LEMBRANÇAS DA ESCOLA ANO 5 EDIÇÃO 24

June 6, 2017 | Autor: T. Maddalena | Categoria: Literature, Storytelling, Cibercultura, Leitura, Hipermídias
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LEMBRANÇAS DA ESCOLA

ANO 5 EDIÇÃO 24 Tania Lucía Maddalena Há crianças que ingressam na língua escrita por meio da magia (uma magia cognitivamente desafiante) e crianças que entram na língua pelo treino de “habilidades básicas”. Em geral, as primeiras se tornam leitoras; as outras têm um destino incerto. (Ferreiro, 2005, p. 28)

Releituras

Em

Meristemo não havia carros e motocicletas. Seus habitantes

utilizavam bicicletas, mas não precisavam pedalar, pois o povoado inteiro funcionava com energia solar. Lá havia uma grande

lagoa, árvores, uma

padaria que oferecia livros, e uma

livroteca que oferecia

pão.

Somente

quintas-feiras,

chovia das

seis

às da

tarde até às seis da manhã de sexta-feira. Isso

se repetia a

cada semana do ano. Nessa terra singular aconteciam coisas incríveis. Seus moradores iam, voltavam e se aventuravam em suas bicicletas, para viver histórias, histórias mágicas. “Meristemo, as bicicletas do Sol”, foi o primeiro livro que li. Era outono de 1993. Eu tinha 6 anos e

cursava o primeiro ano

numa escola, em

Concepción del Uruguay, na província de Entre Ríos, interior da Argentina, cidade em que nasci e cresci. Lá, as quatro estações do ano são bem marcadas e o calendário escolar as atravessa, uma a uma. No entanto, quando penso em Meristemo,

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imediatamente sinto a brisa do outono; talvez, porque seja a estação do início das aulas na Argentina, ou, nossas memórias

ainda, porque as lembranças

invadam

num determinado espaçotempo, carregadas de cheiros

próprios. Esse livro, formato

com suas ilustrações coloridas em aquarela, escrito em

impresso, chegou com cheiro de lápis-de-cor novo e de terra

molhada. O exercício de trazer de volta a memória do livro que acompanhou minha infância e que, em parte me alfabetizou, levou-me a pensar duas questões importantes que hoje me interpelam, como docente-pesquisadora em educação: Em primeiro lugar, meu processo de alfabetização foi influenciado, nos anos 90, pelas pesquisas da psicolinguista argentina, Emilia Ferreiro, sobre os mecanismos cognitivos relacionados à leitura e à escrita, que considera que

crianças

têm

um

papel

ativo

na

construção

de

seu

próprio

conhecimento. Segundo a autora, a compreensão da função social da escrita deve ser estimulada com o uso de textos atuais, livros, histórias, jornais, revistas. Desse modo, como parte “obrigatória” das inspirações que se ofereciam no primeiro ano da escola fundamental, a literatura caminhava de mãos dadas com as práticas cotidianas de leitura e escrita. Ao invés de simplesmente repetirmos o que ouvíamos, interpretávamos o que nos era apresentado. Esta reflexão me leva diretamente à seguinte: Como se dão, na contemporaneidade, essas práticas de leitura e narração de histórias, com os novos desafios da cibercultura e a linguagem hipermídia, considerando que os que nasceram com o computador e os dispositivos móveis, presentes em suas casas, possuem uma percepção diferente daqueles que, como eu, já adultos, assistiram, incrédulos, a sua chegada?

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Estamos diante de uma geração que se alfabetiza

em meio às

tecnologias digitais. Consequentemente, a forma como leem, escrevem, aprendem e narram suas histórias também se modificam. Como relata Jorge Bastos Moreno, em sua crônica “Alice no reino do iPad”1, sua neta Alice, de 3 anos de idade, utiliza o iPad melhor do que ele, deslizando seus dedinhos ágeis, para abrir as App com os jogos, vídeos e desenhos que lhe interessam. Muitos foram os que anunciaram a morte do livro impresso com a chegada da era digital. No entanto, corroboro o pensamento de Santaella (2007), quando afirma que diferentes gerações de tecnologias coexistem, na atualidade, sendo apropriadas pelos usuários, a partir de seus perfis cognitivos. Nesse sentido, aventuro-me nas possibilidades do presente, como Emília Ferreiro nos ensinou no seu livro Passado e presente dos verbos ler e escrever (2005): “Ler e escrever são construções sociais; cada época e cada circunstância histórica dão novos sentidos a esses verbos” (p.13). Assim, se cada suporte que aparece na história da humanidade exige novas funcões cognitivas para os leitores e escritores, é

responsabilidade

nossa, como educadores, refletir e ampliar repertórios sobre as demandas e as práticas atuais. Nessa perspectiva, a cibercultura é nossa cultura contemporânea,

marcada

fortemente

pelas

tecnologias

digitais,

em

mobilidade, e os livros digitais interativos nos permitem incorporar outros elementos à leitura, para além do material impresso. A chamada “literatura ampliada”

é

um

gênero

próprio

da

cibercultura,

que

integra

sons,

entrevistas, linhas de tempo, mapas, dicionários, ilustrações interativas e as mais variadas informações na linguagem hipermídia de obras literárias. O The Fantastic Flying Books off Ms. Morris Lessmore2, curta-metragem do ano 1

Crónica Alice no Reino do iPad: http://blogs.oglobo.globo.com/blog-do-moreno/post/aliceno-reino-do-ipad-413324.html 2 Livro interativo The Fantastic Flying Books off Ms. Morris Lessmore: http://morrislessmore.com/?p=app

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2011, adaptado para livro interativo, incorpora até um piano para as crianças praticarem as notas musicais. Da mesma forma, a coleção interativa iPoe3, do clássico escritor norte-americano Edgar Alan Poe, integra excelente trilha sonora as suas histórias de terror, com manuscritos originais e ilustrações interativas dos personagens dos contos. Diante desses dois exemplos, que permitem uma experiência de leitura imersiva e ampliada, não posso deixar de me perguntar: Como seria “Meristemo, as bicicletas do Sol”, interativo? Seria igualmente mágico, não tenho dúvidas, pois o livro, impresso ou digital interativo, ganha vida, e “se completa quando encontra um leitor intérprete”

(FERREIRO,

p.23).

E

esse

é

o

maior

desafio

para

nós

educadores: a formação de leitores intérpretes. Sobre a autora: Tania Lucía Maddalena é Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Educação ProPed/UERJ. Membro do GPDOC - Grupo de Pesquisa Docência e Cibercultura. Mestre em Educação pela UNICAMP. Especialista em Educação e Novas Tecnologias pela Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais FLACSO- Argentina e Bacharel em Ciências da Educação pela Universidade Nacional de La Plata UNLP- Argentina. Referências FERREIRO, Emilia. Passado e presente dos verbos ler e escrever. São Paulo: Cortez, 2012. REY, Rosa Maria; CAPEL, Maria del Carmen. Meristemo las bicis del sol. Buenos Aires: Colihue, 1989. SANTAELLA, Lúcia. Navegar no ciberespaço: o perfil cognitivo do leitor imersivo. São Paulo, Paulus, 2004.

3

Coleção iPoe: http://ipoecollection.com/index-es.html

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