Ler e escrever em Pompéia: diversidade na construção de gênero

July 5, 2017 | Autor: Lourdes Feitosa | Categoria: Estudios de Género
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Revista Caminhos da História, v.15.1, 1 semestre de 2010.

– Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES. ISSN: 1517-3771 Dossiê: O Império romano e sua diversidade

Ler e escrever em Pompéia: diversidade na construção de gênero Lourdes Conde Feitosa

A proposta desse texto é refletir sobre a importância da escrita para uma leitura de gênero no ambiente popular da Pompéia Romana, a partir dos grafites desenhados nas paredes da cidade. Para isso, apresentamos algumas considerações sobre o uso da epigrafia como fonte documental, a vivência estabelecida entre mulheres e homens comuns, e como esses escritos indicam a composição de gênero e marcam uma fascinante diversidade presente nessa cidade romana do século I d.C.

Unitermos: Escrita, Leitura, Gênero; Diversidade

Reading and writing in Pompeii: diversity at the gender construction

Abstract: The aim of this paper is to do a reflection about the writing importance for gender investigation on Roman Pompeii popular contexts. This analysis appears from graphite met in wall of the city. We begin with some details involved at the epigrafia as documental fonts, soon we discuss about the life of popular women and men and we consider as these writings point a composition of gender. So emerges a fascinating diversity in the city just in the beginning of this era.

Key words: Writing, Reading, Gender, Diversity.



Doutora em História Cultural, pesquisadora do Centro do Pensamento Antigo – UNICAMP e do Grupo de Pesquisa Arqueologia Histórica. Professora da Universidade Sagrado Coração, Bauru/São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected]

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“Não é esse, finalmente, o propósito da escrita? Vencer ao esquecimento”. Isabel Allende

Luciano Canfora, em Lire a Athènes et a Rome, texto publicado em 1989, considera que a alfabetização no período greco-romano é restrita à população urbana e, mais, a uma minoria dentre ela. Os escravos seriam os principais excluídos, salvo algumas exceções de escravos letrados. Chega a afirmar que uma das causas da estabilidade social do Estado Romano é justamente a ausência de alfabetização das massas livres (Canfora, 1989, p. 927/8). Esse filólogo e historiador italiano é exemplo de uma abordagem acadêmica que analisa a instrução no mundo antigo apenas a partir das referências literárias, expressão dos valores e concepções das elites e do próprio significado que o aprendizado da leitura e da escrita tinha entre os seus pares. Segundo essa perspectiva, afirma-se que não é possível conhecer nada mais do que um décimo ou menos da vida romana (Mc Mullen, apud Funari, 2003, p. 74) e somente pelo viés aristocrático. A documentação antiga, em particular a epigrafia, permite-nos rever essa idéia de que a instrução era um conhecimento restrito às elites no mundo antigo. A partir das escavações iniciadas no século XVIII, grande quantidade de registros tem sido encontrada em diferentes extensões do mundo antigo, em variados formatos, gêneros e línguas, como os papiros gregos, e ainda em maior quantidade os papiros demóticos, descobertos no Egito; tabuinhas de Persépolis, em língua elamita e escrita cuneiforme acádia modificada; textos ibéricos escritos em lâminas de metal (plomo); inscrições celtas registradas em caracteres gregos e latinos, denominadas por textos grecogalos e grecolatinos; inscrições em ânforas etruscas e púnicas; as tabuinhas de Vindolanda e os grafites e as inscrições pintadas de Pompéia, escritos em latim (Bowman; Woolf, 2000). Desde o século XIX há um trabalho sistemático de organização e publicação dessas referências1.

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Alguns exemplos de compilação de inscrições podem ser vistos em: Corpus Inscriptionum Graecarum (CIG), Corpus Inscriptionum Latinarum (CIL), Inscriptions latines de Narbonnaise (ILN), Documents d´archéologie française (DAF), Inscriptions latines dês Trois Gaulês (ILTG), Revue archéologique de Narbannaise (RAN), Vindolanda Research Reports (VRR), Recueil des Inscriptions Gauloises (RIG), dentre outras. Cf. Bowman;Woolf, 1999 e Bodel, 2001.

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Como menciona Greg Woolf, a variedade desses escritos evidencia a complexidade da escrita não clássica e permite uma análise crítica de algumas idéias formuladas desde o século XIX, como a de uma civilização clássica inventada por gregos e propagada pelos romanos, sem receber contribuições dos diversos povos que ocupavam a região Mediterrânica; o predomínio do grego e do latim de forma homogênea e ampla, desconsiderando-se as variações de interesses que faziam com que fossem utilizados na íntegra, adaptados à língua local, ou mesmo rechaçados; e, ainda, a concepção de dois extremos em relação à escrita e à leitura no Mundo Antigo: uma limitada difusão da capacidade de ler e de escrever, restrita às elites, ou um amplo e popular alfabetismo (Woolf, 2000). No mundo romano esses registros epigráficos foram feitos em pedras, metais, cerâmicas, telhas, vidros, reboco de muros, mosaicos tesserae (Ireland, 1983, p. 220; Keppie, 1991, p. 10; Bodel, 2001, p. 2) e compõem-se de inscrições oficiais, como àquelas compiladas no volume XVI do Corpus Inscriptionum Latinarum (CIL), correspondentes às atividades militares, e de inscrições não-oficiais destinadas às circunstâncias da vida cotidiana e escritas, a grande maioria delas, de próprio punho por pessoas de origem popular. O significativo volume dessas inscrições e os diferentes graus de conhecimento do latim expressos são considerados, por um número cada vez maior de pesquisadores, como evidências da prática da escrita, leitura e da difusão do alfabetismo na sociedade romana, embora considerado os devidos cuidados mencionados acima por Bowman e Woolf2. O melhor exemplo da presença do litterator3 está na cidade romana de Pompéia, na qual o latim era utilizado em diferentes finalidades e formas. Os grafites pintados  tituli picti, eram usados para anúncios em lojas ou em cartazes com propagandas eleitorais (programmata). Também se recorriam às tabuletas de cera, pequenos pedaços de madeira cobertos de cera, na qual se escrevia. Pode-se ter uma idéia de sua utilização por meio daquelas encontradas em um cofre de madeira, pertencente ao banqueiro Iucundus para controle de suas finanças e empréstimos. A cera estava derretida, mas como a ponta do graphium (instrumento de ponta dura utilizado para o desenho das letras) havia alcançado a madeira que ficava atrás, foi possível reconstruir boa parte das infor-

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Sobre esta questão conferir, por exemplo, Väänänen, 1937, p. 15; Gigante, 1979, p. 37 e 41; Funari, 1989, p. 28 e 2003, p. 74; Franklin, 1991, p.82; Varone, 1994, p. 9; Cavallo, 1995, p. 517-536. 3 O litterator corresponde àquele que ensina a leitura e a escrita, professor dos estudos elementares, bem como ao que possui alguma instrução.

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mações, publicadas no CIL, Suplemento I4. Mas a maneira mais comum e freqüente de as pessoas se expressarem em Pompéia era por meio de traçados realizados em muros, paredes externas e internas de edifícios públicos, tabernas, locais de trabalho, habitações, ou seja, praticamente em todos os espaços disponíveis nas paredes da cidade, chamados em latim de graphio inscripta5. O latim, língua originalmente falada na região do Lácio, acompanhou o processo de expansão romana e foi difundido nas regiões conquistadas (Parca, 2001, p. 64). Falado em extensa área do Império romano, embora com um núcleo comum, variava segundo a região, influenciado pela interação com línguas e dialetos regionais e de um meio social a outro, de acordo com o grau de conhecimento (Väänänen, 1937, p. 15) e de interesse de cada grupo, como mencionado no início o texto. Por exemplo, a preocupação em escrever o grego e o latim na norma culta pode ser vista como uma maneira simbólica das elites mostrarem erudição e requinte, tanto para os seus pares como aos demais indivíduos6. Em Pompéia, o latim passou a ser difundido a partir da incorporação da cidade como colônia romana e por muitos anos foi utilizado concomitante ao osco, a língua nativa (Parca, 2001, p. 65). A inscrição abaixo indica a mistura das letras em osco e latim, realçada pelo próprio texto:

Figura 1. (CIL, IV, 9300)

Um desafio que se põe diante da constatação de um número tão significativo de inscrições comuns é considerar como essas pessoas aprendiam a ler e a escrever. Há inscrições que estão de acordo ou próximas às normas cultas do latim, o que leva a supor uma educação mais formal, embora não se saiba exatamente como isso tenha se 4

Estas compõem um total de 155 tabuletas de cera das quais 64 têm registrado a data de sua redação, a maioria entre os anos de 52 e 62, com exceção dos números I e II que são dos anos 15 a 27, e o III, facultativamente atribuídos a 52 ou 33. Cf. Väänänen, 1937: 18. Menção sobre o uso dessas tabuletas também pode ser vista no grafite CIL, IV, 1796. 5 Até o último Suplemento do CIL foram publicados 10.913 grafites. Diversos outros, descobertos desde então, estão sendo publicados em boletins de escavações. 6 Cf. Funari, 1989, p. 17: “a erudição imagina-se herdeira e continuadora imóvel da tradição reprodutora de um passado clássico”.

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dado. Segundo Clarke, durante o Império a educação tomou impulso e floresceram muitas escolas das mais diferentes disciplinas, como Geometria, Retórica, Gramática, Aritmética e Música; dentre estas, as mais importantes eram as escolas de Gramática e Retórica, por onde passavam os romanos bem nascidos destinados à carreira pública (Clarke, s/d, p. 206). Exemplos dessa escrita são encontrados em paredes pompeianas utilizadas para recados “oficiais”, ou seja, anúncios de venda de produtos, de espetáculos ou cartazes eleitorais, escritos, via encomenda, por trabalhadores pagos para isso  os scriptores7. Entretanto, como os grafites eram de cunho popular, pondera Funari que a maioria dos autores dessas inscrições, se passou pelo ensino primário, pouco assimilou das regras ortográficas e da norma culta em geral8. Isso não os impedia, contudo, que “por meio da escrita pudessem participar ativamente da vida social” (Funari, 2003, p. 75-78, 80). A ação desses “grafiteiros” era tão intensa que justificava a atuação do dealbator (dealbatio – ação de branquear), trabalhador que tinha por finalidade a limpeza das paredes, encarregado de apagar velhas notícias, mensagens indesejáveis ou mesmo de deixar as paredes limpas9, seguramente para novos desenhos. Além de uma experiência formal como a da escola, pode-se considerar também a importância de métodos pedagógicos alternativos, tanto no aprendizado da língua e da cultura latina e grega, como o contato com imigrantes, com o comércio, a prestação do serviço militar, além das representações teatrais e da atuação dos circulatores, pessoas que promoviam entretenimentos itinerantes, com funções de cantar, declamar poesias ou ler trechos de livros (Gigante, 1979, p. 41; Horsfall, 1996, p. 28, 47). Considerando-se esses aspectos, embora não tenham sido encontrados livros nas cidades vesuvianas10, é possível verificar, por exemplo, a influência literária épica, elegíaca e dramática romana, grega e helenística nas representações do sentimento afetivo (Gigante, 1979, p. 37). Citações de autores como Homero, Virgílio, Tiburtino, Ovídio, Catulo, Lucrécio, Propércio, dentre outros, são encontrados nos grafites11. Em diversos deles os autores fizeram suas as palavras de poetas famosos, que tinham as suas obras 7

Menções a esses trabalhadores podem ser vistas em CIL, IV 1904, 2487, 2993a, 3512, 4925, 5009. Um exemplo da atividade docente pode ser encontrado na inscrição “C. CVSPIVM PANSAM AED D R p OVF SATVRNINVS CVM DISCENTES ROG” (CIL, IV, 275), no qual o professor Saturnino, com os seus alunos, indicam Caio Cuspio Pansam para o cargo de edil. 9 Cf. grafites como CIL, IV 222, 1190 e 3529. 10 Cidades de Pompéia, Herculano, Stábia e Oplontes, soterradas pela erupção do Vesúvio no ano de 79 d.C. Como sugere Cartelle (1981, p. 81), parece razoável não terem sido encontrados livros nessas cidades à medida que estes não poderiam suportar as altas temperaturas, as cinzas e os lapilli ardentes que os teriam coberto. 11 Para Gigante, os grafites constituem uma notável fonte para o conhecimento da difusão da cultura literária fora dos círculos literários das elites (Gigante, 1979, p. 26). 8

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publicadas e divulgadas pelo império; mas em outros a linguagem, o padrão e o significado foram perpassados e adaptados ao contexto e à leitura popular (Feitosa, 2005, p. 81-87). Nesse processo de assimilação da língua latina, visíveis diferenças podem ser observadas entre a escrita e a leitura erudita e popular. Os escritos oficiais seguem as regras gramaticais do padrão erudito, enquanto o latim popular, mais flexível, acaba por adequar-se aos elementos regionais. Como mencionado acima, em Pompéia são encontradas reminiscências da escrita e da sintaxe osca adaptadas à língua latina, gerando alterações fonéticas, de ortografia e de justaposições em muitas palavras; além disso, a sua disposição na frase também se aproxima, convém supor, da manifestação espontânea da fala cotidiana. Outro aspecto relevante dessa diferença está na possibilidade de apreender variados significados atribuídos às palavras, de acordo com os valores dos grupos nos quais são constituídos. Os grafites pompeianos denotam as características desse latim popular ou vulgar, diferenciado do latim erudito pela sua estrutura, formação e disposição das palavras na frase. No texto literário impresso há uma rigorosa atenção com o gênero literário adotado, preocupação que não existe no redigido nas paredes, mesmo naqueles inspirados em poetas aristocráticos. A experiência com a escrita também é muito diversa. A grafia suave e bem direcionada produzida pela pena e realizada, por vezes, pelas mãos de escravos que registravam o que lhes era ditado, é distinta daquela feita com o graphium, cuja textura das paredes dificultava a elaboração das letras, a precisão de seu traçado e de sua reelaboração. Característica marcante de cada texto também está no destinatário de cada um deles. Os literários, como os de Virgílio, Tibulo e Ovídio e os demais textos impressos, eram direcionados a um público geral e variado, sendo lidos em diferentes partes da sociedade romana. A mensagem dos grafites, em contrapartida, era voltada, em sua grande maioria, para a comunidade local, em um extenso “diálogo” no qual os leitores podiam fazer as suas considerações sobre o que estava escrito, apresentar saudações, ofensas, votos de bom augúrio, opiniões, recados, entre uma infinidade de temas e questões. Isso significa que o latim popular grafado nas paredes não se resume a uma ortografia incorreta, fruto de uma educação deficiente quando comparada às normas da escrita latina erudita. É nesse conjunto de variações morfológicas, de sintaxe e de semântica, próximo à fala e representando os universos culturais de seus escritores, que os 6

grafites manifestam a força e o sentido de sua representação popular12. Essa diversidade da escrita no Mundo Antigo e, em particular no Romano, também é marcante na composição das relações entre o feminino e o masculino no ambiente popular. No quadro complexo de particularidades jurídicas da sociedade Romana  livre por nascimento (ingenuus), manumitido (libertus) e cativo (seruus)  um elemento em comum entre muitas mulheres e homens era o seu distanciamento de uma vida economicamente estável. Além de cativos de guerra, o estado de penúria vivido por muitos deles fazia com que adultos relegassem a sua condição de livres para se venderem como escravos, e que crianças carentes fossem abandonadas ou vendidas por seus pais (Veyne, 1961: 215). Essas condições faziam com que as sensíveis e reais diferenças entre os grupos sociais não se detivessem na origem estatutária, mas fossem frutos das relações de opressão e exploração originárias da base escravista que vigorava. Por meio dessas desigualdades é que escravos, livres e libertos de baixos extratos diferenciavam-se dos demais e esse compunha a primeira característica comum aos denominados populares. Entretanto, os contrastes étnicos e regionais, característicos de um domínio vasto como o romano, marcaram as singularidades culturais entre os diversos grupos populares que se constituíram na sociedade romana. No caso específico de Pompéia, vários traços podem ser vinculados a mulheres e homens plebeus da cidade. O primeiro deles diz respeito à condição de trabalhador, como encontrado nos ícones registrados por eles e sobre eles13. Por meio dos grafites, essas pessoas referenciavam os inúmeros ofícios e associações profissionais aos quais pertenciam, como proprietários de pequenas tabernas, oficinas e padarias14; atividades independentes na função de professor, alfaiate, vendedor de roupas e jóias 15; além de inúmeras associações de trabalhadores como as do pomari [vendedores de frutas], muliones [cocheiros], aurificis [ourives], pistori [padeiros], lignari [lenhadores], aliarii [vendedores de alho] e galinarii [vendedores de aves], fullones [pisoeiros], unguentari [perfumistas], 12

Em sentido parecido Woolf considera que a expressão latinogala não era uma fase de transição entre a escrita grecogala e a escrita latina, mas que ambas apareceram na mesma época e floresceram paralelamente. Tampouco considera essa escrita uma mistura do latim com o galo, usada pelo povo semiromanizado (2000, p. 150). Ver também Funari, 2003. 13 Em 1939, o estudo de Tanzer The common people of Pompei, identificou por “povo comum” as pessoas que viviam no mundo do trabalho (prestação de serviços, produção e comércio). Apresentou uma inusitada compilação dos variados tipos de atividades laborais exercidas na cidade, por meio de grafites reunidos no volume IV do Corpus Inscriptionum Latinarum, mas não houve a preocupação em identificar os aspectos estatutários ou culturais que pudessem envolver tais pessoas. 14 Cf. CIL, IV, 368, 4472/3 (Oficina dos Atti), 7749. 15 CIL, IV, 275 (professor); 3130, 7669/ 71/ 74 (joalheiro).

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culinari [ajudantes de cozinha], caupones [taberneiros] e agricolae [trabalhadores agrícolas]16. A grande maioria desses trabalhadores não mencionou os seus nomes ou suas diferenças estatutárias17, contudo as referências encontradas nos grafites permitem identificar aspectos de sua composição social. Nomes como Caprasia e Nymphio18, Felix19, Fuscus e Vaccula20, Losimio21, Hermes22, Iphigenia23, Hilario24, Narcissus25, Fortunatus e Anthusa26, Aegle27, Maria28 e Pollia29 (grafias preservadas no original), sinalizam a sua origem estrangeira  grega, judaica, árabe, “oriental”, dentre muitas outras  ou da própria cidade (D’Avino, 1964; Della Corte, 1956), mas todos de procedência humilde. Esses nomes feitos por mulheres e homens estão presentes nos diversos escritos dedicados a campanhas políticas. O pompeiano Cerato registrou a sua condição de liberto no apoio a Védio, o seu candidato à edilidade: P. Vedium Numm(ianum) aed. Ceratus lib(ertus) rogat (CIL, IV, 910) [O liberto Cerato indica para edil P. Vedio Nummiano]30;

o mesmo fez o liberto Thesmo ao indicar Albúcio: L. Albucium aed. Thesmus libert rog 16

Pomari , CIL, IV, 180, 183, 202, 206; Muliones, CIL, IV, 97, 113, 134; Aurificis, CIL, IV, 710; Pistori, CIL, IV, 429, 4227, 4888, 5380; Lignari, CIL, IV, 485, 951, 960; Aliarii, CIL, IV, 3485; Galinarii, CIL, IV, 241, 373; Fullones (os que preparam o pano depois de tecido), CIL, IV, 998, 2966, 3478, 3529, 4100, 4102/03/07/09/12/18/20; Unguentari, CIL, IV, 609; Culinari, CIL, IV, 373; Caupones, CIL, IV, 336; Agricolae, CIL, IV, 480, 490. 17 As condições de liberto e escravo foram citadas, por exemplo, nas inscrições CIL, IV, 910, 2983 e 2038. 18 CIL, IV, 171, 207. 19 CIL, IV, 174, 1989. 20 CIL, IV, 175/6. 21 CIL, IV, 229. 22 CIL, IV, 241. 23 CIL, IV, 457. 24 CIL, IV, 913. 25 CIL, IV, 1130. 26 CIL, IV, 1230. 27 CIL, IV, 7866. 28 CIL, IV, 7862. 29 CIL, IV, 368. 30 Outras referências podem ser encontradas em CIL, IV, 2983; 2993. Em outro grafite, Cresces, que Della Corte interpretou como recém liberto (1954, p. 182), envia saudações a todos os companheiros de escravidão: Cresces conservis universis sal(utem), CIL, IV, 475.

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(CIL, IV, 2983) [L. Albúcio para edil. O liberto Thesmo pede].

Aselina, considerada como a líder de um grupo de prostitutas (D’ Avino, 1964, p. 49), deixou registrado, juntamente com outras garotas, suas indicações aos pleitos locais. Aselina teria a seu cargo Egle (grega), Maria (judia), Esmirna (“exótica”). Ainda há outras, como Palmira (“oriental”), por exemplo, mas esta a serviço de Hermes. Aselina apóia dois candidatos a duumviro; Esmirna, também31. Um deles coincide e elas fazem uma única inscrição para manifestar sua preferência por C. Lolio Fusco. Quanto ao outro candidato, há divisão. Aselina prefere L. Ceio Segundo, e Esmirna, C. I. Políbio. Mas nenhuma das duas tem candidato à edilidade. Nesta casa, o apoio a edis ficou por conta de Maria e Egle. Cada uma delas, como fica claro, tinha independência para escolher seus candidatos. Como estas, também deixaram as suas menções trabalhadoras de tabernas como Polia, que apoiou Cn. Cerino Vátia à edilidade (CIL, IV, 368;) e Ferusa, que preferiu L. Popídio Segundo (CIL, IV, 7749). Da mesma maneira fizeram outras mulheres32. É curioso observar essas indicações de apoio político, pois na sociedade romana as mulheres não tinham direito à cidadania política, portanto, não poderiam ser candidatas ou eleitoras. Durante o Principado, período em que esses registros foram feitos, também não todos os homens livres eram cidadãos33 e mesmo dentre estes havia distinções entre a cidadania com pleno direito  ciues Romani, daquela com direitos parciais  ius Latii (Alföldy, 1987, p. 154). Dentre os libertos, os aspectos jurídicos também variavam segundo o tipo de manumissão como, por exemplo, os libertados sob a manumissio iusta, que obtinham o direito ativo de voto34.

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CIL, IV, 7863, 7864 e 7873. Para Della Corte, em comentários apresentados abaixo das inscrições, esses nomes estariam associados às mulheres de condição servil. Mas a condição de cada uma delas só pode ser identificada quando mencionada na própria inscrição. 32 Cf., entre outros exemplos, Júnia (CIL, IV, 1168), Epídia (CIL, IV, 6610) e Sutória Primigênia (CIL, IV, 7464), na campanha de 79; Cornélia (CIL, IV, 3479), em 77; Caprásia (CIL, IV, 171), em 76; e Víbia (CIL, IV, 3746), cujo candidato não foi possível discernir. 33 Isso só veio a acontecer com Caracalla (211–217), pela Constitutio Antoniniana. Cf. Alföldy, 1987, p. 144. 34 Los argúi que, no final da República, não havia nenhuma restrição legal à ocupação do ordo decurionum (conselho local responsável pela administração da justiça, das finanças, abastecimento de alimentos, construções e manutenção da ordem pública) pelos libertos, embora os altos cargos estivessem reservados aos ingenui, homens nascidos livres (Los, 1987, p. 850-2).

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Não sabemos qual era a situação dos libertos Cerato e Thesmo, mas há grande possibilidade de que ambos, juntamente com as mulheres mencionadas, não pudessem participar oficialmente das eleições. Supostamente sem condições financeiras para trocas políticas, as indicações destas mulheres e homens podem ser vistas como uma atividade coletiva da qual faziam parte como membros ativos, dando suas opiniões, discutindo política, apoiando e indicando candidatos e que, talvez, essa participação na organização da comunidade fosse mais importante do que as eleições em si mesmas (Savunen, 1995; Will, 1979). Além das indicações para os pleitos locais, a pequena cidade da Campânia romana, com uma população estimada entre dez e quinze mil habitantes e uma dinâmica econômica baseada na agricultura, indústria e comércio, guarda outros tipos de referências. As bodegas, casas, armazéns, prostíbulos, teatros, o fórum e o anfiteatro têm em suas paredes marcas dos sentimentos e das idéias de seus habitantes e daqueles que passavam pela cidade para o veraneio, comércio ou para diversão com os ludi35. Grande parte dessas inscrições conservadas nas paredes pompeianas é de rápida menção e suscitada diretamente pelo coração, como as evidências destes grafites sobre o sentimento amoroso: Marcus Spedusa amat (CIL, IV, 7086). [Marcos ama Espedusa] Marcellus Praenestinam amat, et non curatur (CIL, IV, 7679) [Marcelo ama Prenestina e não é correspondido] Amethusthus nec sine sua Valentina CIL, IV, 4858 [Ametusto não vive sem sua Valentina] Vibius Restitutus hic solus dormiuit et Vrbanam suam desiderabat (CIL, IV, 2146) [Víbio Restituto aqui dormiu sozinho e lembrou-se ardentemente de sua amada Urbana] 35

Ludus, ludi: palavra de origem etrusca que pode ter dois sentidos. O primeiro, “jogos de ação”, correspondente aos jogos de caráter religioso e oficial. O segundo refere-se a escola, o local onde os gladiadores treinavam antes do espetáculo. Cf. Garraffoni, 2005, P. 23.

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Suauis uinaria sitit rogo uos et ualde Sitit Calpurnia tibi dicit. Val(e) (CIL, IV, 1819) [Digo a você: desejo teu doce vinho e desejo muito] Calpurnia te diz. Saudações!]. Diversos casais também eternizaram nas paredes sua união. Segundo registrou, ou talvez mesmo Primigênia tenha escrito a frase abaixo, seguindo uma tradição de por o nome do homem no início da frase, como se repete na seqüência abaixo: Secundus cum Primigenia conveniunt (CIL, IV, 5358) [Segundo com Primigênia, em comum acordo] [Ba]lbus et Fortunata duo coiuges (CIL, IV, 4933) [Balbo e Fortunata, os dois esposos] L. Clodius Varus Pelagia coniunx (CIL, IV, 2321) [Lucio Clódio Varo e sua mulher Pelagia] Staphilus hic cum Quieta (CIL, IV, 4087) [Estáfilo aqui com Quieta]

Outra sucessão de grafites, escritos em colunas do Pórtico posterior da região ocidental, mostra o desejo dos enamorados de deixar unidos os seus nomes com pedidos de bom augúrio: (H)ic sumus felices. Valiamus recte (CIL, IV, 8657) [Aqui somos felizes. E continuamos firmes] (H)ic (h)abitamus: felices nos dii faciant (CIL, IV, 8670) [Aqui habitamos. Que os deuses nos façam felizes]

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As paredes também guardam os registros das muitas súplicas amorosas, feitas por homens que, em uma linguagem simples e direta, pedem o amor da mulher estimada. Desta maneira expressou-se Secundo, no átrio de uma casa: Secundus Prim(a)e suae ubi/que isse salute(m) Rogo, domina, ut me ames (CIL, IV, 8364) [Secundo à sua querida Prima, uma saudação cordial. Peço, senhora, me ame!] Súplicas foram feitas a Plotina e a Sava: Aelius Magnus Plotillae suae salutem. Rogo, domina (CIL, IV, 1991) [Élio Magno saúda a sua amada Plotila]. Peço-te senhora!]

Propero. Vale, mea Sava, fac me ames (CIL, IV, 2414) [Tenho pressa. Tchau, minha Sava! Me queira sempre!]

Todos esses grafites nos permitem vislumbrar a relação construída entre homens e mulheres que compartilhavam trabalhos, alegrias, infortúnios e explorações na Pompéia Romana do início de nossa era. Uma cidade pequena, mas representativa da pluralidade étnica e das influências heterogêneas compartilhadas por pessoas de diferentes origens. Diversidade de sentimentos, idéias, sensibilidades e valores que definiram a maneira como as relações de gênero se configuraram no ambiente popular, eternizadas pelos registros nas paredes. Anunciadora de como conviviam mulheres e homens, a própria escrita é enaltecida na representação de um casal, cuja pintura foi encontrada no tablinum de uma casa de Pompéia:

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Figura 2. Provavelmente o casal Terentius Neo e sua mulher. Casa VII, 2, 6. (Cantarella, 1999, p. 26.) Essa pintura é representativa de pessoas de classes sociais menos elevadas e provavelmente ilustra os proprietários de uma padaria (Maiuri, 1953, p. 103). É significativa a presença do papiro na mão esquerda dele e a tabuinha de cera e o graphium nas mãos dela, sinais da importância que a familiaridade com a escrita e a leitura sugere ter também no nível da representação desse espaço social.

Considerações Finais

Vivemos dias de reflexões sobre os paradigmas construídos em tempos modernos de um povo romano uno, coeso e dominador, algoz dos bárbaros e herdeiro cultural dos gregos. A documentação arqueológica de Pompéia, em particular a epigráfica, embora fragmentada, nos desafiam a pensar a pluralidade das sensibilidades que compunha a sociedade romana. A indagação sobre a constituição histórica do que seja característico à feminilidade e à masculinidade possibilita compreender como os comportamentos que os distinguem são influenciados pelas relações culturais articuladas entre eles. Por essa razão, os variados grupos sociais, baseados em seus valores, conceitos, visões e espaços soci13

ais, formulam diferentes vínculos, comportamentos e atitudes em suas relações sociais. A análise da escrita, da leitura e de gênero permite-nos vislumbrar um Mundo Antigo cada vez mais diverso, complexo e distante da unidade que um dia se imaginou existir.

Agradecimentos

Meus agradecimentos aos colegas Margarida Maria de Carvalho, Renata Senna Garraffoni e Pedro Paulo Funari. As idéias aqui apresentadas são de minha responsabilidade.

Referências Bibliográficas

1. Documentação Antiga

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