Ler ou não ler – eis o crime do Padre Amaro

May 27, 2017 | Autor: Giorgio de Marchis | Categoria: Portuguese Literature
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Ler ou não ler – eis o crime do Padre Amaro Giorgio de Marchis

Queirosiana Estudos sobre Eça de Queirós e a sua geração

Queirosiana n.º 23/24 Estudos sobre Eça de Queirós e a sua Geração Director: Carlos Reis Director-Adjunto: Orlando Grossegesse Conselho Editorial: Beatriz Berrini, Elsa Miné, Frank Sousa, Isabel Pires de Lima, Luiz Fagundes Duarte, Manuel Pereira Cardoso, Maria do Rosário Cunha, Mário Vieira de Carvalho, Teresa de Mello Breyner Andresen © Edição: Fundação Eça de Queiroz Secretariado e Administração: Sandra Melo Caminho de Jacinto, 3110 Quinta de Tormes 4640-424 Santa Cruz do Douro © Edições Húmus, 2015 End. Postal: Apartado 7081 – 4764-908 Ribeirão – V.N. Famalicão Tel. 926 375 305 E-mail: [email protected]

Impressão: Papelmunde 1ª edição: Julho de 2015 Depósito legal: 54457/92 ISSN - 0872 -1769 A revista Queirosiana tomará em consideração, para eventual publicação, os originais que lhe forem remetidos, sendo igualmente objecto de apreciação livros para resenha e notícia. Aceita-se permuta.

ÍNDICE

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Editorial Eça de Queirós no contexto da História dos Media

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Impaciente aspiração: a questão mediática em Eça de Queirós Carlos Reis

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“Antes o Chiado do que este Fado” – fragmentos de uma opereta Irene Fialho

37

Na pela de jornalista inventando figuras: Personagens em génese no Distrito de Évora Ana Teresa Peixinho

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Linotipias queirosianas Maria do Carmo Cardoso Mendes

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“Gargalhadas” e “galhofas”: inedite modalità discorsive di opposizione nel Portogallo della Regeneração. Da As Farpas di Eça e Ramalho a O António Maria di Bordalo Piero Ceccucci

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A nossa Europa e o resto do mundo: as crónicas jornalísticas de Eça de Queirós Maria Helena Santana

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“Cronisticamente, Eça!” Annabela Rita

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O papel da imprensa n’O Conde de Abranhos de Eça de Queirós Mariagrazia Russo

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Jornais e high life. O papel dos media nos romances queirosianos Orlando Grossegesse

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São Cristóvão: o palimpsesto hagiográfico e a imaginação visual Matteo Rei

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Eça de Queirós ‘em rede’ na era da informação digital Maria Antonietta Rossi

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Actividades da Fundação Eça de Queiroz de 2012

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Actividades da Fundação Eça de Queiroz de 2013

Ler ou não ler – eis o crime do Padre Amaro Giorgio de Marchis UNIVERSITÀ DEGLI STUDI ROMA TRE

Falar do ato de leitura numa obra de Eça de Queirós obriga a encarar a questão de como o autor d’O Crime do Padre Amaro considera os livros, os leitores e, sobretudo, a leitora. De resto, como escreve Maria do Rosário Cunha, em termos ficcionais, o objeto-livro – tediosamente folheado, lido com sofreguidão, prudentemente escondido ou arremessado com violência contra um adversário – nas obras queirosianas é sempre semanticamente relevante, não podendo ser reduzida a sua função a simples “efeito de real” (Roland Barthes): Dotado de um título ou de uma autoria que o individualizam, o livro não se limita a reforçar o índice de referencialidade do discurso da ficção ou a natureza verosímil das suas construções, mas dá origem a um jogo de sentidos e cumplicidades em que a personagem ganha consistência, as malhas da intriga se entretecem e se definem os sentidos estruturantes do mundo representado: não é indiferente que uma personagem se entregue à leitura de um texto de Guizot ou à de um romance de Paul de Kock; (…). (Cunha, 2004: 118)

Inevitavelmente, o desafio de interpretar Eça no contexto da história dos media obriga, antes de mais, a considerar uma série de transformações que, ao longo do século XIX, envolvem a sociedade ocidental e que, numa forma mais limitada, mudam também o perfil cultural da sociedade portuguesa. Deste ponto de vista, mesmo existindo enormes diferenças entre Portugal e a Europa que “pensa e sabe” (Antero de Quental), o processo de alfabetização das massas é um fenómeno que não pode ser ignorado. É verdade que no ano em que se publica a primeira edição d’O Primo Basílio a percentagem de analfabetos portugueses era na ordem dos 83%, mas num país essencialmente

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agrícola, é preciso considerar a fronteira cultural que divide o mundo rural dos principais centros urbanos: em Lisboa, em 1878, o 67,1% dos homens já sabia ler e mais do que metade das mulheres (55,2%) era alfabetizada; da mesma maneira, a situação, no Porto, apesar de apresentar percentagens inferiores (63,8% e 40,7%), confirmava um nível de escolarização significativo.[1] Estes dados, embora indicativos de uma transformação social ainda incipiente, justificam também para o meio português um texto como o prefácio aos Azulejos do Conde de Arnoso, onde Eça regista a substituição do Leitor – “uma pessoa de saber e de gosto, amiga da eloquência e da tragédia, que ocupava os seus ócios luxuosos a ler” (Queirós, 2000: 96) – com o Público – “uma turba folheando páginas à pressa, no rumor de uma praça” (Ibidem) – , lamentando a democratização da leitura e manifestando saudades pelo tempo em que “quase apenas sabiam ler as Academias, alguns da Nobreza, os Parlamentos, e Frederico, rei da Prússia: e naturalmente o homem de letras” (Idem, 95). É evidente que o desenvolvimento da indústria cultural portuguesa na segunda metade do século XIX não é comparável com a realidade inglesa – onde, como escreve Eça, em Acerca de Livros, no começo da década de 1880 já não é possível calcular o número de volumes publicados anualmente enquanto os editores cada ano, na book season, arremessam para o mercado “montões, montanhas – e monturos” (Queirós, 2001: 28) de romances manufacturados “tão depressa quanto a pena pode escrever” (Idem, 26). Um ritmo industrial de fabricação da literatura que obedece às regras do mercado mas que é também a inevitável consequência de uma inédita facilidade de fruição do texto. Neste sentido, se não é possível comparar em termos quantitativos a produção editorial dos dois países, não há dúvidas que, tanto em Portugal como na Inglaterra, ao longo do século XIX, a leitura foi-se tornando uma operação cada vez mais simples, quase natural, porque, como escreve Rosamaria Loretelli, Alla fine del secolo [XVIII], il processo di standardizzazione era stato completato e il libro appariva come un oggetto friendly, un amico che non creava problemi e con cui ci si poteva rilassare. Comunicava ora con il lettore in modo immediato e facile. (…) Leggere divenne una pratica quotidiana per molti abitanti delle città; divenne un’abitudine in cui si perdeva il senso della materialità grafica delle parole, percepite trasparenti come vetri. Leggere diventa un gesto naturale, compiuto in modo immediato e inconsapevole, come si aprono gli occhi la mattina o si deglutisce il cibo masticato. (Loretelli, 2010: 52 e 54) 1

Os dados de Lisboa e do Porto não alteram o atraso cultural dum país onde o grau de alfabetização nacional mantem-se baixíssimo. Na mesma altura em que o 82% dos franceses, o 88% dos alemães e mais do que o 90% dos ingleses eram alfabetizados, apenas o 17% dos portugueses sabia ler. Cf. Cipolla (2002) e Ribeiro (1999).

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Estas transformações criam as condições para a difusão da ‘paixão pela leitura’, uma revolução cultural que vai caracterizar o século XIX, tornando-o no ‘século dos leitores’ ou, como talvez seja mais correcto afirmar, no ‘século das leitoras’… A paixão pelos romances, de facto, muda tudo: altera a organização das casas (os espaços domésticos redefinem-se com quartos de menores dimensões que satisfazem a necessidade de intimidade que a leitura, agora silenciosa, requer; criam-se móveis adequados – bergères, duchesses e causeuses são cadeirões e pequenos sofás pensados para neles as leitoras se abandonarem completamente à sedução do livro); e até a moda responde a esta nova necessidade com a liseuse, uma capa desenhada para permitir à mulher ler na cama ou deitada numa duchesse. O livro continua sendo um objeto caro (cada vez menos, porém) mas, para um hábito de leitura que passa a ser extensivo, a pequena e média burguesia tem ao seu dispor bibliotecas e gabinetes de leitura.[2] Seja como for, estes novos hábitos de leitura preocupam médicos, filósofos, políticos e intelectuais europeus. Pela Europa fora levantam-se protestos contra a bibliofagia, contra o perigoso contágio da ‘febre da leitura’, e os médicos atribuem à fruição dos livros – dos livros ruins – todo tipo de doença. Johann Adam Berg considera, por exemplo, que os romances provocam “un gaspillage insensé, une crainte insurmontable de tout effort, une propension illimitée au luxe, un refoulement de la voix de la conscience, un dégoût de vivre et une morte précoce” (apud Bollmann, 2006: 25), enquanto o pedagogo Karl Bauer atribui aos romances toda uma série de consequências físicas: “la somnolence, l’engorgement, le ballonnement et l’occlusion des intestins qui agissent très réellement, comme on sait, sur la santé sexuelle de l’un et l’autre genre, et notamment de la gent féminine” (Ibidem). Danos colaterais contra os quais inutilmente se tentarão medidas de controlo, na esperança de limitar a ‘peste dos livros’, socialmente perigosíssima e fatal para os leitores incapazes de resistir ao texto, porque cultural ou temperamentalmente impreparados. Sob esta perspetiva, no século XIX, paralelamente à difusão da leitura assiste-se também a uma malograda tentativa de impor um controlo disciplinador sobre as leituras da mulher, da criança e das camadas sociais mais baixas. 2 “O índice de analfabetismo impedia, porém, a uma maioria da população portuguesa a frequência dos gabinetes de leitura. O preço do aluguer do livro, relativamente aos salários auferidos, impossibilitava, por seu lado, vastas franjas sociais de usufruir desta prática (…) O público leitor restringia-se, portanto, a uma pequena e média burguesia. Em Portugal, esse público (arredados os intelectuais, os políticos e homens de letras para outros centros de leitura e de sociabilidade) teria também uma forte componente feminina.” (Ribeiro, 1999: 195)

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Preocupa sobretudo a leitora, associada sempre a uma fruição compulsiva do romance. De resto, e como afirma Stéphane Michaud, se é verdade que “mai si è parlato tanto delle donne quanto nel XIX secolo” (Michaud, 1995: 130), não há dúvida que a mulher-leitora é uma das principais preocupações sociais oitocentistas; quase uma obsessão se olharmos para a pintura, já que, como escreve Mario Ursino, não por acaso “nell’Ottocento e nel Novecento (…) prolifera una notevole quantità di opere d’arte che raffigurano personaggi femminili intenti alla lettura” (Ursino, 2006: 21). Devoradoras de livros que, de uma maneira tipicamente feminina, leem em lugares que a tradição não associava à dedicação intelectual. Enquanto os homens estudam na biblioteca ou no gabinete privado, a mulher-leitora é representada na sala (fig. 1), no seu quarto ou ao ar livre (fig. 2), levando Tiziana Plebani a identificar uma opposizione tra una tradizione di letture per studio, che trovava riscontro nel piano della rappresentazione in immagini esclusivamente maschili e caratterizzate da corpi affaticati, bloccati, certo poco liberi, e un percorso del tutto alternativo ma spesso marginale, di letture per piacere, per diletto, espresse soprattutto in corpi femminili, talvolta rappresentati liberi oltre misura. (Plebani, 2001: 59)

1. Alfred Stevens, Young woman reading (1856)

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2. Almeida Júnior, Leitura (1892)

Afinal, não é somente o lugar a identificar uma via feminina ao livro, mas também a postura assumida no ato de leitura, que revela fruições do texto completamente diferentes. Enquanto o leitor é representando sentado a estudar, numa posição que traduz rigor, as leitoras surgem deitadas numa cama, num sofá (fig. 3), numa rede e até no chão (fig. 4), numa atitude lânguida e completamente entregues à leitura. Como reafirma Rosamaria Loretelli, a fruição do livro pelas mulheres apresenta-se como sendo mais uma experiência sensual do que intelectual: Mentre la lettura maschile era vista come un’azione che facilitava lo sviluppo intellettuale, quella delle donne tendeva ad essere ubicata nel corpo e rappresentata come un atto fisico, non intellettuale. Di conseguenza, si credeva che avesse un effetto diretto non soltanto sulla morale delle donne ma anche sul loro corpo; e le ragazze erano sollecitate a limitare le letture, perché nemiche ‘della salute e della bellezza’, passibili di ‘danneggiare la vista’ o ‘sciupare la figura’. Una lettura smodata poteva causare svenimenti e perfino pericolose alterazioni del ritmo cardiaco. (Loretelli, 2010: 58)

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3. Ramon Casas, Joven decadente (1899)

4. Winslow Homer, Girl reading under an oak tree (1879)

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Só o facto de ser uma leitura íntima, cujos efeitos passam pelo corpo e pelos sentidos, justifica de resto a existência de um subgénero que praticamente não tem equivalentes no masculino: os retratos nus com livro (fig. 5 e 6). De resto, como afirma Mario Praz comentando um destes quadros, “orge di letture giacenti (…) sono una specialità delle donne” (Praz, 2013: 14).

5. Edgar Degas, Nu de dos lisant (1880-1885)

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6. Antoine Wiertz, La liseuse de romans (1853)

Ora, é precisamente pela sua perigosa intensidade emotiva que a leitura das mulheres preocupa o século XIX. A fruição dos romances, assim como se julga que a pratiquem as mulheres, é transgressiva porque considerada um ato sexual, suspeito porque prazeroso. Por esta razão, só alguns livros, os bons livros, podem ser lidos pelas raparigas; lidos na maneira adequada, no lugar certo e nunca sozinhas. Porque os romances inadequados provocam catástrofes domésticas, gerando perigosos desejos de felicidade, cuja frustração as leitoras seriam incapazes de aceitar: il romanzo poteva eccitare le passioni ed esaltare l’immaginazione femminile. Poteva incoraggiare aspettative romantiche dall’apparenza irragionevole, insinuare suggestioni erotiche che insidiavano la castità e il buon ordine. Il romanzo del secolo XIX era così associato alle (presunte) qualità femminili di irrazionalità e vulnerabilità emotiva. (Lyons, 2009: 379)

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Deste ponto de vista, Eça concorda com a necessidade de educar as leitoras, vigiando as suas leituras e, ao longo da década de 1870, várias vezes confessa a sua preocupação com as mães de famílias lisboetas que só leem Ponson du Terrail, Dumas Filho “e a sua banda de analistas lascivos” (Queiroz / Ortigão, 2004: 426): Há muita gente ingénua que supõe – que uma grande consideração para a mulher – é o terror da catástrofe. Pueril ingenuidade. Nada tem um encanto tão profundamente atraente como a catástrofe. Ela satisfaz o desejo mais violento da alma – palpitar fortemente. O que se evita hoje, nesta excitação do mundo confuso, é o terra-a-terra, o trivial, a chinela, a tranquilidade, o palito nos dentes e a virtude plebeia. O que se pede é a comoção, a sensação, o sobressalto, a palpitação. (…) Toda a literatura, teatro, romance e verso, educam neste sentido: vibrar, apaixonar-se, sentir fortemente. (Idem, 428) eu não ataco a família – ataco a família lisboeta – a família lisboeta produto do namoro, reunião desagradável de egoísmos que se contradizem, e, mais tarde ou mais cedo, centro de bambochata. O Primo Basílio apresenta, sobretudo, um pequeno quadro doméstico, extremamente familiar a quem conhece bem a burguesia de Lisboa: a senhora sentimental, mal-educada, nem espiritual (porque, Cristianismo, já o não tem; sanção moral da justiça, não sabe o que isto é) arrasada de romance, lírica, sobre excitada no temperamento pela ociosidade e pelo mesmo fim do casamento espiritual, que é ordinariamente a luxúria, nervosa pela falta de exercício e disciplina moral, etc., etc. – enfim a burguesinha da Baixa. (Queirós, 2008: 183)

Basicamente, as crianças por causa da imaturidade, o povo por causa da sua ignorância e as mulheres por causa do seu temperamento, todos são considerados incapazes de lerem um romance. O problema, porém, é socialmente preocupante sobretudo no que diz respeito às mulheres porque, como se lê n’As Farpas, “a valia de uma geração depende da educação que recebeu das mães” (Queiroz / Ortigão, 2004: 413) e “a acção de uma geração é a expansão pública do temperamento das mães” (Ibidem). Por esta razão, o século XIX sente a urgência de disciplinar as leituras das mulheres. Uma necessidade que, na obra queirosiana, encontramos, sem dúvida, n’O Primo Basílio mas que Eça, já n’O Crime do Padre Amaro, tinha apresentado em formas menos explicitas mas não menos interessantes (cf. Lajolo, 1997: 440). Na província portuguesa esta ação disciplinadora era exercida pelos padres graças ao poder ilimitado que lhes atribuía a devoção fanática das beatas que, como escreve Eça em 1872, “não respeitam a divindade, respeitam os

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sacerdotes. Não prestam culto ao Deus, prestam culto ao padre” (Queiroz / Ortigão, 2004: 445). Por outro lado, como confirma a carta XV d’A Correspondência de Fradique Mendes, o clero que o povo português idolatra apresenta um perfil proseirão e vagamente imoral. Então, tendo em conta que estamos a analizar atos de leitura, n’O Crime do Padre Amaro, para diagnosticar a degeneração dos sacerdotes de Leiria, será suficiente ver que livros leem e como leem os padres neste romance. No segundo capítulo, por exemplo, o cónego Dias e Amaro recordam as histórias do tempo do seminário e o episódio do “mestre de cantochão, que deixara um dia cair do bolso as poesias obscenas de Bocage” (Queirós, 2012: 30) – curiosamente o mesmo livro que, n’O Primo Basílio, o Conselheiro Acácio esconderá na gavetinha da sua mesa-de-cabeceira… Do abade da Cortegaça sabemos que “lera todos os Cozinheiros Completos, sabia inúmeras receitas; era inventivo” (Idem, 105). Pelo contrário, quando se trata de ler textos sagrados – o breviário ou o evangelho – a leitura é realizada com bem menos entusiasmo: entre grandes bocejos e “maquinalmente” (Idem, 33), “monotonamente” (Idem, 40), engrolando depressa as santas leituras e resmungando o evangelho (Idem, 91 e 137). Até a Bíblia, em Leiria, serve só para justificar os inúmeros pecados dos padres, enquanto os seus conhecimentos teológicos apenas servem para afirmar a própria autoridade e exercer a sua tirania sobre o círculo feminino que os rodeia. O único padre que apresenta um perfil moralmente digno é o Abade Ferrão, o bom Ferrão, que, no corrupto meio eclesiástico de Leiria, é também o único padre que gosta de ler. Ferrão, apesar de tudo, é realmente um leitor e as suas leituras são um estigma de excecionalidade. Leia-se neste sentido o diálogo entre Amaro e Dona Josefa: – E a menina Amélia? – perguntou por fim. – Saiu… Isso agora todas as manhãs é a passeata – disse a velha com azedume. – Vai à residência, é toda do abade… – Ah! – fez Amaro com um sorriso lívido. – Nova devoção, ehm?... É pessoa de muitos méritos, o abade. – Ai, não presta, não presta! – exclamou D. Josefa. – Não me percebe. Tem ideias muito esquisitas. Não dá virtude… – Homem de livros… – disse Amaro. (Idem, 398-399)

“Homem de livros” para uma beata de Leiria significa padre que não presta, que não percebe e que tem ideias muito esquisitas. De resto, não é surpreendente que Dona Josefa Dias desconfie da palavra impressa já que, “numa delícia inquisitorial de exterminação devota” (Idem, 272), Eça a vai

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representar enquanto participa com entusiamo no auto da fé do exemplar do Panorama de João Eduardo… E Amaro? Como lê Amaro? Na primeira noite em Leira, folheia, entre grandes bocejos, o seu breviário, pronunciando maquinalmente as orações rituais distraído pelo “tic-tac das botinas de Amélia, e o ruído das saias engomadas que ela sacudia ao despir-se”. (Idem, 33). Uma situação que se repete no capítulo VI: Descia, ia folhear o seu Breviário; mas a voz de Amélia falava em cima, o tic-tac das suas botinas batia o soalho… Adeus! A devoção caía como uma vela a que falta o vento; as boas resoluções fugiam, e lá voltavam as tentações em bando a apoderar-se do seu cérebro, frementes, arrulhando, roçando-se umas pelas outras como um bando de pombas que recolhem ao pombal! (Idem, 94)

Na realidade, uma análise do romance confirma que Eça fornece inúmeros indícios para que os leitores do seu romance percebam que Amaro não lê, que Amaro não é um leitor e que este padre não tem nenhuma paixão pelos livros. Os exemplos do seu fastio pela palavra impressa são muitos: no seminário, tortura o dicionário, cabeceando de sono sobre o “Tito Lívio” (Idem, 39) e nunca pudera compreender os colegas que ruminavam textos da Imitação ou de Santo Inácio ou “iam lendo algum volumezinho de Louvores a Maria” (Idem, 40). O jovem seminarista não pertence sequer aos linfáticos que se desforravam “no amor dos pequenos vícios: jogar com um velho baralho, ler um romance, obter de intrigas demoradas um maço de cigarros” (Idem, 42-43) e também não gosta de estudar: “ele mesmo tinha às vezes ambições repentinas da ciência; mas diante dos vastos in-fólios vinha-lhe um tédio insuportável” (Idem, 43). O leitor repara que, passados uns anos, o que virá a ser o amante de Amélia nem sequer lê no tédio absoluto da aldeia de Feirão. Numa “paróquia pobre de pastores (…) naquela época quase desabitada” (Idem, 44), sem distrações e “com um clima horrível” (Idem, 40), nem sequer aqui, o jovem pároco aproveita o tempo para ler: “Amaro passou o tempo muito ocioso, ruminando o seu tédio à lareira, ouvindo fora o Inverno bramir na serra.” (Idem, 44). Finalmente, em Leiria, somos informados que, na solidão da Rua das Sousas, Amaro não lê e, quando no verão fica sozinho na cidade, a sua única leitura são os breves epitáfios nos jazigos do cemitério – um hábito relativamente comum na época romântica já que n’O Primo Basílio lê-se que também Joana e Pedro “toda a tarde tinham passeado no cemitério, muito juntos, admirando os jazigos, soletrando os epitáfios” (Queirós, s/d: 90). Sabemos que o padre possui

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livros; ao longo do romance vemo-lo folhear o Diário Popular e ler, enraivecido, o artigo de João Eduardo n’ A Voz do Distrito; o autor informa-nos ainda que Amaro chegou a assinar A Nação mas, apesar disto, dificilmente poder-se-á considerar esta personagem um leitor. Pelo contrário, Amaro detesta os livros e considera a leitura um sacrifício, uma verdadeira penitência: Procurava ler, mas os livros enfastiavam-no: desabituado da leitura não comprendia ‘o sentido’. (…) julgava que ter renunciado a Amélia era já uma penitência, não necessitava cansar-se a ler orações no livro: celebrara o ‘seu sacrifício’ – sentia-se vagamente quite com o Céu! (Queirós, 2012: 134)

Ora, toda esta insistência em mostrar Amaro como não-leitor serve ao autor d’ O Crime do Padre Amaro sobretudo para pôr em destaque o único livro que o padre lê com interesse e sofreguidão: os Cânticos a Jesus, “uma obrazinha beata escrita com um lirismo equívoco, quase torpe – que dá à oração a linguagem da luxúria (…) cem páginas inflamadas onde as palavras gozo, delícia, delírio, êxtase, voltam a cada momento, com uma persistência histérica” (Idem, 97). Um livro, traduzido do francês, que se parece muito com otra publicação francesa que já tinha indignado Eça e Ramalho, em setembro de 1872: Que lhe ensina a mesma religião? O amor. Duvidam? – aqui estão os trechos dum livro de orações aprovado pelo sr. arcebismo de Rouen – traduzido por toda a parte: «Acto de desejo. – Oh vem, meu bem amado, carne adorável, minhas delícias, meu amor, meu tudo, meu alento! Minha alma impaciente enlouquece por ti! Acto de amor. – Tenho pois enfim a felicidade de te possuir! Abrasa-me, queima-me, consome-me com o teu amor. Jesus é o meu, o bem amado é meu.» Que lhes parece? Aprovado por monsenhor de Rouen, o cardeal Bonnechose, príncipe da Igreja. É um catecismo francês, quase um catecismo universal. Trata-se do amor de Jesus – dirão: pois também seria excessivo que se tratasse de Artur! A Igreja não o faz expressamente – dirão ainda: quem o duvida? Nem um momento desconfiamos da austera intenção da Igreja. Mas é inocentemente e sem intenção, que as mães deixam as crianças ao pé do lume, e quantas vezes a casa arde! (Queiroz / Ortigão, 2004: 548)

Neste contexto, e tendo em conta tudo o que se disse acerca da função disciplinadora exercida pelo padres sobre as leituras das mulheres, o primeiro crime deste padre é sem dúvida sugerir a Amélia a leitura dos Cânticos a Jesus. Porque o padre deliberadamente deixa “o livrinho errado” no cesto da costura de Amélia, ciente dos efeitos que esses “períodos sonoros, túmidos de desejo” vão causar na jovem: “Ao outro dia, ao almoço, Amélia estava pálida,

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com as olheiras até ao meio da face. Queixou-se de insónia, de palpitações” (Queirós, 2012: 97). Na verdade, Amaro conhece muito bem o poder dos livros e, quando se tratará de proteger a sua relação com Amélia, não por acaso, proibirá à jovem amante de ler: Amaro de resto não lhe consentia interesses, curiosidades alheias à sua pessoa. Proibia-lhe até que lesse romances e poesias. Para que se havia de fazer doutora? Que lhe importava o que ia no mundo? (Idem, 316)

No âmbito duma estratégia de sedução, Os Cânticos a Jesus funcionam exatamente como as leituras malcomportadas de Basílio; o livro de orações serve para seduzir Amélia como A Mulher de Fogo de Adolphe Belot servirá a Basílio para seduzir a prima. E, de resto, o processo é igual: Eça informa-nos que Amélia “interessava-se pelo romance” (Idem, 96) do Diário Popular e, logo a seguir, mostra Amaro a falar à jovem provinciana de escândalos e fidalgos que conhecera em casa do Senhor Conde de Ribamar. Finalmente, o padre recomenda à jovem a leitura dum livro vagamente pornográfico e letal. Portanto, Amélia como Luísa, Amaro como Basílio, Lisboa em Leiria como Paris em Lisboa e os Cânticos a Jesus como A Mulher de Fogo. Se considerarmos o facto de que, para os seus amores ilícitos, Amaro inventa para Amélia a excusa de ensinar a ler à filha do sineiro (usando A vida dos Santos), percebemos claramente que a leitura n’O Crime do Padre Amaro é integralmente pervertida pelo padre que, mesmo não gostando de livros, conhece muito bem o poder e o prazer do texto. Poder e prazer que, por exemplo, já tinha levado a um caminho de perdição a tia de Amaro – uma burguesinha da baixa que anticipa a devoradora de livros Luísa e que, como a prima de Basílio, vai cair “sob o império das paixões” (Idem, 43). Em conclusão, ler é perigoso e Amaro sabe-o muito bem. Por isso, o crime deste padre começa ao aconselhar a uma jovem um livro pecaminoso. Felizmente, porém, para Eça a realidade é sempre muito mais complexa do que parece e os problemas sociais não se resolvem substituindo livros imorais com leituras pias e cheias de boas intenções. O autor, de resto, sabe muito bem que nenhum livro no mundo – nem sequer os seus – tem a força de esconjurar um adultério: se uma mulher tem um amante, poderá suceder que ela leia, pela manhã ao almoço, um artigo magnífico e pomposo com interjeições, lágrimas e flores: Sobre o adultério e as suas aflitas misérias. Sobre a fidelidade e os seus claros esplendores;

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GIORGIO DE MARCHIS

Mas nem por isso deixará, em vindo a noite, de ir pé ante pé, em todos os ardores do susto e do mimo amoroso, abrir a porta do jardim à impaciência de Artur. E isto porquê?... Porque a retórica não anula o temperamento. Porque um periódico bem escrito não abafa uma paixão bem movida; Porque os adjectivos não dirigem os nervos; E porque, oh senhores prosadores, a verdade é esta: entre um folhetim, que condena o adultério, impresso a tinta preta num papel amarelado e um amante vivo, sensível, forte e amado – nenhuma mulher deixára o amante que é a realidade para seguir o folhetim que é a linguagem. (Queiroz / Ortigão, 2004: 543-544)

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LER OU NÃO LER – EIS O CRIME DO PADRE AMARO

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ISSN 0872-1769

9 770872 176004

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