Leituras sobre a vida e obra do 2º Visconde de Santarém (1833-2006)

September 10, 2017 | Autor: D. Protásio | Categoria: Historiography, Ideology, 2º Visconde de Santarém, D. Miguel of Portugal
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1 Leituras da vida e obra

O capítulo que se inicia ir-se-á desenvolver à volta de dois eixos temáticos. Primeiro, o das quatro fases de leituras, entre 1833 e 2006, já brevemente apresentadas na introdução. Depois, o das cinco áreas em que incidem essas leituras: 

as visões generalistas;



a historiografia (documentalista, diplomática, das cortes

e dos descobrimentos); 

a política;



a diplomacia;



a cartografia e a geografia.

Por fim, analisar em profundidade os principais mitos a que se resumem tais leituras: 1.

o do síndroma da dupla personalidade, a do historiador e

a do político (à imagem do Médico e Monstro de Stevenson); 2.

o do mau político, sectário e intransigente, "sempre

miguelista" (como o conde de Basto e António Ribeiro Saraiva); 3.

o do mau ministro dos Negócios Estrangeiros (à imagem

de Ribbentrop); 4.

o do traidor à causa, que propôs e aceitou a rendição

(como Rudolf Hess); 5.

o do colaboracionista enquanto ministro (Walter

Schellenberg) e guarda-mor da Torre do Tombo, que com isso teria causado a morte a Vieira de Castro; 6.

o do intransigente exilado (à Marcello Caetano);

7.

o do propagandista do império e historiador nacionalista,

acrítico e pré-científico (como Joaquim Bensaúde).

2 E, em contrapartida, tentar demonstrar que o visconde de Santarém foi: 1.

um típico caso de homem de saber entrando na política,

para governar acicatado por uma direita de linha dura (como Marcello Caetano); 2.

a de um consciencioso ministro dos Estrangeiros, num

país de elites defensoras do isolacionismo internacional; 3.

a de um moderado que apenas aceitou servir a realeza D.

Miguel se reunidas previamente as cortes tradicionais (como o duque de Cadaval) e que, mais do que "sempre miguelista", foi um tradicionalista defensor do constitucionalismo histórico e da contrarevolução; 4.

a de um apologista, informado, de uma solução política

para a guerra civil, sem rendição ou transigência perante o lado considerado rebelde (à imagem de Hess e de Schellenberg); 5.

a de um ancião que quis ser enterrado na sua terra e lhe

legou a sua livraria, aliás lançada aos quatro ventos (o oposto exacto de Marcello Caetano); 6.

a de um historiador pronto a colocar-se ao serviço da sua

pátria, independentemente do regime (ao contrário de Caetano); 7.

a de um historiador onde se mesclavam a tradição

triunfalista de um Portugal imperial e a inovação, metodológica e mediática, introduzida no debate internacional da prioridade na chegada a África.

3 As quatro fases das leituras (1833-2006)

Comecemos por sumarizar os principais aspectos dos quatro momentos das lendas dourada e negra do visconde de Santarém (1). Inicialmente imperou a visão dos herdeiros dos “bravos do Mindelo”, ou seja, de políticos, ideólogos, historiadores, funcionários civis e diplomatas do 1º e 2º cartismos e setembrismo (1833-1904), críticos da actuação política do visconde de Santarém ministro do Reino e dos Negócios Estrangeiros, mas também enquanto guarda-mor da Torre do Tombo in absentia sob Costa Cabral e historiador. É curioso notar que se tratarão de alguns dos "muitos companheiros do Mindelo que haviam aderido ao Setembrismo" de quem Alexandre Herculano se aproximou (2). As primeiras interpretações políticas e historiográficas surgiam conforme se resgatavam do esquecimento memórias, diários, documentos e vivências da guerra civil de 1832-34. Em vida do visconde de Santarém foi o caso da Crónica Constitucional de Lisboa (1833), de José Liberato Freire de Carvalho (1841), Oliveira Berardo e Luz Soriano (1846-49 3), todas altamente negativas. Como contraponto só existe uma referência ao Quadro Elementar... no primeiro volume da História de Portugal de Herculano, a inclusão, no mesmo ano, de uma litografia do visconde nos Retratos dos Homens Ilustres

1

Veja-se, como enquadramento geral, Sara Marques Pereira, D. Carlota Joaquina e os "Espelhos de Clio". Actuaçção política e figurações historiográficas, Lisboa, 1999, passim (e, no caso específico, sobretudo as pp. 179-182). 2 Joaquim Veríssimo Serrão, Herculano e a Consciência do Liberalismo Português, Lisboa, 1977, p. 209. Foram os casos de protegidos como Oliveira Berardo e de outros combatentes liberais e jornalistas no exílio como Luz Soriano e Pinheiro Chagas (Joaquim Veríssimo Serrão, Op. cit., p. 142 e 156 n. 19, Isabel Nobre Vargues e Luís Reis Torgal, “Da revolução à contra-revolução: vintismo, cartismo, absolutismo. O exílio político” in José Mattoso (dir.), História de Portugal, Lisboa, 1993, vol. V, p. 83 e António José Saraiva, Herculano e o Liberalismo em Portugal, Lisboa, 1977, p. 26). 3 Crónica Constitucional de Lisboa nº 38, de 7 de Setembro, p.198, nº 46, de 17 de Setembro, p. 244 e nº 57, de 30 de Setembro de 1833, p.301, José Liberato Freire de Carvalho, Ensaio Político sobre as Causas que Preparam a Usurpação do Infante D. Miguel no Ano de 1828, e com ela a Queda da Carta Constitucional do ano 1826, Lisboa, 1840, p. 87, José de Oliveira Berardo, Revista Histórica de Portugal, desde a morte de D. João VI. Até o Falecimento do Imperador D. Pedro, Porto, 1846 (2ª edição), p. 47 e Simão José da Luz Soriano, História do Cerco do Porto, 1846-1849, 2 vols.

4 oitocentistas e, sobretudo, a frase lapidar do deputado Agostinho Albano da Silveira Pinto (1841), sintomática da busca cabralista por uma reconciliação nacional: “apesar de ministro do usurpador [em 1829], era um homem muitíssimo de bem, de instrução europeia e probidade reconhecida” (4). De uma maneira geral, as décadas seguintes foram inversamente marcadas por um azedume virulento nascido dos tempos das Archotadas, dos exílios liberais, dos anos do devorismo e do segundo cartismo. Embora Rebelo da Silva (1858 e 64), Fronteira (1861), Silvestre Ribeiro (1873) e Oliveira Martins (1881) referissem o visconde político e historiador de uma forma razoavelmente isenta, Luz Soriano (1882 e 84), José de Arriaga (1892), Pinheiro Chagas (1902) e Barbosa Colen (1904) perpetuaram a imagem e o mito do anão moral e intelectual, do sectário miguelista, traidor e

colaboracionista, que pactuou

com Costa

Cabral

para

viver

principescamente em Paris à custa do Estado português (5). Em 1915 e 33 eram publicados o Diário de Ribeiro Saraiva e as Memórias do conde de Lavradio, que vieram ainda mais aprofundar a visão negativista da actuação política e das capacidades do visconde de Santarém enquanto ministro dos Estrangeiros. As afirmações combinadas desses historiadores vigoravam ainda, sem análise documental e refutação ou confirmação críticas, nas décadas de 70, 80 e 90 do século passado, reproduzidas por grandes nomes

4

Alexandre Herculano, História de Portugal desde o começo da monarquia até ao fim do reinado de D. Afonso III, Lisboa, 7ª edição definitiva, 1914, tomo I (Introdução), p. 43, "Advertência", p. 24, Pedro António José dos Santos (ed.), Retratos dos Homens Ilustres, que por Ciência, Política e Artes sobressaíram no século XIX, Lisboa, 1846 e visconde de Santarém, Correspondência do [...], coligida, coordenada e com anotações de Rocha Martins, vol. VI, pp. 147-8, n. 1. 5 Rebelo da Silva, Quadro Elementar..., Lisboa, vols. XVI, 1858, p. CCXLIX e IX, 1864, pp. XX-XXII, marquês de Fronteira, Memórias do... e d’Alorna, D. José Trazimundo Mascarenhas Barreto, Ditadas por Ele Próprio em 1861, Revistas e Comentadas por Ernesto de Campos de Andrade, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1926, "Parte V - 1833 a 1834", p. 104, José Silvestre Ribeiro, Historia dos Estabelecimentos científicos, literários e artísticos de Portugal, nos sucessivos reinados da monarquia, Lisboa, volume III, 1873, p. 372, n., Joaquim Pedro Oliveira Martins, Portugal Contemporâneo, Porto, 1981 (1ª ed. 1881), vol. I, p. 184, Luz Soriano, História da Guerra Civil, 3ª Época, 1882, tomo II, parte II, p. 136, n. 1, e 1884, t. IV, p. 245, n., Manuel Pinheiro Chagas, História de Portugal Popular e Ilustrada, Lisboa, 1902 (3ªedição), vol. VI, pp. 248-9, 284, 299, 335 e 340, José de Arriaga, História da revolução de Setembro, 1892, p. 124 e J. Barbosa Colen, História de Portugal Popular e Ilustrada de Manuel Pinheiro Chagas..., nono volume, 1902, passim.

5 da nossa cultura como Hernâni Cidade, José-Augusto França e João PalmaFerreira (6). Por outro lado, os anos de 1903-19 foram os da necessária e urgente ressurreição da figura e do seu acervo documental, centrando a atenção sobretudo na divulgação e na reimpressão, mas não na análise. As duas únicas excepções foram Martinho da Fonseca e Almeida d’Eça (1907), este último autor, mesmo assim, perpetuando a visão de Pinheiro Chagas quanto ao binómio ciência e ideologia. Jordão de Freitas misturou de forma confusa a biografia, a inventariação de alguma correspondência e a evolução da obra em O 2º Visconde de Santarém e os seus Atlas Geográficos (1909), historiando-lhe a família noutro volume (1913) e retirando do pó dos arquivos Opúsculos e Esparsos (1910) e Inéditos (1914). António Baião contribuiu com estudos sobre o visconde guarda-mor da Torre do Tombo (1909-10) e prefaciou o catálogo da sua terceira livraria (1918). Rocha Martins (1918-9) compilou e anotou a monumental correspondência de Santarém (7). Este último deixou inédito, infelizmente, um nono volume de adendas e provavelmente nunca concretizou um projecto de biografia política meio romanceada que, mesmo assim, seria interessantíssima ( 8). Estes foram os conturbados tempos do declínio e queda da monarquia liberal, da República Velha e da República Nova sidonista, com os consequentes Diário de Ribeiro Saraiva (1831-1888), Lisboa, 1915, tomo I, Conde do Lavradio, Memórias do…. Revistas e Coordenadas por Ernesto de Campos de Andrade, Coimbra, 1932-1933, vários volumes, Hernâni Cidade e Ruy d'Abreu Torres, na obra Cultura Portuguesa, s.l., vol. 13, © 1974, p. 82, JoséAugusto França, “Cartas do 2º Visconde de Santarém Ministro de D. Miguel ao Enviado em Londres 6º Visconde de Asseca (1828-1831)”, separata dos Anais da Academia Portuguesa de História, II Série, vol. 29, Lisboa, 1984, p. 503 e Francisco de Paula Ferreira da Costa, Memórias de um Miguelista (18331834), prefácio, transcrição, actualização ortográfica e notas de João Palma-Ferreira, Lisboa, s.d., p. 76, n. 32. 7 Martinho da Fonseca, Visconde de Santarém. Apontamentos para a sua biografia, Lisboa, 1907 e Almeida d’Eça, A obra científica do Visconde de Santarém (1907). Jordão de Freitas escreveu O 2º Visconde de Santarém e os seus Atlas Geográficos (1909) e Onde nasceu o 2º visconde de Santarém? (1913) e organizou os Opúsculos e Esparsos... (1910) e os Inéditos... (1914). António Baião contribuiu com os estudos O 2º Visconde de Santarém guarda-mor da Torre do Tombo (1909; Aditamento, 1910) e prefaciou o catálogo da terceira livraria do visconde (1918). Rocha Martins publicou a Correspondência do 2º visconde de Santarém, 1918-19, 8 vols. 8 Como me foi respectivamente comunicado e mostrado, na Colecção Visconde de Santarém, pelo 4º titular desta casa, em 2001-2002. 6

6 apelos a um nacionalismo saudosista e heróico e a uma visão positivista de «ciência pura» na vida e obra do visconde de Santarém. Numa terceira fase, António Sardinha (1925), Fernando Campos (1931 e 1943), António Ferrão (1940) e o conde de São Paio (1941) produziram

análises

pertinentes

mas

eivadas

de

ideologia,

ora

tradicionalista, ora liberal. Querendo dar das lutas entre pedristas e miguelistas uma nova visão, documentada e abrangente, acabaram por entronizar uma determinada leitura de figuras oitocentistas – entre elas a do visconde de Santarém. Este foi seccionado em dois planos: um enquanto erudito, outro enquanto político, cada qual com a sua realidade antagónica, contraditória e de valor desigual. Embora António Ferrão, no seu Reinado de D. Miguel, de 1940, produzisse um volume riquíssimo de informações sobre os mais diversos aspectos daquele período, fê-lo muitas vezes com os argumentos mais agressivos da historiografia liberal (sobretudo de Pinheiro Chagas e de Barbosa Colen). Deu o mote, por exemplo, classificando o visconde de “tão notável erudito quão imprevidente ministro dos Negócios Estrangeiros em tão difícil conjuntura”, primeiro e depois escrevendo, num tom mais agastado e irónico: “Ninguém poderá dizer que o chefe da diplomacia de D. Miguel fosse um espírito clarividente ou, sequer, sagaz em política e, especialmente, em política externa!” (9). Em seguida descreveria a sua acção enquanto ministro dos Estrangeiros de uma forma pouco menos do que insultuosa, como a seu tempo veremos. Anos depois, aquando das comemorações dos 150 anos da morte do visconde (1941-2), de cunho nacionalista e conservador, as comunicações e artigos produzidos louvavam-lhe o pensamento tradicionalista e a acção a favor de D. Miguel. Tentando (e conseguindo) inverter essa visão negativa 9

António Ferrão, Reinado de D. Miguel, vol. I (“O Cerco do Porto, 1832-1833”), Lisboa, 1940, pp. 16 e 30.

7 anterior terão, porém, caído no extremo oposto de incensar o visconde com epítetos como o de “autor beneditino do Quadro Elementar” (Rodrigues Cavalheiro) e de espécie de Nun’Álvares do império (Afonso de Dornelas 10

). Quase que se poderia falar num mito de santidade nacionalista… Em

consequência, não mais o visconde de Santarém deixaria de estar conotado com a historiografia e a ideologia do Estado Novo, com os evidentes prejuízos daí decorrentes. Como seria natural, a historiografia posterior tentou produzir uma síntese dessas duas visões antagónicas, com objectivos de isenção e imparcialidade científicas, mas de resultados práticos infelizes. Foi o que sucedeu em 1969 com Armando Cortesão, na sua História da Cartografia Portuguesa. Altamente elogioso da importância da obra do visconde ao nível cartográfico, resumiu o seu percurso político com estas eloquentes palavras: “O Visconde de Santarém, sempre miguelista embora nos últimos tempos em boas relações com os constitucionais, foi apanhado pelo turbilhão político que convulsionou Portugal durante praticamente todo o tempo que decorreu desde o seu nascimento em 1791 até a sua morte em 1856, tão depressa o guindando às mais altas situações como logo o lançando para o exílio. Homem de grande nobreza de carácter e lídimo patriota, aparentemente foi tão mau político como grande sábio – o que, diga-se de passagem, parece ser a regra geral quando os sábios se metem em política. Nos últimos vinte anos da sua vida, porém, pôs a política completamente de lado e apenas procurou servir a mãe-pátria como julgou melhor” (11). Da leitura destas linhas surgem as seguintes questões:

10

Rodrigues Cavalheiro, «O Visconde de Santarem. Grande sábio e grande Português», Diário da Manhã de 18 de Novembro de 1941, pp. 1 e 3 e Afonso de Dornelas, «O Atlas do Visconde de Santarém», conferência proferida na Academia Portuguesa de História, reproduzida em A Voz de 19 de Novembro de 1941, p. 6 e Boletim da Academia Portuguesa de História, p. 112, na qual afirmava: «enquanto Nuno Álvares foi o maior e mais eficaz defensor de Portugal o 2º Visconde de Santarém o foi do Império». 11 Armando Cortesão, História da Cartografia Portuguesa, 1969, p. 10.

8 

“sempre miguelista…”: durante e depois do reinado de D.

Miguel? 

“…embora nos últimos tempos em boas relações com os

constitucionais” – que últimos tempos? Ainda em 1833, quando ministro (fantasma da rendição) ou depois de 34? 

“tão mau político como grande sábio”: porquê mau

político? Por serem todos os políticos maus, de um ponto de vista científico? Por se tratar de um ministro de D. Miguel? Partindo-se do princípio de que se sabe o que é ser político no Antigo Regime, donde derivará esse epíteto: somente das críticas de Ribeiro Saraiva, de Pinheiro Chagas e de Ferrão? 

Será que foi apenas enquanto sábio, nos últimos vinte

anos da sua vida, que o visconde “procurou servir a mãe-pátria como julgou melhor”? Não terá, antes, tentado fazê-lo de forma constante? Será que quem perfilha e age de acordo com os seus ideais, quaisquer que eles sejam, só tem legitimidade para o fazer se estiver do lado dos vencedores? Daqui resultou, sempre, uma enorme interrogação, quase embaraço, sobre como compreender, explicar ou conceber tal dualidade no visconde de Santarém. Quase que se poderia falar num caso de dupla personalidade, à Dr. Hyde e Mr. Jekyll: o bom sábio que, por qualquer razão misteriosa (talvez as maléficas crenças ideológicas), se visse transformado num mau político, para, uma vez recuperando o bom senso, se remeter de novo aos seus papéis e aos seus alfarrábios... O que se ignora com essa caricatura é que tal desilusão com a política, no visconde de Santarém, conheceu contornos ainda maiores: ele sempre teve que lutar contra o elemento de intriga que na corte portuguesa lhe foi movido, devido ao seu carácter rectilínio e moderado e à sua inteligência e conhecimentos livrescos. Daí que esse corte com a

9 política não possa ser confundido com uma ruptura com a ideologia ou com as comunidades científica e social que o rodeavam. Por todas estas razões, desde sempre esse período ministerial (182733) foi visto como algo de incómodo, de inexplicável, no conjunto da vida e obra desta figura, quase como um hiato, um mero devaneio ou erro de uma juventude tardia. Em 1989 Martim de Albuquerque, num magnífico ensaio sobre a acção do visconde de Santarém na área dos descobrimentos e da cartografia, nem sequer mencionou o seu ministério sob D. Miguel. Dois anos depois, no jornal Público, num raro artigo isolado sobre o esquecido bicentenário do nascimento do visconde, Henrique Mateus referiu-se rapidamente a essa questão do seguinte modo: “Miguelista convicto, e incapaz de pactuar com a causa liberal é arredado do poder em 1833”, isto é, mantém o atributo de “sempre miguelista” de Armando Cortesão. Em 1994 esse mesmo epíteto era levado, por José Sarmento de Matos ao paroxismo, classificando-o como “ferozmente miguelista”. Por fim, a 6 de Janeiro de 2006, por ocasião dos cento e cinquenta anos da morte do visconde, Alfredo Magalhães Ramalho falava em "Miguelista ferrenho" (12). Em consequência dessa visão, tem sido o visconde reduzido ao estereótipo de historiador miguelista: em 1902, Pinheiro Chagas dizia-o “o apologista de D. João V” devido aos “interesses da sua opinião e do seu capricho”. Pior ainda, em textos especialmente dedicados à historiografia, prevalece essa leitura reducionista. No Dicionário de História de Portugal, Joel Serrão escreveu ainda que “é bem sabido […] que se conservou fiel ao miguelismo”, embora seja o único autor que questiona a validade de rotular ideologicamente este e outros historiadores dos descobrimentos. Em 92 12

Martim de Albuquerque, “O Visconde de Santarém. O Homem e a Obra”, in Atlas du Vicomte de Santarem, Lisboa, Administração do Porto de Lisboa, 1989 e Estudos de Cultura Portuguesa, Lisboa, 2002, 3º volume, pp. 421-39, Henrique Mateus, “Em Memória do 2º Visconde de Santarém”, Público de 17 de Novembro de 1991, p. 15, José Sarmento de Matos, Uma Casa na Lapa, Lisboa, 1994, p. 181 e Alfredo Magalhães Ramalho, circular da Casa Veva de Lima de 6 de Janeiro de 2006.

10 António Filipe Pimentel ainda mantinha a leitura de Pinheiro Chagas de que a valorização de D. João V, por parte do visconde, explicar-se-ia pelo facto de ter sido – ou ser – miguelista, ou seja, antipombalino, quando Santarém várias vezes elogiou aquele que classificou como o “Grande Pombal” ( 13). Em 1996, na obra colectiva História da História em Portugal, Fernando Catroga apelidou-o de “miguelista crítico”, isto é, adepto de D. Miguel dotado de sentido crítico, preferindo Reis Torgal afirmá-lo como “saído das hostes do miguelismo crítico”, aparentemente dando ao facto mera informação biográfica (14). No fundo, toda esta questão se prende com o propósito, mais abrangente: 

de se reduzir a obra historiográfica do visconde ao

período de 1841-42 em diante (isto é, contemporânea das preocupações documentais de Herculano); 

de supostamente resultar de vivências estrangeiras e



de possuir um carácter secundário e instrumental, dado o

financiamento do governo português e de a partir de 1858 a Academia das Ciências lhe continuar o Quadro Elementar (passando, ipso facto, o autor a mero “primeiro director” de uma obra dita da Academia 15). Também é preciso entender que o facto de possuirmos uma visão caleidoscópica da obra do visconde resultará, porventura, do tempo de especialização que se vive desde o último quartel do século XIX. Conforme autores dos mais variados quadrantes – Ferrão (1940), Cortesão (1969) ou Albuquerque (1989) – procediam às suas respectivas análises sectoriais, não 13

Expressão usada em carta reproduzida na Correspondência..., Op. cit., vol. VI, p. 101. Manuel Pinheiro Chagas, História de Portugal Popular e Ilustrada, Lisboa, 1902 (3ªedição), vol. VI, pp. 248-9, 284, 299, 335 e 340, Joel Serrão, “Historiografia (na época contemporânea)”, in Joel Serrão (dir.), Dicionário de História de Portugal, Porto, 1989, vol. VI, pp. 443-4, António Filipe Pimentel, Arquitectura e Poder. O Real Edifício de Mafra, Coimbra, 1992, p. 11, Fernando Catroga, “Alexandre Herculano e o Historicismo Romântico”, in Luís Reis Torgal, José Maria Amado Mendes e Fernando Catroga, História da História em Portugal, Lisboa, 1996, p. 52 e Reis Torgal, “Antes de Herculano”, in Op. cit., p. 37. 15 Joaquim Pedro Oliveira Martins, na História de Portugal, Lisboa, Livraria Bertrand, 1879, t. II, p. 263, nem isso fez - simplesmente falou no Quadro Elementar... e no Corpo Diplomático... como obras «publicadas por ordem do governo». 14

11 biografavam a vida ou sintetizavam a importância do legado históricoideológico do visconde de Santarém no seu todo. Não eram, de resto, esses os seus propósitos. Quando Soares Martinez (1986), Castro Brandão (1990) ou Vasconcelos de Saldanha (1995 e 97) analisavam a sua acção diplomática, atinham-se naturalmente a essas áreas. O mesmo sucedeu com episódicas referências ao historiador da diplomacia em Edgar Prestage (1915, 28 e 43), Teixeira de Sampaio (1925) ou Damião Peres (1931), entre outros (16).

16

Pedro Soares Martinez, História Diplomática de Portugal, s.l., Editorial Verbo, 1992 (2ª ed.), pp. 359, 366, 367, 401, n. 133, 405, n. 145, 406-7, n. 149, 407-8, n. 151 e 453, n. 22, Fernando de Castro Brandão, «O Ultimato Francês de 1831 e a Diplomacia de D. Miguel», nos Arquivos do Centro Cultural Português, Lisboa-Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1990, vol. XXVIII, pp. 341-402, ou António Vasconcelos de Saldanha, António Vasconcelos de Saldanha, A "Memória sobre o estabelecimento dos portugueses em Macau" do Visconde de Santarém (1845). Os primórdios da discussão da legitimidade da presença dos portugueses em Macau, Macau, 1995, passim e Iustum Imperium. Dos Tratados como Fundamento do Império dos Portugueses no Oriente, Fundação Oriente/Instituto Português do Oriente, Lisboa, 1997, p. 273, Edgar Prestage, Ministros Portugueses nas Cortes Estrangeiras no reinado de D. João IV e a sua correspondência, Porto, 1915, p. 7 e n. 3, As Relações Diplomáticas de Portugal com a França, Inglaterra e Holanda, de 1640 a 1668, Coimbra, 1928, pp. XI-XII, A Aliança AngloPortuguesa, Coimbra, 1943 (2ª edição), p. 8, Luis Teixeira de Sampaio, O Arquivo Histórico do Ministério dos Negócios Estrangeiros (Subsídios para o Estudo da História da Diplomacia Portuguesa), Coimbra, Imprensa da Universidade, 1925, pp. 27-28, Damião Peres, A Diplomacia Portuguesa e a Sucessão de Espanha, Barcelos, Portucalense Editora, 1931, pp. 21, 24 e 25 (n. 1).

12 As cinco espécies de leituras

As datas de nascimento e de morte, o nome e a imagem física de uma figura histórica são alguns dos elementos que mais vezes são reproduzidos, talvez por serem aqueles que mais facilmente se memorizam e divulgam. Quando alguns ou todos esses elementos são desvirtuados ou incorrectamente reproduzidos, será a própria história que sai empobrecida. No caso do visconde de Santarém, os anos em que nasceu e morreu surgem várias vezes errados: 1790 em vez de 1791 e 1855 ou 1859 em vez de 1856. Mesmo a sua imagem numa obra de Vitorino Magalhães Godinho é substituída pela de um cortesão do século XVII... (17).

Visões generalistas

Quando se fala no visconde de Santarém, sem mais pormenores, muitas vezes o tom é francamente elogioso. Tão cedo quanto 1843, os Anais Marítimos e Coloniais referem-selhe, a propósito dos três primeiros volumes do Quadro Elementar..., como “O nosso preclaro e mui distinto Sócio honorário, o Sr. Visconde de Santarém […] um dos nossos mais insignes compatriotas, um dos mais célebres e abalizados literatos da Europa, ornamento da pátria” (18). Martim de Albuquerque diz, em 1989, que o seu nome "tem jus a ser gravado em

17

A Biographie Universelle Ancienne et Moderne, de Michaud, para a qual o visconde contribuiu com alguns artigos, enganou-se na data de nascimento, dizendo-a 1790 (nova edição, s.d., tomo 37º, p. 674). O Portugal - Dicionário histórico, corográfico, biográfico, bibliográfico, heráldico, numismático e artístico... por Esteves Pereira e Guilherme Rodrigues, Lisboa, 1912, vol. VI, p. 602, reproduz o erro do ano da morte ser 1855. Curioso é que Hernâni Cidade e Ruy d'Abreu Torres, na obra Cultura Portuguesa, s.l., vol. 13, © 1974, p. 82, chegam a afirmá-lo morto em 1850! Vitorino Magalhães Godinho aventa, antes, o ano de 1859 (Vitorino Magalhães Godinho, Mito e mercadoria, utopia e prática de navegar (séculos XIII-XVIII), Lisboa, 1990, pp. 13 e índice das ilustrações). Estes casos são apontados apenas para provar a recorrência das imprecisões, sobretudo em obras de tão destacados historiadores da cultura e dos descobrimentos como os últimos três. 18 Anais Marítimos e Coloniais, 3ª série, nº 12, 1843, p. 599.

13 letras de ouro na grande coluna da Pátria" e chama-lhe "um dos portugueses mais ilustres de todos os tempos" (19). Um curioso paralelo entre Santarém e o cardeal Saraiva foi feito em 1995, por Maria Isabel João. Procedendo a uma apreciação global, comparada, de "dois historiadores da expansão portuguesa" que, um liberal e outro miguelista, provaram como "o interesse por este tema sempre atravessou as várias correntes ideológicas da sociedade portuguesa", descreve-os, porém, de formas opostas. Enquanto a autora menciona o cardeal Saraiva como "um liberal de vasta erudição, que conciliou o desempenho de cargos públicos com a investigação e a escrita", descrevendo a longa lista de funções desempenhadas, resume as qualidades do visconde de Santarém como "manteve-se sempre do lado absolutista". Há que não esquecer que Santarém também desempenhou outros tantos cargos de importância sob D. João VI, D. Pedro IV. D. Miguel I, D. Maria II e D. Pedro V, como ministro, guarda-mor da Torre do Tombo, conselheiro de Estado e cronista do reino (20). Acrescente-se que o seu nome costume ser citado a propósito da intervenção na história dos descobrimentos e na cartografia (com predomínio da primeira), muitas vezes olvidando a sua poliédrica obra e interesses múltiplos. Talvez por assim se evitar menções à actividade políticodiplomática, mais dada a polémicas.

19

Martim de Albuquerque in Vicomte de Santarém, Recherches sur la priorité des pays situés sur la côte occidentale d'afrique, au-dela du cabo bojador, et sur les progrés de la science geographique après les navigations des portugais, au XV siècle et Éssai.... Edition fac-similée, organisée et avec une préface par..., Lisboa, 1989, p. 1. 20 Maria Isabel João, "Organização da Memória", in Francisco Betthencourt e Kirti Chaudhuri (dir.), História da Expansão Portuguesa, Lisboa, Círculo de Leitores, vol. 4, 1998, p. 395.

14 Historiografia

(documentalista, diplomática, das

cortes

e dos

descobrimentos)

Enquanto historiador documentalista, da diplomacia, das cortes a ou dos descobrimentos, o visconde de Santarém é geralmente tido como um pioneiro ou, pelo menos, com tendo deixado uma marca imperecível nessas áreas. Foi nada menos do que o próprio Alexandre Herculano quem chamou primeiro a atenção para os seus trabalhos de recolha de documentos, no prefácio ao primeiro volume da História de Portugal (1846). Oiçamo-lo, pois. "A primeira colecção diplomática [de diplomas] portuguesa, tentada e reduzida em parte a efeito, não conta mais de três anos de data (21). Falamos do Quadro Elementar das relações de Portugal com as outras potências, base de uma compilação importante incumbida pelo governo (22) a um dos nossos mais célebres escritores, o senhor Visconde de Santarém. Fora daqui não possuímos senão o ainda pequeno resultado dos esforços da Academia neste género e das diligências heterogéneas e desconexas de vários indivíduos, cujo zelo não podia, de modo algum, vencer as dificuldades que apontámos" (23). Mais recentemente, em 1984, António Pedro Vicente lembrou, entre os portugueses que no estrangeiro demandaram arquivos e bibliotecas em busca de documentos portugueses, o exemplo do visconde, em 1827, apenas antecedido de Ferreira Gordo (1792 24).

O que é um erro, pois trata-se de uma segunda edição – não mencionada – de um primeiro volume impresso pela primeira vez em 1828. 22 Mais correctamente, financiada (e não encomendada) pelo governo português. 23 Alexandre Herculano, História de Portugal [...], Op. Cit., tomo I, "Advertência", p. 24. Defendia-se, pois, que só no âmbito da Academia das Ciências de Lisboa tais trabalhos poderiam ser realizados com qualidade. 24 António Pedro Vicente, "Fontes espanholas, francesas e inglesas para a história militar portuguesa dos séculos XVIII e XIX", in O tempo de Napoleão em Portugal. Estudos históricos, Lisboa, Comissão Portuguesa de História Militar, 2000 (2ª edição), p. 26. 21

15 Tão cedo quanto 1822 Adriano Balbi (1782-1848), geógrafo, académico e estadista italiano, escrevia, do texto que mais tarde seria o prefácio do Quadro Elementar..., que "On nous a assuré que le discours préliminaire est un chef-d'oeuvre d'érudition". Em 1940 seria a vez de António Ferrão afirmar que, na ausência de uma história diplomática de Portugal, "o eminente cientista visconde de Santarém [...] deixou a única coisa boa que possuímos nessa especialidade" - isto, no mesmo volume em que o insultava enquanto ministro de D. Miguel! Luís Reis Torgal, quase meio século depois, designou-o como "um dos principais iniciadores" da história diplomática. Pelo meio, em 1984 Veríssimo Serrão chamou a atenção para que, "desde o visconde de Santarém, passando por Teixeira de Sampaio e Luís Norton, até os trabalhos mais recentes dos embaixadores Eduardo Brasão e Alberto Franco Nogueira, muitos diplomatas têm cultivado a arte da história e nela divulgado fontes de interesse sobre as relações externas de Portugal" (25). Quanto às Memórias para a História, e Teoria das Cortes Gerais, quem senão integralistas como António Sardinha relembraram o valor desse trabalho? Em 1938, António Cruz afirmava que a Colecção de Cortes, manuscrito de João Pedro Ribeiro existente na biblioteca da Universidade de Coimbra, seria "a única colecção geral de documentos relativos às antigas Cortes do Reino que possuímos". Mais recentemente, quantas vezes citou Pedro Cardim, no volume quarto da História de Portugal dirigida por José Mattoso, a obra do visconde a propósito da "teoria das cortes de antigo regime"? Nem uma (26)! A explicação para isto residirá, provavelmente, no

25

Adriano Balbi, Essai Statistique sur le royaume de Portugal et d'Algarve, Paris, 1822, vol. II, p. CLIV.António Ferrão, Reinado de D. Miguel, Op. cit., vol. I, p. 494, n. 2, Luís Reis Torgal, História e Ideologia, Coimbra, 1989, p. 63 e Joaquim Veríssimo Serrão, prefácio a Correspondência Marcello Mathias/Salazar 1947/1968, Lisboa, 1984, p. 10. 26 António Sardinha, Teoria das Cortes Gerais, 1975 (2ª edição), pp. 13, 190, 205 e 283-4, António Cruz, Breve estudo dos manuscritos de João Pedro Ribeiro, Coimbra, 1938, p. 96 e Pedro Cardim, "A teoria das cortes de antigo regime", in José Mattoso (dir), História de Portugal, Op. cit., vol. IV, pp. 145-155.

16 carácter tradicionalista e híbrido das Memórias..., publicado num período de transição política como o dos anos de 1827-1829. Os célebres geógrafos Humboldt e Wappaüs escreveram, em 1842, que as Recherches sur la priorité des pays situés sur la côte occidentale d'afrique, au-dela du cabo bojador... não só refariam a história das descobertas africanas como constituiriam uma das mais importantes obras dos tempos modernos, colocando Wappaüs o visconde de Santarém à mesma altura que Navarrete e o próprio Humboldt. Isso quanto à Europa. Dentro de portas, Carlos Queiroga Monteiro afirma taxativamente (1996) que «A historiografia dos descobrimentos e expansão portuguesa "nasce" sob o signo do Historiador Visconde de Santarém - pela quantidade, qualidade, por tudo aquilo que representa a sua acção e pelo entusiasmo que provoca". Sérgio Campos Matos designou-o, em 1998, como "a grande figura da história dos descobrimentos [portugueses] na primeira metade do século XIX" (27). Porém, estas são apenas as leituras positivas. Vitorino Magalhães Godinho e Luís de Albuquerque criticam-no, com considerável propriedade, por se ter envolvido em polémicas nacionalistas em que a verdade histórica por vezes se tornava secundária face a aspectos lendários e ao prestígio português, embora nem sempre se tenham dado ao trabalho de desmontar o processo mental e simbólico por detrás da produção desse discurso historiográfico, reconstruindo a genealogia das ideias aí contidas (e que, de resto, eram extensíveis a outros historiadores coevos, como o cardeal Saraiva e Costa de Macedo 28). Infelizmente, a análise dos aspectos técnicos e científicos da história e historiografia dos descobrimentos têm andado de

27

Carlos Queiroga Monteiro, A polémica acerca da prioridade dos descobrimentos portugueses (18301850), Faculdade de Letras de Lisboa, 1996 (texto policopiado), p. 13 e Sérgio Campos Matos, "A historiografia portuguesa dos descobrimentos no século XIX", in Los 98 Ibéricos y el mar, Madrid, 1998, p. 57. 28 Vitorino Magalhães Godinho, introdução ("A história tradicional e os novos rumos de pesquisa") a A Economia dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 1962, pp. 2-3 e 5-6 e Luís de Albuquerque, Introdução à história dos descobrimentos, Mem Martins, 1989, pp. 149-151 e Sérgio Campos Matos, Op. cit., pp. 57-63.

17 costas voltadas para os estudos geográfico-cartográficos da obra do visconde, por um lado e para a reconstrução do seu universo ideológicopolítico (sobretudo centrado nas questões da propaganda e do nacionalismo). O que provocará contradições aparentemente absurdas entre as leituras de cada uma das intervenções do visconde nos descobrimentos, na geografia, na cartografia, na ideologia e na política, dando da sua obra a impressão de uma construção artificial, desigual, impensável, qual orografia sem transições entre fossas oceânicas e inalcançáveis cadeias montanhosas...

Política

Falou-se propositadamente primeiro na historiografia e só depois na política, para evitar a costumada interpretação de como o visconde de Santarém cortou com a política para abraçar exclusivamente as matérias históricas. Primeiro estudioso da história por influência paterna e para ingressar na carreira diplomática, depois servindo a diplomacia pelo conhecimento documental e factual, mais tarde diletante amador da genealogia, da numismática e da tradição das antigas cortes, torna-se por fim político devido aos seus elevados dotes e conhecimentos intelectuais e intransigente aferro às instituições do Antigo Regime. A política, que o visconde consideraria de um ponto de vista bem diferente do dos finais do século - a grande porca de Bordalo - interessar-lhe-ia sobretudo como forma de reintroduzir a história e a tradição no presente. Daí que tenha sido muito mal compreendida a sua passagem pelos ministérios das regências de D. Isabel Maria e de D. Miguel, bem como da realeza deste último. A sua acção enquanto ministro do Reino em 1827 foi designada como liberticida e o ministro apelidado de "agente conhecido de D. Miguel" e "reaccionário", segundos os testemunhos de Luz Soriano, marquês de

18 Fronteira e José de Arriaga (29). O que, pelo menos no caso de Almeida Garrett, comparando tais acontecimentos das Archotadas com os que preparam a revolução francesa de 1830, tem alguma razão de ser (30). O papel do visconde enquanto ministro dos Estrangeiros de D. Miguel (regente e rei) valeu-lhe cruéis caricaturas na Crónica Constitucional de Lisboa, orgão oficial do governo pedrista na capital libertada depois do 24 de Julho. Nada disto surpreende num país de tão velhas tradições satíricas (com as medievais cantigas de escárnio e maldizer), em que José Agostinho de Macedo se comprazia a insultar os liberais no mais puro vernáculo e recorrendo às mais férteis figuras e ofensas do imaginário popular. Em Inglaterra avultavam já os antepassados do cartoon político, algum dele aplicado à política externa britânica e mesmo a Portugal (31). Por cá, teríamos de esperar alguns decénios por Bordalo Pinheiro, acompanhado pelas penas de Oliveira Martins, de Eça e de Fialho. Primeiro, António Ribeiro Saraiva, em carta interceptada, chamavalhe "Visconde das belas palavras e ruins obras". Depois, ainda no decorrer do mês de Setembro de 1833, o redactor da Crónica Constitucional de Lisboa que introduzia, junto dos leitores, a correspondência apreendida aos miguelistas deleitava-se a cobri-lo de impropérios. Falava no "microscópico Visconde de Santarém, esse diplomata de farsa, esse homúnculo charlatão, bem que gigante na maldade […], este homem de Estado em caricatura [...] este desprezível e pequeno impostor", "tão pigmeu no corpo como no saber”

29

Marquês de Fronteira, Memórias do... , Op. cit., "Parte III - 1824 a 1828", p. 155, José de Arriaga, História da revolução de Setembro, 1892, p. 124 e Luz Soriano, História da Guerra Civil, 3ª Época, 1882, tomo II, parte II, p. 136, n. 1. 30 João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett, Portugal na Balança da Europa, Lisboa, Livros Horizonte, s.d., p. 127. 31 Veja-se, a título de exemplo, os artigos da revista History Today de Março e Junho de 2001 e de Novembro de 2002, vols. 51 (3), 51(6) e 52(11), pp. 9-15, 22-29 e 26-33, respectivamente dedicados a Jorge IV, a Fox e North e a Wellington. Quanto a Portugal, consulte-se As grandes polémicas portuguesas (com prefácio de Vitorino Nemésio), Lisboa, 1967, vol. II, pp. 9-37 e o catálogo Estampa e caricatura política estrangeira sobre Portugal. A doação Rau, Lisboa, 2000.

19 (32). O mito do anão moral e intelectual era assim introduzido, na tentativa de o desacreditar politicamente - não pelos seus actos, mas pelo simples facto de ser ministro de D. Miguel. Diga-se que a origem dessa leitura proviria, com grande probabilidade, do conde do Lavradio, que numa entrada das suas Memórias dele dissera que "Tem pouco mais de meia vara de altura e muita semelhança com o célebre anão e caturra dum rei da Polónia" ( 33). Isto afirmado por um homem amigo de infância do visconde, seu antecessor no ministério dos Negócios Estrangeiros em 1826 e que, na década de 1850, o visitaria amiúde em Paris... O que prova até que ponto os conflitos políticoideológicos que resvalam em guerras civis podem exaltar os ânimos e levar a proferir injustiças. Mas nem o fim do miguelismo acalmou os ânimos dos liberais vitoriosos - se não eram já os panfletismo e o jornalismo políticos, eram as memórias dos vencedores. Em 1846 ainda o padre José de Oliveira Berardo falava em "desprezível sectário" e defendia que a circular de 25 de Abril de 1828 ao corpo diplomático acreditado em Lisboa não teria convencido "quem o excedia muito em todas as sortes de conhecimentos" (34). Com o ordeirismo e o cabralismo, algumas afirmações elogiosas surgiam sobre o visconde, repondo um pouco a imagem positiva que porventura teria antes de 1827. O deputado Agostinho Albano da Silveira Pinto (1785-1852), seu amigo, falando a propósito da discussão parlamentar sobre a navegação dos rios ibéricos relembrava, na sessão de 15 de Janeiro de 1841, a acção ministerial de Santarém em 1829, com a assinatura do tratado luso-espanhol sobre o Tejo: “apesar de ministro do usurpador, era um

32

Crónica Constitucional de Lisboa nº 38, de 7 de Setembro, p.198, nº 46, de 17 de Setembro, p. 244 e nº 57, de 30 de Setembro de 1833, p.301. 33 Conde do Lavradio, Memórias do Conde do Lavradio, D. Francisco de Almeida Portugal, comentadas pelo Marquês do Lavradio D. José de Almeida Correia de Sá, Revistas e Coordenadas por Ernesto de Campos de Andrade, Coimbra, s.d., vol. I, “Parte Primeira (1796 a 1833)”, p. 194. 34 José de Oliveira Berardo, Revista Histórica de Portugal, desde a morte de D. João VI. Até o Falecimento do Imperador D. Pedro, Porto, 1846 (2ª edição), p. 47 e Francisco Inocêncio da Silva, Dicionário Bibliográfico Português, Lisboa, 1860, vol. V, pp. 83-4, nº 4464.

20 homem muitíssimo de bem, de instrução europeia e [de] probidade reconhecida”. É possível que seja a propósito deste comentário que nos Anais Marítimos e Coloniais se fale dele, em 1842, como tendo obtido “ultimamente, da Câmara dos Deputados de Lisboa, o sufrágio mais lisonjeiro para ele, na duplicada qualidade de homem letrado e de homem de estado” (35). Porém, a acção política e diplomática do visconde, sob o miguelismo, tem sido alvo de muito esquecimento, incompreensão e, mesmo, adulteramento voluntário. Não é por acaso que tantas figuras gradas do reinado de D. Miguel, como o duque de Cadaval, o conde de Basto ou o conde de Vila Real continuam a ser ignoradas por biógrafos e historiadores, o que já não acontece, por exemplo, com o duque de Ávila ou com Costa Cabral (36). Há, de facto, muito mito, muita lenda à volta dessas figuras ainda hoje malditas, muito rótulo a descolar, muita resina ideológica a raspar antes de chegar ao corpo da múmia historiográfica... O mesmo, claro, sucede com o visconde de Santarém. Aliás, parece-me trágico que se continue a estudar a política, a diplomacia e a historiografia liberais e contra-revolucionárias em separado, de costas voltadas, ao arrepio do que se faz em França, em que ambos os campos são analisados tendo em conta o que se produz, o que se diz e o que se pensa de cada lado da barricada. Barricada essa, aliás, que muitas vezes unia, mais do que separava, adversários políticos que por vezes mais não eram do que (antigos) amigos pessoais e, mesmo, membros da mesma família... Por exemplo: por que está a obra do visconde ausente do monumental trabalho de António Pedro Mesquita sobre O Pensamento político português no século XIX, quando aí se encontram referidos e analisados o marquês de

35

Visconde de Santarém, Correspondencia..., Op. cit., VI, pp. 147-8, n. 1, Inocêncio, Op. cit, 1859, vol. I, p. 13 e Anais Marítimos e Coloniais, 2ª série, nº 1e, de 1842. 36 Vejam-se os trabalhos de José Miguel Sardica, Duque de Ávila e Bolama. Biografia, Lisboa, 2005 e de Maria de Fátima Bonifácio sobre A Segunda ascensão e queda de Costa Cabral. 1847-1851, 2002.

21 Penalva, Gama e Castro, Acúrcio das Neves ou António Ribeiro Saraiva, com posições políticas próximas da sua e/ou estudados em conjunto pelos autores integristas do início de novecentos? E do Dicionário do vintismo e do primeiro cartismo, dirigido por Zília Osório de Castro, apesar de o visconde ter sido ministro em 1827? Talvez pelo hibridismo do seu pensamento, mesclado de contra-revolução e de direito das gentes, moderado e ordeiro, que surpreendentemente Barbosa Colen, continuador da História de Portugal Popular e Ilustrada de Pinheiro Chagas, descreveu como o do "espírito mais culto desse ministério [de D. Miguel I]. [...] o menos faccioso, para não dizermos o mais liberal". Entre os autores mais recentes, só José Adelino Maltez (2004) tenta integrar a sua acção político-ideológica no contexto da luta entre a tradição e a revolução. Procurando, ainda, responder à constatação escandalizada, velha então de vinte anos, de José-Augusto França quanto à inexistência de informação consubstanciada sobre os diferentes ministérios sob D. Miguel (37).

Diplomacia

Analisou-se, no respectivo capítulo, a acção do visconde no caso Roussin, hiper-criticada por Pinheiro Chagas e António Ferrão. Tentou-se demonstrar como o ministro dos Estrangeiros de D. Miguel apenas procurou seguir os preceitos que o direito das gentes ditava em tais situações e o que os tratados com Inglaterra prescreviam como obrigações da nossa mais antiga aliada. Nada parece justificar as verrinosas catalinárias com que

37

António Pedro Mesquita, O pensamento político português no século XIX. Uma síntese histórico-crítica, Lisboa, 2006, Zília Osório de Castro, Dicionário do vintismo e do primeiro cartismo (1821-3 e 1826-1828), Lisboa, 2002, 2 vols., J. Barbosa Colen, História de Portugal Popular e Ilustrada de Manuel Pinheiro Chagas..., nono volume, p. 27, José Adelino Maltez, Tradição e revolução. Uma biografia do Portugal político do século XIX ao XXI, Lisboa, 2004, vol. I, pp. 170, 214 e 216 (com algumas afirmações questionáveis e erros informativos) e José-Augusto França, “Cartas do 2º Visconde de Santarém Ministro de D. Miguel ao Enviado em Londres 6º Visconde de Asseca (1828-1831)”, separata dos Anais da Academia Portuguesa de História, II Série, vol. 29, Lisboa, 1984, pp. 486-7.

22 aqueles historiadores açoitaram a memória do visconde, sobretudo Ferrão, que consegue o prodígio de acumular numa única frase várias espécies de insultos, a propósito da resposta dada ao ultimato francês de bombardear Lisboa: "Pois Santarém – que dementada atitude a sua! – com o inimigo à porta e sem qualquer forma de lhe resistir, replica ao almirante francês esta cousa extraordinária, inusitada, que a história jamais lhe poderá relevar, porque não se trata de um acto de loucura ou de patriótico martirologio, mas somente de uma atitude pueril, para não lhe chamar verdadeiramente imbecil". Porque não seria o "chefe da diplomacia do governo de D. Miguel [...] um espírito clarividente, ou sequer sagaz em política e, especialmente em política externa"? Por ter querido uma via negocial, intermédia, entre a derrota militar certa e a rendição declarada? Não será essa a mentalidade própria da diplomacia, protelar a solução das armas ou a humilhação nacional? Terão os casos Sauvinet e Bonhome sido meras expressões da "magna estupidez e plena incapacidade governamental" do conde de Basto e do visconde de Santarém (38), como pretendeu, ainda, Carlos dos Passos? Porque não mereceram idênticos epítetos Sá da Bandeira em 1857 nem Barros Gomes em 1890, por causa da questão da barca Charles et Georges e do ultimato britânico? Original forma esta de analisar a história, tão terra-aterra e facciosa...

A geografia e a cartografia

Estes constituirão os dois únicos feudos em que o visconde de Santarém é elogiado de forma inquestionável. Nem a história da diplomacia e dos descobrimentos, nem a política ou a diplomacia lhe mereceram unanimismos - e ainda bem, pois estes esconderão ausência de espírito crítico 38

António Ferrão, Reinado de D. Miguel, Op. cit., pp. 29-30 e Carlos de Passos, D. Pedro IV e D. Miguel I, Porto, 1936, p. 260.

23 e de análise cuidada das obras e matérias em questão... Parece ser consentânea a designação do visconde como geógrafo (39) e como maior figura na historiografia da cartografia mundial, verdadeiro pai da cartografia e inventor do conceito, neste último campo segundo Armando Cortesão e Martim de Albuquerque (40). Porém, parecem ser esparsas as tentativas de, depois de analisar e classificar o seu papel nestas áreas, procurar relacionálas com as da diplomacia portuguesa coeva, como fez João Carlos Garcia. Aliás, há que louvar todo o esforço que permita ter da historiografia, política e diplomacia nacionais anteriores a 1850 a mesma visão concertada, problematizante e contextualizante de que nos falam Filipe Nunes de Carvalho, Maria Isabel João ou Sérgio Campos Matos, a propósito da segunda metade do século XIX (41).

Sete mitos e contra-mitos

Verdadeiros fenómenos endémicos às sociedades humanas, registados desde que existe memória escrita, a guerra e a política convulsionam a existência dos homens de um modo inigualável. Muitas vezes o conflito

39

São os casos de Martim de Albuquerque in Vicomte de Santarém, Recherches sur la priorité des pays situés sur la côte occidentale d'afrique, au-dela du cabo bojador, et sur les progrés de la science geographique après les navigations des portugais, au XV siècle et Éssai.... Edition fac-similée, organisée et avec une préface par..., Lisboa, 1989, p. 1, de João Farmhouse, in Guia de Portugal, 1983 (3ª edição), vol. I, p. 256 (que, a propósito da estatuária da Sociedade de Geografia de Lisboa, o designa como "notável geógrafo"), de visconde de Santarém, Opúsculos e Esparsos..., Op. cit., vol. II, p. 165 e de Maria Isabel João, "Organização da memória", in Francisco Betthencourt e Kirti Chaudhuri (dir.), História da Expansão Portuguesa, Op. cit., p. 391 (falando em "historiador e geógrafo da expansão"). 40 Armando Cortesão, Cartografia e Cartógrafos Portugueses dos séculos XV e XVI, 1935, vol. II, p. 26 e Martim de Albuquerque, prefácio a Vicomte de Santarém, Recherches sur la priorité..., Op. cit., pp. 9 e 16. 41 João Carlos Garcia, «Um castelo de cartas antigas: construir e comemorar o império» (texto policopiado), Porto, Departamento de Geografia da Faculdade de Letras do Porto, 2005, 23 pp.; Filipe Nunes de Carvalho, "O infante D. Henrique na história e na historiografia: representações oitocentistas e alguns dos seus fundamentos", in Mare Liberum nº 7, Março de 1994, pp. 127 e ss; Maria Isabel João, "Organização da Memória", in Francisco Betthencourt e Kirti Chaudhuri (dir.), História da Expansão Portuguesa, Op. cit., pp. 391-395 e Idem (estudo inicial e selecção de documentos), O Infante D. Henrique na Historiografia, s.d; Sérgio Campos Matos, Historiografia e Memória Nacional no Portugal do século XIX (1846-1898), Lisboa, 1998, passim e "A historiografia portuguesa dos descobrimentos no século XIX", in Los 98 Ibéricos y el mar, Madrid, 1998, passim.

24 armado entre facções e nações marca épocas e séculos inteiros. A literatura, a historiografia, as artes transmitem aos vindouros parte dessa angustiante realidade que nós é, com frequência, demasiado comum no dia-a-dia. As mais mediatizadas e destruidoras guerras dos últimos dois séculos, a saber, a que ocorreu entre a Revolução Francesa e Waterloo (1789-1815), a Primeira e Segunda Guerras Mundiais (1914-1918 e 1939-1945) e, pelo meio, a guerra civil de Espanha (1936-1939), conterão todas uma série de elementos comuns que, retrospectivamente analisados, talvez já existam nas disputas mais antigas dos tempos dos gregos e dos romanos, a saber: 

o choque de civilizações e de ideologias;



o conflito dentro de uma determinada sociedade civil;



o

carácter

ao

mesmo

tempo

nacionalista

e

internacionalista, por opor elementos endógenos e exógenos a Estados e/ou a nações; (42); 

o elemento revolucionário.

Quando estas características se acumulam num único conflito, como o da guerra civil, o extremar de posições antagónicas contamina toda a visão contemporânea e posterior dos acontecimentos. Falar do que entre 1808 e 1851 sucedeu, por exemplo, em Portugal, em termos políticos, militares, diplomáticos, literários e historiográficos, exige da sociedade e comunidade científica nacionais um grau de maturidade civilizacional de que talvez não estejamos, para já, munidos. Pois política e ideologia, história e historiografia andam de tal forma intrincadas umas nas outras, que muitas vezes o que subsiste são cíclicas revisitações de um passado deformado pelas lentes das escolas e correntes de pensamento de direita e de esquerda. Como não ver no 25 de Abril os mesmos ideais renascidos do 5 de Outubro, do 31 42

Neste último caso, naturalmente apenas se pode falar em nações a partir do renascimento ou da revolução francesa, conforme os autores.

25 de Janeiro de 1891, da regeneração de 1851 ou dos acontecimentos de 24 de Agosto de 1820? Como não encadear o Antigo Regime, o miguelismo, o sidonismo e o Estado Novo? Como evitar que a memória histórica não chegue às populações remisturada pela poesia dos amanhãs que cantam, pelas caricaturas inteligentes de João Abel Manta ou os desenhos brejeiros mas não menos historicizantes de José Vilhena (43)? Como evitar que se pense que o visconde de Santarém foi um "fascista", como lhe ouvi chamar há cerca de dez anos, num anacronismo sintomático? Entre os acontecimentos de 1789-1815 e os de 1939-1945 surgiram dois grandes comentadores da política e da cultura coevas, ambos provenientes da Grã-Bretanha: Edmund Burke (1727-1797) e George Orwell (1903-1951). Situados em posições antagónicas do espectro político, terão por isso legitimidade acrescida para serem aqui invocados. Olhando os faitdivers da política interna e das grandes linhas dos acontecimentos europeus do seu tempo, fizeram-no com base nos seus próprios ideários pessoais mas, sobretudo, num conhecimento aprofundado dos homens e das mais variadas áreas do saber humano. Burke procurou desvendar as contradições entre o discurso panfletário e filosófico revolucionário e a realidade visceral das sociedades humanas, sociedades essas supostamente impossíveis de modificar sem a destruição de tudo o que teriam de mais original e duradouro. Criou, no processo, uma obra doutrinária e oratória que muito terá marcado o pensamento contra-revolucionário europeu de cunho laico e filosófico (como o do visconde de Santarém). De Orwell, por exemplo, podem retirar-se imensas interpretações sobre o uso da propaganda e da vulgarização cultural enquanto armas políticas. Desmonta números lugarescomuns da sua época e, sobretudo, tenta ter das diversas forças ideológicas em Inglaterra e na Europa uma posição objectiva e fundamentada, baseada 43

João Abel Manta, Cartoons 1969-1975 (prefácio de José Cardoso Pires), Lisboa, s.d. e Rui Zink, O humor de bolso de José Vilhena, Oeiras, 2001, 112 pp.

26 por vezes na análise de posições e declarações de indivíduos e de grupos, que muito poderá servir para, em Portugal, olharmos a política, a história e a historiografia dos séculos XIX e XX (44). No fundo, Burke e Orwell serão ao mesmo tempo produtores e produtos de uma intoxicação cultural e ideológica que revela bem até que ponto a história, sobretudo a história política (ou ideológica ou das ideias políticas) não se deverá remeter a um absoluto categórico de objectividade, antes reproduzir um pouco o fervilhante debate de ideias de determinadas épocas, com a caricatura, o mito, a desinformação e o panfleto sectário pelo meio. Isso terá sucedido com tantos e tantos personagens históricos do nosso passado mais recente, sobretudo vencidos. Ai dos vencidos!, já exclamavam os romanos. De facto, sobre eles pesam todos os defeitos, todos os erros, tudo o que a alma dos homens terá de pior, de malévolo, de infernal, de subhumano! Os vencidos, tanto radicais quanto moderados, de esquerda ou de direita, deverão sofrer, segundo a justiça popular, o pior dos castigos - o do esquecimento. Que se torne estéril a sua memória e maldito o seu nome, como sucedeu ao solo e invocação de Cartago. Terá sido esse o destino do visconde de Santarém? Em parte, sim. Primeiro, cortaram-lhe a efígie ao meio, como antigamente se queimavam as representações simbólicas dos condenados à morte em revelia: louvá-lo enquanto historiador, condená-lo enquanto político - veja-se o caso de António Ferrão. Esse é o primeiro mito, o do síndroma da dupla personalidade, a do historiador e a do político (à imagem do Médico e Monstro de Stevenson). Segundo tal perspectiva, enquanto político, qual seria o valor do visconde? Praticamente nenhum. Os seis anos, entre 1827 e 1833, em que

44

Peter J. Stanlis (editor), The Best of Burke. Selected writings and Speeches of Edmund Burke, Washington, © 1963, 702 pp. e George Orwell, The Collected Essays, Journalism and Letters, Londres, 1970, vol. 2 (1940-1943), 540 pp.

27 passou por vários ministérios, pesariam mais, na balança da história, do que trinta e sete de bibliografia activa (1818-1855). Como perceber, de resto, que tenha aceite fazer parte de um governo de D. Miguel, o mais estúpido dos monarcas portugueses, ele que, aliás, só terá governado pela força? As características pessoais do visconde ministro só poderiam ser as de um mau político, sectário e intransigente, isto é, obstinado em defender o seu rei (destituído, este de qualquer legitimidade e preso a um passado prérevolucionário que os ventos da história nunca poderiam voltar a restaurar integral ou duradouramente). A vasta cultura e erudição do visconde, tal como a do conde de Basto, coexistiriam, pois, com a mais básica cegueira política e falta de visão histórica, ou seja, com a ignorância humana própria da intolerância ideológica. Teria, pois, vendido a sua inteligência à reacção... Para mais, um homem que, saído da política, foi considerado "sempre miguelista", mesmo depois de ter sido obrigado a jurar a Carta Constitucional para obter o passaporte em 1834, seria relapso nos seus erros - uma espécie de outro António Ribeiro Saraiva. Trata-se do segundo mito. E

como

chefe

da

diplomacia

miguelina?

Ainda

pior!

Impreparadíssimo para a tarefa (qual Ribbentrop no nazismo 45), incapaz de ver quando derrotado ou de ter a coragem de abandonar o governo, para salvar a sua honra. Em suma, um mau ministro dos Estrangeiros (terceiro mito). Como se não bastasse, teria traído e colaborado com os inimigos do regime com o qual supostamente se identificaria, à imagem do tresloucado Hess e de Schellenberg (46), o chefe da contra-espionagem nazi (quarto e quinto mitos). Esse o pecado capital em política, execrado por qualquer homem de esquerda ou de direita. A tentativa do visconde de negociar com

45

Joachim von Ribbentrop (1893-1946), ministro dos Estrangeiros do III Reich. Veja-se o que sobre ele escreveu Walter Schellenberg, Le chef du contre-espionnage nazi parle. 1933-1945, Paris, © 1957, pp. 301-11. 46 Veja-se Idem, Op. cit., pp. 212-218, 232-234 e 377.

28 o governo de D. Pedro a rendição do regime miguelino - boato posto a circular pelo conde do Lavradio depois da queda de Lisboa, que vem dar uma outra conotação às conversações secretas para a rendição do Porto perante D. Miguel - ter-lhe-iam valido mesmo a demissão ministerial, em 1833. Isto a acreditar em João Palma-Ferreira (s.d.), Hernâni Cidade e Ruy d'Abreu Torres (1974) e José-Augusto França (1984 47). Nenhum documento escrito pelo visconde de Santarém terá dado lugar a tanta polémica quanto a sua carta de 24 de Março de 1833, dirigida ao duque de Lafões. De quinze dias depois, a 8 de Abril, data a entrada nas memórias do conde do Lavradio sobre a suposta aceitação do visconde de Santarém e do duque de Cadaval da monarquia de D. Maria II, desde que introduzidas algumas alterações no regime, propostas pelos dois aristocratas miguelistas (48). A 17 de Setembro, a publicação do documento na Crónica Constitucional de Lisboa não só teria levado à demissão de Santarém como motivado as ferozes caricaturas de um dos redactores. Mais de cinquenta anos depois, ainda Luz Soriano o acusava de, "não obstante o parecer que havia emitido contra os liberais do Porto [na referida missiva], mendigar junto dos seus chefes mãos cheias de benefícios, e até mesmo o lugar de guarda-mor da Torre do Tombo, que o infame espírito de partido tirou ao benemérito António Manuel Lopes Vieira de Castro", supostamente falecido de desgosto, a 20 de Setembro de 1843... (49).

Conde do Lavradio, Memórias do…., Op. cit., vol. I, “Parte Primeira (1796 a 1833)”, p. 389. Ver Luz Soriano, Historia da Guerra Civil, 3ª Época, t. IV, 1884, pp. 399-400, n. 1, sobre a figura do espião Boucental ou Buchantal. Francisco de Paula Ferreira da Costa, Memórias de um Miguelista (18331834), prefácio, transcrição, actualização ortográfica e notas de João Palma-Ferreira, Lisboa, s.d., p. 76, n. 32, José-Augusto França, “Cartas do 2º Visconde de Santarém Ministro de D. Miguel ao Enviado em Londres 6º Visconde de Asseca (1828-1831)”, in Op. cit., p. 503 e Hernâni Cidade e Ruy d’Abreu Torres, Cultura Portuguesa, Op. cit., p. 86. 48 Amnistia completa; abrogação das leis abolindo dízimos, forais, etc; conservação dos Jesuítas. 49 Luz Soriano, Historia da Guerra Civil, 3ª Época, t. IV, 1884, pp. 245, n. 47

29 Examinarei, no Apêndice Documental I (50), essa célebre carta, que tanto peso teria exercido no destino político e no perfil moral do visconde de Santarém. Para já, faltam apenas mencionar dois mitos, o sexto e o sétimo, os quais seriam a consequência lógica de todos os anteriores. Primeiro, o do intransigente exilado (à Marcello Caetano). Por último, o do propagandista do império e historiador miguelista, nacionalista, acrítico e pré-científico (como Carreira de Melo e Joaquim Bensaúde). Em toda a história política desde a república romana avultam experiências de exílio, desde a de Cícero nos Balcãs até à de Maquiavel na sua villa de Albergaccio (51). Os triunfos e desgraças, mandos e desmandos do poder costumam remeter figuras de governantes a situações de abandono das respectivas pátrias. O mesmo sucedeu ao visconde de Santarém, o qual, ao contrário de alguns ex-miguelistas (como Francisco Alexandre Lobo, o visconde de Juromenha e vários outros), nunca regressaria em vida a Portugal, apesar dos pedidos reiterados de D. Pedro V para que o fizesse (52). Deveremos ver aqui uma atitude de intransigente recusa perante a ordem estabelecida em Portugal, tanto a nível político quanto académico (veja-se a polémica sobre o Corpo Diplomático e os Portugaliae Monumenta Historica)? Uma mera teimosia de um ex-ministro do usurpador, persistindo nos erros do passado, ao mesmo tempo que supostamente vivia à conta do erário público português? Uma atitude semelhante à de Marcello Caetano no Brasil, entre 1974 e 1980 (53), amargurado com a queda do regime e de costas voltadas à pátria revolucionária? Julgo que não - tratar-se-á antes de uma postura ética e ideológica compósita, como se verá mais adiante.

50

A pp. 37-45 do presente capítulo. Ettore Paratore, História da Literatura Latina, 1987, p. 206 e Marcel Prélot e Georges Lescuyer, História das Ideias Políticas, vol. I, 2000, p. 87. 52 Hernâni Cidade e Ruy d’Abreu Torres, Cultura Portuguesa, Op. cit, p. 87. 53 Veja-se o Diário de Notícias, pp. 19-26, e o Público, pp. 2-7, nas edições de 17 de Agosto de 2006, a propósito dos cem anos do nascimento de Caetano. 51

30 Com tantas críticas à sua moralidade pública e inteligência pessoal e política, não será de admirar que se visse no visconde um historiador menor, estrangeirado, miguelista, defensor, avant la lettre, de um conceito estadonovista de império e de destino nacional em África. Aí residirá a conclusão perfeita de uma série de outras acusações, as quais, infelizmente, apenas conheceram, de uma forma geral, uma resposta baseada no trabalho desenvolvido, no patriotismo demonstrado e na inteligência do visconde, resposta essa dada sobretudo entre os anos de 1903 e 1941, como se viu atrás. Porém, a chave para contestar, incorporar ou complementar estes elementos numa visão de conjunto da vida e da obra do visconde de Santarém nunca poderá deixar de passar por um conhecimento minucioso da sua época, de alguns dos seus contemporâneos e respectivos percursos pessoais, políticos e académicos. Foi o visconde uma avis rara, uma excepção no panorama nacional e internacional do seu tempo? A resposta não poderá deixar de ser, julgo eu, negativa. Há, pois, que buscar em tais exemplos alheios os elementos necessários para reformular os sete supracitados mitos e expurgá-los dos elementos caricaturais e subjectivos. A república dos homens e das letras conheceu, ao longo de múltiplos regimes (monarquia, república e império), uma enorme variedade de figuras comuns ao saber e à política. Os romanos Cícero e Cláudio (o imperador 54), nos séculos I a.C. e d.C.; os franceses príncipe de Talleyrand, visconde de Chateaubriand, o duque de Blacas e o marquês de Fortia d'Urban, nos séculos XVIII e XIX; os portugueses duques de Lafões e de Palmela e Silvestre Pinheiro Ferreira, nas mesmas centúrias; o anglo-irlandês Edmund Burke, em setecentos, cultivaram os mais variados géneros literários (incluindo a

54

Veja-se o magnífico livro de Robert Graves, I Claudius. From the Autobiography of Tiberius Claudius Emperor of the Romans, 1963 (1ª ed. 1934), sobretudo as pp. 128-129, 141-2, 154 e 162, 201 e 226-7, acerca das histórias de Cláudio sobre a dinastia júlio-claudiana, a Etrúria e Cartago, os estudos de reformas religiosas sob Augusto e os seus dicionários de etrusco-atim e de sabino-latim.

31 reflexão política e a história) e singraram na governação e na carreira diplomática. Poder-se-ia talvez adiantar a hipótese, sem porventura cair num anacronismo, de que vários ou todos procurariam para si as vantagens exaltadas pelos "intelectuais italianos dos séculos XV e XVI, na sequência de Cícero, [...] [d]a síntese da vida solitaria e da vita activa, da vita politica", representada em Dante "«como símbolo da união do pensamento e da acção, da vida estudiosa e vida cívica»" (55). É que tudo parece apontar para a existência de uma ética pessoal e política muito forte no visconde de Santarém, a de um permanente servidor público (civil servant, em inglês) que, pelos seus estudos pessoais, participação na vida académica, política e diplomática, acumulou sempre a condição dupla de homem de espírito e de acção. Não se devendo, assim, encará-lo primeiro como ministro miguelista (1828-1833) e depois enquanto historiador (1834-1855), como se se tratasse de opções de vida definidas, definitivas e inconciliáveis (primeiro mito). Na esteira dos autores romanos, vários homens do renascimento francês e português falavam nos "altos espíritos que sabiam ajudar a pátria mesmo ofendidos" e "«que todos os que conservassem a pátria, e a ajudassem, e a amplificassem, tinham certo e determinado lugar no Céu, e haviam de gozar a vida sempiterna" (56). Tratarse-á de ideais que porventura sobreviveriam na cultura laica e política portuguesa dos finais do século XVIII, sobretudo entre as elites de funcionários da corte, da coroa e da administração pública, como seriam os casos das famílias paterna e materna do visconde de Santarém. Que se tratou, em conclusão, de um homem de saber desde sempre preparado para entrar na política, caso essa fosse a decisão régia ( 57), cuja 55

Hans Baron, «Cícero and the roman civic spirit in the Middle Ages and the Early Renaissance" in Lordship and Community, pp. 303-10, cit. por Martim de Albuquerque, A Consciência Nacional Portuguesa, Lisboa, 1972, p. 141 e n. 2. 56 Jodelle e Amador Arrais, citados por Albuquerque, Op. cit., pp. 145 e 160. 57 Na sequência da concepção ciceroniana de que "A condução dos assuntos públicos põe em prática a mais bela função da sabedoria, a maior lição da experiência, o mais nobre ofício da virtude" (Marcel Prélot e Georges Lescuyer, Op. cit., p. 116).

32 moderação e ideário singulares contrastaram com a voracidade de guerras civis e de homens sedentos de poder e de vingança, é ilustrado na perfeição pela ideia de um homem honrado a quem o destino coloca entre facções desavindas, para mesmo assim servir a pátria. Ideia essa expressa pela citação de Os Lusíadas com que inicia as suas Memórias Verídicas do meu Ministério durante os três Meses que o Exerci:

«Deus, por certo, vos traz, porque pretende Algum Serviço Seu por vós obrado: Por isso só vos guia, e vos defende Dos inimigos, do Mar, do vento irado» (58).

As contra-propostas para os mitos dois a quatro enquadram-se na mesma linha de raciocínio. Tal como vários dos políticos e autores romanos, franceses e portugueses supracitados (com a excepção de Burke), a passagem do visconde pela política foi inglória, infeliz e incompreendida. Dentro do miguelismo, as facções em luta - sobretudo a da direita isolacionista - nunca se entenderam quanto à melhor linha de governação a seguir. Entre os miguelistas e mesmo entre os liberais, quem poderia compreender a sua política enquanto ministro dos Estrangeiros - ou, pelo menos, onde estão os testemunhos desse aplauso e aceitação, ausentes das fontes? Quem, senão outros moderados, legalistas e constitucionalistas, dos dois lados do conflito de 1828 a 1834, poderia perceber a lógica de moderação do visconde de Santarém - figuras similares, tão esquecidas ou, pelo menos, tão mal aceites quanto o duque de Cadaval ou Silvestre Pinheiro Ferreira (todos três defensores de uma solução política para o cerco do Porto, em 1832-33)? Quem poderia ter a tranquilidade e a serenidade suficientes para, na época, 58

Visconde de Santarém, Memórias do meu Ministério durante os Três que o Exerci, Colecção Visconde de Santarém, maço 1º, f. 1, citando Luís de Camões, Lusíadas, canto 7º, estrofe 31.

33 ver nas propostas da missiva de 24 de Março de 1833 não a rendição de D. Miguel perante D. Pedro, mas aquilo que a cronologia nos ensina, o contrário - uma vez que nesse momento a situação político-militar era de desespero para os sitiados e não para os sitiantes, senhores absolutos da metrópole exceptuando a Cidade Invicta? O estranho é, que mais de cento e cinquenta anos depois, ainda se creia nos detractores do visconde e não no que as suas próprias palavras dizem... Há, em alternativa, que buscar (de novo) o exemplo de outros homens avisados e informados que, ao invés de serem os tresloucados traidores e colaboracionistas de que se fala, souberam soar as trompas do alarme para a sua pátria e regime em perigo casos de Rudolf Hess e de Walter Schellenberg, sob o nazismo (59). Como aceitar o quinto mito, a de um homem azedado com a sua pátria, ele de quem disse o insuspeito (embora encomiástico) Jordão de Freitas tratar-se de "assombroso espírito de investigador e de crítico [...] do mais acendrado patriotismo e da maior dedicação pelo país que se honra de contá-lo entre os seus filhos mais esclarecidos e prestantes" (60)? Ao manterse no exílio, o visconde dizia a verdade a D. Pedro V escudando-se nos livros, bibliotecas, arquivos e sossego de que só em Paris poderia dispor, embora omitisse talvez a parte política da questão. Fazendo-o, mantinha-se equidistante de um miguelismo ainda com D. Miguel (61) politicamente activo e de um liberalismo pós-Regeneração em que o rotativismo dava os seus primeiros passos. Nem apolítico nem alheado da realidade da pátria (como, neste último caso, Herculano e Caetano), mas servindo Portugal e as suas próprias concepções ideológicas e civilizacionais ao escrever a favor do país.

59

Veja-se, a propósito deste assunto, a minha comunicação à Casa Veva de Lima, proferida a 17 de Janeiro de 2006, intitulada "A propósito dos 150 anos da morte do 2º visconde de Santarém: métodos, desinformação e mitos", texto policopiado de 14 pp. 60 Jordão de Freitas, "Prólogo" a visconde de Santarém, Opúsculos e Esparsos..., Op. cit., vol. I, p. VIII. 61 Que só morreria em 1866.

34 O destino da sua terceira livraria prova-o (sexto mito). Começou por deixá-la, em testamento (1849), à Academia das Ciências de Lisboa, para depois revogar essa disposição. A família herdaria essa fabulosa soma de conhecimentos, que infelizmente foi dispersa aos quatro ventos através de leilão (organizado por Inocêncio) e de que restam apenas quatro volumes de miscelâneas, na Biblioteca Nacional de Lisboa. Poderia muito bem ter antecipado a disposição de Marcello Caetano quanto à sua biblioteca privada, deixada à universidade Gama Filho, legando-a (por exemplo) ao Instituto de França, mas não o fez... Por fim, o seu papel enquanto historiador (sétimo mito). Já no capítulo 2 se viu quão infundadas parecem ser as acusações de historiador estrangeirado, pré-científico e miguelista. Deverão ser revistas, em minha opinião, as contribuições de historiadores como João Pedro Ribeiro, o cardeal Saraiva, o visconde de Santarém e Alexandre Herculano para a moderna revolução historiográfica pois, aparentemente, apenas dos trabalhos do primeiro parecem estar ausentes mitos de vária ordem, presentes nas obras dos restantes. Quanto ao triunfalismo imperial português, herdado da literatura política, da historiografia metropolitana e ultramarina e da poesia renascentistas portuguesas, fortemente presente na obra do visconde de Santarém (sobretudo através da defesa das possessões coloniais e do elogio da cultura nacional), não deverão ser confundidos com uma antecipação da ideia de império. Depois da perda do oriente e do Brasil, numa época de profundas perturbações políticas, que outras ideias senão as de uma reforma administrativa, divulgação histórica e conhecimento empírico poderiam ser defendidas por homens como Sá da Bandeira, Lopes de Lima e Santarém? Não haverá, pois (no seu caso), lugar a quaisquer confusões com a busca de antepassados nacionalistas, tradicionalistas e imperialistas por parte das correntes integristas do século XX, pelo menos no que diz respeito a um

35 terceiro império em África (62). Nas décadas de 1830 a 1850, a colonização maciça e criação de infraestruturas europeias em África seria apenas uma miragem, realizável somente a partir de 1880 em diante. O mero conhecimento geográfico do continente negro andava muito próximo da lenda; buscava-se ainda a nascente comum do Nilo e do Zaire e a cidade de Timboctu... A ideia do visconde condestável do império, como afirmou Afonso de Dornelas, não poderá, por isso, passar de mero folclore ideológico, anacrónico e simbólico de uma determinada maneira de ver e fazer história… Há, também, que recusar as interpretações, criadas por Francisco Inocêncio da Silva e por Luz Soriano, de que o visconde vivia principescamente em Paris, à custa do erário público português, desbaratando verdadeiras fortunas com a publicação - para mais incompleta! - de uma única obra (63). Ou que teria mendigado o lugar de guarda-mor da Torre do Tombo, quando na verdade o adquirira em 1824 e aquele era indispensável para um acesso incontestado a toda a espécie de documentos aí guardados - como Herculano julgará, em 1856, inútil a continuação dos Portugaliae Monumenta Historica com Costa de Macedo à frente da instituição (64). 62

Há, porém, que elogiar o trabalho de interpretação do tradicionalismo do visconde de Santarém, contextualizado com o de demais autores contra-revolucionários, feito por Fernando Campos em Os nossos Mestres ou Breviário da contra-revolução, Lisboa, 1924, O Pensamento contra-revolucionário em Portugal (século XIX), Lisboa, 2 vols, 1931 e 1933 e em "O Visconde de Santarém Mestre do Nacionalismo Português", in Trabalhos da Associação dos Arqueólogos Portugueses, vol. VIII, 1943, pp. 87-126 e por António Sardinha, Teoria das Cortes Gerais (1ª ed 1924, 2ª ed. 1975), passim. 63 Veja-se o Apêndice Documental II, pp. 45-46. 64 Luz Soriano, Historia da Guerra Civil, Op. cit., pp. 245-7, n. Sobre a propriedade do lugar de guarda-mor da Torre do Tombo, em 1827, veja-se visconde de Santarém, Correspondência..., Op. cit., vol. VI, p. 213. A 2 de Abril de 1857 o ministro do Reino, Rodrigo da Fonseca Magalhães, nomeia formalmente Costa de Macedo guarda-mor da Torre do Tombo, em substituição do visconde de Santarém. Em consequência deste facto, Herculano toma três decisões fulcrais no seu futuro imediato: demite-se de vice-presidente da Academia, “por não conseguir […] que a direcção do Arquivo da Torre do Tombo lhe ficasse subordinada”; interrompe, ostensivamente, o trabalho da sua História de Portugal, que nunca mais verá um só volume publicado; e “recusa-se a prosseguir as suas investigações no Arquivo Nacional” para os Portugaliae Monumenta Historica (Pedro Augusto de Azevedo e António Baião, O Arquivo da Torre do Tombo. Sua História, Corpos que o compõem e Organização, Lisboa, 1989, p. 214; Vitorino Nemésio, Alexandre Herculano 1877-1977. Exposição evocativa do Centenário da Morte de Alexandre Herculano organizada

36 Em resumo, o visconde de Santarém foi um homem do seu tempo, português e cosmopolita, nacionalista e historiador crítico, recusando determinadas

mitologias

conservadorismo

e

tradicionalista,

aceitando

outras,

perfilhando

contra-revolucionário,

iluminista

um e

romântico, que deveria merecer dos especialistas da historiografia e da politologia um olhar mais atento e documentado.

pela Secretaria de Estado da Cultura, s.l., s.d., «Breve Perfil de Herculano”, p. 5 (n. n.); António José Saraiva e Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa, Porto, 1979 (11ª ed.), p. 765;e Joel Serrão, “Herculano”, in Joel Serrão (dir.), Dicionário de História de Portugal, Porto, 1989, vol. III, p. 211).

37 Apêndice Documental I: um case-study ideal (a carta de 24 de Março de 1833)

Um exemplo perfeito da desinformação e ausência de estudo aprofundado de alguns aspectos essenciais da política e diplomacia da guerra civil portuguesa de 1832-34 reside nas tentativas de negociação de uma solução pacífica para o conflito. Várias fontes e estudos sobre a época fazem eco desses projectos, tanto acalentados por liberais quanto por miguelistas (65). É claro que, conforme se davam novos acontecimentos, de carácter decisivo (derrota da esquadra miguelista, tomada de Lisboa, expulsão de D. Miguel de Santarém, etc.), os encontros diplomáticos secretos tornavam-se inúteis, cedendo lugar à decisão das armas. Porém, muito antes de a situação de D. Miguel se tornar irremediável, ainda em 1832-33, procurou-se, de facto, terminar o cerco do Porto sem maior derramento de sangue. E ao visconde de Santarém coube emitir opinião sobre as medidas a tomar, na célebre carta de 24 de Março de 1833, dirigida ao duque de Lafões. É extraordinário como, em história, ainda imperem opiniões sobre factos políticos quase velhos de dois séculos sem existir a preocupação de se estudarem os documentos, limitando-se os autores a reproduzir o que as enciclopédias transcrevem ao longo dos tempos. João Palma-Ferreira escreveu que o visconde propôs “a capitulação perante D. Pedro”. JoséAugusto França, que “aconselhara a rendição ao Duque de Lafões, já tudo estava perdido, no caos do regime”. Quanto a Hernâni Cidade e Ruy d'Abreu 65

Carlos de Passos, D. Pedro IV e D. Miguel I, Op. cit., p. 324 e in Damião Peres, História de Portugal, Barcelos, vol. VII, p. 203, Oliveira Lima, Dom Miguel no Trono (1828-1833), Coimbra, 1933, pp. 175-6 e 203-5, Silvestre Pinheiro Ferreira e Filipe Ferreira d’Araújo e Castro, Mémoire sur les moyens de Mettre un terme à la guerre civil en Portugal, pp. 7, 10 e 14, visconde de Santarém, Correspondência..., Op. cit., vol. V, p. 153, Barbosa Colen, História de Portugal Popular e Illustrada de Manuel Pinheiro Chagas, continuada [...] por..., Lisboa, 1904, vol. IX, pp. 367-8 e 395-6, Luz Soriano, História do Cerco do Porto, Op. cit., pp. 386-7 e História da Guerra Civil, 3ª Época, t. IV, pp. 174-5 e 226-8, António Ferrão, Reinado de D. Miguel, Op. cit., pp. 406-14 e 486, n. 1 e duque de Palmela, Despachos e Correspondência do… Colligidos e Publicados por J.J. dos Reis e Vasconcelos, Lisboa, 1851, vol. IV, pp. 854-6.

38 Torres, proferiram as seguintes afirmações, bastante sintomáticas do espírito predominante no ano da Revolução dos Cravos: "Uma outra atitude do ministro, já no fim do efémero reinado de D. Miguel, posto que igualmente inspirada pelo seu amor pelo jovem monarca [então com 30 anos!], em delírio como a parte da Nação que a seguia, foi a de lhe sugerir, por intermédio da carta ao duque de Lafões, a capitulação e negociações com seu irmão D. Pedro, para evitar a derrota que tudo fazia prever [sic]. D. Miguel, irritado contra tal atitude e tal sugestão, demitiu imediatamente o ministro que assim ousava rasgar o véu de megalómana ilusão que o envolvia" ( 66). Acrescente-se apenas que, embora não se saiba quando foi demitido o visconde do seu cargo ministerial, não o foi efectivamente antes de Agosto de 1833 e formalmente antes de Maio de 1834, sendo a carta datada de 24 de Março de 1833. Uma das mais recentes revisitações a este assunto foi em boa hora feita por José Hermano Saraiva, no seu programa A Alma e a Gente de 20 de Abril de 2005, intitulado "O Visconde e a Academia". Falando das causas da queda política do ministro dos Estrangeiros de D. Miguel, em 1833, afirmou o seguinte:

"Eu creio [...] que a razão [...] está numa carta [...] que o visconde de Santarém escreve ao duque de Lafões [...] sobre uma trégua com D. Pedro [...], para ver se se acabava com a guerra, eles estão lá no Porto, deixá-los sair, deixá-los ir embora, enfim, não [...] os punir, até há aqui uma frase [...] muito estranha nesta carta, eu não sei bem o sentido da frase, mas leio-a: «Poderá ocorrer também a oportunidade de que coisa alguma se lhes deva conceder, sem a condição de entregarem às Tropas de El-Rei as Ilhas de que se acham de posse.» Quer dizer, admite que eles tenham de restituir os Açores. [...] se admite que sim, também admite que não. A ideia parece que é esta: o D. Pedro fica rei 66

Francisco de Paula Ferreira da Costa, Memórias de um Miguelista (1833-1834), prefácio, transcrição, actualização ortográfica e notas de João Palma-Ferreira, Lisboa, s.d., p. 76, n. 32, José-Augusto França, “Cartas do 2º Visconde de Santarém Ministro de D. Miguel ao Enviado em Londres 6º Visconde de Asseca (1828-1831)”, in Op. cit., p. 503, Hernâni Cidade e Ruy d’Abreu Torres, Cultura Portuguesa, Op. cit, p. 86 e Barbosa Colen, Op. cit., pp. 224-7.

39 dos Açores e o D. Miguel fica rei de Portugal, é o que sugere esta carta. De qualquer maneira, eu sei que o rei se zangou muito, demitiu-o, pouco depois traiu-o com os liberais, ele saiu de Portugal, vai viver para França" (67).

Teria, de facto, o visconde aconselhado a rendição na dita carta? Causaria a missiva a queda política de Santarém? Penso que não. O documento, datado, como se viu, de 24 de Março de 1833, é de facto dirigido pelo visconde ao duque de Lafões, o qual desempenhava funções de ajudante-de-campo do rei em Braga, onde D. Miguel mantinha o seu quartelgeneral de supervisão do cerco à Cidade Invicta. Porém, não só a totalidade do documento parece indicar algo de contrário a essa tese de semi-rendição perante os pedristas, como a sua interpretação é dificultada pelo facto de não existir certeza absoluta se a frase original seria "coisa alguma se lhes deva conceder, sem a condição de entregarem às Tropas de El-Rei as Ilhas de que se acham de posse", se "com a condição de". Sem ou com. Eu julgo, pessoalmente, mais provável sem, no sentido de salvo com. De qualquer modo, a missiva consiste em 8 artigos de possíveis instruções, com a ressalva de terem de ser adaptadas à realidade quotidiana do desfecho do cerco e de estarem a ser aconselhadas sem um pleno conhecimento da vontade régia. Porém, parece não deixar lugar a dúvidas de que a legitimidade miguelina nunca deveria transigir com a suposta rebeldia das tropas entrincheiradas no Porto, cuja saída de Portugal seria desesperadamente necessária para a sobrevivência do regime.

Mas deixemos falar Santarém:

"Em ofício que V. Ex.ª me fez a honra de dirigir, em 11 do corrente, [...] me participa V. Ex.ª que Sua Majestade Foi Servido Ordenar [...] que aprontasse eu as

67

Transcrição feita com autorização de José Hermano Saraiva, a qual agradeço. Itálico meu.

40 Instruções que se deveriam dar ao General em Chefe do Exército em Operações contra os Rebeldes na Cidade do Porto [...]. [Passa a listar 8 condições prévias:]

1º Que nunca se deve tratar directamente com os Rebeldes, no mesmo ponto de eles oferecerem Capitular intervindo a Suprema Autoridade de El-Rei Nosso Senhor, porque jamais se deveria, nem por sombras, fazer estabelecer o aresto de tratar de igual a igual Poder. Entre a legitimidade e a Rebelião não há transacções. 2º Que se deverá e poderá tratar, naquela eventualidade, com os Ingleses e Autoridades Britânicas, como medida preliminar da evacuação de todos os Estrangeiros ao Serviço do Senhor D. Pedro e dos Rebeldes, os quais, Estrangeiros, deverão partir imediatamente na Esquadra Britânica ou em outros Transportes. 3º Que durante aquela evacuação as hostilidades deverão cessar. 4º Que os Rebeldes, que por acaso os acompanharem, não poderão tocar em nenhum ponto do território Português. 5º Que os Rebeldes deverão, desde logo, deixar aos Comissários nomeados pelo General em Chefe do Exército de Sua Majestade toda a Artilharia, Cavalos, Munições, etc., ou entregar-lhas nos lugares em que se acharem. 6º Que não poderão levar os Cofres públicos nem os fundos, nem móveis, ornamentos das Igrejas e de outros estabelecimentos de Sua Majestade e somente as suas bagagens pessoais. 7º Poder-se-á permitir aos Habitantes do Porto, que se comprometeram, a embarcar com outros. 8º Quanto aos Sargentos, Cabos e Soldados Portugueses, que Sua Majestade lhes perdoava e lhes daria os destinos que julgasse oportuno, conseguindo-se, talvez, por este meio, o diminuir o número dos novos expatriados e novas tentativas de futuro, etc., além de ser coerente com os precedentes indultos, chamando-se, assim, muita gente para a obediência e legítima Autoridade e evitando também a ida para os Açores.

Estas são as primeiras e importantíssimas [imperfeítíssimas, segundo a Crónica Constitucional de Lisboa] ideias que me ocorrem e que, em caso necessário e, principalmente, estando ao facto [em itálico no original] das intenções de Sua Majestade, desenvolveria com os convenientes motivos e razões; contudo, todas estas ideias devem ser subordinadas às circunstâncias militares e políticas do momento de tratar ou, antes,

41 do Conde de São Lourenço as ditar, se Sua Majestade convier em adoptar a base da rendição do Porto, sem ser pelo efeito formal do ataque e entrada das Linhas dos rebeldes e, até, por que o General em Chefe pode ser mais exigente à proporção que a situação dos inimigos se tornar mais crítica e tal poderá tornar-se esta situação, que seria melhor forçálos a cortarem a Linha e [a] baterem-se em campo aberto, do que [a] deixá-los partir sem que eles recebam a justa punição do atentado que cometeram. Poderá também ocorrer a oportunidade de que cousa alguma se lhes deva conceder, com [sem, segundo a Crónica Constitucional de Lisboa] a condição de entregarem às Tropas de El-Rei as Ilhas de que se acham de posse. Não posso deixar de significar a V. Ex.ª que é de todo impossível tratar um projecto de instruções sobre todos os pontos que uma situação eventual e complicada pode apresentar em mil e mil incidentes diversos. Apressar, contudo, a queda do Porto é o maior negócio da Monarquia. Tantas considerações de Estado internas e externas estão ligadas àquele assunto que seria muito difícil o poder ponderar-lho no curto espaço desta Carta. Sobretudo o que é de mais para temer é o estado do Reino vizinho. Ele é o mais assustador e a existência de parte da Família Real [espanhola] em Portugal e do Senhor Infante D. Carlos [Maria Isidro] é um dos negócios mais sérios que tem tido Portugal, tanto na posição relativa actual destes Reinos com a Espanha, como do partido que a perfídia [e] intrigas de França e da Inglaterra dali podem tirar, continuando principalmente a existir o Porto ocupado pelos rebeldes, que a mais funesta de todas as fatalidades tem demorado naquela Cidade, que se edificou para nosso flagelo." (68).

A 29 de Março, isto é, cinco dias depois, o duque de Lafões respondia que D. Miguel dera à carta "um grande apreço, por que as cousas mais essenciais e úteis à Causa de Sua Majestade estão apontadas naquelas instruções e, achando Sua Majestade muito conveniente que o Conde de São Lourenço tenha delas conhecimento, me ordenou que

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Carta para o duque de Lafões de 24 de Março de 1833, in visconde de Santarém, Correspondência..., Op. cit., vol. V, pp. 31- 33 e Crónica Constitucional de Lisboa nº 46, de 3ª Feira, 17 de Setembro de 1833, p. 244. Todos os itálicos são meus, exceptuando quando assinalado.

42 tirasse uma cópia, a fim do dito Conde fazer uso conforme permitirem as circunstâncias." (69).

Além disso, o visconde elabora, a pedido do rei, uma minuta (essa formal) de instruções para o conde de São Lourenço usar, no "caso eventual de se tratar com eles" (os sitiados). Contém 12 artigos, que basicamente reproduzem os oito pontos da carta de 24 de Março. Aconselha, no artigo 12º, que o dito oficial "Buscará todos os meios de introduzir nos artigos da capitulação a condição da entrega dos Açores às Tropas de Sua Majestade" (70).

Parece assim cair assim por terra a teoria de que o artigo 8º da primeira carta postulava a entrega dos Açores e que teria causado a desgraça política do visconde, pois D. Miguel estava ao corrente do projecto. Até, provavelmente, saberia das negociações secretas de 1832-33 entre figuras liberais e miguelistas, algumas das quais parentes da viscondessa de Santarém (entre os quais Saldanha). Aliás, existe, perdido no meio da documentação transcrita por Rocha Martins na Correspondência... do visconde de Santarém, um texto que consubstancia esta tese alternativa. Trata-se de uma proposta de carta de D. Miguel para D. Pedro, datada do período em que o ex-imperador estava no Porto, na qual D. Miguel propunha ao irmão uma solução pacífica do conflito, para paz e segurança de todos os portugueses (71). De facto, a demissão do visconde ficar-se-á a dever, isso sim, ao estrondoso fracasso político-militar do duque de Cadaval, ao abandonar Lisboa, em Julho de 1833, perante as tropas do duque da Terceira. Tal derrota

69

Visconde de Santarém, Op. cit., p. 35. Itálicos meus. Idem, Op. cit., pp. 54 e 56. Idem. 71 Idem, Op. cit, vol. V, pp. 242-245. 70

43 não poderia deixar de arrastar consigo a queda de Santarém, o cérebro político por detrás do duque. É bom lembrar que Cadaval, chefe da aristocracia portuguesa, desempenhava desde 1832 as funções oficiosas de presidente do governo e de responsável máximo pela defesa da capital e arredores. Fora Santarém quem o reintroduzira na cena política miguelina, depois da demissão do duque, em 1831. Em Agosto de 1833, quando Cadaval e Santarém chegam a Coimbra, onde estava instalada a corte de D. Miguel, é-lhes ordenado, juntamente com São Lourenço, que se mantenham afastados da então capital. Foi nessa altura que a Crónica Constitucional de Lisboa, o orgão oficial do governo pedrista, publicou, a 17 de Setembro, a missiva de Santarém para Lafões, interceptada pelos espiões liberais, tornando assim pública uma proposta de solução pacífica para o conflito entre miguelistas e liberais, via conde de São Lourenço ou mediadores neutrais. A facção mais intolerante do miguelismo, até há pouco chefiada pelo conde de Basto (que falecera no início de Agosto), poderá ter exigido então ao rei a cabeça do ministro dos Negócios Estrangeiros. Em consequência, terão entrado em choque duas formas de fazer e de pensar a política, no seio dos ministros e áulicos de D. Miguel. De um lado, a dos moderados, de Cadaval e Santarém, intransigentes na legitimidade e legalidade do seu rei, mas aceitando, a priori, uma negociação da retirada pacífica das tropas de D. Pedro do território continental. Como escreveu o visconde, era catastrófica a combinação entre a ocupação liberal do Porto (único ponto do Portugal metropolitano dominado pelos pedristas até Julho de 1833) e a permanência do infante Carlos Maria Isidro e das duas irmãs de D. Miguel em território português. Porquê? Não só permitia a ingerência política, diplomática, militar e secreta de França e da Inglaterra, ao lado dos liberais, como empurrava o gabinete de Madrid, até aí pró-miguelista, para o alinhamento franco-britânico pró-liberal. É que Carlos Maria Isidro, irmão

44 de Fernando VII, recusava-se a jurar a sobrinha, a futura Isabel II de Espanha, como herdeira do trono, pois ele próprio se julgava com direito à coroa. Permanecia em Portugal à revelia das ordens do rei espanhol, rodeado de D. Maria Teresa e de D. Maria Francisca, duas irmãs de D. Miguel cujas agendas políticas não ficavam atrás das da mãe, a falecida D. Carlota Joaquina. É mais do que óbvio que a posição do visconde era tremendamente delicada: como justificar, perante o maior aliado político-ideológico do miguelismo (o governo madrileno liderado por Zea Bermúdez), a recusa do infante espanhol e das princesas portuguesas em regressarem a Espanha? Embora escusando-se com o argumento de que se tratava de um assunto de família, Santarém sabia do que falava quando dizia que "a queda do Porto é o maior negócio da Monarquia", que "o que é de mais para temer é o Estado do Reino vizinho" (às portas da primeira guerra carlista) e que "a existência de parte da Família Real [espanhola] em Portugal [...] é um dos negócios mais sérios que tem tido" o reino. A queda de D. Miguel aproximava-se, conforme os meses de 1833 passavam sem a resolução de qualquer um destes problemas, graças aos quais a situação peninsular parecia enredar-se numa teia de interesses muito difíceis de gerir. Pode dizer-se que a partida dos três príncipes ibéricos de Lisboa para Sintra, depois sucessivamente para Mafra, Coimbra e Braga, despoletou a queda de Santarém, o fim de um governo miguelino digno desse nome e o início da vitória do regime liberal peninsular (72). Eis, em conclusão, um de milhares de factos da história da guerra civil de 1832-1834 que permanecem envoltos numa névoa historiográfica apenas explicável pelo imenso trabalho que resta fazer sobre todo este período... 72

Também a forma como o visconde lidou com este assunto foi analisada com a invocação de argumentos de hipocrisia e de ingenuidade da sua parte, por J. Barbosa Colen, História de Portugal Popular e Ilustrada de Manuel Pinheiro Chagas..., Op. cit., nono volume, pp. 236-39, os quais parecem estar ausentes da documentação reproduzida em visconde de Santarém, Correspondencia..., Op. cit., vol. V, pp. 98, 109-114 e 333.

45 Apêndice Documental II: a polémica das dotações orçamentais

No ano de publicação (1860) do volume XVIII do Quadro Elementar... surge na imprensa uma polémica, a propósito da carta de lei de 15 de Julho de 1857, na qual Rebelo da Silva se terá envolvido com o visconde de Atouguia. O primeiro, escrevendo anonimamente na Política Liberal de 15 de Junho desse ano de 1860, em artigo que Francisco Inocêncio da Silva transcreveria no seu Dicionário Bibliográfico Português (73), procurou pôr em confronto ministros do cabralismo e da Regeneração, protectores da obra do visconde de Santarém e o novo status quo historiográfico da Academia das Ciências, encabeçado por Alexandre Herculano. Toda esta questão é orçamental e recuará ao período inicial em que as obras do visconde foram apoiadas pelo Estado português. De 1842 a 1846 e de 1853 a 1856 a verba prevista era de seis contos de réis para financiamento do Quadro Elementar... (11 volumes, 1842-54), do Corpo Diplomático... (1 volume, 1846), do Atlas (três tiragens, 1841-49) e do Éssai... (3 volumes, 1849-52), cujo ritmo de publicação muito sofreu com a diminuição da dotação para três contos de réis entre 1846 e 1853. Quem a repôs no orçamento do ministério dos Negócios Estrangeiros foi o visconde de Atouguia, o mesmo que em 1860 provavelmente contestou a repartição desses seis contos de réis não só pelo Quadro Elementar... e pelos Portugaliae Monumenta Historica, como previa a lei aprovada, mas também pelo Corpo Diplomático... e pelas Lendas da Índia (74), como a Academia das Ciências passou a praticar, por decisão da sua 2ª classe de 21 de Julho de

73 74

Inocêncio, Dicionário Bibliográfico Português, Op. cit., vol. VII, p. 33. Com esta obra de Gaspar Correia iniciava-se a colecção dos Monumentos Inéditos do Descobrimento e Conquista da África, Ásia, e América (Rebelo da Silva, Quadro Elementar..., Op. cit., vol. XVI, p. CCLV).

46 1857 (75) – uma arbitrariedade que Rebelo da Silva, deputado e académico, preferiu sempre omitir (76). Para lá da questão dos méritos de cada uma dessas colecções e do triste destino póstumo do Corpo Diplomático... e do Éssai... do visconde de Santarém, a verdade é que a dotação orçamental entregue a este historiador, enquanto foi vivo, não se destinava apenas a uma colecção (como Rebelo da Silva quis fazer passar à posteridade), mas às supracitadas quatro. Para além disso, contrapor os três volumes do Quadro Elementar... publicados de 1852 a 55 (“época do ministério de s.ex.ª”), dividindo os vinte e quatro contos de réis do quadriénio pelos três volumes, aos volumes póstumos da mesma colecção, dos Portugaliae Monumenta Historica ou das Lendas da India (77) – tem um duplo objectivo. Por um lado, ignorar a publicação, em 1852, do terceiro volume do Éssai... e os dezanove volumes de obras várias que ficaram por publicar devido aos atrasos no pagamento das remessas, atrasos esses que em 18 de Agosto de 1853 já iam em 15 meses (78). Por outro, omitir a real intenção da polémica: desfazer o agravo de se dar a perceber que supostamente “Era mais competente um só escritor [o visconde de Santarém] do que o sr. A. Herculano e a academia!” (79).

75

Jordão de Freitas, O 2º Visconde de Santarém e os seus Atlas Geográficos, Op. cit., p. 28 e nota b). Rebelo da Silva, Quadro Elementar..., Op. cit., vol. IX, pp. IX-X e Corpo Diplomatico..., vol. I, 1862, p. IX. 77 Rebelo da Silva, in Inocêncio, Op. cit, pp. 34-5. A nova colecção do Corpo Diplomático... só veria a luz em 1862. 78 Freitas, Op. cit, pp. 136-7 (carta de 5 de Junho de 1854) e 22, nota c). 79 Rebelo da Silva, in Op. cit, p. 35. 76

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