policial exercer suas funções como bem entende - NÃO. O policial deve ser equilibrado, conscio (sic) de suas responsabilidades perante a sociedade, dosar a energia com critério, não exorbitar as suas funções. Ser policial não é só colocar um revólver à cinta, carteira no bolso e pronto - está 206

8174, p. 8.

DENUNCIADOS à justiça os matadores do bancário. A Notícia, Joinville, 10 nov., 1960, v.38, , n.

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feito o policial- Não. O policial deve ser polido, saber tratar o seu semelhante. Ser policial é estar ao par da evolução dos meios de pesquisa para elucidação de uma ocorrência. O tempo da violência já passou - não mais o regime de pancadarias. A obtenção da confissão por meios violentos é berrante, fere a dignidade humana. Existem meios para se conseguir uma confissão - a técnica. Em artigos posteriores iremos tratar de como funciona uma polícia técnica, de que elementos a mesma se serve para esclarecimento de crimes. Muita gente estranha o porque de um exame cadavérico. Quantos e quantos crimes foram esclarecidos num exame cadavérico, com o exame de uma víscera, de um cráneo (sic), etc... Hoje a polícia, quando devidamente aparelhada, quando não lhe faltam meios, pode exercitar suas tarefas, que não são poucas, de uma maneira segura, eficiente. Leitor amigo - a Polícia é uma instituição para a salvaguarda de seus direitos, do seu sossego.207

Em que pese uma certa simplificação - afinal, trata-se de um artigo para jornal e destinado a leitores leigos - , o texto dispensa a ladainha sobre a história do desenvolvimento e do aperfeiçoamento das técnicas policiais, para dizer o que realmente importa. A de que a polícia moderna, tal como a medicina (a comparação não é gratuita), é precisa, meticulosa, eficiente. Científica, diríamos. E, como decorrência direta, mais polida e humana, "subordinada a certos princípios morais". Claro, desde que "devidamente aparelhada".

A mensagem implícita aos leitores

parece ser a de que, assim como eles, a polícia também evoluiu e progrediu, utilizando a razão, a ciência e a técnica - e não mais a "violência aberrante que fere a dignidade humana" -

como instrumentos de aperfeiçoamento no cumprimento de suas

obrigações - fundamentalmente, "manter a boa ordem, o respeito às leis". O apologista da polícia moderna seria, é verdade, parcialmente desmentido alguns meses após a

207

CARVALHO, Ururay de. Conheça sua polícia A Noticia, Joinville, 15 jun., 1960, v.38, n. 8052, p.2. O que não parece ser o caso da polícia joinvilense. Em pelo menos duas matérias, repórteres de "A Notícia" narram, "estarrecidos", situações em que policiais se viram constrangidos em sua atuação pela total falta de estrutura. Em uma delas, um comissário não pôde atender a uma ocorrência porque não tinha uma viatura para locomover-se até o local. Em outra, cômica até, um policial circulou pela cidade, durante aproximadamente duas horas, "carregando na própria bicicleta um possível 'amigo do alheio"', na tentativa de, "em conjunto com o 'lalau', localizar o beltrano para o qual o outro infeliz havia vendido um revólver". Nas duas histórias, publicadas com apenas quatro dias de intervalo, o apelo veemente à Secretaria de Segurança Pública de Santa Catarina para que "olhasse com mais carinho a Delegacia Regional de Polícia de Joinville." Respectivamente: A DELEGACIA Regional de Polícia A Notícia, Joinville 6 jan., 1960. Comentário do Dia, V.37, a 7921, p.8; SOUZA, Arão Tito de. Um fato policial em foco. A Noticia, Joinville, 10 jan., 1960, v.37, n. 7925, p.8. 208

117

publicação de seu artigo. E novamente, alguns anos depois, quando um sargento da polícia, Glirson Reynaud, assassinou o motorista de taxi Alvino Schulz Gomes, o "Pelega", depois de um desentendimento com sua "amásia", a prostituta Lina Zimmermann, proprietária da "boite Primavera". Segundo a matéria, Alvino "pagou o pato" sem ter nenhum envolvimento com a briga do casal: chamado para atender a uma corrida na casa de Lina, foi surpreendido pelos tiros disparados em sua direção pelo policial. Tentou correr, mas foi alvejado pelas costas, enquanto fugia da ira fatal de Glirson.209 Mas é bastante provável que, quando desse segundo assassinato envolvendo um homem da lei, ninguém mais lembrasse das palavras de Ururay de Carvalho. Apesar dos esforços de "A Notícia", já no final da década, em mostrar o 210 reaparelhamento, tanto humano quanto material, da polícia local,

parecia estar mais

ou menos claro que a corporação, sozinha, não detinha forças o suficiente para conter e disciplinar a delinqüência, que crescia na mesma proporção em que crescia a cidade. Entre outros problemas já existentes, o das drogas também entrava na pauta do dia das delegacias e redações.211 E, como se não bastasse a violência das ruas, no começo de 209

SARGENTO da polícia assassinou covardemente um motorista de praça A Notícia, Joinville, 5 abr., 1966, v. 44,, n. 9771, p. 4. 2,0 Entre 68 e 69, foram seguidamente publicadas matérias que procuravam mostrar os resultados positivos da ação policial em Joinville. A começar com as matérias sobre a instalação da 7a Companhia de Polícia. Sob o comando do capitão Moacir de Oliveira Corrêa, o novo destacamento era dividido em três setores de atuação: "serviço de rádio patrulha; policiamento de duplas (tipo Cosme e Damião) e serviço de trânsito, êste último contando com o concurso direto da Guarda Municipal de Trânsito." COMO funcionará a 7a Cia. de Polícia com Rádio Patrulha. A Notícia, Joinville, 15 dez., 1968, Comentario do Dia, v.46, n. 10582, p. 1; MAIOR segurança. A Notícia, Joinville, 17 dez., 1968, Comentário do Dia, v. 46, n. 10583, p. 1.0 Além dessas duas, foram encontradas outras cujos conteúdos, claramente, positivavam a presença e a ação policial em Joinville, como por exemplo: CIRCUNSCRIÇÃO policial. A Notícia, Joinville, 18 mar., 1969, v.47, a 10655, p. 1; ATIVIDADE da rádio patrulha. A Notícia, Joinville, 4 abr. 1969, v.47 n. 10744, p. 2; UM caso de polícia A Noticia, Joinville, 21 dez., 1969, v. 47, n. 10889, p. 2. 211 POLÍCIA descobre cultivo de maconha e prende responsável. A Notícia, Joinville, 12 fev., 1970, v. 67, n. 10928, p. 8.

118

1970 a polícia enfrenta a primeira rebelião de presos na Cadeia Pública, depois de anos de aparente sossego.212 As medidas repressivas precisavam, para maior eficácia, ser acompanhadas de outras, de caráter preventivo. Atentas a essa necessidade, as lideranças políticas e econômicas, em conjunto com a prefeitura, vinham tentando, desde meados dos anos 60, implementar ações, com resultados a médio e longo prazo, de disciplinarização do espaço urbano. Era chegada a hora de planejar o crescimento.

2.5 PREVER PARA MELHOR PROVER

Tivesse sido possível construir a Torre de Babel sem trepar nela, e a sua construção teria sido consentida. Franz Kafka

Pelo menos desde o final dos anos 50, os administradores municipais vinham percebendo e discutindo a necessidade de ordenar o crescimento urbano de Joinville. E nisso não estavam sozinhos. As políticas de modernização das cidades de grande e médio portes - tais como o planejamento urbano e a instituição dos planos diretores - , eram

estimuladas

pelo

governo

federal.

Elas

integravam

um

projeto

de

desenvolvimento nacional, iniciado com o segundo mandato de Vargas, em 1951, mas que ganha impulso especialmente no governo JK, e que via no binômio

POLÍCIA em intenso trabalho caça outros 'maconheiros '. A Notícia, Joinville, 13 fev., 1970, v.67, n. 10929, p. 8. 212 Em entrevista ao repórter de "A Notícia", o delegado Dirceu Machado de Souza, responsável pela cadeia pública, dramatiza a situação, aparentemente para torná-la mais grave do que realmente foi. Talvez para justificar o que ele próprio revelou, que "foi obrigado a usar violência a fim de 'arrancar' dos presos a verdade sôbre os estranhos fatos que estavam ocorrendo na Delegacia."

119

indústria/urbanização as bases necessárias para o progresso social e a integração do pais à economia mundial."13 Algumas medidas nesse sentido, embora tímidas, já haviam sido tomadas nas administrações de João Colin (1947-1950 e 1956-58) e Rolf Colin (1951-55), principalmente. Mas foram ações pontuais: nessa época, a cidade não vivia ainda o surto de desenvolvimento que passaria a ser mais significativo na passagem da década de 50 para 60, durante as gestões de Baltasar Buschle (1958-60) e Helmut Fallgater (1961-65), com o incremento da industrialização e, como decorrência, a migração e o crescimento populacional. Eis a descrição que faz, do cenário urbano dessa época, o historiador Apolinário Ternes:

Neste momento, véspera da década de 60, o Rio Cachoeira ainda está limpo. As tardes de domingo são calmas. Os passeios são feitos de bicicleta, ou mesmo a pé. Não há qualquer tipo de preocupação com índices de violência ou marginalidade, e o delegado de polícia é apenas um. A cadeia é pequena e só um modesto "jeep" constitui a "frota" da polícia civil. Joinville, no entanto, se despede da "belle époque". Fecha-se um ciclo na história.214

Já sabemos da tendência de Ternes a exagerar um pouco suas descrições da cidade. Ou, na melhor das hipóteses, a de ser parcial e passional demais: a cadeia pública pequena, com apenas um "jeep" em sua "frota", não parece ser, pelo menos segundo a imprensa da época, sinal de calmaria, mas de falta de estrutura. Dizer que não existia preocupação com a violência e a marginalidade é no mínimo um equívoco como,

nos parece, demonstram aquelas crônicas e artigos citados ao longo desse

PRESOS planejavam fuga em massa e delegado foi ameaçado por telefone. A Notícia, Joinville, 17 fev., 1970, v.67, n. 10932, p. 8. 213 MENDONÇA, Sônia Regina de. As bases do desenvolvimento capitalista dependente: da industrialização restringida à internacionalização. In.: LINHARES, Maria Yedda (org.). História geral do Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1996. p. 267-299. 214 TERNES, Apolinário. A construção da cidade..., p. 162.

120

capítulo. Acreditamos que elas são suficientes para mostrar que, ao contrário do que acredita o historiador, Joinville tinha, como qualquer outra cidade, preocupações com a segurança pública e, mesmo que relativamente baixos - afinal, a cidade ainda era 215 pequena - , índices de violência e marginalidade. Feitas as necessárias ressalvas podemos, no entanto, concordar com Ternes em um ponto: o ritmo acelerado de mudanças, num certo sentido fruto direto do crescimento industrial, se faria sentir de forma muito mais enfática a partir dos 60 beirando ao descontrole total nos 70. Daí a urgência com que, já nos primeiros anos da década, se fala em planejamento urbano. É verdade que a cidade não era totalmente desprovida de leis que a normatizassem e regulassem. Havia o Código de Posturas, cuja última versão fora sancionada em 28 de maio de 1956, na forma da lei 414, pelo prefeito João Colin. Mas não era o bastante. Entre outras razões, porque o Código preocupava-se em disciplinar o já existente, não permitindo a partir dele - até porque, não era essa sua função - , traçar projetos a médio e longo prazos. Ña imprensa, uma das primeiras manifestações nesse sentido aparece no "Comentário do dia", em uma das edições de março de 1960:

Já seria tempo de que o Prefeito Municipal decretasse ou a Câmara de Vereadores votasse, uma lei que fosse uma espécie de regulamento de urbanismo, estituindo (sic) normas que disciplinassem as construções no perímetro urbano, com a delimitação de zonas residenciais e

215

É verdade que a noção de segurança extrapolava os limites óbvios, como o combate à criminalidade. Em março de 1960, 47 funcionários da fábrica de móveis Cimo entraram em greve, reivindicando melhores salários. Como a paralisação não atingiu 100% dos operários, os grevistas decidiram pela mobilização em frente à empresa, na tentativa de convencer os 13 colegas restantes a aderirem também ao movimento. A polícia foi chamada ao local, "como medida de precaução", já que a direção da Cimo receava por possíveis "incidentes". Tanto á matéria sobre a greve, quanto a que noticiou o fim do movimento e a punição, com a demissão, dos 47 grevistas, foram publicadas na coluna "Registro Policial" de "A Notícia". PRECAUÇÕES contra grevistas. A Noticia, Joinville, 4 mar., 1960, v. 38, n. 7970, p. 8; PUNIDOS com demissão 47 grevistas da "Cimo". A Noticia, Joinville, 5 mar., 1960, v. 38, n. 7971, p. 8.

121

a imposição de posturas mais enérgicas a respeito da construção de muros para fechar os terrenos vagos e de passeios nas frentes de edifícios e residências. Em Joinville, por uma razão que não conhecemos nem compreendemos, proibe-se a construção de casas de madeira no perímetro urbano, mas desde que a construção seja de material pôde ser feito de qualquer jeito, vendo-se ao lado de residências bonitas, de estilo moderno, com belos jardins, monstrengos de pedra e cal, de qualquer altura, a denunciar inspiração surrealista, como verdadeiros fenômenos teatrológicos. Ao lado de casas onde se preservou um espaço conveniente para o jardim, que é ornamento indispensável da residência, há outras construídas sobre as margens das ruas, quebrando a harmonia do alinhamento. Aqui as fabricas estão na sua quase totalidade, situadas no centro da cidade, entre as casas residenciais, causando prejuízos não só de ordem estética mas também ao socego (sic) dos moradores, ainda quando alguns destes estabelecimentos costumam funcionar em horário noturno, perturbando o sono dos que tem a pouca sorte de morar nas vizinhanças. Esses problemas devem ser previstos sempre com grande antecedência, pois a passagem do tempo só contribui para agravá-los e tornar mais onerosa a sua solução quando o futuro o exigir.216

Mas, ao que parece, o editorialista de "A Notícia" não era o único a se preocupar com o assunto. No dia 10 de novembro daquele mesmo ano, os membros do Rotary Clube receberam, para uma palestra, o engenheiro e urbanista Gunther Wetzel. Em sua conferência aos rotarianos, embora não tenha citado em nenhum momento o nome de Joinville, ele deixou um recado que não poderia ser mais direto e explícito:

Desse modo, somos todos urbanistas. Mais correto seria dizer urbanologia, urbano técnica ou ainda planejamento. Esta última denominação é a mais feliz porque melhor traduz um processo de ordenação e previsão para conseguir, mediante a fixação de objetivos e por meio de áção racional, a utilização ótima dos recursos humanos e naturais de uma sociedade, em época determinada.217

No restante da palestra, Gunther explorou à exaustão a idéia do planejamento, destacando seus objetivos e suas vantagens:

Quais seus objetivos? Destina-se a elevar os níveis de vida das populações urbanas e rurais; tem por fim promover a valorização da família e da pessoa humana; tem como meta assegurar a supervivência de todos os cidadãos e não apenas a sua sobrevivência. (...) Por que planejar? Porque seria um verdadeiro milagre resultar algo de harmonioso, estético, equilibrado e funcional de um aglomerado de lotes de terrenos, de pequenas 216

DE URBANISMO. A Noticia, Joinville, 12 mar., 1960. Comentário Do Dia, v. 38, n. 7976, p. 8. Grifos nossos. 211 WETZEL, Gunther O que é urbanismo? A Noticia, Joinville, 20 nov. 1960, v.38, n. 8182, pp. 1 e 7. - Palestra proferida no Rotary Clube.

122

dimensões, destinados aos usos mais variados, sem que haja idéia de conjunto e sem disciplina no crescimento. (...) A cidade não é um simples mecanismo físico, mas sim físico-psicológico. E um coipo vivo, orgânico, em constante evolução. Com o crescimento vertiginoso de que muitas são alvo, sobrevém o fenômeno da padronização integral que abrange não só as coisas e os objetos, mas também as pessoas. As características individuais mesclam-se e diluem-se no torvelinho do desenvolvimento e acabamos deparando com um cidadão estático, abstrato: o contribuinte, o mero pagador de impostos. (...) Quando deve-se pensar em planejamento? A resposta é muito simples: SEMPRE! (...) Porque o sentido e a beleza da vida, dependem da ação harmoniosa e esclarecida dos cidadãos, e não, da fatalidade das coisas.218

Como em uma ação planejada, o tema voltaria a ser debatido no interior do Rotary dois meses depois. O debate, dessa vez, foi capitaneado pelo presidente da entidade, Hans Dieter Schmidt. Tendo como mote a palestra de novembro, o empresário poupou os ouvintes de subtextos. Sua intenção foi clara e manifesta: Joinville precisa, urgentemente, de um planejamento urbano condizente com seu crescimento. A quem caberia tal responsabilidade? Deixemos que ele mesmo responda:

(...) Quis, com isso, dar-nos a entender a conveniência de nos precavermos contra certas conseqüências que o progresso consigo trás. Em suma, mostrou a necessidade de um planejamento. Limitação aos loteamentos excessivos, limitação nos prédios a serem construídos, arborização tão necessária no sol quente de Joinville, criação de parques, jardins, etc...(...) (...) Devem os responsáveis (e incluimos neste termo todas as pessoas com capacidade de pensar e influir), devem todos dar o melhor de seus esforços para uma criação harmônica. Os erros existentes, talvez ainda venham a custar-nos caro. Mas desde já, devemos cuidar que não se repitam. (...) Aos senhores dirigi meu pensamento. Os senhores que representam as classes de Joinville, que abrigam sentimento de progresso e de bem-estar coletivo, que possuem, sem dúvida, influência nos meios sociais e políticos dessa cidade. Assim, sendo o espírito dos freqüentadores do Rotary o altruismo, porque não assumimos os distintos e influentes personagens do Rotary Clube de Joinville, o nobre encargo de comandar um movimento urbanístico? Um movimento que, apoiando e apoiado pelos poderes públicos, pudesse dar a Joinville um surto de progresso realmente desejável e digno. O que se espera dos homens de ação e de altruísmo é que, passando da fase das cogitações, conjuguem esforços, seja influindo nos setores competentes, seja promovendo debates construtivos, seja patrocinando conferências, seja conseguindo leis que garantam o bem 218

Id.

123

comum, leis, a exemplo das que já foram criadas em muitas cidades importantes, que demarquem as zonas residenciais, que declarem as zonas industriais, leis que cuidem da descentralização dos aglomerados humanos, que prevejam novas avenidas, novos jardins e parques, que cuidem do arejamento da cidade, quer arborizando-a, quer regulamentando as dimensões máximas dos prédios a serem construídos, leis, enfim, que impeçam desde já, a incubação e a formação de futuros contratempos, de futuros prejuízos.219

Os apelos dos rotarianos encontrariam guarida na administração de Helmut Fallgater. Em agosto de 1964, é criada a comissão municipal de urbanismo, cujo propósito é, principalmente, estudar o melhor caminho para a elaboração do Plano Diretor. Compunham a comissão o vereador Wittich Freitag, o secretário municipal Waldyr Schubert, o consultor jurídico Aymoré Palhares e os engenheiros João Batista da Motta Rezende, Henrique Jordan, Pedro Hugo Petry, Fernando Perlingueiro Lovisi e Günther Wetzel - o mesmo que, quatro anos antes, falou aos rotarianos sobre o urbanismo.220 Seguindo a orientação proposta, em maio de 1965 Fallgater contrata a empresa paulista Serete. Em novembro do mesmo ano, os técnicos da Serete apresentam o Plano Básico de Urbanismo de Joinville, que seria aprovado, em 1966, pela Câmara de Vereadores.221 Além de um diagnóstico detalhado das características demográficas e urbanas, o plano, como solicitado, apresenta uma série de sugestões, a curto, médio e longo prazos, para a revisão do traçado urbano de Joinville, além de investimentos em água, esgotos, luz, telefone e pavimentação, e um anteprojeto de lei do Plano Diretor. Entre outras coisas, o estudo alerta que, apesar das ações realizadas nos últimos quatro anos pelo próprio Helmut Fallgater, "a prefeitura está investindo

219

SCHMIDT, Hans Dieter Joinville precisa planejar seu crescimento. A Notícia, Joinville, 23 e 24 jan., 1961, v. 38, n. 8234, p. 7, a 8235, pp. 1 e 3. - Discurso ao Rotary Clube. 220 TERNES, construção da cidade..., p. 169. 221 SOCIEDADE SERETE. Plano Básico de Urbanismo de Joinville. Joinville: Prefeitura Municipal, 1965. v. 2

124

atualmente em ritmo tal que não poderia atender completamente toda a população ->

—•

nova do período" O estudo para a abertura de novas ruas e avenidas teve como fundamento um levantamento realizado sobre a evolução das frotas de veículos e bicicletas. Embora preveja um crescimento dos veículos motorizados, a pesquisa não vê razões para f falar de caos: "Desta maneira, Joinville, preparando-se desde agora, poderá evitar problemas mais sérios de trânsito deste tipo de veículo, já que suas taxas de motorização não são muito elevadas." E justifica a "tendência à estabilização": Este não é um fato comum nas grandes cidades brasileiras, mas em virtude de Joinville ser fundamentalmente uma cidade industrial, com grande população operária, formada basicamente por imigrantes de regiões mais pobres (população esta que aumenta a taxas assombrosas), torna-se impossível, a curto prazo, que o crescimento do parque de veículos acompanhe a taxa de crescimento da população.223

Fallgatter deixaria a prefeitura antes de poder executar as diretrizes do Plano de Urbanismo. Em seu lugar, assume Nilson Bender, eleito pela UDN, partido de oposição ^ao PSD de seu antecessor. Em seu plano de governo, elaborado com a consultoria do Instituto Brasileiro de Administração Municipal, Bender enfatiza a necessidade de uma "administração científica" como forma de "possibilitar o racional funcionamento das grandes unidades administrativas, proporcionando aos dirigentes o instrumento

necessário

à

investigação,

previsão,

planejamento,

organização,

coordenação, comando e controle das atividades humanas em qualquer campo (...)". E alerta:

222

Ibid., Anexo 11 - Investimentos em infraestrutura.

125

Em verdade, 'o planejamento científico é um processo contínuo, em que todos os aspectos do plano e de sua execução sofrem reexames constantes e sistemáticos, à luz da experiência e do desenrolar da própria tarefa. (...) O grande mérito do planejamento prévio das atividades é justamente o de proporcionar uma visão de conjunto, numa perspectiva de tempo e espaço propiciando a iluminação de erros de decisão, antes que provoquem conseqüências funestas e irreversíveis.224

Coerente com seu discurso e com a rivalidade entre UDN e PSD, Bender •

solicita uma revisão do Plano Básico de Urbanismo.

225

A medida provoca o protesto

indignado de "A Notícia", que tinha como principal acionista o ex-prefeito... Helmut Fallgatter! Contratado pela Prefeitura Municipal de Joinville, encontra-se em nossa cidade o Senhor Armand de Laurell, urbanista de renome nos EUA da América do Norte (sic), com a finalidade de realizar um estudo de base para a atualização do Plano Básico de Urbanismo de Joinville às necessidades desenvolvimentistas do Município. Trata-se, efetivamente, de uma iniciativa governamental que desperta desusado interesse entre todas as camadas da população joinvilense, pois, sabidamente, desde que foi estabelecido o Plano, por iniciativa da Administração Helmut Fallgatter (...) Joinville passou a pensar diferentemente com relação ao seu futuro (...). (...) Sem desmerecer as boas intenções que certamente tenham influido para a contratação dos serviços do Senhor Laurell, causa espécie o feto de estar sendo posto à prova, sob o crivo de uma única pessoa, um trabalho de profundidade, com as condições do Plano Básico de Urbanismo de Joinville, que levou nada menos do que cinco meses para ser elaborado, estando claramente exposto e justificado em 350 páginas e 50 e uma pranchas gráficas, caprichosamente confeccionadas. Assim, será de uma incoerência a tôda prova permitir ao Senhor Armand de Laurell realizar estudos e levantamentos das necessidades urbanísticas de Joinville, sem que a orientação principal, emanado do trabalho de base já feito. E possível que o Plano tenha deficiências, haja visto que a melhor obra do homem, em qualquer campo de atividade, estará sempre muito longe da perfeição. Entretanto, ignorá-lo - o Plano - ou proceder transformações radicais na sua estrutura básica diz respeito muito de perto aos interêsses da comunidade joinvilense, motivo porque taes alterações não deverão ser processadas, se houver tal intento, sem que haja 223

Ibid.,. Anexo 12 - Evolução da frota de veículos e bicicletas. JOINVILLE. Prefeitura Municipal. Plano de Ação - Administração Nilson Bender - 1967-1971. 225 E como a memória é, também, seletiva, a versão de ambos diverge completamente quando indagados sobre esse período. Helmut Fallgater parece guardar uma mágoa eterna de seu adversário político, a quem debita o fato de não ter dado continuidade àquela que considera a sua maior realização à frente da prefeitura. "Tudo isto, os bons propósitos, o espirito de progresso das comissões, o bom senso, o trabalho dedicado da Firma Serete, lamentavelmente caiu por terra já na próxima gestão do meu sucessor, desrespeitando totalmente este Plano Diretor." A versão de Bender é diferente: "(...) é mérito do Prefeito Helmut Fallgatter a elaboração desse Plano Diretor. Eu o recebi pronto como lei, como diretrizes, mas coube a mim a implantação dos orgãos. (...) Então, por aí se vê, que embora eu fosse de outra veia partidária, mas houve, continuidade administrativa. (...) Mas, nesse particular houve continuidade administrativa, não modifiquei nada do Plano Diretor dele." Respectivamente: FALLGATTER, Helmut Entrevista concedida a Dúnia de Freitas . Joinville, 24 set., 1984; BENDER, Nilsoa Entrevista concedida a Dúnia de Freitas. Joinville, 20 nov. , 1983. 224

126

igual consulta a significativos grupos de personalidades locais que, há apenas quatro anos atrás, opinaram pelo que julgavam de melhor para o futuro de Joinville.226

Na mesma edição, e na página ao lado de sua crítica contundente, o jornal reproduz a apresentação de Armand de Laurell aos membros da Associação Comercial e Industrial de Joinville (Acij), durante reunião da entidade. E como suas preocupações eram outras, seu discurso aos empresários é bem mais sereno que o de "A Notícia" e, lendo especialmente suas conclusões, fica a impressão que não havia - salvo os partidários - motivos para tanto alarme: (...) Minha revisão do Plano Básico está sendo dificultada por duas razões, quais sejam: 1-) Falta de conhecimento anterior do Plano elaborado, e 2-) as presentes condições do crescimento e desenvolvimento de Joinville, o que fez necessário uma reavaliação do Plano Básico mais completa e dispendiosa. O ponto principal de preocupação, além das escolas e necessidades, que absorve os gastos, são as ruas e rodovias. Um sistema de ruas de uma cidade não é apenas o reflexo histórico das antigas vias comerciais da mesma. Mas hoje em dia são vias de circulação automobilistica da comunidade. Sua função como estrada determina que precisam ser estabelecidos: Largura, extensão e pavimentação. Naturalmente uma pequena rua serve apenas para residências de famílias e difere em suas funções de uma rua que se use primordialmente para uma indústria ou para outros múltiplos usos. Obviamente o custo de construção de uma pequena estrada difere da construção de uma avenida ou de uma autoestrada. (...) Concluindo, eu acharia que a Prefeitura deveria primeiramente entregar o serviço a um consultor profissional para preparar um plano geral para o desenvolvimento da cidade e arredores e previamente submetê-lo a um comitê governamental, ao invés de dispender grandes somas construindo ruas de tal dimensão.227

Entre idas e vindas, Joinville termina a década aspirando a um projeto urbanístico de fôlego, um Plano Diretor que desse as diretrizes necessárias à ordenação de seu crescimento e que, no entanto, não chegou a ser de fato elaborado, votado e aprovado. Mas havia duas diferenças, bastante significativas. Primeiro, a intervenção do poder público no espaço urbano - independente da existência do Plano Diretor, de sua formalização legal - , revendo traçados, abrindo ruas, determinando novas regras 226

URBANISMO sob revisão. A Notícia, Joinville, 29 de outubro de 1969, v. 48, n. 10844, p. 2.

127

de edificações, cuidando da estética da cidade - em especial o centro e seus arredores. Segundo, o desejo manifesto, por parte das elites, de dar à cidade uma nova feição e, principalmente, fazê-lo com planejamento, disciplinando o seu crescimento. E que é, afinal, uma das características do urbanismo moderno: a capacidade de articular, em um mesmo discurso, ciência e utopia ou, em outras palavras, o de fazer da ciência, e também da técnica, instrumentos de realização de uma utopia - no caso, a de uma 22S

cidade organizada e ordenada, espacial e simbolicamente. Aliás, é esse desejo que não apenas precede, mas dá direção e força às ações interventoras do poder púbico no espaço urbano. Angel Rama nos fala que as tentativas de racionalizar e sistematizar a geografia de uma cidade são inspiradas em modelos intelectuais e ideais pré-concebidos, utópicos, que orientam as práticas e políticas governamentais. Esses modelos devem não apenas compor o presente, mas prever p futuro, provendo-o de medidas que visam fixar, num tempo futuro que é "sonho da razão", o desejo de uma ordem que, em última instância, é a expressão do seu avesso, o medo do caos: "A ordem deve ficar estabelecida antes de que a cidade exista, para impedir assim toda futura desordem, o que alude à peculiar virtude dos signos de permanecerem inalteráveis no tempo e seguir regendo a mutante vida das coisas dentro de rígidos marcos".

E se é verdade que, entre as palavras e as coisas

não há, necessariamente, uma relação de continuidade e coesão, também o é que as primeiras, por vezes, atribuem um sentido às segundas, orientando-as. O planejamento 221

URBANISTA norte-americano fala do Plano Básico na Ac//. A Notícia, Joinville, 29 out. 1969, v. 47, n. 10844, p. 3. 228 TOPALOV, Christian. Os saberes sobre a cidade: tempos de crise? Espaço & Debates. São Paulo. NERU. v.ll, n. 34, p. 28-37, 1991. 229 RAMA, Angel. A cidade das letras..., p. 23^10.

128

urbano seria, assim, o ponto de intersecção entre as duas: pela técnica, ele pretende moldar e dar forma àquilo que, antes, era apenas desejo. Realizar, na cidade, os sonhos da razão. Atenta aos riscos implicados na ausência de um planejamento adequado, "A Notícia" chama a atenção de seus leitores aos "embaraços sérios" que são subjacentes ao desenvolvimento da cidade. Depois de frisar que a "cidade cresce - e como cresce -, nem mais de dia para dia, mas de instante para instante" e de traçar a "meta comum" aos joinvilenses - "bem-estar social, harmonia, paz, amor e prosperidade, em obediência prazerosa ao sagrado lema do Pavilhão Nacional" - , ela alerta:

Queremos crescer sem parar - e crescemos. Esquecemos, às vezes, entretanto, o que deve ser feito em primeiro lugar. A ferrenha ansiedade que nos domina, na intenção de progredir um pouco mais em cada dia em relação ao que passou, confunde nossos movimentos. Invertemos, não raro, a ordem das prioridades, planejando e fazendo mal o que queríamos bem calculado e melhor executado. São muitos os exemplos negativistas que poderíamos citar, fruto desta correria progressista. Para justificar, todavia, faremos referência aos mais evidentes, justamente àqueles que nos parecem mais paradoxais, por seus detalhes intrínsecos e específicos: mais semáforos e sinais de trânsito no centro, quando o progresso pede o disciplinamento e a descentralização do tráfego, que aumenta a tôda hora, tomando comuns os já irritantes engarrafamentos; iluminação a mercúrio nos subúrbios e em ruas quase por abrir, enquanto muitas vias centrais, pavimentadas, não possuem tal melhoria; "pracinhas-de-ahiguel" em recantos que esperam e merecem obras de expressão, definitivas. (...)230

Em pelo menos um aspecto, o editorial faz eco ao artigo de César de Carvalho, publicado cerca de um ano antes, no qual o autor cobrava, especialmente da prefeitura, mais praças públicas em Joinville. Refere-se, nostálgicamente, ao jardim Lauro Mueller, "primeira praça erguida às margens do 'Mathias Storm' (...) ponto de encontro de famílias joinvilenses, com coreto ao centro para apresentação de bandas", descaracterizado nos anos 30 e que, na primeira administração de Rolf Colin, acabou

129

se transformando na sede da Biblioteca Pública: "Acabou, assim, melancólicamente, o aprazível recanto em que outrora se concentravam os joinvilenses. Hoje, o que resta do jardim soturnamente sombreado, é freqüentado, a desoras, por gente de baixa extração." Uma réstia de salvação, o articulista a encontra na restauração e higienização da praça Hercílio Luz.

Ao invés de pequenos jardins, teríamos assim uma deliciosa praça, rejuvenescida, a ataviar a zona do Mercado. Retirem-se dali os caminhões e carroças de aluguel; aliás dejetos cavalares ficam depositados à chuva e a sol, viveiros de moscardos, a provocarem fétido e mal-estar insuportáveis. Substitua-se o arvoredo pernicioso e sem graça, constituído de decrépitos e desajeitados jamelões, tracem-se alamedas, plantem-se flores e grama. Determine-se sejam murados os terrenos contíguos, com a proibição de depósitos de madeiras e outros materiais em plena via. A transmutação do feio logradouro atual será altamente benéfica e salutar à nossa cidade. (...) Cidade onde verões são ardentes, mormacentos, bochornais, características que se refletem desfavoravelmente na higidez local, afugentando forasteiros e os próprios urbanistas, de há muito os poderes públicos deveriam ter cogitado de atenuar esse conjunto de circunstâncias negativas do nosso clima agressivo e causticante com a implantação de múltiplos rossios, abrigadouros, verdejantes, e abundante arborização em todos os quadrantes da urbe.23'

Sabemos que as reivindicações, por aparentemente simples que sejam - mais praças, arborização, etc. - demandam um planejamento detalhado e investimentos públicos. Portanto, um e outro - o editorialista e o articulista - teriam de esperar um pouco mais até os "poderes públicos" definirem de uma vez por todas, como sua prioridade, a elaboração e execução de um Plano Diretor. Enquanto isso, outras medidas continuavam sendo tomadas: em 1972, durante a gestão de Harold Karmann, a mesma Serete que, sete anos antes foi a responsável pelo Plano Básico de Urbanismo, é contratada para elaborar o Plano Diretor do Transporte Urbano. Ele desenvolve, em toda sua parte inicial, uma análise crítica do trabalho de alguns anos 230

CRESÇAMOS com ordem. A Notícia, Joinville, 21 de junho de 1969, v. 47, n. 10733, p. 2. CARVALHO, César A de. Joinville: a cidade sem praças. A Noticia, Joinville, 9 mar. 1968, v. 48, a 10348, p. 10. 231

130

antes, tendo em vista que na "situação atual do crescimento da cidade, no que tange às diretrizes do PBU, que algumas delas perderam no todo, ou em parte, sua validade"." " Apesar do trabalho oferecer tanto um diagnóstico quanto um prognóstico das condições urbanas de Joinville, seus propósitos estavam bem delimitados: oferecer subsídios à implantação planejada do transporte coletivo. Mas é possível deduzir, de sua leitura, que ele tenha pelo menos servido de inspiração para a elaboração, finalmente, do Plano Diretor do município, votado e aprovado pela Câmara de Vereadores e tornado lei sob o número 1262 em 27 de abril de 1973, pelo prefeito Pedro Ivo Campos. Oficialmente,

o

"plano

visa

propiciar

melhores

condições

para

o

desenvolvimento integrado e harmônico do Município bem como o bem estar da comunidade no exercício das funções de: HABITAR, TRABALHAR, REPOUSAR, CIRCULAR, RECREAR e COMUNICAR". 233 Para cumprir seus propósitos, concentra-se especialmente em dois aspectos, considerados essenciais: zoneamento e sistèmâ viário. O que significa, grosso modo, delimitar as áreas da cidade e seu uso se residencial ou industrial, por exemplo - e planejar de forma a suprir adequadamente a necessidade de circulação de pessoas e veículos, a ampliação ou abertura de novas ruas e avenidas. Se nos for perdoada a simplificação, podemos dizer que, em linhas gerais, o Plano Diretor adapta às condições da cidade no ano de sua aprovação, grande parte das recomendações presentes já no Plano Básico de Urbanismo, de 1965. Do ponto de vista urbanístico, é inegável a contigüidade entre os dois. Ambos tencionam 232

SOCIEDADE SERETE. Plano Diretor do Sistema de Transporte Urbano. Joinville, Prefeitura Municipal, 1972.

131

suprir aquilo que, segundo Raquel Rolnik, são os pressupostos do planejamento urbano: a leitura mecânica da cidade (a cidade como circulação de fluxos: de pedestres, veículos, mercadorias, etc.); a ordenação matemática (a regularidade e a repetição como bases da racionalização na produção do espaço); a possibilidade de, pelo esquadrinhamento dos espaços, garantir ao poder público e ao Estado um maior controle sobre a cidade; e, por fim, tentar assegurar, pelo planejamento, a realização de uma utopia: uma cidade planejada, é uma cidade sem males.234 Mas é necessário levar em conta ainda, antes de encerrarmos esse capítulo, uma outra razão, fundamental a nosso ver, para a aprovação do Plano Diretor no ano de 1973. Por essa época, com seus 127 mil habitantes, aproximadamente, Joinville não apenas se despedira já de sua "belle époque", mas vivia um momento de intenso desenvolvimento econômico e industrial - e também um de seus desdobramentos mais diretos,, a migração urbana. Essa, por sua vez, provoca mudanças significativas não apenas na composição demográfica da cidade, mas também em sua geografia, com a ocupação desenfreada de grandes áreas até então desabitadas e o conseqüente crescimento da periferia. Se, à primeira vista, o Plano Diretor pretende tão e simplesmente garantir o "desenvolvimento integrado e harmônico do Município", parece-nos lícito especular outros propósitos, contidos subliminarmente em seu texto. Num certo sentido, é ele quem fornece os subsídios para que se concretize o projeto de transformar a cidade em um mundo espacial e socialmente segmentado, ocultando a miséria e lançando luz sobre a sua face "sadia". O planejamento e a nova paisagem e

233 JOINVILLE. Prefeitura Municipal. Lei n. 1262, de 27 de abril de 1973. Plano Diretor de Joinville. (Maiúsculas no original.) 234 ROLNIK, Raquel. O que é cidade. São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 59.

132

geografia têm a intenção de consolidar os aspectos positivos da visão moderna de racionalização do espaço urbano. Racionalização que é também paite das relações de poder que constróem territórios e delimitam suas fronteiras.

235

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido..., p. 127-65.

235

133

3 A OUTRA MARGEM DO RIO

Entre os anos 60 e 70, Joinville viveu uma fase de transição. A explosão demográfica vivida no período - de pouco mais de 70 mil habitantes em 1960, para 127 mil, aproximadamente, no início da década seguinte - forçará os governos da época (Helmut Fallgatter, Nilson Bender, Harald Karmann e Pedro Ivo Campos, respectivamente) a adotarem medidas de "modernização" do espaço urbano. É neste contexto, como vimos no capítulo anterior, que são formulados o Plano Básico de Urbanismo e o Plano Diretor de Joinville. Ainda assim, a ocupação das regiões periféricas, como as imensas áreas de mangue, é inevitável, e a favelização se torna crescente. Entre outras razões porque, ávidas por fomentar o desenvolvimento, as elites locais - empresariais e políticas - pouco investiram para criar a estrutura urbana necessária ao crescimento da cidade. Os problemas parecem se agravar a ponto de o jornal Folha Catarinense estampar, na capa de uma de suas edições, a manchete: "Políticos joinvilenses temem 236

crise de mão-de-obra por falta de moradia".

Dois anos antes, uma Comissão

Especial foi formada na Câmara de Vereadores para discutir um "problema social" envolvendo os moradores do Conjunto Habitacional Tupy, no bairro Boa Vista, que se sentiam ameaçados de despejo pelo atraso no pagamento das prestações de seus lotes. Inquirido pelos legisladores, o advogado Edson Cabrera, representante da empresa responsável pelos contratos - a Província Crédito Imobiliário - , alega que "não há interesse em prejudicar ninguém, nem que os atuais moradores deixem suas

134

residências, criando uma grave situação social". O interesse da empresa, alega, é renegociar as dívidas atrasadas como, anas, cerca de 30% dos mutuários já haviam feito. O relatório final da Comissão, assinado pelo vereador Elmar Zimmermann, do MDB, parece confiar plenamente nas palavras do advogado, atribuindo a meros boatos o temor levado ao poder legislativo pelos moradores e passando a estes a responsabilidade pela resolução dos seus problemas: "Analisando os fatos acima mencionados, a Comissão conclui que os boatos de despejo são infundados, e que de momento nenhum morador está diretamente ameaçado e cabe a ele se manifestar e A07

entrar em contato com a Província para os cabíveis entendimentos". O déficit habitacional é apenas uma das facetas dos desequilíbrios sociais verificados em Joinville no período. Além do crescimento da periferia e da favelização da cidade, vive-se o "fantasma" do desemprego, que se segue à euforia das contratações estratosféricas por parte das empresas; o aumento nos índices de pobreza e de criminalidade, etc. Mas não é tudo. Com a migração, o perfil demográfico alterase sensivelmente, bem como muitos dos hábitos e costumes "tradicionais". A intenção é analisar o processo migratório para Joinville e seus desdobramentos no cotidiano e na geografia da cidade, mostrando que a industrialização e a urbanização são fenômenos profundamente articulados - assim como os problemas daí advindos. Além disso, pretende-se discutir, ainda que brevemente, os discursos que objetivam "incorporar" a população migrante à cidade. Discursos que exercem um duplo papel: integram ao mesmo tempo que estigmatizam. Para tanto, uma breve análise 236

POLÍTICOS joinvilenses temem crise de mão-de-obra por falta de moradia. Folha Catarinense, Joinville, 15 a 21 ago., 1977, v. 1, n. 22. p. 1.

135

bibliográfica sobre o desenvolvimento industrial de Joinville se faz necessária. E é com ela que iniciamos.

3.1 A INDÚSTRIA, A NOSSA VOCAÇÃO

Quem construiu Tebas de sete portas? Brecht

A industrialização de Joinville tem sido um tema recorrente em diversos trabalhos recentes, tanto historiográficos quanto econômicos. Em sua grande maioria, no entanto, os estudos não fazem mais que imprimir um verniz acadêmico a discussões que remontam aos anos 60, quando escrever a história da cidade era uma tarefa confiada a historiadores autodidatas e diletantes, patrocinados por empresas locais. Em linhas gerais, aqueles trabalhos atribuem o desenvolvimento econômico de Joinville a dois fatores. Primeiro, o investimento do capital excedente do chamado "ciclo do mate", aplicado primeiramente no comércio e depois na indústria, sendo esta, em última instância, decorrência direta daquele. Segundo, o espírito empreendedor do imigrante germânico que, percebendo as condições adversas ao desenvolvimento agrícola da colônia, conseguiu adaptar a economia local às condições que lhe eram

237

JOINVILLE. Câmara de Vereadores de Joinville. Relatório Comissão Especial - Estudar problema social do Conjunto Habitacional Tupy. Joinville, 12 ago., 1975. 238 Uma das primeiras obras historiográficas sobre Joinville, publicada em 1965, foi patrocinada pela Fundição Tupy. Ver: FICKER, Carlos. História de Joinville: subsídios para a crônica da colônia Dona Francisca. Joinville: Ipiranga, 1965. No apêndice ao capítulo I dessa dissertação, fizemos uma breve discussão sobre a historiografia local, enfocando algumas obras de autores desse período, em especial o álbum comemorativo do centenário. Ver: Album histórico do centenário. Organizado pela Sociedade Amigos de Joinville. Curitiba: Gráfica Mundial, 1951.

136

favoráveis. Nascia aí, segundo essas interpretações, a economia joinvilense. E a indústria seria, mais que uma conseqüência, a "vocação" latente desde os primordios de sua fundação. A escrita mudou, é verdade, mas o conteúdo nem tanto. Em que pese a sofisticação acadêmica,

as pesquisas

interpretações.

citado

O



recentes

Apolinário

tendem

Ternes,

a referendar

aquelas

exemplo,

descreve

por

cronologicamente o desenvolvimento econômico de Joinville dando especial ênfase aos anos iniciais da colonização onde, com seu espírito empreendedor, o imigrante germânico venceu todas as dificuldades e canalizou seus esforços e sua criatividade à industrialização.239 Uma argumentação que, coerentemente, acompanha Ternes desde sua primeira obra e que permanece em seus trabalhos mais recentes.

O "boom" econômico, fortemente ajudado pelo espírito familiar alemã, explicam a nova geografia e o novo urbanismo da cidade, a Joinville aproveita o momento para expandir sua vocação original, a vencido o ciclo da economia de subsistência, o ciclo do mate importante pólo comercial, nas décadas de 1930/40.240

e a conhecida disciplina partir da década de 1950. da indústria, depois de ter e sua transformação em

Segue na mesma direção a explicação de Maria Luiza Rénaux Hering, que em seu trabalho faz uma crítica à concepção cepalina do desenvolvimento econômico latino-americano, transplantado ao estudo da economia catarinense por alguns autores dos anos 70.241 De acordo com ela, a gênese da indústria no Vale do Itajaí, e também em Joinville, seria a crise da economia agrícola no final do século XIX. Com a limitação do "panorama econômico", os imigrantes, que mantiveram vivas algumas 239

TERNES, Apolinário. História de Joinville..., p. 107-273; TERNES, História econômica de Joinville..., p. 13-206. 240 TERNES, Apolinário. A construção da cidade..., p. 158.

137

das concepções econômicas de sua religião (a luterana) e pais (a Alemanha) de origens - a ênfase no artesanato, nas pequenas profissões e nas indústrias - , passaram a desenvolver atividades paralelas à lavoura, "que incluíam o beneficiamento dos produtos agrícolas, e os pequenos ofícios nos quais começavam a desdobrar-se as opções econômicas".242 Provém daí sua crítica aos cepalinos, já que, para ela, a industrialização catarinense não é um fenômeno dependente, a reboque, da nacional especialmente do eixo Rio-São Paulo. Trata-se de uma "industrialização com características próprias", em função principalmente de seu isolamento regional. As "características próprias" enumeradas pela autora seriam: o investimento exclusivo de recursos próprios, garantindo a estabilidade econômica dos

empreendimentos

industriais catarinenses; independência em relação aos governos, com a ausência de subsídios e favores; a auto-sufíciência e a solidez das indústrias, expressas na capacidade de se manter no mercado e resistir a conjunturas difíceis.243 Alimentando-se da mesma matriz interpretativa, os trabalhos de Isa de Oliveira Rocha244 e Américo Augusto da Costa Souto245 são variações sobre o mesmo tema. Em linhas gerais, a primeira defende que "a produção industrial foi gestada no interior das oficinas instaladas para atender as necessidades da população local, na fabricação de peças de manutenção das carroças que transportavam a erva-mate, e de

241

HERING, Maria Luiza Rénaux. Colonização e indústria no Vale do Itajaí: o modelo catarinense de desenvolvimento. Blumenau: Editora da FURB, 1987. 242 Ibid., p. 81-84. 243 Ibid., p. 10-13. 244 ROCHA, Isa de Oliveira. Industrialização de Joinville-SC: da gênese às exportações. Florianópolis: [s.n.], 1997. 245 SOUTO, Américo Augusto da Costa. Industrialização de Santa Catarina: o Vale do Itajaí e o Litoral de São Francisco, das origens ao mercado nacional (1850-1929). In.: BRANCHER, Ana (org.). História de Santa Catarina - Estudos contemporâneos. Florianópolis: Letras contemporâneas, 1999.

138

equipamentos utilizados nos engenhos de beneficiamento da mesma".246 Para Américo Souto as origens da industrialização remontam às últimas décadas do oitocento e primeiras do século XX, quando "as empresas do mate estimularam o artesanato metalúrgico e madeireiro, em termos de fornecimento de equipamentos e peças". A partir dos anos 40, já consolidado o mercado interno, verifica-se "uma abertura maior para o mercado nacional, em vista da 'satelitização' da região pelas 'metrópoles' internas, Curitiba e o eixo Rio-São Paulo. Extrapolando para os anos cinqüenta, Joinville

se torna fornecedora de peças e equipamentos para

a indústria

automobilística, então implantada no 'centro interno', o que catalisa a indústria metal-V •

„ 247

mecanica . Dois autores são o tom dissonante a esse samba de uma nota só. Em seu trabalho, Vilmar Vidor defende que a industrialização catarinense assentou-se sobre o trinomio "divisão social do trabalho", "acumulação de capital" e "exploração da mãode-obra".248 O primeiro permitiu que, desde os primeiros anos da imigração, fossem priorizados - inclusive no que diz respeito à ocupação geográfica dos novos territórios e distribuição da autoridade política - os interesses da pequena burguesia comercial que emigrou da Europa, junto com os colonos, rumo ao "novo mundo". Estabelecidos, os imigrantes trataram de consolidar uma economia interna que possibilitou, pela acumulação do capital conjugado à exploração da mão-de-obra, o desenvolvimento da indústria, já nos anos 30 e 40 do século XX. A participação do Estado, por meio da 246

NIEHUES, Valdete Daufemback. De agricultor a operário: lembranças de migrantes. Florianópolis: 2000. (Dissertação). Mestrado em História, Universidade Federal de Santa Catarina, p. 84. 247 SOUTO, Américo Augusto da Costa. Industrialização de Santa Catarina..., p. 146. 248 VIDOR, Vilmar. Indústria e urbanização no Nordeste de Santa Catarina. Blumenau: Editora da Furb, 1995.

139

política desenvolvimentista nos anos 50 e, nas décadas seguintes, por intermédio do "milagre brasileiro", consolidou a "vocação" industriai de Joinville e região.249 Já o economista Ido Michels

não apenas faz uma revisão criteriosa da

produção acadêmica sobre a industrialização catarinense, mas elabora uma crítica contundente ao chamado "modelo catarinense de desenvolvimento" e aos autores que, 251

em maior ou menor grau, o respaldaram teoricamente. antecessores naqueles pontos que,

em última instância,

Ido discorda de seus sustentam as

suas

argumentações. Para ele, a industrialização de Santa Catarina nos anos 60 a 80 não é fruto do desenvolvimento linear de uma economia que, vencidos os sucessivos estágios de subsistência, do comércio, da oficina ou pequena manufatura, de formação do mercado interno, etc., chega finalmente a compor grandes conglomerados industriais. Tão pouco, é obra "da capacidade e da ousadia do empresárioempreendedor catarinense". Ela resulta, preponderantemente, da "intensa ação estatal (em benefício dos grandes grupos) e pela superexploração do trabalho": Foram os recursos da sociedade catarinense, via Estado e agentes financeiros estatais, regionais e mesmo federais, que possibilitaram o estupendo enriquecimento privado dos que, hoje, se constituem nos grupos de porte internacional. (...) Por outro lado, enquanto as instituições públicas estaduais e mesmo federais vão encerrar os anos 80 absolutamente desprovidas de fundos próprios para sequer funcionar em mínimas condições, verifica-se, concomitantemente, o vertiginoso aumento do patrimônio dos grupos privados de Santa Catarina e o acentuado empobrecimento da sociedade catarinense.252

249

Ibid., p. 37-71. MICHELS, Ido Luiz. Crítica ao modelo catarinense de desenvolvimento: do planejamento econômico, 1956 aos precatórios, 1997. Campo Grande: Editora UFMS, 1998. 251 Em uma nota de rodapé, Michels diz que não analisará sistematicamente a obra de Ternes porque em suas obras - nomeadamente "História da WEG: 25 anos" e "A estratégia da confiança", esta última sobre a Fundição Tupy - o autor "limita-se, simplesmente, a fazer apologia dos empresários catarinenses, da WEG e da TUPY, sem uma abordagem analítica maior da economia catarinense". Cf.: MICHELS, Ido Luiz. Crítica ao modelo catarinense de desenvolvimento..., p. 64. 252 MICHELS, Ido Luiz.Cri ti ca ao modelo..., p. 17-20 e 186-87. 250

140

Desses dois fatores, e em especial a forte intervenção estatal - via incentivos, créditos, investimentos diretos, planejamento, infra-estrutura, etc. - , resulta o que 253

Michels define como "enriquecimento privado versus empobrecimento social". Trocando em miúdos: à medida que os grandes grupos industriais - no caso de Joinville, Tupy, Hansen e Consul, entre outros - se desenvolvem às expensas do Estado, a população catarinense vê decrescer ao longo dos anos 70 e 80 seu nível de vida, seja em função dos baixos salários pagos pelas empresas, ou pela ausência de investimentos públicos em educação, saúde, habitação, saneamento, etc. As indústrias de Joinville, nesse sentido, são um exemplo para o resto de Santa Catarina. Considerada, durante o regime militar, área de Segurança Nacional, a cidade foi uma das que mais usufruiu os incentivos estatais para a sua industrialização. O caso da Fundição Tupy é emblemático: nos anos 60, a empresa fez um acordo com o governo militar para que, na eventualidade de um levante popular ou uma guerra civil, ela passasse a produzir armamentos bélicos. "Em troca, receberia empréstimos, o quanto fosse necessário para expandir a produção".254 Não foi por acaso, certamente, nem pela ação quase heróica dos empresários que estavam à frente do grupo, que a Tupy viu crescer em aproximadamente 650%, de 1971 a 1981, seu patrimônio: em 1971, a empresa tinha um patrimônio líquido de 17 milhões de dólares, passando para 125 milhões apenas dez anos depois.

253

MICHELS, Ido Luiz. Critica ao modelo catarinense de desenvolvimento, p. 179-187. Sobre a política de incentivo à industrialização durante os anos 60/70, ver: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. A modernização autoritária: do golpe militar à redemocraüzação 1964/1984. In.: LINHARES, Maria Yedda (org.). História geral do Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 19%, p. 301-334. 254 NIEHUES, Valdete. De agricultor a operário..., p. 69-71. 255 MICHELS, Ido Luiz. Critica ao modelo..., p. 210-214.

141

Esse enriquecimento vertiginoso, no entanto, não é fruto apenas das parcerias lucrativas com o poder público. Não apenas a Tupy, mas outras empresas joinvilenses, precisam suprir o seu rápido desenvolvimento industrial com a mão-de-obra necessária ao ritmo da produção. A alternativa, em um primeiro momento, é buscá-la em Joinville mesmo, mas fora do perímetro urbano. E como o espetáculo das máquinas e motores funcionando a pleno vapor não cessava, com o tempo foi preciso buscar trabalhadores de outras cidades, de Santa Catarina e do Paraná, especialmente. A maioria dos que vinham eram agricultores, que vislumbravam com a mudança para a cidade e um emprego com carteira assinada, mais benefícios - assistência médica, cooperativa para compras de supermercado, etc. - , uma oportunidade de deixar para trás as mazelas do campo e iniciar uma nova etapa de suas vidas. Foi o sonho desses milhares de homens e mulheres que alimentou, à troca de baixíssimos salários, as linhas de produção da Manchester Catarinense.

3.2 LUZES DA CIDADE

A cidade, com suas fumaças e ruídos de ofícios, nos seguia tão longe nos caminhos. Rimbaud

142

Tanto quanto, ou talvez até mais que as mudanças econômicas, a "revolução industrial" de Joinville traz profundas transformações no cenário e na cultura locais. Em um de seus livros, o historiador Apolinário Ternes afirma que "começaríamos a pagar o preço da industrialização que centenas de cidades européias tiveram de pagar, no instante em que aqui chegavam os primeiros imigrantes alemães, suíços e noruegueses, em março de 1851. Um século antes lá. A partir de 1951, aqui".

O

"preço" a ser pago pode ser apreendido, parcialmente, a partir de alguns dados estatísticos do período. No início da década de 50, viviam em Joinville cerca de 42 mil pessoas, distribuídas de forma eqüitativa nas áreas urbana e rural -

mais

especificamente, 24 mil na primeira e outras 18 mil na segunda. A maior empresa joinvilense de então, a Fundição Tupy, empregava cerca de 1.500 funcionários. A cidade chega aos anos 80 com um crescimento populacional de 550%, saltando dos 42 mil habitantes do início dos anos 50, para cerca de 236 mil em 1980. Destes, 93% 257

habitam a área urbana e apenas 7%, a zona rural. O fluxo migratório, que traz centenas de agricultores despossuídos de suas terras e em busca de um lugar ao sol em um centro urbano, é um dos responsáveis pelo crescimento populacional verificado neste período. Na década de 70 e início de 80, chegavam a Joinville, diariamente, cerca de 70 famílias. A mão-de-obra, em sua maioria, chegava à cidade com o objetivo de suprir, de imediato, as necessidades das linhas de produção. Um exemplo: em 1973, prestes a inaugurar uma nova unidade, a

143

Fundição Tupy estabelece, como meta para os próximos dois anos, passar de 3,1 mil para 8 mii funcionarios.

w excedente compunha aquilo que Marx chamou de

"exército industrial de reserva", necessário, segundo a lógica do capital, a garantir o 259

máximo de produtividade com o mínimo de recursos e salários.

Uma das empresas

precursoras no recrutamento externo de mão-de-obra foi a Fundição Tupy - primeiro, nos municípios vizinhos, depois, Oeste catarinense e, finalmente, Norte do Paraná. Sua estratégia de recrutamento, montada por uma equipe composta de dezenas de pessoas, foi seguida depois por outras indústrias da cidade.

Através da emissora de rádio, estabelecia-se o primeiro contato com a região escolhida para buscar trabalhadores. (...) O prefeito e o padre da paróquia eram procurados, para que fosse reforçada, junto aos trabalhadores, a sugestão da mudança no ramo de atividade, da roça para a cidade. (...) O recrutamento direto dos trabalhadores do interior pela mediação destes agentes [os reclutadores] constituiu um elemento favorável ao deslocamento de uma parcela considerável de trabalhadores rurais.260

A preferência era para solteiros, mas casados também eram admitidos. Para aqueles que deixassem sua terra natal, a Tupy oferecia, além do salário, alimentação e alojamento em pensões nas redondezas. Nas férias de final de ano, junto com a cesta de Natal, os funcionários levavam panfletos onde eram incitados a convidar um 261 parente ou amigo a vir morar também em Joinville - e, claro, trabalhar na Tupy. Com o tempo, a sedução da vida urbana traz para o município não apenas homens 256

TERNES, Apolinário. A construção da cidade..., p. 166. Ibid, p. 158-212. 258 NASCIMENTO, Jociane Maria do. Tem que ser paranaense: migração e preconceito. Grande reportagem apresentada no curso de graduação em Jornalismo da Univali. Itajaí: Mimeografado, 1996. p. 5-6. 259 Uma discussão sobre o conceito de "exército industrial de reserva" pode ser encontrada, entre outros, em: MARX, Karl. Trabalho assalariado e capital. Trad, de Olinto Beckerman. São Paulo: Global Editora, 1987. p. 43-49. 260 NIEHUES, Valdete. De agricultor a operário..., p. 92-99. 257

144

solteiros e casados, mas famílias inteiras que aqui chegam sem nenhuma garantia, seja de trabalho, seja de moradia. E, embora muitos acabem obtendo o sonhado emprego, nem as empresas, tampouco o poder público, oferecem a infra-estrutura necessária para abrigá-los. Sem casa, nem dinheiro, a saída é ocupar as áreas de mangue, que ofereciam duas vantagens a curto prazo: a primeira, estarem quase que completamente desabitadas, "sem dono". A segunda, por se localizarem em regiões próximas a algumas das principais empresas de então, especialmente a Tupy. Com a ocupação dos mangues, a periferia da cidade começa a ser redesenhada, agora com tintas mais fortes. E com ela, o agravamento das tensões sociais. Na década de 70, os resultados das estatísticas sociais do município são preocupantes: 75% da população têm renda familiar de até três salários mínimos, 70% das residências não têm coleta de lixo, 35% não têm abastecimento de água e 70% não têm rede de esgoto. Além disso, faltam leitos hospitalares e há deficiência no setor de segurança. Mesmo àquela historiografia local dita oficial essas contradições não passaram em branco. Em um tom de alerta às elites locais, o historiador Apolinário Ternes chama a atenção para a "desordem e a selvageria que se estabeleceu no ambiente urbano de Joinville". Segundo ele, "a carência de áreas de lazer, a violência na área policial, a poluição do Rio Cachoeira, enfim, o quadro de desajustes é bastante amplo e as perspectivas a curto prazo são de agravamento desta situação". A situação piora principalmente na segunda metade dos setenta. Com seu quadro de funcionários praticamente fechado, a maioria das empresas já não contrata 261

LEMKE, Verner. Entrevista concedida a Valdete Daufemback Niehues Joinville, 24 jun., 1999. Excoordenador do setor de Recrutamento e Seleção da Fundição Tupy; FLORIANI, Moacir José. Entrevista concedida a Valdete Daufemback Niehues Joinville, 19 jul., 1999. Ex-recrutador da Metalúrgica Schulz.

145

mais com a mesma intensidade de antes. Os empregos começam a escassear - mas a mão-de-obra, em contrapartida, não cessa de chegar. E se, num primeiro momento, a formação do "exército industrial de reserva" é uma necessidade vital para o capital, que assim garante o volume de produção praticando baixos salários e obtendo altos lucros, a situação vai se tornar insuportável a ponto de, já nos anos 80, inverter-se a lógica. O mesmo Wittich Freitag que, quando empresário, lotava ônibus com trabalhadores para suprir as necessidades de suas linhas de produção, como prefeito opta por lotar os mesmos ônibus para fazerem o caminho inverso, e despejarem trabalhadores de volta às suas cidades de origem - sem emprego, sem casa e, agora, sem perspectivas. Parte desse drama está presente nas páginas da imprensa. Em uma de suas edições de maio de 1978, lê-se no jornal Extra:

Ocorre todos os dias e em todos os cantos da cidade onde quer que haja uma instalação febril e onde quer que uma placa esteja à mostra com a frase: "Há vaga". E o início da luta pelo tão tiesejado emprego, nem sempre alcançado, mas tentado insistentemente por milhares de pessoas, a grande maioria vinda de outros municípios do estado e mesmo de estados vizinhos. O parque industrial de Joinville, pela sua pujança, transforma-se na fonte de esperanças de muitas famílias que para aqui vêem contando com muita disposição de trabalho mas dependendo também das incertezas da sorte.263

A matéria prossegue, apresentando alguns dados de áreas de recrutamento que apontam, em meio ao desespero de milhares, algumas das vantagens da procura desenfreada por emprego: Cerca de 80% das pessoas que diariamente procuram emprego nas indústrias joinvilenses procede de outras cidades do nosso estado. Segundo alguns departamentos de recrutamento de pessoal, em nosso parque industrial há períodos no ano, nos quais a procura de mão-de-obra é angustiante, tendo mesmo, certas 262 263

TERNES, História econômica de Joinville..., p. 246. EMPREGO: a via sacra de todo dia. Extra, 1 a 7 de maio de 1978, v. 1, a 4, p. 10.

146

firmas, que ensinar um operário desde os primeiros passos nas suas funções. Normalmente, contudo, a oferta de mão-de-obra é sensivelmente maior que a procura. Isto implica num procedimento criterioso de seleção de pessoal pelos departamentos competentes de cada indústria, seleção esta iniciada através de entrevistas com um candidato.264

O problema maior, revelam ao jornalista as fontes empresariais, é a pouca qualificação da mão-de-obra disponível, o que dificulta a contratação e mesmo o pagamento de um bom salário:

Quando a procura de mão-de-obra numa firma é destinada a satisfazer as necessidades de determinada área de especialização, o aproveitamento de candidatos é mínimo. Ocorre que a grande maioria dos que procuram emprego normalmente não possuem qualificação (...). Esta é mais uma das facetas do drama cotidiano da procura de trabalho. Nem sempre a capacidade operacional de um operário lhe permite um salário melhor e a vida da cidade maior implica sempre em despesas maiores nem sempre consideradas à primeira vista pelo trabalhador.265

Mas se alguns penam por uma vaga, outros, quando a conseguem, pecam por indisciplina e infidelidade, um dos sérios problemas da classe trabalhadora joinvilense, segundo o Extra. Muitos preferem, a permanecer firmes em seu emprego, vagar de empresa em empresa, "sujando" sua carteira de trabalho e comprometendo seu futuro profissional:

Em extensão, ocorre outro fato: um operário com relativo conhecimento em certa especialização, à medida que trabalha depois de admitido em certa firma, vai aperfeiçoando seus conhecimentos. Dois ou três meses depois, munido do que aprendeu e diante da possibilidade, agora de ganhar mais em outro local, pede sua demissão e busca novo emprego. Não são raros aqueles que em apenas um ano de trabalho, possuem registro em sua carteira profissional de três ou mais passagens por outras firmas, isto naturalmente conta ponto negativo para o próprio trabalhador que, por vezes, cai novamente no drama da procura de colocação.266

264 265

266

Id. I d

Id.

147

O desfecho é pessimista e, de certa forma, premonitorio de uma prática que se tornaria constante alguns anos depois - e que talvez, subliminarmente, já estivesse sendo sugerida para aquele momento:

Em termos gerais esse drama cotidiano tende a caminhar paralelamente ao próprio desenvolvimento do nosso parque industrial. Com o seu crescimento aumenta o número de famílias que chegam diariamente à nossa cidade e, considerando que o aproveitamento da mão-de-obra vinda de fora não vai além de 50%, o problema social, o drama do trabalhador sem qualificação não tem, nem mesmo a longo prazo, previsão de solução. Mesmo com todos os esforços das nossas indústrias e organismos especiaüzados em ensino para qualificar o trabalhador brasileiro, ainda assim lhe é exigido pelo menos um mínimo de instrução o que, na maioria das vezes, não é conseguido. Nem mesmo com todas as facilidades existentes hoje em dia para chegar a essa necessidade mínima de conhecimento, poderia o candidato colocar-se em nível de procurar trabalho pelo tempo exigido para instruir-se e, restando-lhe como única saída a amarga realidade: a volta para a cidade de origem.267

O paliativo a este retorno ao lar são os investimentos em benefícios que começam a ser realizados neste período. Seja por via direta, implantando políticas dentro das organizações - planos de saúde, cooperativas, recreativas, etc. - ou através de instituições de caráter confederativo - tais como o Sesi - , busca-se amenizar os conflitos decorrentes da crise gerada no interior das empresas. Festas e torneios esportivos tornam-se uma constante. O lazer parece representar uma possibilidade de resolução das contradições, especialmente pelo seu caráter integrador. Esforços são direcionados no sentido de se criar práticas que o institucionalizem e circunscrevam às necessidades organizacionais. E de uma experiência lúdica e subjetiva, ele passa a ser também parte de uma estratégia de poder que visa à integração e à disciplina, de forma a se ocupar o tempo livre de maneira produtiva e útil.268

267

14 Segundo Denise Bernuzzi de Sant'Anna, "esses procedimentos (...) estavam fundamentados naquilo que se esperava promover em toda a cidade: um lazer cuja identidade contivesse funções e dimensões não apenas lúdicas, mas também terapêuticas, disciplinadoras e de correção dos excessos e desequilíbrios da cidade e de seu 268

148

Paralelos ao lazer, a segurança e o bem-estar dos funcionários entram também na pauta de preocupações das empresas. Findo o período de recrutamento de pessoal, a Fundição Tupy, por exemplo, cria uma área específica para a implantação de políticas sociais, que fica sob responsabilidade de seu antigo recrutador. A missão parece espinhosa: cabe a ela administrar os reflexos do movimento migratório que incidem diretamente no cotidiano dos trabalhadores, que sofrem uma ruptura de certa forma radical em seus hábitos e sua cultura após a mudança para a cidade.269 E se bebedeiras e brigas entre casais ou vizinhos passam a ser algo comum, é preciso responder, dentro da fábrica, com a assistência necessária a garantir o "equilíbrio". Em última instância, medidas que visam assegurar, internamente, a disciplina e a educação. Por mais que em seus discursos elas se mostrassem voltadas ao bem-estar do trabalhador, as novas práticas empresariais nem sempre encontram o retorno esperado. Em artigo publicado no jornal Folha Catarinense, a profissional de Serviço Social Karin Costa aponta a ineficácia de alguns programas implantados, que esbarram na resistência explícita dos operários. Ela exemplifica sua afirmação com a tentativa de implementação, em uma empresa, do seguro de vida em grupo, que mereceu a recusa da maioria dos funcionários tendo como base motivos que iam do econômico - parte do valor seria descontado do já reduzido salário - aos mais idiossincráticos: (...) Além disto, os operários justificavam sua não adesão por motivos como: - "Não quero ter seguro. Se não tenho dinheiro agora, pra que preciso depois de morrer? Fazer seguro é só para a família brigar na repartição depois da gente morrer." - "Seguro?... eu não quero. Meu cunhado tinha e agora que morreu, minha irmã fica de carro para cima e para baixo, paquerando outros homens." habitante": SANT'ANNA, Denise Bernuzzi de. O prazer justificado: História e lazer (São Paulo, 1969/1979). São Paulo: Marco Zero, 1994. p. 56-79. 269 CUSTÓDIO, Marlene Silveira. Entrevista concedida a Valdete Daufemback Niehues. Joinville, 8 jun., 1999. Ex-assistente social na Fundição Tupy.

149

- "Seguro só quero se me pagarem a metade agora." Portanto, um programa que oneraria tanto a empresa como os operários, na realidade não correspondia a uma aspiração daqueles a que se destinava.270

Quais seriam, então, as reais aspirações dos operários? No mesmo artigo, a autora aponta algumas pistas na direção de uma resposta possível:

Essa dicotomía entre os interesses e necessidades do operário e os programas sociais existentes, levam-nos a concluir: 1-) É necessário que as empresas e instituições beneficentes reelaborem sua política social, tendo como base, no estabelecimento de suas prioridades, as necessidades fundamentais das pessoas; 2-) E importante abrir-se aos trabalhadores a possibilidade de participarem, direta ou indiretamente, na elaboração da política social da empresa, a fim de que os programas sociais a serem realizados tragam satisfação aqueles a quem se destinam.271

Em outras palavras: cabe unicamente à empresa buscar, num regime de parceria e baseada numa relação hierarquicamente menos rígida em sua aparência, a harmonia perdida. Deixar que o trabalhador fale e, principalmente, saber ouvi-lo. Uma escuta que não é inocente. Desde a Idade Média até as modernas teorias psicanalíticas do século XX, passando pelas pesquisas de opinião e pelas políticas de comunicação interna* de recursos humanos e de gerenciamento da qualidade total das organizações contemporâneas, o "falar de si" é uma prática não apenas consentida como estimulada. Perpassada por relações de poder, que se apropriam desses saberes a quem é consentida a expressão, essa produção discursiva permite que esses mesmos saberes se transformem em objeto de regulação.

Atender às reais aspirações dos trabalhadores

significa, na prática, integrá-los à lógica produtiva do trabalho, sustentada pela

270

COSTA, Karin. Os operários e suas aspirações. Folha Catarinense, Joinville, 3-9 jul. 1978, v. 2, n

47, p 2. 271

Id. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Trad, de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1990. p. 53-71. 272

150

distribuição e organização espacial, a administração e o controle do tempo e a docilização dos corpos e dos sentidos. E se a situação, dentro das empresas, exigia atenção e cuidado, não era diferente com o que ocorria fora delas. O problema habitacional mobiliza uma parte da imprensa, que chama seguidamente a atenção para os riscos sociais que se corre caso não se tomem providências urgentes: Acompanhando o desenvolvimento industrial brasileiro da última década, Joinville vem, também, pagando elevado preço por sua posição de liderança. Nossas empresas, em contínuo processo de expansão até dois anos atrás, não apenas fizeram com que a migração para Joinville se acelerasse, como ainda foram buscar mão-de-obra em outras cidades do Estado, num trabalho de captação de novos operários que chegou a merecer projetos especiais destas mesmas empresas a fim de que seus cronogramas de expansão não fossem afetados pela carência da mão-de-obra. Trazidos às centenas para Joinville, somando-se aos milhares de outros que migraram de livre e espontânea vontade, nosso município pulou de uma taxa - já elevadíssima de 7,8% ao ano para cerca de 10%, com o que, a cidade explodiu, urbana e socialmente. (...) Com emprego, mas sem habitação, os novos munícipes foram se instalando desordenadamente, ocupando áreas impróprias em termos urbanísticos, e invadindo terras de empresas, a exemplo da Fundição Tupy, como ainda povoando terrenos particulares e terras da própria Prefeitura Municipal.(...)273

Exposto em números, o problema aparece em toda a sua frieza matemática e desumana: em 1972, o déficit habitacional era de cinco mil casas. Em 1975, o número chegava a 10 mil e, no momento em que o Extra redigia seu editorial, ele era de 15 mil residências. O futuro, segundo o mesmo editorial, é o "colapso": "Como será muito difícil deter o crescimento de nossas empresas, (...) Joinville verá surgir, repentina e avassaladoramente, vários núcleos de favelas, saída natural do povo, sempre que a sociedade não consegue lhe proporcionar as condições mínimas de vida".274

273

DÉFICIT habitacional em Joinville: 15 mil casas. Extra, Joinville, 27-30 maio 1978, v.l, n. 13, p.

274

Id, p. 16

16.

151

Apesar da conclusão, se não crítica, pelo menos solidária, o texto não aborda outra questão fundamentai, relacionada intrínsecamente ao desenvolvimento industrial de Joinville. Trata-se, com o perdão da simplificação, de uma política gestada pelo menos desde os anos 60, e que visava garantir ao máximo a fixação de uma mão-deobra farta e barata no perímetro urbano. Uma ação, diga-se de passagem, que não era privilégio da burguesia joinvilense, mas parte de uma estratégia nacional: a espoliação do trabalhador do campo deveria provocar, a curto e médio prazos, sua transferência para as cidades, com vistas a suprir as demandas da indústria. E se, num primeiro momento, são as próprias empresas as responsáveis por garantir o alojamento dos novos operários, essa responsabilidade é, posteriormente, transferida ao poder público que, por sua vez, deve assegurar a entrada desses novos "munícipes" à lógica do capital. Em outras palavras: morar deixa de ser uma questão social para se transformar numa relação de mercado. Quem trabalha, e ganha com o seu trabalho, deve garantir suas condições de habitação. Com os baixos salários, a alternativa é fixar-se, na melhor das hipóteses, em regiões periféricas, arrematadas a priori por imobiliárias e construtoras, que as revendem por preços aparentemente irrisórios, mas lucrativamente superiores aos originais. A diferença provém da intervenção da prefeitura, "urbanizando" os lotes populares com o mínimo necessário a garantir a sua valorização no mercado imobiliário. E se o salário não garante a casa? A saída é a ocupação de "áreas impróprias em termos urbanísticos", e a invasão de "terras de empresas, a exemplo da Fundição Tupy, como ainda povoando terrenos particulares e terras da própria Prefeitura Municipal". E aqui, como no que foi descrito acima, prevalece a especulação: como não é possível expulsar os "invasores", o jeito é

152

incorporar a área "invadida" às políticas urbanas, aterrando, instalando meia dúzia de postes de energia elétrica e ofertando uma linha de ônibus, precária, mas necessária ao trajeto rotineiro casa-trabalho-casa. Urbanizados, os lotes "invadidos" serão objetos de negociação entre seus proprietários - a prefeitura, empresas, pessoas físicas, etc. - e os 275

moradores, que irão pagá-los em suaves prestações... pelo resto de suas vidas! Em meio a esse contexto, qual o papel dos planos de Urbanismo Básico e o Diretor? Eles têm a função de disciplinar esse crescimento, assegurando do ponto de vista espacial (mas não só) a segmentação da cidade - o tal "zoneamento" do Plano Diretor. Cabe a ele, em linhas gerais, apontar as grandes diretrizes da política de desenvolvimento urbano, reservando no mapa da cidade os lugares propícios ao trabalho, ao lazer e à moradia. Ele permite, pelo menos em tese, planejar e delimitar quem ocupa qual lugar e estabelecer os investimentos necessários em infra-estrutura dessa ou daquela região. Desnecessário que nos alonguemos mais. Basta dizer que em Joinville, a exemplo de inúmeros outros municípios brasileiros, a existência do Plano Diretor não garantiu, a uma significativa maioria da população, o acesso aos serviços urbanos. E que a favela, mais que uma "saída natural do povo", foi parte do próprio processo histórico de urbanização e industrialização da cidade. O principal problema, no entanto, é que a favelização é uma via de mão dupla. Se, num primeiro momento, ela é uma alternativa necessária e econômica para abrigar os migrantes que chegam à cidade para trabalhar nas suas indústrias, o aumento da 275

Estamos falando de Joinville, mas poderíamos, em alguns aspectos, estar falando de muitas outras cidades brasileiras. Por isso, as discussões desse parágrafo são pautadas no trabalho do sociólogo Lúcio Kowarick que, ao analisar o processo de favelização de São Paulo, aponta para práticas que foram também habituais na "política de urbanização" de Joinville. Ver: KOWARICK, Lúcio. A espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p. 29-97. Também interessantes são algumas das reflexões de Vilmar Vidor sobre os

153

periferia traz conseqüências que escapam ao desejado controle. Do ponto de vista das elites, a pobreza que habita as favelas não é apenas sinônimo de miséria: ela traz a insegurança, a violência, o medo. E, evidentemente, os costumes perniciosos desses ambientes degredados agem como um vírus, atingindo mesmo aquele trabalhador mais honesto. Na tentativa de separar, minimamente, o joio do trigo, o poder público é novamente chamado a dar a sua palavra, e o discurso do prefeito Luiz Henrique aos membros da Associação Comercial e Industrial de Joinville é rico em seu significado:

O velho provérbio chinês diz que crise tem dois sinônimos: problema e alternativa. Em Joinville, como numa grande parcela das cidades grandes e médias brasileiras, começamos a viver o fenômeno da 'crise urbana', fruto de um crescimento explosivo, determinado pela expansão industrial e pela migração. (...) (...) Se procurarmos uma análise dos principais problemas de Joinville, poderíamos citar: a-) habitação; b-) saneamento; c-) assistência hospitalar; d-) assistência ao menor carente; e-) ensino de primeiro grau; f-) melhoria do sistema de transporte urbano; g-) áreas de lazer. (...) A urbanização acelerada traz, em seu bojo, uma série de problemas. Estes são os que nos parecem mais agudos e que trarão, se equacionados, sensíveis melhorias no padrão de vida da população. (...) Joinville é uma cidade que se distingue, hoje, pelo desnível entre o centro e a periferia. Cidade industrial que o é sofre pelas carências de que padecem os trabalhadores que habitam regiões periféricas sem habitações dignas, sem água, sem luz, sem infraestrutura. Atender a periferia é imperativo de justiça social. Mas, é uma forma de melhorar o desempenho econômico de nosso parque industrial, aumentando a produtividade e eliminando os desequilíbrios que geram os conflitos sociais. Um homem que mora no mangue, sem água, sem luz, enfrentando todas as dificuldades não pode ter disposição maior para trabalhar e produzir. É. pois, preciso assisti-lo. (. . .)276

Evitemos o risco de cairmos no óbvio: o discurso do prefeito fala por si só e dispensa maiores interpretações. Especialmente se levarmos em conta o ambiente em que ele foi proferido. A prefeitura, aliás, não era a única preocupada com os "desequilíbrios que geram os conflitos sociais". Atenta às necessidades de elaboração

processos de urbanização e industrialização em Santa Catarina, cf.: VIDOR, Vilmar. Indústria e urbanização no Nordeste de Santa Catarina. Blumenau: Editora da Furb, 1995, p. 61-60, 167-174.

154

de novas estratégias diante das mudanças no cenário urbano das últimas duas décadas está a própria ACIJ. E não é para menos. Além dos conflitos internos à cidade, a "abertura lenta, gradual e segura" promovida no final dos anos 70 dá vazão a uma espécie de "retorno do reprimido" na esfera política. E ainda em pleno regime militar, o Brasil vê surgir, na região do ABC paulista, um sindicalismo - e com ele, novos líderes sindicais - que tem por base uma prática política radical, resgatando em certa medida algumas das experiências operárias anteriores ao golpe de 64. Ao mesmo tempo, colocava por terra também uma imagem

de sindicato fundada no

assistencialismo e no atrelamento ao Estado, que se institucionalizou pelo menos desde o final da década de 30 e que atravessou boa parte da história do movimento operário no Brasil durante o século XX. Este contexto talvez explique, mesmo que parcialmente, a publicação da "Carta de Princípios da ACIJ", onde a entidade procura expor à comunidade o que considera ser suas responsabilidades sociais e que extrapolam o espaço fabril e a atividade empresarial. As razões são as mais nobres:

Dotado do preparo e da visão global da realidade, deve partir sempre que possível para uma ofensiva de diálogo, orientando causas e pessoas no caminho construtivo, ciente de que se as pessoas de bem não ajudarem a construir, sob bases sadias e justas, a sociedade em que 276

LUIZ Henrique na Acij: "Vivemos o fenômeno da crise urbana". Extra, Joinville, 6-13 de outubro de 1979, v. 2, n. 114, pp. 14-15. Grifos meus. 277 Não é intenção desse projeto fazer uma história do sindicalismo em Joinville - e muito menos dos sindicatos. Ainda assim, por serem comumente entendidos como um espaço de resistência à ordem do trabalho, é importante registrar aqui a constituição dos dois maiores sindicatos de Joinville - Mecânicos e Metalúrgicos que, em 1970, foram reconhecidos, por unanimidade dos vereadores, como entidades de utilidade pública. Uma breve leitura de seus estatutos nos aponta alguns indícios de sua prática - bem como de sua aceitação e integração pelo poder público. No Capítulo I, artigo 4o de seus estatutos, descobrimos que são condições fundamentais para o funcionamento das entidades: "a-) observância rigorosa das leis e princípios da moral e compreensão dos deveres cívicos; b-) abstenção de qualquer propaganda de doutrina incompatível com as instituições nacionais". É necessário lembrar que estamos em 1970 - e, portanto, em plena vigência do AI-5? Talvez, "cidade industrial que o é", nas palavras do prefeito Luiz Henrique, o que a ACIJ temesse fosse a "contaminação" dos sindicatos joinvilenses pelas práticas e discursos dos sindicalistas do ABC paulista.

155

querem viver, o seu lugar será tomado por outros, certamente menos capazes, senão demagogos e aventureiros. Cumpre aos homens de bem revestirem-se de coragem para confrontarem a sua posição com a dos vilões, sob pena de serem mandados por estes.278

Não é preciso alongar-se muito para descobrirmos quem são estes homens de bem: "A consciência do trabalho honesto, patriótico e ético, não pode ser privilégio maior de qualquer outra classe, senão do próprio empresário". A partir daí, parte da carta é dedicada a reafirmar de forma enfática o apoio irrestrito da entidade ao livre mercado e a criticar a política econômica do governo Geisel,

considerada

excessivamente centralizadora. Até que, finalmente, o texto começa a revelar-se mais que uma vulgarização dos ideais liberais da ACIJ:

Adágio popular consagra que "pior cego é aquele que não quer ver" e, quando assim acontece, tenham todos como classe unidade que pensa e age pelo melhor, a atitude de segregar e neutralizar idéias espúrias que confrontam com o objetivo de manter a paz social no meio em que atuamos. Não podem os homens da empresa, sozinhos, mudar o mundo, mas podem e devem influir positivamente na opinião pública a seu redor, fazendo com que esta não seja formada à revelia e contrária aos seus ideais construtivos.(...).279

Admitindo a existência de "desníveis sociais", os dirigentes da entidade aconselham:

Capacitem-se os empresários a avaliar devidamente a realidade conjuntural e social, buscando sempre, dentro de suas empresas e fora delas, encurtar distâncias nos desníveis sociais existentes, oferecendo sobretudo, mais e melhores empregos, como único caminho ao seu alcance para contornar a situação de pobreza.280

O melhor, no entanto, ainda estava por vir. Feita a introdução, é hora de deixar de lado os subterfugios e explicitar suas intenções. E o que segue é um verdadeiro 278 279

CARTA de Princípios da ACIJ. Extra, Joinville, 15-17 nov., 1978, v. 1, n. 61, p. 5. Id.

156

"manual de boas maneiras", que visa não apenas ser uma resposta ao quadro de crises e conflitos presente em Joinville e no país, mas principalmente preparar a classe empresarial a enfrentar a agitação e a resistência operária - e, se possível, evitá-las:

E em hipótese alguma, aceitem pacificamente sejam os operários jogados contra seus empregadores, sob o pretexto de dificuldades existentes, seja de infra-estrutura comunitária ou do baixo poder aquisitivo (...) Tenham a sensibilidade e a iniciativa de aumentar o poder aquisitivo dos assalariados, buscando pelo treinamento e pela qualificação da mão-de-obra uma crescente produtividade com a preocupação de aumentar o poder aquisitivo. Levem a seus empregados a esperança e a certeza de uma participação mais efetiva no desenvolvimento da economia nacional. (...) Não quer o empresariado esteja o empregado envenenado, contra o empregador em qualquer das empresas (...), porquanto o verdadeiro espírito do empresário é o de considerar o empregado não como uma peça anônima da engrenagem ou um simples número, mas um valioso e verdadeiro colaborador de sua empresa. Valorizando o empregado ordeiro e confiante ante o frustrado ou revoltado, é válida a presença do mais humilde dos colaboradores, dentro de um autêntico espírito de participação. Assim, irmanados, empregados e empresários, construirão maior progresso do país, mantendo o desenvolvimento harmônico e integrado das empresas em benefício recíproco e em prol do crescente bem-estar de toda a comunidade.281

O desfecho do documento denota a preocupação central da Associação ao tornar público seus "princípios". É preciso, num momento de fragilidade e instabilidade, em que o projeto modernizador apresenta sua face instável, buscar uma "pacificação" capaz de minimizar os riscos de rupturas, "valorizando o empregado ordeiro e confiante ante o frustrado ou revoltado". Se cabe aos empresários ser a vanguarda na tentativa de concretização da utopia de uma cidade ideal, é do interior das fábricas que devem emanar os princípios e as ações que servirão de modelo ao "crescente bem-estar de toda a comunidade". A estratégia é integrar tudo e todos,

280 281

id. Id.

157

garantindo e mantendo o "desenvolvimento harmônico". As intenções empresariais, no entanto, não se realizarão por completo. Alguma coisa já estava fora da ordem.

3.3A TRADIÇÃO COMO FRONTEIRA OU A PARADA DO VELHO NOVO

Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. A parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. Álvaro de Campos

A migração verificada nos anos 70 não traz apenas problemas de ordem social. Ela abre como que uma "ferida narcísica" em uma cidade que até então se orgulhava de sua colonização e cultura germânicas. Agora, era preciso lidar com esse personagem

que,

embora

necessário

à

continuidade

do

progresso

e

do

desenvolvimento, era avesso e estranho aos seus costumes e ao seu cotidiano. Ao mesmo tempo próximo e distante, o migrante traz em sua bagagem a esperança de ser aceito pela nova comunidade.

Mas, entre seus pertences de viagem, há um que

escapa às suas próprias intenções: o elemento diferencial. Seu desejo de integração ao novo espaço não elimina - pelo contrário, acentua - seu caráter de estrangeiro. E se, de um lado, era forçoso conviver com ele e aceitá-lo como parte integrante do grupo, por outro sua origem e cultura diversas o colocavam de fora. Forasteiro e marginal, o migrante transita nessa linha tênue a que chamamos "fronteira". Sua presença é motivo 282

A tensão "proximidade X distância" é discutida por Georg Simmel, para quem "os estrangeiros não são realmente concebidos como indivíduos, mas como estranhos de um tipo particular: o elemento de distância

158

de confronto e tensão, entre outras razões, porque explicita a fragilidade dos "sólidos valores culturais" que, supostamente, sustentam a comunidade e a constituem como tal. Em outros termos, a migração provoca uma ruptura em uma identidade que, fixa no tempo, oferece um certo grau de estabilidade e coesão aos joinvilenses principalmente àqueles descendentes de germânicos. Rompida a pretensa unidade, era preciso reconstruir a identidade, delimitar novos territórios - e novas fronteiras. As armas da história serão então mobilizadas para que se constitua no tempo, um tempo homogêneo e linear, o principal traço de diferenciação entre os nativos e os novos 283

habitantes: a tradição. As diferenças entre os costumes e os hábitos de uns e de outros são percebidas principalmente na forma como elas se manifestam em seu cotidiano. O articulista Dorval Schmidt parece ter percebido isso e descreve, em artigo publicado no Extra, como vivem os que moram na "outra margem" do Rio Cachoeira: (...) Vamos ao que interessa: à outra margem do Rio Cachoeira, Iríríu, Boa Vista, Guaxanduva, entre outros, estão do lado de lá. É uma comunidade independente de Joinville, sim independente não em termos territoriais, mas de costumes. Outro dia estivemos no Boa Vista, naquela ligação entre o Iririu, num barzinho, é claro, os costumes são bem diferentes dos nossos (nosso que eu feio aqui da zona azul), e pasmem. Nós outros acostumados a nossa cervejinha com "roll-mops", chegamos lá e encontramos uma cerveja com galinha. Mas não é só isso, o que me refiro é o bar, os costumes, a maneira de ir a venda, o sistema de vida é bem diferente daquele nosso (nosso, nós aqui do outro lado do Cachoeira). Joinville,

não é menos geral em relação a eles que o elemento de proximidade." SIMMEL, Georg. O estrangeiro. In.: MORAES FILHO, Evaristo de. Georg Simmel - Sociologia. São Paulo: Ática, 1983, p. 187. 283 Concordamos com Hobsbawm quando ele afirma que as tradições são invenções que visam assegurar e consolidar, por intermédio de práticas rituais e simbólicas, determinados valores e normas de comportamento. Em outras palavras, é uma tentativa de estruturar de maneira imutável e invariável alguns aspectos da vida social, construindo um passado que se repeteritualisticamente como forma de foijar tanto uma pretensa coesão social, quanto a legitimação das instituições, posições e relações de autoridade. Cf.: HOBSBAWM Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Trad, de Celina Cardim Cavalcante. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 9-23.

159

com dois eles que faço questão frizar, não é mais nossa, mas sim de todo o povo desse imenso estado que se chama Santa Catarina.(,..)284

E se outros são os tipos que habitam as ruas, parece sensato afirmar que Joinville não é mais uma "cidade alemã". A constatação dessa mudança está impressa nas páginas dos jornais. Em sua coluna no Extra, o jornalista lido Campello, ele mesmo um migrante, constata o novo perfil populacional da cidade, exigindo por parte da prefeitura maior atenção ao fenômeno migratório.

A explosão demográfica verificada em Joinville nos últimos cinco anos, em função do extraordinário desenvolvimento de seu Parque Industrial, ainda não foi devidamente encarada, e talvez nem aceita em toda sua plenitude, principalmente pelos chamados "homens públicos". (...) A verdade é que nos últimos cinco anos a população de Joinville praticamente dobrou, de forma muito especial em virtude da migração. (...) Na fila do ônibus, na rodinha de mesa de bar, nas salas de aula, nos corredores do INPS, em todo lugar onde houve uma pequena ou grande concentração humana, predominará, via de regra, por incrível que pareça, a presença do não joinvilense, como maioria.285

A constatação, no entanto, se faz acompanhar de uma preocupação. Com o crescimento rápido e desordenado, Joinville viu aumentar "rapidamente problemas sociais como o da habitação, segurança, etc." Trata-se, portanto, de encarar essa nova realidade, reconhecendo os aspectos positivos da migração - tais como a oferta de mão-de-obra - , convivendo com a "série de modificações nos comportamentos da coletividade", e desenvolvendo iniciativas públicas que garantam ao migrante "um tratamento capaz de fazê-lo amar Joinville, como se fosse real e definitivamente sua nova cidade".

284

SCHMIDT, Dorval. Joinville às margens do Rio Cachoeira. Extra, Joinville, 9-12 set., 1978, v.l, n.

285

CAMPELLO, lido. Cotidiano. Extra, Joinville, 9-17 mar., 1978, v.l, n. 1, p. 7.

43. p. 9.

160

A postura de lido expressa, de certa maneira, a relação que se estabelece entre joinvilenses e migrantes. Grosso modo, a migração é vista como necessária, face ao acelerado desenvolvimento industrial da cidade. Por outro lado, ela representa também um fator de instabilidade, pela descaracterização que provoca nos hábitos e costumes locais. E é contra essa ameaça que é preciso se defender. Uma das estratégias adotadas foi buscar a incorporação daquele que representava o elemento desestabilizador. E incorporar o migrante significava situá-lo em uma prática discursiva que ressalta os valores intrínsecos à sua nova morada. Era preciso identificá-lo com a ordem que se pretendia construir e manter, integrando-o "de cima" e eliminando o que, em suas especificidades de "estrangeiro", podia significar perigo. Os dispositivos étnicos teuto-brasileiros são acionados para garantir essa identificação. A etnicidade surge como um discurso legitimador de uma pretensa ordem que se quer imutável. Sua origem e desenvolvimento podem ser encontrados - e resgatados - no interior de uma história toda ela construída para que, pelo passado, se atribua um significado ao presente, este sendo depositário dos valores e crenças daquele. Repete-se de certa forma, em relação ao migrante, o roteiro dos discursos do centenário, mais de duas décadas antes. Mas há algumas diferenças. 2 86

O primeiro passo é forjar esse passado como "tradição".

Elemento de coesão

e unidade, a referência a uma história e a uma memória comuns aos joinvilenses se dará por um processo de identificação automática aos primeiros imigrantes, aqueles que ousaram construir, em meio às adversidades e em um solo selvagem e primitivo, o signo do progresso. A imprensa será um dos veículos privilegiados de veiculação e

161

reprodução desse discurso, que é um discurso sobre a história - embora não, necessariamente, um discurso histórico. E se nós já mostramos como, mesmo historiadores críticos, munidos de suas defesas conceituais, se deixaram cair na armadilha da "identidade étnica", não é difícil imaginar seu poder de sedução e convencimento junto àqueles que, preocupados com as vicissitudes da vida cotidiana, pouco tempo dispõem para as misérias da teoria. Não é casual, portanto, que seja no aniversário de Joinville que as páginas dos jornais reafirmem, efusivamente, as suas origens, prestando homenagens aos heróis do passado - anônimos ou não. Personagens de uma memória consolidada a posteriori, eles representam e personificam a imagem que a cidade tem de si, e que se pretende também seja a sua imagem para o outro. Seu esforço, sua disciplina, seu trabalho e, principalmente, sua crença no futuro, devem servir de exemplo e molde às gerações do presente. Ilustrativo, nesse sentido, é o anúncio publicado pela Câmara de Vereadores durante as comemorações do 127° aniversário da cidade:

São 127 anos de profícua existência. Por isso esta data se reveste de invulgar significado. Rememoramos com orgulho a fé inquebrantável daquele pugilo de colonizadores alemães, noruegueses e suíços que, por sua tenacidade, seu acendrado amor ao trabalho, sua luta diutuma contra a agressividade do meio, jamais se deixou abater. Pelo contrário, do pantanal originário fez nascer uma cidade florescente, com sua altivez, fez do domínio da terra ponto de honra, jamais desmerecido. Hoje, com indisfarçável vaidade, olhamos para a "Cidade dos Príncipes", da "Manchester Catarinense" e de tantos outros cognomes e ao mesmo tempo em que reverenciamos a memória daqueles imigrantes e lhe rendemos o nosso preito de gratidão, concitamos a todos que aqui nasceram para que, motivados pelo exemplo, não poupem esforços no sentido de fazer com que o surto de desenvolvimento então iniciado, prossiga em ritmo sempre mais acelerado, para audio nosso e grandeza de Santa Catarina e do Brasil.287

286

HOB SB AWM, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições..., p. 9-23.

162

E se aqui se trata de um anuncio feito publicar pelos representantes do legislativo municipal, talvez seja interessante observar as similaridades com o editorial publicado pelo mesmo jornal que o veiculou.

Joinville comemora hoje, festivamente, seus 127 anos de fundação. Como fruto do trabalho incansável e perseverante de seus filhos, que herdaram de seus ancestrais o espírito indómito de luta e de idealismo que constrói a grandeza de uma pátria, Joinville assume hoje as características de uma metrópole que vive em função do esforço, da capacidade criativa e da inteligência de todos quantos aqui desenvolvem seu trabalho e construtivo, tanto nas indústrias, como no comércio ou na vida administrativa da cidade. Eis que no dia de hoje, a data de 9 de março representa para o povo joinvilense, evento histórico que evoca todo um episódio heróico dos bravos imigrantes que aqui lançaram a semente do progresso que desfrutamos.288

A recorrência, em ambos, às "sementes do progresso" lançadas pelos primeiros imigrantes, não nos parece mera coincidência. Eles recorrem às imagens do passado para fixá-las, no imaginário da cidade, como uma tradição que não apenas está na sua origem, mas que lhe atribui um sentido, uma direção - e que, portanto, precisa ser respeitada e preservada. É essa mesma tradição que será mobilizada como recurso de diferenciação entre joinvilenses e migrantes. Ela faz mais que garantir, aos primeiros, identidade e coesão. Produzido no interior de relações de poder, trata-se também de um discurso que estabelece padrões adotados como critérios para a inclusão dos forasteiros à comunidade. Uma inclusão que será determinada pelo que legitima a autoridade moral dos joinvilenses, os "estabelecidos", frente aos migrantes - os •

*

"outsiders": sua origem e sua história.

289

A gestão do prefeito Luiz Henrique (1978-

1982), do então MDB, faz desse jogo de tensões e de força seu lema: "o povo 281

FOLHA Catarinense, Joinville, 9-19 mar., 1978, v.l, n. 31, p. 3. Ibid., p.l 289 ELIAS, Norbert ; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Trad, de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. p. 19-50 e p. 165-85. 288

163

governa". Em anúncio publicado no jornal Folha Catarinense, a administração procura reconhecer a heterogeneidade populacional da cidade. Nada mais coerente que entender, por "povo", também os milhares de "adotivos" que vieram para Joinville a partir da década de 60. Mas se é o "povo que governa" e este abriga diferentes etnias, cores, tons de pele, tradições e culturas, todas elas já souberam absorver o espírito local e suas oportunidades, herança principal dos primeiros colonizadores. E se, a princípio, o texto sugere reconhecer a diferença, ele traz em seu interior a negação desta, ao reafirmar um caráter constitutivo do "povo joinvilense", como se uma característica comum e fundadora o tornasse uma comunidade una e coesa:

E assim começou a ser vivida a história dos 127 anos de Joinville. E desde então, muitas coisas se passaram. Vieram colonizadores alemães, suíços, noruegueses, açorianos, africanos, italianos e muitos outros povos para ajudarem a fazer Joinville parte eloqüente da grandeza do Brasil. Agora, estão vindo os paranaenses, paulistas, gaúchos, cariocas, mineiros e até mesmo nordestinos. Desde cedo, todos sentiram as grandes possibilidades que Joinville oferecia. Todas elas se confirmaram, e hoje, mais do que nunca, se confirmam. Joinville, 127 anos de um povo trabalhador, alegre e feliz. 290

Um duplo estigma se instaura: de um lado, o migrante - e em especial o paranaense - passa a ser apontado como o principal responsável pelo aumento da delinqüência e dos índices de criminalidade e violência. Trata-se de uma "gentalha maltrapilha que, de saco às costas, campeia por aí, à procura do óbulo fácil",291 para lembrarmos das palavras de Charles Weber, publicadas dez anos antes, quando a migração apenas começava. Nas páginas policiais, a acusação é subliminar: trata-se de,

290 291

FOLHA Catarinense, Joinville, 9-19 mar., 1978, v.l, n.31, p. 2. WEBER, Charles. Nosso comentário. A Noticia, Joinville, 14 dejan, de 1967, v. 64, a 10.001, p. 3.

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a título de informação, noticiar a procedência do meliante, do punguista, do batedor de carteiras, da prostituta, do traficante, etc.292 Mesmo os analistas "sérios'" não escapam à tentação. Em artigo onde reflete sobre a violência nas cidades modernas, o psiquiatra Rui Arsego afirma que, dos municípios catarinenses, Joinville é o que apresenta o quadro mais delicado, convivendo com os mais variados tipos de crimes. E, diz ele, a situação tende a piorar em função do grande número de "forasteiros" que chegam diariamente à cidade.293 Mas há um outro modo, mais sutil, de estigmatizar, atribuindo a uma parcela da migração uma positividade que a coloca em "pé de igualdade" com os joinvilenses. Esse valor positivo, no entanto, não é conferido pela "imagem do outro", mas pela "imagem-nós" projetada sobre ele, desde o momento em que esse percebeu "as grandes possibilidades que Joinville oferecia" e decidiu internalizar aquilo que, afinal, se esperava dele: os valores normativos que constituem a identidade e o habitus do "povo trabalhador, alegre e feliz".294 Uma estratégia inconsciente de sobrevivência ou, tão e simplesmente, uma adesão voluntária, por parte desses migrantes, que traduz uma tentativa de aceitação e desestigmatização? Acreditamos que nenhuma das duas alternativas seja a correta. Uma resposta possível é aquela de lido Campello, em seu artigo já citado: a de que, junto com os "problemas sociais", o migrante trouxe para Joinville, além da "necessária mão-de-obra", "uma série de modificações no

292

Não há, aqui, espaço para os inúmeros exemplos possíveis da linha editorial adotada pelos veículos de comunicação às matérias de polícia. Basta citar que, ao longo da década de 70, os principais jornais da cidade - A Notícia, Extra e Folha Catarinense - passaram a contar com uma página para os registros e reportagens policiais, antes praticamente escondidos em colunas pouco significativas do ponto de vista editorial, e sem paginação fixa. Para uma discussão mais detalhada, ver o capítulo IV, "Uma cidade em angústia". 293 ARSEGO, Rui. O homem, a sociedade e sua violência. A Notícia, Joinville, 29 ago., 1980, v. 57, n. 14.023. p. 5.

165

comportamento da coletividade. Modificações que vão desde a linguagem até os costumes mais simples e corriqueiros".295 Integrar-se à cidade e, ao mesmo tempo, imprimir nela seus traços, talvez tenha sido uma forma que alguns encontraram para tentar equilibrar o jogo de forças entre "estabelecidos" e "outsiders". Porque, se o poder é operacional, microfísico, pode-se dizer o mesmo das transgressões e das resistências.

294

ELIAS, Norbert. Os alemães: a luta pelo podèr e a evolução do habitas nos séculos XIX e XX. Trad, de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 129-145. 295 CAMPELLO, Udo. Cotidiano. Extra, Joinville, 9-17 mar., 1978, v. 1, a 1, p.7.

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APÊNDICE - UM BALCÃO DE GRANDES NOVIDADES

Não é mais o homem que faz marchar a máquina, é a máquina que faz marchar o homem. Michelet

Em março de 1958, como parte das comemorações do seu centenário, a Sociedade Ginástica de Joinville sedia a I a Feira de Amostras de Joinville. Na imprensa, o evento repercute muito pouco e merece apenas uma menção em "A Notícia":

(...) Ponto alto nas iniciativas ligadas às festividades centenárias é sem dúvida a Feira de Amostras, inaugurada ontem. Localizada no espaço reservado ao futuro e amplíssimo salão de festas da Sociedade Ginástica, a Feira de Amostras constituiu uma síntese brilhante e impressionante do que Joinville pode produzir no campo industrial. E a Feira-Industrial um espetáculo digno de se ver e que deve causar orgulho a todos os joinvilenses.296

E se na sua primeira edição a Feira parece não ter seduzido a redação do principal jornal da cidade, a repercussão seria outra dois anos depois:

Nas dependências da Sociedade Ginástica, à rua dos Ginásticos, terá logar (sic) hoje, às 17 horas, a cerimônia de inauguração da 2a Feira de Amostras de Joinville. Com a participação de algumas dezenas de firmas do Município, o importante certame trará ao conhecimento do público tudo o que produz o parque industrial de Joinville, numa demonstração eloquente do progresso que temos alcançado nesse campo de atividades. O zelo e o bom gosto que presidiram a organização da Feira, na montagem dos stands e decoração das vitrines, assim como do recinto em geral, permitem ao visitante uma visão panorâmica e em detalhes bastante impressionantes daquilo que de mais importante realiza o parque fabril.297

296

DECORREU brilhantíssimo o primeiro dia de festejos do centenário da Sociedade Ginástica. A Notícia, Joinville, 9 mar. 1958, v.36, n. 7588, p. 12. 291 INAUGURA hoje a 2a Feira de Amostras de Joinville. A Notícia, Joinville, nov., 1960, v. 38, n. 8175, p. 1.

167

O entusiasmo, no entanto, já vinha de muito antes. Em março, o mesmo jornal informa aos leitores que "mais de 50 firmas já reservaram seus espaços" no evento. Desta vez, parece, a organização não poupou esforços no intuito de divulgar o "importante certame". Segundo o jornal, "um vasto plano de propaganda, através da imprensa e do rádio, em Joinville, em Santa Catarina e em todos os grandes Estados, através da distribuição de cartazes, folhetos e outros meios de propaganda" estava em andamento. A intenção era atrair a Joinville um grande número de visitantes, "ainda mais porque a Exposição coincidirá com a tradicional Exposição de Flores e Arte".298 Ôs resultados, pelo menos do ponto de vista de A Noticia, não poderiam ser melhores. Em seu discurso de inauguração, o Promotor Público da 2 a Vara da Comarca de Joinville, Adhemar Guilhon Gonzaga, parabeniza a cidade "pelo que vai apresentar de grande e majestoso", e não perde a oportunidade de tecer loas às gerações primeiras que iniciaram a "ascensão social e econômica" do município:

Povoado, na sua maioria, por imigrantes europeus de mentalidade adiantada, aliou a agricultura a indústria, ainda na fase do desbravamento da terra (. . .) Confraternizando com os pioneiros do progresso, as posteriores gerações de brasileiros e todos aqueles que vieram para este rincão empregaram e empregam a sua energia e a sua inteligência numa colaboração eficiente e patriótica.1^

A cobertura do jornal prossegue até o final da feira, invertendo-se as prioridades de dois anos antes, quando a exposição de flores fez sombra à I a Feira de Amostras. Dessa vez, elas foram um atrativo secundário. A beleza das máquinas e dos

É grande o entusiasmo dos industriais dc Joinville pela T Feira de Amostras. A Noticia, Joinville, 01 mar., 1960, v. 38, n. 7968, p. 1. 199 DEMONSTRAÇÃO da ptpnça e do valor da nossa indústria. A Noticia. Joinville, 12 nov. 1960, v. 38. r.. 8176. p. 1

168

produtos que elas diariamente despejavam de seus interiores era o principal espetáculo. As "realizações múltiplas da indústria local" enchem os olhos de admiração de todos os visitantes, joinvilenses ou não: "Joinville demonstra que sob o aspecto material e econômico, é uma cidade realizada".300 E parece-nos ser essa, afinal, a principal razão de ser da Feira de Amostras: a de fixar, entre os visitantes, a "pujança e valor" da indústria joinvilense e, como desdobramento direto, a imagem de uma cidade moderna e progressista. Com os pés fincados no presente, o olhar altivo mirando o futuro, mas preservando uma relação de reverência e respeito com o passado. O incômodo silêncio de A Notícia sobre os trabalhadores que, afinal, produziram a variedade de produtos em exposição, é revelador: ao excluir o homem, os discursos sobre a Feira de Amostras apontam para uma perigosa identificação entre este e a máquina, como se e sobre isso já nos falavam os socialistas do século XIX - aquele fosse apenas uma extensão desta. Perversa inversão: pela identificação, a máquina se humaniza ao mesmo tempo em que o homem se coisifica. Mas não foi apenas "no seu magnífico conjunto quanto nos seus expressivos *

301

detalhes" que a feira conquistou a "admiração de seus milhares de visitantes". Porque, mais que simplesmente mostrar aos joinvilenses e "forasteiros" o grande balcão de novidades da indústria local, a feira foi a representação da própria idéia de modernidade que se estava a gestar. A simultaneidade na realização de uma feira industrial com a já tradicional Festa das Flores, além de "exposição de artes domésticas, de fotografias, de encadernações artísticas, de miniaturas animadas, e as 300

8178, p. 8.

VIEIRA, Eugenio Don. Em torno da Feira de Amostras. A Notícia, Joinville, 15 nov. 1960, v. 38, a

169

festas sociais", não apenas criam "um clima festivo e hospitaleiro".

302

Elas alimentam

a perspectiva de uma cidade onde a tecnologia perpassa e penetra as relações cotidianas, confundindo-se com elas e seus afazeres. Um "espetáculo digno de ser visto", que projeta a imagem, tanto da harmonia social do presente, quanto das possibilidades de realizações do futuro. E que é, num certo sentido, uma síntese possível da utopia de fazer de Joinville uma cidade do trabalho, da ordem e do progresso.303

301 POTENCIALIDADE e variedade da produção industrial de Joinville surpreendem e admiram. A Notícia, Joinville, 17 nov. 1960, v. 38, n. 8179, p. 1. 302 VIEIRA, Em torno da Feira..., p. 8 303 Devo as rápidas reflexões desse apêndice à leitura dos seguintes textos: PESAVENTO, Sandra Jatahy. O imaginário do progresso: as representações da máquina na exposição parisiense de 1855, e KUHLMANN JR., Moysés. As exposições universais e a utopia do controle social. Ambos em: BLAJ, llana; MONTEIRO, John M História & Utopias. São Paulo: ANPUH, 1996, p. 154-163 e 164-171, respectivamente.

170

4 UMA CIDADE EM ANGÚSTIA

Se, nos anos 60, a imprensa vê, entre maravilhada e perplexa, a passagem da "Joinville menina" para a "Joinville mulher", ao longo da década de 1970 os discursos são outros. Constatado e consolidado o crescimento, é preciso agora significar o cenário nascido com a modernidade. Uma gramática é construída para nominar esse novo universo: lazer, prazer, aventura, hedonismo; mas também individualismo, estranhamento, indiferença, multidão, insegurança, risco. A intenção desse capítulo é, inicialmente, pensar as diferentes maneiras de 1er não apenas o desenvolvimento urbano de Joinville, mas a modernização da cidade e suas representações. Interpretar como, pela produção dos discursos, os joinvilenses tentaram encontrar um meio de expressar o tremor e o temor - aquilo que era, ao mesmo tempo, desejo e angústia, e também a angústia do desejo. Na imprensa, aparecem ainda com relativa freqüência aqueles editoriais que reivindicam o Plano Diretor ou, depois de sua aprovação, sugerem reparos e melhorias. Num e noutro caso, permanece o binômio crescimento e disciplina, como em um dos editoriais de A Notícia: "Seria ideal se fosse possível de antemão e dentro de prazos certos, disciplinar o crescimento de uma cidade. Essa disciplina implicaria em estabelecer um equilíbrio continuado e regular entre a curva das novas necessidades, surgidas das mutações do desenvolvimento, e as soluções planejadas e executadas pelo homem".304 Cronistas, articulistas e, fora das páginas da imprensa, os literatos, parecem apreender outros aspectos dessa mudança. Em especial, aqueles

171

relacionados às sociabilidades e sensibilidades urbanas: grosso modo, são eles, especialmente, os responsáveis pelo novo léxico que tenta representar as mudanças ocorridas no cotidiano joinvilense. Mas, para além dos discursos, é a paisagem urbana que se transforma. Se tanto a "civilização" quanto a "barbárie" são elementos intrínsecos à modernidade, como queria Benjamin, elas compuseram também o cenário joinvilense, principalmente nos conturbados anos 70. Problemas "objetivos" -

aumento da periferia, déficit

habitacional, desemprego, deficiências na infra-estrutura urbana -

avolumam-se

juntamente com aqueles de caráter mais "subjetivo", principalmente a perda das referências. Uma identidade, tida até então como sólida, parece aos poucos se desmanchar no ar. A tradição e o trabalho, de que falávamos há pouco, serão acionados na tentativa de delimitar novas fronteiras. Fronteiras geográficas, mas também e, principalmente, simbólicas e morais. Trata-se de delimitar a partir do centro, aquilo que está às margens. Diferente do que ocorreu nos anos 60 quando, pensava-se, bastava a exclusão física pura e simples de mendigos e prostitutas, agora é preciso lidar com uma "ameaça" que escapa às soluções simples do poder público. Entre outras razões, porque uma das características desses novos tipos urbanos é a sua mobilidade. As fronteiras - as geográficas e as simbólicas - são tênues, como bem mostra a "invasão" das ruas e praças por mendigos e prostitutas. Era hora de (re)agir. E a segurança entra na ordem do dia. Assim, procuraremos discutir como a "escalada do crime" instaura o medo. A violência passa a fazer parte do cotidiano dos joinvilenses. Mais que simplesmente 304

CRESCIMENTO disciplinado. A Notícia, Joinville, 16 maio 1971, v.69, n. 11305, p. 1.

172

constatar e descrever o aumento no índice da criminalidade, pretendemos aqui pensar acerca do papel da imprensa na sua produção. Necessária para, se não criar, pelo menos aumentar o clima de pânico e de angústia, justificando assim discursos mais enfáticos que pedem por mais e mais segurança - e, por segurança, entenda-se um maior e melhor aparelhamento policial. Assim, ao mesmo tempo em que denuncia a violência, ela é um dos principais protagonistas na reivindicação de instrumentos capazes de defender a cidade e a sociedade. Essa reivindicação, que em alguns momentos sugere uma quase "militarização" do espaço urbano, é justificada nos discursos que essa mesma imprensa produz acerca da insegurança, do medo e do caos, produtos da violência e da criminalidade que devem ser contidos a qualquer custo. Mas a vigilância pretendida não é apenas física. O "olho do poder" é visível - o aumento no aparato policial, por exemplo - , mas é também discursivo. Ao mesmo tempo em que reivindica a segurança, a imprensa exerce ela própria seu papel de "polícia": ela denuncia, nomina, levanta suspeitas e delimita os territórios perigosos, tornando-os visíveis e acessíveis à ordem. E não se trata apenas daqueles discursos difusos, sem assinatura, produzidos no interior das redações. Editoriais, artigos e crônicas de colaboradores, representantes portanto de uma parte da comunidade joinvilense, marcam sua presença nas páginas dos jornais, cobrando e exigindo mais segurança - a exemplo do que, alguns anos antes, outros fizeram, mas naquela feita para enaltecer o progresso. Encerrando, enfim, a dissertação, a intenção é mostrar a falência do projeto de constituição de uma cidade capaz de, a um só tempo, assegurar o progresso e a harmonia. Às pretensões utópicas das elites, as heterotopias mostram, no cotidiano da

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cidade, a relatividade de toda pretensão à ordem - ou, pelo menos, de uma ordem realizada plena e integralmente. Se não se pode, por certo, falar em "caos absoluto", tão pouco se pode deixar seduzir pela imagem de uma "ordem absoluta". Trocando em miúdos: disciplinar a cidade não significa, necessariamente, torná-la disciplinada.

4.1 POÉTICA PARA UM PRESENTE IMPERFEITO

Quando você diz que vai acontecer 'agora' bem, exatamente quando você está querendo dizer? Veja, eu já esperei demais e toda minha esperança se foi. Morrissey

Os passeios de bicicleta já haviam se tornado, nos anos 70, parte integrante das comemorações do aniversário de Joinville, a ponto de ser quase inimaginável um 9 de março sem as centenas de ciclistas a circular pelas suas ruas centrais. Não por acaso: as "magrelas" foram, durante décadas, o meio de transporte por excelência dos joinvilenses, e não sem motivo, a cidade incluiu entre os seus epítetos, o de "Cidade das Bicicletas". Ainda assim, foi para muitos uma grata surpresa a quantidade de joinvilenses que participaram do passeio ciclístico daquele ano de 1976 - cerca de 10 mil pessoas, segundo A Notícia.305. É verdade que nem todos se surpreenderam. Caso do advogado e articulista Carlos Adauto Vieira, que não apenas não se deixou surpreender com a "revoada" de ciclistas, como arriscou uma explicação entre "sociológica" e "urbanística" para o fenômeno:

305

PASSEIO ciclístico. A Notícia, Joinville, 10 mar., 1976, v. 54, a 12759, p. 4.

174

Não me surpreendeu a participação em massa do joinvilense no passeio ciclístico. Surpreendeu, é verdade, o número de participantes, além do que honestamente, houvera calculado. E que tenho sentido o quanto o povo joinvilense gostaria de voltar às cabrinhas, como seu meio de transporte e locomoção, por três motivos ponderáveis: saúde, economia e tradição. Essa revoada de bicicletas do dia 9 pode e deve ter sido o impacto para que os poderes públicos se voltem com mais atenção e carinho para a solução do problema dos ciclistas joinvilenses que, de maneira geral, se resume na segurança enquanto pedalam. Pois o ciclista, como o trânsito está organizado, não tem qualquer segurança, ameaçado constantemente pelos automóveis de todos os tipos e tamanhos.306

No restante do texto, Carlos Adauto chama a atenção para o fato de que o tráfego joinvilense vem sendo todo ele organizado em função do automóvel, transformado "quase num Deus, especialmente pelo 'status'", e reivindica um maior cuidado para com os ciclistas, com a implementação da sinalização adequada e a criação de faixas de travessia. Tomadas essas precauções, quem sabe os joinvilenses pudessem voltar a circular pela cidade com suas "cabrinhas", cuidando de sua saúde, economizando seus cruzeiros e, claro, respeitando a tradição. Dois anos depois da crônica sobre as bicicletas, em sua coluna "Teclado sem censura", publicada no jornal Extra, o então articulista Apolinário Ternes exerce também seu direito a reminiscências e compara, ludicamente, a Joinville de ontem e a de hoje - e parece não deixar dúvidas que, entre as duas, seu coração prefere a primeira. O artigo, embora longo, merece ser reproduzido quase que integralmente:

Às vezes ponho meu cachimbo na boca e saio por aí, catando no mundo um bom assunto para confidenciar nesta minúscula Olivetti. Como se estrangeiro fosse, caminho por estas calçadas mal trapilhas de nossa cidade, investigando o povo, como se dele não fizesse parte. E nestes passeios, é que vou sentindo como Joinville já não é a menina de uns vinte anos atrás. (...) Andar na cidade, decididamente, era um prazer. Os poucos automóveis deslizavam calmamente, enquanto sempre se via gesto de cavalheirismo e boa educação. Os motoristas paravam seus reluzentes autos e indicavam com a mão, no tradicional gesto de fraternidade, que o pedestre atravessasse a rua.

306

12761, p. 4.

VIEIRA, Carlos Adauto. A revoada de bicicletas. A Notícia, Joinville,

12 mar. 1976, v. 54, n.

175

(...) A cidade se renova, assim como se renovam as pessoas, as coisas e as lojas. Não temos mais os ônibus do Abílio, não temos mais o Coreto na Praça do Correio e até o Correio de há muito se transferiu para a Avenida Brasil, que o povo conhece como a Avenida Beira-rio. (...) E assim, as coisas foram mudando. (...) Hoje tudo é diferente. Os carros correm pelas ruas e não respeitam ninguém. Ninguém tem mais conhecidos nas ruas e ninguém também cumprimenta mais ninguém. Todos andam com pressa, esbarram nos outros e não pedem desculpas. As balconistas das lojas são apenas balconistas. Antigamente era o proprietário que atendia. Sua mulher e seu filho mais velho. Enfim, Joinville agora virou cidade grande. Os jornais falam de poluição aqui e ali. Todo dia o trânsito mata alguém. Todo fim de semana é mais um montão de encrenca. Marido que bateu na mulher. Amante que esfaqueou a amásia. Ladrão que recebeu um balaço no corpo. Carro que capotou, homem que matou. Ninguém mais troca gibi na porta do cinema. O dono do cinema proibiu que se entre com saquinho de pipoca. O pipoqueiro também se mandou. Enfim, Joinville hoje é uma cidade que tá assim de gente com saudades dos velhos tempos. Fale com um ou com outro. Relembre os vinte anos atrás. A não ser que os seus amigos também se mandaram, ou aquela amizade não era tão sólida assim que o tempo apagou. Também tem disso. E como tem.307

Que há de comum entre os dois artigos além de serem, do ponto de vista cronológico, praticamente contemporâneos? Respeitadas as peculiaridades, parece-nos que em ambos perpassa um sentimento comum, mais explícito em Ternes, velado em Carlos Adauto: a nostalgia daqueles "velhos tempos", quando "andar na cidade, decididamente, era um prazer". Em outras palavras, ambos os artigos revelam um sentimento de desencanto frente ao fato de que, ao deixar de ser "menina" para se tornar "mulher", Joinville perdeu com a meninice sua inocência e pureza. As oportunidades, a beleza e o progresso caminham lado-a-lado com "um montão de encrenca". E se as ilusões estão todas perdidas, o que fica é o choque diante das contradições que o crescimento provoca.308 Dito de outra maneira, pedalar e andar pela

307

TERNES, Apolinário. Teclado sem censura. Extra, Joinville 16-18 ago. 1978, v. 1, n. 36, p. 5. A ponto de Carlos Adauto Vieira, em artigo publicado em 1973, colocar em questão o binômio necessidade/utilidade do crescimento urbano, que "só é válido, como manifestação de progresso, quando ordenado e com metas previamente traçadas a serem atingidas." A essa afirmação genérica acerca da validade do crescimento, o autor contrapõe uma série de implicações, extraídas do exemplo das grandes cidades, que parecem comprometer, na prática, a possibilidade de que aquele se dê forma ordenada e com "metas previamente traçadas". Sintomaticamente, ele aponta na desumanização o principal problema das grandes cidades, e sugere que, para evitar incorrer no mesmo erro, Joinville limite sua expansão: não mais que 150 mil habitantes, número que Carlos Adauto considera ideal porque permite, sob sua ótica, harmonizar o crescimento da cidade, sem que 308

176

cidade ganham, nos dois artigos, uma dimensão simbólica. Num certo sentido, eles representam aquela experiência do passado, cujo sentido foi esvaziado pelo "sempre novo" da modernidade, e que é preciso resgatar do esquecimento.309 E se voltamos ao tema da memória, é preciso dizer que, diferente daquela memória oficial, portadora de uma verdade e de um sentido para a história, erigida ao estatuto de "memória histórica",310 trata-se aqui de construir uma outra relação com o passado. A memória, o que chamamos de "nostalgia dos velhos tempos", cumpre em Carlos Adauto e Ternes a função de uma utopia: desencantados com o presente e, arriscamo-nos afirmar, com as promessas do futuro, os dois cronistas parecem vislumbrar na memória, e não mais na(s) utopia(s), "os lugares de realização histórica". Lugar de uma experiência empobrecida pela modernidade, a memória, ao atualizar o passado, reencontra pela lembrança o vivido, (re)cria o real e re-significa a experiência.311 Trocando em miúdos, é preciso renunciar ao presente para que ele se torne tolerável, num movimento de rememoração que busca, num passado idílicamente construido, a possibilidade de realização histórica daquele mesmo presente ao qual se renunciou. É o percurso inverso ao da utopia: rejeita-se um "futuro perfeito" em nome de um "pretérito mais que perfeito". Nietzsche dizia que não estava no seu tempo, porque julgava ter nascido póstumo.312 Nossos cronistas também não o estão, mas por

essa pague "o alto preço pelo seu gigantismo". VIEIRA, Carlos Adauto. O crescimento posto em questão. A Notícia, Joinville, 15 abr., 1973, v. 51, n. 11885, p. 2. 309 BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza In.: Magia e técnica, arte epolítica..., p. 114-119. 310 Ver o capítulo I dessa dissertação, "A comemoração e o olvido: a construção da memória histórica". 311 SEIXAS, Jacy Alves de. Percursos de memórias em terras de história: problemáticas atuais. Ia: BRESCIANI, Maria Stella ; NAXARA, Márcia (orgs.). Memória e (ressentimento - Indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Editora da Unicamp, 2001. p. 37-58. 312 NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo - Como tornar-se o que se é. In.: Obras incompletas Trad, de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 423. (Os Pensadores).

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um motivo diferente: é o ontem, não um amanhã improvável, vertiginoso, que eles buscam (re)encontrar. Sentimento que, aliás, não é exclusivo dos cronistas e articulistas de plantão. No mesmo ano em que Carlos Adauto discorria sobre a "revoada de bicicletas", um grupo de escritores e poetas locais lançava a revista literária Cordão. De vida efêmera, a revista durou três anos e seis números. Mas nesse curto espaço de tempo, sintetizou em suas páginas alguns dos sentimentos e impressões, no mais das vezes contraditórios, acerca das experiências vividas com a modernidade. Ainda que, vez por outra, aqueles sentimentos repetissem a tentativa de atualizar o passado e exorcizar o presente. Como é o caso do texto de Aldo Schmitz, publicado já no primeiro número. Sugestivo desde o título - "Joinville desjoinvilado" - , o texto, um híbrido de poesia em prosa, crônica e artigo, inicia falando de uma Joinville que é "espelho quebrado": "(...) uma Joinville nua, exótica, remota, inundada de tradição, bicicletas, flores, chopp... (...) Uma Joinville germanizada, festiva; bandas, orquestras, chopp, coral de loirinhas: um paraísoReferendado

o passado, resta saber por que, afinal, Joinville

desnaturalizou-se, cobriu sua nudez exótica, expulsou os joinvilenses de seu paraíso particular, forçando-os a viver em uma cidade onde eles não se reconhecem, porque aquilo que o espelho reflete é uma imagem cindida, um "eu" feito em pedaços. É o próprio autor quem, num tom de resignação, nos responde: "Não precisam me dizer que Joinville evoluiu. Sei!" E porque ela evoluiu, "hoje não é mais Joinville, é Manchester Catarinense. (...) Não é mais Joinville, é um cidadaço, que tem fábricas e operários, comércio e ICM. É uma isca, um sonho empesadelado". O neologismo e a

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redundância são significativos: eles delimitam a diferença daquilo que a cidade era, e o que a fazia ser Joinville, um paraíso; daquilo que ela se tornou, uma isca, que fisga os incautos com a promessa de um sonho que é, por detrás de sua aparência, pesadelo. E é quando parece estar à beira do abismo, que Aldo escapa da queda para encontrar, em meio aos cacos, indícios de que "Joinville ainda é (um pouco) joinvilense". Sintomaticamente, os traços de uma ainda possível "joinvilidade", ele encontrará num processo que, pela escrita, naturaliza artifícios que são, em parte, resultado do próprio "desjoinvilinamento": "Tem algumas casas de enxaimel, uma porção de praças (...), rua das Palmeiras, museus, Estação Ferroviária, camping...".

Em outras palavras, ao

tomar como naturais símbolos (as casas enxaimel, os museus, etc.) que, entre outras coisas, têm como função preservar uma tradição do esvaziamento de seus sentidos, Aldo encontra uma possibilidade de reconciliar presente e passado. Curiosa reconciliação, porque retoma em outros termos o movimento anterior, qual seja, o de naturalizar tradições construídas e inventadas (bicicletas, flores, chopp, bandas, etc.), como se elas fossem, desde logo, constitutivas de uma identidade fixa no tempo, e que faz de Joinville, "joinvilense". Concluído o percurso, Aldo pode, finalmente, voltar a mirar-se no espelho.314 Mas não foi apenas de reminiscências que a literatura joinvilense do período sobreviveu. As mesmas páginas que abrigaram o desconforto de Aldo, imprimiram outras sensibilidades e modos de ver, 1er e sentir a experiência da modernidade. Diferente de Aldo, no entanto, alguns autores assumem o desafio de designar o tempo

313

SCHMITZ, Aldo. Joinville desjoinvilado. Revista Cordão, [Joinville]: [s.n.], n. 1, 1973, p. 7. Grifos

3,4

HOBSBAWM Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições..., p. 9-23,

meus.

179

presente e de construir, em torno dele, um léxico capaz de atribuir-lhe não um significado, mas significados. E porque são plurais, as leituras e impressões expressam 315 o medo diante desse mundo "onde é cada um por si e não há Deus".

Em outros, é o

medo mesmo quem deve ser disfarçado, escondido, para que se entre na "cidade de peito aberto" e se possa "abrir os olhos/ na noite/ e desvendar os presos/ e os seus segredos".316 Trata-se, de certo modo, de tentar dizer o indizível, nominar o inominável; de falar de uma cidade de "concreto/ Rua 317

dividida em avenida/ do

homem dividido". A atomização, aliás, perpassa uma boa parte dos poemas do período - seja na revista Cordão ou em edições independentes, patrocinadas no mais das vezes pelos próprios autores, e publicadas entre o final dos anos 70 e início dos 80. Num certo sentido, parece que aquelas intenções dos planos urbanísticos, de segmentar e sedimentar o espaço urbano, realizaram-se em parte: ao atribuir a cada espaço funções particulares, a própria cidade foi atomizada - e com ela, os laços de sociabilidade.318 Existem, é verdade, diferentes maneiras de representar essa atomização: ela pode aparecer 320 sob a forma da mecanização da vida319, da hiperadministração do 321 cotidiano , no ritmo louco das fábricas , na imagem das multidões que se esbarram

315

LENZ, Rita de Cássia. Pela parte que me toca Revista Cordão, [Joinville]: [s.n.], n. 4, [19--?], p.

14. 316

CARDOSO, Tanussi. Poema r(l)ouco. Revista Cordão, [Joinville]: [s.n.], n. 6, [19--?], p. 12. SOUZA, Vilmar de. Poema da Avenida JK. Revista Cordão, [Joinville]: [s.n.], n. 3, [19--?], p. 18. 3,8 SENNET, Richard O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. Trad, de Lygia Araújo Watanabe. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 358-380. Ver, também, o texto já clássico do sociólogo alemão Georg Simmel e que influenciou, em maior ou menor grau, uma boa parte da literatura sobre cidades produzida desde então: SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental In.: VELHO, Otávio Guilherme (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976. p. 11-25. 319 TERNES, Apolinário. Canto e desencanto. In.: Aprendiz da esperança. Joinville: Meyer, 1978, p. 67. 320 MARTINS, Celso. Documentos necessários. In.: Vida dura. Joinville: Ed. do autor, 1981. ap. 321 TERNES, Apolinário. Operário. Ia. . Aprendiz da esperança. Joinville: Meyer, 1978. p. 39. 317

180

apressadamente pelas ruas do centro da cidade322, na ausência de laços de solidariedade no ambiente urbano323, etc. Em cada uma dessas imagens está a se falar, em maior ou menor grau, de um cenário que se transforma, no discurso poético, em ruínas.324 Mesmo quando o referente é, aparentemente, o seu contrário, como no poema de Luiz Alberto Correa, onde à idéia de crescimento, expressa nos primeiros versos, contrapõe-se, cortante, a constatação do desaparecimento do homem, transformado em "restos (...)/ aprisionados no ritmo da produção": "Repentinamente/ convulsivamente/ a cidade cresceu,/ os edifícios subiram,/ as ruas alargaram/ e o homem sumiu". Atomização,

mas também

desumanização:

ao

crescimento

da cidade,

corresponde o desaparecimento do homem, como se a condição para o progresso fosse o apagamento dos rastros de uma humanidade para sempre perdida. Daí, talvez, a urgência da narrativa. Se a modernidade fez desaparecer aquela narração tradicional, capaz tanto de preservar (trabalho da memória), quanto de renovar ou mesmo reinventar

(pela transmissão)

a tradição,

significando o "real";

e se

esse

desaparecimento, pela ruptura que opera na possibilidade de acessar, pela linguagem, "as peças do patrimônio humano", empobreceu a experiência, é preciso elaborar outras formas de narração que permitam re-fazer e re-signifícar a experiência.326 E é

322

CORREA, Luiz Alberto. Uma olhada janela a fora. In.: Saindo da escuridão. Joinville: Ed. do autor, 1984. p. 28. 323 MARTINS, Celso. Ajuntamento. In.: Vida dura. Joinville: Ed. do autor, 1981. n.p. 324 Ainda que apareça, originalmente, num contexto completamente diverso do que pretendemos nesse trabalho, a idéia das "ruínas na literatura" é inspirada em: DECCA, Edgar de. Literatura em ruínas ou ruínas na literatura? In.: BRESCIANI, Maria Stella; NAXARA, Márcia (orgs.). Memória e (res)sentimento..., p. 149-173. 325 CORREA, Luiz Alberto. Um pequeno poema lírico ao crescimento. In.: Saindo da escuridão. Joinville: Ed. do autor, 1984. p. 6-7. 326 Dois textos de Benjamin inspiram e perpassam a leitura que faço desses poemas. São eles: BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza e O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, ambos em: Magia e técnica, arte e política..., p. 114-119 e 197-221, respectivamente. Essa interpretação, por

181

significativo que tenha sido no discurso literário que esses autores encontraram tanto a possibilidade de falar sobre seu tempo, um tempo de homens partidos'', no dizer de Drummond,

quanto

de

intervir

e

agir

sobre

o

presente.

Consciente

ou

inconscientemente, a literatura representa aqui a possibilidade de resistir e transgredir aqueles discursos que, pela razão e a ciência, pretendiam a unicidade e a coesão. Como nos ensina Barthes em sua aula: "a ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir essa distância que a literatura nos importa".

Falando em outros termos, talvez

possamos afirmar que, a seu modo, a literatura foi a maneira pela qual alguns joinvilenses tentaram (re)organizar o "real": o discurso literário e poético é aqui apropriação e reapresentação do mundo. Entre a inquietude e a perplexidade, a poesia joinvilense recusou as promessas demiúrgicas do progresso, opondo o "poder-ser ao que é".328 Uma parte dela o fez trilhando, às avessas, os atalhos da utopia. Outra, o fez em nome do devir, desacreditando certezas pelo jogo das impossibilidades. Mas, se os versos servem para expressar sentimentos contraditórios frente à modernidade e as tensões que ela provoca, a poesia joinvilense desse período é testemunha também daquilo que mobilizará a imprensa local ao longo de toda a década: o crescimento da delinqüência, da criminalidade e da violência.

outro lado, não teria sido possível sem a leitura inspiradora de Jeanne Marie Gagnebin, em: GAGNEBIN, Jeanne Marie. Memória, história, testemunho. In.: BRESCIANI, Maria Stella; NAXARA, Márcia (orgs.). Memória e (,resjsentimento..., pp. 85-94. 321 BARTHES, Roland. Aula. Trad, de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1996. p. 19. 328 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e controle cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1999. p. 19-24. Uma leitura interessante do trabalho de Sevcenko pode ser encontrada em: FTNAZZI-AGRÒ, Ettore. O intelectual e o Bruzundanga. Utopias históricas e distopias literárias no começo do século XX. In.: DECCA, Edgar de ; LEMAIRE, Ria. Pelas margens - Outros caminhos da história e da literatura. Campinas: Editora da Unicamp; Porto Alegre: Editora da Universidade-UFRGS, 2000. p. 17-26.

182

4.2 A PRAÇA É DO POVO

Aqui nessa tribo ninguém quer a sua catequização. Falamos a sua língua mas não entendemos seu sermão. Nós rimos alto, bebemos e falamos palavrão. Mas não sorrimos à toa, não sorrimos à toa. Arnaldo Antunes

Entre os poetas, Celso Martins parece ser o que melhor soube captar esse universo de violência que grassava pela cidade. E ele o faz, inclusive, lançando mão de uma linguagem também ela crua, na tentativa de, pelo discurso, captar e representar ao máximo um "real" ele próprio caótico. Entre suas fotografias que revelam geografias,329 chama a atenção a freqüência com que os desclassificados da cidade passeiam pelos seus versos. De todos, é em "Ajuntamento" que essa presença se faz notar de forma mais intensa, a ponto de fazer, do poema, a crônica de um cotidiano marcado pela miséria. Ao inscrevê-lo numa fronteira tênue entre a poesia e a prosa, Celso Martins parece nos querer dizer que, para descrever aquelas imagens, é preciso renunciar a todo lirismo, condição necessária para que a narrativa possa dizer, das coisas, a insuportabilidade de seu peso

:

Reúnem-se pelos cantos mendigos e assanhados/ percorrem com olhares paredes infinitas,/ cavalgam puro sangue logo ao amanhecer, / e quando a noite chega estamos prontos./ É hora, então, do início da reunião.// O pão velho, bolorento, é repartido em quatro./ O quinto fica sem

329

"Fotografia revelando geografia": trata-se do verso que encerra um dos poemas de seu livro "Vida dura". MARTINS, Celso. Impropérios. In.: Vida dura. Joinville: Ed. do autor, 1981. n.p. 330 Que se contrapõe apenas em parte à leveza reivindicada por Calvino. Porque, para o autor italiano, a experiência da leveza só é possível a partir da nossa "experiência do peso das coisas; assim como não podemos admirar a leveza da linguagem se não soubermos admirar igualmente a linguagem dotada de peso". CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Trad, de Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, pp. 13-41. A esse respeito, ver também: FARGE, Arlete. Lugares para a historia. Trad. de Telma Costa. Lisboa: Teorema, 1999. p. 73-89.

183

comida, mas pode beber da água,/ catar os farelos, pegar as sobras e oferecê-las aos cães

c..)33'

A via crucis diária de "mendigos e assanhados" não é representada apenas nos poemas de Celso Martins. Nas páginas da imprensa, a preocupação com a mendicidade antecede em muitos anos os versos de "Ajuntamento".

Preocupação que persiste e

cresce ao longo da década de 70, quando passa a ser diretamente associada ao crescimento populacional - e, indiretamente, ao processo migratório. Em outras palavras, se uma década antes era preciso resolver o problema dos "nossos mendigos", agora Joinville se vê diante de algo ainda mais sério. Quem primeiro faz a denúncia é o cronista lido Campello:

Um carro com chapa oficial de Curitiba, despejou na última quarta-feira, por volta das 5 horas da tarde, às margens da BR-101, depois do trevo de Pirabeiraba, oito mendigos. Três mulheres, dois homens e três crianças. Faço a denúncia como testemunha ocular do fato. (...) Os mendigos joinvilenses, são conhecidos. Apesar da cidade estar assumindo porte metropolitano, ainda conhecemos nossos mendigos, fregueses de sábado! Agora, os mendigos de todo dia, esses na grande maioria não são residentes aqui: Quem quiser pode pesquisar. E é dura a constatação de que, nem todos são meros caminhantes, gente sem rumo, sem 333 destino, sem saber para onde veio, nem porque veio.

Feita a constatação, Udo não poupa indignação ao que define como "processo de importação" de mendigos, segundo ele, orientado, dirigido e executado por órgãos oficiais de outros municípios. A sua principal preocupação é com a "estrutura de assistência social", incapaz de assegurar o atendimento necessário ao contingente de

331 332

novo".

333

MARTINS, Celso. Ajuntamento. Ia: Vida dura. Joinville: Ed. do autor, 1981. ap. Ver, a esse respeito, o capítulo II dessa dissertação, "Tensões do tempo: o antigo, o novo e o sempre CAMPELLO, lido. Cotidiano. Extra, Joinville, 1-4 jul., 1978. v.l, a 23, p. 7.

184

pedintes "despejados" na cidade. Sua sugestão para solucionar o problema, ele reconhece, é cruel:

(...) De qualquer forma vamos impedir que outras cidades, na ânsia de se livrar dos seus mendigos, nos agraciem com os mesmos, usando até veículos com chapa oficial? É crueldade dizer, mas talvez a melhor medida a ser adotada, é você demonstrar aos mendigos que a praça aqui não é boa, para fazê-los, sem interferência do Poder Público, deixar o mais rápido possível a cidade. Como? Negando a esmola. Nós já temos os nossos mendigos. Já temos os nossos problemas.334

A denúncia de lido não atingiu o resultado desejado. Alguns meses depois, o mesmo jornal Extra volta ao assunto, dessa vez dedicando uma página inteira de sua edição, mais a "chamada" de capa. Segundo a matéria, "a possibilidade de a polícia paranaense estar exportando mendigos por atacado de Curitiba para Joinville vem há algum tempo despertando o interesse e ocupação maior das autoridades municipais, particularmente da Secretaria do Bem Estar Social". Ao contrário da crônica de lido, concisa, a matéria assinada pelo repórter João Francisco ouve desde funcionários da prefeitura de Joinville, até representantes das autoridades paranaenses, que respondem com uma negativa às denúncias de estarem "exportando" seus mendigos. As explicações, no entanto, parecem não encontrar credibilidade. Ao final, o texto reforça a denúncia, e de forma ainda mais contundente. Se na abertura da matéria se fala na "possibilidade da polícia paranaense" estar enviando para Joinville seus mendigos, o encerramento dispensa eufemismos: "(...) Cidade dos Príncipes, das Flores e das Bicicletas, que está virando depósito da mendicância paranaense (...)".

334 335

id. FRANCISCO, João. O paraíso dos mendigos. Extra, Joinville, 17-24 fev., 1979, v.2, n. 81, p. 15.

185

E como o problema da mendicidade é de uma incômoda insistência, o jornal Extra decide fazer uma experiência parar tentar levar, aos seus leitores, um pouco mais daquela dura realidade das ruas. Assinada também por João Francisco, a matéria consistiu em disfarçar o repórter de mendigo para que, durante algumas horas de uma tarde chuvosa, ele pudesse captar, in loco, "a solidão dos que pedem pelo amor de Deus". Travestido de pedinte, ele mapeia os principais locais de mendicância - as praças centrais, especialmente a Lauro Müller, e o Mercado Municipal - e tenta por à prova a "central de boatos" acerca da mendicidade em Joinville: afinal, os mendigos são mesmo controlados por políticos locais? Alguns deles ganham tão bem que alugam seu ponto? O joinvilense dá muita esmola e, com isso, estimula o aumento da mendicância; ou a falta de solidariedade faz com que "seus semelhantes morram à míngua"? A experiência serviu para que ele chegasse a "duas sólidas conclusões":

(...) Nos dias de chuva mendigo não trabalha. Não pede esmola. E o joinvilense, de maneira geral, tem pena de pessoas em dificuldade. Meu aspecto era de miséria. Mas, meu disfarce não impedia qualquer pessoa de notar que eu era um homem perfeito e razoavelmente forte. Mesmo assim deram-me dinheiro, conselhos e promessas de esperança. O mundo não tá tão ruim como dizem, pelo menos aqui nesta cidade de aparência fria.336

A matéria do Extra não deve ser entendida simplesmente como uma tentativa de despertar, no joinvilense, um certo espírito de compaixão ou solidariedade. O crescimento da mendicidade e as formas de lidar com o fenômeno escapam ao foro íntimo e se tornam um problema público. Algumas reivindicações propõem, em outros

336

FRANCISCO, João. Uma esmola pelo amor de Deus. Extra, Joinville, 9-16 jun., 1979, v.2, n. 97, p.16. Na mesma edição, página 15, com o título "Aos leitores", o jornal publicou a seguinte nota: "Sob a responsabilidade do repórter João Francisco, oferecemos uma página policial diferente, tentativa de não fazer sensacionalismo dos crimes que ocorrem na cidade, ao mesmo tempo em que se dará ao leitor informações úteis no campo policial - contribuição da polícia que quer se aproximar do povo, inclusive porque é parte integrante desse povo". Queremos crer que as cinco horas que viveu como mendigo foram a estréia do repórter na incumbência de oferecer, aos leitores do Extra, um jeito diferente de fazer reportagem policial

186

termos,

aquelas

mesmas

medidas

que,

alguns

anos

antes,

pareceram

aos

administradores joinvilenses uma solução adequada e eñcaz. O joma! A Notícia, por exemplo, em um de seus editoriais de março de 1979, respalda a solicitação do vereador Arcelino Poífo para a construção de um albergue noturno, "uma antiga reivindicação desse jornal". A intenção, "além de assegurar uma proteção permanente ao menor", é "diminuir o assustador índice de criminalidade em Joinville", afastando "das ruas, durante a noite, os desocupados, os mendigos, que dormem sob as marquises e nas praças":

(...) A implantação de um albergue se faz mais necessária que naquela época, pois a cidade está maior, recebendo elevado contingente de forasteiros, alguns obtendo colocação nas indústrias locais, outros voltando às suas cidades de origem e muitos permanecendo sem trabalhar, descambando para os caminhos da marginalidade. A comunidade precisa pôr um ponto final nessa situação, evitando o surgimento de problemas graves (...). E um albergue ainda é uma das principais medidas nesse sentido.337

A "mensagem" é coerente com a do concorrente Extra, especialmente pela associação direta entre mendigos, criminalidade e o "elevado contigente de forasteiros". Por outro lado, o editorial parece ter constatado que, afinal de contas, se o problema não era de Joinville, passou a ser. A pergunta que paira no ar - "que fazer?" - exige respostas e medidas mais conseqüentes e de longo alcance que simplesmente não dar a esmola, como sugere lido Campello, na tentativa de convencer os mendigos que Joinville não é uma boa praça. E como à noite todos os gatos são pardos, um albergue parece ser uma alternativa viável para tirar das ruas os que "dormem sob as marquises e nas praças" centrais: mendigos, desocupados, menores e, por que não,

337

ALBERGUE, uma necessidade. A Notícia, Joinville, 21 mar. 1979, v.57, n. 13563, p. 4.

187

algum bêbado de ocasião que tenha perdido o caminho de casa. Mas há ainda o problema da mendicidade que se alastra pelo centro da cidade durante o dia, especialmente nas praças públicas, onde há urna maior concentração da mendicância. E aí a solução parece não ser tão simples como imaginava e desejava, alguns anos antes, o ex-prefeito Helmut Fallgatter. O crescimento da cidade impõe a necessidade de medidas mais complexas que a simples criação de um "abrigo para mendigos".338 Há algumas medidas legais, a começar pelo Plano Diretor, finalmente aprovado em 1973. Um dos desdobramentos mais imediatos foi a revisão do Código de Posturas, já 339

no ano seguinte, ainda sob a administração de Pedro Ivo. Um e outro são parte de uma "arquitetura do controle" que, num plano ideal, visa delimitar e esquadrinhar o espaço urbano de forma a assegurar sua segmentação e funcionalidade. Ainda que essas medidas incluam os esforços para "urbanizar" a periferia, é a região central que merece das administrações municipais especial atenção. Ruas e praças são remodeladas, avenidas ligam as ruas do centro e este aos principais bairros da cidade, normas mais rígidas são instituídas para regular novas edificações. Uma prática que merecerá o apoio da imprensa, reiterado seguidas vezes em crônicas e matérias de cunho jornalístico. Mas o embelezamento não tem fins 338

Um exemplo: entre 1950 e 1980, a cidade cresce, populacionalmente, cerca de 550%, passando de 43.300 para aproximadamente 236 mil habitantes. Há, ainda, uma significativa alteração demográfica. Se nos anos 50 havia uma distribuição eqüitativa da população nos meios urbano e rural, trinta anos depois 93,2% moravam na área urbana e apenas 6,8% na rural. Cf.: TERNES, Apolinário. A construção da cidade. São Bernardo do Campo: Bartira, 1993. p. 166-168. Uma discussão mais detalhada do processo migratório e do crescimento populacional pode ser encontrada ao longo do capítulo III, "A outra margem do rio", que discute também a estreita relação entre a urbanização e a industrialização de Joinville. 339 Nas suas disposições gerais, o Código esclarece que sua função é definir "normas disciplinadoras da vida social urbana", em aspectos que envolvem, entre outros, a higiene e o bem-estar públicos. Entre outras coisas, ele prevê a responsabilidade, por parte dos proprietários de bares, "pela manutenção da ordem e da moralidade em seu interior". Em relação aos "logradouros públicos", o código prevê, no artigo 141, sub-seção HI da seção III - "Da arborização e dos jardins públicos" -, Capítulo IV - "Preservação e utilização do ambiente urbano": "A Prefeitura coibirá as invasões de logradouros públicos, mediante procedimentos administrativos

188

apenas estéticos. Além de delimitar a diferença do centro em relação às suas margens, há um caráter político em cada uma dessas ações: o de fazer da urbanização uma prática de controle e vigilância das "classes perigosas". A nova ordem urbana pretende instaurar uma ordem social capaz de disciplinar a um só tempo os espaços público e privado, delimitando seus papéis e os lugares neles ocupados pelos atores sociais.340 Analisando os discursos de epidemiologistas do século XIX, Myriam Bahia Lopes levanta a hipótese de que a concepção de espaço urbano se inspira, a um só tempo, nos modelos da circulação sangüínea e da respiração. "Os poros da pele são, além das narinas, o local por onde se efetua a respiração e a excreção (suor). A metáfora dos poros da cidade se afirma no horizonte dos médicos e urbanistas". Mais que barreiras que fechem e protejam a cidade, é preciso que se estabeleçam passagens seletivas, "filtros (portas dentro de portas) como medida de segurança".341 Consciente ou inconscientemente, um século depois essas medidas de segurança estavam também no horizonte dos administradores e planejadores urbanos de Joinville. Em outras palavras: integrar apenas não basta. É necessário antes filtrar as impurezas e evitar a contaminação. A imprensa não assiste impassível a estas mudanças. Ela desempenha um papel político fundamental: o de respaldar o discurso modernizador, construído a partir do centro, ao mesmo tempo em que, por suas páginas, passeiam representações do

diretos ou por vias judiciais". JOINIVILLE. Prefeitura Municipal. Projeto de Lei n. 52/74, de 20 de novembro de 1974. Código De Posturas Do Município De Joinville. 340 PECHMAN, Robert Moses. Os excluídos da rua: ordem urbana e cultura popular ... p. 29-34. Sobre a noção de "classes perigosas" ver, entre outros: CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: Cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Cia. das Letras, 1996. p. 15-29. Além do estudo introdutório, mas nem por isso menos pertinente de Stella Bresciani, em: BRESCIANI, Maria Stella. Londres e Paris no século XIX..., especialmente p. 109-122.

189

cotidiano e das relações vividas nas margens. E, embora talvez a intenção não seja exatamente essa, ela permite também vislumbrar o trânsito entre os dois lados da fronteira. Os filtros, "portas dentro de portas", não são o suficiente para evitar a livre circulação dos corpos por entre os poros da cidade. A "invasão" das praças públicas por mendigos, prostitutas, punguistas, golpistas e ladrões de todo tipo parece ser, nesse sentido, o que melhor expressa essa "contaminação". Construídas para serem o símbolo da urbanidade e da civilidade modernas, um oásis - com suas árvores e banquinhos para namorados - onde o lúdico sobreviveria em meio ao corre-corre moderno de uma cidade em crescimento, elas se tornam, aos poucos, palcos onde ganham visibilidade as sociabilidades marginais. Para o jornal Folha Catarinense, por exemplo, o que se vê é a pura expressão de um "degradante quadro", cujos sintomas se tornam a cada dia mais crônicos e alarmantes:

A praça da Bandeira há muito tempo deixou de ser um local de passeio, de descanso, devaneio e de turismo. Se não bastassem os atos de vandalismo, impropérios, furtos, desacatos, a falta de higiene na parede dos ônibus circulares com papéis e latas jogados na calçada e ruas e a exalação do mau cheiro das 'bocas de lobo', o degradante quadro acaba de se completar. Agora também já temos 'far-west'. Ontem, por voha das 7h e 15 min. o senhor Luiz Carlos Briezemeister, encontrava-se na Praça da Bandeira, quando um indivíduo desconhecido aproximou-se dele e disse: 'Vou te acertar', palavras da vítima. Ato contínuo, o desconhecido sacou do revólver e disparou um tiro com o projétil alojando-se na coxa esquerda de Luiz Carlos. Consumado o ato, o 'atirador' evadiu-se do local sem que a polícia tivesse apurado qualquer ' * • / -V 342 pista ate ontem a noite (...).

O americanismo e as imagens quase cinematográficas da narrativa não são casuais. Nos anos 60 e 70, séries de "bang bang", que tinham como cenário o "velho Oeste" americano, faziam a festa das matinês de jovens e adolescentes joinvilenses, 341

LOPES, Myriam Bahia. Porto, porta, poros. In.: BRESCIANI, Maria Stella. Imagens da cidade..

1994. p. 71-75.

190

com as aventuras do "Cavaleiro Solitário" e seu fiel companheiro Tonto, e as fugas improváveis - mas sempre concretizadas no final de cada capítulo - de "Smith & Jones". Para o público adulto, a violencia era exibida no cinema de forma mais crua, sem o verniz romântico das histórias juvenis. Ela se chamava "Lúcio Flávio, o passageiro da agonia", filme do cineasta Hector Babenco e que, coincidentemente, era cartaz no Cine Palácio na semana do atentado a Luiz Carlos Briezemeister. Falar do episódio como um "far-west" ou utilizar uma narrativa onde a ação é enfatizada e recriada são recursos para arrancar das telas a ficção, alertando os leitores para a violência que grassa pelas ruas da cidade. Uma violência, no entanto, materializada, que extrapola os limites da imaginação. E torna-se perigosamente real. Periculosidade que, é claro, precisa ser relativizada. Ela pode ser motivo de angústia para muitos - os representantes da classe média, por exemplo, para quem habitar no centro da cidade era uma distinção de "status" em relação aos moradores dos bairros. Mas, para os novos personagens que entram em cena, parece não haver motivo para culpa. Para eles não há uma diferença tão transparente entre o público e o privado, mas uma solidariedade e articulação entre esses espaços. Se, no século XX, os operários reivindicam a privacidade do lar como uma alternativa de liberdade frente à vigilância ostensiva das fábricas, o lúmpen - para utilizar o jargão um tanto quanto preconceituoso que lhes atribuiu Marx - faz da rua a sua morada. Eles assumem o

342

n.32, p. 1.

PRAÇA da Bandeira virou 'Far-west'. Folha Catarinense, Joinville, 29 maio-04 jun., 1978, v.l,

191

papel de "nómades da cidade", sempre em trânsito, nunca fixos em lugares ou papéis ainda que, de fora, esses lhes sejam atribuídos.343 A sua maneira, quem parece perceber esse fenômeno é o cronista lido Campello, que se destaca pela defesa apaixonada das praças centrais de Joinville. Seus artigos fazem dele uma espécie de "Don Quixote" local, disparando palavras de sua trincheira contra os moinhos de vento que ameaçam a sua paz e da sua cidade. Atento às transformações e aos conflitos que daí emanam, lido transforma suas crônicas em pequenos instantâneos que registram imagens as mais diversas. Embora a violência, a deliqüência e a criminalidade sejam temas recorrentes em seus escritos, seu interesse pelo dia-a-dia joinvilense o leva a comentar desde as obras do calçadão e seu impacto na geografia e no trânsito de pedestres e veículos na rua do Príncipe, até a participação de Joinville no "Cidade contra cidade", um dos quadros do programa Silvio Santos. Permeando suas reflexões estão o desenvolvimento urbano e o crescimento populacional e que foram, aliás, assunto de sua crônica de estréia no Extra.344 A rapidez com que aumentam os problemas sociais, e a lentidão na implementação de soluções, lido as percebe em suas caminhadas pelo centro da cidade.

O terminal dos coletivos urbanos na Praça da Bandeira continua desafiando nossa capacidade de solucionar problemas. (...) Além das péssimas condições de higiene, o terminal serve de ponto de encontro para marginais, mariposas, desocupados, que se misturam às pessoas comuns, trabalhadores incautos, proporcionando-lhes muitas vezes prejuízos. (...).345

343

PERROT, Michelle. Os operários, a moradia e a cidade no século XIX. In. : Os excluídos da história - operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. p. 101-25. 344 Ver capítulo III, "A outra margem do rio". 345 CAMPELLO, lido. Cotidiano. Extra, Joinville, 22-25 de jul., 1978, v.l, n.29, p.7.

192

Pouco mais de um mês antes, ele já havia reclamado da situação de abandono do terminal. Falando da necessidade de mais áreas de lazer para os joinvilenses, descarta uma a uma as praças do centro, em especial as vizinhas Praça da Bandeira e Dario Salles, transformadas em "concentração de desocupados".346 Nenhuma de suas crônicas, no entanto, tem tanta força e intensidade quanto a que cobra medidas urgentes para a erradicação dos mendigos que ocuparam a Praça Lauro Müller, localizada no "coração" da cidade e que abriga também a Biblioteca Pública Rolf Colin. Embora longa, ela faz por merecer aqui sua transcrição literal:

Como é que fica o problema dos mendigos que continuam tomando conta de um dos mais bonitos logradouros públicos de Joinville, a Praça Lauro Müller, mais conhecida como a Praça da Biblioteca? Eles continuam tomando conta da praça, com suas misérias, suas infelicidades, seus palavrões, suas sujeiras. Com suas cachaças e um incômodo jeito de viver. Jeito que está incomodando não apenas moradores das proximidades da praça, mas também todas as pessoas que por ali passam. Hoje, na Praça da Biblioteca, já não é mais possível, com certa tranqüilidade, um comerciário descansar depois do almoço, aguardando o segundo expediente. Hoje, de manhã cedo, na Praça, já não é mais possível uma criança brincar tranqüilamente, sem causar preocupações à sua babá. Hoje, na Praça da Biblioteca, já não é mais possível, à tardinha, um casal de namorados mentir juras de amor. Os donos da praça, agora, são os bêbados esquecidos da vida. Claro que vão dizer: 'toda cidade tem a praça de bêbados que merece.' Eu não concordo. Acho que ou a Polícia, ou a Secretaria de Bem Estar Social, ou as duas, têm de fazer alguma coisa, para devolver à Praça Lauro Müller, a tranqüilidade que ela e pessoas que gostam dela, merecem. E verdade que o preço do progresso às vezes se torna muito caro, porém nunca se deve confundir, preço alto, com comodismo, com conformismo, ou mesmo com alheiamento. Como é que fica o problema dos mendigos que continuam tomando conta de um dos mais bonitos logradouros públicos de Joinville, a Praça Lauro Müller, mais conhecida como Praça da Biblioteca?347

Para além do que é aparente - o tom denunciativo, a cobrança enérgica das autoridades instituídas - até onde podemos chegar se circundarmos na companhia de 346

CAMPELLO, lido. Cotidiano. Extra, Joinville, 07-09 jun., 1978, v.l, a 16, p. 7.

193

lido Campello a Praça Lauro Müller? O caminho é frágil e a linha que separa um retorno quase saudosista a um passado idílicamente construido - presente nas imagens das "crianças que brincam tranqüilamente" ou nos casais de namorados que "mentem juras de amor" - , de um confronto com um presente de perplexidade, é tênue. Indeciso acerca de qual lado ficar, lido crava um "X" em uma terceira alternativa, sua carta na manga: aceita pagar o preço pelo progresso, mas acha que ele precisa ser negociado. Se a modernidade é inevitável, que ela instaure a civilização. Não há lugar, nos sonhos de nosso cronista, à barbárie. É dessa contradição inerente ao progresso, capaz de instaurar a um só tempo a civilização e a barbárie, que lido pretende fugir. Ele não admite ver seus rastros e sua história serem apagados pelas pressões da vida moderna. Homem contemporâneo, nem por isso ele aceita ter sua experiência empobrecida e empenhada em troca da "moeda miúda do atual",348 como se a emergência do novo justificasse, por si só, "o comodismo, o conformismo ou mesmo o alheiamente". E preciso resgatar do passado - aquele construído idílicamente em oposição direta a um presente que beira ao desespero - a tranqüilidade perdida. A miséria e a infelicidade, os palavrões, o cheiro de cachaça barata e a sujeira, perturbam os sentidos. Mais. Deixam o olhar, a audição, o olfato e o tato vulneráveis às impurezas e à contaminação. Não mais os poros apenas. E preciso filtros em todo o corpo. A cobrança, chamando à responsabilidade a polícia e a Secretaria de Bem Estar Social, é um pedido manifesto de intervenção do poder público no espaço urbano, não apenas disciplinando-o, mas eliminando aquilo que transgride a ordem e coloca em 347

CAMPELLO, Ddo. Cotidiano. Extra, Joinville, 06-12 maio 1978, v.l, n.9, p.7.

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risco a paz. Seu ato falho349, expresso no lapso de grafar "Praça" quando cita comerciários, crianças e namorados, e "praça" quando fala dos "bêbados esquecidos da vida" e de seu "incômodo jeito de viver", revela seu desejo. Inconscientemente, ele está afirmando que ela pertence àquelas pessoas que dela gostam e a merecem. É preciso devolvê-la a seus legítimos donos. É provável que ao escrever sua crônica, no começo de maio, lido estivesse ainda sob o impacto do crime ocorrido cerca de um mês antes, envolvendo dois mendigos e de que foi vítima fatal Juraci Maria Soares, assassinada a facadas por Célio Souza da Costa. O cenário do crime: a praça Lauro Müller, "mais conhecida como Praça da Biblioteca". O episódio foi destaque em A Notícia, que lhe dedicou quase toda sua página policial da edição de 4 de abril. Nela, Juraci (cujo nome os leitores só viriam a conhecer na edição seguinte) é apresentada como "uma jovem de aproximadamente 25 anos, cor morena, 1,60 metros de altura, peso médio, ainda não identificada pelas autoridades". A matéria segue descrevendo "os fatos". Por volta das 16h30 do dia anterior, Juraci, uma mendiga, foi esfaqueada pelo seu colega de mendicância, Célio. Socorrida, foi levada ao pronto-socorro do Hospital Municipal São José, onde faleceu por volta das 20h30. O autor, "Célio Souza da Costa, 36 anos, solteiro, natural de Lages, sem profissão e sem residência fixa", foi preso pela polícia e levado à Cadeia Pública. Lá, ele afirmou que:

(..) atingiu sua colega com uma facada porque ela atingiu sua mãe com palavras de baixo calão. (...)

348

BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In.: Magia e técnica, arte epolítica..., p. 114-19. FREUD, Sigmund. A psicopatologia da vida cotidiana Rio de Janeiro: Imago, 1987. v. 6, p. 111-25. Olbras completas. 349

A polícia ainda não conseguiu identificar a vítima, mas sabe-se que ela também era mendiga e sempre era vista pedindo esmolas pelas ruas centrais de Joinville. A arma utilizada no homicídio, uma faca, cuja lamina mede aproximadamente 15 centímetros, foi apreendida pelos soldados e está na Delegacia de Polícia da Comarca. O comissário Sérgio declarou que Célio atingiu a vítima com um golpe profundo nos orgãos inferiores, entre a coxa e a virilha.350

A história completa seria publicada na edição seguinte, depois que Célio foi "apresentado" à imprensa e os jornalistas tiveram acesso ao seu depoimento. Entre outras coisas, os leitores ficam sabendo que Célio tem 37, e não 36 anos. E que foram duas as facadas que vitimaram Juraci, cuja identidade até então desconhecida é, junto com os motivos do crime, o principal "gancho" da matéria. Segundo A Notícia, ela vivia "amasiada" com Célio há mais de um ano. Mendiga, dividia seu tempo entre Joinville, Lages e Curitiba - de onde, segundo a versão de seu ex-companheiro e algoz, era natural. Célio estava há cerca de dez dias em Joinville e, na tarde do crime, "após conseguir algum dinheiro, embriagou-se a valer com Juraci". Embora o nível alcoólico não tenha sido o motivo por excelência da agressão, o estado de ambos contribuiu para tornar mais tenso o clima entre os dois, que há alguns dias vinham tendo problemas no relacionamento:

(...) O homicida contou que gostava muito de Juraci mas desde o início desta semana apareceu um rival em sua vida e tudo começou a modificar. O rival, um outro mendigo mais jovem de Curitiba, começou a engraçar-se com Juraci e Célio não estava gostando nada do fato. (...) Célio confessou que por volta das 16h30min. estava bastante embriagado, o mesmo acontecendo com Juraci, só que esta passou a acariciar o mendigo mais jovem de Curitiba. Célio não gostou do fato e, sacando da faca, desferiu dois profundos golpes em Juraci, atingindo-a entre a coxa e a virilha. (...) Finalizou seu depoimento dizendo que se arrepende do que fez.351

350 351

p.6.

JOVEM morre no hospital: esfaqueamento. A Notícia, Joinville, 4 abr., 1978, v.56, n. 13280, p.l. MENDIGO conta porque assassinou sua amasia A Notícia, Joinville, 5 abr., 1978, v.51, n. 13281,

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Os ingredientes do crime fazem dele um prato cheio à ânsia cada vez mais crescente da imprensa, de noticiar o avanço da violência em Joinville. Não por acaso: o crime envolve dois mendigos, ambos "forasteiros" - e não podemos esquecer do terceiro envolvido, pivô do homicídio, "um outro mendigo mais jovem de Curitiba". Além disso, e sob a ótica da imprensa, ele parece levar ao limite o estado de caos, desordem e insegurança que tomou conta do espaço público, em especial as praças centrais, que se tornaram intransitáveis em plena luz do sol. Mas os jornais e seus leitores sabiam que isso era apenas uma ínfima parte de uma realidade que, diariamente, se tornava mais e mais presente no cotidiano dos joinvilenses. A violência tem muitas faces. A morte de Juraci é apenas uma delas.

4.3 "O CRIME PASSEIA PELAS RUAS"

Hey babe, take a walk on the wild side Lou Reed

Se nos logradouros do centro a imagem cada vez mais presente é a da decadência, com a horda de bárbaros tomando de assalto a cultura e a civilização, a situação é ainda mais alarmante nos bairros e na periferia. Joinville é "uma cidade em angústia", como alerta a manchete do jornal Folha Catarinense:

(...) as ocorrências criminosas que se traduzem por atos de vandalismo, roubos em residências, estabelecimentos de toda ordem, assaltos à mão armada, assassinatos, latrocínios, uso e tráfico de tóxicos (...) vem assumindo tal vulto em Joinville que a todos nós assustam, geram temor e intranqüilizam, levando enfim a população a um estado de tensão e angústia, quase de pânico. Os orgãos policiais da cidade continuam desaparelhados de meios materiais e de recursos humanos para cumprirem, satisfatória e plenamente as suas atribuições específicas, na prevenção e repressão à criminalidade. (...)

197

(...) Mantidos em vigilia pela tensão e pela angustia, motivados pelas anormalidades apontadas, realmente Joinville hoje é uma cidade do medo, de angústia, do temor e da intranqüilidade ante o crescimento do crime. Até quando?352

O temor caminha lado-a-lado com o joinvilense. Ele o leva para dentro de sua casa, porque a insegurança não está apenas na rua, espaço público onde a subversão desafia o poder que, pelo planejamento, almejou fazer dela um lugar de controle e disciplina. A ameaça da violência invade também a intimidade das famílias, seus lares. Ninguém está a salvo. Entre os muitos possíveis, um exemplo significativo desse clima de medo é o da família do bancário Max Conrad Schumacher, mantida como refém em sua residência por duas horas enquanto os assaltantes levavam jóias, revólver, relógios, 353

roupas e eletrodomésticos, tudo transportado no carro dos Schumacher.

Ou ainda o

assalto, seguido de assassinato, que vitimou Oliveira Rodolfo Alano, morto a caminho de casa, logo depois de ter fechado o bar de sua propriedade.354 O teor das matérias policiais na segunda metade dos 70 é, num certo sentido, contrastante com o que se lia alguns anós antes. Não há mais espaço nas páginas dos jornais para se registrar, por exemplo, um roubo de galinhas355 e nem se encontram aqueles episódios que soam quase anedóticos, se comparados ao tom alarmante e à "qualidade" dos crimes praticados no final da década. O que não significa, necessariamente, que só de galinhas viviam os repórteres policiais, como já tivemos a oportunidade de mostrar em capítulo anterior. Apenas no 352

JOINVILLE, uma cidade em angústia. O crime passeia pelas ruas. Folha Catarinense, Joinville, 1218 dez., 1977, v.l, n. 18, p. 7. 353 ASSALTANTES agem com tranqüilidade em Joinville. Extra, Joinville, 06-09 jan., 1979, v. 1, n.74, p. 10. 354 PAI de seis filhos assassinado no Boa Vista. A Notícia, Joinville, 11 mar., 1977, v. 55, n. 12960, p. 2. 355 ROUBO de galinha. A Notícia, Joinville, 3 mar., 1972, v.50, a 11547, p. 3.

198

primeiro semestre de 1971, por exemplo, três assassinatos são publicados nas páginas de A Notícia - um deles, um fratricidio.

J

Mais "comum" que os assassinatos, são as

notícias sobre o crescente número de assaltos, alguns praticados em pleno dia, outros marcados pela forma truculenta com que são realizados. E o caso do assalto onde o ladrão, talvez almejando a fama de seu predecessor, entrou na residência de Heinrich Schossland e, empunhando uma lanterna com a luz vermelha, levou pequenos objetos e dinheiro, depois de ameaçar violentamente a família.

Para a imprensa, no entanto,

não se tratava apenas de informar, mas de cumprir uma espécie de serviço de utilidade pública, alertando ao máximo a população acerca dos riscos cotidianos e as medidas necessárias de segurança:

O noticiário policial que diariamente trazemos vem retratando com duras tintas a realidade joinvilense no triste capítulo da criminalidade. Contravenções de toda ordem marcam a ação policial nos dias de hoje, sinais de que está Joinville a experimentar os males que o cfesenvolvimento populacional também traz, pois em terra fértil tanto brotam árvores frutíferas com ervas daninhas, andando a criminalidade de acordo com a densidade demográfica, na regra simplista de quanto mais gente mais crimes, mais casos policiais e mais ousadias. (...) Habituados à uma vidinha pacata de tempos atrás, muitos joinvilenses ainda não se aperceberam que os tempos, hoje, são outros. (...) Maior proteção em portas, janelas e afins, por exemplo, é um detalhe que muitos ainda inobservam, seja em residências ou estabelecimentos comerciais. (...) Precisam os joinvilenses, pois, atentar com mais carinho para estas coisas, precavendo-se de todos os modos, sem o que, embora o esforço, o zelo, a dedicação do organismo policial, esta onde de assaltos não poderá ser contida; pois na maioria dos casos de roubos, furtos, assaltos, os grandes culpados são os próprios atingidos, por não observarem nem mesmo aspectos mínimos de segurança de seus bens materiais.358

356

FRATRICIDIO ontem a noite em Pirabeiraba. A Noticia, Joinville, 7 mar., 1971, v.59, n. 11249, p8. FUTEBOL origina frio assassinato na Estrada Dona Francisca. A Noticia, Joinville, 23 mar., 1971, v. 59, n. 11261, p. 8. DONO de bar desfere violenta facada na cabeça do freguês. A Noticia, Joinville, 11 maio 1971, v. 59, n. 11300, p. 3. 3Í7 REGISTRO policial. A Notícia, Joinville, 07 fev., 1970, v. 57, n. 10926, p. 8. 358 CRESCE a onda de assaltos. A Notícia, Joinville, 25 mar., 1973, v.51, a , número 11867, p. 1.

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Foi com esse mesmo propósito, aliás, que A Notícia publica em uma de suas edições, ilustrando uma matéria sobre o dia-a-dia atarefado da polícia, uma "caracterização do criminoso em duas ilustrações". A intenção é clara: tornar público e comum alguns traços físicos característicos de um delinqüente - no caso, um assaltante - para que os leitores pudessem identificá-lo com um grau maior de segurança, aumentando suas chances de defesa. Assim, de acordo com o jornal, um "assaltante típico" age normalmente à noite (na ilustração, o personagem aparece com uma lanterna); veste-se com capa e boné e usa máscara. Mais que essa primeira leitura da ilustração, beirando ao caricato, é preciso nos determos na forma como o criminoso é descrito fisicamente: ele é corcunda e magro; tem a boca torta, com os lábios voltados para baixo; orelhas grandes e em abano; nariz também grande e adunco e, por fim, os olhos miúdos e desproporcionais ao nariz e orelhas.359 Um estudo fisionômico para consumo de massa que não deixaria a desejar aos delírios positivistas dos mais empedernidos dos lombrosianos - e, quiçá, ao próprio Lombroso. Mas antes que digam que jornalismo também é ciência (já basta o que fizeram à história) é preciso esclarecer que não se trata, aqui, de uma taxionomia do criminoso. Há, quando muito, a vulgarização de uma "ciência" ela própria já vulgarizada e massificada, e que tende a atribuir a tudo que é diferente, traços estranhos àquilo que se considera "normal". Em outras palavras, tanto quanto um nome, são necessárias características físicas (um corpo, um rosto) que não apenas identifiquem, mas submetam o outro ao império do olhar. A imprensa toma de empréstimo aquele preceito da já nem tão moderna criminología, que acreditava poder identificar, em meio à multidão de anônimos e a

359

ROUBOS e agressões no "dia-a-dia" da polícia. A Noticia, Joinville, 01 jun., 1972, v.50, n. 11619, p. 3.

200

partir de indícios físicos minuciosamente identificados e catalogados, a face oculta do ^Afl crime. " É mais ou menos essa a trajetória que nos leva de volta à segunda metade dos anos 70. Parece-nos que, para além do aumento "real" nos índices de violência, há ainda uma maior visibilidade do fenômeno, com os jornais dedicando, paulatinamente, maiores e mais privilegiados espaços ao crime e seus protagonistas. Seria fácil se entendêssemos essa mudança como um desenvolvimento "natural" do jornalismo joinvilense, que nada mais fez se não acompanhar o próprio crescimento da cidade. Uma explicação que, embora legítima, nos parece frágil e incompleta, pois as relações entre um jornal e seus leitores são um pouco mais complexas. Na modernidade, o jornalismo transformou-se em um instrumento privilegiado de formação e informação do imaginário social. Nas palavras de Tony Hara, "é um dos pólos privilegiados na constituição do imaginário e dos rituais de verdade produzidos em uma cidade ou região". O mesmo autor, no entanto, nos alerta também que o jornalismo "é manipulado ao mesmo tempo que manipula o imaginário".361 Dito de outra forma, há entre o jornal e seus leitores - e mesmo entre o jornal e a parte da comunidade/cidade, incluindo aí aqueles que não lêem jornais - uma relação de circularidade e troca, e não um jogo manipulatório puro e simples. Ainda que a intenção das empresas e das elites políticas seja fazer uso da informação para legitimar sua dominação, há de se levar em 360

A esse respeito ver, entre outros: BRESCIANI, Maria Stella. Londres e Paris no século XIX..., p. 109-122. Em seu artigo, Mauricio Lissovsky historiciza a forma como a identificação pela imagem se constitui em um instrumento eficaz a serviço da criminología. LISSOVSKY, Mauricio. O dedo e a orelha - Ascensão e queda da imagem nos tempos digitais. Acervo. Rio de Janeiro, v. 6, n. 12, p. 55-74, jan/dez., 1993. 361 HARA, Tony. Caçadores de notícias: História e crônicas policiais de Londrina 1948-1970. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2000. p. 1-33. As discussões que seguem são inspiradas também em: HALL, Stuart et alii A produção social das notícias: O 'mugging' nos 'media'. In.: TRAQUINA, Nelson (org.). Jornalismo: questões, teorias e "estórias". Lisboa: Vega, 1993, p. 224-248.

201

conta a impossibilidade de se controlar, integralmente, toda uma sociedade. Porque há sempre, no interior de todo projeto de dominação, aquelas fraturas que em maior ou menor grau, transgridem e subvertem a ordem. Não é diferente com o jornalismo: não há como, pela produção de notícias, controlar plenamente o imaginário social. Não apenas porque nem todos lêem jornal, mas também porque não há como controlar a forma como as pessoas lêem os jornais. E se os leitores não são imbecis apáticos, meros objetos incapazes de interpretar e usar de maneira diferenciada aquilo que lêem, podemos falar somente em tentativas de controle e manipulação, que se caracterizam como parciais e precisam, por isso, ser socialmente legitimadas. Do ponto de vista do jornalismo, a melhor maneira de legitimar aquilo que se escreve e imprime diariamente, é produzir notícias cuja identificação com os anseios, temores, medos e desejos da comunidade seja eficaz, se não imediata. Trocando em miúdos: a preocupação dos jornais em fixar um espaço às matérias policiais é uma forma de apropriação do imaginário e mesmo dos sentimentos coletivos - aqueles que dizem respeito, entre outras coisas, à crescente insegurança. Ao fazer deles notícias, a imprensa os devolve aos seus leitores devidamente "produzidos". Transformados em "fatos", esses irão alimentar aqueles anseios, temores, medos e desejos de que falávamos acima, de forma que "o fato em forma de notícia atinge e informa o imaginário social, que por sua vez retroalimenta a própria produção jornalística". Isso nos ajuda a entender, ao menos parcialmente, o tom quase histérico que perpassa a imprensa joinvilense nos últimos anos dos 70. Nesse momento, todos os

202

quatro jornais que circulam periodicamente - A Notícia, Extra, Folha Catarinense e Jornal de Joinville - têm sua página policial fixa. E não é preciso muito esforço para buscar a notícia. A principal fonte é a polícia. Mas com a onda de crimes, segundo o mesmo noticiário policial, crescendo a níveis galopantes, ela pode estar em qualquer parte da cidade, não importa a hora. Aos poucos, os plantonistas e repórteres das redações passam a criar, eles mesmos, uma certa intimidade com o "submundo" e seus personagens. Foi assim, por exemplo, quando do assassinato do traficante Jairo Mamede do Rosário, em dezembro de 78. A Folha Catarinense não espera a confirmação das fontes oficiais para sentenciar os motivos de sua morte:

A polícia de Joinville está as voltas com o assassinato do traficante Jairo Mamede do Rosário, de 27 anos, morto a tiros em sua residência na madrugada de sexta-feira última. Quem matou Jairo? A polícia ainda não conseguiu saber, embora já tenha conseguido diversos nomes suspeitos. Segundo os informes, Jairo teria sido assassinado por companheiros de tráfico de entorpecentes, com quem mantinha negócios. Outros afirmam que ele era o informante da Polícia e foi por isso que foi morto. A Polícia descobrirá ou será mais um crime que ficará no mistério? Só o tempo dirá.363

O Extra realiza uma cobertura detalhada do caso, narrando minuciosamente o crime. Ficamos sabendo da morte de Jairo já na capa de sua edição de 9 a 12 de dezembro. Nas páginas internas a matéria se alonga, narrando em detalhes os acontecimentos da madrugada de 8 de dezembro, incluindo o diálogo travado entre Jairo e seus algozes.364 O jornal volta ao caso na edição seguinte, onde confirma a hipótese levantada pelo concorrente para a morte do traficante: "Jairo era um sujeito

362

HARA, Tony. Caçadores de notícias..., p. 19. VINGANÇA no mundo do crime. Folha Catarinense, Joinville, 11 a 17 dez., 1978, v. 2, n. 67, p. 3. 364 TRAFICANTE é fuzilado na cama e Desconhecidos executam traficante. Extra, Joinville, 9-12 de dez., 1978, v.l, a 68, p. 1 e 4, respectivamente. 363

O/f

com muitos inimigos e muitos com motivos para matá-lo. (...)".

Sua preocupação

em construir um perfil palpável da figura de Jairo leva o repórter a reconstituir, rapidamente, a sua trajetória desde a infancia, onde seu lado violento já se revelou ao ameaçar matar com uma faca sua professora do curso primário. Essa tendência a um "determinismo de caráter", de tentar buscar na "natureza" de Jairo, na sua "essência primeira", traços que expliquem sua vida de bandido procurado e temido, o jornal amenizará ouvindo o depoimento da família, que contrapõe ao do delegado Saul Treis, para quem "a sociedade ganhou com sua morte. Ninguém sentirá sua falta". Ao dar voz à dor dos pais, mulher e filhos, o jornal pretende mostrar um lado de seu cotidiano até então desconhecido pelos leitores: o de filho e marido, pai de duas meninas que 'JiT/'

choram sua saudade. A abordagem familiar, a iniciativa de ressaltar a "face humana" do crime, não é casual. Embora à primeira vista possa parecer contraditório, é exatamente nela que a imprensa revela, ainda que de forma sutil e subliminar, as intenções e o alcance de seu papel político. Michel Foucault nos conta como, no século XIX, a "produção da delinqüência" pelo aparelho penal tem, no noticiário policial, um forte aliado no desenvolvimento de uma "tática de confusão" que tinha por intuito criar um estado de conflito cotidiano e permanente. Tratava-se de "impor à percepção que se tinha dos delinqüentes contornos bem determinados: apresentá-los como bem próximos, presentes em toda parte e em toda parte temíveis". As "histórias de crimes" apresentam a delinqüência como algo ao mesmo tempo familiar e estranha, "uma 365 366

MORTE de traficante continua insolúvel. Extra, Joinville, 13-15 dez. 1978, v. 1, a 69, p 4. PAI de Jairo: ele era um menino bom e muito quieto. Extra, Joinville, 10-17 fev., 1979, v. 1, n. 80, p. 15.

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perpétua ameaça para a vida cotidiana".

E se no caso de Jairo Mamede foi preciso

"criar" o ambiente familiar, já que as circunstâncias do crime - incluindo-se aí a vida pregressa da vítima - eram "extremas", há outros em que nem é necessário tanto esforço. Basta mostrar "a vida como ela é":

Lamentável cena de sangue ocorreu na madrugada de ontem em Joinville, quando um gesto tresloucado vitimou mais uma pessoa e como conseqüência deixando quatro crianças órfãs de pai. Por volta das 00,30 horas o plantão da Delegacia de Comarca foi solicitado a atender um homicídio na rua João Costa, 1175, no bairro Itaum. No local, o comissário Alves, que comandou a operação, constatou a morte do senhor Leopoldo Rech, idade de 28 anos, natural de Gaspar. A tragédia resultou de um desentendimento entre a vítima e a sua esposa, Renilda Rech. Após a discussão o senhor Leopoldo foi deitar e ao dormir sua esposa muniu-se de um pedaço de sarrafo e desferiu-lhe violento golpe na nuca, matando-o instantaneamente.368

O tratamento dispensado ao mesmo crime pelo jornal Extra revela uma tentativa de interpretar o fato a partir de outras variantes, sem reduzi-lo a um "gesto tresloucado". Uma abordagem coerente com a linha editorial proposta pelo jornal: a de fazer uma página policial sem sensacionalismos baratos e vulgares:

Por volta da uma hora da madrugada no último domingo, Raimilda Rech, apoderou-se de um sarrafo (mata-junta) de sua residência e com um golpe certeiro matou o seu marido, Leopoldo, desferindo certeiro golpe na altura da nuca. Leopoldo Rech, 27 anos, desempregado, era dado ao vício da bebida e vivia mudando de emprego e surrando a mulher e filhos, após passar os dias em botecos no bairro Fátima. (...) Cansada de apanhar e de levar "uma vida de cachorro", tendo seus familiares que arcar com as despesas de casa, inclusive alimentação, no último sábado Leopoldo passou o dia inteiro "enchendo a cara" e, à noite, de novo aplicara violenta "surra" em sua mulher, motivo que levou à vingança e ao homicídio. (. . .)369

367

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: História da violência nas prisões..., p. 250-256. ESPOSA matou marido com sarrafo. Folha Catarinense, Joinville, 28 ago.-3 set., 1978, v. 2, n. 57, p. 8. 369 VIOLÊNCIA: no crime da paulada, um sintoma da cidade. Extra, Joinville, 30 ago.-l set., 1978, v. 1, n. 40. p. 6. 368

A tragédia do casal Rech, familiar e passional, traz à tona uma tensão que não se revela apenas naqueles crimes mais

ODVIOS

— como a morte de um traficante, por

exemplo. Ainda que na esfera privada, a morte de Leopoldo é, como observa aliás a manchete do Extra, um "sintoma da cidade", ou seja, daquilo que se passa na esfera pública e que perpassa o cotidiano dos joinvilenses. Falando de Baudelaire na Paris do Segundo Império, Benjamin atenta para o fato de que "o herói é o verdadeiro objeto da modernidade. Isso significa que, para viver na modernidade, é preciso uma constituição heróica". Um heroísmo, no entanto, que em nada se parece com aquele das clássicas HQs americanas: ele é condição de sobrevivência às pressões da vida moderna, "desproporcionais às forças humanas". "Compreende-se", de acordo ainda com Benjamin, "que ele [o homem] se vá enfraquecendo e busque refugio na morte".

Se pensarmos relacionalmente,

estabelecendo as conexões necessárias do "crime da paulada" com o ambiente sóciocultural de uma Joinville que já há algum tempo se despedira de sua "vidinha pacata" e entrara, finalmente, naquele paraíso frenético de consumo e mudança a que chamamos modernidade, podemos entender melhor tanto as atitudes de Leopoldo quanto de sua mulher Renilda. Ou Raimilda. À crescente segmentação e fragmentação do espaço público, corresponde um investimento cada vez maior na esfera privada, vista como refúgio necessário ao ambiente caótico e desordenado da cidade. Os laços sociais mais amplos são desfeitos: não se vive mais na cidade', vive-se em comunidade. Esse retorno simbólico ao conforto e à segurança do útero implica, segundo Sennet, um "retraimento emocional com relação à sociedade, e uma barricada territorial no interior

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da cidade".371 Esse processo de "minimização do eu" e que representa o "triunfo do individuo" sobre o social, está na base de uma cultura narcísica que, nascida como uma forma de resistencia às pressões e tragédias da vida moderna, acaba por revelar-se incapaz de preservar um componente ético fundamental à vida em sociedade: o reconhecimento do outro em sua alteridade e singularidade, esvaziando de sentido as possibilidades de existência comum. Como no filme "Denise está chamando", há uma incomunicabilidade que é, em grande parte, resultado da atomização e do individualismo exacerbado.372 A violência - e não apenas a física - é, de certa forma, resultado de um bloqueio emocional que a um só tempo fragiliza o indivíduo e esgarça o tecido social.373

370

BENJAMIN, Charles Baudelaire: um lírico..., p. 73-74. SENNET, Richard. O declínio do homem público..., p. 366. 372 Denise está chamando (Denise Calls Up). Produção canadense independente, direção de Hal Salwen, 1995. O filme narra os (des)encontros de um grupo de amigos, cuja relação e comunicação é mediada sempre pela tecnologia - o telefone e o computador. 373 Essa "minimização do eu" é discutida sob a perspectiva de um "assalto ideológico ao ego" em: LASCH, Christopher. O mínimo eu - Sobrevivência psíquica em tempos difíceis. Trad, de João Roberto Martins Filho. São Paulo: Brasiliense, 1990. p. 207-240. Uma repercussão interessante das idéias de Lasch pode ser encontrada em: COSTA, Jurandir Freire. Narcisismo em tempos sombrios. In.: FERNANDES, Heloísa Rodrigues (org.). Tempo do desejo - Sociologia e psicanálise. São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 109-139. 371

207

4.4 DUAS NOVELAS EXEMPLARES OU DE COMO SÃO NARRADOS OS GRANDES CRIMES

O importante é o que se lê. A história foi vivida para que uma página gloriosa seja escrita e depois lida. Jean Genet

Eram cerca de vinte e três horas de uma noite de quarta-feira, 30 de julho de 1980. Amigos e sócios recentes em um bar, Amadeu José Pires, 31 anos, casado, pai de dois filhos menores e mecânico de profissão, e José Jair de Oliveria, o "Nego Jair", solteiro e aparentemente sem profissão definida, dirigem-se até a boate Primavera, onde pretendem fechar negócio com a gerente da casa para a venda de um poste de energia elétrica e beber juntos ao novo empreendimento. No interior da casa, encontràm-se com José Hamilton Budal, o "Zé Cabreiro", Manoel Mateus Cordeiro, ambos casados, e um terceiro indivíduo, não identificado, que bebem em uma das mesas. Atritados há algum tempo, Zé Cabreiro e Amadeu Pires iniciam uma discussão. Em pouco tempo a confusão está armada: Zé Cabreiro atinge Amadeu na cabeça com uma cadeira e, depois, com uma mesa. Levado para fora pelo amigo e sócio, também ferido na briga, Amadeu é socorrido e encaminhado para o Hospital Municipal São José, de onde recebe alta na quinta-feira pela manhã. Nego Jair, depois de medicado, fica detido durante toda a noite na mesma cela de Zé Cabreiro e Manoel Cordeiro, no 1° Distrito Policial, sede também da Cadeia Pública de Joinville. Na tarde da mesma quinta, Amadeu não se sente bem e procura uma farmácia próxima à sua residência.

208

Recebe uma injeção e aparentemente se recupera. Perto da meia-noite, volta a se sentir mal e é levado às pressas ao hospital São José, onde morre ao dar entrada. Oficialmente, a causa mortis são os problemas cardíacos de que padecia já há alguns 374

anos. A família e o amigo "Nego Jair" contestam o atestado de óbito expedido pelo médico legista. Para eles, tratava-se de assassinato. Versão que parece ganhar respaldo junto ao jornal joinvilense A Notícia. Em suas edições subseqüentes, o matutino passa a realizar uma cobertura minuciosa do caso. Já na edição do dia 03 de agosto a manchete da página policial levanta a hipótese de que uma das bailarinas da boate seria o pivô na morte de Amadeu. De acordo com a polícia, há uma probabilidade de tratar-se de "Nice", amiga de Zé Cabreiro, o "indivíduo" não identificado na noite da briga. Acredita-se que ela estivesse tendo um caso com Amadeu e Zé Cabreiro ao mesmo tempo. Flagrada por um em companhia do outro, os dois amantes resolvem "tirar a limpo" suas diferenças. A suspeita da polícia é veementemente negada por "Nego Jair". Ele garante ao jornalista que era um homem quem fazia companhia e bebia junto com Zé Cabreiro e Manoel. A versão de Nego Jair é confirmada nos depoimentos de Eunice de Assis, a "Nice" - a provável pivô da briga, segundo a polícia - , da gerente Mareia Luzia de Souza, e de Maria de Lourdes Gomes, garçonete. As três são unânimes em afirmar que os culpados pelo quebra-quebra foram Zé Cabreiro e Manoel Cordeiro, "que destruíram tudo dentro da boate". Segundo elas, junto com os dois havia um terceiro homem, que descrevem apenas como sendo "loiro". As três também confirmam que 374

PANCADARIA em boate causa uma morte. A Notícia, Joinville, 02 ago., 1980, v. 58, n. 13978, p. 14.

209

entre Amadeu e Zé Cabreiro havia uma rixa antiga, mas nenhuma delas sabe dizer qual o motivo. Em seu depoimento, a mulher de Amadeu, Neide Fátima Pires, conta que o marido reclamou de dores na nuca durante toda a quinta-feira. Ela não acredita que ele tenha morrido em decorrência de problemas cardíacos, mas sim em conseqüência dos graves ferimentos na cabeça. Seu depoimento encontra respaldado no da prostituta Mareia Ramos, que acompanhava Amadeu e Nego Jair.377 A amante de Amadeu, Marli da Silva, também da Primavera, pouco acrescenta: afirma que estava em casa naquela noite e não presenciou a briga. É completamente diversa a versão apresentada pelos dois principais suspeitos da morte de Amadeu: Manoel Cordeiro e o próprio Zé Cabreiro. Em seu testemunho, Manoel alega que atingiu Nego Jair, mas que nem chegou a saber da presença de Amadeu no interior da boate. Já Zé Cabreiro afirma que era amigo pessoal de Amadeu e que o "problema" era com Nego Jair, com quem brigou na noite de 30 de julho. Respaldado pelo laudo médico, o advogado de defesa dos dois alega inocência, argumentando que foram seus problemas cardíacos - e não os ferimentos causados durante a suposta briga - que mataram Amadeu Pires. Versão que, segundo a matéria 379

de A Notícia, é tida como a mais provável entre os policiais responsáveis pelo caso. Contemporânea à morte de Amadeu Pires, a notícia da prisão de Pedro Paulo da Silva foi recebida com alívio pelos plantonistas policiais. Ele foi acusado de matar a 375

BAILARINA foi pivô na morte do mecânico. A Notícia, Joinville, 03 ago., 1980, v.58, n. 13979, p. 14. POLÍCIA interrogou bailarinas da boate. A Notícia, Joinville, 07 ago., 1980, v. 58, a 13982, p. 14. 377 POLICIA interrogou esposa de Amadeu. A Notícia, Joinville, 08 ago., 1980, v. 58, a 13983, p. 14. 378 ZÉ Cabreiro será interrogado. A Notícia, Joinville, 05 ago., 1980, v. 58, a 13980, p. 14. 379 ACUSADOS pela morte de Amadeu foram interrogados. A Notícia, Joinville, 12 ago., 1980, v. 58, a 13986, p. 14. 376

210

golpes de facão e um tiro, em fevereiro de 80, no bairro Nova Brasília, um homem de nome e procedência desconhecidos, no que ïi cou conhecido como

o cnme do

andarilho".380 Na época, o crime chocou pela forma brutal com que foi cometido. No Extra, o assassinato é descrito com a já habitual riqueza de detalhes:

A polícia joinvilense está às voltas com mais um misterioso crime, desta vez ocorrido na última quarta-feira, na Nova Brasília: o corpo de um homem foi encontrado envolto em sangue e totalmente desfigurado. E por enquanto, não há suspeitos. (...) A vítima teria de 35 a 40 anos e era de cor branca. Vestia calça verde clara, jaqueta azul, calçava sapatos pretos e tinha bigodes bem aparados. (...) Foram encontrados numa bolsa do homem assassinado um aparelho de barba, um sabão, uma faca e duas garrafas de aguardente - uma praticamente vazia, o que leva as autoridades policiais a crerem que se tratasse de um mendigo, embora admitam que o crime possa ter sido premeditado.381

Na reportagem de A Notícia, o assassinato é apresentado como "o mais bárbaro crime dos últimos meses". Em que pese a contradição acerca da cor da vítima - "a vítima aparenta ter 35 anos, é de cor preta" - , em todo o resto as matérias dos jornais concorrentes estão muito próximas, inclusive a descrição das roupas e dos procedimentos tomados pela polícia logo após a descoberta do corpo:

(...) A vítima estava deitada em um banco, de costas, e ao lado foi encontrada uma garrafa de cachaça pela metade e outra vazia. Havia também uma faca e uma bolsa com roupas, mas não havia documento algum, A faca encontrada estava limpa e acreditam os policiais que o crime não tenha sido praticado com ela, mas com um facão, devido a profundeza dos cortes. (...) Na mesma noite do crime, policiais em companhia da reportagem de AN avistaram na BR-101 dois andarilhos. Um deles trajava na ocasião um casaco de veludo preto, idêntico ao usado pela vítima. Acredita-se tratar-se da mesma pessoa e supõe-se que o crime tenha sido praticado pela próprio companheiro da vítima.382

380

POLÍCIA prende perigoso assassino e estuprador. A Notícia, Joinville, 8 ago., 1980, v. 58, n. 13983,

p. 14. 381

NOVO crime cercado de mistério em Joinville. Extra, Joinville, 11-18 fev. 1980, v.3, n. 127, p. 8. HOMEM assassinado a golpes de facão em Nova Brasília. A Notícia, Joinville, 8 fev., 1980, v.58, n., 13831, p. 15. 382

As investigações se arrastam ao longo de meses, inclusive com direito a 383

achincalhe do Extra, mas sem nenhum resultado satisfatório.

O concorrente A

Notícia acompanha tudo de perto. Junto com a polícia, guiados pelo olhar do repórter, os leitores percorrem o bairro, entrevistam testemunhas, formulam hipóteses. O desfecho, no entanto, é inusitado: no dia 7 de agosto, a polícia prende Pedro Paulo da Silva, que confessa ter assassinado o andarilho. Embora ausente ao longo dos seis meses em que se procurou solucionar o enigma, o texto se apressa a apresentar Pedro Paulo como o único culpado possível para tão bárbaro crime: ele é "um perigoso assassino" que já havia sido "indiciado em inquérito policial por estupro", capaz de narrar "calmamente" como e por que cometeu o assassinato.384 Na ordem das palavras, o impensável se torna, mais que uma probabilidade, a única verdade possível. Embora de "naturezas" diferentes, as estruturas narrativas dos dois crimes são apresentadas

de

forma

muito

semelhante

-

a

preocupação

em

organizar

cronologicamente os acontecimentos, a riqueza de detalhes, a tentativa de tornar o acontecimento o mais próximo possível do entendimento comum, evitando as ambigüidades e duplos sentidos. Uma resposta simples a essa semelhança seria dizer que elas representam um exercício estilístico de seus autores, ou a preocupação do jornal com a qualidade de seus textos e sua informação. Mais simples ainda seria afirmarmos tão e somente que essas eram, grosso modo, as características do jornalismo praticado nos anos 60 e 70. Não nos iludamos, no entanto. Essa linguagem

383 384

POLÍCIA é impotente. Não desvenda crimes. Extra, Joinville, 28 abr.-5 maio 1980, v.3, n. 139, p. 4. POLÍCIA prende perigoso assassino e estuprador. A Notícia, Joinville, 8 ago., 1980, v.58, n. 13983, p. 14.

212

quase cênica com que as reportagens policiais são apresentadas, não tem como intenção entreter os leitores durante o caie matinal com o teatro de horrores cotidiano. Trata-se de uma gramática toda ela construída para descrever esse cenário. Noticiar apenas não basta: é preciso, pela escrita, fazer a cena do crime chegar o mais próximo possível do leitor. Na linguagem jornalística, os crimes tornam-se uma espécie de ficção, em que não faltam os ingredientes necessários ao desenvolvimento dos enredos policiais, mesmo aqueles de qualidade duvidosa.

São esses elementos,

presentes na construção e na formação das notícias policiais, que imprimem a algumas delas um caráter ficcional. Lembremos que, na raiz latina de ficção está fingere e fictum: fingir e inventar, mas também imaginar, formar e modelar.

Na prática do

texto, trata-se de atribuir a essas histórias características que mantém com o "real" do crime uma relação apenas analógica: muda-se a escala, aumentam-se ou diminuem-se proporções, faz-se aparecer, na trama, situações, lugares, nomes, gestos e diálogos que imprimem aos acontecimentos uma unidade e uma coesão existentes tão somente no universo textual. Ao mesmo tempo, para citar Foucault, é preciso que esses acontecimentos "apesar de sua freqüência e monotonia, surjam como singulares, curiosos, extraordinários, únicos ou quase, na memória dos homens".

Trocando em

miúdos: no movimento que os transforma de "coisas" em "palavras", os "pequenos acontecimentos cotidianos" se apresentam aos leitores revestidos de um sentido, de uma ordem, que são atributos do discurso. Em si mesmas, as pequenas ou grandes 385

BIRD, Elizabeth; DARDENNE, Robert W. Mito registro e 'estórias ': explorando as qualidades narrativas das notícias. Ia: TRAQUINA, Nelson (org.). Jornalismo..., p. 263-277. Ver também: HARA Tony. Caçadores de noticias..., especialmente p. 1-33. 386 DAVIS, Natalie Zemoa Histórias de perdão e seus narradores na França do Século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 17.

213

tragédias cotidianas que inspiram as reportagens policiais não têm nenhum sentido, nenhuma ordem e nenhuma coesão. E, principalmente, não acontecem para que se tire delas alguma "lição moral". Chico Buarque estava certo: "a dor da gente não sai no jornal". Trata-se enfim de, pelas palavras, atribuir uma coesão e uma unidade àquelas histórias que, pela violência com que são narradas, estão fora de qualquer sentido. Paradoxalmente, é pela mesma narrativa que essas histórias inscrevem-se no cotidiano dos leitores, tornam-se próximas e "reais". Mas uma "realidade" que precisa ser negada, porque sua existência é uma ameaça à ordem. Localizados para além das fronteiras da norma e da normalidade, o crime, e principalmente seus protagonistas, são estigmatizados não por aquilo que são, mas pelo que não são. Os nomes com os quais o "outro" é identificado nascem no interior de uma geografia simbólica que delimita, a partir do centro, suas próprias margens. Se é na fronteira que se estabelecem as diferenças, é do choque provocado pelo encontro fronteiriço entre o centro e seu "outro" que aquelas sociabilidades até então colocadas à margem adquirem visibilidade. Trocando em miúdos, é no confronto com o poder que as "vidas ooo

infames" conquistam seu direito à fama. E é nesse encontro ainda que a imprensa cumpre parte de sua função política. Para entendermos melhor esse papel dos noticiários policiais, é preciso deslocar um pouco nosso olhar, voltarmos algumas páginas e nos determos nos editoriais. Analisá387 FOUCAULT, Michel. Os assassinatos que se conta In.: Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão. Rio de Janeiro: Graal, 1991. p. 215-216. 388 FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames..., p. 89-126. Ver também: REVEL, Jacques; FARGE, Ariette. As regras do motim: o caso dos raptos de crianças (Paris, Maio de 1750). In.: REVEL, Jacques. A invenção da sociedade. Trad. de Vanda Anastasia. Lisboa: Difel, 1990. p. 217-236.

214

los implica pensar seus conteúdos e os das reportagens policiais como discursos complementares que, embora se apresentem cada qual com seu vocabulário, diferentes entre si, expressam significados que são simétricos. Nos editoriais não há concessões a arranjos de linguagem, como nas crônicas policiais. Se essas são, por efeito de representação, o teatro das mazelas e misérias cotidianas, aqueles são seus comentadores. Trocando em miúdos: se as matérias tornam presentes o crime e a delinqüência, trazendo-os para dentro dos lares, ameaçando tudo e todos; os editoriais extraem dos campos da violência a matéria-prima necessária para reafirmar, pelo discurso, a necessidade da segurança e da ordem. A estratégia é integrar a violência a um mecanismo moral e social fundado em uma norma da qual ela é, aparentemente, a negação. Torná-la útil e produtiva, uma "auxiliar da ordem", no dizer de Maffesoli. Na prática, ela justificaria e permitiria ações cada vez mais severas e generalizadas de controle e compartimentalização OOQ

sociais.

Se é impossível erradicá-la, as políticas, tanto distributivas (mais emprego e

trabalho, por exemplo), quanto as redistributivas (as práticas de vigilância e punição 1QA / policiais), tratarão ao menos de tentar neutralizá-la.

E preciso disciplinar os corpos e

seu trânsito pela cidade, ainda que para isso seja necessário reforçar os dispositivos policiais repressivos a ponto de torná-los uma ameaça contínua, pela sua quase onipresença, ao cotidiano da urbs. Uma ameaça, no entanto, necessária, que se explica e sustenta na urgência do combate à violência. É preciso pagar o preço pelo restabelecimento e manutenção da paz social. Uma contradição que revela uma 389

MAFFESOLI, Michel. Dinâmica da violência. Rio de Janeiro: Vértice, 1987. p. 29-37. ADORNO, Sérgio. Violência, ficção e realidade. Ia: SOUZA, Mauro Wilton de. Sujeito, o lado oculto do receptor. São Paulo: Brasiliense, 1995. p. 181-188. 390

215

segunda, de certa forma inerente àquelas utopias, e às modernas utopias urbanas em especial, que aspiram à segurança e à estaDiiiciacie: o rnsGo do caos permeia todo desejo de ordem.

4.5 VIGIAR A CIDADE, DEFENDER A SOCIEDADE

Cidade irreal, Sob a fiilva neblina de uma aurora de inverno, Fluía a multidão pela Ponte de Londres, eram tantos, Jamais pensei que a morte a tantos destruíra. Breves e entrecortados, os suspiros exalavam, E cada homem fincava o olhar adiante de seus pés. T. S. Eliot

Como já dissemos, a partir principalmente da segunda metade da década de 70, o discurso da imprensa joinvilense cobrando medidas urgentes na área de segurança ganha ênfase. Podemos apontar duas outras razões, além do aumento mesmo do índice de criminalidade, para explicar essa postura mais agressiva. A partir de 77 dois novos jornais começam a circular na cidade: a Folha Catarinense e o Extra.391 Recémchegados e ávidos por leitores, eles apostam numa linha editorial mais arrojada para fazer frente aos já tradicionais A Notícia e Jornal de Joinville. Mas há uma segunda razão ainda, e sobre ela gostaríamos de nos deter rapidamente: desde 72, quando Pedro Ivo Campos é eleito prefeito de Joinville, a maior cidade de Santa Catarina tem à frente do Executivo um partido de oposição ao regime militar, o MDB - que repetiria a façanha em 78, elegendo Luiz Henrique da Silveira. A ARENA, o "maior partido do

216

Ocidente" e responsável pela sustentação da ditadura, mantinha-se firme e forte no Palácio Barriga Verde, sede do governo estadual em Florianópolis, com Antonio Carlos Konder Reis e depois com Jorge Konder Bornhausen, de 79 até 83. Falar da segurança e apontar o caos em que ela se encontrava em Joinville significava também, em meio a esse contexto, participar do jogo de forças entre a capital administrativa do estado, Florianópolis, e o seu maior pólo econômico e industrial, Joinville. Era marcar posição em uma luta que colocava, de um lado, as forças da reação e, de outro, as da oposição (ainda que consentida). A criminalidade, enfim, serve de pretexto para colocar parte dos representantes e profissionais da imprensa ao lado daqueles que "sonham com a volta do irmão do Henfil" e contra os que apoiam a ditadura. É no jornal Extra que essa escolha se torna mais explícita, e não por mera coincidência. O jornal foi fundado com o apoio do MDB local e, entre seus sócios, estão algumas das principais lideranças do partido em Joinville. O discurso oposicionista, perpassado por uma fina ironia, já se deixa mostrar na abertura do editorial da edição de 5 a 7 de julho de 78: "O setor policial da cidade das indústrias de Santa Catarina, há muito vem reclamando maiores atenções da cúpula mandatária sediada em Florianópolis". Mas torna-se explícito no desfecho do texto, quando o editorialista constata que:

(...) enquanto Joinville sofre o drama da deficiência no setor policial, outras cidades catarinenses, de menor porte industrial e comercial e mesmo populacional, desfrutam dos mais amplos benefícios dos senhores orientadores e condutores da segurança com sede na capital.

391

O "Folha Catarinense" teria vida curta: deixaria de circular apenas dois anos depois de sua estréia. O "Extra" continuaria a ser editado até 1988.

217

Para Joinville, promessas; para outros, politicamente mais ligados aos mandatários florianopolitanos, apoio efetivo e realizações.392

O ápice, no entanto, é o editorial publicado alguns meses depois. Sob o título "As causas da insegurança", lê-se:

Joinville é hoje uma cidade aberta aos crimes de todas as modalidades, com os agravantes dos roubos e assaltos à mão armada. E como se explica essa incidência macabra indesejável? Em parte pelo crescimento acelerado da cidade que já se aproxima dos seus 300 mil habitantes, a grande maioria concentrada no perímetro urbano. Mas a grande causa geradora de delitos - 90 por cento desses estimulados pela impunidade está relacionada ao desinteresse propositado do governo estadual, que vira as costas ao principal município de Santa Catarina, só porque há seis anos vem sendo administrado com eficiência por prefeitos emedebistas. (...) Até quando continuará a fingida indiferença? O povo de Joinville continua esperando a resposta.393

Os concorrentes não assistem impassíveis ao tiroteio verbal e tipográfico protagonizado pelo Extra. Ainda que de forma mais velada e indireta, já que seus interesses partidários não são tão flagrantes, a responsabilidade do poder público no quesito "segurança" não passa em branco nas suas páginas. No seu editorial de I o de novembro de 78, A Notícia não poupa críticas à fraca atuação policial diante do crescimento da criminalidade. Mas admite que "(...) É preciso antes de mais nada, dotar a polícia, material e humanamente falando, de recursos amplos para que possa cumprir sua missão (..,)".394 A precariedade parece crescer na proporção em que aumentam os casos de estupros, furtos, assaltos à mão armada, latrocínio, assassinatos e tráfico de drogas, entre outros de menor importância, deixando atônitos e sem ação a

e 15.

392

OS ASSALTOS na cidade e as deficiências da polícia. Extra, Joinville, 5-7 jul., 1978, v.l, n. 24, p. 4

393

AS CAUSAS da insegurança. Extra, Joinville, 24-31 mar., 1979, v.l, n. 86, p. 3. ÔNUS do progresso?Notícia, Joinville, 01 nov., 1978, v.56, al3451, p. 4.

394

218

polícia e indignados cronistas e editorialistas. O caos atinge a Cadeia Pública que, superlotada, não oferece a estrutura necessária para garantir o confinamento dos marginais. Em apenas um ano e meio - do segundo semestre de 77 até o final de 78 - , os jornais registram a fuga de oito dos pouco mais de 60 detentos da cadeia (sua OQC

capacidade máxima era de 38 presos).

QA/

Apenas um deles, Antonio Miers

, foi

recapturado - e pela polícia de Criciúma, no Sul do estado, que o deteve casualmente durante "averiguações de rotina".397 A resposta do poder público, e em especial dos legisladores municipais, é rápida. Projetos de lei, indicações, moções e requerimentos são seguidamente votados e aprovados, visando dotar a cidade de uma estrutura mínima capaz de garantir a segurança e o conforto de seus cidadãos. São solicitações para a abertura de novos distritos e delegacias especializadas em furtos e roubos. Reivindicações de um melhor aparelhamento da polícia local, com o aumento do contingente de policiais e a i indicação de novos delegados. Ou, simplesmente, cartas e indicações chamando a

395

ATÉ a Cadeia Pública está com superlotação. Folha Catarinense, Joinville, 24-30 out., 1977, n. 12, p. 13; EVADIDOS ainda caçados. Extra, Joinville, 30 dez., 1978 a 5 jan., 1979, v.l, n. 73, p. 7. 396 Ainda que a título de curiosidade - ou mesmo por pura ironia e, por que não?, por diversão - vale a pena atentar para o detalhe do sobrenome de Antonio: Miers, de ascendência germânica. Ainda que não tenhamos maiores informações acerca de sua procedência, é bastante provável que ele fosse joinvilense de nascimento. Ou, pelo menos, um migrante bem-vindo em uma cidade que sempre se orgulhou de suas tradições germânicas e que debitava na conta do outro, o "estrangeiro", o "não-alemão", o ônus da desordem e da insegurança. Espacial e culturalmente, essa visão esteva na base de uma segregação que colocou, de um lado, teutos e teuto-brasileiros e, de outro, os simplesmente "brasileiros", migrantes em sua maioria. Mesmo os discursos do poder público, que pregavam a integração, deixavam escapar suas intenções veladas: integrar significava homogeneizar a partir de uma cultura e de uma tradição tidas não apenas como oficiais, mas responsáveis pelo desenvolvimento econômico, técnico e moral da cidade. Um discurso que, em última instância, apenas reforçava os limites. Limites frágeis, como bem mostra o caso de Antonio Miers: é na fronteira da criminalidade que as etnias, separadas, se reencontram 397 Um segundo fugitivo, Chico Preto, é encontrado morto no começo de fevereiro em um matagal na localidade de Poço Grande, distante nove quilômetros de Joinville. Tanto a polícia quanto os jornais creditam a execução de Chico a mais um acerto de contas entre criminosos, numa ocorrência semelhante à morte de Jairo Mamede dois meses antes. ROUBOS e assassinatos continuam em mistério. Extra, Joinville, 3-10 fev., 1979, v. 1, n. 79, p. 15.

219

atenção do governador e do secretário estadual de Segurança Pública para "o atual estado, caótico até, da estrutura policial em Joinville". Duas preocupações centrais perpassam os pedidos e justificativas dos vereadores. Uma é de ordem moral e está presente, por exemplo, na indicação do vereador Nagib Zattar, datada de 3 de agosto de 77, solicitando "dois policiais para, em dupla, tipo Cosme e Damião, patrulhar permanentemente o abrigo Flamboyant, ou seja, o terminal centro do transporte coletivo". Sua argumentação chega a soar engraçada e um tanto ingênua, se levarmos em conta que os joinvilenses viviam, nesse época, em tempos bem mais sombrios:

Sem dúvida, o ponto de maior afluxo popular em Joinville é o Abrigo Flamboyant, onde acostam todos os ônibus empregados no transporte coletivo urbano. Como sei acontecer, onde há aglomeração de pessoas, não faltam nunca os afoitos, os malandros e os desocupados, que se comprazem em dizer gracinhas e até inconveniências a crianças, senhoritas e senhoras, sem um mínimo de consideração ao ambiente em que estão e às pessoas que os rodeiam.(...) Espero ver aprovada esta Indicação, como espero vê-la atendida pelo Comandante de nossa Corporação Militar, para o bom nome de Joinville e tranqüilidade tanto das famílias como dos seus membros que precisam regressar à noite a seus lares.398

O desejo de Nagib Zattar foi atendido pela unanimidade dos vereadores. Impossível não aprovar uma indicação que, apelando para o "bom nome de Joinville", solicitava reforços para conter, nem tanto os assaltos e demonstrações explícitas de violência, mas principalmente aquela delinqüência que é mais verbal e menos física, a de "dizer gracinhas e inconveniências a crianças, senhoritas e senhoras". Esse apelo à moralidade é constitutivo dos discursos acerca da delinqüência e da marginalidade. Em

398

JOINVILLE. Câmara De Vereadores. Indicação n. 638, de 3 de agosto de 1977. Propõe envio de ofício ao governador de Santa Catarina solicitando medidas de segurança para Joinville.

220

um de seus cursos no Collège de France, dedicado a estudar a sociedade punitiva, Foucault fala do crime e da delinqüência como uma ação pública: "O criminoso iesa, antes de tudo, a sociedade; ao romper o pacto social, passa a constituir-se nela como um inimigo interno".399 Daí a passagem de um sistema punitivo baseado no acerto de contas e no litígio, para procedimentos judiciários de caráter público, baseados em um sistema penal centralizado e sustentado por um aparato institucional que a um só tempo multiplica seu poder e constitui-se ele próprio em micropoderes. É a era do Panoptismo, em que as sociedades de espetáculo cedem espaço às sociedades de vigilância. Sob o ponto de vista de uma evolução moral, trata-se de construir novas práticas e discursos que tenham incidência direta sobre os corpos, que devem ser dóceis e disciplinados, voltados preferencialmente à produção e ao trabalho.400 É para mantê-los afastados das tentações mundanas e indicar-lhes o caminho reto e justo que são criados uma série de pequenos procedimentos, normas, leis e exigências que procuram adestrar o comportamento e refinar ao máximo os mecanismos de vigilância, que precisam ser cada vez mais generalizados, contínuos e eficazes. E é a vigilância outra das preocupações centrais dos legisladores. Em maio de 77 o vereador Lidio Fidélis Ferreira solicita, em ofício destinado à 2a Companhia da PM e à Delegacia Regional de Polícia, "que sejam realizadas rondas diárias na praça da Biblioteca Municipal Rolf Colin", que se tornou "um local onde muitos marginais

399

FOUCAULT, Michel. Resumo dos cursos do Collège de France (¡970-1982). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 26-44. Sobre o papel do policiamento na manutenção da ordem pública, ver: STORCH, Robert D. O policiamento do cotidiano na cidade vitoriana Revista Brasileira de História: Cultura & cidades. São Paulo: ANPUH/Marco Zero, v. 5, n. 8/9, p. 7-33, set. 1984/abr. 1985. 400 FOUCAULT, Vigiare punir..., p. 125-52.

221

fazem ponto, ali dormindo ou simplesmente deixando-se ficar sem fazer nada".401 A título de registro: trata-se da praça Lauro Müller que, um ano depois, será objeto da crônica apaixonada de lido Campello em sua coluna "Cotidiano", do jornal Extra. Mais ousado, o vereador Rolf Scholz solicita o envio de um ofício diretamente ao governador Konder Reis, propondo as seguintes medidas para Joinville: nomeação de dois escrivães e cinco comissários de polícia, aquisição de quatro viaturas e criação de uma delegacia especializada em furtos e roubos.402 Dois meses depois, atendendo a um requerimento da bancada do MDB, a Câmara constitui uma Comissão Especial, presidida por Celso Pereira, que terá como atribuição reivindicar junto ao governo do estado, num prazo de até 30 dias, respostas aos "reiterados pedidos já formulados e não atendidos" de uma melhor estrutura para a polícia joinvilense.403 Menos de um mês depois e os ilustres membros da casa festejam os resultados obtidos. A curto prazo, a cidade será lotada de um médico legista, duas viaturas para a PM, dois escrivães, dois comissários e dez novos policiais. A médio e longo prazo, chegarão mais duas viaturas, dessa vez para a Polícia Civil, dois novos escrivães e, o melhor, mais oito ou dez policiais.404 Os vereadores têm suas razões para comemorar. Ainda que suas aspirações não tenham sido atendidas por inteiro, eles sabem que quanto maior o aparato, tanto humano quanto material, maior a possibilidade daquela vigilância generalizada, eficaz

401

JOINVILLE. Câmara De Vereadores. Indicação n. 457, de 18 de maio de ¡977. Propõe envio de ofício ao governador de Santa Catarina solicitando medidas de segurança para Joinville. 402 JOINVILLE. Câmara De Vereadores. Indicação n. 753, de Io de setembro de 1977. Propõe envio de ofício ao governador de Santa Catarina solicitando medidas de segurança para Joinville. 403 JOINVILLE. Câmara De Vereadores. Requerimento n. 66, de 3 de novembro de 1977. Instituição de Comissão Especial - Necessidades de segurança em Joinville. 404 JOINVILLE. Câmara De Vereadores. Relatório Comissão Especial - Necessidades de segurança em Joinville. Joinville, 28 de novembro de 1977.

222

e contínua a que nos referimos acima. O policiamento ostensivo permitiria, assim, operar a tanto com a individuaiização do poder - planejamento e segmentação espacial, delimitação de áreas, grupos e indivíduos considerados de maior risco, dando-lhes a necessária visibilidade - , quanto com a generalização do controle - estar presente, ainda que imageticamente, em todo o espaço urbano, submetendo tudo e todos a uma mesma ordem, homogeneizando, disciplinando e docilizando corpos e comportamentos. Talvez, para os representantes legitimamente eleitos para falar e agir em nome das mais nobres aspirações joinvilenses, ter parte de suas reivindicações implementadas tenha sido um passo importante na concretização de uma utopia: a da cidade disciplinar, a um só tempo moderna e progressista, mas também harmônica e moralmente "higienizada". Mas a alegria dos vereadores dura pouco. A imprensa, sempre pronta a apontar as falhas e lacunas na segurança, pouco comenta sobre as conquistas obtidas pela Comissão Especial junto ao governo do estado. Pior. Menos de um ano depois, a situação é pintada nas páginas dos jornais com tintas ainda mais fortes e carregadas. Contrapondo-se à utopia de uma cidade virtual, as heterotopias, os contralugares, parecem surgir em toda parte, mostrando a face de uma cidade (ou cidades) real e, por isso, espaço de sociabilidades e tempos descontínuos e fragmentados.405 As tentativas de constituição e instituição de uma "eugenia moral", protagonizadas pelas elites políticas e econômicas, com o respaldo da imprensa, frustram-se em seu encontro com as práticas e sociabilidades marginais. Essas, por sua vez, transformam-se em objeto de constante vigilância e controle e, ainda que indiretamente e à sua revelia, tornam-se

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úteis à manutenção da ordem. Talvez não seja exagero afirmar que os "poderes" e as "transgressões" dividem, entre si, alguns adjetivos comuns: são microfísicos, sutis, operacionais, relacionais. E, principalmente, delimitam-se, constituem-se e nominamse um ao outro na e pela ação. Assim, pensar e falar do centro, e de como esse "centro" pensa e organiza a cidade, é condição para um olhar sobre as "margens", tornando visíveis as práticas dos joinvilenses de nascimento e de adoção que, nas suas relações cotidianas, construíram outras alternativas e possibilidades de vivências e, a seu modo, desestabilizaram e fragilizaram normas e instituições. Nesse universo de relações plurais, a delinqüência e a criminalidade perdem, por certo, a aura de romantismo que muitas vezes lhes são atribuídas. Mas conquistam o "direito" de serem pensadas historicamente, em um tempo e espaço.406 E é com nossa sensibilidade voltada a essa pluralidade de relações que queremos retornar à boate Primavera e nos encontrarmos, mais uma vez, com o mecânico Amadeu José Pires e seu amigo Nego Jair, com Nice, a bailarina, Zé Cabreiro e Manoel Mateus Cordeiro. E reencontrarmos também Leopoldo e Reinilda/Raimilda Rech. Auscultar a última noite de João Mamede do Rosário. E, antes deles ainda, revermos Juvelino da Luz e "Dalvina de Tal", entre tantos outros que deixaram seus registros nestas páginas. Mais que meros personagens de uma crônica policial, eles simbolizam aqui a possibilidade de construir a história de Joinville não apenas a partir de uma unidade ou coesão que seriam intrínsecas ao seu 405

FOUCAULT, Michel. Outros espaços..., pp. 411-422.

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desenvolvimento. Se cabe ao historiador a tarefa de dar uma "fisionomia às datas",407 é preciso que estejamos atentos às suas fraturas e dispersões.

406

Escrever uma história dos marginais, segundo Jean-Claude Schmitt, é fazer também uma releitura do centro, já que a relação entre esses dois espaços não é dicotômica: eles se delimitam e se definem um em relação ao outro. SCHMITT, Jean-Claude. A história dos marginais..., p. 261-90.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS: DISCIPLINAR, MAS NÃO DISCIPLINADA

Fiz de mim o que não soube, E o que podia fazer de mim não o fiz. Álvaro de Campos Contanto que aprendamos cada vez melhor precisamente isso, a cultivar a história em função dos fins da vida! Nietzsche

Em maio de 1980, o Delegado Regional de Polícia, João Pessoa Machado, compareceu à Câmara de Vereadores para "uma longa explanação sobre a segurança pública na cidade, abrangendo desde aspectos administrativos até o desenvolvimento efetivo dos trabalhos." No balanço que fez do setor, ele parece acreditar que a cidade chega ao fim da década com um saldo positivo. Como nada é perfeito, há ainda os problemas. Os furtos e o tráfico e consumo de tóxicos, especialmente. Em compensação, com a implantação recente dos três primeiros distritos policiais, instalados em regiões estratégicas da cidade, o índice de criminalidade diminuiu em até 60% nos últimos meses, segundo o delegado. Ao final, ele dá a sua receita para melhorar ainda mais a segurança pública em Joinville. Com a palavra, João Pessoa Machado:

"A polícia só será eficiente quando o povo merecer-lhe o respeito e não é dentro da delegacia que se consegue isso. E preciso colocar policiais na rua para que possam identificar-se com a população, com suas necessidades, seus problemas, para que possam então orientar e desenvolver um bom trabalho".408

407

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico..., p. 155. "A SEGURANÇA pública está melhorando, mas é preciso mais policiais na rua." A Noticia, Joinville, 15 maio 1980, v.57, n. 13911, p. 5. As aspas estão no original. 408

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De maneira geral, a imprensa parece ter feito as pazes com a polícia, depois de um longo período azucrinando a vida das "autoridades". Mesmo o Extra, normalmente mais incisivo em suas críticas, hasteia a bandeira branca e, num gesto de boa vontade, publica uma curta entrevista com o delegado responsável pelo I o Distrito Policial, José Enio Gonçalves. A abertura da matéria é particularmente significativa. Ouçamos o delegado:

[Repórter] Qual o verdadeiro papel do delegado? Vejo o delegado como o cidadão a quem está afeto a segurança da coletividade. Eu poderia simplesmente resumir tudo em duas palavras: proteger e defender. Mas o delegado moderno tem que ser partícipe em todas as coisas que digam respeito ao meio em que vive. Preocuparse sobremaneira com o estilo de vida de sua cidade. Assim estará preparado para enfrentar a marginalidade.409

Os representantes da lei não poderiam estar mais afinados. Atravessam seus discursos, uma tentativa de desdobrar sua intenção primeira, extraindo de suas reentrâncias outros significados e funções possíveis. Primeiro, deixar claro aos vereadores e leitores dos jornais que "a polícia não pode estar em todo lugar". Subjacente a este, o segundo desdobramento: delimitar, com o máximo de transparência, as funções da polícia e as condições para o cumprimento de uma de suas tarefas primordiais - o combate ao crime. Condições que passam, e aí o terceiro desdobramento, pela identificação com a cidade e sua população. E o seu anverso: a identificação e o respeito da comunidade para com a sua polícia. Feito isso - e a intenção se desdobra ainda uma quinta vez -, poder-se-á colocar mais policiais na rua,

^"A POLÍCIA não pode estar em todo lugar". Extra, Joinville, 15-22 set, 1980, v.3, n. 158, p.6.

já que os homens e mulheres de bem não têm porque temer aqueles que são o instrumento e a extensão da lei e a garantia da ordem. O raciocínio dos delegados não é original. Mas nem por isso, sob a perspectiva das elites locais, menos eficaz. Na prática, o primeiro passo é inserir a polícia no cotidiano e na paisagem da urbs. E, se possível, não pela violência física, mas pela identificação com a "população e seus problemas". Criado o vínculo, delega-se a ela num primeiro momento uma função moral, que o delegado regional chama eufemisticamente de "trabalho de orientação". Trocando em miúdos, é função dos policiais assegurar que, no espaço público, os comportamentos e normas de conduta não serão um agravo ao decoro público. E para isso, por exemplo, que servem as duplas "tipo Cosme e Damião" reivindicadas pelo vereador Nagib Zattar: o policiamento do cotidiano não deve tanto reprimir, mas polir.410 Não nos iludamos, no entanto. Essa violência simbólica, diluída até, com que o aparato policial ocupa uma parte da cidade, especialmente o centro e adjacências, encobre ao mesmo tempo em que legitima uma outra. A de uma polícia que, embora admita não poder estar em toda parte, lança mão de recursos e estratégias para garantir, ao máximo, a onipresença desejada. O sistema de rádio-patrulha, as "blitzes" e batidas policiais, medidas adotadas ao longo dos anos 70, são complementadas ao final da década com a implantação dos primeiros distritos policiais, uma antiga reivindicação. Eles parecem atender, entre outras coisas, aquela aspiração de compor uma cartografia da delinqüência e da criminalidade em Joinville desde aqueles lugares que são, segundo

410 SJORCH, Robert D. O policiamento do cotidiano..., p.7-34. A esse respeito, ver o trabalho recente de Robert Pechman, onde o autor analisa a constituição do mundo urbano no Brasil, em especial no Rio de

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matéria assinada por João Francisco no Extra, as nascentes da criminalidade e do criminoso: os bairros periféricos da cidade.411 Os investimentos parecem surtir algum efeito e, em fevereiro de 1980, A Notícia apresenta aos seus leitores um "novo método operacional", "inédito no estado", implantado no 2o Distrito Policial, "com o intuito de capturar determinados marginais perigosos ou mesmo traficantes de drogas". O tal "método operacional" consistia, basicamente, em manter um fichário com dados de todos os marginais que passavam pelo DP - na época da matéria, já eram quase 200, "praticamente todos os bandidos da zona Sul", de acordo com a reportagem. Com as informações devidamente catalogadas, delegado e comissários fixavam, em um mapa do município, a residência e os principais locais de atuação dos mesmos, que eram classificados pela cor das taxinhas - vermelho para ladrões e maconheiros, e outras duas cores, não reveladas, no texto, para traficantes e assaltantes. De acordo com o delegado responsável pelo distrito, Adhemar Grubba, o esquema permitia à polícia "a localização dos marginais em questão de segundos". Já as vítimas de roubos precisavam esperar alguns minutos para saberem o andamento das investigações, pois o encarregado do setor, além de atender o público, "permanece arquitetando planos para capturar os marginais".412 Essa breve incursão pelos bastidores da "cena" policial joinvilense não tem outra intenção se não a de mostrar como, no crepúsculo da década de 1970, Joinville já

Janeiro, ao longo do século XIX. Cf.: PECHMAN, Robert. Cidades estreitamente vigiadas: o detetive e o urbanista. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002. p. 67-117. 411 FRANCISCO, João. A audácia. Extra, Joinville, 6-23 jua, 1979, v.2, n. 98, p. 15. 412 ESQUEMA inédito para capturar marginais foi montado no 2 o DP. A Notícia, Joinville, 01 fev., 1980, v. 57, a 13825, p. 8.

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contava com uma polícia que lhe fazia justiça: moderna e inovadora, capaz de adequar-se muito rapidamente às necessidades da cidade e de sua população - ou, pelo menos, de uma parte dela. Em relação a isso, aliás, os responsáveis pela segurança pública - e nos referimos aqui tanto às autoridades instituídas quanto à imprensa - não usam meias-palavras. Em matéria sugestivamente intitulada "O PM não é seu inimigo", publicada antes da instalação dos primeiros distritos policiais, o repórter João Francisco expõe com esmero a geografia do crime em Joinville e os riscos a que estão submetidos os cidadãos de boa índole:

Aparentemente, a violência está crescendo em Joinville. Ela está se desenvolvendo nos bairros. Lá germinou e por lá toma corpo, dimensiona-se. Parece estar criando coragem para deslocar-se. Chegar ao centro. Na verificação desses fatos não há como estabelecer culpa do mecanismo policial.(...) (...) Bairro do Guanabara e do Itaum, vizinhos e semelhantes. A população é composta por maioria operária. Região de muitos loteamentos novos onde estabelecem-se as pessoas de baixa renda. E onde abrigam-se os desocupados da cidade. As ruas, por lá, são escuras e protegem quem ataca das sombras. (...) (...) É válido o lembrete: a violência que está crescendo no Itaum através das rodas e tráfico de drogas, arrombamentos e assaltos, pode deslocar-se para o centro em incursões ousadas de resultados imprevisíveis. Os resultados poderão ser lamentáveis. O titular da Delegacia Regional de Polícia quer ir estabelecer-se nos bairros para cortar o mal ainda jovem e pela raiz. Ajudá-lo é contribuir para a segurança de cada um. Segurança da família e da propriedade. (...) Vamos contribuir com nossa boa-vontade, ajudando a polícia na sua difícil missão de estancar a violência e conter os crimes em seu nascedouro.413

O texto de João Francisco parece ter sido escrito sob medida para concluirmos nossa incursão pelo "lado selvagem" de Joinville. E por três motivos. Primeiro, porque sintetiza exemplarmente aquilo que viemos tentando demonstrar ao longo de nosso percurso. Desde a edificação de uma memória oficial e sua ressignificação, que tem como marco os festejos do centenário, até a construção do novo cenário urbano e das

413

FRANCISCO, João. O PM não é seu inimigo. Extra, Joinville, 9-16 jun. 1979, v.2, n., p. 15.

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sociabilidades que resultam do processo de modernização, há um desejo de ordem que atravessa a história recente de Joinville.414 Desejo cuja expressão por excelência é a utopia de uma cidade ordenada, regulada, disciplinada e vigiada. E não nos parece demais repetirmos o óbvio: no caso de Joinville, foi a identidade cultural e "étnica" e, complementar a ela, o trabalho, os principais dispositivos acionados na tentativa de assegurar a realização daquela utopia. Além disso a matéria delimita, de maneira a não deixar dúvidas ao mais incauto dos leitores, as fronteiras morais que fixam no interior de uma geografia imaginária os lugares a serem ocupados pelos atores e grupos sociais. O "centro" a que se refere João Francisco, pode ser lido sob uma dupla significação, espacial e simbólica. Por fim, a forma de organização e os discursos policiais na virada da década parecem apontar em direção aquela transmutação observada, entre outros, por Deleuze e Virilio; a da sociedade disciplinar para a sociedade de controle.415 Não que se tenham abandonado, em Joinville, os procedimentos disciplinares - e a insistência, para citarmos um exemplo, com que a imprensa reivindica melhorias na cadeia local, parece ser um sintoma disso. Mas há algumas novidades que não podem deixar de ser observadas, em especial o deslocamento de prioridades: dos sistemas fechados aquela vigilância contínua, cotidiana, praticada ao ar livre. Daí a ênfase na necessidade de

414

E não apenas a história recente, deixemos claro mais uma vez. Em função do recorte temporal dessa pesquisa, não foi possível nos atermos em nossa narrativa as décadas que antecedem o período que nos propusemos estudar. Mas uma análise interessante do cotidiano joinvilense nas primeiras décadas do século XX pode ser encontrada no já citado trabalho de Iara Andrade Costa. Cf.: COSTA, Iara Andrade. Op. cit. Há ainda o trabalho de Bellini Meurer, analisado no primeiro capítulo dessa dissertação. Cf.: MEURER, Bellini. Entre flores e manguezeás:.. 415 DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad, de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992, p. 209-226. A análise de Virilio dá ênfase aqueles controles tecnológicos commis às grandes cidades contemporâneas. Certamente, não é o caso de Joinville, mas nem por isso a discussão proposta por ele nos é menos pertinente. Cf.: VIRILIO, Paul. O espaço crítico..., p. 7-19.

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colocar mais e mais policiais nas ruas, no centro e nos bairros. Os papéis e as abordagens, como já foi dito, são diferentes num espaço e em outro. No centro, trata-se de cuidar para que o comportamento e a conduta em público sejam polidos e civilizados. A função da polícia é muito mais preventiva, de defesa da moral pública, seja lá o que ela signifique. Nos bairros, a presença da polícia pretende garantir não apenas o decoro, mas principalmente a ordem. Nivelados todos pelo mínimo denominador comum, a pobreza, os operários, pessoas de baixa renda, desocupados e "marginais" no sentido mais restrito da palavra - para a polícia, traficantes, assaltantes, ladrões e maconheiros - são objeto de uma vigilância que visa assegurar uma mobilidade controlada. O fim último é evitar aquele deslocamento de que falava o repórter João Francisco, impedindo que a violência da periferia invada o "centro". E, parece-nos, o medo da violência, não se restringe à delinqüência ou a criminalidade. Teme-se também o espetáculo da miséria que, ocupando indevidamente o espaço público, insiste em ferir de morte, pelas práticas heterotópicas, os discursos utópicos das elites e da classe média joinvilense. É verdade que esse refinamento nas formas de dominação não significa a possibilidade de um controle absoluto - assim como as resistências e transgressões cotidianas não significam a liberdade absoluta. E antes que nos acusem de apologistas da delinqüência e da criminalidade, de cultores da violência, permitam-nos repetir aqui aquilo que falávamos ao final do último capítulo: o que pretendemos é pensar historicamente as práticas e sociabilidades marginais, constitutivas da "vida urbana", bem como os significados que lhe são atribuídos pelo "centro". Aspiramos, assim,

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olhar a cidade como um espaço plural e polifónico, cenário de tensões e de lutas, de contradições e conflitos. E se em nossa trajetória escolhemos aqueles grupos e personagens infames foi, entre outras coisas, para que pudéssemos fazer, através deles, a pergunta que se fez Álvaro de Campos: "Onde é que há gente no mundo?".

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