Ler e Escrever na Universidade

June 6, 2017 | Autor: P. Cysneiros | Categoria: Computers in Education
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Ler e Escrever na Universidade Paulo Gileno Cysneiros1

RESUMO Discute a leitura crítica na universidade, começando pela varredura ou pré-leitura, para exploração de elementos contextuais da história, do tempo e do espaço de um documento, sugerindo procedimentos específicos neste sentido. Aborda o desenvolvimento de competências de escrita pelo adulto, tomando como exemplo detalhado a produção de um memorial.

Introdução Não é de se estranhar que muitos estudantes, especialmente os recém-chegados à universidade, não consigam assimilar boa parte daquilo que lhes é indicado como leitura para várias disciplinas ao mesmo tempo. Além de terem recebido uma formação deficiente cujas raízes estão na escola fundamental, é comum terem que trabalhar com textos sem contextos, que compõem a cultura da xerox de nossas faculdades. São capítulos de livros que pressupõem compreensão de partes anteriores da mesma obra; textos que pressupõem domínio do jargão da área; obras mal traduzidas ou que exigem conhecimento da cultura original do autor, cópias sem indicação dos títulos dos livros de onde foram tiradas, do autor ou autores, das datas de publicação, dos prefácios, sem as páginas finais de referências. Alguns professores não cobram leituras precisas, satisfazendo-se com muito pouco. Afinal, mandar xerocar e ler é muito fácil. Para completar o quadro, além da xerox solta ainda encontra-se arraigado o hábito das apostilas, consolidado nos cursinhos préuniversitários. Geralmente são colagens mal feitas de recortes de autores comuns na disciplina, para serem memorizadas sem questionamento. Carvalho & Silva (1996) nos ensinam que ler para aprender envolve várias operações cognitivas: distinguir o que é conceito, argumento, pressuposto, fato, opinião; verificar se as relações entre argumentos e conclusões são pertinentes; comparar o tratamento do mesmo assunto em diferentes autores; comparar suas próprias idéias com as do autor e tirar conclusões. O leitor ou leitora torna-se mais eficiente à medida que lê mais, de maneira mais ativa e inquiridora. Todo leitor não só recebe sentidos do texto, mas também lhe atribui sentidos, dialogando sem perceber com o autor. Interpreta o texto e

1 Professor aposentado da Universidade Federal de Pernambuco. Professor Visitante (2001-2002) da Universidade Estadual Vale do Acaraú, Sobral, Ceará. Tel/fax 55 xx81 3459-1655. Forma recomendada de citação: Cysneiros, Paulo G. (2000). Ler e Escrever na Universidade. Recife, Pernambuco, UFPE, texto disponível pelo e-mail [email protected]

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atribui-lhe significados lançando mão de conhecimentos extralingüísticos do mundo, do assunto em questão, de outros textos. Os autores citados salientam que há uma ruptura na passagem do 1o e 2o graus para o terceiro. Na escola é comum a figura do professor que detalha a matéria, organiza quadros sinópticos, cobra exercícios e “traduz” para seus alunos o único livro didático adotado na disciplina, sem exigir reflexão crítica. Como bem coloca Marcuschi (1996), após analisar livros-textos de 1a a 7a série, “...a maioria dos exercícios de compreensão resume-se a perguntas e respostas. Raramente são sugeridas atividades de reflexão. Em geral são perguntas padronizadas e repetitivas, de exercício para exercício, feitas na mesma seqüência do texto. Quase sempre se restringem às conhecidas indagações objetivas: O quê? Quem? Quando? Onde? Qual? Como? Para quê? ou então contém ordens do tipo: copie, ligue, retire, complete, cite, transcreva, escreva, identifique, reescreva, assinale…partes do texto. Às vezes, são questões meramente formais. Raramente apresentam algum desafio ou estimulam a reflexão crítica sobre o texto.” Na universidade, espera-se que o aluno seja capaz de parafrasear, interpretar e criticar textos, apesar da realidade de nossas escolas superiores ser outra. David Carraher (1983), em uma pesquisa sobre o tema, concluiu que a universidade contribui muito pouco para desenvolver o senso crítico dos alunos, especialmente dos que se dedicam às Ciências Humanas. Uma atitude permanente de senso crítico depende de um certo amadurecimento intelectual. As habilidades de um pensador crítico são desenvolvidas através da leitura ativa, da reflexão, da prática constante.

Leitura Ativa No contato inicial com qualquer texto, livro ou material obtido pela Internet, faça uma pré-leitura, uma leitura de entrelinhas, uma “varredura”, segundo a expressão de Carvalho & Silva (1996). Antes de mergulhar linearmente no conteúdo, desenvolva o hábito de “ler” ao máximo os elementos contextuais.2 Faça – de preferência nos espaços em branco do próprio texto ou livro ou em uma folha de papel que possa ser mantida junto – um esboço de estrutura do documento. Um bom começo é listar os títulos dos capítulos ou divisões internas, quantificando o número de páginas dedicadas a cada parte (o espaço físico bidimensional do texto). Esta quantificação inicial dará uma idéia aproximada da importância de cada parte dentro do todo. O autor, mesmo sem se dar conta, dedica mais ou menos espaço físico às divisões mais valorizadas ou mais relacionadas com as finalidades da obra. Examine o índice geral ou sumário e outros índices (se houver), para ter uma idéia do todo e de como o autor dividiu o trabalho. Veja se os títulos ou subtítulos lhes são familiares, qual a estrutura lógica da obra, se trata de um tema com profundidade ou se é composta da colagem de temas diferentes. Se houver notas de rodapé (como neste texto), dê uma olhada nelas para identificar se são observações sobre a terminologia, desvios do assunto central, observações do tradutor ou editor. Verifique as datas e outros elementos contextuais, especialmente a editora e o local de publicação. É significativo se a obra foi publicada por uma editora de renome, com linha

2 Atlas geográficos, dicionários e manuais também podem ser lidos, apreciados, interpretados. Claro, não se lê um desses documentos como se lê um romance. No espírito deste texto, também se lê uma foto, uma imagem de TV, um filme, o conteúdo de qualquer mídia.

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editorial definida, que leva em conta o gosto do público ou os temas da moda (no caso de editoras voltadas para o público universitário), ou se foi publicada por uma editora obscura, sem distribuição amplas e sem conselho editorial independente. Faça, assim, uma leitura “diagonal,” da obra, sempre tendo como pano de fundo seu “mapa” do terreno conceitual, da estrutura do todo. Como uma pessoa caminhando em um espaço físico, procure notar pontos interessantes a serem explorados depois, com calma. Leia alguns parágrafos esparsos e confronte o conteúdo com o que você já conhece, notando o que é novo ou não, anotando suas associações do momento. Esse primeiro passeio será uma boa oportunidade para sedimentar as memórias do mapa feito de início, ao qual você poderá referir-se várias vezes, quando mergulhar na leitura, no estudo do texto (daí a importância de fazê-lo nas páginas em branco do começo ou final do livro, ou nas costas em branco da cópia xerox). Em tal caminhada, repito, procure anotar as idéias que forem surgindo. Grifos com lápis comuns ou com pincéis ou delineadores coloridos são interessantes quando usados para realçar uma palavra significativa, uma frase original ou esclarecedora, um pequeno trecho de síntese, contanto que não cubram parte considerável do texto. Além de uma análise do espaço bidimensional que compõe o texto, também é interessante avaliar a condição física, material e temporal, do objeto. Um livro de capa dura (hardcover), bem encadernado, com fotos, cores, números, quadros e tabelas, tem conotações diferentes de outro com capas simples (softcover ou paperback), mal impresso, em papel comum, sem complementos. É agradável ou não, para você, o livro ou o documento como objeto? Existem obras de beleza impressionante, produzidas há séculos, cuja aparência é testemunho eloqüente da dedicação de uma ou mais pessoas, de vidas inteiras, da importância da obra para seus autores, ou para o contexto cultural onde foi editada. Obviamente, apenas a aparência não é um indicador do valor do conteúdo. Aliás, no passado, quando publicar um livro não era tão fácil como hoje, os autores costumavam encomendar uma pequena quantidade de cópias em papel especial e encadernação esmerada, para presentear amigos e pessoas ilustres, em sessões de autógrafos e noutras ocasiões especiais. Os números de tais tiragens eram registrados nas primeiras páginas das edições comuns. O aspecto material também é revelador no caso de livros que tiveram outros donos. A “vida passada” da obra pode ser interessante: trechos anotados ou sublinhados, um autógrafo, uma dedicação do autor, sinais de muito ou pouco manuseio (já comprei livros “usados” com páginas intactas). Resumindo, quantas páginas compõem o todo? Qual o percentual de páginas ou de texto, em relação ao todo, para cada capítulo ou assunto? Uma obra extensa supõe um tratamento mais detalhado do tema. Como estão estruturados os índices? Quais as divisões e subdivisões internas? Há prefácios, introdução, posfácios? Qual o tamanho da página e o do fonte utilizado? Uma coisa é um livrete com poucas paginas de tamanho reduzido, em fonte aumentado, com poucas ou nenhuma referência (séries tipo “O que é....”); outra é um livro com páginas amplas e texto em fonte reduzido. Um livro onde cada capítulo é de um autor diferente é bem diverso de outro escrito por uma única pessoa (ou um meio termo, um trabalho de duas ou três pessoas em coautoria). No primeiro caso, o livro não tem um autor, mas vários. Um deles é o organizador, que escolheu os temas e convidou outros autores, ou simplesmente colocou juntos vários trabalhos existentes, apresentados em congressos ou publicados em outras fontes, geralmente revistas científicas. Assim, cada capítulo pode ser considerado como um pequeno livro, todos reunidos sob uma capa comum, com um texto introdutório escrito

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pelo organizador, notando pontos em comum, divergências, estrutura e objetivos da coletânea. Normalmente há redundâncias, estilos diferentes, capítulos mais interessantes. Tais livros são comuns na universidade e geralmente não tem a maturidade de obras escritas como um todo. Mais fáceis de se fazer, representam a produção intelectual de vários profissionais, tratam de temas ou problemas que estão na moda ou em franca expansão e proporcionam um panorama do assunto naquela data, juntando autores que nem sempre são acessíveis ao estudante. Uma variante são as coletâneas individuais, onde um mesmo autor reúne textos seus publicados em épocas e revistas diferentes, complementando-os com um prefácio e/ou introdução onde comenta e fornece uma perspectiva diferente ao novo conjunto, que naturalmente forma uma gestalt diferente, pois são peças reunidas no mesmo tempo futuro (normalmente vários anos separam a publicação de cada texto) e no mesmo espaço físico (possibilitando o “trânsito” imediato de um para outro). Textos acadêmicos de uma certa extensão quase sempre trazem uma introdução (mesmo que o autor não coloque este nome), onde encontramos uma visão panorâmica do todo, a orientação teórica, os problemas abordados, a estrutura geral do trabalho, as fontes amplas ou específicas usadas na construção do texto. Parta do pressuposto que qualquer obra séria deve um bocado a outros autores, àqueles que contribuíram para a pesquisa, para definição de linhas teóricas, de metodologias, coleta de dados empíricos, em determinados tempos e espaços. Após a introdução é comum o destaque de subtítulos, em mais de um nível de estrutura ou organização lógica. Quando não houver índice ou sumário detalhado, tente fazer um esquema do todo, mesmo que provisório, preferencialmente nas páginas em branco da xerox ou do livro, para ter uma visão da organização conceitual do todo e avaliar melhor os tópicos mais e menos explorados. Tente identificar qual o público que o autor procura atingir. Um artigo de jornal não pode ser avaliado com os mesmo critérios de outro, do mesmo autor, para uma publicação especializada. Caso você já conheça os temas tratados (devido a leituras anteriores ou a sua experiência profissional) ótimo. Seu trabalho mental será mais elaborado, uma vez que você poderá fazer, durante a leitura, confrontos entre sua estrutura de conhecimentos com aquilo que o autor escreveu. Você irá gostar ou não, concordar ou não, em menor ou maior parte e dificilmente no todo com o que ler. Muito do que o autor deixar implícito você “preencherá”, interpretando ou completando a seu modo, especialmente conhecimentos básicos. Vá anotando, de preferência nos espaços em branco do próprio documento, suas reações, suas dúvidas, suas ligações, materializando o seu trabalho intelectual para reanálises futuras. Deixar para anotar depois não será a mesma coisa, pois além da perda de detalhes e das distorções que ocorrem com o passar do tempo – fenômenos ocasionados pela dinâmica de nossos registros biológicos – os pensamentos e associações no futuro certamente serão outros. Ademais, futuramente talvez você não se sinta motivado nem encontre tempo para tal tarefa. Acidentes ocorrem e novas vivências estarão sempre acontecendo, constituindo materiais para novos escritos. Se o texto for um objeto de trabalho, como um livro didático ou um capítulo xerocado, risque até o limite que não atrapalhe leituras futuras. A antropóloga carioca Mirian Goldenberg (1997, p.83) nos conta que seus livros mostram o confronto de suas idéias com as dos autores: as margens de muitas páginas revelam discordâncias, questionamentos, o que lembra do que outros escreveram sobre o mesmo tema. Se for uma obra que lhe interesse, após a primeira leitura faça no computador o trabalho final de reflexão, ou de incorporação daquele conteúdo à sua estrutura de

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conhecimentos, (faço assim, como também relata Goldenberg), facilitando seu trabalho futuro de redação de um trabalho acadêmico ou de outro documento que inclua aquele conhecimento. Se quiser ser mais completo, imprima o que você escreveu e insira sua produção dentro do livro ou xérox. Afinal, nada tem mais permanência que o papel impresso (Chartier, 1998; ). Discos rígidos e disquetes são sensíveis a campos magnéticos, deterioram-se com o tempo, precisam de ser decodificados por outras máquinas, desvantagens significativas em relação ao velho e confiável papel. Se o assunto ou autor for novo para você, sua atividade mental durante a leitura poderá ocorrer em um nível mais elementar, uma vez que você irá formar seu primeiros esquemas mentais naquela área. O primeiro obstáculo normalmente é a linguagem (ou jargão técnico), uma vez que muitos termos desconhecidos irão dificultar sua leitura. Seu raciocínio poderá ser “lento” com conteúdos novos, tanto pela pouca familiaridade com a terminologia como pela ausência de conceitos, representações e experiências que lhe ajudem a ler mais rápido, formar opiniões, assimilar o novo material à sua base de conhecimentos (na terminologia piagetiana, pouca flexibilidade retro- e proativa de pensamento). Há a possibilidade de um bom autor, em ciência, não possuir habilidades de escrita. Em tais casos, esteja consciente da frustração associada às primeiras leituras. Seria como ter que atravessar estradas poeirentas para alcançar praias e outros locais de grande beleza, acessíveis apenas aos que aceitam suportar os desconfortos da travessia. Em tais situações, não se acanhe de pedir ajuda ao professor, durante ou após as aulas; de perguntar a colegas que conhecem a área, até que as explicações lhe satisfaçam. Não fique incomodado ou inseguro com sua ingenuidade ou ignorância do assunto. Sua experiência noutros domínios certamente lhe dará segurança em disciplinas onde aqueles que lhe ajudaram estiverem em situação de insegurança ou de desconhecimento. Essa é a troca que sempre ocorre quando trabalhamos em grupo, especialmente em áreas interdisciplinares. Em cursos introdutórios, o domínio do jargão poderá consumir boa parte do tempo e na leitura de materiais técnicos e científicos um dicionário clássico da língua não é infalível, podendo ser até enganador. Em tais casos, procure consultar dicionários especializados e enciclopédias, comparando verbetes sobre o mesmo assunto. Se o texto foi originalmente escrito noutra língua, procure elementos que indiquem a qualidade da tradução. Uma obra traduzida tem conotações diferentes de outra na línguamãe. O leitor de outra cultura pode desconhecer elementos subjacentes a colocações que só possuem sentido pleno para alguém que conheça o contexto do autor. Notas adicionadas pelo tradutor, revisor ou especialista no assunto, poderão ser essenciais para a compreensão plena de certas afirmações, pois alguns livros perdem boa parte do sentido quando traduzidos para outra cultura.3

3 Cito o exemplo de um guia da Internet para professores, escrito por canadenses (Heide & Stilborne, 2000), quase todo baseado em sítios (sites) norte-americanos. Traduzido sob supervisão de um renomado especialista brasileiro na área, tem pouca utilidade para nossos professores, uma vez que não foi feita qualquer adaptação ou complementação para a escola brasileira e nosso professorado. Este exemplo torna-se mais significativo devido ao relativamente alto custo do livro para um professor brasileiro de 1o e 2o graus, em papel de boa qualidade, com profusas ilustrações do original (também pouco significativas para nosso público).

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Procure sentir a qualidade da tradução, verificando se existem palavras e expressões na língua original, se há estruturas textuais que não são comuns na nossa linguagem, contextos culturais estranhos, fotos pouco familiares não comentadas no texto. No Brasil, onde qualquer um pode traduzir e comercializar uma obra praticamente sem restrições, são comuns traduções grosseiras. Tenho encontrado termos e expressões que possuem a mesma grafia mas significados diferentes (comuns em muitas línguas), tais como a expressão em inglês “graduate students” traduzida como “estudantes de graduação,” cujo significado original é o oposto do nosso (estudantes de pós-graduação). Não é incomum a mutilação de originais, especialmente a supressão de índices onomásticos e remissivos (ver exemplos em Cysneiros, 1985 e 1999). Veja se a obra é texto didático, introdutório ou avançado, especializado ou para um grande público. Tente identificar elementos que lhe informem algo sobre o autor, examinando orelhas do livro, notas de rodapé, notas introdutórias, prefácios, as primeiras e últimas páginas. Veja se o autor tem obras outras, geralmente mencionadas nas orelhas, na contracapa ou nas primeiras páginas, se cita a si próprio, se tem trabalhos em co-autoria, se é autor principal ou secundário. A auto-citação de livros ou artigos sobre o mesmo assunto é um indicador de que o autor não é novo na área, portanto alguém que, a princípio, poderá receber maior atenção sua. A autoria secundária pode indicar apenas uma colaboração marginal na obra. Em uma análise mais fina, você poderá notar se as auto-referências são ou não relacionadas com o livro que você tem em mãos. É comum especialistas respeitados em uma área, escreverem sobre assuntos fora de sua competência ou formação. Em tais casos, o fato de ter produzido noutras áreas não valida incursões em searas alheias. Tenho visto personalidades famosas das ciências exatas escreverem sobre ciências humanas, como por exemplo um matemático publicar sobre educação de 1o e 2o graus sem ter vivência da área. Embora os conteúdos de tais textos possam ser interessantes e originais, eles não tem a validade de outro escrito por alguém que tenha formação em ciências da educação, aliada a uma longa experiência em escolas. Outras categorias fundamentais são o tempo e a história de qualquer objeto de conhecimento. Tudo tem uma história, explícita ou não, cabendo ao conhecedor crítico procurar desvendá-la através das pistas disponíveis. Pelos títulos de trabalhos anteriores, você avaliará o envolvimento do autor com a área de estudo explorada no texto. Focando os aspectos temporais, pelas datas de publicação das fontes (particularmente pelas auto citações, quando houver), você poderá saber mais sobre a história de publicação do autor ou autora: desde quando e onde tem divulgado sua produção, se é produção recente ou não, com hiatos ou não, se foram publicadas por editoras conhecidas, em periódicos com corpo editorial independente, de circulação nacional, internacional ou em jornais locais desconhecidos,. Examine as datas como elementos balizadores da história do texto: datas de publicação (original e de tradução); primeira edição ou não; datas das referências, das revisões. Se for um texto acadêmico, a ausência de fontes é significativa. Uma anedota comum nos meios universitários é que tudo aquilo que você pensar, alguém já pensou antes, pelo menos de modo parecido, sendo improvável que o conteúdo de um texto de certa extensão tenha saído da cabeça de uma única pessoa. Tente descobrir a idade ou experiência profissional do autor ou autores, como pistas para as idéias e os problemas do seu tempo, de sua geração, da área explorada. Um livro sobre computadores escrito até a década de setenta é bem diferente de outro escrito após o surgimento e vulgarização do computador pessoal e do ambiente Windows. O mesmo

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ocorre com livros sobre economia ou política, escritos antes e depois da queda do bloco socialista. Observe se as fontes usadas são antigas, recentes ou variadas, da mesma cultura do autor ou de determinada orientação (português, inglês, francês, espanhol, alemão), pois podem indicar a formação intelectual ou preferências do autor. Tais informações podem ser complementadas pelo índice onomástico, quando houver, verificando-se a freqüência e as partes do livro onde determinados autores são mais citados. Veja a extensão dos parágrafos, se há ou não subdivisões, a coerência ou lógica interna de trechos esparsos; se o autor baseia-se em pesquisas confiáveis ou em opiniões de autoridades; se há gráficos, números, tabelas, figuras e se tais materiais estão integrados no texto. Por fim, um pequeno lembrete, explicitando o que está implícito em várias passagens acima. No espírito da Fenomenologia, procure apreender o que o autor tem a dizer sem se influenciar, nas leituras para compreensão, por opiniões anteriores, suas e alheias, seja de professores ou outras autoridades. Esta atitude lhe dará base para uma crítica mais rica e mais justa. Se for um autor com uma história de publicações anteriores, não tente caracterizá-lo pinçando citações isoladas ou apenas pela leitura de uma de suas obras.

Leitura na Internet De modo geral as recomendações feitas acima poderão ser usadas na leitura de materiais obtidos na Internet, como também no primeiro contato com programas educacionais e com aplicativos usados em computadores. Vejamos alguns exemplos. O conceito de varredura pode ser adaptado para os primeiros contatos com um programa ou uma página web. Qual a extensão da página? Como é usado o espaço físico de cada tela? Como são feitos e qual a quantidade de links? Há uma história da página e das modificações feitas? Quais os possíveis significados do contador de visitas (se houver)? Os textos são legíveis? Há referências a fontes? Há endereços eletrônicos e físicos para comunicação com autores e responsáveis? Caso você tenha tentado comunicar-se, recebeu resposta? É uma página traduzida? Onde a página foi feita? Por mais de uma pessoa? Quem são as pessoas? Há fotos? O que elas mostram? Há créditos ou comentários sobre as fotos? Há mapas do site e de localização em espaços mais amplos, como é costume nos bons jornais, para que o leitor internacional situe melhor o local de origem? Escrever é Preciso Ler apenas não é suficiente. Outra anedota universitária (normalmente meio insossas, contadas nas confraternizações acadêmicas) diz que um candidato a professor, ao ser questionado pela banca examinadora, respondeu que procurava ler tudo o que era publicado na sua área. Um dos membros da banca respondeu que ele não interessava ao departamento, pois necessitavam de pessoas que escrevessem... Acho essa anedota mais interessante quando confrontada com a história de nossa escola bacharelesca, que não nos ensina a atribuir à escrita e a vivências pessoais a mesma importância dada à leitura e a vivências alheias, sufocando, nos estudantes, questionamentos sobre os textos lidos.

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Ler sem escrever é percorrer apenas metade de um caminho. Talvez a raiz inconsciente de tal atitude cultural esteja no aprendizado da leitura da bíblia (a palavra sagrada) e no modo de ler textos clássicos, onde nos dizem que não cabem questionamentos de um leitor anônimo, especialmente de uma criança. Está escrito; maktub, como diz a sabedoria árabe Além de construir um registro permanente, quando escrevo sinto que estou reelaborando minhas memórias, podendo logo em seguida, ou depois, apreciá-las à distância, fazer ligações com outros acontecimentos e conhecimentos, algo possibilitado pelo ritmo relativamente lento de manipular uma caneta ou um teclado. Tal lentidão, que antes eu percebia como empecilho, me deixa espaço para “pensar à frente”, buscar palavras e frases que melhor traduzam pensamentos pouco claros, que não poderiam ser detalhados, organizados, estruturados sem a materialização na escrita. Procuro escrever regularmente como um dos modos de estar mais consciente de mim mesmo e do mundo, tornando-me de certa forma mais humano, possibilitando-me revisitar passados em tempos futuros, viver de modo mais rico. Alguns especialistas, talvez inadvertidamente, podem contribuir para a criação de bloqueios. Uma professora universitária, em um artigo de jornal, colocou que antes de escrever deve-se saber o que se quer escrever e também ter domínio das estruturas da língua, usando-as adequadamente. Ora, se alguém que começa a escrever recebe um puxão de orelhas deste tipo, vindo de uma figura de autoridade, a auto-censura poderá atrapalhar a atividade incipiente de escrita. Tal perspectiva está em desacordo com o que coloquei acima, que escrever registros pouco claros de memórias pessoais e rascunhos de todo tipo, podem ajudar a organizar o pensamento, especialmente com a reescrita posterior, com o distanciamento. Outro autor de um conhecido manual de comunicação afirma que aprender a escrever é aprender a pensar. Não é bem assim. Escrever pode ajudar muito na organização do pensamento, mas todo ser humano comum sabe pensar, alguns bem melhor que outros que escrevem com freqüência. O oposto pode até ser verdadeiro: aprender a escrever pode atrapalhar o pensar, especialmente se a aprendizagem da escrita for feita em certas escolas, com certos professores. As raízes emocionais e intelectuais de nossas atitudes em relação à escrita podem estar na escola fundamental. É útil um auto exame das primeiras memórias relacionadas a escrita. Como você aprendeu a escrever? O que tem escrito até hoje? Quais seus sentimentos em relação ao modo de escrever? Qual a influência da auto-censura em relação à escrita, que todos nós temos, em maior ou menor grau? Quando criança é comum o desenvolvimento de bloqueios, de sentimentos negativos em relação ao ato de escrever, cuja origens podem estar na aprendizagem do modo de pegar o lápis e desenhar as primeiras letras. Tais emoções, condicionamentos agradáveis ou desagradáveis, estão em nosso inconsciente, podendo aflorar em situações as mais diversas. A escrita escolar geralmente é feita para figuras de autoridade, pais e professores, onde o mais importante é a sintaxe, a ortografia, a forma, não o propósito e o conteúdo do texto. Para a criança, a escrita quase sempre é uma tarefa chata, não um ato prazeroso de registro de idéias ou de comunicação com outrem. Quando adultos, queremos sempre escrever na forma acabada, com correção e clareza, pois não nos ensinaram a colocar no papel e a aceitar registros incompletos, pouco definidos, com erros e contradições. Voltando à metáfora colocada antes, um arquiteto ou outra pessoa que começa a conceber um projeto, geralmente parte de idéias pouco definidas, elaborando-as aos poucos, com o auxílio de suportes de memória: desenhos, esquemas, anotações, produtos

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maleáveis. Discute esboços com clientes, colegas, com pessoas mais experientes. O mesmo ocorre com a produção de um texto. Um esquema inicial, mesmo tosco, é uma forma de materialização de intuições, de idéias que nem sempre ocorrem novamente sob a mesma forma, sendo importante que sejam registradas na ocasião e no contexto em que forem concebidas. Uma vez feito o esquema provisório, comece a desenvolver os tópicos que estão mais claros para você. A partir de esboços será fácil apagar, estender, reescrever, mudar partes de posição, retomar o trabalho. Com isso não estou sugerindo atitudes perfeccionistas, devendo prevalecer o bom senso. Ao redigir, não economize palavras ou outros elementos até sentir que conseguiu comunicar seu pensamento sem ambigüidade, evitando comentários posteriores do tipo “... professor, eu quis dizer isso ou aquilo...”. Seu texto terá vida independente e nem sempre o leitor terá você ao lado para tirar dúvidas. Procure ser conciso, evitando repetições de idéias e o uso de adjetivos ou palavras vagas, como “a maioria, alguns, poucos...”. Em um universo de duas dezenas, “a maioria” pode estar entre onze e dezenove; “poucos” pode significar 2, 3, 4, 5, 6... Existem vários graus de precisão, mesmo que você não tenha a informação exata. Por exemplo, em lugar de “a maioria” você poderá especificar “entre treze e quinze” que é o que você realmente quis dizer. Faça um esforço permanente de “descentração”, pondo-se na posição de um hipotético leitor desconhecido. Procure descrever os espaços e tempos importantes para compreensão do que você deseja comunicar, registrando contextos e quaisquer outros elementos que possam ser desconhecidos para o leitor de outro espaço ou tempo. Como exemplo, ao descrever a experiência em uma escola rural de Pernambuco, pense em um leitor sulista que não conheça o nordeste (ou que apenas tenha estado como turista por um curto período em uma praia ou capital nordestina, que é o comum). Ele poderá até imaginar que conhece o nordeste, mas tal conhecimento pode ser extremamente limitado e até mesmo enganador. Sua comunicação só será eficaz se você conseguir, através do texto, transportar-se para o espaço mental daquele leitor que não tem memórias do que seja um prédio tosco de pequenas dimensões, uma estrada poeirenta de chão batido, o sol forte, uma paisagem do agreste ou da zona canavieira. Evite escrever sob pressão, em cima da hora, deixando o texto amadurecer por alguns dias, quando você poderá lê-lo com olhos de outro leitor, completando, refazendo, cortando. Na redação final, não esqueça de deixar margens suficientes para as observações escritas do leitor e não escreva nos dois lados do papel.

Escrever com computadores Hoje, na universidade, quase todo mundo escreve com computadores.4 Com a flexibilidade proporcionada pelo computador, a escrita está se tornando mais icônica. Elementos gráficos podem ser usados com mais freqüência, tornando muito fácil cortar e colar, manipular tamanhos e tipos de letras, negritar, sublinhar, italicizar, colorir. É possível mesclar imagens, formas geométricas padronizadas, sons e movimentos com palavras, introduzir ligações hipertextuais com outros documentos. 4 Existem exceções notáveis, como o escritor pernambucano Ariano Suassuna, que continua usando sua máquina de escrever.

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No entanto, alguns problemas tendem a aparecer, especialmente a dificuldade no manejo de arquivos pessoais, que se multiplicam facilmente com o tempo. Como recuperar uma determinada informação registrada há muito tempo em formato eletrônico? Um recurso simples, que não exige conhecimentos especiais, é a colocação de informações de tempo e de espaço na nomeação eletrônica de documentos e na organização de árvores de pastas e arquivos, rearrumando-as sempre que a base de dados pessoal for se avolumando, como um réptil ou inseto que periodicamente muda de forma ou de pele (Cysneiros, 2000). Outro problema é a comparação de formas diferentes do mesmo texto, especialmente rascunhos e anotações, gravados como arquivos separados. Rascunhos e textos inacabados são mais “concretos” no papel e escritores experimentados só costumam destrui-los após a produção da forma final, quando o fazem. Também há rotinas de trabalho com papel, que não servem mais para o computador. Por exemplo, pode-se “espalhar” papéis em uma mesa, colocando uma folha ao lado de outras, acima ou abaixo; com o computador essa flexibilidade ainda não existe, pois o espaço está limitado às dimensões da tela e à rigidez da rolagem vertical ou horizontal do documento. Se colocarmos várias páginas lado a lado na tela, a leitura torna-se difícil pela redução do tamanho do tipo. Um recurso de transição, para quem começa a escrever com o computador, é imprimir rascunhos, facilitando o manejo e a inserção de notas usando-se estratégias convencionais. Exercício de Escrita: Um Memorial Para desenvolver a habilidade de escrita, recomendo escrever sobre um tema que ninguém conhece melhor que você: sua própria vida particular, familiar, emocional, social, intelectual, acadêmica, profissional. Se você já escreveu algum tipo de diário antes, especialmente na sua adolescência, procure relê-lo e incorporá-lo à nova empreitada. Caso você ainda tenha tal hábito, procure enriquecê-lo com as observações a seguir. Este tipo de documento, conhecido como memorial, tem sido exigido como complemento do curriculum vitae nos processos seletivos de cursos de mestrado e doutorado (mais nas ciências humanas) e em concursos para admissão de docentes em universidades. Quando bem feito, pode ser uma peça importante na seleção, desde que o curriculum resume-se a uma listagem fria de informações pessoais, acadêmicas e profissionais do candidato, sem os elementos contextuais da história de vida, que dão sentido ao todo. Uma coisa é informar, através do curriculum, seu curso de graduação, a instituição onde você estudou e as datas de início e término; outra é descrever, no memorial, suas razões de tal escolha, as relações com outros acontecimentos da sua vida particular e profissional, salientando elementos marcantes da experiência universitária, as razões de ser do perfil do seu histórico escolar, sua interpretação daquele período de vida. Uma coisa é dizer que você nasceu em uma determinada data, cidade, estado. Outra é você situar a cidade no estado, na região, destacar elementos do tempo e do espaço, da cultura local. Além do aspecto pragmático, um memorial pode ser importante para você próprio, como elemento de reflexão sobre sua história de vida. É uma peça a ser constantemente reelaborada, acrescida de novos elementos descritivos e interpretativos, que só acaba com o término de sua vida ativa. Neste sentido, escrever sobre si próprio e sobre aqueles que lhe são caros pode ser uma atividade prazerosa. Pode ser também parte da herança para seus descendentes, com a possibilidade de ser valorado pelos seus filhos, netos e gerações seguintes, conferindo significado e identidade àqueles que tiverem você como um dos elos da cadeia familiar, das trajetórias neste planeta. Por exemplo, na biografia de Cacilda

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Becker, Renata Pallotini nos conta que ela escreveu ao filho ainda por nascer, explicando porque estava se separando do pai dele. Depois escreveu várias outras cartas ao filho ainda criança (TV Cultura, Metrópoles, 03dez97). Na nossa cultura, muitos se preocupam em construir outro memorial: um mausoléu no cemitério da cidade, como uma lembrança da posição social, um testemunho da crença na ressurreição do corpo, um marco dos restos mortais. Aliás, a tecnologia pós-moderna está tornando possível unir tal memorial, de átomos (leia-se, papel), com o que estou propondo, de bits (segundo a pragmática dicotomia de Nicholas Negroponte, 1995). Uma empresa norte-americana está vendendo “lápides digitais”, ou seja, um computador e um visor embutidos numa lápide convencional de pedra, podendo-se guardar e mostrar aos visitantes cerca de 250 páginas de textos e fotos (isso em 1997, podendo ser um número maior com o desenvolvimento da tecnologia). Pode funcionar com baterias de vida longa ou, por um pouco mais de dinheiro, “eternamente” com energia solar (Brito, 1997).5 Reexamine suas reminiscências sobre sua educação e a de seus irmãos ou familiares. Em situações do cotidiano familiar, quais foram as experiências educacionais que mais lhe impressionaram, tanto positivas como negativas? Quais os valores que foram passados pelas conversas, pelas atitudes, pelas ações de pais, mães, irmãos e irmãs mais velhos? Conversas informais com outras pessoas da sua família poderão ser reveladoras, complementando e corrigindo memórias incompletas ou deformadas. Além da educação familiar, as experiências com a escola, especialmente na préescola e nas séries iniciais, geralmente são marcantes em nossas vidas. Um aspecto interessante de um memorial poderá ser um exame de suas lembranças sobre o aprendizado da escrita. Como você aprendeu a ler? Quem mais lhe influenciou? Que emoções você associou a suas primeiras experiências com um lápis, uma caneta, uma folha de papel em branco, um caderno de caligrafia? Você lembra de elogios, censuras ou reprovações feitas por professores ou pessoas de sua família? Você guarda alguma produção escrita de sua infância? Se suas memórias forem poucas, procure conversar com familiares sobre o que eles lembram de tal fase de sua vida. Ao discutir a escrita na universidade, tenho me surpreendido com depoimentos de alunos sobre o ato de anotar em aula, condenado por alguns professores. Vários alunos me disseram ter sido repreendidos em sala de aula por fazer anotações enquanto o professor estava expondo algum assunto, exigindo que apenas prestassem atenção à fala do mestre ou mestra. Ao procurar entender tal procedimento, vindo de um professor, lembro da obra de Michel Foucault, Vigiar e Punir. Realmente, escolas e prisões tem elementos comuns. Ao decidir-se por um memorial mais elaborado, a primeira coisa a fazer é planejar, fazer anotações preliminares, traçar um esquema provisório da empreitada. Como um arquiteto de sua própria história, qual a estrutura que você deseja dar ao documento? Como será a entrada, o aspecto do todo? Começar pelo presente, voltar ao passado ou o contrário? Quais os cortes? Iniciar a partir de sua tomada de consciência (i.e., suas primeiras memórias) ou memórias de outros? Contrastar cenas, cortes, como num filme? 5

Se a idéia de misturar computadores com defuntos cair no gosto das pessoas, a coisa poderá tornar-se sofisticada, com a construção de lápides “falantes”, onde o visitante apertará um botão e ouvirá o finado ou finada contar e mostrar sua própria história, com os recursos da hipermídia. Outra opção mais sofisticada será usar óculos de realidade virtual, possibilitando ao visitante conversar com o morto ou a morta. Deixo para o leitor a tarefa de imaginar outras possibilidades, bem ao gosto do business norte-americano, tais como “conferências” virtuais com vários mortos ao mesmo tempo.

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Quais os aspectos que você pretende enfatizar: colorido emocional, trajetória escolar, experiências profissionais ou uma mistura de tudo? Quais as reações emocionais (ou resistências) que a possibilidade de tal trabalho suscita em você? Quais as fontes? Incluir histórias e depoimentos de seus pais, avós, outros parentes, de pessoas que conviveram com seus ascendentes? Fotos, gravações, filmes, jornais, cartas, esculturas, outros objetos? Tudo que você tiver sobre seus familiares será fonte para interpretações sobre estilos de vida, valores, crenças, situação na comunidade onde viveram, doenças, etc., que podem conferir significados a aspectos de sua vida até então desconhecidos de você próprio. Além disso, depoimentos de outras pessoas e materiais objetivos como fotos e escritos podem ser elementos complementares e mesmo corretores de distorções de nossa memória biológica, essencialmente ativa, construtiva, onde as lacunas são preenchidas pela imaginação e elementos conflitantes ou dolorosos são torcidos inconscientemente. As distorções mais óbvias são as espaciais: uma criança tende a perceber as coisas como maiores, mais altas, de baixo para cima, mais distantes, mais pesadas, predominando o emocional, um sistema simbólico e uma lógica intrínseca em formação). As memórias também podem ser alteradas com o passar do tempo, condicionadas pelo contexto do período em que ocorreram. A crença de algumas pessoas sobre encontros com pessoas mortas e viagens a outros “planos”, pode ser resultado de uma imaginação muito fértil, misturando memórias parcial ou totalmente inconscientes de conversas, leituras, filmes e materiais semelhantes. Isso pode ser facilitado quando há um talento pessoal para a escrita, especialmente em situações emocionais ou contextos que estimulem tal tipo de produção, removendo censuras e recebendo aprovação de outras pessoas com crenças semelhantes.6 Hoje sabe-se que é possível lembrar coisas que nunca aconteceram. Algumas pessoas tem chegado a testemunhar, em tribunais, a ocorrência de eventos traumáticos como abuso físico (prejudicando terceiros) e contatos com pessoas do espaço extraterrestre, sem base na realidade (e.g. Loftus, 1997). Esses e outros problemas irão surgindo à medida que você mergulhar no projeto e não necessitam de soluções imediatas. Como na armação de um quebra-cabeças complexo, as respostas surgirão com o tempo. Tente percorrer mentalmente o percurso ou história de suas crenças e concepções de mundo, a trajetória de formação e mudança de seus valores, suas convicções e decepções. Olhar para o passado poderá ocasionar resgates de sua vida escolar, através do registro (às vezes lento, quando surgirem) de fragmentos de memória, que podem aparecer quando você encontra um rosto que lembra alguém do seu passado, um lugar parecido numa curva de uma estrada, um estranho num lugar público, uma determinada lembrança que servirá como fio condutor. Se você costuma escrever, procure rever sua produção intelectual passada, sob a perspectiva do presente. Deixe suas anotações amadurecerem, converse com pessoas que conhecem sua história, particularmente de sua família. Reelabore-as sempre que sentir necessidade, sem tomar decisões definitivas. Ao mesmo tempo, comece a praticar o hábito da escrita diária, freqüente, colocando no papel ou no teclado suas memórias à medida que forem surgindo. Não se preocupe com o estilo, com as lacunas, com as dificuldades, com as censuras, com

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Com isso não quero descartar a possibilidade de ocorrerem fenômenos mentais ainda desconhecidos da ciência, embora se saiba cada vez mais sobre a causalidade natural de coisas antes inexplicáveis.

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as contradições. O importante é a ação continuada, do mesmo modo que você faz quando incorpora o hábito de caminhar pela manhã ou à tarde, de alimentar-se de determinado modo, viver com auto-disciplina. Transforme a atividade de escrita em algo do seu cotidiano (ou pelo menos nos fins de semana), que pode ser feita nas primeiras horas do dia, com o registro da atividade mental consciente e mesmo semiconsciente da noite, registrando sonhos interessantes, intuições, memórias do dia anterior ou da semana. O uso de um computador facilita muito a confecção de registros tipo rascunho. Tal material, de certo modo cru, poderá ser posteriormente trabalhado. Após algum tempo, você irá ler seus rascunhos e textos passados com os olhos de leitor, não de escritor, rescrevendo, colando, cortando, unindo partes escritas em datas diferentes. Desenvolva o hábito de fazer cópias de segurança e de atualizá-las sempre que mexer em um arquivo, partindo da constatação inexorável que máquinas enguiçam, quebram, podem ser roubadas. Para professores, a experiência de ler e comentar por escrito textos de alunos poderá ser algo gratificante e deveria ser estimulado pela instituição escolar. Anotações, complementando ou não observações de sala de aula, em tempo posterior, são formas de dialogar individualmente com alunos, sem os limites de tempo, de espaço, sem divisão de atenção e não-privacidade da sala de aula, no contexto do grupo e da atividade de ensino e de manejo de classe. Tenho muito respeito pelo que meus alunos e alunas escrevem e leio seus trabalhos tentando entender pontos de vista, limitações, relembrando situações de aprendizagem associadas à produção escrita. Durante a leitura de trabalhos escolares, sempre procuro escrever algumas linhas no próprio texto, algo que pesquisas já demonstraram ter influência sobre o desempenho do aluno. Assim, procuro complementar o diálogo da sala de aula, registrar minhas reações no momento da leitura e abrir espaço para que o aluno responda às minhas observações, refaça o texto se necessário, saiba que alguém valorizou seu esforço de escrita. Não tenho reservas em elogiar, em incentivar a continuação de um texto, nem também em expressar desapontamento com trabalhos que não preenchem minhas expectativas, sentindo que o aluno ou aluna poderia ter produzido muito mais. Hoje, com o correio eletrônico, tais trocas podem representar um parte importante do ato de ensinar. Sei que professores não dispõem de tempo para tal, no contexto de desvalorização da profissão e da sobrecarga de aulas e de outras atividades. Boa parte do que foi tratado acima refere-se à aprendizagem de habilidades que você só desenvolverá com o exercício continuado e com a colaboração crítica de professores, colegas, parceiros de trabalho intelectual. Seus efeitos, como os do exercício físico, não aparecem de imediato e exigem certa regularidade no desempenho. Os conteúdos deste texto só adquirirão significado pleno com o exercício, com a práxis repetida. Aliás, este texto foi escrito como instrumento para a leitura de outros textos, anotações de aulas e escrita diária em salas de aula com computadores, em cursos intensivos de especialização, quando procuro unir um enfoque “teórico” com uma prática imediata e vice-versa. Sugiro que você comece fazendo um exercício de varredura de dois ou três textos que você tenha lido antes, verificando os elementos de tempo e de espaço, o que você não notou, o que interpretou de modo diferente, relendo as recomendações que faço neste trabalho.

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Referências Brito, Manoel F. (1997). Hipertexto. Veja (revista semanal), n. 1522, 19 de novembro, p.16. São Paulo, Editora Abril, http://www.veja.com.br. Carraher, David W. (1983). Senso Crítico: do dia-a-dia às ciências humanas. SP, Pioneira. (Apresenta boas discussões sobre os fundamentos lógicos da leitura crítica). Carvalho, Marlene & Silva, Maurício (1996). Como ensinar a ler a quem já sabe ler. Ciência Hoje (SBPC), vol. 20, n. 119, abr., pp.68-71. Chartier, Roger (1998). A Aventura do Livro: do Leitor ao Navegador. São Paulo, Editora Unesp (original francês, 1997). Cysneiros, Paulo G. (1985). A Antipedagogia do Livro-Texto de Psicologia Educacional. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, vol.66, n.52, pp.47-64. Cysneiros, Paulo G. (1999). Resenha Crítica: S.M. Papert, 1994, A Máquina das Crianças: Repensando a Escola na Era da Informática. Porto Alegre, Artes Médicas. Revista Brasileira de Informática na Educação, n.05, setembro 1999, pp.139-144, http://www.informação.ufsc.br/sbc-ie/revista/. Cysneiros, Paulo G. (2000). Iniciação à Informática na Perspectiva do Educador. Revista Brasileira de Informática na Educação (UFSC), n.7, pp. 49-64, Setembro. Goldenberg, Mirian. A Arte de Pesquisar (Como fazer pesquisa qualitativa em ciências sociais). RJ, Record, 1997. Heide, Ann, & Stilborne, Linda (2000). Guia do Professor para a Internet: Completo e Fácil. (2a ed.). Porto Alegre, RS, Artes Médicas. Loftus, Elizabeth F. (1997). Creating false memories. Scientific American, vol.277, n.3, september, pp.50-55. Manguel, Alberto (2000). O Destino da Leitura na Era da Web. Veja (revista semanal) no 52, 27 de dezembro, pp. 100-106. São Paulo, Editora Abril, http://www.veja.com.br. Marcuschi, Luiz Antônio (1996). Exercícios de Compreensão ou Copiação nos Manuais de Ensino de Língua? Em Aberto n.69, “Livro didático e qualidade de ensino”, (MEC/INEP), v.16, jan./mar. 1996, http://www.inep.gov.br/cibec/on_line.htm (Recife, dezembro de 2000).

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