LETRAMENTO ACADÊMICO E ARGUMENTAÇÃO: INCURSÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS

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MAGNA CAMPOS

LETRAMENTO ACADÊMICO E ARGUMENTAÇÃO: INCURSÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS 1ª Edição

MARIANA, Edição do autor 2015

CAMPOS, Magna. Magna Campos. Letramento Acadêmico e argumentação: incursões teóricas e práticas. 1ª edição. Mariana: Edição do Autor, 2015. 142p. ISBN: 978-85-918919-4-8 Coletânea de textos sobre letramento acadêmico, retórica e argumentação. 1. Linguagem. 2. Linguística. 2. Letramento. 4. Argumentação. 5. Retórica. 6. Gêneros textuais 7. Ensino 8. Letramento acadêmico e argumentação.

Certamente, nos interessamos pela linguagem; no entanto, não por termos conseguido finalmente tomar posse dela, mas antes porque, mais do que nunca, ela nos escapa. Suas fronteiras se desmoronam e seu calmo universo entra em fusão; se estamos submersos nela não é tanto por seu rigor intemporal, mas pelo movimento atual de sua onda (Michel Foucault) Nenhuma palavra alcança o mundo, E ainda assim, escrevo. (Mia couto) Uso a palavra para compor meus silêncios. Não gosto das palavras fatigadas de informar. Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão... (Manoel de Barros)

Dedico esse livro às pessoas que se dedicaram a me ensinar a pensar, especialmente aos meus alunos, pelas instigantes provocações! Afinal, escrever é ir à frente, sentindo, o tempo todo, o que me preenche!

PREFÁCIO Conforme indica o próprio título da obra, ela se dedica ao debate teórico e prático das temáticas “letramento acadêmico” e “argumentação”. À primeira vista, um leitor menos atento poderia se perguntar: qual é a relação entre letramento acadêmico e argumentação? É exatamente esta resposta que o leitor encontrará ao finalizar a leitura desta extraordinária obra. Assim sendo, vale a pena ele questionar: o que perpassa os capítulos desta obra? Por que é importante lê-la? Para que serve sua leitura? Nos capítulos que se seguem, a autora Magna Campos, juntamente com os coautores, demonstra o quanto estes dois temas estão interrelacionados e quanto eles contribuem para formação acadêmica, tanto de pós-graduandos, quanto de estudantes de graduação, em especial, de alunos do curso de Direito, atingindo, também, ao profissional do Direito no desenvolvimento mais proficiente de seus textos jurídicos. O livro, em questão, apresenta quatro capítulos. No capítulo inicial intitulado “Ava e letramento: peculiaridades da escrita acadêmico-científica”, o leitor encontra uma discussão admirável sobre a concepção de letramento e de letramento acadêmico no que tange às peculiaridades da escrita acadêmico-científica, em especial, sobre a elaboração do conteúdo/gênero textual. O texto apresenta o resultado de uma pesquisa empírica realizada com a produção acadêmica de pósgraduandos do curso Gestão Escolar, mediado pelo Moodle, ambiente virtual de aprendizagem (AVA), da Escola de Gestores do CEAD/UFOP. Dentre as particularidades da escrita acadêmico-científica analisada, o texto dá ênfase às condições de produção textual quanto ao estilo; à informação textual; aos locutores no texto; à pessoa do discurso e ao tempo verbal; à análise crítica, à discussão, avaliação e apreciação textual; à fundamentação teórica e a relação entre autoria e plágio. Ao imergir neste capítulo, o leitor certamente reconhecerá suas próprias lacunas de formação e saberá como aprimorá-las em benefício próprio a partir das discussões ali encontradas. O segundo capítulo, “Letramento acadêmico: desenvolvimento da escrita do gênero textual resenha na FUPAC-MARIANA”, oferece ao leitor,

principalmente àquele que é iniciante ao gênero resenha, uma orientação importante de quais estratégias textuais ele precisa desenvolver para adquirir proficiência ao gênero textual em questão. Aprender a escrever gêneros comuns ao curso superior (resumo, resenha, artigos e ensaios) e adquirir domínio proficiente da linguagem comum nessa comunidade são condições necessárias de integração do iniciante à comunidade discursiva adentrada. Neste processo, torna-se importante evidenciar o quanto este capítulo pode contribuir para a formação do estudante no que se refere à capacitação do uso tanto da linguagem, quanto da estrutura retórica e comunicativa para consolidar sua integração à comunidade discursiva pretendida. O terceiro capítulo “o gênero textual narrativa jurídica: especificidades” aborda as características da narrativa jurídica, tanto no seu aspecto técnico quanto linguístico. Para isso, dá relevo à narração simples e valorada dos fatos utilizada pelo profissional do Direito para construir uma argumentação mais persuasiva ou convencedora na prática jurídica forense. Neste sentido, o capítulo chama atenção do leitor para o vínculo entre o estudo do gênero em questão e o letramento acadêmico. Por meio de suas ações de escrever/ler e falar/ouvir, os leitores são levados a perceber que são capazes de incorporarem em si mesmos formas estáveis de enunciados que os constituirão como parte integrante da comunidade discursiva em epígrafe. No quarto capítulo, “o sistema retórico (ethos, pathos e logos): contribuições para a argumentação jurídica”, é traçado um riquíssimo percurso teórico/histórico em torno das concepções de ethos, logos e pathos capaz de promover, até mesmo no leitor iniciante ao tema, uma visão ampla de como tais concepções se relacionam segundo às perspectivas teóricas adotadas desde a retórica clássica apresentada por Aristóteles até a contemporaneidade adotada por Reboul, Perelman, Maingueneau, Charaudeau e Amossy. Além de demonstrar tal percurso teórico, o texto apresenta tais noções associadas ao discurso jurídico, mais especificamente aplicado à decisão judicial, desenvolvendo uma significativa análise desse discurso. Por fim, retomam-se as questões inicialmente levantadas: Por que é importante ler esta obra? Porque ela estimula o leitor a aprimorar o seu

letramento acadêmico e a sua competência argumentativa como forma de benefício próprio para a sua inserção à comunidade discursiva, que, teoricamente, já o integra. Para que serve sua leitura? Para o capacitar às peculiaridades da escrita acadêmico-científica e às particularidades da argumentação, elementos tão importantes e presentes na constituição do discurso acadêmico. O que perpassa os capítulos desta obra? Eles se relacionam e se complementam na medida em que dão ao leitor uma visão significativa e pragmática do que constitui o letramento acadêmico e a argumentação: duas competências fundamentais aos estudantes do Ensino Superior, em especial aos do curso de Direito e profissionais da área. Por tudo isso, a leitura deste livro se torna imprescindível não somente para o público em evidência, como também para todos os acadêmicos ou profissionais que almejam sucesso na linguagem escrita, dentro da comunidade discursiva na qual ele adentrou, mas ainda não se consolidou. Boa leitura a todos! Maria Aparecida Silva Furtado Doutora em Linguística FALE/UFMG

Autora: Magna campos Coautores: Russell Zampier Cleberson Ferreira de Morais Alan de Matos Jorge

SUMÁRIO

AVA E LETRAMENTO: PECULIARIDADES DA ESCRITA ACADÊMICO-CIENTÍFICA

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Magna Campos Russell Zampier LETRAMENTO ACADÊMICO: DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA DO GÊNERO TEXTUAL RESENHA NA FUPACMARIANA

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Magna Campos O GÊNERO TEXTUAL NARRATIVA JURÍDICA: ESPECIFIDADES

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Magna Campos Cleberson Ferreira de Morais O SISTEMA RETÓRICO (ETHOS, PATHOS E LOGOS): CONTRIBUIÇÕES PARA A ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA Magna Campos Alan de Matos Jorge

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AVA1 E LETRAMENTO: PECULIARIDADES DA ESCRITA ACADÊMICOCIENTÍFICA Magna Campos2 Russell Zampier3 RESUMO: Este estudo se propõe a sistematizar algumas peculiaridades da escrita acadêmico-científica que figuram como emprego diferenciado da linguagem em comunidades discursivas associadas à graduação e à pós-graduação. São observadas, na prática educacional, várias problemáticas relativas ao não atendimento a algumas ou ao conjunto dessas peculiaridades, as quais demonstram relação direta com o processo de desenvolvimento do letramento acadêmico. Como na educação a distância é rotineira a elaboração de um volume maior de trabalhos avaliativos escritos, quer seja em fóruns, chats, wikis ou em documentos textuais diversos, o aprendizado proficiente dessas peculiaridades torna-se ainda mais urgente para o sucesso educacional dos estudantes. Neste sentido, o estudo aqui apresentado opta por se abordar o viés da elaboração do conteúdo/gênero textual e não apenas o de seus formatos, como é mais usual ser tratado nos manuais de normalização e de metodologia científica que, em geral, são usados para orientar a escrita neste meio. Auxiliar a sistematizar algumas questões inerentes à escrita dos gêneros pode contribuir, sem dúvida, para que os cursistas entendam e aprendam com maior proficiência a produção de textos da/na comunidade discursiva adentrada, minimizando o “tiro cego” a que muitos deles estão sujeitos ao começarem a redigir seus textos neste ambiente. Palavras-chave: Letramento acadêmico. Peculiaridades da Escrita. Gêneros Textuais. AVA. Escrita Acadêmico-científica. Ambiente Virtual de Aprendizagem. Mestre em Letras, professora universitária, escritora, membro da Academia de Letras Ciência e Artes do Brasil. Autora dos livros acadêmicos: Ensaios de Leitura Crítica; Leitura e Escrita: nunaces discursivo-culturais; Manual de Redação Científica, Manual de Gêneros Acadêmicos, Manual de Elaboração de Monografia e TCC e dos livros literários: Cutrica e Futrica e a Festa no Pé de Pitanga e Beto Muleta Não, Beto Joia. Membro da equipe pedagógico-administrativa da Escola de Gestores UFOP. 3 Membro da equipe pedagógico-administrativa da Escola de Gestores UFOP. 1 2

Letramento acadêmico e argumentação: incursões teóricas e práticas

INTRODUÇÃO Analisar questões referentes ao letramento acadêmico e, mais especificamente, ao desenvolvimento da redação científica é pensar também as práticas sociais que envolvem a produção de gêneros textuais típicos do meio acadêmico ou pertencente a uma comunidade discursiva a que se esteja vinculado. Todavia, o letramento acadêmico constrói-se sobre um contexto de letramento anterior, referente às concepções e práticas de leitura e de escrita que os cursistas trazem consigo de suas experiências pregressas construídas nos contextos sociais, e, aí se insere a escola, e, mais especificamente, no caso da pós-graduação, a instituição onde fez a graduação. Portanto, já encontra um cursista letrado em outra(s) comunidade(s) discursiva(s), entendida aqui no sentido bakhtiniano, como sendo esfera(s) da atividade humana. Antes de prosseguir-se, no entanto, é preciso deixar explícita a concepção de letramento e de letramento acadêmico a que este texto está vinculado. Toma-se como referência inicial, a proposta de Terzi (2006) que, baseada nos estudos realizados por Street (1984) sobre o letramento ideológico, ou seja, o letramento como prática cultural discursiva, propõe que o letramento se relaciona a não apenas ensinar a tecnologia da escrita, ou seja, promover a alfabetização, mas, simultaneamente, oferecer-lhes a oportunidade de entender as situações sociais de interação que têm o texto escrito como parte constitutiva e as significações que essa interação tem para a comunidade local e que pode ter para outras comunidades. Em suma, significa ensinar o aluno a usar a escrita em situações do cotidiano como cidadão crítico (TERZI, 2006, p. 5).

Tomar a concepção de letramento exposta acima significa considerar que as práticas de letramento estão intrinsecamente relacionadas ao contexto, tanto imediato quanto mais amplo, pois estão imersas em uma ideologia, não sendo, portanto, neutras. 13

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É importante correlacionar a esta concepção de letramento, a concepção de linguagem adequada a este cenário, assim, parte-se do pressuposto de que a linguagem é uma prática social e que, além disso, propicia interação entre as pessoas, sendo o meio pelo qual os interlocutores “constituem-se como sujeitos ativos de um processo em que os participantes realizam trocas verbais [e não verbais], constroem sentidos e influenciam-se mutuamente”, conforme explica Miller (2003) citado por Campos (2012, p. 54). Consequentemente, nessas interações, os sujeitos estão o tempo todo produzindo ações – informando, persuadindo, silenciando, ensinando, emocionando, manipulando, expressando, representando etc. consciente ou inconscientemente. Mais requer também que seja exposta a concepção de leitura e de escrita com a qual se está pensando o tema deste capítulo. Sendo assim, toma-se a leitura como uma prática social de produção de sentidos, envolta na relação entre discurso e texto/ texto e discurso, que apresenta níveis de entendimento que vão dos mais superficiais (decodificação) aos mais profundos (compreensão e interpretação), na qual a interação entre o leitor virtual e o leitor real é de suma importância para tal produção de sentidos, e, por isso, as condições de produção da leitura devem ser consideradas, conforme deixam entrever Orlandi (1988) e Campos (2012). Não obstante, neste mesmo alinhamento teórico, entende-se a escrita como um processo de materialização dos textos, os quais apresentam formas, estilos, objetivos e sequências textuais específicos, conforme gênero e tipo textuais, atendendo a determinadas funções sociais, sendo a escrita, portanto, instanciada em condições de produção, tal qual se pode dizer da leitura. (GERALDI, 1995; KOCH, ELIAS 2008; CAMPOS, 2012) Nesta perspectiva, o letramento acadêmico figura como uma das modalidades de letramento voltado para o aprendizado proficiente de situações de escrita e de leitura, pertencentes à esfera da universidade, voltados para a redação científica. Escrita esta que apresenta condições de produção e peculiaridades diferentes de outras modalidades de letramento. Igualmente, Fischer (2008) citado por Cunha (2012, p. 139) dispõe que o letramento acadêmico é a “fluência em formas particulares de pensar, ser, fazer, ler e escrever, muitas das quais são peculiares a um contexto

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social”, ou comunidade discursiva. O que quer dizer que essa modalidade se refere ao processo de desenvolvimento de habilidade e de conhecimentos específicos para a produção proficiente de leitura e de escrita dos gêneros textuais usuais à esfera acadêmica. Isso se dá porque a universidade é formada por diversas práticas sociais, nas quais o discurso das ciências é constituinte e nas quais, também, dão-se as relações entre professor e aluno; aluno e aluno; aluno e tutores; professor, tutor e aluno; coordenador, supervisor, professor, tutor e aluno – como é o caso da interação mediada pelo o Moodle, ambiente virtual de aprendizagem (AVA), usado na Escola de Gestores. Almeida (2003 citado por ROSTAS; ROSTAS, 2009) explica que ambientes virtuais de aprendizagem são sistemas computacionais disponíveis na internet que permitem integrar diferentes mídias, linguagens e recursos, apresentar informações, desenvolver interações, produzir e socializar produções, independente do tempo e do espaço de cada participante. Na educação a distância, o ambiente virtual de aprendizagem representa a sala de aula on-line, formando um conjunto de interfaces e de ferramentas para a construção da interatividade e da aprendizagem. É, portanto, nesta ferramenta pedagógica, que o professor elabora e disponibiliza a disciplina para os cursistas. Além disso, um ambiente virtual de aprendizagem como o Moodle possibilita ainda formas de comunicação/interação tanto assíncronas (em tempos distintos) quanto síncrona (em tempo real). Ainda que se esteja tratando de cursistas da pós-graduação lato sensu, como é o caso dos matriculados no curso de Gestão Escolar, da Escola de Gestores CEAD/UFOP, observa-se que muitos deles não apresentam domínio suficiente, ou seja, desenvoltura na produção proficiente dos gêneros acadêmicos comuns, ainda que alguns sejam gêneros típicos de serem solicitados desde a graduação – como é o caso das resenhas críticas e fichamentos. Em outros casos, há, de fato, gêneros textuais novos que os cursistas vieram a ter o primeiro contato de elaboração, no curso, como é o caso da elaboração de artigos e ensaios acadêmicos, embora a leitura destes gêneros já fosse prática comum em suas vidas estudantis. 15

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E é justamente neste foco – o do letramento acadêmico, porém recortado no que tange às peculiaridades da escrita acadêmico-científica – que se vai trabalhar aqui com um pouco mais de aprofundamento. Todavia, em outra oportunidade urge tratar também da questão da leitura neste ambiente virtual de aprendizagem, especialmente ligada às experiências observáveis na Escola de Gestores CEAD/UFOP. Assim, neste trabalho, opta-se por se abordar o viés da elaboração do conteúdo dos textos e não apenas o de suas formas, como é mais usual aos manuais de escrita – entendam-se, manuais de normalização – voltados para esse nicho educacional.

2. PECULIARIDADES DA ESCRITA ACADÊMICO-CIENTÍFICA A escrita acadêmico-científica, quer seja no ambiente virtual de aprendizagem quer seja no ambiente tradicional, resguarda algumas características e peculiaridades comuns que devem ser apreendidas pela prática da produção textual dos gêneros acadêmicos e de seu constante processo de aperfeiçoamento, a fim de se desenvolver proficiência nesta modalidade de escrita e, assim, um nível considerado adequado de letramento nesta comunidade discursiva. Neste texto, será feita a exposição de algumas destas peculiaridades, arrolando-se, sempre que possível, alguns exemplos, a fim de se materializar a exposição/ discussão apresentada. Certamente, um capítulo de um livro, com extensão limitada a três dezenas de páginas, não é capaz de dar conta de todos os gêneros acadêmico-científicos produzidos pelos cursistas, em um ambiente virtual de aprendizagem, por isso, optou-se por dedicar-se maiores atenções aos gêneros ensaio acadêmico, resenha crítica4 e artigo acadêmico. Tal escolha se justifica por serem estes três gêneros aqueles em que os cursistas apresentaram maior dificuldade de

Há alguns autores que consideram o termo resenha crítica como sendo redundante, todavia, utiliza-se aqui essa nomenclatura para diferenciá-la de outras tipologias de resenhas: resenhas indicativas, resenhas temáticas, por exemplo. 4

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elaboração e de desenvoltura, ainda que solicitados nas disciplinas do curso mais de uma vez. Tais peculiaridades são propostas com base nos ensinamentos de alguns estudiosos da temática e, fortemente, ancoradas na experiência profissional da autora do capítulo como professora de disciplinas relacionadas ao ensino da escrita acadêmica e da metodologia de pesquisa em cursos de graduação e pós-graduação, tanto em ambientes virtuais quanto em ambientes presenciais. Some-se a isso, a importante percepção dos problemas relacionados à qualidade ou dificuldade de escrita dos trabalhos acadêmico-científicos solicitados nas disciplinas do curso de Gestão Escolar, na função de Supervisora Pedagógica desse curso, na Escola de Gestores do CEAD/UFOP. Serão tratados elementos relacionados às condições de produção do texto acadêmico-científico; ao estilo; ao desenvolvimento das informações; à introdução de locutores no texto; à pessoa do discurso e ao tempo verbal; à análise crítica, discussão, avaliação e apreciação de um texto; aos problemas encontrados na fundamentação teórica e a relação entre autoria e plágio. 2.1 Condições de produção Ao se escrever um texto no universo acadêmico, é preciso, primeiramente, ter-se em vista quem é a audiência para quem se está escrevendo. Essa premissa é válida tanto para cursistas da educação a distância quanto da educação presencial. Essa audiência formará aquilo que a teoria discursiva nomeará de leitor-virtual (ORLANDI, 1988), ou seja, aquela imagem projetada pelo autor do texto, no momento mesmo da escrita, sobre quem será o seu leitor, e que determina a escolha do tom da linguagem mais apropriado para se alcançar o objetivo e as expectativas da escrita. É essa projeção que também possibilita ao autor do texto acadêmico saber com quais conhecimentos prévios do leitor ele pode, em tese, contar; quais outras conhecimentos ou relações são necessários explicitar e quais podem ser deixados para serem inferidas, subentendidas, pressupostas ou acarretadas na leitura. 17

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Definir, como ensina Motta-Roth e Hendges (2010), a forma como se vai relacionar com essa audiência (se um especialista escrevendo para iniciantes, se um cursista escrevendo para um professor de disciplina, se um especialista escrevendo para outros especialistas) faz parte das condições de produção de um texto. Todavia, há que se considerar que na educação a distância, mediada pelo ambiente virtual de aprendizagem, essas condições de produção são ressignificadas por esse ambiente, apresentando diferenças em relação ao ambiente presencial. Na educação a distância, a figura do professor é diluída em outras posições mediadoras do conhecimento, como é o caso dos tutores5, isso cria para o cursista um cenário de audiência diferenciado, pois, muitas vezes, as explicações dadas pela equipe de mediação também serão incorporadas às explicações “construídas” na “sala de aula virtual” ou no interespaço que envolve a educação a distância. Esse interespaço se refere, no pensamento aqui proposto, ao uso de outras ferramentas que não apenas o AVA-Moodle, mas também as trocas estabelecidas do professor ou dos tutores com os cursistas, por exemplo, via e-mails, skype, hangout, ou, ainda, os atendimentos presenciais via polo. Assim, se um cursista vai escrever um trabalho para uma disciplina, precisa, por exemplo, considerar o professor para quem está escrevendo, a temática da disciplina, a relação interdisciplinar dos conteúdos trabalhados na disciplina ou entre disciplinas, os conhecimentos prévios que apresenta/ apresentava sobre tais conteúdos. Para assim, aproveitar, seguindo-se a linha exemplar mencionada, em um trabalho que envolva análise, discussão, apreciação ou posicionamento6 – como é o caso de resenhas, ensaios e artigos acadêmicos –, as explicações dos conteúdos, “construídas” na “sala virtual da disciplina” pelo/com o professor ou pelas demais interações com os tutores, colegas de turma, “sala-polo presencial”, outras leituras, estabelecendo conexões entre esses e a crítica que se irá escrever.

No caso do curso de Gestão Escolar, assistente de turma (tutor presencial) e professor de turma (tutor a distância). 6 Todos esses termos poderiam ser agrupados como sinônimo de “crítica fundamentada”. 5

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Ainda, é primordial articular o texto com a literatura disponível, impressa ou virtualmente, e, sempre que possível, expandir essa articulação para a relação com a realidade sociocultural, política, ideológica e histórica vivida ou passada, para contraponto e expansão. Desta forma, o cursista sairá da mesmice da apreciação rasa, da opinião pela opinião ou do senso comum e adentrará a discussão crítica de fato e da opinião fundamentada em parâmetros científicos ou especulativos plausíveis, sistemáticos, sustentáveis por argumentação coerente, tão necessários ao cursista universitário, uma vez que estão diretamente associadas ao pensamento crítico. Mas não se pode perder de vista que é preciso, por mais óbvio que possa parecer, saber, de início, o que escrever. Para isso, é preciso ter lido/ estudado o tema sobre o qual se irá produzir o texto, tomado notas a este respeito – uma falha que vem se repetindo, pois muitos cursistas não têm o cuidado de sistematizarem notas de leituras realizadas e começam a escrever sem uma anotação mínima, por exemplo –, outras vezes, começam a escrever antes de terem recolhido minimamente que sejam os dados de uma pesquisa de campo básica. Esses preceitos são necessários, caso contrário, o cursista pode se deparar com duas situações: primeiramente, a síndrome da folha/tela em branco, posteriormente, em não saber o que escrever e daí escrever sem nenhum aprofundamento, recaindo, como já dito, na mesmice do senso comum, em dizer aquilo que qualquer um leigo diria, não fazendo jus a alguém que esteja se especializando em uma área, que necessita fundamentar criteriosamente a sua “fala” como se intenciona de um trabalho acadêmico-científico deste sujeito. Há ainda que se considerar, nestas condições de produção do texto acadêmico, quando, onde e com que propósito se escreve. Esses fatores podem interferir na forma de elaboração do texto, pois escrever um texto em um período inicial de um curso, por exemplo, não é o mesmo que escrever um texto no período final deste mesmo curso, haja vista que, em tese, espera-se maior poder de interpretação, de fundamentação e de articulação/discussão com a área de conhecimento e até mesmo com outras 19

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daquele cursista concluinte que daquele iniciante. O mesmo é válido para a primeira vez que se elaboram quaisquer uns dos três gêneros aqui focados, pois, espera-se que, após a avaliação da equipe de mediação e devido feedback ao cursista sobre o que está adequado e o que precisa ser melhorado, que ele aproveite tais orientações para melhorar a segunda versão do texto ou em um novo texto pertencente ao gênero, quando lhe for solicitado. Além disso, escrever em uma ferramenta de construção colaborativa de textos tal qual uma wiki do Moodle, é muito diferente de produzir um texto em um fórum ou em documento editável como no word. Até mesmo a forma de elaboração, se em equipe ou individual pode ser profundamente ressignificada dependendo da ferramenta tecnológica que se estiver usando como suporte para a produção. Na Escola de Gestores, ainda não se conseguiu um bom resultado com a wiki; os fóruns, quando devidamente roteirizada a forma de participação e o estilo de escrita e os trabalhos em word, em geral dão melhores resultados no referente à qualidade dos textos. Considere-se, também, que escrever um trabalho – resenha crítica, ensaio ou artigo acadêmicos – para um único leitor/avaliador, o professor de disciplina ou o tutor responsável pela avaliação, é diferente de se saber que o texto será lido por todos os colegas da mesma sala virtual, quando postado em um fórum; ou de se saber que o texto produzido será para uma apresentação no polo, para equipe de mediação e colegas de turma; para apresentação na “universidade-sede”, em um auditório amplo, como ocorre nos encontros de formação propostos pelo curso em pauta; ou, ainda, se será veiculado em uma revista científica de circulação não restrita e que se terá um amplo público ou um público especializado a lê-la. A forma como é traçada a relação com a escrita nestes diferentes cenários, atualiza, ou deveria atualizar, o “pacto” do autor com o texto que se está produzindo. Não obstante, para a escrita do texto acadêmico-científico é exigida uma preparação, ou seja, saber o como escrever. Assim, o primeiro ponto refere-se a assegurar-se que se conhece a forma de compor o gênero, ou seja, a estrutura composicional do gênero, sua funcionalidade e estilo. A fim de esclarecer o que se toma neste texto como gênero textual, designa-se, tal qual alinhamento conceitual proposto por Koch e Elias (2008),

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que os gêneros são formas-padrão relativamente estáveis de estruturação da produção textual oral ou escrita, referindo-se assim aos textos materializados em situações comunicativas de nosso cotidiano. São exemplos de gêneros acadêmico-científicos: resenhas, ensaios, artigos, monografias, paper, memorial descritivo, palestra, conferência, comunicação, resumo, pôster acadêmico, relatório de pesquisa, relatório de experimento, fichamento etc. Ademais, há que se atentar para a sequência textual ou sequências textuais que será/serão utilizadas em cada uma destas partes. Falar de sequências textuais é o mesmo que se referir a quais são as características da linguagem (aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas) a serem empregadas em cada momento do texto: se narrativa/relato, se descritiva, se expositiva, se injuntiva ou se argumentativa, seguindo a classificação proposta por Marcuschi (2008). Muito sucintamente, pode-se apontar que a sequência narrativa/relato organiza-se em função do tempo, constituindo ações que se desenvolvem em função de uma sequência temporal. A sequência descritiva organiza-se em função do espaço, da localização, das características, dos traços. A argumentativa organiza-se em função do ponto de vista, dos argumentos estratégias formando sequências posicionais ligadas a convencer ou a persuadir. A expositiva está volta para a exposição das informações, das conceituações e explicações e a sequência injuntiva organiza-se em função das ações do dizer o que é para ser feito, do passo a passo, do comando, formando sequências imperativas. Neste quesito, o de como escrever, os cursistas da Escola de Gestores do CEAD/UFOP têm acesso a textos didático-expositivos produzidos para ensinar-lhes a como elaborarem os gêneros que lhes são solicitados nas disciplinas do curso, dispostos em um ambiente virtual denominado Sala de Interação com os Cursistas. Desta forma, as orientações sobre os gêneros e as sequências perpassam todas as disciplinas não se “confinando” a nenhuma delas. Enfim, configuram as condições de produção de um texto os elementos associados ao que, para quem, como, quando, onde, porque escrever, tais como brevemente expostas nesta seção.

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2.2. Estilo De acordo com Motta-Roth e Hendges (2010, p. 20), o estilo assumido deve ser equacionado “com o ‘tom’ com que você aborda seu tópico e com a audiência que você tem em mente quando começa a escrever”. Especificamente, as resenhas e os ensaios apresentam um tom polido e cortês nas críticas e apreciações realizadas. Tal cuidado é extensivo à seção de discussão ou análise comum aos artigos acadêmicos. Há, costumeiramente, o emprego de um tom mais formal na escrita de textos acadêmicos, como nos exemplos abaixo, nos quais os textos negritados e grifados são preferíveis ao par dispostos a seu lado: Ex. 1: Ele/O autor escreve sua visão/elabora sua análise da condição em que se encontram os imigrantes refugiados definindo-a como de um movimento para lugar nenhum, ou “de via única” já que perderam sua pátria de origem e não foram integrados a nenhuma outra. Ex. 2: Ele/ Bauman (2007) conferirá/coloca maior ênfase ao contexto histórico em que as bases sociais que outrora legitimaram o Estado-nação, sobretudo na forma do estado de bem-estar social, foram solapadas com a globalização. Ex. 3: Os dados falam/indicam que a maioria dos/ 80% dos cursistas acham/julgam que a intolerância social aumentou no país.

Essa desenvoltura para identificar qual termo ou expressão fica melhor no texto é algo que se desenvolve paulatinamente mediante a prática da escrita de textos acadêmicos, da prática de leitura observadora e do domínio da norma culta padronizada da Língua Portuguesa. Ademais, a sensibilidade à percepção ao estilo de linguagem usado nos textos de

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autores da área também é capaz de ir guiando o cursista no emprego do vocabulário mais adequado, entretanto, não se perca de vista que a escrita se aprende escrevendo e reescrevendo.

2.3. Desenvolvimento das informações

O texto deve ter uma progressão lógica e suas partes precisam estar devidamente conectadas umas as outras, ou seja, coesas. Além das conexões entre as partes do texto, é preciso que o todo forme uma unidade coerente, sem “quebras” não intencionais ou contradições de sentido. O uso eficiente dos conectores textuais e de operadores argumentativos são essenciais para promover a mediação, a progressão e a articulação entre um enunciado e outro, entre um parágrafo e o próximo, entre uma ideia e outra. Dessa forma, expressões como: portanto, assim, desta forma, este/esta, esse/essa, entretanto, porque, enquanto, ainda, e, sobretudo, porém, mas, no entanto, por isso, pois, embora, ou seja, isto é, tal qual, em virtude de, conforme mencionado, acima, seguinte, possivelmente, provavelmente, certamente e outras7 irão contribuir para ir “amarrando” adequadamente as ideias propostas no texto, retomando algo já escrito ou se relacionando a algo que ainda será mencionado, sem criar rupturas na articulação da(s) sequência(s) textuais. São utilizados, portanto, para estabelecerem a articulação entre informações já dadas e informações novas. Observem-se alguns exemplos:

Ex. 1: O número de cursistas que buscam os programas de doutorado tem crescido gradualmente nos últimos anos,

Uma lista desses marcadores e das relações de sentido que podem estabelecer entre enunciados, encontra-se no ANEXO A. 7

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enquanto o número de bolsas disponíveis manteve-se constante. Essa situação resulta da atual política do governo federal. Ex. 2: A violência tem interferido, inegavelmente, por meio de suas múltiplas e heterogêneas formas de manifestação, na vida cotidiana dos homens. No entanto, muitos processos altamente violentos não são considerados como tais, embora o sejam de fato”, tal qual propõe Silva (2007). Ex. 3: Com esse ideário, os temas acima citados são bastante difundidos pelo Estado para amenizar o aguçamento da questão social, em virtude da desresponsabilização do Estado com as suas obrigações sociais. Ex. 4: A partir da Constituição de 1988 e da Loas, a assistência tornou-se uma política de responsabilidade do Estado, direito do cidadão e, portanto, uma política estratégica no combate à pobreza e para a constituição da cidadania das classes subalternas, conforme expõe Oliveira (2007). Ex. 5: Desse modo, as práticas predominantes, ou seja, as “regras do jogo” determinam o comportamento dos indivíduos, que, por sua vez, interagem e produzem resultados políticos ou sociais. Ex. 6: Contudo, Nicholas Carr concluiu que, no passado, o contato humano, que vinha em primeiro lugar, hoje cedeu a preferência para a interação virtual, cada vez em maior quantidade e velocidade...

Letramento acadêmico e argumentação: incursões teóricas e práticas

O devido encadeamento dos enunciados e dos parágrafos resultará, caso as ideias não sejam em si inconsistentes ou contraditórias, em um texto coerente internamente.

2.4. A introdução de outros locutores no texto além do autor O texto acadêmico relaciona-se com outros textos da área e com os autores que fornecem os argumentos teóricos ou práticos para o tema ou análise, não só por uma questão de estilo, mas também por uma questão de necessidade de conferir respaldo científico e comprovação a ele. Sendo assim, é preciso introduzi-los no discurso, cuidando para evidenciar o que pertence ao autor do texto acadêmico e o que foi tomado de “empréstimo” de outros autores, ou seja, cuidar para mostrar com clareza que porção do texto da resenha, do ensaio ou do artigo é especificamente do autor que os elaborou ou os está elaborando e o que ele toma de empréstimo, direta ou indiretamente, de outros autores. Esse cuidado é essencial para não se incorrer em situações de plágio. Aliás, tópico que se tratará mais adiante, neste capítulo. Não basta, como é recorrente em muitos trabalhos recebidos, relacionar apenas ao final do texto a referência bibliográfica utilizada, sem mostrar em que momento do texto ela entrou, onde e como. Quais palavras ou ideias são de quem se escreve e quais são do autor citado. Outra ocorrência, muito em voga, é colocar-se apenas o site de onde se retirou8 a informação sem mencionar-se o autor e o título do texto, como se isso fosse suficiente para esclarecer-se a “fonte” utilizada. O professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Tomaz Tadeu da Silva argumenta que, de uma maneira ou de outra, escrever é citar. É uma afirmação que, com mais razão, se pode fazer a respeito do trabalho acadêmico, na medida em que se trata de um texto Apenas no caso da entrada da citação pelo nome da entidade ou do periódico, eliminada a possibilidade de ocorrência de “autoria física” é aceitável. 8

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em que a comprovação textual deve ser rigorosamente observada. Mesmo que espalhadas pelo trabalho como um todo [...], as referências aos textos alheios são uma parte integral e importante de qualquer texto acadêmico. (SILVA, 2006, p.1) grifo nosso Portanto, faz-se importante conhecer não apenas as regras de citação, mas também duas formas. Para tanto, recorre-se novamente a Silva (2006, p. 1) que, ao tratar da distinção entre os diversos tipos de citação, assim as relaciona e explica: Citação textual: É a citação em que se transcrevem, em maior ou menor extensão, as palavras textuais de um autor. Elas podem se resumir a uma única frase ou estender-se a um parágrafo inteiro. A citação textual é assinalada, se curta, por meio de aspas e no interior do parágrafo ou, se longa, por um parágrafo recuado relativamente aos parágrafos normais. Paráfrase: As palavras citadas são ‘traduzidas’ na linguagem de quem cita. É preciso ter em mente, neste caso, que ao parafrasear está-se implicitamente reivindicando uma espécie de autoria (apenas para a paráfrase, evidentemente) e é por isso muito importante que as palavras e a sintaxe utilizadas sejam realmente próprias. Não se pode apresentar como paráfrase aquilo que seria, real e legitimamente, uma citação textual. Haveria aí certa fraude. Em outro item, darei um exemplo de uma paráfrase legítima e de uma falsa paráfrase. Síntese: Trata-se também de uma paráfrase, mas de uma passagem mais longa, talvez de um capítulo ou até mesmo de um livro inteiro e, portanto, muito menos colada, em comparação com a paráfrase de apenas uma ou duas frases, ao texto original.

Dessa forma, serão utilizadas expressões introdutoras das vozes alheias toda vez que se mostrar necessário introduzir um novo locutor no texto. Mas é necessário também, além das expressões introdutoras, ter-se muito cuidado na utilização do verbo ao fazer-se a citação. Este cuidado é para não se atribuir palavras e/ou intenções ao autor citado que não são condizentes ao teor do texto original, ou seja, para não se colocarem palavras na boca do autor citado. Compare os dois casos abaixo para observar a diferença de sentido atribuída à fala do autor, pois na

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segunda citação há muito mais fidedignidade ao proposto no texto fonte que na primeira: Ex. 1: Texto original: COSTA, Sérgio; PEREIRA, Ana Paula. O teclar e o escrever. Revista Estudos em Avaliação Educacional, n. 29, p. 87-110, jan./jul. 2004. A Internet ainda suscita outros problemas de linguagem. Escrever em letras maiúsculas é mais ou menos o mesmo que gritar. Existem também outros problemas como as chamadas caracteretas. São quase que como uma linguagem simbólica representada por desenhos que em certos aspectos se assemelha aos hieróglifos egípcios. Uma face risonha composta por acentos e símbolos significa, por exemplo, felicidade. Citações realizadas: 1. Costa e Pereira (2004) afirmam que usar letras maiúsculas em textos de internet é sinônimo de gritar. 2. Costa e Pereira (2004) sugerem que usar maiúsculas em textos de internet pode “soar” como gritar.

Os verbos de citação, conforme propõe Motta-Roth e Hendges (2010), podem assumir quatro situações: com o nome do autor na posição de sujeito gramatical, com o nome do autor como agente da voz passiva, com um termo que designa classe, com termos referentes ao processo e que substituem o agente. Vejam-se os exemplos de cada caso: Ex. 1: Voz ativa: com o nome do autor na posição de sujeito gramatical Bauman (2007) se refere a um enorme contingente humano de imigrantes refugiados, oriundo, sobretudo, de contextos bélicos e de dissidências étnicas e políticas que acabam sendo expulsos e indo parar em outros países, mas ficando confinados em campos de refugiados que lhe servem de abrigo. 27

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Ex. 2: Silva (2006, p. 1) ensina que “utilizar de forma eficaz e apropriada as referências textuais, é importante, antes de mais nada, saber distinguir entre as diversas formas de utilização das palavras alheias”. Ex. 3: Voz passiva: com o nome do autor como agente da voz passiva Segundo Bauman (2007), as construções de muralhas e fossos separando as antigas cidades de seu entorno sinalizavam a proteção que seus habitantes sentiam contra o que lhe era externo, representação do perigo. Ex. 4: Conforme Bauman9, além de ficarem sozinhas, e, portanto, livres para se dedicarem totalmente a seus passatempos, e terem os serviços indispensáveis a seu conforto diário assegurados, elas não têm outros interesses investidos na cidade em que se localizam suas residências. Ex. 5: Para Silva (2006), se a sua exposição tiver um foco ou um tema central, você irá invocar as palavras alheias apenas para dar apoio às suas ideias a respeito desse tema, ou para contrastar com o que você pensa sobre o tema, ou ainda para comparar o que diferentes autores dizem, concordando ou divergindo, sobre o tema em questão. Ex. 6: com um termo que designa classe A autora inicia o texto mostrando que a leitura está muito além da simples capacidade de uma pessoa decodificar uma língua, sendo este talvez o processo mais básico. Ex. 7: É comum à resenha, uma vez que se trata de uma leitura apreciativa/crítica de um texto, referir-se ao autor sem colocação do ano da publicação, uma vez que este dado já se encontra na referência obrigatória que abre a resenha. No entanto, o número da página, caso seja uma citação literal/direta, torna-se necessário. Assim, é corriqueiro aparecer: Para Silva (p.2),... 9

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Para o estudioso, as pessoas da “camada superior” não pertencem ao lugar que habitam, pois suas preocupações estão em outro lugar. Ex. 8: O doutrinador ensina que... Ex. 9: com termos referentes ao processo e que substituem o agente Resultados de pesquisas recentes mostram que a intolerância social tem crescido em todos os setores... Ex. 10: Estudos sobre as mudanças no comportamento das organizações ressaltam a importância de valorizar o capital intelectual...

Há ainda, tal qual explica Motta-Roth e Hendges (2010), o critério da integralidade das citações, algo importante de se conhecer e de se considerar, pois evidenciam o que se está dando maior enfoque se o citado ou se o conteúdo, como será exposto no quadro a seguir: Quadro 01: Citações integrais e não integrais Características

Citações integrais Nome do autor citado é parte gramatical do enunciado

Função

Foco autor: dão proeminência ao autor citado

Exemplos

Ex. 1 Para Silva (2006, p. 3), não permita nenhuma ambiguidade que possa fazer com que o leitor não possa distinguir não apenas quais ideias

Citações não integrais Nome do autor citado está entre parênteses ou sinalizado por índice numérico Foco no conteúdo: tendem a chamar atenção para o trabalho citado, dando proeminência ao conteúdo. Não permita nenhuma ambiguidade que possa fazer com que o leitor não possa distinguir não apenas quais 29

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são suas e quais ideias são do autor citado, mas também quais palavras são suas e quais palavras são do autor citado.

ideias são suas e quais ideias são do autor citado, mas também quais palavras são suas e quais palavras são do autor citado (SILVA, 2006, p.3).

Ex. 2: Ao tratar do cuidado com as citações, Silva (2006, p.3) orienta que se preste atenção especial às passagens entre a sua voz e a voz alheia. Se você está parafraseando um autor, marque precisamente onde termina a paráfrase e onde começa sua própria opinião. Sabemos, como leitores de Bakhtin, que todo discurso é uma polifonia de vozes, mas é preciso deixar claro a quem pertence cada voz. Cada uma das vozes deve ser rigorosamente marcada. ‘Aqui é este autor que está falando’, ‘agora sou eu mesmo que estou falando’, ‘aqui termina o que ele estava dizendo e começa o que eu mesmo quero dizer’.

No cuidado com as citações, é necessário que se preste atenção especial às passagens entre a sua voz e a voz alheia. Se você está parafraseando um autor, marque precisamente onde termina a paráfrase e onde começa sua própria opinião. Sabemos, como leitores de Bakhtin, que todo discurso é uma polifonia de vozes, mas é preciso deixar claro a quem pertence cada voz. Cada uma das vozes deve ser rigorosamente marcada. ‘Aqui é este autor que está falando’, ‘agora sou eu mesmo que estou falando’, ‘aqui termina o que ele estava dizendo e começa o que eu mesmo quero dizer’. (SILVA, 2006, p.3)

Fonte: Elaborado pela autora com base nos ensinamentos de Motta-Roth e Hendges (2010).

Com isso, expõe-se, não somente a forma que os locutores alheios/ autores citados podem ser introduzidos no texto, mas também as razões para serem citados, bem como questões que estão aí impregnadas de significação, no intuito de auxiliar no estabelecimento diálogo mais profícuos e bem mediados com tais locutores/autores. Outra orientação referente às citações de vozes alheias refere-se às normas de citações acadêmico-científicas regidas, em sua maioria, pela NBR10520/200210. Para maiores informações sobre essas normas de citações, verifique a própria NBR10520/2002 ou em: CAMPOS, Magna. Citações científicas. In: ______. Manual de gêneros acadêmicos: Resenha, Fichamento, Memorial, Resumo Científico, Relatório, Projeto de Pesquisa, Artigo científico/paper, Normas da ABNT. Mariana: Edição do autor, 2015. 89 p. ISBN: 978-85-918919-1-7. 10

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2.5. A pessoa do discurso e o tempo verbal É comum, nas resenhas, nos artigos e nos ensaios acadêmicos, elaborados individualmente ou em grupos de cursistas, empregar-se o verbo na 1ª pessoa do plural (nós), como nos exemplos: percebemos, observamos, analisamos. No entanto, caso se faça a opção pelo emprego da 1ª pessoa do plural, o cursista, indiferentemente de estar fazendo o trabalho sozinho ou em grupo, deverá fazê-lo no plural, usando, portanto: observamos e, não, observei. Essa questão, embora seja tratada desde a graduação, costuma ainda ser problemática na pós-graduação, com cursistas que misturam em um mesmo texto várias pessoas do discurso referindo-se a si mesmos. Pode-se também utilizar estratégias de impessoalização do discurso. Esse recurso tem, a julgar pelas orientações dos manuais normativos, a intencionalidade de atribuir um grau maior de objetividade ao texto acadêmico-científico, por isso seriam mais indicadas. Com isso, pode-se optar por construir enunciados do tipo: pode-se afirmar que a redação científica é... ou simplesmente a redação científica é... os dados foram coletados... observe o exemplo abaixo...Todavia, estudos da área da Linguística Aplicada11 evidenciam que textos da áreas das ciências humanas e das ciência da educação tendem a empregar, pelo menos nos artigos analisados em pesquisa, mais costumeiramente a 1ª pessoa do discurso (nós) que a impessoalização. Contudo, note-se que, especialmente no caso do ensaio acadêmico, é comum, dado seu caráter mais subjetivo e experimental, usar a 1ª pessoa do singular (eu). Assim, emprega-se: relaciono tal acontecimento à falta de normas... entendo que a falta de uma conceituação mais precisa...

ALMEIDA, Janaína; MIRANDA, Maíra. O uso de pronomes de primeira pessoa em artigos acadêmicos: uma abordagem baseada em corpus. Juiz de Fora, Revista Veredas on-line. Vol. 2, p. 68-83, 2009. 11

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O tempo verbal preponderante na resenha, no artigo e no ensaio é o presente do indicativo, concordando com o sujeito a que ele se referir, como mostrado nos exemplos abaixo: Ex. 1: Na primeira parte do texto, Silva demonstra que... Ex. 2: O autor prevê algumas mudanças no comportamento dos consumidores... Ex. 3: Nicholas Carr é mestre em línguas pela Universidade de Harvard... Ex. 4: Quando falamos de internet, automaticamente, já nos vem em mente a página do Google.

Todavia, nos textos acadêmico-científicos, é normal ser empregado o tempo pretérito (passado) para se relatar/ descrever algo já ocorrido. É o que ocorre nos casos citados adiante: Ex. 1: A Google passou a ser uma das maiores companhias de mídia. Ex. 2: Contudo, Nicholas Carr concluiu que, no passado, o contato humano, que vinha em primeiro lugar, hoje cedeu a preferência para a interação virtual, cada vez em maior quantidade e velocidade...

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O tempo futuro, por sua vez, pode aparecer quando se discorrer sobre o que será analisado ou discutido no trabalho. Como em:

Ex. 1: Nos próximos tópicos do capítulo serão tratadas algumas peculiaridades relativas à escrita acadêmico-científica, neste âmbito do letramento acadêmico. Por razões de espaço, não serão tratadas aspectos peculiares da leitura na esfera das universidades, optando-se por um recorte às questões da escrita.

Ressalte-se ainda que na redação proficiente dos textos acadêmicocientíficos é possível observarem-se a consistência dos tempos verbais de acordo com a sequência textual empregada em cada parte do gênero e de seu objetivo, além da manutenção da pessoa do discurso ao longo de toda a escrita. 2.6. A análise crítica, discussão, avaliação e apreciação de um texto Em seções do texto cujo teor seja relacionado às mencionadas neste subtópico, há que se cuidar para não se proceder à mera apreciação opinativa do tipo: gostei (gostamos) do estilo com que o autor escreve... para nós, o texto é muito confuso... o autor é inteligente... concordo com o autor (mas não se evidencia os pontos em que concorda ou porque)... discordo do autor...(tal qual o exemplo anterior, não se fundamenta o porquê de se discordar)... a intervenção rendeu bons frutos (não se explica quais e porque são considerados bons) e tantos outras situações meramente opinativas. Tanto a crítica quanto a apreciação de um texto ou tema devem ser fundamentadas em algo que esteja para além do senso comum, isto é, deve fugir ao “achismo” comum opinativo, como já exposto aqui. Assim, devem encontrar apoio em fundamentos bem estruturados que constituam um sistema explicativo que extrapolem a mesmice e a mera opinião. 33

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Como base geral, pode-se entender que a crítica é estabelecida, por exemplo, com base em conexões das questões a serem analisadas com as questões estudadas na(s) disciplina(s) do curso; em conexões das questões com outras da realidade social vivida ou passada; na comparação com outras perspectivas; com outras abordagens; em contribuições de determinadas discussões ou temas para a área ou para o debate na área; com base na contraposição com casos concretos, verificando-se se teoria e prática se encontram ou divergem; na relação da teoria com os dados obtidos etc. Por isso, é viável na parte da análise crítica, o emprego de, dentre outros, composições enunciativas do tipo: o autor contribui para X... o autor apresenta argumentos relevantes para... descreve... atualiza a discussão... apresenta um enfoque inovador... provoca a reflexão sobre... resume didaticamente o problemas de... esclarece sobre... E outros nesta linha. Vejase alguns exemplos abaixo:

Ex. 1: Trecho da análise crítica de uma resenha de um livro: JOHNSON, Steve. Emergência: a dinâmica de rede em formigas, cérebros, cidades e softwares. São Paulo: Zahar, 2003. Uma breve olhada na bibliografia do livro já é suficiente para despertar a curiosidade do leitor. Provavelmente, graças a isso, a leitura é agradável e simples, mesmo quando o objetivo é entender questões específicas do mundo da programação.

Ex. 2: Trecho da análise crítica de uma resenha sobre o texto: CARR, Nicholas. A igreja do Google. In: ______. A geração superficial: o que a internet está fazendo com os nossos cérebros. Rio de Janeiro: Agir, 2011. p. 205-241. Concordamos com o autor, pois também julgamos que o discurso altruísta da acessibilidade da informação, isto é, de levar toda a informação para qualquer pessoa em qualquer região, independentemente se é rica ou pobre, é um tanto duvidoso e algo que merecer ser devidamente policiado pelas autoridades e pela população que utiliza essas ferramentas e

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que, ao mesmo tempo, é usada por elas, como bem argumenta o autor.

Ex. 3: Trecho da análise crítica de uma resenha do livro: BAUMAN, Zygmunt. Tempos Líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, 119p. Em Tempos Líquidos, todos os capítulos contribuem progressivamente para que entendamos a tese defendida por Bauman de que as transformações que vêm ocorrendo na era contemporânea estão promovendo mudanças e consequências em nível planetário. Em um mundo globalizado, a sociedade não é mais protegida pelo Estado, ou pelo menos é pouco provável que confie na proteção oferecida por este, fenômeno que provoca cada vez mais a sensação de insegurança. E é sob o fio condutor do tema, insegurança, que Bauman une todos os capítulos, escritos numa linguagem acessível e sem muitos rodeios teóricos. As provocações de Bauman, no livro aqui resenhado, no que tange a sensação de insegurança, podem ser consideradas pertinentes se pensarmos, por exemplo, no acirramento da segmentação social que pode ser observada pelo aumento vertiginoso dos condomínios fechados, como os existentes na Barra da Tijuca – RJ, Região dos Lagos – RJ, São Paulo – SP, Alphaville – BH (MG) e em outras grandes cidades brasileiras que sofrem pelo aumento dos índices de violência contra a vida e ao patrimônio. Pois, como afirma Bauman, qualquer um que tenha condições adquire uma residência num “condomínio”, planejado para ser uma habitação isolada, fisicamente dentro da cidade, mas social e espiritualmente fora dela. O traço mais proeminente do condomínio é seu “isolamento e distância da cidade […] isolamento que significa a separação daqueles considerados socialmente inferiores. As cercas têm dois lados […] Elas dividem em “dentro” e “fora” um espaço que seria uniforme” (p. 79). Ainda, poderíamos verificar que essa sensação global de insegurança não está relacionada apenas à questão criminal, mas também a questão da insegurança em termos de saúde, fato que pode ser observado no caso dos surtos de gripes pandêmicas que provocam “pânico” mundial. 35

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Esses pequenos exemplos, mostra-nos a pertinência teórica das proposições de Bauman e o seu valor explicativo não só para as ciências sociais, mas para as ciências contemporâneas de uma forma geral, pois nos incita à reflexão sobre o mundo em que vivemos de uma forma mais crítica e menos casual, possibilitando-nos um melhor entendimento das formas como se dão as relações sociais.

Ex. 4: Trecho da análise crítica de uma resenha do livro: ALVES-MAZZOTTI, Alda J.; GEWANDSZNAJDER, Fernando. O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. 2.ed. São Paulo: Pioneira, 1999. 203p Com estilo claro o objetivo, os autores dão esclarecimentos sobre o método científico nas ciências naturais e sociais, exemplificando, impulsionando reflexão crítica e discussão teórica sobre fundamentos filosóficos. Os exemplos citados amplamente nos auxiliam na compreensão da atividade científica e nos possibilitam analisar e confrontar várias posições, a fim de chegarmos à nossa própria fundamentação teórica, decidindo-nos por uma linha de pesquisa. Mostramnos a imensa possibilidade de trabalhos que existe no campo da ciência, além de nos encaminhar para exposições mais detalhadas a respeito de determinados tópicos abordados, relacionando autores e bibliografia específicos. Não se trata de um simples manual, com passos a serem seguidos, mas de um livro que apresenta os fundamentos necessários à compreensão da natureza do método científico, nas ciências naturais e sociais, bem como diretrizes operacionais que contribuem para o desenvolvimento da atitude crítica necessária ao progresso do conhecimento. A obra fornece subsídios à nossa pesquisa científica, à medida que trata dos principais autores/protagonistas da discussão/construção do método científico na história mais recente, reportando-se a esclarecimentos mais distantes sempre que necessário. Com sólidos conhecimentos acerca do desenrolar histórico, os autores empenham-se em uma argumentação que visa apresentar clara e detalhadamente as circunstâncias e características da pesquisa científica, levando-nos a compreender as ideias básicas das várias linhas filosóficas contemporâneas, bem como a descobrir uma nova maneira de ver a ciência e o conhecimento

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científico. A abordagem realizada pelos autores exige conhecimentos prévios para ser acompanhada, como por exemplo, saber diferenciar-se “conhecimento” de “informação”, ter clareza sobre os diversos “tipos de conhecimento”, reconhecendo o valor de cada um deles, além de diversas releituras e pesquisas quanto a conceitos, autores e contextos apresentados, uma vez que as conclusões emergem a partir de esclarecimentos e posições a respeito da não neutralidade e da tendência à verdade do conhecimento científico.

Ex. 5: Trecho da discussão/ posicionamento no ensaio acadêmico: MORAES, Rodrigo. O plágio na pesquisa acadêmica: a proliferação da desonestidade intelectual. Revista Diálogos Possíveis, Faculdade Social da Bahia, n. 06, p. 91-109, 2014. Existe uma célebre frase atribuída ao dramaturgo americano Wilson Mizner (1876-1933): ‘Quando se rouba de um autor, chama-se plágio. Quando se rouba de muitos, chama-se pesquisa’. É óbvio que não concordamos com a segunda frase de Mizner. Toda pesquisa séria contém citações. E o ato de citar corretamente não se confunde com roubo. A Internet, sem dúvida, potencializa a incidência do plágio. Contudo, é preciso advertir: a proliferação da desonestidade intelectual nas universidades brasileiras não é culpa da Internet, poderosíssima máquina facilitadora da cópia. Culpála é interpretar estreitamente o problema. O responsável por essa grave crise ética é, obviamente, o próprio ser humano. Não pode a rede mundial de computadores ser tachada como vilã, até porque ela configura importante instrumento de pesquisa acadêmica e tende a ser cada vez mais valorizada na Sociedade da Informação em que vivemos.

Ex. 6: Trecho da análise do artigo: BOTELHO, Flávia. Linguagem acadêmica escrita: um estudo da apropriação das habilidades textuais por alunos do CEFET-MT. Disponível em: http://www.ie.ufmt.br/semiedu2009/gts/gt16/ComunicacaoOral /FLAVIA%20GIRARDO%20BOTELHO.pdf. Acesso em: 17 mar. 2015. 37

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O processo de apropriação da linguagem acadêmica pelos alunos do curso de Tecnologia em Automação Industrial precisa ainda percorrer um longo caminho. Apropriar-se de uma habilidade textual, como a objetividade da linguagem acadêmica, requer do aluno um processo de transferência de um nível textual mais abstrato, como o das narrativas escolares, para um nível mais concreto, como o das experiências científicas. Escrever academicamente é revelar resultados obtidos em pesquisa, estudo, visitas técnicas, experiências que ainda são novidades para os alunos do curso tecnólogo. [...] Dessa forma, os resultados desse estudo revelaram que, ao mesmo tempo em que a escola básica conseguiu ampliar a competência comunicativa dos alunos em níveis orais e escritos, não os preparou para a linguagem acadêmica, pois pautou suas experiências escritas em um universo mais desapegado da realidade científica. Ainda, que esta competência comunicativa mesmo que ampliada, não possibilita que os alunos escrevam textos acadêmicos com a mesma facilidade com que escrevem narrativas, cartas e crônicas escolares. Assim, a linguagem acadêmica, também função da escola, tem seu desenvolvimento restrito aos bancos universitários, nos quais os alunos se dividem em áreas do conhecimento, pesquisa acadêmica e o universo do trabalho, limitando em muito o conhecimento e apropriação das habilidades textuais acadêmicas.

Com as observações, orientações e exemplos aqui arrolados tornase possível conseguir-se maior sucesso na qualidade da análise nos textos produzidos pelos estudantes. 2.7. Os problemas encontrados na fundamentação teórica Em estudo pormenorizado sobre os tipos de escrita e estilos da fundamentação teórica (revisão de literatura) a serem evitados pelos acadêmicos, tanto na escrita de ensaios, quanto artigos e, ainda mais, nos

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trabalhos de conclusão de curso, Alves (1992) adaptado por Ganga (2012, p. 136-137) faz um levantamento e uma nomeação dos tipos problemáticos que podem ocorrer nos trabalhos. Tal nomeação e explicação muito têm a orientar a todos nós quanto à escrita acadêmica. Tais situações e explicações estão listados no quadro 2, abaixo: Quadro 02: Estilos problemáticos de fundamentação teórica Estilo

Summa

Arqueológico

Patchwork

Suspense

Rococó Caderno B

Descrição Pesquisadores inexperientes frequentemente sucumbem ao fascínio representado pela ideia (ilusória) de ‘esgotar o assunto’. De origem medieval, a summa considera necessário apresentar um resumo de toda a produção científica sobre o tema e suas ramificações e relações com campos correlatos. Imbuído da mesma preocupação exaustiva que caracteriza o tipo anterior, distingue-se deste pela ênfase na visão diacrônica, indo ao início dos tempos abordar um assunto. Apresenta uma colagem de conceitos, pesquisas e afirmações de diversos autores, sem um fio condutor capaz de guiar a caminhada do leitor por meio daquele labirinto. Nesses trabalhos, não se consegue vislumbrar um mínimo de planejamento ou sistematização do material revisado: os estudos e pesquisas são meramente ‘jogados’ sem qualquer elaboração comparativa ou crítica, o que frequentemente indica que o próprio autor se encontra tão perdido quanto seu leitor. Ao contrário do anterior, existe um roteiro, entretanto, alguns pontos permanecem obscuros até o final, sendo difícil saber aonde é que o autor quer chegar. Em alguns casos o ‘mistério’ se esclarece nas páginas finais. Noutros, porém, o autor não consegue convencer. Há ainda aqueles em que tudo leva a crer que o estudo caminha numa direção e, de repente, se descobre que o foco é outro. Trabalhos com conceituações teóricas rebuscadas que tentam atribuir alguma elegância a dados irrelevantes. Texto que procura tratar os assuntos mais complexos, de modo ligeiro, sem aprofundamentos cansativos. Há a predileção por fontes secundárias, de preferência handbooks, 39

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onde o material já se encontra mais digerido. Estudo que para atender à interdisciplinar dos dados apela Coquetel teórico para todos os autores disponíveis. Após apresentar a revisão da literatura, organizada em um ou mais capítulos à parte, aparentemente cansado pelo esforço, o autor recusa-se a voltar ao assunto. Nenhuma das Anexo inútil conceituações ou relações teóricas é utilizada na interpretação dos dados ou em qualquer outra parte do estudo. Aqui parte-se do princípio de que o estilo dos trabalhos acadêmicos deve ser necessariamente pobre, mortificante, Monástico conduzindo o leitor ao cultivo das virtudes da disciplina e da tolerância. Os estudos desse são longuíssimos. É aquele em que o autor sempre procura citar um autor que está na moda, no Brasil ou no exterior. Esse tipo de revisão Cronista Social bibliográfica é o principal responsável pelo surgimento dos ‘autores curinga’, que se tornam referência obrigatória, seja qual for o tema estudado. O colonizado é aquele que se baseia exclusivamente em autores estrangeiros, ignorando a produção nacional sobre o Colonizado ou tema. O xenofóbico, ao contrário, não admite citar literatura xenofóbico estrangeira, mesmo quando a produção nacional sobre o tema é insuficiente. Refere-se aos casos em que o autor ‘garante’ as suas fontes, por meio de expressões ‘sabe-se’ ou ‘tem sido observado’, Sem citações ‘muitos autores’, ‘vários estudos’, impedindo o leitor de avaliar a consistência das afirmações apresentadas, além de negar o crédito a quem merece. O autor só escreve com palavra de outros autores, quer citando-os literalmente, quer parafraseando suas ideias. Em ambos os casos, a revisão torna-se uma sucessão monótona de afirmações, sem comparações entre elas, sem análises críticas, tomadas de posição ou resumos conclusivos. O Ventríloquo estilo é facilmente reconhecível: os parágrafos se sucedem alternando expressões como ‘Para Fulano (2009)’, ‘Segundo Beltrano (2010)’, como ‘Ciclano (2008) afirma’, ‘Pafúncio (2009) observa’, ‘Sicrano (2010) pontua’, até esgotar o estoque de verbos. Fonte: Gangas (2012, p. 136-137).

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É possível observar, pela detalhada listagem exposta no quadro acima, que há muitas falhas possíveis de ocorrência na parte da fundamentação teórica dos textos acadêmicos. Saber quais são, figura como uma das grandes oportunidades de superá-las ou de evitá-las, rumo à proficiência na escrita nos gêneros textuais da área. 2.8 A relação entre autoria e plágio Hoje, devido ao grande volume de informações disponíveis ao acesso e pesquisa, especialmente na era da internet, mais que em qualquer outra época, os cursistas são “assediados” a apresentarem como sendo sua a produção intelectual de outra pessoa. Assim, por ser ainda mais fácil copiar e colar informações há um clicar, concorda-se que se trata de uma problemática que tende a expandir-se, sobretudo em razão do advento da internet, pois a facilidade de acesso e manipulação da informação e a noção de que no campo virtual as regras e os princípios são diferentes, vêm intensificando a reprodução inescrupulosa das palavras e ideias de outros autores como se fossem próprias (BEASLEY, 2004 apud MCCORD, 2008; VAZ, 2006; PERISSÉ, 2006 citado por KROKOSCZ, 2011, p.746). grifo nosso

Some-se a isso, não raro, ao pouco trabalho pedagógico educativo realizado nos cursos – do básico à pós-graduação – com vistas a ensinarem a como elaborar os gêneros acadêmicos primando pelo desenvolvimento da capacidade autoral, para além de normas de formatação, citação e referenciação; tal falta repercute na reprodução das palavras e ideias de outros autores sem se darem o devido crédito aos autores, ou, em casos ainda piores, em situações de se colocar nome em trabalho não realizado pelo cursista. Esse “assédio” está presente no ambiente acadêmico como um todo, tanto virtual quanto presencial. Só para se ter uma dimensão desta 41

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problemática, atente-se para os dados levantados por Garcia (2006) citado por Krokoscz (2011, p. 745), quando estima com base em pesquisa realizada sobre a temático do plágio que “no Brasil 82,7% dos professores alegam já se ter deparado com trabalhos acadêmicos que não foram feitos pelos alunos”. Desta forma, o trabalho sobre gêneros acadêmicos em disciplinas específicas ou em ambientes apropriados e a atenção devida, nas demais, e por parte de toda a instituição, desde a graduação – para não se dizer, desde o Ensino Básico –, podem ajudar os cursistas a desenvolverem textos mais autorais, bem como, a proficiência na escrita de textos, pois é corriqueira a dificuldade em se produzir o próprio texto, em se desenvolver por escrito um raciocínio articulado e consistente, em estabelecer uma argumentação capaz de situar o leitor e de expandir-se devidamente fundamentada, fugindo-se à cópia. Essa prática, no âmbito acadêmico, é um sério problema que interfere na qualidade produção textual, compromete a credibilidade do processo de autoria e a produção de conhecimentos e de reflexões mais aprofundadas. Embora em algumas situações, o plágio possa acontecer de modo deliberado (quando há intenção do redator em cometer uma fraude intelectual), supõe-se que em muitos casos o plágio aconteça de forma acidental, ou seja, ocorre na redação acadêmico-científica simplesmente por desconhecimento das diretrizes de escrita acadêmica por parte do redator. Diretrizes tais como a correta indicação (citação) e identificação (referência) das fontes utilizadas em trabalhos, as quais consistem em regras básicas e eficazes que evitam a ocorrência do plágio. Com isso, está-se considerando que há a coexistência no ambiente acadêmico, presencial ou virtual, de dois tipos de plágio: um intencional e outro acidental. É de se supor que cursistas em nível de espacialização já não desconhecem situações em que se configura ocorrência de plágio e situações que não configuram. Entretanto, a realidade deixa explícito o desconhecimento de muitos cursistas dessas situações e precisam ser devidamente esclarecidos, às vezes, até mesmo em oficinas presenciais a este respeito.

Letramento acadêmico e argumentação: incursões teóricas e práticas

Os trabalhos acadêmicos devem ser apresentados de acordo com as convenções de escrita científica adotadas pela comunidade discursiva da qual faz parte. Há que se prestar atenção não somente às normas de citação e de referenciação, ou ao preenchimento de “modelos” padronizados e de espaços lacunares (PÉCORA, 1999), mas, ainda mais atentamente, às peculiaridades da escrita acadêmico-científica, como as que aqui se está expondo. Isso quer dizer que forma e conteúdo são indissociáveis e precisam ser trabalhados correlacionando-os. Uma das prováveis raízes para a insurgência de plágios intencionais por parte dos cursistas está no fato de muitas escolas de Ensino Fundamental e de Ensino Médio e, até mesmo, em alguns cursos superiores, de estimularem a transcrição literal sem o retrabalho de escrevê-las com as próprias palavras, sintetizando-as, expandindo-as, mas, sobretudo, mostrando de onde saíram e a quem pertencem. Outro fator importante está na falta de acompanhamento da produção textual do cursista, com a devida análise e “feedback” sobre a qualidade de sua escrita, o que, pode ocorrer, devido ao grande volume de trabalhos a serem avaliados, resultando assim na falta de tempo para se acompanhar mais de perto essa produção. Ou, simplesmente, na conduta de alguns responsáveis pela a avaliação dos textos, de só “correrem o olho” no texto, “dando” uma nota sem seguir-se nenhum critério mais apurado. Sendo assim, ressalta-se a importância tanto de cursistas quanto de professores, coordenadores, supervisores, mediadores (tutores) terem clareza sobre as cinco modalidades de plágio a fim de trabalharem preventivamente. São elas, de acordo com a proposta de Krokoscz (2012): a) Plágio direto (word by word): cópia literal. b) Plágio indireto (paraphrase): interpretação de um texto e aproveitamento da ideia original sem indicação da fonte. c) Plágio de fontes: quando um trabalho é feito com a reprodução de citações e de referências de outros trabalhos. d) Plágio consentido (conluio): apresentação de trabalhos feitos por colegas ou comprados. 43

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e) Autoplágio: quando o estudante entrega o mesmo trabalho para disciplinas diferentes, sem informar que o conteúdo já foi apresentado anteriormente. Ainda, no que tange à questão do problema do plágio, o não saber fazer adequadamente a paráfrase de um trecho que se deseja citar pode resultar em ocorrência deste tipo de problema. Veja-se nos três exemplos dispostos no quadro 03, referente ao bom e ao mau uso da citação no estilo paráfrase, descrito e exemplificado por Silva (2006, p.4-5): Quadro 03: Bom e mau uso da citação no estilo paráfrase Referente

A passagem original de Michel Foucault, em História da sexualidade, p. 17 (textualmente):

1)

Uma citação textual disfarçada de paráfrase (inaceitável):

Texto ou citação É necessário deixar bem claro: não pretendo afirmar que o sexo não tenha sido proibido, bloqueado, mascarado ou desconhecido desde a época clássica; nem mesmo afirmo que a partir daí ele o tenha sido menos do que antes. Não digo que a interdição do sexo é uma ilusão; e sim que a ilusão está em fazer dessa interdição o elemento fundamental e constituinte a partir do qual se poderia escrever a história do que foi dito do sexo a partir da Idade Moderna. Todos esses elementos negativos – proibições, recusas, censuras, negações – que a hipótese repressiva agrupa num grande mecanismo central destinado a dizer não, sem dúvida, são somente peças que têm uma função local e tática numa colocação discursiva, numa técnica de poder, numa vontade de saber que estão longe de se reduzirem a isso.

Foucault não argumenta que o sexo tenha sido proibido e bloqueado desde a época clássica ou que tenha sido menos depois

Letramento acadêmico e argumentação: incursões teóricas e práticas

disso. Ele tampouco diz que a proibição do sexo seja uma ilusão. A ilusão, para ele, está em fazer dessa proibição o elemento central e constituinte a partir do qual se poderia escrever a história do sexo na Idade Moderna. Para Foucault, todos os traços negativos, tais como proibições, recusas e negações, que para a hipótese repressiva constituiriam um grande mecanismo central da negação, não passam de peças que têm uma função local e tática num aparato discursivo, numa técnica de poder, numa vontade de saber que não se reduzem a isso.

2)

Uma paráfrase legítima (aceitável, pois há realmente a reelaboração do proposto com as palavras do autor do artigo)

Foucault (1979) não pretende negar que depois da Época Clássica houve uma forte repressão do sexo. A questão, para ele, não está em negar a realidade dessa repressão. O que ele questiona é que se possa compreender a história do sexo na Idade Moderna tendo essa repressão como elemento central. Para Foucault, não é a negação do sexo que é o mais importante, mas sim as formas pelas quais o sexo foi colocado em um discurso que é parte integrante de um processo mais amplo, constituído, além disso, por técnicas de poder e por uma vontade de saber.

Fonte: Retirados de SILVA, Tomaz Tadeu da. Argumentação, Estilo, Composição: introdução à escrita acadêmica. Porto Alegre: UFRGS/PPGE-Programa de Pós-Graduação em Educação, 2006, p.4-5 citado por CAMPOS (2015b, p. 40).

Certamente, há muitas outras questões a serem abordadas sobre as ocorrências de plágio, no entanto, deixa-se aqui apenas uma reflexão inicial a 45

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fim de problematizá-la, sem, no entanto, esmiuçá-la conforme a questão mereceria. CONSIDERAÇÕES FINAIS: Tratar sobre letramento acadêmico, especificamente, das peculiaridades da escrita de gêneros acadêmico-científicos é uma necessidade cada vez mais urgente nos cursos tanto de graduação quanto de pós-graduação. Auxiliar a sistematizar algumas questões inerentes à escrita dos gêneros pode contribuir, sem dúvida, para que os cursistas entendam e aprendam com maior proficiência a produção de textos da/na comunidade discursiva adentrada, minimizando o “tiro cego” a que muitos deles estão sujeitos ao começarem a redigir seus textos neste ambiente. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: CAMPOS, Magna. Manual de gêneros acadêmicos: ensaio acadêmico, relatório de experimento e artigo científico. Mariana: Edição do autor, 2015a. ISBN: 978-85-918919-1-7. CAMPOS, Magna. Manual de redação científica: resenha, fichamento, memorial, resumo científico, relatório, projeto de pesquisa, artigo científico/paper, normas da ABNT. Mariana: Edição do autor, 2015b. ISBN: 978-85-918919-2-4. CAMPOS, Magna. Leitura e escrita: nuances discursivo-culturais. Mariana: Aldrava Letras e Artes, 2012. CUNHA, Jaeder Fernandes. Letramento acadêmico: reflexão e algumas considerações sobre cursos de negócios em faculdades privadas populares. Revista Signum: Estudos de Linguagem, Londrina, n. 15/2, p. 129-151, dez. 2012. GANGAS, Gilberto Miller Devós. Trabalho de conclusão de curso (TCC) na Engenharia de Produção. São Paulo: Atlas, 2012.

Letramento acadêmico e argumentação: incursões teóricas e práticas

GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1995. KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS Vanda Maria. Ler e Compreender os sentidos do texto. 2.ed.São Paulo: Contexto, 2008. KROKOSCZ, Marcelo. Autoria e plágio: um guia para estudantes, professores, pesquisadores e editores. São Paulo: Atlas, 2012. KROKOSCZ, Marcelo. Abordagem do plágio nas três melhores universidades de cada um dos cinco continentes e do Brasil. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 16, n. 48, dez. 2011. Disponível em: . Acesso em: 16 mar. 2015. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Ed. Cortez, 2008. MOTTA-ROTH, Désirée; HENDGES, Graciela. Produção textual na universidade. São Paulo: Parábola, 2010. PÉCORA, Alcir. Problemas de redação. São Paulo: Martins Fontes, 1999. ORLANDI, Eni P. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez Editora, 1988. SÁ, Maria Auxiliadora Ávila dos Santos; ALMEIDA, Maria do Carmo Souza. Deu branco! A escrita de trabalhos acadêmicos e o uso dos conectores. Revista Educação por Escrito – PUCRS, v.4, n.2, p. 129-139, dez. 2013. SILVA, Tomaz Tadeu da. Argumentação, Estilo, Composição: introdução à escrita acadêmica. Porto Alegre: UFRGS/PPGE-Programa de PósGraduação em Educação, 2006. ROSTAS, Márcia Helena; ROSTAS, Guilherme Ribeiro. O ambiente virtual de aprendizagem (Moodle) como ferramenta auxiliar no processo ensinoaprendizagem: uma questão de comunicação. In: SOTO, Ucy; MAYRINK, Mônica; GREGOLIN, Isadora (orgs.). Linguagem, educação e virtualidade [online]. São Paulo: Editora UNESP/Cultura Acadêmica, 2009. Disponível em: http://books.scielo.org/id/px29p/pdf/soto-9788579830174-08.pdf. Acesso em: 19 mar. 2015. 47

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TERZI, Sylvia Bueno. A construção do currículo nos cursos de letramento de jovens e adultos não escolarizados. 2006. Disponível em: http://www.cereja.org.br/arquivos_upload/sylviaterzi.pdf. Acesso em: 16 mar. 2015.

Letramento acadêmico e argumentação: incursões teóricas e práticas

ANEXO A:

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Fonte: SÁ, Maria Auxiliadora Ávila dos Santos; ALMEIDA, Maria do Carmo Souza. Deu branco! A escrita de trabalhos acadêmicos e o uso dos conectores. Revista Educação por Escrito – PUCRS, v.4, n.2, p. 129-139, dez. 2013.

Letramento acadêmico e argumentação: incursões teóricas e práticas

LETRAMENTO ACADÊMICO: DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA DO GÊNERO TEXTUAL RESENHA NA FUPAC-MARIANA Magna Campos1

RESUMO: Esta pesquisa empírica tem o objetivo de analisar o processo de desenvolvimento da escrita do gênero resenha, espécie resenha crítica, atendo-se não apenas aos aspectos formais como também aos sociorretóricos e discursivos do gênero. Neste sentido, utilizou-se uma amostragem de 20 resenhas produzidas em uma das disciplinas do curso de graduação em Direito e suas respectivas reescritas, portanto, 40 textos que formam o corpus analisado. Optou-se por uma análise quali-quanti haja vista a pretensão de mensurar o desenvolvimento da escrita de tal gênero. Após a pesquisa, é possível considerar com base nos dados empíricos, que – além dos aspectos formais, comuns de serem melhorados pelos estudantes, quando solicitada a reescrita de um texto – houve preocupação em atender-se melhor aos movimentos retóricos prototípicos do gênero em todos os exemplares de textos analisados, imprimindo-se, de forma significativa, qualidade aos textos, evidenciando assim a validade de se trabalhar o processo de escrita e de reescrita e não apenas de se visar o produto final. Palavras-chave: Gêneros Textuais. Resenha. Sociorretórica. Desenvolvimento da Escrita. Reescrita. Direito.

INTRODUÇÃO Aprender a produzir, com proficiência, os gêneros textuais típicos de dada comunidade discursiva é fator primordial para inserção de membros iniciantes nesta comunidade e para a valorização de membros aí já integrados. Esse fator relaciona-se diretamente aos processos de letramento,

Mestre em Letras, professora universitária, escritora, membro da Academia de Letras Ciência e Artes do Brasil. Autora dos livros acadêmicos: Ensaios de Leitura Crítica; Leitura e Escrita: nunaces discursivo-culturais; Manual de Redação Científica, Manual de Gêneros Acadêmicos, Manual de Elaboração de Monografia e TCC e dos livros literários: Cutrica e Futrica e a Festa no Pé de Pitanga e Beto Muleta Não, Beto Joia. 1

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e, no caso da comunidade discursiva acadêmica, como é o caso aqui investigado, ao letramento acadêmico. Toma-se como referência inicial, tal qual exposto no texto Ava e Letramento: peculiaridades da escrita acadêmico-científica, para se entender o letramento, a proposta de Terzi (2006) que, baseada nos estudos realizados por Street (1984) sobre o letramento ideológico, ou seja, o letramento como prática cultural discursiva, propõe que o letramento se relaciona a não apenas ensinar a tecnologia da escrita, ou seja, promover a alfabetização, mas, simultaneamente, oferecer-lhes a oportunidade de entender as situações sociais de interação que têm o texto escrito como parte constitutiva e as significações que essa interação tem para a comunidade local e que pode ter para outras comunidades. Em suma, significa ensinar o aluno a usar a escrita em situações do cotidiano como cidadão crítico (TERZI, 2006, p. 5).

Tomar a concepção de letramento exposta acima significa considerar que as práticas de letramento estão intrinsecamente relacionadas ao contexto, tanto imediato quanto mais amplo, pois estão imersas em uma ideologia, não sendo, portanto, neutras. Nesta perspectiva, o letramento acadêmico figura como uma das modalidades de letramento voltado para o aprendizado proficiente de situações de escrita e de leitura, pertencentes à esfera da universidade, com vistas a desenvolver as habilidades comunicativas dos estudantes relacionadas à redação acadêmico-científica. Escrita essa que apresenta condições de produção e peculiaridades diferentes de outras modalidades de letramento. Igualmente, Fischer (2008) citado por Cunha (2012, p. 139) dispõe que o letramento acadêmico é a “fluência em formas particulares de pensar, ser, fazer, ler e escrever, muitas das quais são peculiares a um contexto social”, ou comunidade discursiva. O que quer dizer que essa modalidade se refere ao processo de desenvolvimento de habilidade e de conhecimentos específicos para a produção proficiente de leitura e de escrita dos gêneros textuais usuais à esfera acadêmica.

Letramento acadêmico e argumentação: incursões teóricas e práticas

Neste sentido, a presente pesquisa empírica estuda, por meio da análise quali-quanti do corpus selecionado, o desenvolvimento da escrita de um desses gêneros textuais: a resenha, mais especificamente, a espécie resenha crítica, em uma amostragem de 40 textos das turmas de 2014 e 2015, do 1º período do curso de Direito, da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana. O estudo norteia-se pelas teorias relacionadas à interação pela linguagem, de Bakhtin (2003), uma vez que aprender a produzir um gênero textual comum em certa comunidade discursiva é aprender a interagir com esta; e, também, pelas teorias relacionadas à perspectiva sociorretórica de estudo dos gêneros textuais, representada aqui pelas proposições de Swales (1990; 2004), Motta-Roth (2006), Motta-Roth e Hendges (2010), e Hemais e Biasi-Rodrigues (2005). Assim, o trabalho apresenta, em sua primeira parte, um estudo sobre o conceito de comunidade discursiva e sobre sua relação com gêneros textuais, após, em uma segunda parte, expõe sobre o gênero textual resenha, suas espécies comuns, apresenta-se o esquema potencial do gênero resenha – espécie: resenha crítica. Na sequência, discute-se a questão da reescrita com estratégia usada para desenvolvimento da escrita proficiente de gêneros. A partir daí, caracteriza-se o trabalho com a resenha na faculdade analisada, apresentam-se os dados do corpus selecionado, bem como sua análise pormenorizada, e, por fim, as considerações possíveis de serem realizadas com base no recorte de pesquisa efetuado. 2. LETRAMENTO ACADÊMICO E O DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA DA RESENHA CRÍTICA A universidade é uma comunidade discursiva em que textos escritos e orais são produzidos, seguindo-se as características comuns aos gêneros textuais que, normalmente, transitam dentro dela. Ser uma comunidade discursiva significa, conforme ensina Hemais e Biasi-Rodrigues (2005), baseadas no estudo de Genre Analysis: English in academic and Research Settings, de Swales (1990), ser uma rede 53

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sociorretórica que se forma de modo a trabalhar por um conjunto de objetivos comuns. Desta forma, a noção de comunidade discursiva é empregada em relação “ao ensino de produção de texto como uma atividade social, realizada por comunidades que têm convenções específicas e para as quais o discurso faz parte de seu comportamento social” (SWALES, 1990 citado por HEMAIS; BIASI-RODRIGUES, 2005, p. 115)2. Além disso, pode-se acrescentar que uma das características que os pertencentes a essas comunidades discursivas possuem é a familiaridade com os gêneros específicos que são usados na busca comunicativa destes conjuntos de objetivos. De forma resumida, podem-se apontar seis características básicas presentes em uma comunidade discursiva, tal qual ensinado por Swales (1990) e descritas por Hemais e Biasi-Rodrigues (2005), são elas: a) têm um conjunto de objetivos públicos em comum, partilhados por seus membros; b) estabelecem mecanismos próprios de comunicação entre seus participantes; c) têm como principal função a troca de informações entre seus participantes; d) desenvolvem seu próprio elenco de gêneros textuais, orais e escritos, que inclui a seleção de tópicos e dos elementos formais do discurso que são apropriados a ele; e) selecionam o léxico apropriado e até criam termos com significados específicos e relevantes para os participantes daquelas comunidades, mas que geralmente pouco ou nada significam fora delas; f) apresentam participantes antigos, que são os detentores do conhecimento do discurso e do conteúdo destas comunidades, e participantes novatos que são estimulados a adquirirem conhecimento das convenções discursivas, para participarem plenamente nas atividades da comunidade.

2Tal

perspectiva conceitual de comunidade discursiva, ainda que não atenda a todas as comunidades discursivas, como problematizado posteriormente pelo próprio Swales (1998), atende aos objetivos práticos deste estudo.

Letramento acadêmico e argumentação: incursões teóricas e práticas

Assim, tal qual ensina Swales (1990), exposto por Hemais e BiasiRodrigues (2005), comunidade discursiva é empregada em relação ao ensino de produção de texto como uma atividade social, realizada por grupos que têm convenções específicas e para as quais o discurso faz parte de seu comportamento social. Neste sentido, integrar-se a ela é interagir com seus participantes, interação essa “operada” por meio da linguagem, tal qual ensinado por Bakhtin (2004), uma vez que a linguagem é uma forma de interação social que se estabelece entre indivíduos socialmente organizados e inseridos numa situação concreta de comunicação. Todavia, essa interação nem sempre é harmoniosa ou dispensa os conflitos e tensões inerentes a toda relação social interessada. Desta forma, ingressar na universidade, significa ingressar em uma comunidade discursiva que apresenta linguagem, gêneros, protocolos e formas específicos de interação e que precisam ser apreendidos e aprendidos pelo membro novato, a fim de se integrar, a contento, a essa comunidade. Sendo assim, aprender a escrever tais gêneros acadêmicos e ter domínio proficiente da linguagem usual nessa comunidade, torna-se uma condição necessária ao novato, qual seja: a de produção de textos especializados, orais e escritos, segundo as características textuais e funcionais propostas ou solicitadas pela comunidade discursiva ingressada. Pode-se também entender que aprender essa escrita é colocar em constante tensão aquela escrita anterior ao ingresso à comunidade discursiva “universitária” e a nova escrita legitimada e solicitada neste ambiente. Mas essa tensão não é exclusiva do aprendizado da escrita especializada, mas inerente a todo processo de aprender. Todavia, é bom observar que essa comunidade não pode ser pensada apenas como limite físico, mas precisa ser entendida como uma comunidade construída no e pelo discurso sendo, por sua natureza, heterogênea. Como bem ensina Wilson (2013, p. 225), essa tensão é constituinte da escrita, pois O letramento acadêmico será considerado o lugar do conflito, da tensão e da ruptura; do ajuste e do acolhimento; das regularidades e irregularidades; espaço de construção do 55

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conhecimento, de transformação do conhecimento comum em conhecimento intelectual, acadêmico ou científico.

O processo de desenvolver a escrita de um gênero acadêmico passa, portanto, por condições de produção que envolvem aprender os modos de dizer e de fazer determinado texto, inserido em dada comunidade discursiva. Neste sentido, o letramento acadêmico refere-se a desenvolver habilidades e competências, cognitivas, sociodiscursivas e sociorretóricas, necessárias e exigidas no contexto acadêmico. Tal letramento envolve, necessariamente, a apropriação de conceitos e procedimentos acadêmicocientíficos, a compreensão dos domínios discursivos imbricados na universidade e nas práticas escolares – os discursos científicos, de divulgação científica e didáticos – e, também, da transformação de objetos de estudo em objetos de ensino. (MATTENCIO, 2006 apud WILSON, 2013, p.227)

É possível inferir, nesta perspectiva, que a escrita de gêneros acadêmicos e o seu aprendizado envolvem um aprender a ser e a fazer consoante aos parâmetros estabelecidos e valorizados para a comunicação/interação na comunidade adentrada. E assim, compreender como a linguagem possibilita ou impede a inserção social. Além de desenvolver cada vez mais a proficiência na norma padrão, hoje, comumente, não muito bem aprendida na Educação Básica, e, também aprender a planejar e a escrever os gêneros textuais típicos, os quais apresentam movimentos retóricos, propósitos comunicativos e contextos sociodiscursivos que precisam ser levados em conta para o ensino e produção. 2.1 O gênero textual resenha Gênero e comunidade discursiva são conceitos inter-relacionados, pois os gêneros se estabelecem nas comunidades, compostas por grupos de indivíduos que geram convenções restritivas às escolhas individuais. Adotase neste estudo, uma perspectiva de gêneros textuais associada ao conceito bakhtiniano de gênero, o qual propõe que estes se referem às formas-padrão

Letramento acadêmico e argumentação: incursões teóricas e práticas

relativamente estáveis de composição de um enunciado, determinadas sóciohistoricamente (BAKHTIN, 2003)3. Acrescente-se a tal concepção a perspectiva dos estudos linguístico-retóricos, também chamada de sociorretórica, de Swales (1990; 20044); Motta-Roth (2006); Motta-Roth e Hendges (2010) e Hemais e Biasi-Rodrigues (2005). De acordo com a última perspectiva, inspirada em parte no interacionismo bakhtiniano – que traz consigo os conceitos de usos heterogêneos da linguagem, de dialogismo, de polifonia e de intertextualidade – e na nova retórica5 – conhecida pela preocupação pedagógica com o trabalho das estratégias argumentativas que melhor se adequam aos fins de persuasão e de convencimento, no caso dos gêneros, associado aos efeitos que se pretende causar no leitor – o gênero textual está relacionado a um propósito comunicativo em dado evento, o que determina sua razão subjacente e as ações retóricas, a uma categoria de exemplares semelhantes em sua prototipicidade, inseridos e produzidos pelas comunidades discursivas. Dentre os gêneros comuns de serem elaborados em um curso superior (resumo, resenha, artigos e ensaios), a resenha figura como um dos mais recorrentes em alguns cursos, especialmente, de graduação. Pertencente à categoria de gêneros apreciativo-avaliativos, os quais avaliam as contribuições, os argumentos, o estilo e o posicionamento de dado texto ou obra, esse gênero pode contribuir para desenvolver não apenas a escrita, mas também a leitura crítica do estudante, uma vez que aprender a realizar uma resenha é aprender a realizar a análise crítica de um texto, fundamentando-a em parâmetros que extrapolem o senso comum ou a superficialidade do texto e adentrem as discussões acadêmico-científicas de dada questão. Pois, de acordo com Motta-Roth e Hendges (2010, p. 27), a Entretanto, não se ignora que Bakhtin os denomina de gêneros discursivos em lugar de gêneros textuais. 4 Lidos, neste trabalho, via Hemais e Biasi-Rodrigues (2005). 5 Linha de estudos da retórica sobre uma roupagem atualizada e revitalizada da retórica clássica aristotélica, referindo-se às estratégias que levam um auditório a aderir às ideias que lhe são apresentadas, encabeçada por Chaim Perelman e Olivier Reboul. Para maiores informações sobre tal linha de estudo, consultar o texto “O sistema retórico (ethos, pathos e logos): contribuições para a argumentação jurídica”, neste mesmo livro. 3

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resenha é “um gênero discursivo usado na academia para avaliar – elogiar ou criticar – o resultado da produção intelectual em uma área do conhecimento” nela o resenhador basicamente “descreve e avalia uma dada obra a partir de um ponto de vista informado pelo conhecimento produzido anteriormente sobre aquele tema. Seus comentários devem se conectar com área do saber em que a obra foi produzida”. O gênero textual resenha, de acordo com Alcoverde e Alcoverde (2007), assim como muitos outros gêneros, possui suas especificidades e configurações. Assim, o mero ensino da organização global de um gênero não é suficiente para fazer com que o aprendiz chegue a uma produção adequada. Precisa-se, também, levar em consideração qual o papel social e o propósito desse gênero. Afinal, como ensina Bakhtin (2003), o domínio de um repertório de gêneros relevantes ao nosso contexto social nos possibilita a participação nessa vida grupal de maneira mais igualitária, espontânea e verdadeira. Motta-Roth e Hendges (2010) contribuem, quando ensinam que a análise do gênero textual resenha evidencia que resenhar um texto implica quatro ações: apresentar, descrever, avaliar, (não) recomendar o livro. Essas ações tendem, em geral, a aparecerem nesta ordem ou, dependendo do estilo do resenhador, a descrição e a avaliação aparecem juntas, à medida que se descreve, avalia-se. Nesta perspectiva, Campos (2012-2015) explica que a resenha consiste, portanto, na apresentação sucinta do texto resenhado e de seu autor, no resumo, na apreciação crítica do conteúdo e do estilo e na indicação de leitura. A resenha deve levar ao leitor informações objetivas sobre o assunto de que trata a obra, destacando, assim, a contribuição do autor no que tange à abordagem inovadora do tema ou problema, aos novos conhecimentos, às novas teorias, às relações com os saberes de uma determinada área do conhecimento, dentre outras possibilidades de avaliação crítica, além de ser capaz indicar o “leitor virtual” mais adequado para a leitura da obra, por isso o recomendar ou não sua leitura. O gênero textual resenha, conforme Campos (2012-2015), apresenta três espécies distintas: a resenha indicativa ou descritiva, a resenha temática e a resenha crítica.

Letramento acadêmico e argumentação: incursões teóricas e práticas

A resenha indicativa é aquela encontrada em jornais e encartes de Dvds, por exemplo, cuja função é fazer uma breve apresentação da obra (livro ou filme), seguida de uma classificação do material, além de fazer uma indicação de público- alvo (leitor virtual). Apresenta comumente: 1. Resumo bem sintético; 2. Dados gerais da obra; 3. Apreciação. Quadro 01: Exemplo de resenha indicativa de filme: A MAÇÃ O filme narra a história de duas irmãs gêmeas que ficaram aprisionadas em casa por onze dos seus treze anos de vida. Vítimas da obediência extrema a um preceito do Alcorão que reza que "meninas são como flores que, expostas ao sol, murchariam", foram libertadas após uma denúncia feita pelos vizinhos e publicada nos jornais. Samira Makhmalbaf, uma menina de 18 anos, decide filmar o processo de libertação e adaptação das irmãs à vida social. Este processo é marcado por muitos desafios e descobertas do mundo externo como andar nas ruas, ir à feira, conviver com outras crianças, tudo balizado por um novo prazer de viver. As cenas são fortes e comoventes, revelando a descoberta da liberdade e da vida. Vale a pena! FICHA TÉCNICA Características: filme iraniano, colorido, legendado, com 86 minutos, produzido em 1998. Direção: Samira Makhmalbaf Gênero: drama Distribuição em vídeo: Cult Filmes Qualificação: Fonte: portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Profa/cat_res.pdf

A resenha temática trata de uma leitura apreciativa de um mesmo tema em textos diferentes ou em diferentes autores. De acordo Köche, Boff e Pavani (2009, p. 105)6 “a resenha temática consiste em um gênero textual KÖCHE, Vanilda; BOFF, Odete; PAVANI, Cinara. Prática textual: atividades de leitura e escrita. 6.ed. Petrópolis: Vozes, 2009. 6

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que sintetiza mais de um texto ou obra, em torno de um só assunto, estabelecendo relações entre suas ideias”. Geralmente esse tipo de resenha segue o seguinte ordenamento: 1. Título 2. Apresentação do tema 3. Resumo os textos ou dos posicionamentos 4. Apreciação/comparação/conclusão 5. Fontes bibliográficas. Quadro 2: Exemplo de resenha temática: Entre anima e corpo Este trabalho refere-se a uma brevíssima comparação da visão de homem que perpassa a Filosofia e as Ciências Naturais. Para isso, toma os conceitos de mecanicismo e como vértice explicativo do homem, na dualidade, mente e alma, de René Descartes; passa pelo dualismo "mente e comportamento”, de Skinner e o comportamento operante; indo até Richard Dawkins e o homem funcional dotado de intenção biológica, imbuído e "destinado" a ser uma "maquina gênica". É necessário para uma melhor compreensão voltarmos ao século XVII, no qual o filósofo René Descartes confere ao homem uma parte no mundo puramente mecânica semelhante às marionetes manipuladas por fios e cordas do teatro francês. O dualismo cartesiano aparta o homem da besta-fera, quando lhe confere o que chama de "substância" (alma/mente). Skinner formula a teoria do comportamento operante, já que o comportamento seria a base explicativa da ação do homem sob o meio. Skinner entende que o comportamento do homem é produto da relação deste com o meio e propõe que três seriam os determinantes da modelagem do comportamento: a filogenia, ontogenia e a cultura. A alma ou mente é deixada de lado e, segundo essa perspectiva, não poderia determinar nem influenciar no comportamento humano. Toda a explicação influenciada pela metafísica ou que inferiria que a entidade "mente" influencia ou opera sobre o somático é tida como mentalista ou uma explicação “fictícia", que não tem base, nem valor científico. Dawkins resgata e o mecanicismo ingênuo de Descartes, e com a cientificidade da biologia inverte o conceito do antropomorfismo e devolve ao homem o "status" de animal, desprovido de característica ou ancestralidade divina. Como Skinner, deixa de lado o fator alma ou razão metafisica para explicar a razão da existência e comportamento humano. Como zoólogo, Dawkins vincula a existência humana a uma espécie de "padrão fixo de ação”, ou seja, a replicação gênica e perpetuação da espécie (homo sapiens). O pensamento mecanicista e pragmático de homem "máquina", dotado de estruturas ou conjuntos orgânicos com uma funcionalidade previsível, não é uma corrente

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epistemológica nova, mas, remete-nos a origem do pensamento racional e é anterior ao "positivismo" Comtiano. Descartes entendia o homem como semelhante aos animais na forma e estrutura fisiológica. Assim, a mecânica hidráulica de seu tempo servia-lhe de inspiração, e se houve um "erro" cometido por Descartes, segundo Damásio (1996), é o de não ter alocado no encéfalo do homem o que ele chamava de "substância" ou mente. Damásio, como neurologista, entende a tal "mente" intrínseca a processos neuronais. Skinner, seguindo a influência do behaviorismo de Watson quanto à necessidade da cientificidade e operacionalização da psicologia, cria o behaviorismo radical que não nega sentimentos ou emoções humanas, mas, procura entendê-los como uma forma de comportamento possível de análise. Assim, a filosofia do comportamento entende o homem como sendo determinado pelas contingências ambientais. Skinner cria uma psicologia empirista e pragmática, deixando para o senso comum conceitos como alma, mente ou espírito. Para ele, o homem é influenciado pelo ambiente e difere-se da marionete pensada por Descartes, por esse não ser um autômato. Segundo Skinner, o homem modifica e interage com o meio, e por este é transformado. Ou seja, não é passivo, atua e é modificado, transformado, vive uma relação dinâmica com o meio, que modela seu comportamento cria novas contingências tornando-o mais adaptado à sobrevivência no meio. Dawkins, como cientista da biologia, influencia a discussão quanto ao comportamento, pois parece concordar com a ideia de que processos neurais e comportamentais enquadram-se em modelos computacionais. O homem seria uma “máquina”, um organismo dotado de racionalidade, porém, puramente biológico, livre de influências externas de caráter divino como mente ou espírito. Dawkins é mais radical que Skinner e propõe que os experimentos com animais podem ser realizados de forma simulada em um ambiente totalmente controlado. Pode-se depreender, portanto, que a ideia dos dois últimos autores difere bastante da ideia de Descartes. Skinner e Dawkins, mesmo entendendo a singularidade do homem e respeitando-a, apresenta fortes argumentos de que o "animal" homem é multideterminado em seu comportamento, mas não é superior, ou melhor, que um animal infra-humano (ratos e pombos). Já Descartes, introduz a ideia de que o homem seria uma máquina que pensa, os seus músculos são comandados pelo cérebro através do sistema nervoso, além de figurar um dualismo: o corpo capaz de movimento resultante do engenho divino e um corpo autómato capaz de movimento resultante do engenho humano. Referências bibliográficas: DAWKINS, R. O gene egoísta. São Paulo: EDUSP. 1979. DAMÁSIO, A. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras. 1996. 61

Magna Campos

DESCARTES, R.. Discurso do método. São Paulo, SP: Editora Escala, 2006 SKINNER, B. F. Ciência e comportamento humano. 8. Ed. São Paulo: Martins Fontes. 1993. Fonte: Texto reescrito e adaptado a partir do texto de Hilton Caio Vieira. Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/61000137/Resenha-Tematica-Hilton-Caio-Vieira.

A resenha crítica, por sua vez, é a espécie de resenha mais comum no meio acadêmico, e se inicia pela referência bibliográfica do texto resenhado, apresenta o autor e a obra, resume as principais ideias do texto, apresenta uma apreciação crítica tanto de aspectos formais quando conteudísticos desse mesmo texto e ainda faz a recomendação ou não de quem deve lê-lo. Não raro, as resenhas trazem também, em sua construção, material extratexto, ou seja, outros posicionamentos ou posicionamentos que corroboram a perspectiva do autor resenhado, como forma de expansão da análise e comparação de ideias. Neste caso, o material extratexto deve ser mencionado nas referências bibliográficas posteriores ao texto, uma vez que a referência que abre a resenha é a de apresentação técnica apenas do texto resenhado. Em Campos (2012-2015), aproveitando-se os ensinamentos da sociorretórica, especialmente o modelo CARS7 de Swales (1990) e a adaptação proposta por Motta-Roth (2010), apresenta-se um esquema potencial deste gênero (apresentar, descrever, avaliar, (não) recomendar o texto), elaborado pela autora deste capítulo e empregado nas disciplinas em que ensina aos estudantes a elaborarem a resenha crítica. QUADRO 3: ESQUEMA DO GÊNERO TEXTUAL RESENHA CRÍTICA

Movimento 1 Passo 1 Passo 2 Passo 3 Passo 4 Passo 5 7

REFERENCIANDO O LIVRO Nome do organizador e dos autores. Título completo e exato da obra: subtítulo. Número da edição. Lugar da publicação: Nome da Editora.

Create a Research Space. Modelo de organização retórica de um gênero textual.

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Data da publicação. Número de páginas (todos dentro das normas da NBR 6023 para referências bibliográficas)

Movimento 2 Passo 6 Passo 7

APRESENTANDO O LIVRO Informando sobre o autor/a / suas credenciais acadêmicas Falando sobre a obra / Definindo o tópico geral do livro

Movimento 3 Passo 8 Passo 9

ESQUEMATIZANDO O LIVRO/ RESUMO Delineando a organização geral do livro: capítulos, seções, tópicos etc. Resumindo cada capítulo ou subdivisão: o que trata e/ou porque trata e/ou como trata e/ou para que trata. (ou resumo geral) Citando material extratexto: material de apoio, outro(s) autor(es) que confirma(m) ou contrapõe(m) posicionamentos

Passo 10(opcional)

Movimento 4 Passo 11 Passo 12

Passo 15(opcional) Movimento 5 Passo 16 Passo 17

AVALIANDO O LIVRO/POSICIONAMENTO Avaliando estrutura formal do texto: linguagem, organização, exemplos, informatividade Avaliando a parte conteudística do texto e discutindo o assunto: o assunto, a abordagem, argumentos, o que o diferencia ou o aproxima de outros autores, posicionamento, relação do texto com a disciplina, com acontecimentos do mundo. Avaliando partes específicas

FORNECENDO AVALIAÇÃO FINAL DO LIVRO/REFERÊNCIAS Recomendando a leitura do texto Bibliografia de apoio utilizada (se foi usado algo além do texto resenhado).

Fonte: CAMPOS, Magna. Manual de gêneros acadêmicos. Mariana: Edição do autor, [2012]-2015.

Dessa forma, é possível entender que elaborar uma resenha crítica implica construir de modo persuasivo cada um dos estágios, movimentoação, a fim trabalharem para levar o leitor a validar ou não a 63

Magna Campos

apreciação/avaliação realizada, além de evidenciar o resenhador como membro capaz de avaliar criticamente um texto, de forma plausível, consistente e coerentemente. Em cursos de graduação, a resenha é solicitada tanto como uma atividade de leitura quanto de escrita, e recai mais sobre a apreciação de capítulos de livros e de artigos científicos, não sendo muito comum, pelos menos nos períodos iniciais, resenhar-se um livro teórico inteiro. Todavia, no caso de textos literários, mesmo na graduação, é comum solicitar-se a resenha do livro inteiro. Quadro 4: Exemplo de resenha crítica O autor, Dr. Mauricio Gomes Pereira, é médico com especialização em pediatria e em saúde pública e professor titular da Universidade de Brasília. Tem vários livros publicados, entre eles Epidemiologia: teoria e prática, e vasta experiência na área de metodologia científica e de epidemiologia. O livro Artigos Científicos: como redigir, publicar e avaliar torna maior sua contribuição para o ensino e a pesquisa no Brasil, foi lançado recentemente pela Editora Guanabara Koogan. Com o objetivo de orientar os potenciais autores sobre como vencer as muitas barreiras na elaboração e publicação de artigos científicos, o livro aborda cada uma das etapas desse processo em 24 capítulos. Os três primeiros capítulos tratam dos aspectos da preparação do trabalho. O primeiro capítulo, Pesquisa e Comunicação Cientifica, versa sobre a necessidade de divulgação dos resultados das pesquisas como forma de finalização da mesma. Aborda, de modo geral, a evolução da comunicação cientifica nas ciências da saúde, menciona os periódicos de acesso livre e a situação atual de elevada competição para publicar . No segundo capítulo, Canais de Comunicação Cientifica, o autor descreve os tipos de periódicos, os tipos de artigos, as formas de publicação e as normas que as regem. Do terceiro ao décimo quinto capítulo é apresentada cada parte da estrutura de um trabalho cientifico, começando pelo planejamento, abordando a estrutura, redação e revisão do texto, a introdução, o método, os resultados, a discussão, as referências bibliográficas, o título, a autoria, o resumo, as palavras-chave, a escolha do periódico e um capítulo com temas para a complementação do artigo (capítulo 15). Somam-se a esse conjunto de capítulos, que orientam a elaboração de cada seção do artigo cientifico, outros três capítulos que exploram a Estatística (capítulo 18), a Preparação de Tabelas (capítulo 19) e a Preparação de Figuras (capítulo 20). O leitor irá encontrar também capítulos sobre a Submissão do Artigo para a Publicação, sobre a Avaliação de artigo Cientifico e sobre Ética (capítulo 21). Os três últimos capítulos do livro versam sobre temas auxiliares, enfocando a motivação para divulgar os resultados de uma pesquisa e os recursos para publicá-los. O

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capítulo 22 , Vale a pena publicar Artigo Científico?, lista os motivos pelos quais esta prática é cada vez mais importante e competitiva assim como os auxílios disponíveis para uma escrita de qualidade. O capitulo seguinte, Como ter Artigo aprovado para Publicação, aponta as particularidades dos textos recusados, como falta de relevância do tema, pouca originalidade, os erros mais comuns de redação, entre outros aspectos que devem ser evitados para que um trabalho seja aprovado para publicação. O livro termina com Síntese das Sugestões sobre Redação Científica, onde são agregadas as informações que resumem os demais capítulos do livro. Os capítulos são estruturados em itens, apresentados com texto curto e com um ou mais exemplos, quando pertinente. A estrutura do texto obedece à lógica de apresentação de cada tópico, do geral ao especifico, havendo dois itens comuns a todos os capítulos, o item Sugestões e outro com Comentário final. Os temas são apresentados com uma linguagem clara e direta. Além disso, vários recursos utilizados pelo autor facilitam a leitura, como a inclusão de exemplos e o resumo do conteúdo de cada capítulo, apresentado em tabela, fazendo referência à seção onde cada tema aparece. O leitor pode esperar instruções sobre cada etapa do processo de elaboração de um texto científico para publicação, com a exposição de cada detalhe envolvido e dicas sobre o que deve ser considerado para se obter um resultado apropriado. Além disso, aspectos importantes relacionados ao encaminhamento e à publicação do artigo são abordados na obra. Entre esses, como preparar uma carta ao editor, como lidar com o processo de revisão, e como proceder para avaliar um artigo cientifico. A inclusão de um capítulo sobre estatística, assim como sobre a preparação de tabelas e figuras reflete a abrangência da obra. Nota-se, em toda a obra, uma abordagem além do que seria esperado para os temas propostos. O autor não se limita a identificar o conteúdo básico de cada item de um artigo cientifico e a explorar formas de preparar cada parte do trabalho, oferecendo ao leitor a chance de rever cada tópico da preparação do estudo. Por exemplo, o capítulo de Método aborda detalhes de cada um dos seus itens como tipos de estudo, características da amostra, classificação das variáveis, erros a serem evitados, entre outros. No capítulo Resultados, somado à sequência de apresentação dos dados, o autor também descreve as formas estatísticas para apresentar o efeito encontrado no estudo. No capítulo sobre Complementação do Artigo o leitor encontrará instruções sobre as revisões para o aprimoramento do artigo, os erros e os vícios de linguagem a serem evitados, normas para o uso de siglas e de citação de números no texto, tempos verbais a serem usados em cada parte do artigo, entre outros aspectos necessários a uma redação correta. A abrangência do conteúdo torna inevitável algumas repetições, até porque alguns temas apresentados se sobrepõem. 65

Magna Campos

Ainda que o foco seja a redação de artigo cientifico, é evidente a quantidade de informação teórica sobre pesquisa epidemiológica disponibilizada. O livro não se limita a propor normas de redação, como uma receita do que deve conter a introdução, a parte de métodos ou as demais partes do artigo, mas inclui um conteúdo teórico sobre temas relacionados a cada tópico. Desta forma, o livro pode ser útil para aqueles que querem um roteiro ou orientação para aprimorar seus manuscritos científicos e que têm dúvidas específicas, mas também para os iniciantes, que se beneficiarão ao ler um texto mais extenso, com um teor maior de informação sobre cada aspecto envolvido na produção cientifica. Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-790X2012000200021. Acesso em: 19 out. 2015.

Cada espécie do gênero textual resenha implica, como pode ser observado nos processos descritos anteriormente, aprendizado que envolve propósitos comunicativos e movimentos retóricos específicos, além de diferentes tipos de conhecimentos. Sendo assim, o ensino deve levar em consideração tais especificidades, uma vez que o ensino da produção textual não pode ser o mesmo para todo e qualquer espécie e gênero a ser estudado. 2.2 A reescrita como estratégia de desenvolvimento da escrita proficiente Alcançar um bom nível de letramento acadêmico, como podemos inferir do exposto até o momento, relaciona-se a saber desenvolver com certa proficiência os gêneros textuais, orais ou escritos, comuns e valorizados em dada comunidade discursiva. Esse desenvolvimento envolve tanto a escrita quanto a leitura. E, para alcançar esse nível, é preciso que se desenvolva um trabalho processual contínuo, capaz de evidenciar que os textos não ficam prontos em uma primeira versão, haja vista o conjunto de competências e habilidades necessárias à escrita e à leitura envolvidas. No caso da escrita, foco deste estudo, a etapa de revisão e de reescrita desponta como estratégia didática para o processo de desenvolvimento contínuo das produções textuais dos estudantes. Tal

Letramento acadêmico e argumentação: incursões teóricas e práticas

importância se deve ao fato de, na reescrita, diferentemente daquela abordagem finalizada do texto, focada no produto, a atividade de escrita ser trabalhada como um processo que propicia identificação de falhas e proposição de melhorias linguísticas, discursivas e sociorretóricas, evidenciando ganho de qualidade ao texto tanto micro (gramática, coesão, paragrafação etc.) como macrotextuais (movimentos retóricos, coerência, clareza, argumentatividade, informatividade etc.). Isso acontece em virtude das mudanças operadas no texto pelo escritor, mediante as sinalizações e orientações da correção inicial, em um processo de revisão do texto e aperfeiçoamento. Assim, na reescrita, deve-se trabalhar tanto os aspectos formais relativos à gramática quanto aos aspectos sociorretóricos e discursivos. Afinal, como ensinam Schneuwly e Dolz (1995, p. 15), “a aprendizagem da escrita não é algo que se dá de modo espontâneo, mas se constrói através de uma intervenção didática sistemática e planejada”. E é a essa sistemática de trabalho voltado para o desenvolvimento da escrita que se pretende explicitar nesta pesquisa prática. 3. O TRABALHO COM A RESENHA CRÍTICA NA FACULDADE PRESIDENTE ANTÔNIO CARLOS DE MARIANA

A Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana é uma instituição interiorana, de pequeno porte, situada na cidade de Mariana-MG, e que oferece, atualmente, como graduação, o curso noturno de Direito e, como pós-graduação, o curso de Especialização em Direito Civil, Processual e do Trabalho, aos sábados. A entrada no curso, desde 2012, ocorre anualmente. O curso de Direito começou a ser ofertado em 2007, e, em 2008, o Núcleo Docente Estruturante (NDE), juntamente com a coordenação da faculdade, estipulou que a resenha crítica deveria ser uma das atividades avaliativas obrigatórias em todas as disciplinas do curso, a exceção das disciplinas dos 9º e 10º períodos, haja vista o a necessidade de maior envolvimento dos alunos do referido período com o projeto e a monografia. 67

Magna Campos

A proposta destes representantes é a de usar a produção de resenhas críticas como forma de desenvolvimento da escrita padrão em língua portuguesa dos estudantes, de incentivo à leitura compreensiva e interpretativa e, assim, à capacidade de análise crítica. Ainda, por meio do gênero, trabalhar o estabelecimento de relações, comparações e contrastes de diferentes temáticas ou teóricos; aprender a argumentar melhor – já que se posicionar diante de um texto resenhado é saber se colocar em um postura de argumentante, para validar o ponto de vista do resenhador – melhorar a elaboração de sínteses e promover domínio da linguagem jurídica. Neste sentido, logo no 1º período do curso, os estudantes fazem duas disciplinas que trabalham no desenvolvimento de competências necessárias ao aprendizado da resenha como gênero textual acadêmico: disciplinas de Métodos para Elaboração de Trabalhos Acadêmicos (40h) e Leitura e Produção de Textos (40h). As duas disciplinas, de forma interdisciplinar, integram o ensino do gênero em suas ementas e práticas pedagógicas. Nelas, além do ensino do próprio gênero textual resenha, outras questões que contribuem para o desenvolvimento da escrita e da leitura acadêmica são trabalhadas, quais sejam: o estudo da linguagem como interação social; da relação entre texto e discurso; da leitura como prática sociodiscursiva; o estudo das vozes discursivas, essenciais para o processo de citações das vozes alheias no texto (polifonia textual); dos níveis e dimensões da leitura (do nível mais básico – decodificar – aos mais profundos – compreender e interpretar); das peculiaridades da linguagem acadêmica e da argumentação; o estudo da pirâmide do conhecimento (dados, informação, conhecimento, inteligência e competência), os tipos de inteligências e os tipos de conhecimentos (senso comum, religioso, científico, artístico e filosófico), além de normas de formatação de trabalhos acadêmicos e de citação e referenciação, consoante às normas da ABNT.

Letramento acadêmico e argumentação: incursões teóricas e práticas

Os estudantes contam ainda com um Manual de Gêneros Acadêmicos8, disponibilizado pela professora e adotado oficialmente pela instituição, no qual o gênero resenha é explicado, servindo assim à dupla função: de servir aos demais professores da instituição como parâmetro para o trabalho com a resenha crítica e de servir aos alunos como reforço ao aprendizado. E, caso se interessem ou caso sejam convidados, há também um Projeto de Nivelamento em Linguagem que oferece minicursos anuais aos estudantes que queiram aperfeiçoar-se na produção escrita de textos e melhorar a leitura crítica de gêneros comuns neste meio acadêmico. Nestes minicursos, dentre temáticas importantes, sempre é dada atenção especial à espécie resenha crítica. É, portanto, neste contexto – de um curso noturno de graduação em Direito, que tem na resenha crítica uma atividade avaliativa de escrita obrigatória – que a pesquisa se desenvolve. Foram utilizados, para fins de análise do desenvolvimento da escrita da resenha acadêmica, 10 exemplares de resenhas críticas, produzidos por estudantes do 1º período, na disciplina de Métodos para Elaboração de Trabalhos Acadêmicos, de 2014, e 10 outros exemplares de 2015. Também foram analisados os textos correspondentes à reescrita destes iniciais, elaborados para a disciplina mencionada, após correção e avaliação, realizadas pela professora da disciplina. Desta forma, será analisado o montante de 40 textos. As turmas em questão tinham uma média de 40 alunos cada, não sendo as únicas turmas de 1º período do curso, todavia, a seleção das duas turmas das quais se colheu os exemplares de resenha e de suas reescritas – uma de 2014 e outra de 2015 – ocorreu de forma aleatória; frise-se, no entanto, para ficar claro que, ainda que houvesse mais de uma turma de mesmo período e curso, não se coletou textos de duas turmas de um mesmo ano. CAMPOS, Magna. Manual de gêneros acadêmicos: resenha, fichamento, memorial, resumo científico, relatório, projeto de pesquisa, artigo científico/paper, normas da ABNT. Mariana: Edição do autor, 2012-2015. 8

69

Magna Campos

A seleção dos textos não seguiu o rigor estatístico para definir a amostragem, antes, buscou-se uma representação mínima de textos das turmas, selecionando-se os 10 trabalhos entregues primeiros, cuidando-se apenas de consultar os respectivos resenhadores, se já haviam elaborado uma resenha anteriormente, em alguma outra comunidade discursiva, assegurando-se, com isso, que os exemplares selecionados fossem oriundos de estudantes que nunca haviam elaborado uma resenha, de qualquer espécie, anteriormente. Tal cuidado se deve à preocupação de se evidenciar se o trabalho desenvolvido com o ensino, a escrita e a reescrita do gênero textual é capaz de contribuir de forma significativa para imprimir mais qualidade na escrita de tais textos9. As correções são efetuadas manualmente, pela professora da disciplina, ao longo do próprio texto, e a avaliação segue um critério de avaliação, disposto abaixo, nos quadro 05 e 06, que é afixado à frente do texto do estudante, no qual são dispostas as pontuações referentes a cada item avaliado. É importante observar que esse critério é descrito para os estudantes das duas disciplinas mencionadas, quando solicitada a resenha crítica, após as aulas em que o gênero é ensinado. Não sendo necessariamente esse o critério que os demais professores do curso irão empregar em suas avaliações da resenha. Quadro 05: Critério de correção da resenha crítica (2014)

9

Não constitui um quesito a ser analisado nesta pesquisa o teor do texto a ser resenhado.

Letramento acadêmico e argumentação: incursões teóricas e práticas

Fonte: Arquivo pessoal. Elaborado para avaliação da resenha crítica, na disciplina de Métodos para Elaboração de Trabalhos Acadêmicos e Leitura e Produção de Textos.

Quadro 06: Critério de correção da resenha crítica (2015)10

Fonte: Arquivo pessoal. Elaborado para avaliação da resenha crítica, na disciplina de Métodos para Elaboração de Trabalhos Acadêmicos e Leitura e Produção de Textos.

Após, a primeira versão entregue e avaliada, os estudantes são solicitados a efetuarem a reescrita da resenha, promovendo melhorias nos aspectos evidenciados no corpo do texto, por marcações e dicas, e nos itens avaliados abaixo do adequado, no quadro com o critério de correção entregue individualmente. A nova versão também é pontuada e a nota a mais tirada em relação à versão inicial é acrescentada como pontuação extra na disciplina em que o trabalho foi desenvolvido. 3.1 Conhecimento retórico e desenvolvimento da escrita do gênero textual

Houve uma alteração na distribuição de notas para cada item do critério de correção, diminuindo a pontuação das credenciais e aumentando-se a do resumo. 10

71

Magna Campos

Utilizou-se, para tabulação dos dados, a elaboração de um quadro descritivo com todas as notas das resenhas e de suas reescritas. O quadro adiante evidencia as notas alcançadas pelos estudantes na resenha crítica elaborada, conforme os itens constantes no critério de correção explicitado anteriormente. Nele, serão usadas as seguintes siglas: RB – Referência bibliográfica ABNT (NBR 6023/2002) CAT- Credenciais do autor e do texto (apresentação) RE - Resumo coeso e coerente da obra (sumarização) CFC - Crítica do resenhista à forma e ao conteúdo (avaliação) IL – Indicação de leitura da obra (recomendar ou não) NP – Linguagem adequada dentro da norma padrão da língua portuguesa.

Quadro 07: Avaliação das resenhas de 2014 Resenha RB CAT RE CFC IL NP Total Percentual de aproveitamento Resenha 1a

0,5

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1,5

1,0

0,5 1,5

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3a

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5a

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0,0

0,0

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0,0

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8a

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7,3

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Letramento acadêmico e argumentação: incursões teóricas e práticas

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0,0

0,0

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0,0

0,0 1,0

3,5

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10a

0,5

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Reescrita

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6b

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2,5

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7b

0,3

0,5

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1,0

0,5 1,5

6,3

63%

23%

8b

0,5

1,0

2,5

2,5

0,5 1,5

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85%

12%

9b

0,5

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2,5

1,0

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7,5

75%

40%

10b

0,5

1,0

2,5

4,0

0,5 1,5

10,0

100%

5%

Fonte: Dados da pesquisa.

Quadro 08: Avaliação das resenhas de 2014 Resenha RB CAT RE CFC IL NP Total Percentual de aproveitamento Resenha 1a

0,5

0,5

3,0

2,5

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2a

0,3

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5,8

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0,5

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4a

0,5

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2,0

1,0

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6,0

60% 73

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5a

0,5

0,5

2,0

4,0

0,0 1,5

8,5

85%

6a

0,3

0,5

1,0

1,0

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4,3

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7a

0,5

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0,0 1,5

9,5

95%

8a

0,0

0,5

2,0

2,5

0,0 1,5

6,5

65%

9a

0,0

0,5

3,0

2,5

0,5 1,0

7,5

75%

10a

0,3

0,5

1,0

1,0

0,5 1,0

4,3

43%

Reescrita

Melhoria

1b

0,5

0,5

3,0

4,0

0,5 1,5

10,0

100%

15%

2b

0,5

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3b

0,5

0,5

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8,5

85%

20%

4b

0,5

0,5

3,0

2,5

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Fonte: Dados da pesquisa.

O que os dois quadros com a amostragem de notas – por item e totais – das resenhas, na versão inicial, deixa entrever é que os estudantes, ainda que sejam orientados nas aulas específicas sobre o gênero textual

Letramento acadêmico e argumentação: incursões teóricas e práticas

resenha a respeito da importância da apreciação crítica e da necessidade de dedicarem atenção especial à atividade de avaliar o texto lido, preocupam-se mais com a ação de resumir/sumarizar. Neste quesito, nenhum estudante deixou de fazê-lo, e apenas 20% dos representantes da turma de 2014 e 10% da turma de 2015 elaboraram um resumo considerado “fraco”. O restante apresentou-o “bom” ou “adequado”. Já na reescrita, na turma de 2014, todos conseguiram melhorar consideravelmente essa etapa da resenha, atingindo o nível adequado no resumo. Na turma de 2015, 80% conseguiu atingir tal nível desejado e 20% ficou no nível mediano. Retornando ao primeiro item do critério, referência bibliográfica dentro da norma, observa-se que 20% das resenhas de 2014 e 20% da turma de 2015 não fizeram essa parte do texto, entregando a resenha sem a sua referência bibliográfica, na versão inicial. Além disso, dentre os estudantes de 2014 que a fizeram, 50% apresentou-a corretamente, conforme trabalhado na aula, e 30% acertaram-na parcialmente. Na reescrita, essa ausência foi corrigida e 90% dos textos desta turma a fizeram corretamente e 10% atingiu o nível mediano/parcial (não havia feito inicialmente). Já, entre os textos dos alunos de 2015, 30% acertaram-na parcialmente e 50% fizeram-na corretamente, passando todos para a elaboração correta desta etapa, após a reescrita. Quanto às credenciais do autor e do texto, apenas 20% dos trabalhos não a elaboraram na turma de 2014, sendo que os 80% restante conseguiram nota máxima neste quesito. Na reescrita dos textos dessa turma, o índice de nota máxima aumentou para 90% e 10% ficou com a nota mediana (não a apresentara inicialmente). Na turma de 2015, todos a elaboraram e alcançaram, já na escrita inicial, a nota máxima. No quesito crítica à forma e ao conteúdo, observou-se a maior dificuldade dos estudantes em desenvolvê-la, mesmo que na reescrita. Na turma de 2014, 20% dos estudantes não a elaboraram e, na turma de 2015, nenhuma ocorrência desse tipo foi constatada. Quanto à pontuação dessa etapa, averígua-se que 30% dos textos da turma de 2014 e 50% da de 2015 a elaboraram de forma considerada fraca; outros 30% da turma de 2014 e 75

Magna Campos

30% da de 2015 a elaboraram de forma mediana; apenas 20% dos estudantes de 2014 e o mesmo índice de 2015 atingiram o nível adequado neste quesito. Na reescrita da resenha, de modo geral, em ambas as turmas, o nível no quesito crítica melhorou um pouco, todavia, 30% dos textos da turma de 2014 não conseguiram melhorar de nível e 10% da turma de 2015 enfrentou o mesmo problema. 40% dos trabalhos da turma de 2014 e 50% dos de 2015 atingiram o nível adequado; 40% dos trabalhos de 2014 e 50% dos de 2015 ficaram no nível mediano e outros 20% dos trabalhos de 2014 ficaram no nível considerado fraco. Nota-se, como mencionado, uma preocupação maior com a ação de resumir um texto, que com a ação de criticar/avaliar. Talvez, tal fator pode ser reflexo da maior familiaridade do estudante com o gênero resumo de texto, comum de ser trabalhado no Ensino Básico. A indicação de leitura foi o quesito que os estudantes mais deixaram de elaborar, sendo 40% de ausência na turma de 2014 e 50% na turma de 2015. Na reescrita, todos os textos das duas turmas a apresentavam de forma adequada. Quanto ao uso da norma padrão da língua portuguesa, observou-se preocupação considerável dos estudantes referente a este quesito, acrescentando-se, inclusive, que muitos estudantes entenderam, em um primeiro contato com a resenha corrigida e avaliada a ser reescrita 11, que deveriam somente corrigir os problemas de gramática (ortografia, pontuação, concordância, regência etc.). Foi preciso uma intervenção da professora da disciplina, explicando que esse era apenas um dos quesitos a serem trabalhados, e que deveriam se guiar pelo quadro com critério de avaliação, devidamente notado e afixado à frente da resenha de cada estudante, somado às marcações, dicas e observações realizadas ao longo do corpo da resenha corrigida, para melhorarem os textos.

Dentre os estudantes, resenhadores selecionados, nenhum havia elaborado até então, em sua trajetória estudantil, uma atividade de reescrita de texto que extrapolasse o “passar a limpo”, corrigindo-se a letra e a gramática. (Dados de conversa com os alunos à época de orientação da atividade). 11

Letramento acadêmico e argumentação: incursões teóricas e práticas

Essa questão evidencia o que os estudantes entendem, em um primeiro momento, como sendo melhoria de um texto: entendia como sinônimo de correção gramatical apenas. O dado anterior confirma pesquisa realizada por Carvalho (2002; 2010), nas quais também se constatou demasiada preocupação dos escritores iniciantes na graduação relativa aos aspectos puramente formais ao revisarem e reescreverem seus textos. Os dados obtidos nesta pesquisa com a amostragem de resenhas da turma do 1º período do curso de Direito, turmas 2014 e 2015, ainda que em uma amostragem limitada, permite observar que, na reescrita, os estudantes alteram significativamente seus textos iniciais, promovendo mudanças com vistas a atenderem, de forma mais significativa, aos movimentos retóricos do gênero textual resenha crítica, ainda que em um primeiro momento a preocupação tenham se direcionado aos aspectos formais do texto. Neste sentido, chama atenção o fato de a reescrita realmente colaborar para a melhoria do texto da resenha como um todo, pois, em média, a turma de 2014 melhorou 22% em relação ao texto inicial e a turma de 2015 melhorou, em média, 23%, em aspectos variados do esquema sociorretórico do gênero resenha, espécie resenha crítica. Ressalte-se também que os trabalhos que tinham mais espaço para melhorias, mais problemáticos na versão inicial, foram os que mais avançaram no desenvolvimento da escrita do gênero pela reescrita. O que corrobora para a validade do processo trabalhado como estratégia com vistas à proficiência no letramento acadêmico – há textos, nas duas turmas, com percentuais de 40% de incremento de qualidade geral. Sem dúvida, o desenvolvimento da escrita do gênero, visto como processo que envolve tanto escrita como reescrita, é importante e também desafiador, pois implica em um trabalho minucioso de planejamento da atividade, de conhecimento do gênero, de suas especificidades, de seu arranjo retórico, de se estabelecer um critério de correção/avaliação condizente com os elementos do gênero textual trabalhado, além de ser uma atividade de correção/avaliação que não termina na versão inicial,

77

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envolvendo, assim, um trabalho muito mais demorado e dispendioso por parte do professor. A pesquisa evidencia também a importância de se sinalizar para o estudante em qual movimento retórico do gênero textual resenha crítica ele precisa melhorar, ou qual ação ele não realizou, e, ainda, é claro, de se ressaltar os aspectos referentes às questões de domínio da norma padrão da língua portuguesa não foram atendidos, haja vista ser esse um aspecto de grande valorização na comunidade discursiva jurídica, cenário pesquisado. Sem saberem no que não foi bem, e, portanto, no que melhorarem, muitos estudantes demorarão ainda mais a entenderem – e alguns não entenderão, incorrendo na mesma falha repetidas vezes ou, até mesmo, saindo da graduação sem alcançar proficiência na escrita do gênero 12 – o que lhes falta para alcançarem desenvoltura na escrita de um gênero textual que necessitem produzir, quer seja para avaliação quer seja para qualquer outro fim. Ressalte-se, por fim, que o trabalho iniciado no 1º período do curso precisa encontrar diálogo e continuidade em disciplinas futuras do curso de Direito, propedêuticas ou técnicas, especialmente, por ser a resenha crítica um dos trabalhos obrigatórios estipulados pela instituição, cujo objetivo maior é o de, por meio da escrita, desenvolver também a competência de reflexão crítica bem fundamentada. Reflexão essa, prioritariamente, em conhecimentos científicos, mas também a inter-relacionando com as demais formas de conhecimentos: filosófico, senso comum, religioso e artístico. Caso o processo de desenvolvimento de escrita não encontre continuidade nos períodos adiante, corre-se o risco de estabilização ou de regressão na escrita, uma vez que os estudantes podem se desinteressar ou despreocupar-se em melhorar, pensando já estarem bons o suficientes, já que obtêm nota satisfatória nos trabalhos relacionados à questão tratada. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não se pode desconsiderar o ethos discursivo, ou seja, a imagem institucional construída pelo que se diz ou o como se diz, que esse estudante pode “produzir” fora da comunidade discursiva, caso seja solicitado a produzir tal gênero textual em outra instância. 12

Letramento acadêmico e argumentação: incursões teóricas e práticas

O estudo realizado ajuda a entender que o desenvolvimento da escrita precisa ser trabalhado em um continuum que auxilie, de fato, ao estudante a entender as peculiaridades do gênero textual a ser produzido. Neste processo, é necessário evidenciar para o estudante o que elaborou de forma adequada e o que e por que precisa melhorar e, ainda, como pode melhorar o texto produzido, no que tange tanto à linguagem, quanto à estrutura retórica e ao propósito comunicativo daquele gênero dentro da comunidade discursiva na qual estiver inserido. Após a pesquisa, é possível considerar com base nos dados empíricos, que além dos aspectos formais, comuns de serem melhorados pelos estudantes, quando solicitada a reescrita do gênero, os movimentos retóricos prototípicos também foram mais bem atendidos em todos os exemplares de textos analisados, imprimindo-se, de forma significativa, qualidade aos textos. O sucesso ou não na produção de determinados gêneros típicos em dadas comunidades discursivas pode funcionar como um fator de inclusão ou pode, direta ou indiretamente, contribuir para a exclusão do estudante de dada comunidade, uma vez que, sem entender a causa de seu “fracasso” na produção dos textos e, não raro, nas notas que dependem de tais produções, o estudante pode se ver desestimulado a prosseguir. Obviamente, o que para alguns pode servir de desestímulo, para outros pode servir de estímulo a, de forma autônoma, tentar descobrir caminhos de desenvolvimento e melhoria na produção de seus textos. Todavia, o trabalho do professor em sala de aula, em disciplinas específicas ou não, pode contribuir indiscutivelmente para o desenvolvimento da escrita proficiente dos gêneros típicos da comunidade discursiva em questão, garantindo assim maior assertividade no processo de aprendizagem da escrita e contribuindo para níveis mais satisfatórios do letramento acadêmico. Essa pesquisa está apenas em sua primeira fase, pois pretende ter continuidade em trabalhos futuros, quando se analisará a produção de resenhas críticas pelas turmas aqui selecionadas, quando estiverem cursando as disciplinas do ciclo intermediário e, posteriormente, no ciclo final 79

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do curso, a fim de se observar longitudinalmente tal continuum, verificandose o desenvolvimento proficiente ou não do gênero resenha pelos estudantes. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALCOVERDE, Maria Divanira; ALCOVERDE, Rossana Delmar. Produzindo gêneros textuais: a resenha. Natal: UEPB/UFRN, 2007. BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: ______. Estética da criação verbal. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 277-326. ______. Marxismo e filosofia da linguagem. 11. ed. São Paulo: Hucitec, 2004. CAMPOS, Magna. Manual de gêneros acadêmicos: ensaio acadêmico, relatório de experimento e artigo científico. Mariana: Edição do autor, 2015. ISBN: 978-85-918919-1-7. CARVALHO, Guido de Oliveira. A influência da revisão colaborativa na produção textual em língua inglesa. Anápolis: Universidade Estadual de Goiás, 2010. Disponível em: http://www.prp2.ueg.br/revista/livros_publicados/livros/colecaoolhares/livro05 _guido_de_oliveira.pdf Acesso em: 26 out. 2015. CUNHA, Jaeder Fernandes. Letramento acadêmico: reflexão e algumas considerações sobre cursos de negócios em faculdades privadas populares. Revista Signum: Estudos de Linguagem, Londrina, n. 15/2, p. 129-151, dez. 2012. HEMAIS, Barbara; BIASI-RODRIGUES, Bernadete. A proposta sociorretórica de John M. Swales para o estudo de gêneros textuais. In: MEURER, J. L.; BONINI, Adair; MOTTA-ROTH (orgs.). Gêneros: teorias, métodos, debates. São Paulo: Parábola Editorial, 2005. p.109-129.

Letramento acadêmico e argumentação: incursões teóricas e práticas

KÖCHE, Vanilda; BOFF, Odete; PAVANI, Cinara. Prática textual: atividades de leitura e escrita. 6.ed. Petrópolis: Vozes, 2009. MOTTA-ROTH, Désirée; HENDGES, Graciela. Produção textual na universidade. São Paulo: Parábola, 2010. MOTTA- ROTH, Désirée. A construção social do gênero resenha acadêmica. In: MEURER, José L.; MOTTA-ROTH, Désirée (Orgs.). Gêneros textuais e práticas discursivas. Bauru, SP: EDUSC, 2002. p. 77-116. TERZI, Sylvia Bueno. A construção do currículo nos cursos de letramento de jovens e adultos não escolarizados. 2006. Disponível em: http://www.cereja.org.br/arquivos_upload/sylviaterzi.pdf. Acesso em: 16 mar. 2015. WILSON, Victória. A institucionalização da escrita no contexto acadêmico: tradição e ruptura. In: GOULART, Cecília; WILSON, Victória (orgs.). Aprender a escrita, aprender com a escrita. São Paulo: Summus, 2013.

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O GÊNERO TEXTUAL NARRATIVA JURÍDICA: ESPECIFIDADES Magna Campos1 Cleberson Ferreira de Morais2 RESUMO: O presente artigo apresenta um panorama acerca do gênero textual narrativa jurídica e visa demonstrar a importância do domínio da redação forense, pelo profissional do Direito, tanto em seu aspecto técnico quanto linguístico, a fim de se alcançar maior eficiência na elaboração das peças prático-profissionais. Assim, abordaram-se as peculiaridades e características da narrativa jurídica, a atenção a ser dada à narração dos fatos, haja vista esta contribuir para uma argumentação mais persuasiva ou convencedora, bem como se apresentou a diferenciação entre as narrativas simples e a valorada e, não obstante, suas implicações na prática jurídica. Desta feita, a aquisição de tais conhecimentos linguísticos contribui para a formação e o aprimoramento do profissional do Direito, preparando-o para uma comunicação mais proficiente em sua prática forense.

Palavras-chaves: Gênero textual; narrativa jurídica; prática jurídica. INTRODUÇÃO: A diferença entre domínio discursivo, gênero e sequência textual ou tipo textual é importante para o profissional do Direito, posto que deva orientá-lo na produção de suas peças processuais, para que possa redigir seus documentos com segurança, competência e profissionalismo, não apenas técnico, mas também linguístico. Esse tipo de preocupação está associada a uma questão maior que precisa estar em pauta nas instituições de ensino superior, realmente preocupadas em melhorar a qualidade dos textos escritos por seus alunos e, assim, contribuir para a formação de um profissional mais bem preparado 1Mestre

em Letras, professora universitária, escritora, membro da Academia de Letras Ciência e Artes do Brasil. Autora dos livros acadêmicos: Ensaios de Leitura Crítica; Leitura e Escrita: nunaces discursivo-culturais; Manual de Redação Científica, Manual de Gêneros Acadêmicos, Manual de Elaboração de Monografia e TCC e dos livros literários: Cutrica e Futrica e a Festa no Pé de Pitanga e Beto Muleta Não, Beto Joia. 2 Especialista em Direito Público e Gestão de Políticas Públicas, coordenador do Núcleo de Prática Jurídica e professor de Direito na Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana.

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para o mercado de trabalho: o letramento acadêmico específico a cada domínio discursivo. Analisar questões referentes ao letramento acadêmico é pensar também as práticas sociais que envolvem a produção de gêneros textuais típicos do meio acadêmico ou pertencente a uma comunidade discursiva a que se esteja vinculado. Todavia, é necessário ter-se em mente que o letramento acadêmico constrói-se sobre um contexto de letramento anterior, referente às concepções e práticas de leitura e de escrita que os graduandos trazem consigo de suas experiências pregressas construídas nos contextos sociais, e, aí se insere a escola cursada desde a Educação Infantil até o Ensino Médio ou Profissionalizante, e, em alguns casos, até mesmo outras instituições de ensino superior. Portanto, já encontra um aluno letrado em outra(s) comunidade(s) discursiva(s), estas entendidas aqui no sentido bakhtiniano, como sendo esfera(s)3 da atividade humana onde os gêneros textuais têm origem. Assim,

Todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem. Compreende-se perfeitamente que o caráter e as formas desse uso sejam tão multiformes quanto ao campo da atividade humana, o que, é claro, não contradiz a unidade nacional de uma língua. O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo de linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de tudo, por sua construção composicional. (BAKHTIN, 2003, p. 261)

Entretanto, vive-se uma problemática comum em várias instituições de ensino superior referente à falta de habilidades e competências 3Ou

campo da atividade humana. 83

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relacionadas à escrita formal proficiente, por parte do público discente, tendo tal falta, não raro, raízes na educação pregressa à graduação. Uma das formas que os cursos de graduação podem atuar com vistas a desenvolver habilidades e competências necessárias ao letramento acadêmico escrito proficiente, talvez seja o estudo sistemático dos gêneros acadêmicos comuns à comunidade discursiva a que o curso é integrante, tanto em disciplinas específicas da área de linguagem, quanto em trabalhos interdisciplinares com as disciplinas da área jurídica, voltadas para o aprendizado teórico e prático da elaboração de peças processuais. O estudo dos gêneros textuais, associados às questões de letramento acadêmico, é salutar, como ensina Meurer e Motta-Roth (2002, p.12), pois se estuda os gêneros para compreender com mais clareza o que acontece quando usamos linguagem para interagir em grupos sociais, uma vez que realizamos ações na sociedade, por meio de processos estáveis de escrever/ler e falar/ouvir, incorporando formas estáveis de enunciados.

Desta forma, estudar a narrativa jurídica apresenta uma peculiaridade interessante, pois esta modalidade tanto pode figurar como um gênero textual à parte, como pode também fazer parte de outro gênero, neste caso, como uma sequência textual de um gênero como a petição inicial, por exemplo. Assim, conforme argumentado em Campos (2012/2015), tomadas as características dos gêneros textuais como parâmetro, pode-se inferir que o desconhecimento do formato de composição, das convenções e dos propósitos comunicativos ou da terminologia apropriada a determinado gênero textual pode acarretar consequências sérias na área jurídica, pois os textos produzidos nesta área são os instrumentos para a própria operacionalização do Direito. Pode-se até mesmo dizer, em conformidade com Pimenta (2007, p.27), que

os variados gêneros textuais, característicos da área do Direito, são instrumentos sem os quais não pode haver a

Letramento acadêmico e argumentação: incursões teóricas e práticas

operacionalização do trabalho forense. Isto pode se tornar um problema grave, uma vez que o mau desenvolvimento desses gêneros (que formam as peças processuais) pode exercer influência direta no processo jurídico, inclusive na sentença jurídica proferida. É por meio da redação desses gêneros textuais que os fatos serão narrados e descritos e, ao serem narrados e descritos, (serão reconstituídos; verdades serão reconstruídas) e os fatos interpretados pelas partes envolvidas nos processos. Parênteses da autora

Desta forma, para tratar da escrita proficiente de tal gênero, este artigo irá tratar das especificidades da narrativa jurídica, explicitando suas características, a organização, a sua relação com a argumentação e os tipos possíveis. 2. AS ESPECIFICIDADES DO GÊNERO TEXTUAL NARRATICA JURÍDICA Todo conflito posto à apreciação do Poder Judiciário surge de fatos. Alguns deles são juridicamente relevantes, porque trazem consequências jurídicas, e outros são irrelevantes, pois a lei não lhes impõe qualquer efeito ou sanção, conforme orienta Rodríguez (2004). Assim, quem narra os fatos deve selecionar aqueles que realmente são importantes. Não é possível argumentar sobre a aplicabilidade dos preceitos jurídicos sem que antes se mostrem os fatos. São eles que vão determinar as normas jurídicas aplicáveis e, portanto, são elementos que devem ser expostos com muita clareza, objetividade e precisão. Alguns textos produzidos por advogados, juízes, promotores, delegados de polícia e por oficiais do registro público apresentam-se em forma de narrativa, senão no texto todo, ao menos em uma parte. Isso acontece:  numa petição inicial;  na contestação;  nos recursos ou contra razões de recurso produzidos por um advogado;  na denúncia; 85

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 

no relatório jurídico; no relatório do inquérito policial feito por um delegado de polícia e outros.

Na petição inicial, peça primordial de um processo judicial, a narração é uma parte fundamental do texto jurídico e nela o advogado, por força do que determina o artigo 282, do Código de Processo Civil, deve em primeiro lugar, qualificar as partes e narrar os fatos importantes do caso concreto, tendo em vista que o reconhecimento de um direito passa pela análise do fato gerador do conflito. Todavia, diferentemente da narrativa literária, nem todos os fatos merecem ser narrados na narrativa jurídica, tendo em vista a especificidade e objetivo desta modalidade textual. Neste sentido, Rodríguez (2004) ensina que é preciso saber selecionar o fato a ser narrado, isso porque ao lado do fato jurídico existem outros fatos que não são relevantes para o reconhecimento do Direito e acabam, quando narrados, comprometendo a principal qualidade do texto narrativo, qual seja, a clareza e a lógica da narrativa. Isso porque quando constatado algum defeito na narrativa dos fatos que comprometa a compreensão do texto, o juiz poderá solicitar ao advogado reescrevê-la, aditando-a, para esclarecer pontos obscuros ou de difícil compreensão. Quando, apesar de emendada a petição inicial, o advogado não conseguir fazer com que o juiz compreenda os fatos, o juiz poderá indeferir a petição inicial, o que significa dizer que a petição não pode ser admitida em juízo, o que seria lastimável para o profissional que tenta dar andamento a uma ação. No exemplo abaixo, divulgado em site da área do Direito, em domínio público, verifica-se no quadro 01, um caso de indeferimento da petição por inépcia causada por narrativa deficiente e incompreensível, da qual não seria possível extrair os fundamentos que poderiam embasar o pedido.

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Quadro 014: Indeferimento de petição por falha na narrativa dos fatos: Dados Gerais Processo: AC 119984 BA 1999.01.00.119984-9 Relator(a): XXXXXX (CONV.) Julgamento: 08/08/2002 Órgão Julgador: TERCEIRA TURMA SUPLEMENTAR Publicação: 03/10/2002 DJ p.210 Ementa: PETIÇÃO INICIAL. NARRAÇÃO DOS FATOS DE FORMA DEFICIENTE E INCOMPREENSÍVEL (CPC, ART. 282, III). INÉPCIA (CPC, ART. 295, I, PARÁGRAFO ÚNICO, II). No caso, da leitura da petição inicial não é possível extrair os fundamentos do fato que poderiam embasar o pedido formulado, donde se conclui que da narração dos fatos, confusa e incoerente, não decorre, logicamente, a conclusão pretendida pelo autor, eis que ela se apresenta deficiente e incompreensível (CPC, arts. 282, III, e 295, I, parágrafo único, II). Dessarte, impõe-se seja extinto o processo, sem apreciação do mérito (CPC, art. 267, I). Quadro 1: Indeferimento de petição por falha na narrativa dos fatos Fonte: Disponível em:http://trf-1.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/2305382/apelacao-civel-ac-119984-ba19990100119984-9. . Acesso em: 14 maio 2013.

2.1 Características da narrativa jurídica Em primeiro lugar, é interessante notar, conforme expõe Rodríguez (2004, p. 162), “que o texto narrativo é figurativo. Isso significa dizer que ele se desenvolve por meio de figuras que atuam, ou seja, personagens que agem de certa maneira transformando a realidade”. Tal característica pode ser mais bem compreendida por meio do exemplo abaixo, disposto no quadro 02: Quadro 02: trecho de narrativa jurídica Sicrana de Tal, ora requerente, viveu em união estável com Sicrano de Tal, ora requerido, por um período de aproximadamente 04 anos, residindo na cidade de Itabirito/MG. Desse relacionamento adveio Fulano de Tal, nascido em 15 de outubro de 2011 (certidão anexa), atualmente com 02 (dois) anos de idade.

4Todos

os nomes serão retirados dos exemplos de textos jurídicos empregados neste artigocapítulo. 87

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Ocorre que o Fulano é portador da síndrome de Artrogripose Múltipla Congênita (laudo médico anexo), que é uma caracterizada por contraturas de várias articulações e rigidez de tecidos moles, presentes desde o nascimento e de caráter estacionário, que ocasionam deformidades nas articulações e requerem muitos cuidados médicos para controle. Devido a essa síndrome, o Fulano não anda e precisa de atenção especial de um acompanhante em tempo quase integral, pois necessita de cuidados especiais. (Para a comprovação das alegações, segue anexo a essa petição, documentação médica). A criança faz tratamento contínuo na cidade de Belo Horizonte e Itabirito, chegando a ir até quatro vezes por mês, em médicos de diversas especialidades. O menor Fulano também faz o uso de bota ortopédica, para impedir a progressão da doença, não possuindo auxílio do SUS na aquisição dessa bota e que, devido ao crescimento da criança, a troca constante é necessária. Ademais, pelo fato de a criança necessitar de cuidados especiais, a requerente ficou impossibilitada de trabalhar para arcar com despesas, vivendo atualmente, apenas com auxílio de familiares e a pensão alimentícia do seu filho mais velho, hoje com 06 (seis) anos. Necessário salientar que, ante a diferença e o descaso do pai quanto à sorte do próprio filho, este vem passando por inúmeras privações, pois os rendimentos de sua mãe não são suficientes para atender a todos as necessidades oriundas para seu bem-estar mínimo, sendo imperiosa a colaboração paterna. A genitora tentou resolver a situação de forma amigável, porém, o requerido se mostra insuscetível a isso. O genitor da criança, mora com os pais, não tendo gastos com casa, tendo, inclusive, adquirido recentemente uma motocicleta, porém continua indiferente à situação do filho e se nega a pagar a pensão alimentícia, alegando não ganhar suficientemente nem para suas despesas. Quadro 02: Petição produzida no NPJ da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana (FUPAC). Fonte: NPJ-FUPAC.

Para comprovar a existência da relação entre a requerente e o requerido, e para evidenciar a necessidade de pensão alimentícia, o advogado tem que narrar os fatos. Para tanto, envolveu personagens ativos e passivos (requerente, requerido, filho mais novo e filho mais velho) bem como situações (a doença do filho mais novo, a necessidade de tratamento e de cuidados especiais, a impossibilidade da mão-cuidadora trabalhar, o descaso do pai frente a essa situação), o cenário (contexto em que ocorreu/ocorre o fato), objetos (a moto adquirida pelo genitor) que assumem importantes posições e nomeações/termos características da linguagem jurídica, no desenrolar dos acontecimentos.

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2.2 Organização dos fatos da narrativa Ao relatar para o advogado os fatos ocorridos, o cliente contará a sua versão do conflito, que, em sua perspectiva, causou-lhe algum prejuízo a que o Direito poderá responder. Esse relato do cliente, geralmente, é marcado pelas questões emocionais, e, não obstante, repleto de rodeios, composto pelo fluxo da memória, portanto, em ordem aleatória, pois se narra à medida que os fatos são lembrados. A esse primeiro relato, dá-se o nome de “narrativa do cliente”. Um passo adiante se refere à narrativa que o advogado irá redigir para iniciar na ação processual. Essa narrativa agora deve buscar evidenciar os fatos relatados pelo cliente, mediante a seleção apropriada de quais são interessantes e necessárias ao caso, a organização dos eventos, os personagens envolvidos e situação desencadeada, e apresenta a função tanto de informar o caso quanto de construir, desde a narrativa, os elementos favoráveis à argumentação e ao pedido em juízo. A essa ordem dos eventos a serem relatados na narrativa jurídica, chama-se de linear, e, de acordo com Rodríguez (2004), essa sequência deve ser respeitada, pois evidencia para o leitor o encadeamento lógico e sequencial entre os acontecimentos, crucial para estabelecer os nexos de causalidade e a clareza textual. Assim, aquele que escreve o texto da narrativa jurídica deve, como primeiro passo, definir os seguintes elementos: IO fato gerador e os sujeitos envolvidos; IIAs informações juridicamente relevantes; IIIAs informações que contribuem para a compreensão das juridicamente relevantes (contexto). (Ou seja, II e III: seleção dos fatos juridicamente importantes e dos demais fatos esclarecedores). IVOrganização dos fatos a serem narrados de forma cronológica.

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Aproveitando-se os estudos da área da linguagem, mais especificamente àqueles relacionados aos movimentos retóricos (organização de fala-escrita), pode-se pensar num esquema potencial do gênero narrativa jurídica, como no proposto a seguir, no quadro 03: Quadro 03: Movimentos retóricos do gênero textual narrativa jurídica. MOVIMENTO 1: CARACTERIZAÇÃO/ IDENTIFICAÇÃO DO FATO GERADOR/ ORDEM CRONOLÓGICA Passo 1: Quem? Quem são os envolvidos na lide? Passo 2: O quê? Qual o fato gerador do conflito? Passo 3: Onde e Quando? Onde e quando os fatos ocorreram? Passo 4: Como? Como se desenvolveu o conflito? MOVIMENTO 2: DETALHAMENTO DO FATO GERADOR Passo 5: Destaque para detalhes importantes Passo 6: Polifonia: outras partes e/ou, outras provas e/ou, outras testemunhas MOVIMENTOS ESPECÍFICOS Passo 7: Por quê? Por que (o motivo) ocorreu o conflito de interesses? Passo 8: Quais/ por isso? O resultado ou as consequências dos fatos narrados (danos)? MOVIMENTO 3: FECHAMENTO Passo 9: Dar um fecho à narrativa (relacionado aos itens 7 e 8) Quadro 03: Movimentos retóricos do gênero textual narrativa jurídica, elaborado com base na teoria de gêneros textuais proposta por Swales (1990) 5.

2.3 A narração a serviço da argumentação Para que o juiz possa conhecer e apreciar os fatos que deram origem à demanda, é preciso, como já mencionado, que os fatos lhe sejam narrados com clareza via texto, escrito para esse fim. A narração ganha, assim, o status de maior relevância, porque serve de requisito essencial à produção de uma argumentação eficiente, tal qual expõe Fetzner (2008). É por essa razão que se costuma dizer que a narração dos fatos está sempre a Movimentos ou organização retórica. SWALES, J. M. Genre Analysis: english in academic and research settings. Cambridge: University Press, 1990. In: HEMAIS, Barbara; BIASIRODRIGUES, Bernadete. 5

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serviço da argumentação, pois vai desde já contribuindo para a persuasão ou convencimento do analista. Todo aquele que aciona o Direito deve relatar a sua versão dos fatos, a qual evidencia as diferentes formas de perceber e interpretar um dado fato jurídico. Neste ínterim, a argumentação jurídica caracteriza-se, especialmente, por servir de instrumento para expressar a interpretação sobre uma questão do Direito, que se desenvolve em um determinado contexto espacial e temporal. Ao operar a interpretação, impõe-se considerar esses contextos, considerar os fatos, as provas e os indícios extraídos do caso concreto e sustentá-la nos limites impostos pelas fontes do Direito. Por isso, um profissional do Direito deve recorrer ao texto argumentativo para defender seu ponto de vista, mas para o sucesso dessa tarefa, precisa ter, antes, uma boa narração, na qual foram expostos os fatos de maior relevância sobre o conflito debatido (CERQUEIRA FILHO, [s.d], p. 2).

Nesta perspectiva, percebe-se a importância de desde a narrativa dos fatos criarem-se as condições de recepção da tese proposta, eliminandose a ingênua postura de se pensar que apenas a parte da fundamentação resguarda o objetivo de argumentar. Assim, o esquema abaixo representa essa divergência de entendimento dos fatos:

Esquema 01: Conflito interpretativo inerente ao fato jurídico. Fonte: Cerqueira Filho ([s.d], p.2).

2.4 Narrativa simples e narrativa valorada

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As narrativas jurídicas constituem, tal qual exposto, elemento importante das peças, já que expõem para o analista da questão os fatos concretos ocorridos, de acordo com a intenção tendenciosa da parte envolvida ou imparcial do relator, além de ancorar a argumentação e o pedido realizados. Podem, conforme interesse do relato, ser de duas espécies textuais: narrativa simples, também chamada de não valorada, e narrativa valorada. O que as diferenciará será, em uma, a presença de apenas um posicionamento técnico-jurídico ao final de relato que busca a objetividade e a imparcialidade diante dos fatos, no caso da narrativa simples, e, em outra, o posicionamento totalmente interessado desde o início do relato, como é o caso da narrativa valorada (tendenciosa). Ou seja, a narrativa simples é uma narrativa sem compromisso de representar qualquer das partes. Deve apresentar todo e qualquer fato importante para a compreensão da demanda, de forma imparcial. Já a narrativa valorada, é uma narrativa marcada pelo compromisso de expor os fatos de acordo com a versão da parte que se representa em juízo. Desta forma, observa-se que as narrativas presentes nos textos da esfera jurídica não são idênticas quanto ao objetivo e ao formato. Neste sentido, observe-se o que é pressuposto na orientação abaixo: São diferentes os objetivos de cada operador do direito; sendo assim, o representante de uma parte envolvida não poderá narrar os fatos de um caso concreto sob o mesmo ponto de vista da parte contrária. Por conta disso, não se poderia dizer que todas as narrativas presentes no discurso jurídico são idênticas no formato e objetivo, visto que depende da intencionalidade de cada um. (ESTÁCIO DE SÁ, 2008, p.10)

E ainda, num relato pessoal, interessa ao narrador não apenas contar os fatos, mas justificá-los. No mundo jurídico, entretanto, muitas vezes, é preciso narrar os fatos de forma objetiva, sem justificá-los. Ao redigir um parecer ou relatório jurídico, por exemplo, o narrador deve relatar os fatos de forma objetiva antes de apresentar a sua opinião técnico-jurídica na fundamentação. (ESTÁCIO DE SÁ, 2008, p.13)

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Já na petição inicial, a narrativa é sempre valorada, pois está a favor de uma defesa de interesses da parte que contrata o advogado. Neste sentido, a escrita desta espécie de narrativa demandará do profissional do Direito um cuidado especial com os elementos que usará para valorar seu texto, como é o caso do emprego de modalizadores textuais, esses importantes recursos que podem influenciar na formação de opinião sobre o caso pelo leitor, afinal, sabe-se que tão importante quanto o que dizer é o como dizer. Em seu Dicionário de Análise do Discurso, Charaudeau e Maingueneau (2006, p.337) definem modalização como sendo um importante fenômeno da enunciação que “permite explicitar as posições do sujeito falante em relação a seu interlocutor, a si mesmo e a seu propósito”, e, mencionando Dubois (1969, p.105), afirmam que a modalização “define a marca que o sujeito não para de imprimir em seu enunciado”. Como ensina Neves (2000), os modalizadores indicam alguma intervenção do falante na definição de validade e de valor de seu enunciado, assim, pode modalizar quanto ao valor de verdade, de certeza, de dever, de possibilidade, de obrigatoriedade, de eventualidade, de restringir domínio dentre outras possibilidades. Um mesmo conteúdo narrativo pode ser escrito empregando-se modalizadores distintos, ou, até mesmo, não empregando nenhum modalizador, o que poderá contribuir para a produção de diferentes sentidos ao texto. Vejam-se nos casos abaixo as mudanças operadas nos sentidos dos enunciados, conforme o modalizador empregado: a) b) c) d)

É certo que meu cliente teve prejuízos com o rompimento abrupto do contrato. Possivelmente, meu cliente teve prejuízos com o rompimento abrupto do contrato. Eventualmente, meu cliente teve prejuízos com o rompimento abrupto do contrato. Não sei se meu cliente teve prejuízos com o rompimento abrupto do contrato. 93

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e)

Realmente, meu cliente teve prejuízos com o rompimento abrupto do contrato. Quadro 04: Exemplos de modalizadores. Fonte: Elaboração dos autores a) A empresa deve reparar os danos causados. b) A empresa precisa reparar os danos causados. c) A empresa pode reparar os danos causados. d) É conveniente que a empresa repare os danos causados. e) A empresa provavelmente reparará os danos causados. f) Jamais a empresa reparará os danos causados. g) É claro que a empresa reparará os danos causados. h) Pressuponho que a empresa reparará dos danos causados. i) Apenas a empresa reparará os danos causados. Quadro 05: Exemplos de modalizadores. Fonte: Elaboração dos autores

Portanto, mais que uma questão gramatical, as narrativas trabalham efetivamente questões discursivas. 2.4.1 Narrativa simples A narrativa jurídica simples ou não valorada pode ser encontrada no relato dos fatos, constituindo uma das partes que estruturam os pareceres jurídicos, cuja estrutura padrão do gênero textual pressupõe a seguinte estrutura: Parecer jurídico indicará: 1. Preâmbulo 2. Ementa 3. Relatório – síntese do caso  Individualização do interessado  Resumo dos fatos e fundamentos  Questões a serem respondidas 4. Fundamentação  Parágrafos teses  Ordem de enfrentamento das questões

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 Redigindo o parecer 5. Conclusão  Fecho Nesta espécie narrativa, importa o desejo de imparcialidade, ao informar os fatos ocorridos sem a inserção de juízo de valor. Geralmente, empregadas pelos profissionais que elaboraram relatórios jurídicos, sentenças e pareceres. O relato dos fatos, no exemplo abaixo, extraído de um parecer jurídico, evidencia a tentativa de objetividade e de impessoalidade na apresentação dos fatos. Código Identificador: xxxxxxxxx ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE PREFEITURA MUNICIPAL DE ALEXANDRIA INSTITUTO DE PREVIDÊNCIA DO MUNICÍPIO DEALEXANDRIA - IPAMA PARECER JURÍDICO [...] RELATÓRIO: Versa os termos do Parecer epigrafado sobre consulta formulada pela Presidência do Instituto de Previdência Municipal XXXX/RN, que solicitara análise fundamentada acerca da possibilidade jurídica de concessão de pensão por morte. Com o óbito da servidora pública municipal, a senhora Fulana de Tal, em 06 de junho de 2010, servidora inscrita na matrícula nº 000000, lotada na Secretária de Educação no cargo de ASG, o seu esposo o Sr. Beltrano de Tal e sua filha Fulaninha de Tal requereram e passaram a ser beneficiárias de uma pensão por morte. Em 19 de abril de 2014, um dos beneficiários o Sr. Beltrano de Tal veio a óbito. Fora formalizado, perante a Autarquia Previdenciária Municipal, pedido de pensão por morte, protocolado em data de 28 de abril de 2014, tendo como pleiteante as Sra. Fulaninha de Tal e Beltraninha de Tal, ambas as filhas da instituidora. Quanto a primeira requerente da pensão por morte, a Sra. Fulaninha de Tal, a mesma permanece sendo beneficiaria da pensão por morte decorrente do óbito de sua genitora, não havendo a necessidade do pedido do requerido benefício tendo em vista o mesmo já ter sido concedido na época do óbito de sua genitora. [...] 95

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Quadro 06: Trecho de relato dos fatos de parecer jurídico. Disponível em:

http://www.jusbrasil.com.br/diarios/82951162/femurn-18-06-2014-pg-2. Acesso em: 08 jul. 2015.

2.4.2 Narrativa valorada Como já se disse neste texto, a narrativa valorada demonstra o total interesse de uma das partes no relato dos fatos, para tanto, além da seleção adequada do que é relevante constar na narrativa, há também o emprego de palavras e expressões modalizadoras que levam à valoração do enunciado. No exemplo abaixo, de uma petição inicial, selecionou-se algumas das expressões que evidenciam a valoração e o posicionamento do advogado diante dos fatos narrados. Antes, porém, de se apresentar o trecho da narrativa valorada, é interessante ressaltar a estrutura prevista para uma petição inicial: É no Código de Processo Civil (CPC), no art. 282, que se encontram os requisitos obrigatórios da petição. A petição inicial indicará: I. O juiz ou tribunal, a que é dirigida; (cabeçalho) II. Os nomes, prenomes, estado civil, profissão, domicílio e residência do autor e do réu; (qualificação) III. O fato e os fundamentos jurídicos do pedido; (dos fatos e do direito) IV. O pedido, com as suas especificações; (pedido) V. O valor da causa; VI. As provas com que o autor pretende demonstrar a verdade dos fatos alegados; VII. O requerimento para a citação do réu. Feita a exposição dos requisitos da petição, veja-se o exemplo mencionado: Ação Cível - Ação de Indenização por Danos Materiais e Morais

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[...] DOS FATOS: O Requerente é proprietário do imóvel constituído pela sala de nº.............., do Edifício .............. à Av. .........., nesta capital, conforme se comprova pela escritura pública de compra e venda anexa (documento nº1). Neste mesmo edifício, o Requerido é proprietário das salas de nº 401, 403 e 405, tendo resolvido, sem razão plausível, levantar uma parede e realizar uma pequena construção na área da varanda a qual é área comum às salas de nº 401, 403,405 e 407 do edifício, conforme estabelecido no art. 5º, parágrafo único da Convenção de Condomínio do Edifício, devidamente aprovada em reunião assembleia em 18 de outubro de 2004. Desse modo, não poderia o Requerido realizar qualquer obra nesta área, sem autorização expressa do Requerente, conforme preceitua o parágrafo único, do art. 1.314, do Código Civil. Indignado, com o intuito de paralisar a obra, o Requerente ajuizou Ação de Nunciação de Obra, cujos autos tomaram o nº............................... .perante e a 24ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte. Ocorre que, para consecução da obra, o Requerido invadiu a sala do Requerente, utilizandoa como depósito de materiais e objetos de trabalho destinados à construção e alojando ali os pedreiros contratados para sua execução. Pois bem, qual não foi a surpresa do Requerente ao deparar-se com esta situação. Indignado, o Requerente solicitou ao pedreiro contratado pelo Requerido, Sr. XXXXX, o qual se encontrava ilegalmente em seu imóvel, que se retirasse, já que não havia concedido autorização ao Requerido para utilização de sua sala. Lavrado o Boletim de Ocorrência nº 384014 (doc. 2), em seu depoimento, o Sr. XXXXX, embora tenha alterado a verdade dos fatos, confessa que estava utilizando a sala do Requerente para guardar objetos de trabalho empregados na obra patrocinada pelo Requerido. Ora, como se vê o Sr. XXXXX confirma o que aduz o Requerente, sua sala foi esbulhada por ordem do Requerido. Ora, é fácil imaginar a alteração do estado emocional do Requerente sua angústia, desespero e irresignação, quando viu sua sala invadida, tendo que ser submetido a vários constrangimentos daí decorrentes. [...] Quadro 07: Trecho da narrativa dos fatos de uma ação de indenização de danos materiais e morais. Disponível em: 97

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http://www.domtotal.com/direito/pagina/detalhe/32217/civel-acao-de-indenizacaopor-danos-materiais-e-morais. Acesso em: 08 jul. 2015.

Note-se, portanto, que os elementos linguísticos destacados ajudam a visualizar o posicionamento do autor em relação aos fatos ocorridos e ao sujeitos envolvidos. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS: Como visto, ao confeccionar suas peças prático-profissionais, o profissional do Direito necessita dominar tanto o conhecimento técnicojurídico quanto às normas de linguagem. Para tanto, é primordial o entendimento sobre os gêneros textuais presentes nas redações forenses, a fim de se conhecer melhor seus objetivos, funcionamentos, características e peculiaridades. Sendo assim, o estudo do gênero narrativa jurídica, seja ela simples ou valorada, poderá propiciar ao estudante ou ao profissional do Direito um desenvolvimento mais proficiente de seus textos jurídicos, pois a ciência das especificidades de tal gênero dá ao autor do texto maior segurança quanto à escrita. Nesse contexto, este breve artigo, no estilo paper6 acadêmico, procurou contribuir para um melhor conhecimento do gênero, abordando aspectos relevantes da narrativa jurídica, em especial no que tange à primazia do relato dos fatos nos documentos jurídicos, os quais devem ser narrados de forma clara, objetiva e precisa, selecionando-se atentamente os itens que mais servirão aos propósitos não apenas narrativos, mas, especialmente, argumentativos. Desse modo, sob o prisma do Direito, os fatos, compreendidos como o acontecimento capaz de gerar uma consequência jurídica, serão narrados a depender do interesse de cada sujeito envolvido na demanda. Isto porque, como apresentado nesta exposição, o texto narrativo é figurativo, o que faz com que seja desenvolvido através da atuação de personagens que 6

Artigo científico curto e objetivo.

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assumirão posições, estarão envolvidos em ações e que são situadas em determinados contextos. Nesta ótica, é imperioso observar que em uma situação de conflito, a narrativa dos fatos, sua interpretação e argumentação jurídica serão utilizadas a depender do lado (autor ou réu), em que se encontra o interesse do profissional do Direito envolvido. Por esse motivo, a prevalência de sua tese dependerá, em grande parte, do modo como esse profissional expõe e organiza a narrativa dos fatos, devendo se preocupar em estabelecer um encadeamento lógico e cronológico dos acontecimentos, o que lhe possibilitará alcançar maior clareza textual, necessária para seu sucesso. Neste sentido, este texto tentou demonstrar que o profissional do Direito pode se valer dos estudos da área de linguagem, principalmente, em relação aos estudos dos gêneros, e, ainda mais especificamente, aos movimentos retóricos de um gênero para melhorar sua capacidade redacional, ampliando e melhorando a abordagem estritamente jurídica dos textos da área. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: CAMPOS, Magna. A construção retórica da narrativa impessoal no âmbito da comunidade discursiva jurídica. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/35940/a-construcao-retorica-da-narrativa-impessoalno-ambito-da-comunidade-discursiva-juridica#ixzz3fsV4Tvjn. Acesso em: 11 jul. 2015. CERQUEIRA FILHO, João Nunes. Teoria da argumentação: caderno de exercícios. Universidade Estácio de Sá, [s.d]. CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. 2.ed. São Paulo, Contexto, 2006. ESTÁCIO DE SÁ. Interpretação e produção de textos aplicadas ao Direito. Rio de Janeiro: Editora Rio/ Saraiva, 2008.

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FETZNER, Néli Luiza Cavalieri (Coord.). Lições de argumentação jurídica: da teoria à prática. Rio de Janeiro: Forense, 2008. NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática de usos do Português. 4. reimp. São Paulo: Editora Unesp, 2000. RODRIGUÉZ, Victor Gabriel. Manual de redação forense. 2.ed.ampl. Campinas: LZN Editora, 2004.

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O SISTEMA RETÓRICO (ETHOS, PATHOS E LOGOS): CONTRIBUIÇÕES PARA A ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA Magna Campos1 Alan de Matos Jorge2 RESUMO Esta pesquisa realizou um levantamento teórico comparativo com o objetivo de analisar as relações existentes entre a argumentação e o direito, mais especificamente, do sistema retórico como recurso importante para a prática jurídica. Para tanto, investigou-se o sistema retórico, os meios de provas técnicas, em seus aspectos clássicos e contemporâneos, envolvendo o ethos, o pathos e o logos e as diferenças técnicas entre “convencer” e “persuadir”, “demonstrar” e “argumentar”. Desta forma, fez-se um estudo critérios3o da retórica, de Aristóteles até a contemporaneidade, realizando-se, em diversos pontos, a análise das teorias de Aristóteles à luz de pensadores da modernidade que se detêm ou se detiveram, em algum momento de seus estudos, sobre a investigação da retórica e dos meios de prova, tal qual o fizeram Perelman, Reboul, Maingueneau, Amossy e Charaudeau dentre outros. Oportunidade essa em que muitas questões e teorias foram reconstruídas e ampliadas com base nas novas percepções e no desenvolvimento mais detalhado das ideias relativas à temática. Essa, certamente, é uma contribuição deste estudo, uma vez que organiza várias questões dispersas em obras distintas dos autores estudados e dialoga, em um único texto, com todas essas contribuições, correlacionando-as. Dá-se ao ethos e ao pathos sua devida importância para a construção de uma argumentação de qualidade, capaz de ser trabalhada com vistas à adesão do auditório. Por fim, apresentaram-se os vários tipos de argumentos lógicos baseado no logos, abordando-se a proposta da nova retórica como elemento capaz de ampliar os horizontes da racionalidade, propondo-se conferir o status de

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em Letras, professora universitária, escritora, membro da Academia de Letras Ciência e Artes do Brasil. Autora dos livros acadêmicos: Ensaios de Leitura Crítica; Leitura e Escrita: nunaces discursivo-culturais; Manual de Redação Científica, Manual de Gêneros Acadêmicos, Manual de Elaboração de Monografia e TCC e dos livros literários: Cutrica e Futrica e a Festa no Pé de Pitanga e Beto Muleta Não, Beto Joia. 2 Advogado. Especialista em Direito Público. Mestre em Direito - Professor de Direito do Consumidor, Direito Tributário, Introdução ao Estudo do Direito, Direito Civil e Direito Empresarial em Cursos de Graduação e Pós-graduação no Estado de Minas Gerais – Professor do Centro Universitário Estácio de Belo Horizonte nos Cursos de Direito, Administração e Ciências Contábeis – Professor Convidado da Universidade Estadual de Montes Claros/MG – UNIMONTES (Pós-Graduação) – Professor da Escola Superior de Advocacia da OAB/MG. Membro da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/MG. Autor de artigos, coautor e organizador de livros na área jurídica. 101

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racional e de razoável a outras formas de raciocínio que o cartesianismo e o positivismo deslegitimaram e excluíram do debate jurídico ao longo do tempo.

Palavras-chave: Argumentação. Direito. Retórica. Sistema Retórico. Meios de prova. Prática Jurídica. INTRODUÇÃO Esta pesquisa tem por objetivo analisar as relações existentes entre a argumentação e o direito, com mais afinco, entre os meios de prova encontrados no sistema retórico e seu uso na prática jurídica. Tal questão apresenta elevada relevância temática, considerando-se que o profissional do Direito deve dominar, no exercício de seu ofício constitucional, três ferramentas fundamentais: a escrita, a fala e a retórica, sendo que esta última será aqui tratada como sinônimo de argumentação, no sentido de referir-se ao estudo das técnicas de argumentação como estratégia de elevação da qualidade do discurso argumentativo mais convincente ou mais persuasivo. Outro ponto que determina a importância da temática diz respeito ao fato de que inúmeros bacharéis em Direito estão se formando sem o adequado conhecimento acerca dos métodos argumentativos e, principalmente, sem a clara noção da importância do sistema retórico para e na prática jurídica. Com base em tais deficiências, vê-se na prática, com certa frequência, bacharéis recém-formados ou formandos que apresentam grande dificuldade na confecção da peça processual a ser produzida na segunda etapa do Exame da Ordem dos Advogados do Brasil ou mesmo nas disciplinas práticas do curso, principalmente, na parte relativa à construção argumentativa da peça, que precisa evidenciar o que se aprendeu do Direito, “saber-dizer-o-Direito”, e a defesa de tal Direito, “saber-defender-o-Direito”. Na mesma linha, também é cada vez mais comum a existência real de peças processuais (petições iniciais, contestações, impugnações, recursos em geral) escritas de forma dúbia, contraditória, e com fraca argumentação, chegando algumas, até mesmo, ao ponto de deixar em dúvida o Juiz e o advogado da parte contrária em relação aos verdadeiros

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anseios, razões e pedidos do cliente (autor/réu) que está sendo defendido naquele caso. Afinal, as decisões jurídicas não podem ser estudadas apenas como um produto legislativo-normativo, na perspectiva cartesiana ou positivista, baseada pura e simplesmente na demonstração ancorada na máxima “contra fatos não há argumentos”. O processo dialógico do “confronto” das partes até a decisão judicial perpassa por questões argumentativas profundas e complexas que não devem ser resumidas, em seu entendimento e estudo, na máxima acima, uma vez que, se assim encarado, se reduziria a justificar as decisões como uma operação matemática em que se efetua uma dedução lógica advinda da extração mecânica de uma conclusão a partir de premissas normativas e fáticas, desconsiderando-se o papel da argumentação como meio de interpretação tanto objetivo quanto subjetivo, e, atrelada a ela os papéis do auditório, dos valores relativos, da equidade para os casos em que a lei não se mostra suficiente como parâmetro de justiça, da razoabilidade em lugar do certo e errado. Assim, dentre outros aspectos relevantes, dedicou-se parte deste trabalho ao exame do sistema retórico e dos meios técnicos de prova argumentativa (ethos, pathos e logos), oportunidade em que se definiu o sistema retórico, em uma versão preliminar, como sendo o sistema discursivo empregado com o intuito de convencer ou de persuadir uma pessoa ou um conjunto de pessoas a respeito de alguma coisa. Ao pesquisar-se o sistema retórico, utilizou-se o método de procedimento comparativo. Por meio dele, objetivou-se a análise dos postulados de Aristóteles ([384-322 a.C], por ser ele um autor clássico de fundamental importância para o estudo do sistema retórico, na perspectiva que interessa a este estudo, qual seja, a retórica como construção no e pelo discurso, frente aos autores – Perelman, Reboul, Maingueneau, Amossy e Charaudeau – que retomam tais postulados para redimensioná-los ou reconstruí-los, oferecendo, com isso, corpo teórico para o emprego de importante recurso e ensinamento argumentativo na atualidade. A presente pesquisa não pretende encerrar a discussão acerca do tema proposto, visto que há muito que ser explorado e um capítulo de livro 103

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não daria conta sequer de aprofundar a temática, todavia se optou por analisar as ideias básicas que norteiam o assunto em referência, contribuindo, desta forma, para um melhor entendimento da inter-relação entre as teorias propostas pelos autores arrolados no que dizem respeito à clara relação existente entre o sistema retórico, a argumentação e o Direito.

2. O SISTEMA RETÓRICO E OS MEIOS DE PROVA

O sistema retórico pode ser definido, em uma versão preliminar, tal qual se apontou na introdução, como sendo o sistema discursivo empregado com o intuito de convencer ou de persuadir uma pessoa ou um conjunto de pessoas a respeito de alguma coisa. Aristóteles ([384-322 a.C.], 2005), autor clássico fundamental para o estudo da retórica e do sistema retórico, propõe-no, no livro Retórica, como se referindo ao estudo dos meios de provas persuasivas, não pertencentes somente à lógica formal, que permitem obter ou aumentar a adesão do auditório às teses/ideias que se lhe propõem ao assentimento, pelo orador. Entretanto, cabe ressaltar que o autor, em seus três livros de a “Retórica”, não se preocupa com o mérito daquilo que está sendo dito, mas como o fato de que aquilo que está sendo dito ser ou não eficiente em termos de persuasão. Assim, a retórica além de uma arte é também uma técnica, ou seja, um meio de produzir discursos eficientes em termos de persuasão, e que sejam eficazes quanto a seu intento de conseguir a adesão da audiência em questões dialéticas – que comportam posicionamentos distintos, como no caso dos discursos político e judiciário, por exemplo (CITELLI, 2002). E, ainda, com o fato de essa técnica “não ter por objetivo examinar o que é persuasivo para tal ou qual indivíduo, mas para tal ou qual tipo de indivíduos” (ARISTÓTELES apud MAINGUENEAU, 2008, p.13). Ainda, pode-se entender que tais questões se assentam sobre raciocínios baseados em verossimilhanças e opiniões, portanto, passíveis de verdade, razoáveis, ao contrário das ciências [exatas] que está baseada na demonstração, na ideia de verdade. Relembrando-se que o “verossímil é,

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pois, aquilo que se constitui em verdade a partir de sua própria lógica. Daí a necessidade, para se construir o “efeito de verdade”, da existência de argumentos, provas, perorações, exórdios [...]” (CITELLI, 2002, p.14). Decorre daí que a demonstração e as inferências formais são, portanto, corretas ou incorretas, já os argumentos, as razões fornecidas a favor ou contra uma tese têm maior ou menos força e fazem variar a intensidade de adesão do auditório (PERELMAN, 1998). Assim, a argumentação não visa à adesão a uma tese porque ela é exclusivamente verdadeira, “pode-se preferir uma tese à outra por parecer mais equitativa, mais oportuna, mais útil, mais razoável, mais bem adaptada à situação” (PERELMAN, 1998, p.156). A argumentação, como bem propõe Perelman (1998), preocupa-se com o discurso dos valores e não com o discurso do real, e explica que, de fato, aquilo que se opõe ao verdadeiro só pode ser falso, e o que é verdadeiro ou falso para alguns deve sê-lo para todos: não se tem de escolher entre o verdadeiro e o falso. Mas aquilo que se opõe a um valor não deixa de ser um valor, mesmo que a importância que lhe concedamos, o apego que lhe testemunhemos não impeçam de sacrificá-lo eventualmente para salvaguardar o primeiro. Não garante, aliás, que a hierarquia de valores de um será reconhecida por outro. (PERELMAN, 1998, p. 147)

Tal pauta valorativa é o que permite justificar o argumento e o posicionamento assumido pelo auditório, sendo este aquele ou o conjunto daqueles os quais o orador quer influenciar por meio da argumentação. Nesta perspectiva, Aristóteles entendia que a finalidade maior do discurso retórico era o de persuadir. Não se trata de discutir a verdade dos fatos, mas de uma verdade construída para os fatos, a única possível (crerser), tratando-se da verossimilhança no discurso que produz efeitos baseados na razão, na emoção e na adesão. Para alcançar tal fim, o orador deveria apresentar provas (písteis) capazes de fazer com que a audiência adira à tese defendida.

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O autor definia as provas como sendo pertencentes ao campo das provas não técnicas (atechnoi) e ao das provas técnicas4 (entechnoi) (FRANSCISCO, 2000). As primeiras referiam-se àquelas que não foram produzidas pelo orador, mas que já existiam (as testemunhas, os depoimentos, os contratos, a lei), as segundas referiam-se àquelas que podem ser elaboradas, pois não preexistem ao discurso, assim dependendo da arte retórica e do esforço do orador. De sorte que é necessário utilizar as primeiras e elaborar as segundas. (ARISTÓTELES, Livro I apud ALEXANDRE JUNIOR, 2005). Neste sentido, as provas técnicas, construídas no discurso, são aquelas que interessam com mais afinco a este estudo. Para firmar a questão, veja-se a passagem abaixo, elaborada por Reboul (2004, p.50): As provas intrínsecas [técnicas] são criadas pelo orador; dependem, pois, de seu método e de seu talento pessoal, são sua maneira própria de impor seu relatório [argumentação]. [...] o texto-lei, prova extrínseca [não técnica] pode ser objeto de uma argumentação intrínseca contraditória, conforme essa lei seja favorável ou desfavorável ao orador [...] do mesmo modo, quem não tiver testemunhas dirá que os testemunhos são subjetivos, muitas vezes comprados, e que é melhor julgar segundo as verossimilhanças [...] o orador transforma assim sua desvantagem em vantagem.

As provas de persuasão (provas técnicas) fornecidas pelo discurso são de três espécies: umas residem no caráter moral do orador (ethos); outras, no modo como se dispõe o ouvinte (pathos); e outras, no próprio discurso, pelo que se demonstra ou parece demonstrar (logos) (ARISTÓTELES, Livro I, apud ALEXANDRE JUNIOR, 2005, p. 37; 96). As provas lógicas (logos) podem ser, por exemplo, por meio de induções, deduções e exemplos. As provas éticas (ethos) podem derivar, por exemplo, da credibilidade de que o orador constrói frente ao auditório, com sua Em algumas traduções opta-se por denominá-las de provas não artísticas (não técnicas) e artísticas (técnicas), como é o caso da tradução do texto aristotélico, Retórica, apresentada por Alexandre Junior (2005). Outras por provas técnicas e extratécnicas, como em Rohden (2010). Outras ainda por provas extra-retóricas (extrínsecas) e intra-retóricas (intrínsecas), como em Reboul (2004). Opta-se aqui, entretanto, pela denominação técnica e não técnica, conforme Francisco (2000). 4

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argumentação, e as provas patéticas ou patêmicas5 da possibilidade de o orador trabalhar com a emoção do público, suas reações (pathos). Aristóteles ensina que, uma vez que a retórica tem por objectivo formar um juízo (porque também se julgam as deliberações e a acção judicial é um juízo), é necessário, não só procurar que o discurso seja demonstrativo e digno de crédito, mas também que o orador mostre possuir certas disposições e prepare favoravelmente o juiz. Muito conta para a persuasão, sobretudo nas deliberações e, naturalmente, nos processos judiciais, a forma como o orador se apresenta e como dá a entender as suas disposições aos ouvintes, de modo a fazer que, da parte destes, também haja um determinado estado de espírito em relação ao orador. (ARISTÓTELES, Livro II apud ALEXANDRE JUNIOR, 2005, p. 159)6

Afinal, preocupar-se com o desenvolvimento e melhoria da competência argumentativa implica entender que “toda argumentação supõe uma escolha que consiste não só da seleção dos elementos que são utilizados, mas também na técnica da apresentação destes” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 136). O ethos e o pathos, assim, comporiam a dimensão subjetiva da persuasão, ao passo, que o logos comporia a dimensão objetiva. Antes de se prosseguir, no entanto, é preciso deixar claro o que se concebe neste capítulo como convencer e como persuadir, uma vez que falar de adesão do auditório e finalidade da argumentação, implica falar deste dois termos, ora tomados por alguns autores como sinônimos, ora distintos. 2.1 Convencer e persuadir Toma-se por pressuposto, baseado na distinção efetuada por Abreu (2008), que convencer está para o trabalho argumentativo baseado na razão, na lógica. Já persuadir está para o trabalho argumentativo voltado para a Alguns autores empregam patéticas, outros, como Charaudeau (2007), patêmica. Como a tradução de a “Retórica” de Aristóteles que se usa aqui é de Portugal, optou-se por não “abrasileirar-se” a grafia, mantendo-se o português original. 5 6

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emoção, para o sentimento e para geração de imagens associada ao caráter, à confiabilidade e à credibilidade, por exemplo. Não obstante, entende-se aí também imbuída a proposta de Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) de que convencer está para levar a crer, enquanto persuadir está para levar a fazer. Assim, os autores diferenciariam os procedimentos argumentativos, com base nos objetivos do orador, afirmando que “para quem se preocupa com o resultado persuadir é mais do que convencer, pois a convicção não passa da primeira fase que leva à ação” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p.30). Entretanto, “para quem está preocupado com o caráter racional da adesão, convencer é mais do que persuadir” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p.30). Para entender a proposta de distinção entre esses dois elementos, contudo, é preciso não se perder de vista a pressuposição de um ouvinte/leitor dotado de razão, participativo, que poderá interferir há qualquer momento na argumentação, que está em inter-relação com aquele que argumenta (o orador). Não se trata, portanto, de um receptor passivo, mas de um participante ativo, conforme a proposta de Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996). Desta forma, pode-se entender que algumas provas ou meio de provas estariam mais voltados para o convencimento (logos) enquanto outras para a persuasão (ethos e pathos). Esta, porém, não é uma dualidade presente na perspectiva retórica de Aristóteles, uma vez que o autor trata da persuasão como fim último da argumentação, não a distinguindo do convencimento. Talvez, por ancorar-se em uma concepção semelhante à de Reboul, em seu livro de Introdução à Retórica, por entender ser inaplicável a distinção entre persuadir e convencer, e incoerente, tendo em vista que o objetivo da persuasão é levar a crer, e levar a fazer torna-se uma das consequências possíveis e não necessária, mas se ao contrário, levar a fazer sem levar a crer, não é retórica (REBOUL, 2004). Entretanto, neste estudo, considera-se a distinção, entendendo-se um mais voltado para a razão, outro mais para emoção e imagem criada. Embora se reconheça que as fronteiras entre eles, em situações reais,

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podem se imiscuir, misturando-se, indistintamente, para obtenção de sucesso na argumentação. 2.2 Ethos Pode-se situar a noção de ethos associada à retórica, à pragmática e à análise do discurso. Das três áreas de estudos, este trabalho se prestará a aprofundar um pouco mais naquela associada à retórica e, em alguma medida, à análise do discurso, por entender que as duas áreas apresentam preocupação com a performance e a imagem construída no discurso, além de tomarem os estudos de Aristóteles como base de elaboração de suas teorias a respeito da questão do ethos. Além disso, entende-se aqui que a perspectiva elaborada pela análise do discurso pode contribuir com o estudo retórico clássico, na medida em que atualiza, amplia e problematiza a questão do ethos nas práticas sociais de hoje. 2.2.1 Ethos: da retórica aristotélica à retórica contemporânea Para Aristóteles, o ethos estava relacionado à apresentação de si no e pelo discurso de modo a inspirar confiança e credibilidade junto ao auditório. Conforme Aristóteles, persuade-se pelo caráter quando o discurso é proferido de tal maneira que deixa a impressão de o orador ser digno de fé. [...] É, porém, necessário que esta confiança seja resultado do discurso e não de uma opinião prévia sobre o carácter do orador; pois não se deve considerar sem importância para a persuasão a probidade do que fala, como, aliás, alguns autores desta arte propõem, mas quase se poderia dizer que o carácter é o principal meio de persuasão. (ARISTÓTELES, Livro I apud ALEXANDRE JUNIOR, 2005, p. 96).

Desta forma, Aristóteles apresenta posicionamento divergente dos retóricos romanos, como é o caso de Cícero, uma vez que o grego percebe o ethos não ancorado em uma autoridade prévia do orador ou em sua reputação, mas em sua capacidade de construir uma imagem crível, 109

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confiável, por meio do discurso. Para o filósofo grego, apreendemos a imagem, a personalidade do orador, através da forma como ele se exprime, através de seu discurso e daquilo que o envolve. Veja-se tal divergência comparando-se o que Borges apresenta como sendo o entendimento de Cícero sobre o ethos: Ethos, para Cícero, era um dado preexistente ao discurso e referente ao caráter do orador, que se apoiava em sua autoridade individual e institucional. Ethos era influenciado e condicionado pelas crenças sociais e políticas do ambiente da república romana. O caráter de um homem, dotado pela natureza, era constante, permanente ao longo de sua vida e passava de pai para filho. Desse modo, na construção do ethos, levava-se em conta o status social do orador, sua reputação, seu modo de vida, sua trajetória familiar e profissional. (BORGES, 2010 apud MELLO, 2012, p. 40)

Na mesma linha de entendimento proposta por Aristóteles, de um ethos construído no discurso, encontra-se a concepção de Reboul (2004, p. 48), para quem o ethos é “o caráter que o orador deve assumir para inspirar confiança no auditório, pois, sejam quais forem seus argumentos lógicos, eles nada obtêm sem essa confiança”. E, embora Perelman e OlbrechtsTyteca não se dediquem especificamente ao estudo do ethos, trata dele quando escreve em seu “Tratado da Argumentação”, sobre o discurso como ato do orador, e afirma que, “com efeito, o orador deve inspirar confiança; sem ela, seu discurso não merece crédito” (PERELMAN; OLBRECHTSTYTECA, 1996, p.362). Aristóteles aponta três qualidades associadas ao ethos do orador: Três são as causas que tornam persuasivos os oradores, e a sua importância é tal que por elas nos persuadimos, sem necessidade de demonstrações: São elas a prudência, a virtude e a benevolência. Quando os oradores recorrem à mentira nas coisas que dizem ou sobre aquelas que dão conselhos, fazem-no por todas essas causas ou por algumas delas. Ou é por falta de prudência que emitem opiniões erradas ou então, embora dando uma opinião correcta, não dizem o que pensam por malícia; ou sendo prudentes e honestos não são benevolentes; por isso, é admissível que, embora sabendo eles o que é melhor, não o aconselhem.

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Para além destas, não há nenhuma outra causa. (ARISTÓTELES, Livro II apud ALEXANDRE JUNIOR, 2005, p. 160).

Neste sentido, Eggs retoma essas três qualidades do ethos e as expande considerando que a prudência nos leva a pensar na competência, na razoabilidade e na deliberação do orador; a virtude marca se o orador é sincero, honesto e justo (ou parece sê-lo) e a benevolência atrela-se ao fato de o orador ser ou parecer ser solidário, prestativo e amável com os interlocutores (EGGS, 2005, p. 32). Assim, pode-se inferir, com base em Charaudeau e Maingueneau (2006), que o ethos adquire em Aristóteles uma dupla significação, pois, por um lado, refere-se a questões relacionadas às virtudes morais que garantem credibilidade ao orador, tais quais as três mencionadas acima: prudência, benevolência e virtude e por outro, comporta uma dimensão mais social, na medida em que o orador persuade ao se exprimir de modo apropriado com seu caráter. Em ambos os casos, o ethos refere-se à imagem de si construído no e pelo discurso e não da pessoa real. Interessante ressaltar a observação que Reboul (2004, p. 48) elabora sobre a construção do ethos pelo discurso, pois, segundo o autor, “o etos7 é um termo moral, ‘ético’, que é definido como caráter moral que o orador deve parecer ter, mesmo que não o tenha deveras”. Assim, refere-se aos “os traços de caráter que o orador deve mostrar ao auditório (pouco importa sua sinceridade) para dar uma boa impressão [...] O orador enuncia uma informação e, ao mesmo tempo, diz: eu sou isto aqui, não aquilo lá” (BARTHES, 1970 apud MAINGUENEAU, 2008, p. 13). Portanto, vê-se que o ethos é distinto dos atributos “reais” do orador. Com base nesse pressuposto, O orador, portanto, não terá o mesmo etos se estiver falando com velhos camponeses ou com adolescentes citadinos. Mas, em todo caso, ele deve preencher as condições mínimas de credibilidade, mostrar-se sensato, sincero e simpático. Sensato: capaz de dar conselhos razoáveis e Na tradução da Martins Fontes do livro de Introdução à Retórica de Olivier Reboul, são grafados desta forma os três termos: etos, patos e logos. 7

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pertinentes. Sincero: não dissimular o que pensa nem o que sabe. Simpático: disposto a ajudar seu auditório. (REBOUL, 2004, p. 48).

O ethos, assim, não se refere a uma representação fixa e limitada, mas dinâmica, construída no e pelo discurso e em coparticipação do interlocutor, pensando-se, claramente, no processo de interação da e pela linguagem. 2.2.2 O ethos discursivo: Amossy e Maingueneau A noção de ethos com o tempo e com os usos tornou-se mais abrangente e ganhou novas roupagens, a fim de atender aos novos espaços de argumentação e de interação intersubjetiva pela linguagem, presentes nas práticas sociais contemporâneas. Em outro trabalho, Campos (2007/2010), expôs-se sobre a proposta de estudo do ethos discursivo, conforme as percepções de Ruth Amossy (2005) e de Dominique Maingueneau (2005), atreladas aos pressupostos da Análise do Discurso. Ao trabalhar a noção de ethos, a Análise do Discurso realiza adaptações e recontextualizações da noção proposta pela retórica clássica, a fim de estender tal noção para novas situações de comunicação, e, portanto, de argumentação a fim de dar conta das complexidades próprias da atualidade e dos avanços proporcionados pelos estudos do tema. Será aqui retomada tal exposição para evidenciar as proposições teóricas dos dois autores acerca do ethos discursivo e sua inserção na cena enunciativa. Para Amossy (2005, p.9), todo ato de tomar a palavra implica a construção de uma imagem de si. Para tanto não é necessário que o locutor faça o seu autorretrato, detalhe as suas qualidades nem mesmo que fale explicitamente de si. Seu estilo, suas competências linguísticas e enciclopédicas, suas crenças implícitas são suficientes para construir uma apresentação de sua pessoa. Assim, deliberadamente ou não, o locutor efetua em seu discurso uma apresentação de si.

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É possível perceber nos estudos de Amossy (2005) sobre a questão do ethos uma variante quanto a essa designação, às vezes, chamando-o de apresentação de si, como na passagem acima, outras como imagem de si. Conforme a autora, o posicionamento discursivo do sujeito é acompanhado por uma imagem desse mesmo sujeito, não só pelo que ele diz, como também pela forma como diz. Defende ainda que a maneira de dizer induz os sujeitos a uma imagem que propicia a boa realização do projeto de fala, além disso, que estamos continuamente construindo uma imagem diante de nós mesmos e dos outros e que isso passa pelo discurso. Diz também que o ethos não seria uma característica puramente linguageira e, nem tampouco, uma característica exclusivamente institucional. Trata-se de uma característica discursiva que se dá na relação entre o linguístico e o institucional (AMOSSY, 2005). Neste sentido, a autora introduz uma importante contribuição, pois expande a questão do ethos não apenas relacionada à persuasão, mas para toda enunciação (AMOSSY, 2010 apud MELLO, 2012). Concepção essa que diverge, em parte, da proposição aristotélica, por entender que não seja necessário que o falante queira persuadir para construir seu ethos, pois não se limita a uma técnica apreendida, já que se efetua propositalmente ou não, em todo e qualquer discurso, dos mais simples aos mais complexos. E a construção desta imagem do e pelo sujeito estaria associada tanto ao lugar de fala quanto a ser papel social a eficácia da palavra não é nem puramente exterior (institucional), nem puramente interna (linguageira) [...] não se pode separar o ethos discursivo da posição institucional do locutor, nem dissociar totalmente a interlocução da interação social como troca simbólica (AMOSSY, 2005, p. 136).

Nesta vertente mais ampliada de entendimento do ethos, encontra-se Maingueneau (2008) para quem a perspectiva que defende “ultrapassa em muito o domínio da argumentação. Para além da persuasão por meio de argumentos, essa noção de ethos permite refletir sobre o processo mais geral de adesão dos sujeitos a um certo discurso” (MAINGUENEAU, 2008, p. 17). Isso posto, propõe que esta “se inscreve num quadro da análise do 113

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discurso. Mesmo que esse quadro seja bem diferente do da retórica antiga, parece que não chega a ser essencialmente infiel às linhas de força da concepção aristotélica” (MAINGUENEAU, 2008, p. 17). De acordo com Maingueneau apud Amossy (2005, p.16), a maneira de dizer autoriza uma construção de uma verdadeira imagem de si e, na medida em que o locutário se vê obrigado a depreendê-la a partir de diversos índices discursivos, ela contribui para o estabelecimento de uma inter-relação entre o locutor e seu parceiro. Participando da eficácia da palavra, a imagem quer causar impacto e suscitar a adesão. Ao mesmo tempo, o ethos está ligado ao estatuto do locutor e à questão de sua legitimidade, ou melhor, ao processo de sua legitimação pela fala.

Imagem associa-se à palavra, portanto, para atingir uma meta que pode ser, entre outras, a adesão do ouvinte. O verbal e não verbal complementando-se. Assim, para Maingueneau (2008), o fato de o sujeito interpretante ter papel ativo na construção do ethos daquele que enuncia torna a questão do ethos ainda mais complexa. O ethos é, então, um efeito de discurso, levando-se em consideração que há vários elementos contingentes num ato de comunicação em relação aos quais é difícil dizer se fazem ou não parte do discurso, mas que influenciam na construção do ethos, tanto pelo enunciador quanto pelo coenunciador, o destinatário. (MAINGUENEAU, 2008 apud MELLO, 2012, p. 43)

Nesta linha de raciocínio, Maingueneau (2005, p. 69), relaciona o ethos à cena de enunciação. Segundo Maingueneau (2001, p.79), “o texto escrito possui, mesmo quando o denega, um tom8 que dá autoridade ao que é dito. Esse tom permite ao leitor construir uma representação do corpo do enunciador”, uma instância subjetiva encarnada que assume o papel do fiador do discurso enunciado e não, evidentemente, do corpo do autor efetivo (MAINGUENEAU, 2005, p. 72). A qualidade do ethos, dessa forma, está

Segundo Maingueneau, o termo “tom” apresenta a vantagem de valer tanto para o escrito quanto para o oral. 8

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associada à imagem do fiador que, confere a si próprio, uma identidade compatível com o mundo que ele deverá construir em seu enunciado. No caso da leitura do texto, o leitor deverá construir “com base em indícios textuais de diversas ordens”, a imagem do fiador, o qual se vê, “assim, investido de um caráter e de uma corporalidade” (MAINGUENEAU, 2005, p.72). Portanto, para Maingueneau o caráter é o conjunto de traços psicológicos que o leitor/ouvinte atribui à figura do enunciador, em função de seu modo de dizer, e a corporalidade remete a uma representação do corpo do enunciador da formação discursiva. Não se trata de traços psicológicos ou da presença física dos enunciadores, mas do que o leitor/ouvinte atribui a eles em função de seu modo de dizer. Dessa forma, o posicionamento discursivo não pode ser dissociado da forma pela qual ele toma corpo e da cena na qual esse corpo tem existência social e histórica. Porém, a cena não é um quadro que exista anteriormente a constituição do ethos. A cena de enunciação e o ethos possuem uma relação paradoxal: o ethos não só pressupõe uma cena, quanto à valida (MAINGUENEAU, 2005). Neste mesmo texto, Maingueneau diz que existe um processo de incorporação que opera em três registros indissociáveis: a) a criação de um ethos do fiador, conferido pelo coenunciador, a partir de indícios da própria enunciação; b) a assimilação ou incorporação desse ethos por parte do coenunciador; c) a constituição de um corpo formado pela comunidade imaginária que comunga na adesão de um mesmo discurso. Tendo como base a Análise do Discurso (AD), Maingueneau afirma que o enunciador não é um ponto de origem estável que se “expressaria” dessa ou daquela maneira, mas é levado em conta em um quadro profundamente interativo, em uma instituição discursiva inscrita em uma certa configuração cultural e que implica papéis, lugares e momentos de enunciação legítimos, um suporte material em um modo de circulação para o enunciado. (MAINGUENEAU, 2005, p.75)

Neste ponto, novamente, a ideia do auditório na argumentação e de seus valores podem ser destacados, somando-se a tais elementos o contexto de produção do discurso argumentativo. Amossy (2005) diz que é necessário 115

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que o orador construa uma imagem do auditório para que, em função de suas crenças e valores, possa se adequar a ele. O ethos configura-se, então, como parte constitutiva da cena enunciativa e não apenas um meio de persuasão, conforme pregava a retórica tradicional. Assim, independentemente de se desejar gerar uma imagem de si e do outro, no discurso, tais elementos já serão construídos. Portanto, saber de seu aspecto fundante e poder trabalhá-lo em prol de aumentar a adesão do auditório, são, sem dúvida, recursos importantes para a argumentação. Para operacionalizar a noção em que o ethos é tanto uma característica linguageira, quanto institucional, proposta por Amossy, encontramos em Maingueneau a pressuposição de uma análise na qual é possível interpretar a situação de enunciação que é validada e pressuposta por determinado ethos discursivo. Desse modo, Maingueneau faz uma divisão da cena de enunciação em três instâncias: cena englobante, cena genérica e cenografia. De acordo com o autor: A cena englobante corresponde ao tipo de discurso; ela confere ao discurso seu estatuto pragmático: literário, religioso, filosófico... A cena genérica é a do contrato associado a um gênero, a uma “instituição discursiva”: o editorial, o sermão [...] Quanto à cenografia, ela é construída pelo próprio texto: um sermão pode ser enunciado por meio de uma cenografia professoral, profética, etc. (MAINGUENEAU, 2005, p.75)

Ao tratar a questão do gênero discursivo, o autor afirma que alguns apresentam maior possibilidade de suscitar cenografias do que outros. Como é o caso da lista telefônica que não admite a cenografia e de gêneros que, por natureza, exigem a escolha de uma cenografia, como os gêneros publicitários, literários, políticos etc. Especificamente o discurso publicitário ou o político mobilizam cenografias variadas, uma vez que, para persuadir seu coenunciador, devem captar seu imaginário, atribuir-lhe uma identidade invocando uma cena de fala valorizada. Citando o exemplo de Amossy (2005, p.16), o candidato de um partido pode falar a seus eleitores como homem do povo, como homem experiente, como tecnocrata etc.

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No caso de uma decisão judicial, por exemplo, a cena englobante refere-se ao discurso jurídico, com suas regras de formação do discurso impostas pelas respectivas instituições que a compõe; a cena genérica à própria decisão judicial, entendida não somente como produto, mas em todo o seu processo de construção até a decisão, prevendo turnos dialéticos entre as partes representantes do autor e do réu, previstos no devido processo legal, e, circunstanciados por lugares e tempos específicos; e o desenrolar das questões e das performances dos sujeitos envolvidos (ethos) configura também a cenografia. Afinal, como já dito, o discurso de manifesta não apenas por meio do verbal, mas também do não verbal, que engloba desde expressões gestuais, faciais, vestimentas, indumentárias, tons até o ethos. Maingueneau propõe então que se esteja de acordo, por mais que a noção de ethos apresente diferenciações e até mesmo divergência dentro das correntes de estudo que o tomam como referência, sobre alguns princípios mínimos, que são: – o ethos é uma noção discursiva, ele se constrói através do discurso, não é uma “imagem” do locutor exterior a sua fala; – o ethos é fundamentalmente um processo interativo de influência sobre o outro; – é uma noção fundamentalmente híbrida (sociodiscursiva), um comportamento socialmente avaliado, que não pode ser apreendido fora de uma situação de comunicação precisa, integrada ela mesma numa determinada conjuntura sócio-histórica. (MAINGUENEAU, 2008, p. 17)

É assim que o autor não descarta a existência de um ethos discursivo e de um ethos pré-discursivo (ou prévio). O discursivo referindo-se à representação elaborada pelo ouvinte/leitor com base no discurso, pois enquanto o sujeito diz, ele também se diz, e o pré-discursivo referindo-se nas representações prévias que o destinatário pode dispor do ethos do locutor, como é o caso da representação que se pode dispor sobre um determinado “juiz” ou “relator” como sendo mais rigoroso ou mais humano em determinados tipos de julgamentos. Esse ethos pré-discursivo do juiz pode, por exemplo, guiar a forma como um advogado pode abordar determinado conteúdo em sua defesa ou acusação. 117

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Afinal, é preciso considerar, como já se salientou neste texto, conforme reforça Ruth Amossy, que o discurso argumentativo não se desenrola no espaço abstrato da lógica pura, mas em uma situação de comunicação em que o locutor apresenta seu ponto de vista na língua natural com todos os seus recursos [...] (AMOSSY, 2011, p. 132).

Meyer (2007) dá aos dois termos usados por Maingueneau (discursivo e pré-discursivo) dois outros nomes, de ethos efetivo em relação ao ethos projetivo, estando o projetivo relacionado à imagem projetada pelo auditório para o orador, a priori, e o ethos efetivo sendo a imagem realmente construída pelo orador, durante seu discurso. Assim, o orador, sabendo que o éthos9 projetivo em princípio difere do éthos efetivo, pode construir seu discurso de modo que a imagem projetada seja efetivamente controlada. Isso pertence ao domínio daquilo que Aristóteles chamava de phrónesis, ou prudência. O orador se orna da virtude que o auditório espera dele e faz uso dessa congruência para comunicar sua mensagem. Ele aparece como é, ao menos é isso que tentará fazer acreditar, ao adotar essa estratégia de adequação, que é uma estratégia de sinceridade, fingida ou real. (MEYER, 2007, p. 53-54).

Essas duas imagens podem favorecer ou prejudicar a persuasão, dependendo, portanto, de suas características serem boas ou más. Amossy (2005, p. 124) a respeito desta questão declara o seguinte: O bom andamento da troca exige que à imagem do auditório corresponda uma imagem do orador. De fato, a eficácia do discurso é tributária da autoridade de que goza o locutor, isto é, da ideia que seus alocutários fazem de sua pessoa. O orador apoia seus argumentos sobre a doxa [saber prévio] que toma emprestada de seu público do mesmo modo que modela seu ethos com as representações coletivas que assumem, aos olhos dos interlocutores, um valor positivo e são suscetíveis de produzir neles a impressão apropriada às 9

Encontram-se, na literatura específica, variações na grafia da palavra ethos, figurando, às vezes, como ethos ou como etos.

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circunstâncias. Desenvolvendo o pensamento de Perelman, pode-se dizer que a construção discursiva do ethos se faz ao sabor de um verdadeiro jogo especular. O orador constrói sua própria imagem em função da imagem que ele faz de seu auditório, isto é, das representações do orador confiável e competente que ele crê ser as do público.

Por isso, diz-se que a retórica é a negociação da diferença, isto é, da distância entre os indivíduos sobre uma questão dada. Convencer e persuadir é diminuir a distância existente entre o orador e seu auditório, conforme ensina Meyer (2007). Dessa forma, até a linguagem deve ser moldada. Se o auditório se constitui de um público culto, é importante o uso, por parte do orador, de um vocabulário refinado, que atenda às exigências daquele determinado público. Por outro lado, se o público representa uma camada menos letrada da população de um país, é de extrema importância o uso de uma linguagem simples e acessível a esse tipo de auditório. (VERZOLA; FIGEIREDO, 2012, p. 97)

Neste sentido, imagem que também se constrói também sobre uma imagem projetada. Amossy (2005) completa o quadro, deixando clara a existência do ethos de si e do ethos do outro, pois no discurso, ao mesmo tempo em que se constrói uma imagem de si pelo e no discurso, também se constrói uma imagem do outro. Num julgamento, por exemplo, ao mesmo tempo em que um dos advogados constrói para si a imagem de confiável, constrói para seu cliente uma imagem de crível e de estar correto.

2.3 Pathos Aristóteles propõe que a construção do ethos concentra sua atenção no orador e na autoimagem construída em seu discurso, já a do pathos concentra sua atenção no auditório. A noção de pathos, conforme o autor, estaria relacionada às emoções (sentimentos e paixões) que o orador deveria suscitar no auditório para persuadi-lo. Assim, esse entendimento concorda com o proposto por Reboul (2004, p. 48), para quem “o pathos é o conjunto 119

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de emoções, paixões e sentimentos que o orador deve suscitar no auditório com seu discurso”. Para o filósofo grego, “as paixões são todos aqueles sentimentos que, causando mudança nas pessoas, fazem diferir seus julgamentos” (ARISTÓTELES apud FONSECA, 2000, P. 14). Define ainda a paixão (pathos) como o que move, impulsiona o homem à ação, e a coloca ao lado do logos. Assim, o bom orador deve ser capaz de despertar paixões nos ouvintes. Não basta colocar-se em dada atitude; precisa fazer como que o ouvinte se sinta emocionalmente inclinado (pathos) a adotar a mesma postura. Agora, a retórica aristotélica ressalta a ‘sedução da alma’ e a coloca ao lado da demonstração (logos). (HEGENBERG, L; HEGENBERG, F., 2009, p. 124)

Como a preocupação de Aristóteles era com a retórica aplicada aos discursos dialéticos, ou seja, aqueles discursos que podiam levar a uma decisão ou outra – travados em debates no espaço político ou jurídico da cidade – o autor elenca 16 tipos de pathos (emoções) que interessam mais diretamente à realidade dos três tipos discursos retóricos estudados por ele. Relembrando- se que esses três tipos de discursos eram: o discurso judiciário (que acusa e defende), o discurso deliberativo (que procura persuadir ou dissuadir) e o discurso epidítico (que elogia ou censura). Essas 16 emoções ou paixões estão dispostas tanto em seu livro II, de a “Retórica”, quando em uma edição lançada no Brasil, intitulada, “Retórica das Paixões”, que destaca o estudo das paixões de sua fonte original para editá-la separadamente. Sloane (2001) citado por Mozdzenski (2012, p. 174) apresenta um quadro resumo destas paixões que se dispõe aqui, a fim de trazer uma visão panorâmica das emoções mencionadas por Aristóteles. É possível visualizar, no quadro, pares contrastivos referentes às emoções. Observe-se:

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Quadro 1: Catalogação das paixões estudadas por Aristóteles. Fonte: Sloane (2001) apud Mozdzenski (2012, p. 174).

Tais emoções, produto da linguagem e do discurso, são respostas suscitadas no auditório pelo discurso do orador. Cabe a este saber usá-las em seu fazer. Assim, O que Aristóteles se dispõe explicitamente a mostrar em sua Retórica é que as paixões constituem um teclado no qual o bom orador toca para convencer. Um crime horrível deverá suscitar indignação, ao passo que um delito menor, absolutamente perdoável, deverá ser julgado com compaixão. Para despertar tais sentimentos, e preciso conhecer os que existem antes de tudo no instigador do auditório. (MEYER, 2000 apud FONSECA, 2000, p. 16)

Desta forma, o orador precisa ter clareza acerca de que as emoções suscitadas que podem impressionar o público de forma favorável (desejável) ou mesmo desfavorável (indesejável) em relação à sua tese. 2.3.1 Pathos: Perelman e Charaudeau Nos estudos atuais sobre a retórica, especialmente em a Nova Retórica, de Perelman e Olbrechts-Tyteca, reconhecidamente o marco do 121

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ressurgimento do interesse de estudo da retórica associada à argumentação, pouco foi discutido sobre a questão do pathos. De fato, o interesse dos autores acima recaía muito mais sobre a questão do logos, e menos sobre o ethos e o pathos, pois propunham uma retórica mais objetiva, sem emoções. Em virtude disso, as emoções figuravam em sua obra como um vício do raciocínio manifestado no discurso, uma espécie de desvio da ordem natural do processo argumentativo empregado por um argumentador que deseja persuadir a todo custo. Desta forma, afetos e sentimentos seriam, nesta perspectiva, recursos empobrecedores do discurso (MOZDZENSKI, 2012). Desta forma, estariam mais para a manipulação que para a argumentação, propriamente. Entretanto, Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996, p. 539) fazem uma ressalva quanto ao uso das paixões quando a propõem como sinônima de valor, assim, em alguns casos: Há que notar que as paixões, enquanto obstáculo, não devem ser confundidas com paixões que servem de apoio a uma argumentação positiva e que habitualmente serão qualificadas por meio de um termo menos pejorativo, como valor, por exemplo.

Desta feita, pode-se inferir que, em muitas ocorrências, quando Perelman vai tratar da questão dos valores, retirando os valores absolutos que dizem por si sós, e relativizando-os em relação aos auditórios específicos, sempre relativos ao valor para quem e em que circunstância, esbarra em questões relacionadas direta ou indiretamente ao pathos. E se Maingueneau e Amossy figuram como importantes nomes para o estudo do ethos, retomado de Aristóteles, reconfigurado e ampliado, em novas acepções e dimensões, Perelman com menos destaque nesta questão, mas, especialmente, Charaudeau são nomes importantes na retomada do estudo do pathos dentro das ciências da atualidade, especialmente da Análise do Discurso.

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Em seu texto, intitulado A patemização na televisão como estratégia de autenticidade10, publicado no Brasil em 2007, Charaudeau trata especificamente da questão do pathos associada à perspectiva da linguagem, denominando a questão ora de pathos, ora de patêmica e de patemização. O autor situa sua perspectiva de abordagem das emoções na Análise do Discurso, diferenciando-a da abordagem psicológica e sociológica, pois em seu entender, o ponto de vista de uma análise do discurso não pode confundir-se totalmente nem com o da psicologia – ela seria social –, nem com o da sociologia – ela seria interpretativa e interacionista. O objeto de estudo da análise do discurso não pode ser aquilo que os sujeitos efetivamente sentem (o que é vivenciar a cólera), nem aquilo que os motiva a querer vivenciar ou agir (porque ou em que ocasião se vivencia a cólera), tampouco as normas gerais que regulam as relações sociais e se constituem em categorias que sobredeterminam o comportamento dos grupos sociais. (CHARAUDEAU, 2007, p. 1)

Portanto, delimitada das abordagens psicológica e sociológica, o escopo da abordagem das emoções na perspectiva discursiva, ainda que seja aqui explicitada em uma citação mais longa, tem por objeto de estudo a linguagem em uma relação de troca, visto que ela é portadora de algo que está além dela. Assim, o medo, por exemplo, não deve ser considerado em função da maneira pela qual o sujeito o manifesta através de sua fisiologia, tampouco uma categoria na qual o sujeito se colocaria a priori de acordo com o que ele é (suas próprias tendências) e tampouco segundo a situação na qual ele se encontra (sozinho diante de um leão), e menos ainda como sintoma de um comportamento coletivo (o pânico), mas como sinal daquilo que pode acontecer ao sujeito a respeito do fato de que ele mesmo estaria em condições de reconhecê-lo como uma “figura”, como um discurso socialmente codificado que, como bem propõe Roland Barthes, lhe permitiria dizer “É realmente isso, o medo!” ou simplesmente “Tenho medo!”. Disponível em: http://www.patrick-charaudeau.com/A-patemizacao-na-televisao-como.html. Acesso em: 22 set. 2015. Publicado também no livro: Mendes E.; Machado I.L. (org.). As emoções no discurso. Mercado Letras: Campinas (SP), 2007. 10

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Este ponto de vista se aproximaria, por conseguinte, ao de uma retórica da visada de efeito que é instaurada por categorias de discursos que pertencem a diferentes ordens (inventio, dispositio, elocutio, actio11), nas quais haveria, entre outras coisas, um “tópico” da emoção – uma “patemia”, diria eu – que seria constituída por um conjunto de “figuras”. (CHARAUDEAU, 2007, p. 1) marcações do original.

Assim, o autor deixa claro que a perspectiva discursiva de estudo das emoções (pathos) não pode se interessar pela realidade manifesta, vivenciada pelo sujeito, uma vez que não apresenta “ferramentas metodológicas” para tal feito. Interessa-se, portanto, pelo processo discursivo pelo qual a emoção pode ser estabelecida, isto é, pelo efeito visado, uma reação afetiva, como sentido em uma situação particular. O pathos, neste aspecto, não se relaciona com a certeza ou garantia de provocar emoções, sentimentos, mas com a expectativa ou possibilidade de gerar estados emotivos nos ouvintes/leitores. Desta feita, Charaudeau (2007) retoma a acepção aristotélica de pathos e a propõe como um efeito possível – efeitos patêmicos do discurso -, que não deve ser confundido com a expressão efetiva do sentimento, para assim identificar as estratégias linguísticas sedutoras usadas para emocionar os outros. O estudioso francês estuda três aspectos específicos para dar um tratamento discursivo sobre as emoções, neste sentido, propõe que “as emoções são de ordem intencional, estão ligadas a saberes de crença e se inscrevem em uma problemática da representação psicossocial” (CHAREAUDEAU, 2007, p. 1). Consoante a isso, para as emoções como sendo de ordem intencional assevera que essas não têm origem apenas nas pulsões do indivíduo, mas possuem também uma base cognitiva, uma espécie de racionalidade subjetiva. Por isso, apresentam intencionalidade, pois “uma vez inscritas nesse ‘quadro de racionalidade’, as emoções se manifestam em um A retórica aristotélica “é decomposta em quatro partes, que representam as quatro fases pelas quais passa quem compõe um discurso, ou pelas quais se acredita que passe” (REBOUL, 2004, p.43). São elas: a invenção (achar o que dizer conforme o tipo de discurso); a disposição, por em ordem o discurso (exórdio, narração, prova, epílogo); a elocução (estilo, clareza, correção gramaticas, ritmo etc.) e a ação (falar, gesticular, dicção, empenho etc.). 11

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sujeito ‘a propósito’ de algo, ou seja, orientam-se para um objeto ou para um outro sujeito que o afeta ou que ele quer combater” (MOZDZENSKI, 2012, p. 190). Para as emoções estando ligadas aos saberes de crença, propõe que essas estariam ligadas ao conjunto de crenças construídas a partir de valores socioculturalmente compartilhados. E seria com base nestas crenças e valores que o sujeito interpretaria uma determinada situação, o que pode lhe suscitar um estado emocional, o que geraria julgamentos de natureza psicológica ou moral pela comunidade (MOZDZENSKI, 2012). Por fim, para as emoções como inscritas em uma problemática da representação, afirma, conforme leitura de Mozdzenski (2012), estar associada a duas representações: uma representação patêmica e uma representação sociodiscursiva. A patêmica ocorre ao se descrever uma situação na qual os ouvintes se engajem e solidarizem emocionalmente como vítimas ou beneficiários. A representação discursiva está ligada aos enunciados que circulam no cotidiano e divulgam valores e contribuem para a constituição de um saber de crenças partilhadas pela comunidade, o que diz muito sobre a maneira como os sujeitos interpretam a situação de enunciação. Ao se pensar o júri popular, por exemplo, com vistas a essas incrementações propostas por Charaudeau, pode-se estudar melhor quais questões ligadas aos efeitos patêmicos podem ser mais bem tratadas e trabalhadas pelo orador na expectativa de se conseguir maior adesão dos jurados. Se ocorrer o interesse em se analisar um efeito patêmico, diz Charaudeau (2007), é preciso considerar os três elementos: situação de comunicação, universo de saber partilhado e estratégia enunciativa. O próprio autor expõe dois exemplos interessantes que evidenciam essa trilogia necessária à análise. Vejam-se os exemplos transcritos abaixo: 1. Para ilustrar o primeiro fenômeno, lembremos-nos da frase “Nada justifica que lancemos aos cães a honra de um homem”, pronunciada por François Mitterrand no momento do enterro de Pedra Bérégovoy. Essa frase é susceptível de produzir diversos efeitos patêmicos: de compaixão frente a 125

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um homem que realizou um ato de desespero, de raiva que denuncia os perseguidores, de dor contida pela morte de uma pessoa próxima. (CHARAUDEAU, 2007, p. 1) 2. nos reportaremos aos efeitos da campanha publicitária da Benetton com o cartaz do HIV que aparece em destaque sobre um braço humano. Seus efeitos não foram os mesmos na França e na Grã-Bretanha. O fato de ela não ter chocado na Inglaterra, diferentemente da França, se deve, provavelmente, a uma diferença dos universos de crenças : na França, a existência da deportação e a experiência dos campos de concentração são susceptíveis de desencadear uma rede inferencial (morte, sofrimento e genocídio) que opera uma aproximação entre esta tatuagem e a dos deportados, e, por conseguinte, um efeito patêmico de dor que provoca indignação e revolta. Já na Inglaterra, onde não houve esse tipo de sofrimento coletivo, esse fenômeno tem apenas um conhecimento informativo dos campos e, por conseguinte, há à disposição uma rede inferencial diferente que não desencadeia efeito patêmico tão extremado. (CHARAUDEAU, 2007, p. 1)

Esse efeito patêmico, conforme explica o autor, pode ser conseguido de forma direta ou indireta. Há palavras que descrevem de maneira transparente as emoções como raiva, angústia, horror, indignação, mas não basta tê-las no discurso, uma vez que não garantem um efeito patêmico no interlocutor. Há palavras que ainda que não descrevam emoções são tidas como boas candidatas do seu desencadeamento, como é o caso de assassinato, conspiração e vítima. E ainda outros enunciados que não comportam palavras patemizantes, mas que são suscetíveis de produzir efeitos patêmicos, como no caso de Basta!, Meu filho era puro, inocente (CHARAUDEAU, 2007). Cabe, portanto, nesta perspectiva, investigar como os efeitos patêmicos são discursivamente encenados. Desse modo, seja entendido como valor ou como emoção, o pathos é importante elemento subjetivo, notado ou não, que contribui para explicar porque assumimos ou abraçamos determinadas teses em relação a outras. 2.4 Logos

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Para tratar da prova retórica logos, é preciso ter-se em mente que Aristóteles concebe a retórica como um poder de formular em cada caso a teoria do persuasivo que convém (ARISTÓTELES apud ALEXANDRE JUNIOR, 2005) e assim, procurar, em qualquer caso, os meios de persuasão disponíveis. Tais meios de persuasão, como já se disse anteriormente, vão dos mais subjetivos, ethos e pathos, aos mais objetivos, logos. Entretanto, como dito, há também, além das provas técnicas – aquelas criadas pelo orador com o fim de persuadir – as provas não técnicas, com as quais o orador deve saber trabalhar, mas no sentido de saber utilizar a seu favor e não o de inventar, elaborar, tal qual no caso das provas técnicas. Lembrando-se, é claro, que o persuasivo é sempre persuasivo para alguém, e, no caso do discurso jurídico, muitas vezes, o objetivo não é convencer ou persuadir a parte adversária, mas o juiz, questão pertinente à cena enunciativa do julgamento jurídico. Neste sentido, as provas técnicas dependem da “imagem” construída do e para o orador (ethos), das disposições suscitadas de quem ouve (pathos) e, enfim, do próprio discurso, de sua linguagem, de sua construção coerente, do raciocínio lógico (logos). Cabe, portanto, assim como se fez para discernir as diferenças entre convencer e persuadir, tratar aqui das diferenciações sobre argumentação e demonstração, para só então, prosseguir-se no estudo da prova retórica logos. 2.4.1 Demonstração x argumentação Perelman e Olbrechts-Tyteca abrem seu livro, “Tratado da Argumentação: A Nova Retórica”, dizendo: A publicação de um tratado consagrado à argumentação e sua vinculação a uma velha tradição, a da retórica e da dialética gregas, constituem uma ruptura com uma concepção da razão e do raciocínio, oriunda de Descartes, que marcou com seu cunho a filosofia ocidental dos três últimos séculos.” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p.1) grifos do original 127

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O que os autores procuram trazer à discussão do meio acadêmico é a importância do discurso ancorado não apenas na lógica formal – baseada na compreensão matemática do mundo, nas evidências e nas provas, pertencentes ao domínio do empírico – como únicas formas, tidas por seus defensores como verdadeiras e legítimas, portanto, única forma de se conhecer algo e de se alcançar a verdade e, desta feita, o conhecimento. Neste sentido, Perelman em outro texto afirma que em princípio, a lógica formal não se ocupa da adesão de qualquer coisa à verdade das proposições em vista. A prova é impessoal, e a sua validade não depende em nada da opinião: aquele que infere num determinado sistema só pode aceitar o resultado de suas deduções. Em contrapartida, toda argumentação é pessoal; dirige-se a indivíduos em relação aos quais ela se esforça por obter a adesão, a qual é suscetível de ter uma intensidade variável. (PERELMAN, 1987, p. 234)

Por sua pessoalidade, a argumentação é voltada para um auditório específico, quem se pretende convencer ou persuadir. Dominação lógica essa, mencionada por Perelman, que se evidenciou imperativa na área jurídica por meio da máxima dita e repetida incansavelmente: contra fatos não há argumentos. Ou seja, entende-se que os fatos são provas cabais para determinar os pareceres dos julgadores, negligenciando-se vários fatores que podem atuar na decisão tomada, não cabendo argumentação contra evidências, imperando o raciocínio demonstrativo e reduzindo o papel e a importância da argumentação nos trâmites judiciais. Perelman e Olbrechts-Tyteca (2009) ponderam que tal atitude, a de considerar que contra fatos não haveria argumentos resulta da ilusão, muito difundida pelos racionalistas, de que os fatos falam por si sós. Neste contexto, a corrente cartesiana tende a considerar “quase como falso tudo quanto era apenas verossímil”, e, como já se evidenciou no início desta seção sobre o sistema retórico, o campo da argumentação é o do “verossímil, do plausível, do provável, na medida em que este último escapa às certezas do cálculo” (PERELMAN, OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p.1). A argumentação trabalha com o passível de ser verdadeiro, com o talvez seja assim, com aquilo que é provável. Neste sentido, entender a

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argumentação implica abandonar o conceito binário puramente de certo e errado, de verdade e mentira, e, adentrar outra via de análise. Antes de ser um modo de comprovação da verdade, o argumento é um elemento de linguagem que visa convencer ou persuadir. Além disso, na argumentação há o ouvinte, o interlocutor como “alvo”, um auditório específico, sendo assim, pessoal, enquanto a demonstração é absolutamente impessoal (RODRÍGUEZ, 2005). Portanto, a validade ou a pertinência dos argumentos utilizados dependem da situação e dos acordos nos quais orador e auditório se imiscuem na adesão ao ponto de vista (doxa). Neste entendimento, a argumentação não se assenta, como dito, sobre o que é verdadeiro, mas sobre o que é verossímil, ou seja, a argumentação não como estratégias de demonstração, mas sim como o espaço de interação entre sujeitos que buscam modificar seus pontos de vistas com base naquilo que eles podem aceitar como crenças e valores razoáveis. (PIRIS; CERQUEIRA, 2012, p. 58)

O esquema a seguir sintetiza essa distinção. Veja-se:

ESQUEMA 1: Argumentação x demonstração. Fonte: Adaptado pela autora do capítulo com base em Santos (2005, p. 87) 129

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A argumentação não se confunde, portanto, com a lógica formal, não sendo equivalente à demonstração, uma vez que, quem argumenta não trabalha com a exatidão numérica. Rodríguez (2005, p.21) ensina que “na matemática e em outras ciências exatas não existem opiniões ou posicionamentos, porque os números não permitem [...] mas é um erro tentar aplicar ao Direito essa mesma premissa”. Pois, o processo não é matemático, mas matéria humana, que pressupõe e implica o contraditório, o debate, a confrontação de pontos de vistas, não existe uma conclusão única, pois acusação e defesa estão certas e erradas ao mesmo tempo, depende das versões e interpretações dos fatos e da lei apresentadas. A demonstração analítica tem por função provar, estabelecer verdades, produzir certezas, já a argumentação dialética tem por função persuadir, convencer. Ingo Voese afirma que, no Direito, embora se tomem por modelos os procedimentos lógicos formais, o fato de não se trabalhar com verdades reveláveis e demonstráveis, mas com teses que podem ou não ser sustentadas, o processo de argumentação pode ser considerado quase-lógico. Assim, nas ciências matemáticas e naturais buscam-se verdades; no Direito, verossimilhanças.[...] uma característica que identifica a argumentação jurídica é a presunção de que cada tese é possível construir uma antítese. (VOESE, 2006, p.32)

Para evidenciar melhor tais características distintivas e outras, acompanhe-se o quadro 2 adiante, retirado de Alves (2009, p. 7):

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Quadro 2: Demonstração x argumentação. Fonte: Alves (2009, p. 7).

Do quadro apresentado, ganha relevo os aspectos relativos ao discurso e à construção argumentativa dirigida a alguém, sem garantias de verdade, buscando a adesão, acrescentando ao debate novas razões/provas técnicas sempre que o outro se interpõe como interlocutor pessoal e que suscetível de aderir ou não à tese apresentada. Reboul (2004) cita Perelman e Olbrechts-Tyteca para apontar cinco características essenciais que distinguirá a argumentação da demonstração. São elas: 1) dirige-se a um auditório; 2) expressa-se em língua natural [diferentemente da linguagem artificial da lógica formal e da matemática]; 3) sua premissas são verossímeis; 4) sua progressão depende do orador; 5) suas conclusões são sempre contestáveis. Todas as cinco confirmam o quadro distintivo traçado acima. 131

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2.4.2 O logos: Aristóteles e Perelman O logos, conforme dispõe Aristóteles, diz respeito aos componentes lógicos que constituem determinado raciocínio no discurso argumentativo. O autor propõe duas estratégias lógicas principais: o entimema (tipo raciocínio dialético dedutivo) e o exemplo (raciocínio dedutivo). O entimema é um silogismo que se forma com poucas proposições, que, em geral, são aceitas pela maioria das pessoas, facilitando a compreensão dos ouvintes e, por conseguinte, sua persuasão. Isso porque o entimema formado de poucas premissas e em geral menos do que o silogismo primário. Porque se alguma dessas premissas for bem conhecida, nem sequer é necessário enunciá-la; pois o próprio ouvinte a supre. Como, por exemplo, para concluir que Dorieu recebeu uma coroa como prémio da sua vitória, basta dizer: pois foi vencedor em Olímpia, sem que haja necessidade de se acrescentar a Olímpia a menção da coroa, porque isso toda a gente sabe. (ARISTÓTELES, Livro I apud ALEXANDRE JUNIOR, 2005, p. 99)

Há dois tipos de entimema, tal qual ensina Aristóteles, o demonstrativo e o refutativo. No demonstrativo, a conclusão é obtida por meio de premissas com as quais os interlocutores concordam; no refutativo, chega-se a uma conclusão que não é aceita pelo adversário. As premissas no entimema, em sua maioria, têm caráter contingencial, diferentes das premissas na lógica formal e na matemática, que apresentam premissas de caráter objetivo. Na sistemática aristotélica, em que se considera que as exigências do discurso retórico são incompatíveis com o exercício da inferência científica, essa última é substituída pela inferência retórica. A dedução silogística corresponde ao entimema, e à indução, o exemplo. (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2006, p. 1992)

Neste quesito, Aristóteles substitui a lógica formal pela lógica retórica. O conceito de exemplo em Aristóteles é diferenciado do que entendemos pelo termo exemplo hoje, conforme ensina Reboul (2004). No

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filósofo grego, exemplo está para o uso de fatos que aconteceram determinada quantidade de vezes e que ajudam a prever fatos futuros, portanto, uma relação de analogia. São de duas espécies: os que provêm de fatos passados, como argumentos históricos, e os que são hipotéticos, criados pelo próprio orador (ilustração), como parábolas e fábulas. É por meio do logos que, muitas vezes, o orador trabalha o pathos e o ethos. Em seu “Tratado de Argumentação”, Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), retomam a prova técnica logos e promovem um expansão de suas estratégias, dedicando a maior atenção desse tratado a essa prova discursiva, em detrimento do ethos e do pathos. Os autores distinguem quatro tipos de argumentos: os quase-lógicos, os que se fundam na estrutura do real, os que fundam a estrutura do real e os que dissociam uma noção. Esses tipos formam os esquemas12 que procuram situações para aproximar as premissas do orador e a tese apresentada, facilitando a passagem para a conclusão a que se busca adesão. Será apresentada aqui uma síntese desses esquemas, uma vez que, por questão de extensão e foco, não será possível discutir os elementos que compõem cada um deles. Isso figura como temática e material para um texto futuro, para além deste capítulo inicial. Nesta perspectiva, pode-se entender que o processo de dissociação ocorre quando há a divisão de uma ideia em partes, a fim de se evitar a incompatibilidade do discurso. São, conforme ensina Perelman e OlbrechtsTyteca (1996, p. 215), “técnicas de ruptura com objetivo de dissociar, de separar, de desunir elementos considerados um todo, ou pelo menos um conjunto solidário dentro de um mesmo sistema de pensamento”. Os argumentos quase-lógicos “são aqueles construídos com base nos princípios lógicos e que visam alcançar a validade partindo de seu aspecto racional. Contrariamente aos princípios lógicos da demonstração, podem ser contestados (DAYOAUB, 2004 apud ALMEIDA JUNIOR, 2009, p. 117). Assim, apesar de a argumentação quase-lógica lembrar a estrutura Esquemas para o Tratado de Argumentação diz respeito aos lugares da argumentação, e se caracterizam por processos de ligação e de dissociação, sendo integrantes de um contexto argumentativo. 12

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formal, eles não possuem o mesmo rigor – pois não têm valor conclusivo – uma vez que não se pode retirar nem da linguagem e nem do argumento sua possibilidade de múltiplas interpretações. Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996, p. 219) esclarecem que “os argumentos quase-lógicos pretendem certa força de convicção, na medida em que se apresentam como comparáveis a raciocínios formais, lógicos ou matemáticos”. Há neste esquema quase-lógico aqueles que se valem das estruturas lógicas (contradição e incompatibilidade, identidade e identificação, transitividade) e os que se valem das relações matemáticas (relação parte com o todo, do menor para o maior – inclusão e divisão –, relação de frequência – probabilidade). Os argumentos baseados na estrutura do real aproximam-se da experiência, por isso, não irão se apoiar na racionalidade lógica e demonstrativa, como os do esquema quase-lógico. Baseiam-se naquilo que o auditório acredita como sendo real, em seu entendimento dos fatos, verdades e presunções, todavia, não no entendimento objetivo desses três elementos, mas nas opiniões e pontos de vista relacionados. Neste sentido, esclarecem Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996, p. 298), “o que nos interessa aqui não é uma descrição objetiva do real, mas a maneira pela qual se apresentam as opiniões a ele concernentes; podendo estas, aliás, serem tratadas, quer como fatos, quer como verdades, quer como presunções”. São divididos em ligações de sucessão e em ligações de coexistência. Os argumentos que fundamentam a estrutura do real, de acordo com Almeida Junior (2009, p. 130), mencionando o estudo de Reboul (2004) sobre a teoria de Perelman, não se apoiam na estrutura do real, mas “criamna; ou pelo menos completam, fazendo que entre as coisas apareçam nexos antes não vistos, não suspeitados”. Pode-se, neste caso, utilizar os recursos voltados para o caso particular (exemplo, ilustração, modelo e antimodelo) ou para o raciocínio por analogia (metáforas). Tais argumentos operam como por indução, tendo em vista que propõem modelos, metáforas, exemplos, ilustrações a partir de casos particulares e analogias e estabelecem generalizações e regularidades. São especialmente interessantes para o Direito, tendo em vista que esta área trabalha com o preceito, com jurisprudências e analogias de caso e decisões.

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O quadro 3 disposto a seguir organiza os tipos de argumentos expostos, conforme ensina Perelman e Olbrechts-Tyteca: Contradição e incompatibilidade Identidade e definição Transitividade

Por ligação

TIPOS DE ARGUMENTOS

ARGUMENTOS QUASE-LÓGICOS

Comparação e reciprocidade Inclusão ou divisão Probabilidade

ARGUMENTOS BASEADOS NA ESTRUTURA DO REAL

ARGUMENTOS QUE FUNDAMENTAM A ESTRUTURA DO REAL

Sucessão Coexistência Modelo Antimodelo Exemplo Ilustração Metáfora

Por dissociação Quadro 3: Tipos de argumentos lógicos (logos) em Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996). Fonte: Elaboração própria.

Desta forma, visualiza-se que Perelman e Olbrechts-Tyteca promovem uma atualização da proposta aristotélica e contribuem de forma relevante e incisiva para novas facetas inteligíveis do logos como uma das provas técnicas de argumentação. E, no caso dos tratadistas, há preocupação com o emprego dessa técnica especialmente na área jurídica, baseada no logos-raciocínio, contextualizado, direcionado a um auditório, atinente com uma razoabilidade/plausibilidade negociada em situações reais de comunicação/interação e não como uma razão “impessoal”, de contornos universais ou evidentes, como no caso da demonstração analítica. 135

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Afinal, a proposta da nova retórica é ampliar os horizontes da racionalidade, conferindo o status de racional e de razoável a outras formas de raciocinar que o cartesianismo e positivismo deslegitimaram e excluíram do debate. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Por meio deste estudo, evidencia-se a grande importância do estudo e do desenvolvimento das habilidades e competências relativas à argumentação, tendo em vista sua inquestionável relação com o Direito, ainda mais na contemporaneidade, em que o profissional da área jurídica deve dominar, cada vez mais, as ferramentas da linguagem e da retórica. Como defendido ao longo do texto, a retórica foi tratada como sinônimo de argumentação, no sentido do estudo das várias técnicas de argumentação como estratégia de melhoria do discurso argumentativo. Ora, sem o correto domínio de tais técnicas, o discurso pode se tornar fraco, incapaz de conquistar a adesão do auditório, e, com isso, promover o seu principal objetivo: convencer ou persuadir o interlocutor do discurso, que em um processo judicial, por exemplo, será o juiz ou os jurados responsáveis pelo julgamento da causa. Na prática forense, é extremamente comum vislumbrar-se casos em que a parte litigante que vai sagrar-se vencedora é exatamente aquela que está amparada por um advogado que domina as técnicas da retórica e que, por isso mesmo, foi capaz de construir, ao longo de todo o processo que culmina na decisão judicial, uma argumentação robusta, coerente e bem fundamentada, capaz de promover o convencimento ou a persuasão do juiz responsável pela prestação jurisdicional do caso concreto. A importância da retórica se agiganta principalmente no julgamento de casos considerados inéditos ou complicados, nos quais não há legislação própria que discipline especificamente a questão trazida para apreciação dos Tribunais Superiores, notadamente no Supremo Tribunal Federal. Cite-se, a título de exemplo, dois históricos julgamentos que são considerados grandes exemplos da importância da retórica na construção das teses que permearam a análise dos casos em comento: a) julgamento

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pelo Supremo Tribunal Federal da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 3510, envolvendo o caso das pesquisas com células-tronco embrionárias, em que o argumento preponderante foi no sentido de que as pesquisas não violam o direito à vida, tampouco a dignidade da pessoa humana; b) julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132, em que o argumento preponderante foi no sentido do reconhecimento da união estável para casais do mesmo sexo. Em tais decisões, pode-se ler, nos votos dos ministros, argumentos tanto do campo do ethos, quanto do pathos e do logos, complementando-se na tarefa de apresentar razões para fundamentar o voto e a decisão. Estes são, repita-se, apenas alguns exemplos que demonstram a importância da retórica e da correta construção dos argumentos para que uma tese possa vir a sagrar-se vencedora, notadamente em processos de interesse da coletividade.

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