Levantamento Diagnóstico Qualitativo Sobre o Grau de Realizaçao do Direitos Humanos das Crianças e Mulheres Indígenas em Dourados/MS

July 23, 2017 | Autor: Diógenes Cariaga | Categoria: Anthropology, Human Rights, Politics, Anthropology of Children and Childhood, UNICEF, ONU
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Descrição do Produto

Centro de Ciências Humanas e Sociais (CCHS) Programa ESCOLA DE CONSELHOS

PRODUTO 05 - RELATÓRIO FINAL ANÁLISE COMPARATIVA DO GRAU DE CONHECIMENTO E REALIZAÇÃO DOS DIREITOS DE MULHERES E CRIANÇAS INDÍGENAS EM DOURADOS E ALTO RIO SOLIMÕES

Coordenador: Prof. Dr. Antonio H. Aguilera Urquiza [email protected]

CAMPO GRANDE/MS Dezembro/2011

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PRODUTO 05 - RELATÓRIO FINAL ANÁLISE COMPARATIVA DO GRAU DE CONHECIMENTO E REALIZAÇÃO DOS DIREITOS DE MULHERES E CRIANÇAS INDÍGENAS EM DOURADOS E ALTO RIO SOLIMÕES 1. Identificação da Instituição: Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul Cidade Universitária, s/nº, Caixa Postal 549 CEP: 79070-900, Campo Grande/MS Fone/fax: (67) 3345-7572 E-mail: [email protected] 2. Instituição proponente: Instituição Proponente: Fundação de Apoio à Pesquisa, ao Ensino e à Cultura – FAPEC CNPJ 15.513.690/0001-50 Responsável pela instituição proponente: Luiz Carlos de Mesquita Endereço Institucional: Rua 9 de Julho, 1922 – Vila Ipiranga, CEP 79081-050, Campo Grande-MS Telefone/Fax: (67) 3346-8090 / 346-4755 E-mail: [email protected] 3. Responsabilidade Técnica: − Dr. Antonio H. Aguilera Urquiza (Antropólogo): Coordenador 4. Equipes: a) UFMS – Região de Dourados/MS − Dra. Vanderléia P. Leite Mussi (Historiadora): Coordenadora Técnica do Projeto − Antonio José Ângelo Motti (Psicólogo - Escola de Conselhos) − Moema Guedes Urquiza (jornalista): Mestranda em educação (UCDB) − José Henrique Prado: Cientista Social – Mestrando em Antropologia (UFGD) − Bruna Egídio Benites: Acadêmica de Ciências Sociais (UFMS) − Priscila de Oliveira Gomes: Acadêmica de Ciências Sociais (UFMS) − Simone Girão – Mestra em História Indígena

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Colaboradores − Professor Dr. Levi Marques Pereira: Antropólogo (UFGD) − Profª Dra. Adir Casaro Nascimento: Pedagoga (UCDB) − Diógenes Egídio Cariaga: Mestrando em História Indígena (UFGD) − Edina de Souza (Guarani da Aldeia de Dourados): Mestranda em Educação (UCDB) b) UEA – Região do ALTO RIO SOLIMÕES/AM • Jose Roberto Faria e Faria (Presidente) • Sebastião Rocha de Sousa (Coordenador) • Luiz Felipe Barbosa Lacerda (Coordenador) • Teresinha Barbosa Rosenhaim (Coordenadora) • Jessica Araujo Cordeiro (Relatora) • Raquel de Souza Assis (Relatora) • Débora Rocha de Souza (Relatora) • Jose Francisco da Silva Neves (Relator) • Mauricio Cavalcante da Cunha (Relator)

Foto 01 – Criança Tikuna

Fonte: Equipe do projeto (UEA) – Outubro de 2011

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO

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Parte I – OBJETIVO DO LEVANTAMENTO DIAGNÓSTICO

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Parte II – REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO

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3.3- ANÁLISE COMPARATIVA DO GRAU DE CONHECIMENTO E REALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DE MULHERES E CRIANÇAS INDÍGENAS EM Dourados/MS e Alto Rio Solimões/AM a) Aspectos convergentes entre as duas realidades b) Aspectos divergentes entre as duas realidades -

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Parte IV – CONSIDERAÇÕES FINAIS -

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Parte V – RECOMENDAÇÕES

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ANEXOS

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Parte III – RESULTADOS

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3.1- ANÁLISE DOS RESULTADOS DO LEVANTAMENTO EM DOURADOS a) Perfil socioeconômico e breve histórico das aldeias de Dourados/MS b) Percepções das crianças e adolescentes indígenas c) Percepções das mulheres Kaiowá, Guarani e Terena d) Percepções das lideranças Kaiowá, Guarani e Terena 3.2- ANÁLISE DOS RESULTADOS DO LEVANTAMENTO NO ARS a) Breve histórico das aldeias da Região do Alto Rio Solimões/AM b) Percepções das crianças, adolescentes e jovens indígenas c) Percepções das mulheres Tikuna d) Percepção das lideranças sobre o grau de realização dos Direitos Humanos de mulheres e crianças na Região do Alto Rio Solimões/AM

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INTRODUÇÃO Neste quinto produto, atendendo ao TOR (Produto 05 – Relatório Final contendo análise comparativa do grau de conhecimento e realização dos direitos das mulheres e crianças indígenas em Dourados e no Alto Rio Solimões), vamos tratar da análise dos resultados e conclusões do levantamento nas aldeias da região de Dourados/MS (aldeias Jaguapiru e Bororó), onde foram realizadas as atividades do LEVANTAMENTO DIAGNÓSTICO QUALITATIVO sobre o grau de realização dos direitos humanos das crianças e mulheres INDÍGENAS Em Dourados/MS e os resultados do mesmo levantamento nas aldeias da região do Alto Rio Solimões/AM: municípios de Tabatinga (aldeias Umariaçu I e II; Belém do Solimões e São Paulo de Olivença. Nas duas regiões as atividades foram realizadas, desde o início, pelas duas equipes (equipe da UFMS e equipe da UEA), a partir do diálogo e articulação com lideranças e representas das aldeias envolvidas e, vários parceiros da sociedade civil e instituições governamentais, como a SESAI (antiga Funasa), FUNAI, Ministério Público Federal, Universidades, Associações Indígenas, Conselho Municipal de Saúde Indígena, Núcleo de Assuntos Indígenas de Dourados, escolas municipais e estaduais, entre outros, na tentativa de melhor ter acesso aos dados das respectivas comunidades (lideranças, mulheres, crianças e jovens) acerca do grau de percepção dos Direitos Humanos de mulheres e crianças indígenas. Este relatório inicia com breve descrição do objetivo do Levantamento Diagnóstico, seguido do referencial teórico-metodológico: caracterização das unidades pesquisadas, caracterização da população indígena nas duas regiões e as estratégias de coleta de dados. Na sequência o relatório traz o resultado da pesquisa nas duas regiões e a análise dos resultados realizada pelos professores doutores envolvidos com este Levantamento Diagnóstico, assim como as conclusões a que chegaram os membros da equipe de realização do projeto nas duas regiões, juntamente com análise comparativa dos resultados das mesmas. Após a finalização e entrega deste relatório, o próximo passo será a socialização destes dados e conclusões com representantes das várias aldeias indígenas na região de Dourados (Jaguapiru e Bororó) e Alto Rio Solimões (Umariaçu I e II, Campo Alegre, Vendaval e Belém do Solimões), juntamente com os parceiros envolvidos nesta ação, em um seminário com data ainda a ser definida. Para a agência financiadora (UNICEF), o último Produto é este RELATÓRIO FINAL contendo a análise comparativa realizada pela equipe de Mato Grosso do Sul.

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PARTE I OBJETIVO DO LEVANTAMENTO DIAGNÓSTICO

O presente Projeto, parte do Programa conjunto [(PC) – “Segurança Alimentar e Nutricional de Mulheres e Crianças Indígenas no Brasil”, envolvendo cinco agências da ONU no Brasil (FAO, PNUD, OIT, OPAS e UNICEF) com efetiva participação do governo brasileiro (Ministério da Saúde, através da Coordenação Geral da Política de Alimentação e Nutrição CGPAN; FUNAI; FUNASA; Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; e ABC), o qual tem como objetivo apoiar as ações locais para a melhoria da segurança alimentar e nutricional de comunidades indígenas do município de Dourados – Mato Grosso do Sul e Região do Alto Rio Solimões (nessa região o Programa será desenvolvido em 03 municípios nas comunidades de Filadélfia e Feijoal (Benjamin Constant-AM), Umariassu I, Umariassu II e Belém de Solimões (Tabatinga-AM), Campo Alegre e Vendaval (São Paulo de Olivença-AM)], tem como objetivo principal: Realizar levantamento diagnóstico a respeito do grau de realização dos direitos humanos das crianças e mulheres indígenas, nas regiões de Dourados/MS e Alto Rio Solimões/AM, com a finalidade de subsidiar futuras ações do Programa Conjunto nas regiões. Quanto aos objetivos específicos, podemos destacar os seguintes aspectos: •

Buscar captar, com o máximo respeito e fidelidade as percepções destas comunidades indígenas a respeito do grau de realização dos direitos humanos de mulheres e crianças;



Aplicar a metodologia do Grupo Focal entre os vários seguimentos das comunidades: mulheres, crianças, jovens e lideranças, após treinamento das equipes do Levantamento Diagnóstico;



Procurar contribuir com estes dados para a busca pela melhoria da qualidade de vida destas comunidades;



Analisar os dados de cada comunidade das duas regiões pesquisadas, respeitando suas especificidades culturais e, no final, comparando estes dados;

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PARTE II REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO

2.1- Considerações iniciais Todas as ações deste Projeto de Levantamento Diagnóstico estão ancoradas nos pressupostos antropológicos de respeito à diversidade sociocultural de todos os povos. Cada cultura significa a forma encontrada por determinado grupo para viver sua relação com a natureza e entre si, através de processos de simbolização. Enfatizando, no caso da criança indígena, como observa Cohn (2005, p.33) Quando a cultura passa a ser entendida como um sistema simbólico, a ideia de que as crianças vão incorporando-a gradativamente ao aprender “coisas” pode ser revista. A questão deixa de ser apenas como e quando a cultura é transmitida em seus artefatos (sejam objetos, relatos ou crenças), mas como a criança dá um sentido ao mundo que a rodeia.

Entendemos, dessa forma, que as culturas, mais que transmissão de seis artefatos (normas e regras, objetos, relatos, crenças) de uma geração a outra, são entendidas como sistemas simbólicos, construções coletivas de sentido às práticas do cotidiano. Sabemos que as crianças, em qualquer cultura, se encontram em uma condição especial de desenvolvimento, quando comparadas aos adultos, necessitando de assistência e cuidados adequados para que se garantam os Direitos previstos nos tratados internacionais, na Constituição Federal e no Estatuto da criança e do adolescente. No caso das mulheres, constata-se que ao longo dos anos, elas foram relegadas ao âmbito da casa e da criação dos filhos, enquanto os homens saíram para o mundo do trabalho, do poder, da guerra e do conhecimento. Os direitos humanos de nossa época nasceram de um ponto de vista mundial que se baseava na opressão das mulheres. Com essa privação, as violações de direitos contra as mulheres se fizeram invisíveis, esvaziadas do seu sentido público e, portanto, da sua significação política. A partir destes pressupostos, nos propusemos com este projeto, entender como os povos indígenas, das duas regiões do Programa Conjunto, a partir da sua cosmovisão, percebem a realização dos direitos humanos das crianças e mulheres das suas comunidades.

2.2- A criança e a antropologia Um primeiro aspecto convergente é a forma como até bem pouco tempo as ciências humanas e sociais enxergavam a criança em nossas sociedades, ou seja, de maneira periférica, como se depreende na reflexão a seguir.

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No âmbito das Ciências Sociais, as pesquisas durante muito tempo relegaram a infância para um plano secundário, ou seja, quase sempre passou despercebida. Podemos afirmar que há pouco tempo a criança passou a ser entendida como um sujeito, um ator social. Na obra, História Social da Criança e da Família, o historiador Philippe Ariès (1981) aponta que no decorrer da Idade Média as crianças eram representadas como mini-adultas. O conceito de infância começou a ser construído a partir da era moderna, pois antes disto “a duração da infância era reduzida ao seu período mais frágil” (ARIÈS, 1981, p.10) e assim que pudesse locomover-se a criança era inserida no mundo adulto sem nenhuma distinção, participando, inclusive, de atividades como jogos e trabalho. Dessa forma, a valorização da infância fortaleceu-se no início do século XX, e apesar dos métodos de investigação e os recursos de análise desenvolvidos pela antropologia “parecerem os mais adequados para desvendar determinados aspectos do universo infantil” (NUNES, 2002, p. 238), as primeiras pesquisas propunham “destaque para o seu papel no campo da educação e da psicologia” (TEIXEIRA, 2002, p, 02). Assim, as pesquisas etnográficas passam a considerar a criança como produtora de cultura e passam a definir a infância como seu objeto de estudo, sobretudo, a partir de 1920 e 1930, com os estudos pioneiros de antropólogos norte-americanos da Escola de Cultura e Personalidade. Inspirados na escola Culturalista, formada por Franz Boas, esses teóricos, entre eles a antropóloga Margaret Mead, preocupavam-se em compreender o significado do ser criança e do ser adolescente em culturas e sociedades diferentes da norte-americana. Segundo Cohn (2005), esses estudos apresentam-se: Definindo a cultura como aquilo que é transmitido entre gerações e aprendido pelos membros da sociedade, esses antropólogos se vêem com a questão de delimitar o que é propriamente cultural e, portanto, particular, e o que é natural, e portanto, universal, no comportamento humano (COHN, 2005, p.11)

Desta forma, nos deparamos, então, com um embasamento teórico importante, para um debate famoso, o que diz respeito à diferença entre nuture e nurture, ou seja, o que é inato e o que é adquirido. Para a Antropologia, de maneira geral, as particularidades culturais não são influenciadas social e culturalmente e não geneticamente. A Escola de Cultura e Personalidade avança entende que a cultura formata a personalidade (COHN, 2005). Estes estudos demonstraram, por exemplo, que o conceito de adolescência é produto da cultura eurocêntrica contemporânea, pois outras culturas tratam de forma completamente diferenciada este estágio da vida humana. Esta observação é importante, no sentido de não importarmos conceitos de nossa sociedade, na tentativa de compreender a realidade de crianças e mulheres dos povos indígenas. Neste sentido, podemos afirmar que os estudos da Escola de Antropologia Cultura e Personalidade têm expressiva importância, tanto no sentido de dar visibilidade aos estudos sobre a infância e a adolescência, quanto na sugestão de métodos de pesquisas. Por outro lado,

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a escola estrutural-funcionalista entende as sociedades como um sistema de papeis e relações sociais observáveis, descritíveis e passiveis de análise. E são esses papéis que definem o lugar que cada indivíduo ocupa na sociedade, além de estarem ligados a outros indivíduos, formando uma totalidade social a ser reproduzida infinitamente (COHN, 2005). Neste sentido, Essa vertente de análise se firma em contraposição à americana, negando o psicologismo que, como afirmam em suas críticas, as definiria. A eles, não interessa a formação da personalidade ideal, mas sim as práticas e processos de socialização dos indivíduos (COHN, 2005, p.15).

Conforme este posicionamento teórico, as gerações se sucedem, e cada indivíduo vai assumindo um papel social que lhe antecede e define sua posição e status social. Dessa forma, a criança é destinada a protagonizar um papel que não a define, suas ações e representações simbólicas não precisam ser estudas, portanto, já que seu lugar no sistema é dado pelo próprio sistema. Desta maneira, O que se estuda então são os grupos de mesma faixa etária, as categorias de idade, as passagens entre categorias de idade, as passagens entre categorias de idade e status sociais, e seu papel funcional. As interações sociais estudadas limitam-se àquelas com que se define como “agentes de socialização”, sejam eles adultos ou membros mais velhos de um grupo de jovens. (COHN, 2005, p. 16)

Nega-se, então, à criança uma participação ativa na formação e definição do lugar que desempenha na sociedade. Elas são entendidas como receptoras dos papéis funcionais que representam ao longo do processo de socialização. Entendendo, aqui, socialização, enquanto “[...] práticas que têm como objetivo a inserção dos indivíduos em categorias sociais que conformam um sistema, o qual deve ser articulado analiticamente pelo pesquisador (COHN, 2005, p. 16). A criança estaria, dessa forma, em um processo de inserção gradativa na sociedade, passando por um estágio formatador da sua consciência acerca dos papéis que desempenhará em sua vida adulta. Tanto a corrente culturalista como a estrutural-funcionalista desempenharam papéis importantes, no sentido de desviar o olhar antropológico para as crianças e adolescentes, a fim de desvendar suas experiências sociais. Seus pressupostos e técnicas também foram adotados em pesquisas no Brasil, que versavam sobre educação e sociedades indígenas, principalmente acerca da inserção dos indivíduos na sociedade e a formação de uma personalidade ideal. Passamos, assim, de um período das ciências sociais, em que as atividades e comportamentos infantis, foram inúmeras vezes, entendidos como se apresentassem pouca ou nenhuma relevância para as investigações antropológicas. Em outras palavras, os lugares da criança nas narrativas etnográficas eram apenas nos tópicos acerca da organização geral da sociedade e/ou da vida doméstica. Certamente, todas essas pesquisas contribuíram significativamente para a construção de uma análise antropológica cuja infância e a

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adolescência ocupassem centralidade, ofertando-nos recursos teóricos, métodos e técnicas de investigação. Contudo, a partir desses estudos pioneiros, e voltando-nos para a realidade das crianças indígenas, podemos afirmar negativamente, que não só às crianças não é inculcada a cultura, ou o de que elas não são simplesmente socializadas, ou seja, inseridas por agentes e práticas socializadoras na sociedade mais ampla. Enfatizando ora a cultura, a aquisição de competências e a formação de personalidades, ora a inserção na estrutura social, essas análises pressupunham um fim último e uma imutabilidade do processo estudado e conhecido pelo pesquisador, marcado que estava pela reprodução social e transmissão cultural (COHN, 2005, p.18). A preocupação da pesquisa neste caso seria provar a “pureza” das práticas culturais das crianças, para constatar se elas realmente estão dando continuidade ou não à socialização proposta pela cultura. Em nosso caso, sabemos que as crianças indígenas são socializadas a partir da própria realidade cultural, o que é, no entanto, confrontado com novas realidades. Desta forma, “era necessário dar um passo adiante, e se fazer capaz de abordar crianças e suas práticas em si mesmas” (COHN, 2005, p.18). É apenas a partir da década 1960, que surgem novos conceitos no debate antropológico, permitindo estudar a criança maneira inovadora. Cohn afirma que essa revisão debruçou-se, principalmente, sobre conceitos de cultura, de sociedade e de ação social.

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Ou seja, não são os valores ou as crenças que são os dados culturais, mas aquilo que os conforma. E o que os conforma é uma lógica particular, um sistema simbólico acionado pelos atores sociais a cada momento para dar sentido às suas experiências (COHN, 2005, p. 19).

Os dados culturais seriam, então, aquilo que formata e atribui sentido a esses conjuntos de valores e costumes, formando um sistema simbólico. Ou seja, “não é mensurável e nem detectável em um lugar apenas – é aquilo que faz com que as pessoas possam viver em sociedade compartilhando sentidos, porque eles são formados a partir de um mesmo sistema simbólico” (COHN, 2005, p. 19). A partir dessa dimensão simbólica, conclui-se que a cultura “não está nos artefatos nem nas frases, mas na simbologia e nas relações que os conformam e lhes dão sentido” (COHN, 2005, p. 20). Desta forma, ainda que determinada sociedade altere, sob algum aspecto, seus costumes, valores e crenças, não perderia a sua cultura, como normalmente se afirma no senso comum. A partir destes debates teóricos, a antropologia passou a enxergar a criança de maneira totalmente diferente e inovadora. Desta maneira, as crianças deixaram de ser entendidas como “mini-adultos” ou enquanto seres incompletos para assumirem a posição de seres plenos a partir de suas próprias experiências e definindo ativamente sua condição. Contudo, no que tange as novas concepções acerca da criança, recentemente elaboradas, podemos notar que, mesmo no âmbito científico, as mudanças demoram algum tempo para se firmarem. Assim, é que apenas no início da década de 1970 surgem possibilidades concretas de avanço nesse

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campo de análise e com o intuito de desvendar a experiência da criança e criando condições para a construção de um novo campo de investigação antropológica. Entendemos, no âmbito deste estudo/relatório, que a criança “deve ser estudada especificamente, por si só, não por extensão dos outros” (SILVA & NUNES, 2002, p.13). No mesmo sentido, “talvez esse campo de investigação quase inexplorado possa se chamar Antropologia da Criança, ou da Infância, uma vez tornado concreto” (NUNES, 2002, 240). Assim, abre-se uma nova possibilidade, “pode criar uma perspectiva de análise que complementa outras mais ortodoxas na Antropologia, permitindo descortinar uma dimensão da realidade social que de outro modo não se revelaria como tal” (NUNES, 2002, p. 240). Neste contexto, as pesquisas que vão se consolidando, atribuindo à criança uma posição de destaque e as entendendo enquanto sujeitos sociais, produtores de cultura e definidores de sua condição social.

2.3- Aspectos Metodológicos Para se atingir os objetivos do levantamento diagnóstico, a metodologia utilizada foi a qualitativa por ser a mais adequada para o objeto investigado. A técnica utilizada foi a de grupo focal. Grupo focal é uma técnica de entrevista direcionada a um grupo organizado a partir de determinadas características identitárias, visando obter informações qualitativas orientadas por um determinado quadro teórico de referência. A escolha por essa técnica se justifica por ser considerado um recurso importante para compreender o processo de constituição das percepções, atitudes e representações sociais de um determinado grupo. As comunidades escolhidas seguiram critérios diferenciados, conforme a região. No caso de Dourados, são duas aldeias (Jaguapiru e Bororó) dentro de uma mesma Terra Indígena (TI). No caso da Região do Alto Rio Solimões, a perspectiva foi a populacional, na busca de abranger o maior número possível de representações das diversas nuanças que tal etnia apresenta em toda a região. Em Tabatinga foram assim escolhidas as comunidades de Umariaçu I e II, além de Belém do Solimões e em São Paulo de Olivença as comunidades de Campo Alegre e Vendaval. Foram envolvidos no levantamento diagnóstico grupos de mulheres/mães, de jovens e crianças, de lideranças indígenas, de rezadores/pajés, de parteiras e de Agentes Indígenas de Saúde (AIS). Além disto, dividimos nossa análise em categorias específicas embasados nos elementos que compõem os índices de desenvolvimento humano, foram elas: Saúde, Educação, Moradia, Cultura e Lazer, Segurança e Renda. Entendemos que através da análise destas categorias, sob um material coletado por uma metodologia extremamente participativa, onde os coordenadores assumiram apenas o papel de facilitador das discussões, sendo que as pessoas da comunidade tomaram a frente das dinâmicas grupais, conseguimos com êxito agrupar material quantitativa e qualitativamente suficiente para inferirmos as informações que se apresentaram ao longo deste relatório.

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Desta forma, o que apresentaremos aqui é a análise geral e comparativa relatada por cada seguimento populacional, ao pensar as categorias sugeridas ao longo dos grupos. Perceberemos que invariavelmente dentro de cada região abordada (Dourados/MS e Alto Rio Solimões/AM), homens e mulheres, jovens e crianças de diferentes comunidades, apresentam problemáticas semelhantes, quando não idênticas frente aos assuntos abordados. A realidade indígena encontra-se em estágios diferentes de contato com outras civilizações, mas em todos os casos parecemos ainda não adaptados a esse mundo moderno, como consequência: a fome, a miséria e a morte (Professor indígena de Vendaval – SPO)

Aproveitamos para breve descrição metodológica das ações desenvolvidas ao longo destes meses, na realização do Projeto de Levantamento Diagnóstico e Qualitativo sobre o grau de realização dos Direitos Humanos das crianças e mulheres indígenas em Dourados/MS e na região do Alto Rio Solimões/AM.

a) Região de Dourados/MS A contratação da equipe pelo UNICEF deu-se no final de 2010, mais precisamente no mês de novembro, quando se iniciou a constituição da equipe que iria realizar as atividades do levantamento, seguindo o critério de experiência e competência na área indígena. Foram escolhidos alunos (Ciências Sociais) e professores (História, Antropologia, Educação). No início de 2011 foram retomadas as atividades do projeto, com a elaboração da metodologia de desenvolvimento das ações, e ao mesmo tempo, o contato inicial com as lideranças das aldeias e representantes dos parceiros. A primeira reunião formal com este grupo deu-se no dia 12 de fevereiro na Escola Tengatui Marangatu – Aldeia Jaguapiru, com a presença de representantes das duas aldeias (lideranças) e representantes dos parceiros: FUNAI, Ministério Público Federal, SESAI, UFMS, entre outros. Após a constituição da equipe do projeto e os contatos iniciais com as Aldeias de Dourados e os parceiros para o início das atividades dos grupos focais, foram realizadas três capacitações da equipe de execução do projeto, durante os meses de fevereiro e março, com conteúdos que tratavam da metodologia, concepções básicas de antropologia e elementos da cultura e história destes povos envolvidos com a ação: Guarani Ñandeva, Guarani Kaiowá e Terena. A realização dos grupos focais deu-se a partir do mês de março e, para a equipe, foi a experiência mais enriquecedora de todo este projeto, em especial, devido ao envolvimento de

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alunos/as de graduação e a possibilidade de ouvir aos vários seguimentos que compõem o tecido social das aldeias de Dourados-MS. Os primeiros grupos focais foram com as lideranças de ambas as aldeias, sempre em separado, seguido pelos grupos focais com mulheres/mães, crianças e adolescentes. Na constituição dos grupos focais, contamos com o auxílio da professora (mestranda) Édina de Souza, Guarani, filha do famoso cacique/liderança Marçal de Souza, e moradora da Aldeia Jaguapiru. Os convites pessoais, em sua grande parte, foram realizados por membros da própria equipe de realização do projeto, ao invés de contar com os agentes indígenas de saúde, como programado inicialmente. Foi agendado com antecedência com as lideranças das respectivas aldeias o convite para cada pessoa envolvida no grupo focal. As datas foram marcadas aos sábados, para facilitar o acesso dos que trabalham e/ou freqüentam a escola e apenas um grupo no domingo. Para cada grupo focal a duração média foi de 02 a 03 horas de conversa, ou seja, meio período. Dessa forma, foi possível realizar, em alguns casos, dois grupos focais por dia. Os encontros aconteceram no NAM (Núcleo de Ações Múltiplas – Aldeia Bororó) e na Escola TENGATUI (Aldeia Jaguapiru), utilizando salas disponíveis e materiais de consumo: cartolinas, lápis, canetas, papel sulfite, entre outros. Foram utilizadas várias atividades (minipalestra, figuras, músicas, etc.), com a intenção de facilitar a comunicação e a captação dos dados referentes à percepção do nível de realização dos Direitos Humanos entre os seguimentos das mulheres e crianças indígenas destas aldeias. Foto 02 – Lideranças da Aldeia Jaguapiru

Fonte: Equipe do Projeto (UFMS), março de 2011.

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Durante a realização dos grupos focais foram feitas fotos e filmagens, sempre com autorização dos participantes, assim como alguns depoimentos mais significativos e a técnica da “observação participante” – observação e registro de falas e atitudes durante a realização das atividades dos grupos focais. Após a realização de cada grupo temático, começaram a ser compilados os dados pelos alunos estagiários (transcrição das fitas e digitação do material), para posterior análise da equipe do projeto. Após a realização dos grupos focais nas aldeias Jaguapiru e Bororó – Dourados/MS, a equipe deu continuidade ao processo de transcrição das fitas e reelaboração das anotações de cada grupo focal, para posterior sistematização pelos professores. No processo de sistematização, privilegiou-se a divisão do material por seguimentos: mulheres, lideranças e crianças, como forma de organizar a reflexão teórica e sistematização dos dados empíricos.

b) Região do Alto Rio Solimões/AM A contratação da equipe pelo UNICEF deu-se em meados de 2011, quando iniciou a constituição da equipe que iria realizar as atividades do levantamento, seguindo o critério de experiência e competência na área indígena, com o apoio da Universidade do Estado do Amazonas. No final de agosto e início de setembro de 2011 foi realizada a capacitação da equipe do Levantamento da Região do Alto Rio Solimões, ministrada por membros da equipe de Dourados/MS (prof. Dr. Antonio Hilario A. Urquiza e a acadêmica de Ciências Sociais da UFMS, Bruna Egídio Benites), durante o período de uma semana. Foram discutidos os temas da elaboração da metodologia de desenvolvimento das atividades, e ao mesmo tempo o destaque para o contato inicial com as lideranças das aldeias e representantes dos parceiros. Além do enfoque dado aos elementos da metodologia (grupos focais) os conteúdos da capacitação da equipe tratavam do cronograma, elaboração das questões, detalhes da execução e transcrição dos dados, assim como alguns elementos básicos de antropologia e elementos da cultura e história destes povos indígenas envolvidos com a ação: Guarani Ñandeva, Guarani Kaiowá e Terena em Mato Grosso do Sul e, em especial, o povo Tikuna na Região do Alto Rio Solimões. Após a capacitação da equipe em setembro deu-se o início das atividades de contato e primeiras reuniões nas aldeias, seguida nas semanas posteriores, da realização dos respectivos grupos focais, a partir dos seguimentos: lideranças, representantes das aldeias, mulheres, jovens e crianças. Os grupos focais foram realizados de maneira simultânea por quatro equipes constituídas de um coordenador e dois relatores, com duração de cerca de duas horas cada

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uma, e foram realizados entre os dias 22 de setembro e 09 de outubro deste ano. As atividades da comunidade Umariaçú I se iniciaram no dia 27/09/2011 com os Grupos Focais de mulheres/mães e lideranças. No dia 04/10/2011 foram realizados os Grupos Focais de jovens e crianças. As reuniões foram realizadas na Escola Municipal da Comunidade do Umariaçú I, nos períodos matutinos e vespertinos. As atividades do Levantamento Diagnóstico da comunidade Umariaçú II se iniciaram no dia 22/09/2011 com os Grupos Focais de jovens e crianças. No dia 24/09/2011 foram realizados os Grupos Focais de mulheres/mães e lideranças. As reuniões foram realizadas na Escola Municipal João Cruz, nos períodos vespertinos e noturnos. No mês seguinte, no dia 07/10/2011, foram realizadas as atividades do Levantamento Diagnóstico na comunidade de Belém do Solimões, com os Grupos Focais de jovens, crianças, mulheres/mães e lideranças. As reuniões foram realizadas na Escola Estadual de Belém do Solimões, apenas durante o período matutino. Foram escolhidas, também, as comunidades de Campo Alegre e Vendaval, no Município de São Paulo de Olivença/AM, onde os indígenas da etnia Ticuna, representam mais de 70% aproximadamente da população geral indígena. A maioria das pessoas vive em área indígena demarcada e homologada pela União. Possuem bastante autonomia social e política na cidade de São Paulo de Olivença; por outro lado, constata-se a influência de muitos elementos da cultura não indígena permeando seu espaço cotidiano, devido, sobretudo, à proximidade geográfica. Foto 03 – Crianças Tikuna – Umariaçu I

Fonte: Equipe do Projeto (UEA), setembro/2011.

As parcerias com Prefeituras, Secretarias de Educação, Diretores de Escolas e representante da FUNAI, para a realização das atividades, ocorreram de maneira positiva no sentido de auxiliar nas ações em campo e alguns materiais para o relatório.

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Após intenso trabalho de realização dos grupos focais pelas equipes e transcrição dos dados (auxiliares), em meados de outubro de 2011 a equipe entregou o resultado do Levantamento Diagnóstico Qualitativo sobre a percepção de Direitos Humanos de Mulheres e Crianças na Região do Alto Rio Solimões/AM, contendo a transcrição de todas as oficinas – grupos focais e, no final do mês de Novembro de 2012, o Relatório final do Levantamento Diagnóstico naquela região.

Foto 04 – Criança Tikuna

Fonte: Equipe do Projeto (UEA), outubro/2011.

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PARTE III RESULTADOS

Na sequência, trataremos dos resultados da análise dos dados do levantamento realizado nas aldeias de Dourados/MS e na região do Alto Rio Solimões/AM, seguida, no final deste RELATÓRIO FINAL (item 3.3), da análise comparativa entre as duas realidades. Os dados brutos das entrevistas (grupos focais) foram compilados e enviados em relatório anterior.

3.1- ANÁLISE DOS RESULTADOS DO LEVANTAMENTO EM DOURADOS/MS Este item se inicia por breve perfil socioeconômico das aldeias da região de Dourados/MS, seguido das percepções do grau de direitos humanos de crianças e jovens, mulheres e lideranças indígenas destas aldeias.

a) Perfil socioeconômico e breve histórico das aldeias de Dourados/MS Antes de entrarmos na análise, propriamente dita, dos dados do levantamento realizado, nos meses de março e abril de 2011, vamos apresentar, ainda que rapidamente, alguns elementos do contexto socioeconômico e histórico destas aldeias da região de Dourados/MS. Abaixo o mapa do Estado com os municípios e 06 povos indígenas, faltando o povo Kiniquinau, Atikum reconhecidos pela FUNAI e outros ainda não reconhecidos (Kamba, Xamacoco). MS e os Municípios com populações indígenas

Fonte: FUNASA, 2009.

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1. Perfil socioeconômico das aldeias de Dourados/MS As aldeias Jaguapiru e Bororó fazem parte da Terra Indígena (TI), historicamente demarcada pelo SPI e conhecida como Francisco Horta Barbosa, com uma área de 3.560 hectares, localizada no Município de Dourados/MS, cortada pela rodovia Dourados / Itaporã (MS 156), Km 05 e, com uma população aproximada de 12 mil pessoas (ao redor de 2.850 famílias). Trata-se de realidade única no Brasil, a densidade populacional e a proporção de terras, o que acabou gerando uma situação completamente anômala aos padrões de organização social e reprodução cultural do povo Guarani (Kaiowá e Ñandeva) e Aruak (Terena). Além dessa densidade populacional e a exigüidade do território, os recursos naturais estão profundamente comprometidos: não há matas, caça e rios para pesca, além da quase inexistência da prática da coleta (frutos, lenha, etc.). Neste cenário, acrescenta-se a precariedade da infra-estrutura (saneamento básico, estradas, áreas de lazer) e as dificuldades para geração de renda por parte dos habitantes. Mato Grosso do Sul, Município de Dourados e a TI

Fonte: NEPPI – Núcleo de Estudos e Pesquisas das Populações Indígenas. Acesso em 01/07/2011; Disponível em: .

Os problemas enfrentados por esta população vão desde conflitos fundiários: ocupações de novas áreas e acampamentos provisórios, altas taxas de densidade demográfica, exploração ilegal de recursos naturais em suas terras e descumprimento de prazos de demarcação de terras, até condições sobremaneira precárias de saúde e trabalho. A exploração da mão-de-obra indígena no regime de trabalho nos canaviais, tantas vezes denunciada, em

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especial pelo Ministério Público Federal, é somente uma das condições a que os índios são hoje obrigados a se submeter para simplesmente continuarem sobrevivendo, visto que a terra disponível ao plantio é insuficiente e a assistência à produção agrícola é ínfima (CTI, 2008, p. 16). Esse cenário obriga a população indígena a uma dependência externa cada vez maior, fazendo-a buscar novas formas de sobrevivência. Ela passa a atuar como assalariada, especialmente nos canaviais e nas usinas de produção de açúcar e álcool, alguns conseguem atual, dentro das próprias aldeias em cargos de professores, serviços gerais em escolas, postos da FUNAI, agentes de saúde, entre outros (BRAND, 2003).

Trata-se, na verdade, de uma situação limite de convivência, em que se percebe o total “esgarçamento” do tecido social, onde se ressente dos limites mínimos para uma saudade convivência em sociedade. Esses conflitos que atingem as aldeias pesquisadas são agudizados pela proximidade do centro urbano (a cidade de Dourados, a segunda maior do estado) e o constante trânsito de não-índios dentro da área indígena, aumentando o consumo e tráfico de drogas ilegais. É importante ressaltar que todos esses elementos, de algum modo, aparecem nas falas das pessoas (mulheres, crianças e jovens, lideranças) que participaram dos grupos focais nas aldeias Jaguapiru e Bororo no primeiro semestre de 2011: sensação de insegurança, medo, inconformidade com a situação da saúde e educação, desrespeito com os direitos básico de cidadania, falta de oportunidade para os jovens, preconceitos de toda ordem, entre outros.

População, extensão territorial e densidade demográfica Aldeias

População

Famílias

Área (Km)

Densidade (Km)

JAGUAPIRU

5.848

1.429

34,6 Km2

333,092 pessoas/Km2

BORORO

5.677

1.310

--

--

TOTAL

11.525

2.739

--

--

Fonte: SIASI/FUNASA/SESAI, 2010.

Outro grande problema e que tem chamado a atenção da mídia e de estudiosos no Brasil e do mundo é o tema do suicídio. Prática recorrente nos últimos anos entre os Kaiowá e Guarani, as mortes de crianças indígenas por desnutrição e as elevadas taxas de criminalidade que afligem os índios são umas das conseqüências da constante pressão exercida sobre estas populações por parte das diferentes frentes de expansão econômica na região: um cenário histórico de exploração, opressão e desrespeito à diversidade por parte do poder público e da sociedade envolvente de maneira geral (CTI, 2008, p. 17).

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Muitas lideranças procuram escapar desta situação, buscando novas categorias de compreensão e enfrentamento do contexto histórico atual, em busca da construção de melhor convivência enquanto comunidade. A questão é que o papel de liderança, no contexto das aldeias de Dourados, teve que ser totalmente reformulado, a partir da influência das agências do governo (SPI e FUNAI) e missão, deslocando-se da prática tradicional levada a cabo, em especial pelo povo Guarani e Kaiowá. A máxima unidade política do povo Guarani (Kaiowá e Ñandeva) era o chefe da grande família, ou família extensa, o qual exercia autoridade sobre este domínio, que geralmente identificava-se como tekohá. Essa fragmentação social, também é fruto e consequência desse rearranjo político das aldeias de Dourados, com a criação da figura do capitão, que no passado servia como interlocutor entre a agência do governo e as demais famílias, mas, que na atualidade, encontra-se esvaziada de significado e poder. Neste sentido, Brand (2003, p. 1), afirma que:

A família extensa é a unidade social básica da sociedade kaiowá/guarani, sobre a qual se apóiam seus líderes político-religiosos. Com a dispersão, seus integrantes não encontravam mais as condições necessárias para manterem inúmeras práticas religiosas coletivas, especialmente as relacionadas aos rituais de iniciação dos meninos, kunumi pepy, e de batismo das plantas, avaty kyry.

Atualmente, é comum entre o povo Guarani (Kaiowá e Ñandeva), explicar a situação através de expressões na própria língua. Teko pyahu é entendido como ‘o novo modo de ser’ e se refere aos comportamentos introduzidos nas últimas décadas, que não fazem parte do que consideram ser tradicional, e cuja introdução leva à ameaça do abandono do teko katu, ‘o modo de ser correto’, associado ao modo como viviam os antigos, cuja temporalidade é associada à abundância e a vivência harmônica. A situação de reserva em Dourados é ainda interpretada como teko heta, ‘modo de ser múltiplo’, no qual as pessoas seguem orientações diversas, gerando confusão e desentendimento (CTI, 2008, p. 17). Nesse contexto de rápidas mudanças e consequente fragmentação social, podemos afirmar que os seguimentos mais fragilizados são as mulheres e crianças (no contexto das aldeias de Dourados, crianças e adolescentes; trata-se de uma nova categoria geracional que aos poucos se afirma no contexto social destas aldeias), foco do presente estudo e relatório. Da população total das aldeias de Dourados, existem 2.181 crianças menores de 05 anos de idade e 4.405 crianças e adolescentes de 06 a 17 anos. Esse total representa 54,64% da população geral, ou seja, mais da metade das pessoas (conforme dados SIASI/FUNASA/SESAI, 2010). Esses dados são ampliados quando analisamos os números de vítimas de violência nas aldeias de Dourados – 97% são menores de 21 anos. A saúde indígena nas aldeias de Dourados é de responsabilidade da SESAI (anteriormente estava a cargo da FUNASA), cujo Pólo Base gerencia cinco equipes de saúde indígena composta por médicos, dentistas, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos,

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nutricionistas, técnicos de enfermagem, agentes indígenas de saneamento e de saúde, em quatro Unidades de Saúde: duas unidades na aldeia Bororó e duas na aldeia Jaguapiru. Segundo dados da SESAI, todas as equipes atuam com foco na saúde da família e levam para as famílias indígenas destas aldeias todos os programas de atenção básica do Ministério da Saúde.

Índice de mortalidade infantil da população indígena 2000 141,56

2001 85,97

2002 46,3

2003 51,75

2004 66,01

2005 38,54

2006 24,12

2007 39,68

2008 28,68

2009 41,68

2010 32,11

Fonte: Pólo Base Dourados/DSEI/MS/FUNASA/2010

Quanto à educação, desde finais da década de 1990, ela foi implantada como “Educação Indígena” e, neste período, esse processo de consolidação tem sofrido “altos e baixos”. Muitas famílias ainda compreendem que a proposta da “Educação Indígena” nas escolas das aldeias de Dourados representa um retrocesso e seguem pedindo a “educação do branco”. Na verdade, até 2004, todas as escolas eram extensão da Escola Tengatui Marangatu. Somente a partir do decreto nº 2442 (2004), foi criado a categoria Escola Indígena no sistema municipal de ensino de Dourados. A partir deste momento são emancipadas e criadas as escolas indígenas nestas aldeias: Escola Municipal Tengatui Marangatu (oficializada como Escola Indígena somente em 2007) e a Escola Municipal Ramão Martins (aldeia Jaguapiru); Escola Municipal Indígena Ara Porã; Escola Municipal Indígena Agustinho e Escola Municipal Lacu’i Roque Isnard (aldeia Bororó). Alunos e profissionais da educação da rede municipal de Dourados/MS Escola

Aldeia

Alunos

Professores

Administrativo Diretor

Coord.

Apoio

EMI Tengatui Marangatu

Jaguapiru

1.073

43

01

03

31

EMI Ramão Martins

Jaguapiru

422

25

01

03

15

EMI Ara Porã

Bororó

573

26

01

01

15

EMI Agustinho

Bororó

592

25

01

01

13

EMI Lacu’i R. Isnard

Bororó

98

07

01

01

10

EM Franc. Meireles

Missão Caiua

850

41

01

04

23

3.608

167

06

13

107

TOTAL

Fonte: Núcleo de Educação Escolar Indígena / SEMED / 2011

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Somando com a escola da Missão Caiua, são mais de 3.600 alunos no ensino fundamental, ou seja, na rede municipal de educação. Mesmo assim, segundo dados, há um déficit de 713 crianças em idade escolar, fora das salas de aulas, isso sem falar na educação infantil, ainda não implantada nas aldeias de Dourados. 2. Breve contexto histórico das aldeias de Dourados/MS1 A Terra Indígena de Dourados foi criada pelo Serviço de Proteção ao Índio – SPI, em 1917. O título definitivo da área, legalizada como patrimônio da União, foi emitido em 1965. Esta área foi inicialmente reservada aos índios de etnia Kaiowa, que já viviam no local e em suas imediações, ocupando áreas nas bacias dos córregos Laranja Doce e São Domingos, afluentes do rio Brilhante e de outros afluentes do rio Dourados. Esta região é território tradicional de ocupação Kaiowa. No entanto, a partir da ação de demarcação da Terra Indígena, outras etnias que também viviam na região, como os Terena e os Guarani foram aí recolhidas, dando início à criação de um sistema multiétnico sui generis nesta área de acomodações. A chegada dos Terena e Guarani na região de Dourados se deu por deslocamentos demográficos realizados no final do século XIX (após a guerra entre o Paraguai e a Tríplice Aliança – 1985 a 1870) e início do século XX. Tais deslocamentos foram promovidos, no caso dos Guarani, pelo início da ocupação da região por frentes de extração de erva-mate. No caso dos Terena, o deslocamento se deu pela implantação dos primeiros empreendimentos agropecuários de particulares que requereram terras na região e pela expansão da rede de telégrafos, atividades nas quais foram incorporados como mão-de-obra em todo o antigo Território Federal de Ponta Porã. Aos poucos os índios que viviam dispersos na região em antigas aldeias ou como agregados em fazendas foram se recolhendo na reserva, que no período atual passa por vertiginoso crescimento demográfico. Mesmo após a demarcação das 08 áreas (18.124 hectares), pelo então SPI, entre os anos de 1915 e 1928, a quase totalidade das aldeias ficava fora destas áreas demarcadas, então de posse para exploração da Companhia Matte laranjeira. No entanto, na década de 1940 se encerra a renovação dos contratos de arrendamento que beneficiavam a Companhia Mate Laranjeiras (Brand, 1997; Ferreira, 2007). Isto dá lugar a uma verdadeira corrida de pessoas, de várias partes do país, interessadas em comprar terras na região. A legislação em vigor considerava as terras públicas como devolutas, sendo postas à venda pelo antigo Estado de Mato Grosso; as terras onde estavam localizadas as comunidades Kaiowá e Guarani, as quais são vendidas a particulares, e muitas comunidades (tekoha) são forçadas a deixar os locais de suas aldeias (CTI, 2008, p. 19). Dessa forma, com a aceleração da ocupação e desmatamento para a pecuária, os grupos familiares que ainda viviam no interior das matas foram alcançados e, sistematicamente obrigados a abandonar as suas aldeias e se localizarem dentro das reservas demarcadas pelo SPI, começando o processo de superpopulação de aldeias como Dourados, Tey’ikue (Caarapó) e Amambai. 1

Autor: prof. Dr. Levi Marques Pereira – UFGD.

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Esse processo de confinamento se radicaliza a partir da década de 1970, com a chegada do plantio de soja e da conseqüente mecanização da atividade agrícola. Para o SPI, o papel reservado aos Guarani e Kaiowá, nessa região, seria o de mão-de-obra para os empreendimentos econômicos: primeiro na exploração da erva mate, depois na implantação das fazendas agropecuárias e, a partir da década de 1980, nas usinas de produção de açúcar e álcool. Nesse período são destruídas muitas “aldeias refúgio”, localizadas nos fundos das fazendas. Hoje, aldeados em espaços exíguos, esses núcleos ou aldeias, antes autônomas, encontram-se sobrepostos e geograficamente confinados e sem condições de manter sua organização social interna, assentada em unidades familiares autônomas, com seus tekoharuvicha, que zelavam pela harmonia interna desses núcleos (CTI, 2008, p. 19).

Essa é a situação atual das aldeias na região de Dourados. As três etnias que vivem, atualmente, na Terra Indígena de Dourados (Kaiowa, Guarani e Terena) em grande medida mantém suas identidades exclusivas (língua, organização social, etc.). A identidade étnica implica no sentimento de pertencimento a um grupo humano exclusivo, o que é muito forte entre as três etnias que vivem na terra indígena de Dourados. Isto porque a identificação dos grupos étnicos se mantém como elemento ordenador das relações sociais, mesmo ocorrendo expressivo número de casamentos interétnicos entre membros dos grupos étnicos e do fato de compartilharem um mesmo espaço físico da terra indígena. Em termos político-administrativos a Terra Indígena de Dourados é dividida atualmente em duas aldeias, com lideranças reconhecidas como autônomas pela FUNAI e demais órgãos públicos. A aldeia Bororó é reconhecida como dirigida por lideranças kaiowá, e a Jaguapiru é reconhecida como aldeia dirigida em alguns momentos por lideranças terena e em outros por lideranças guarani. Mesmo com a distinção política entre as duas aldeias, é possível encontrar alguns indivíduos terena vivendo na aldeia Bororó, e muitos indivíduos e famílias Kaiowa vivendo na aldeia Jaguapiru. A maioria dos Guarani vive na aldeia Jaguapiru, mas também existem muitas famílias guarani na aldeia Bororó. A complexidade na terra indígena de Dourados não se reduz à representação das duas aldeias. Existem, de fato, um grande número de famílias extensas ou parentelas, que agregam um número variado de famílias nucleares, dispondo de lideranças próprias no que se refere à organização interna das famílias nucleares aí reunidas. Além, das três etnias acima mencionadas, a Terra Indígena de Dourados abriga, eventualmente, pessoas indígenas de outras origens étnicas, casadas com os indígenas locais, além de alguns regionais (brasileiros), normalmente agregados à comunidade por contraírem casamentos com membros de alguma das três etnias na Terra Indígena. A complexidade do sistema multiétnico instituído na Terra Indígena de Dourados favorece o surgimento de configurações sociais variadas e heterogêneas. Isto dificulta que toda a população seja representada em uma única liderança, ou mesmo por um pequeno número de líderes. Internamente, cada etnia está subdividida em comunidades políticas específicas, de origens distintas, que chegaram à Terra Indígena em diferentes momentos ao longo do século

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XX, sendo que muitas mantêm suas próprias lideranças e reivindicam autonomia nas decisões políticas que as afetam. As famílias indígenas das três etnias estabelecem entre si complexas redes de relações, construindo figurações sociais de natureza diversificada, o que permite estabelecer articulações e alianças que requerem a criação de instâncias gerais de representação, instituindo um campo permanente de negociações. As etnias que vivem na Terra Indígena de Dourados compartilham o mesmo território, subdividido, além da divisão política das aldeias, em regiões delineadas por acordos tácitos entre as diversas parentelas e seus líderes. Isto gera a necessidade de entendimento e construção de consenso nos assuntos que afetam toda a população. Até o período anterior a promulgação da atual Constituição – 1988, o chefe do Posto Indígena e as lideranças indígenas por ele nomeadas, eram as pessoas autorizadas para conduzir e orientar os assuntos e deliberações identificadas como de interesse de toda a população indígena. Tal arranjo institucional se tornou obsoleto com as novas orientações do indigenismo oficial do Estado brasileiro. Mesmo assim, esse modelo continuou sendo praticado nas terras indígenas de MS, até 19 de Abril de 2008, quando a FUNAI emitiu uma portaria presidencial extinguindo o sistema de capitanias indígenas na região do sul de Mato Grosso do Sul. De lá para cá, o órgão indigenista não constituiu outra solução jurídico-institucional capaz de solucionar o problema organizacional na Terra Indígena de Dourados, sendo que algumas lideranças indígenas têm procurado, por conta própria, buscar formas de tornar viável uma referência de organização interna de cunho geral. No caso da Terra Indígena de Dourados, isto tem sido buscado na manutenção da antiga divisão administrativa e política entre as duas aldeias (Bororó e Jaguapiru) e na escolha de um capitão para cada aldeia, agora incorporado o instrumento do voto direto, inspirado no modo como as eleições são realizadas para a escolha de parlamentares e mandatários dos municípios e outros entes da federação. Por conta da proximidade da cidade de Dourados e da dependência em relação à sociedade nacional, as famílias das três etnias mantêm interação freqüente e intensa com os não-índios que vivem fora da Terra Indígena, mas cujos interesses estão de alguma forma voltados para a população que vive na Terra Indígena, tais como comerciantes, agenciadores de mão-de-obra, políticos, funcionários públicos, ONGs, pesquisadores, universidades, religiosos, etc. Os indígenas, por sua vez, transitam quase que cotidianamente pela cidade por diversos motivos, tais como: estudo, trabalho, diversão, vendas de artesanato e produtos agrícolas, compra de alimentos, dentre outros motivos. Os meios de comunicação de massa como a TV, jornal e o rádio fazem parte do dia-a-dia das famílias, sendo comum presenciar situações em que as formas de conduta indígena se inspiram diretamente em programações veiculadas pela mídia. É importante observar que essas articulações para fora contribuem ainda mais para potencializar a complexidade das configurações sociais da população indígena da Terra Indígena de Dourados. A despeito da complexidade da população recolhida nessa área de acomodação, é possível dizer que a população da Terra Indígena de Dourados compõe um sistema de interação permanente, marcado por relações mais ou menos freqüentes entre a maioria de seus moradores. Trata-se de um sistema multiétnico articulado por inúmeras redes de relações

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sociais, trocas matrimoniais, materiais e simbólicas, e, como não poderia deixar de ser, por problemas decorrentes da complexidade aí envolvida, sempre que falha os mecanismos de resolução de conflitos, fenômeno inexorável à vida social. A ausência do Estado, principalmente no que se refere à segurança pública, pode ser considerada como um fator que dificulta a gestão desse enorme conglomerado de pessoas, que segundo dados da FUNASA, é estimado em torno de 12.000 pessoas. Como muitas vezes ocorre nos sistemas multiétnicos identificados em diversas partes do mundo, as fronteiras entre os diversos grupos étnicos que vivem na Terra Indígena de Dourados são permeáveis, ocorrendo permanente fluxo de pessoas, bens e valores entre os diversos grupos. Permeáveis são também as relações que se estabelecem entre a sociedade indígena e a não-indígena, que se transforma em veículo de bens e símbolos que alimentam as trocas culturais cotidianas. Vale lembrar que transpor a fronteira não implica em dissolvê-lo, mas ao contrário, exige o seu reconhecimento. Ao transitar pela fronteira étnica, as pessoas constantemente confirmam a natureza diferencial entre os Kaiowa, Guarani, Terena, paraguaio, ou “Branco-karaí”. É possível que as pessoas aprendam a se comportar e a se identificar como parte de etnia com a qual se relacionam com freqüência, mas isso implica em intensas negociações e compromissos, que a todo o momento afirmam a natureza diferencial dos distintos modos de ser que compõem o sistema multiétnico de interação permanente. Isto implica que, mesmo em constante movimento de transformação, a natureza diferencial dos grupos étnicos seja sempre recomposta a partir de novos instrumentos culturais. Teorias antropológicas, hoje consideradas como ultrapassadas, tais como o evolucionismo e as teorias aculturativas, mas que gozavam de enorme prestígio até meados do século XX, acreditavam que os grupos étnicos em interação tenderiam a uniformização a partir da adoção de um padrão dominante. Acredita-se que isto ocorreria principalmente a partir da predominância da vertente cultural ocidental, considerada mais bem equipada e a única com futuro histórico possível. A realidade encontrada em Dourados demonstra que ali acontece exatamente o contrário, pois a interação entre os grupos, ao invés de reduzir a heterogeneidade, potencializa-a, expandido o potencial de diversidade entre os grupos, a ponto de dificultar ou mesmo impossibilitar o tratamento do sistema multiétnico instaurado nesta terra indígena enquanto uma unidade em termos políticos ou culturais. Tal característica se apresenta como um desafio permanente para as lideranças internas da população indígena aí radicada e para os gestores públicos. As populações étnicas kaiowa, guarani e terena na Terra Indígena de Dourados constroem suas figurações exclusivas em ambiente marcado por relações intersocietárias, interétnicas e interculturais. Tal ambiente é marcado pelas trocas que ora aproximam, ora distanciam, impondo o reposicionamento constante dos grupos e das distinções entre eles. Algumas práticas são partilhadas, mas no momento de sua realização elas acabam por repor diferenças intrínsecas à composição de cada grupo e, não raro, criam a possibilidade da articulação de novos módulos diferentes, que podem se constituir no nascedouro de formas organizacionais inteiramente novas.

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Os Kaiowa, Guarani e Terena têm plena consciência do caráter dinâmico da cultura, explicitando que não é mais possível (e talvez para a maior parte deles, nem mesmo desejável) viver do mesmo modo como os antepassados viviam. A descrença na possibilidade de manter intacta a cultura ancestral não implica na renúncia do reconhecimento da condição de índio contemporâneo de seu tempo, que produz sua cultura de modo distinto do branco – karaí/purutuya, mas também distinto de seus ancestrais históricos. Na Terra Indígena de Dourados muitos são os desafios para produzir as condições de existência material de modo satisfatório. Um dos desafios é ampliar e assegurar o acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente para nutrir e manter a saúde da população. Com a destruição das matas na Terra Indígena e no seu entorno, as atividades de caça, pesca e coleta, perderam sua importância no provimento de alimentos, e mesmo o cultivo de roças de coivara ou mecanizada tornou-se impossível ou insuficiente para a maioria das famílias, independente de sua etnia. Em décadas passadas existia muita falta de alimentação, sendo que nos últimos anos os governos implantaram uma série de programas sociais que asseguram o fornecimento de cestas básicas, bem como outros programas de seguridade social. A mudança na dieta alimentar criou o problema da carência de proteína, vitaminas e outros nutrientes, já que a alimentação fornecida é baseada na oferta de energéticos (carboidratos e amido). A população indígena da Terra Indígena de Dourados vive uma situação de insegurança alimentar, com ingestão inadequada de nutrientes, monotonia alimentar e tendência à diminuição do aleitamento materno. Em relação aos macro-nutrientes, os hábitos alimentares da população indígena parecem estar relacionados com um alto consumo de carboidratos associado ao baixo consumo de proteínas, o que os especialistas em nutrição identificam como um sério problema alimentar. A Terra Indígena de Dourados apresenta outros problemas sociais, como índices elevados de violência, ausência de segurança interna, falta de acesso à educação de qualidade, entre outros. Apoiar iniciativas de grupos de famílias organizadas para pensar soluções a partir da própria experiência vivida dentro deste cenário pode ser de fundamental importância para a reversão desse quadro de vulnerabilidade social. Constatamos, ainda, que não existem nestas aldeias espaços adequados para sociabilidade das pessoas, como praças, por exemplo, assim como espaços para reuniões, para discutir assuntos de interesse da comunidade. Como constatamos nos grupos focais, normalmente as famílias não costumam participar de atividades. Geralmente os que participam são os que vivem mais nos espaços centrais das aldeias, próximos às escolas ou outros espaços (CRAS, FUNAI, etc.).

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b) Percepções das crianças e dos adolescentes das etnias kaiowá, guarani e terena sobre os principais problemas sociais vivenciados na Terra Indígena de Dourados Levi Marques Pereira

Considerações Iniciais O presente tópico do relatório foi elaborado a partir do material recolhido nas oficinas e nos grupos focais com crianças e jovens, desenvolvidos nas aldeias Bororó e Jaguapiru. Incorpora registros de falas gravadas e transcritas pelos/as alunos/as que participaram do projeto, bem como observações anotadas em cadernos de campo dos envolvidos no projeto. Destaco com itálico, expressões que se referem a manifestações verbalizadas pelos participantes indígenas nos grupos focais, sem que isto corresponda a citações literais. O recurso visa separar as ideias expressas pelas crianças e jovens indígenas das minhas próprias ideias, ou das interpretações que construo. A discussão é apresentada por temas, de acordo com a discussão que ocorreu nos grupos focais. Inicialmente, vale registrar que em todos os segmentos da população indígena que participaram do presente diagnóstico, prevalece um posicionamento moralizante em relação ao consumo de bebidas alcoólicas e drogas. Isto porque os usuários dessas substâncias não participaram dos grupos de discussão, resultando daí que o que tivemos acesso foi o discurso de não-usuários, produzidos sobre os usuários. Assim, crianças e jovens acreditam que o maior problema de saúde, inclusive das crianças, se origina no consumo de bebidas alcoólicas e drogas, vendidas na terra indígena pelos próprios índios. Na compreensão predominante na comunidade, tal consumo não seria necessariamente conseqüência de transformações sociais associadas a problemas de ordem territorial, ambiental ou demográfica. Essa vinculação raramente aparece nos discursos espontâneos. O discurso hegemônico é de que a reserva apresenta atualmente sérios problemas sociais (violência, prostituição, desnutrição, suicídio, etc.) porque as pessoas, principalmente os jovens, bebem muito e fazem uso de drogas ilícitas. De certa forma, a maioria dos indígenas absorve o discurso produzido sobre eles pelo entorno regional. Em tal discurso, os índios aparecem como seus próprios algozes e vítimas, por “vontade própria” ou “por índole”, bebem muito e usam droga, e isto traria sérias conseqüências sobre suas vidas e para a convivência na reserva. O discurso moralizante não é isento de componentes racistas e de projetos políticos que buscam legitimar a subalternação das etnias indígenas e a exclusão de direitos fundamentais, principalmente a regularização dos territórios de ocupação tradicional. As narrativas sobre os índios excluem a historicidade da gênese dos problemas sociais vividos atualmente nas reservas indígenas de MS e, o que é pior, responsabiliza os próprios índios pelos problemas por eles enfrentados atualmente. Esse discurso produzido no entorno regional entra na reserva de diversas maneiras: a) nas matérias veiculadas na imprensa escrita, eletrônica, televisionada; b) pelo rádio, cujos programas policiais têm grande audiência na reserva e dedicam grande espaço para narrar e comentar os crimes e outros problemas da aldeia; c) no sistema de educação

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escolar; d) nos sermões dos líderes das igrejas evangélicas. Só uma pequena minoria de índios “mais críticos”, transcende essa compreensão, principalmente os rezadores mais apegados aos sentidos originados no próprio sistema religioso de cada uma das três etnias e algumas lideranças que por diversos caminhos acabam desenvolvendo um ponto de vista mais crítico. Resulta daí, que quando nos dispomos a ouvir os índios, temos que estar atentos a todo esse campo de produção do discurso, que envolvem uma enorme gama de sujeitos sociais, inclusive não indígenas. Entre os índios se produz um discurso hegemônico, de caráter “público” e “oficial” sobre os problemas sociais, mas as falas individuais revelam grande heterogeneidade no modo de discorrer e interpretar os problemas. Na origem dessa diversidade pode estar o pertencimento a uma das três etnias, a filiação religiosa, o vínculo com determinados partidos políticos ou instituições, o fato de pertencer ao grupo de lideranças ou participar das esferas decisórias, etc. Dessa forma, o entendimento das diversas narrativas exige a compreensão mínima da estrutura de organização interna à reserva, o que não é nada fácil.

QUANTO À SAÚDE Os jovens reclamaram muito da inexistência de projetos na área da saúde que atuem na prevenção e tratamento de alcoolismo e dependência química de drogas. Também reclamaram que existe apenas um psicólogo (da FUNASA) para atender uma população superior a 12 mil indígenas e apenas um assistente social. Falta também, um programa de prevenção de HIV, tema cercado de tabu para a população indígena, de diagnóstico difícil, principalmente entre os jovens. No que se refere ao tratamento de usuários de drogas, os jovens lembraram que a cidade de Dourados possui um centro de referência psicossocial, porém não atende todos dependentes químicos da cidade, e dificilmente atende os indígenas. Com relação à gravidez precoce, os jovens acrescentaram que as adolescentes escondem a gravidez e iniciam o pré-natal tardiamente. Vale lembrar que até a poucos anos os casamentos eram realizados com pouca idade. As meninas normalmente se casavam entre os 13 e 17 anos e os meninos entre 14 e 18. Nos últimos anos os casamentos começaram a ocorrer um pouco mais tarde, principalmente entre as famílias indígenas mais próximas das agências da sociedade nacional. Mesmo assim, continua ocorrendo um número significativo de gravidez de meninas logo que atingem a puberdade, o que, ao contrário do que acontecia no passado, nem sempre resulta em casamento, pois as parentelas perderam a capacidade de atuar mais diretamente nos arranjos matrimoniais. Resulta daí mães solteiras muito jovens, que nas condições atuais das reservas, nem sempre podem contar com o apoio de suas famílias. Nas condições atuais vividas na reserva de Dourados, os filhos de mães solteiras jovens, nem sempre são incorporados pela parentela da mãe, procedimento tradicional ainda praticado por muitas parentelas, e tendem a enfrentar sérias dificuldades no período inicial de suas vidas. Muitos adultos entendem que o serviço de saúde não consegue chegar aos jovens para fazer o trabalho de conscientização sobre os efeitos danosos do álcool, drogas, violência e

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gravidez precoce. A compreensão é que faltam projetos de atendimento à saúde, voltado para a criança e a juventude. Os jovens sentem o sistema de saúde distante de suas necessidades. Muitas mães costumam fazer uso dos conhecimentos medicinais nos cuidados com as crianças enfermas. As crianças que participaram dos grupos focais disseram que as mães fazem remédio de erva-doce, erva-cidreira, eucalipto, casca de pau-vermelho (para gripe), quebrapedra e sabugueiro. As crianças consideram o remédio da mãe bom para sarar as doenças. A confiança nos remédios indígenas ou caseiros, como costumam ser chamados, é muito forte. Independente da faixa etária, de ser evangélico, praticante da religião tradicional, professor, agente de saúde, etc., todos acreditam na eficácia de determinadas fórmulas caseiras, que muitas vezes podem ser consideradas como patrimônio da família, guardados como os segredos da vovó. Vale lembrar que nem sempre os profissionais de saúde veem como positivo essa mescla de utilização, muitas vezes simultânea, de remédios caseiros e os receitados pelo médico, pois pode envolver riscos para o paciente sob tratamento.

QUANTO AO ESPORTE E LAZER Jovens e crianças reclamam mais espaço para esporte e lazer. As lideranças políticas concordam com os jovens e apontaram a falta de alternativas de recreação e esporte para as crianças e jovens como um problema que tem de ser resolvido pelas autoridades. Foi relatado que das seis quadras de esportes das escolas, apenas uma possui cobertura. Segundo afirmaram, a exposição ao sol prejudica a saúde das crianças. As lideranças reconhecem que as crianças não têm ocupação, não têm nenhum projeto que as mantenham ocupadas, com isso acabam entrando para o tráfico, para a violência. Eles querem trabalhar, mas não têm onde, na cidade o mercado de trabalho rejeita os jovens indígenas. Eles acabam roubando para poder comprar suas coisas. Entretanto, os próprios jovens reconheceram muitos têm oportunidade, mas não aproveitam. Na Aldeia Jaguapiru os jovens se constituem como categoria geracional emergente. Reivindicam seu reconhecimento frente às lideranças da comunidade e, aos poucos, se consolidam como interlocutores nas discussões que envolvem os destinos da comunidade. A organização dos jovens conta com apoio de diversas organizações da sociedade nacional. Alguns jovens organizaram um grupo de RAP, em pareceria com ONGs indigenistas. Existe também a AJI (Ação de Jovens Indígenas), ONG indígena, que atua em parceria com uma ONG indigenista, organizada há vários anos. Entre outras atividades, como oficinas culturais para os jovens, a AJI edita um jornal bimestral que circula nas Aldeias de Dourados. A partir de iniciativas como a da AJI, os jovens da aldeia Jaguapiru se organizam e passam a discutir e defender seus direitos enquanto jovens indígenas. Aos poucos a organização dos jovens se expande para a aldeia Bororó, onde predomina a etnia Kaiowá, cujas lideranças tendem a ser mais refratária a novidade do surgimento desse novo segmento geracional. A criação de espaços de convivência, como centros culturais, aparece sempre como uma alternativa para possibilitar a participação coletiva e o debate das questões internas da comunidade. Essa é uma demanda comum dos jovens e das lideranças das duas aldeias. Muitas

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vezes é apresentada também como uma possível solução para o “problema dos jovens”, sendo que com isso se referem à ausência de espaço onde eles possam realizar atividades esportivas e de lazer em ambiente saudável e controlado pelas autoridades das aldeias, livre do consumo de drogas e dos riscos a que se expõem os jovens em outros espaços. Fica sempre a pergunta, será que essa iniciativa não seria mais uma tentativa de invenção da comunidade no espaço da reserva? E, até que ponto tal iniciativa seria capaz de transformar o espaço da reserva em ambiente viável para a convivência?

QUANTO À EDUCAÇÃO Os jovens consideram que a educação oferecida para as crianças e jovens afeta diretamente os destinos de suas vidas. Reconhecem que a troca constante da gestão de educação indígena implica em mudanças no projeto pedagógico, levando a dúvidas e incertezas. Outro problema seria o alto índice de evasão e repetência, pois os alunos não acompanham, ou seja, não compreendem as aulas, por questões ligadas à língua e a prática de ensino. Dessa forma, as crianças e jovens reconhecem que a educação deixa muito a desejar, embora, como seus pais, valorizem muito a escola. É possível também detectar um discurso hegemônico sobre a importância da educação, embora tal reconhecimento não implique necessariamente em ações práticas por parte de muitas famílias indígenas para que suas crianças efetivamente tenham um bom desempenho na escola. A falta de letramento dos pais e a pouca experiência com o mundo da escrita faz com que muitas vezes eles não disponham de referências para apoiar concretamente a vida escolar dos filhos. Uma reclamação freqüente dos pais é falta de recursos para a compra de materiais escolares, roupas e calçados para os filhos, principalmente quando elas passam a estudar nas escolas da cidade. Outra dificuldade apontada pelos jovens é que a pedagogia diferenciada precisa ser criada pelo professor, enquanto a educação do não-índio tem muito material didático, o que parece dar mais embasamento para o professor e facilitar o processo de educação. Assim, reconhecem que a educação indígena está por ser construída. Na situação multiétnica da reserva de Dourados, tal construção se constitui em enorme desafio para pesquisadores e para os professores indígenas. Crianças e jovens reconhecem que a educação é importante para que o indígena conheça seus direitos. Quanto ao uso da língua materna, a maior parte dos jovens e outros segmentos das etnias kaiowá e guarani tendem a considerar que a língua materna deve ser ensinada pela família e a escola deve se dedicar mais ao ensino da língua portuguesa. Reconhecem que as crianças devem aprender a falar e escrever a língua materna, porém deve ser ensinada por uma pessoa da etnia, que domine a língua. É possível notar que o ensino da língua nativa está muito associado ao ensino de regras comportamentais, campo sobre o qual cada parentela expressa compreensão diferente. O modo de transmissão de conhecimentos de cada parentela constitui estilos próprios – teko laja kuera, daí a reivindicação de certa exclusividade nestes ensinamentos, conforme apontam os estudos do antropólogo kaiowá Tonico Benites e alguns

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de meus escritos. Por conta das características distintivas entre a pedagogia indígena e a pedagogia escolar, os jovens kaiowá e guarani reconhecem que o professor deve ter paciência com o aluno, pois não é fácil levar ao mesmo tempo os dois modelos educacionais. Existe certo desestímulo dos alunos em se aplicarem a vida escolar. Faltam-lhes referências de profissionais indígenas bem sucedidos a partir da educação, essas referências nem sempre são próximas, pois nem sempre se pode contar com alguém na parentela que sirva de referência e estímulo para a vida escolar. Existem exemplos contrários, de indígenas que estudaram, se formaram, e não conseguiram vaga de trabalho fora da reserva. De acordo com a compreensão de alguns jovens, o indígena não se especializa, pois sabe que devido ao preconceito não há mercado de trabalho para ele fora da aldeia. A verdade é que os índios compram muito no comércio na cidade de Dourados, a grande maioria pagando suas compras à vista, mas poucos conseguem vaga como vendedor, mesmo dispondo de muitos anos de escolarização. Alguns índios inclusive reclamaram de serem tratados com descaso ou de serem impedidos de experimentar roupas nas lojas. Em alguns estabelecimentos, os preços são majorados para os indígenas, o que leva o comerciante a conseguir grandes porcentagens de lucros, dado que os índios menos escolarizados não costumam regatear o preço. Certas famílias indígenas não confiam muito na educação fornecida na reserva. Acreditam que ela é propositalmente de má qualidade e/ou que os professores indígenas nem sempre estão qualificados para ministrar a educação mais apropriada para seus filhos. Alguns pais levam seus filhos para estudar na cidade, pois acreditam que a língua já foi aprendida em casa, e o maior desafio para seus filhos é aprender a língua e os costumes do branco, para se relacionar com eles de modo mais favorável. A expectativa de muitos pais é que os filhos, através da escolarização dominem a cultura do branco para não serem vítimas dos mesmos preconceitos que sofrem no dia a dia. A educação indígena enfrenta ainda o problema da má condição das estradas na reserva. Isto prejudica o acesso das crianças à escola, pois quando chove o ônibus de transporte escolar não consegue passar, e as crianças acabam perdendo vários dias letivos. Acontece que optou-se por concentrar os serviços de educação em grandes escolas, o que requer o deslocamento dos alunos até elas. Muitas vezes as crianças indígenas também são prejudicadas por não terem registro civil ou outros documentos, isto dificulta o acesso aos serviços de educação escolar. As crianças e os jovens reconhecem que a educação familiar por eles recebida na reserva está bastante fragilizada e não tem a mesma qualidade da que é oferecida na cidade, mesmo gostando e valorizando a escola. A partir do letramento, alguns passam a culpar os pais por atrasados e não conseguirem acompanhar as mudanças e as “novidades”, que agora fazem parte da vida na aldeia. Por sua vez, muitos adultos culpam a televisão e a escola, que influenciam diretamente os comportamentos das crianças indígenas, tornando-as desobedientes e arrogantes. A crítica mais radical à escola costuma vir de alguns líderes tradicionais, sejam eles pastores evangélicos indígenas ou rezadores ou xamãs. Os professores costumam atribuir a mudança de comportamento das crianças aos desenhos e filmes de lutas marciais, que passaram a influenciar até mesmo as brincadeiras das

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crianças no pátio das escolas. Muitas armas artesanais, confeccionadas pelos jovens, se inspiram em objetos utilizados em lutas marciais. Na percepção dos adultos, as referências que as crianças dispõem a partir da convivência na escola e da assistência aos programas de televisão, atuam como desestímulo para seguirem os modelos culturais praticados pelos pais, intensificando conflitos geracionais. Hoje, as crianças e jovens dificilmente projetam seu futuro como agricultor, líder de parentela, ou líder religioso, o que não quer dizer que em suas trajetórias de vida não irão reorientar sua conduta para essas posições. No caso do Programa Bolsa Família, quando ocorre certa rejeição das crianças pelos padrastos, a bolsa serve para a mãe comprar coisas para a criança que não é filha do atual marido. Dessa forma, o programa tem impacto positivo no sentido de favorecer a absorção da criança no novo arranjo familiar. As crianças das famílias com menos renda, costumam realizar pequenos trabalhos na cidade, tais como, cuidar de carros ou mesmo mendicância, sozinhas ou acompanhadas dos pais. Tais trabalhos permitem o acesso ao dinheiro, que pode ser utilizado na compra de guloseimas ou entregue para a mãe para ajudar nas despesas da família. O acesso precoce ao dinheiro pode também favorecer o acesso a bebidas alcoólicas e drogas, expondo a criança a uma situação de vulnerabilidade. Os adultos reclamam que o Conselho tutelar tira a autonomia dos pais no cuidado com a criança. Por seu turno, as crianças, conscientes das obrigações do Conselho Tutelar, costumam lembrar seus pais e professores de seus direitos enquanto crianças, especialmente quando são ameaçadas de violência física. Os pais e lideranças afirmam que agora ficam perdidos no cuidado com os filhos e isso é um fator que gera violência. Muitas vezes os pais costumam ameaçar as crianças “desobedientes” de entregá-las ao Conselho Tutelar, mas, as crianças reagem cada vez menos a essa ameaça. Os pais reclamam que tradicionalmente, costumavam introduzir os filhos no trabalho agrícola desde quando ainda eram pequenos, acreditando que essa ocupação os impediria de fazer coisas erradas, porém os conselhos tutelares tiram a autonomia das famílias. Foto 05 – Grupo Focal com Crianças – Aldeia Bororó

Fonte: Equipe do Projeto (UFMS), março de 2011.

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Os adultos reivindicam mais autoridade na educação das crianças. Para uma rezadora guarani de mais de 70 anos, as crianças de 8 e 9 anos podem apanhar, mas só as mães podem bater para educar. Os pais não podem, porque tem mais força e podem machucá-las. As crianças, de bebês até os 8 anos não devem apanhar. Já os adolescentes de 12 e 13 anos, os pais devem conversar, sentar na hora do Tereré e dialogar com elas. Criança indisciplinada deve ser educada, não espancada, afirmou a anciã. Algumas lideranças reconhecem que muitos pais são omissos na orientação dos filhos, pois, não fazem nada para prevenir a questão das drogas e do alcoolismo em suas próprias famílias. Às vezes os próprios pais não aconselham os filhos, o que tem que ser feito desde pequenos, por isso muitos jovens se envolvem com drogas. Na concepção dos indígenas que vivem na reserva de Dourados, o empenho dos pais deve ser no sentido de não perder o controle sobre o filho, quando isto acontece, fica difícil retomar a autoridade, principalmente quando se atinge a faixa da maturidade biológica que marca o início da vida reprodutiva. O espaço da escola também recebe o impacto do ambiente de violência que impera na reserva. Os professores reclamam que as crianças brigam, chutam, jogam comida, agridem umas as outras, fazem bagunça, se empurram, etc. É claro que nem todas as crianças expressam essas atitudes. Nas oficinas realizadas, as crianças disseram que gostam de estudar, consideram isto importante para suas vidas, só não gostam de certas atitudes dos colegas, justamente aqueles que utilizam o espaço da escola para articular suas “tretas” e confusões, já que não estão interessados em aprender. Por isso, os que estão interessados em aprender procuram formar seus círculos de amizades entre as crianças que melhor se submetem às regras da escola. Acontece de crianças irem à escola armadas com facas, ou esconderem suas armas nas proximidades da escola. É freqüente a ocorrência de brigas no trajeto entre a casa e a escola, ou mesmo no banheiro ou pátio da escola. Monitores de pátio, coordenadores, professores e diretores, devem ficar sempre atentos ao movimento das crianças consideradas “problemáticas”, e estão sempre prontos a acionar as lideranças indígenas ou forças policiais para resolver os casos mais graves. A educação escolar foi apontada pelas crianças e jovens como mecanismo eficiente para obtenção de uma vida melhor; eles acreditam na escola e na educação como forma de assegurar um futuro melhor para suas vidas. Entretanto, sempre aparece a intenção de utilizar o empoderamento conseguido pela educação escolar para ajudar a comunidade, talvez até porque esse discurso é repetidamente formulado pelos professores. Isto se expressa em frases do tipo: “Podem tirar tudo da gente (terras, costumes...) menos a educação”. A educação também é considerada como um recurso eficiente para mudar a imagem que a sociedade não indígena tem sobre os índios, pois como expressaram a aldeia não é só violência e droga, aqui acontece muita coisa boa. QUANTO À SEGURANÇA PÚBLICA As crianças e os jovens consideram que a aldeia não é um local seguro para a família. As crianças e jovens vivem sob constante ameaça. Apontam como problema o aumento da

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população, presença de bocas-de-fumo, gangues que assassinam idosos para roubar, etc. Muitas vezes disseram que esses problemas são decorrentes da explosão demográfica. Aqui, mais uma vez, se remetem a origens endógenas para os problemas sociais vividos na reserva. Como soluções apontam para necessidade de proibir ou dificultar que o centro urbano invada as aldeias e impor um maior controle social interno à reserva. Reconhecem que antigamente existiam menos problemas, pois se observava normas mais rígidas na convivência entre as pessoas que viviam na reserva e havia maior disciplina, sendo que a própria liderança resolvia a maior parte dos conflitos. Grande parte dos adultos apresenta uma visão muito crítica em relação ao comportamento dos jovens. Um integrante do grupo relata que na época de seus avôs havia preservação da cultura e não era permitida a venda de bebidas alcoólicas dentro das aldeias. Segundo afirmou, hoje há roubos, assassinatos e não há punição, antes quem cometia algum erro, principalmente os jovens, eram mandados para a roça trabalhar ou tapar os buracos das ruas. Era uma maneira de corrigi-los, o que não acontece mais, hoje o jovem rouba e fica por isso mesmo. É comum acusarem os jovens de roubar para trocar os objetos por drogas. Os jovens são um segmento bastante estigmatizados como violentos pelos adultos e velhos, mas vale registrar que eles geralmente são as principais vítimas da violência. Na compreensão dos adultos, a droga é a novidade introduzida na reserva a partir do momento em que os índios começaram a sair para trabalhar nos canaviais da região. Seria ela a grande responsável pela violência, o que se expressa em frases como: • A maioria dos jovens está envolvida com drogas; • Crianças de até dez anos já estão fumando e não existe nenhum tipo de tratamento contra isso; • Os jovens roubam e matam para comprar drogas; • As crianças estão começando a usar drogas cada vez mais cedo, muitas vezes os pais sabem e não fazem nada. A família não sabe o que fazer; • Os próprios indígenas vendem as drogas nas aldeias. O branco traz para o índio distribuir; • Não se conversa sobre drogas e tratamentos; • As crianças roubam coisas de valor para comprar drogas; • Por causa das drogas acontecem as “facãozadas”; • As mães não têm para quem reclamar. As crianças já não ouvem; • Crianças ficam “loucas”, pois as drogas afetam a cabeça. Uma criança começou a consumir drogas com 9 anos e aos 17 já estava louca; • Drogas? Não tem mais cura, os jovens falam sozinhos, andam sujos na estrada, abandonam a escola, preferem andar pela estrada à noite; • Jovens bebem, fumam e vão para a estrada com facões para cometer violência; • Jovens brigam com as pessoas da própria família. Filhos batem nas mães; Há casos em que a violência perpetrada pelo marido que faz uso de bebida alcoólica atinge tanto a mãe como os filhos. Uma das mulheres da comunidade contou que era agredida pelo marido quando este estava alcoolizado: “batia em mim e na minha filha até que me

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separei e voltei a morar com minha mãe”. Muitos jovens disseram que a violência é uma experiência vivida por muitos desde bem cedo. Adolescentes de 12 a 15 anos estão envolvidos em atos de violência, isto faz com que muitas pessoas evitem sair de casa à noite. Tais jovens fazem uso de ferramentas, como facão, foice, armas artesanais, e mesmo pedra para atacar as pessoas. É interessante registrar que as categorias geracionais existentes entre as etnias que vivem na reserva de Dourados não correspondem necessariamente às da sociedade nacional. Isto ficou claro nas falas das lideranças da aldeia Bororó, quando afirmaram que as crianças acima de 10 anos se consideram adultas e com isso já se envolvem com drogas. Por outro lado, as mudanças históricas das últimas décadas tornaram impraticável parte significativa dos mecanismos de controle social da parentela, em conseqüência, as pessoas ficaram mais livres para experimentarem outras formas de sociabilidade. Nesse novo ambiente, as crianças passaram a se associar com membros de sua geração, formando grupos com relativa autonomia em relação aos pais, principalmente no caso de tal associação envolver o consumo de drogas. A conversa com o grupo focal dos jovens foi importante para entender como esse segmento geracional pensa os problemas enfrentados na reserva. Segundo eles, as pessoas na reserva de Dourados já se cansaram de reuniões e projetos inacabados que não resultam em nada, por isso eles não atendem o convite para outras reuniões, pois não há perspectiva de continuidade nas iniciativas. O tema escolhido por eles para ser aprofundado foi o da violência, consideram o tema importante porque eles (os jovens) são os mais atingidos com a violência na aldeia. Segundo expressaram, as bebidas geram o problema da violência. Os jovens bebem e começam a bagunçar. Como explicação para o consumo de bebidas, os jovens disseram que a aldeia fica muito próxima da cidade, o que dificulta tudo, pois a aldeia se tornou um bairro da cidade e a policia age como se estivesse na cidade. Os jovens entendem que para que haja mais segurança as lideranças da aldeia deveriam atuar na segurança acompanhando os policiais, e deveria haver algumas regras na aldeia, como de horário de circulação noturna. Reconhecem que a aldeia está se tornando um lugar sem lei, pois não dá para sair na rua usando objetos novos como tênis, bicicleta que a pessoa se torna alvo de assaltos. Para os jovens que participaram do grupo focal, a proximidade da cidade de Dourados com a fronteira torna fácil o trafico de drogas na aldeia. Os jovens também consideraram que a violência é um problema que atinge tanto a aldeia Jaguapiru quanto a aldeia Bororó. Para o problema do consumo de drogas, a solução apontada pelos jovens foi terminar com as bocas de fumo dentro das aldeias e a promoção de programas de educação (dentro e fora da escola), pois estes problemas geram conflitos geracionais nas aldeias. Na visão dos jovens, o consumo de drogas está associado à relação entre aldeias/cidade e entre índio/nãoíndio, traficantes brancos vão à aldeia vender drogas para usuários índios e usuários brancos vão à aldeia buscar drogas de traficantes indígenas. Quando esse relatório estava sendo escrito já acontecia na reserva de Dourados a operação da polícia federal denominada de Tekoha, que pretendia devolver a segurança para os indígenas, sendo realizada a prisão de diversos traficantes.

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QUANTO À MORADIA Sobre moradia as crianças da aldeia Bororó que participaram do grupo focal pensam que toda criança deveria ter uma casa legal para morar. A mesma percepção é expressa pelas crianças que vivem na aldeia Jaguapiru. Quando se transita pela reserva, é possível constatar que muitas casas são construções precárias e muitos chegam a morar em barracos de lona preta, que são muito quente no verão, muito frio no inverno e facilmente a cobertura rasga durante os temporais. O critério para pensar o que seria uma casa legal é projetado a partir das casas que eles conhecem na cidade, ou seja, a casa “legal” não tem arquitetura indígena, mas segue o padrão da moderna arquitetura, que as crianças conhecem na cidade de Dourados. A arquitetura indígena, como a casa grande, de uso coletivo da família extensa, só aparece em seus desenhos quando eles representam o passado, ou quando se referem à casa de reza, das quais existem algumas poucas na reserva de Dourados. O tema moradia também foi tratado pelos jovens com muito humor. Apontaram não só o descaso do governo, a falta de moradia e a má qualidade de muitas casas construídas na reserva pelos programas habitacionais do governo, mas também a atitude de muitos moradores em relação à limpeza e organização de suas casas. Chamaram a atenção ainda para a ausência da coleta de lixo, considerada como um problema que leva à ocorrência de casos de dengue e a deteriorização das condições sanitárias.

QUANTO À RENDA A geração de renda é um dos maiores problemas da população indígena em MS. Isto porque as práticas produtivas tradicionais, como agricultura de coivara, caça, pesca e coleta, se tornaram inviáveis dentro dos espaços demarcados como reserva. Os índios enfrentam o desafio de buscar novas formas de provimento da alimentação e de outras necessidades. Como estão inseridos numa economia monetária, eles dependem de renda para acessar os produtos dos quais se tornaram dependentes. Os estudiosos apontam que os índios vivem na reserva, mas não vivem da reserva. A reserva não dispõe de mecanismos de geração de renda capazes de sustentar a população indígena aí recolhida. Os moradores da reserva dependem de programas de assistência governamental e do salário que conseguem no trabalho fora da reserva, na maior parte dos casos em trabalhos com baixa remuneração e que requerem pouca especialização, como o corte de cana nas usinas de álcool e açúcar da região. Com relação ao trabalho e a geração de renda, os jovens observaram que a maioria dos familiares mescla o trabalho externo às aldeias com o plantio de pequenas roças, havendo uma grande predominância do trabalho externo, haja vista a falta de espaço suficiente para todos plantarem. São poucos os que conseguem renda trabalhando na própria comunidade, como é o caso dos professores indígenas e agentes de saúde, considerados pessoas privilegiadas. Por conta das dificuldades de geração de renda nas famílias, grande parte dos jovens que estudam também trabalha para ajudar em casa. O trabalho pode ser realizado na aldeia ou na cidade, sempre em horários opostos ao do estudo. O maior grau de escolarização por parte de alguns jovens que estão nos últimos anos do ensino médio ou já cursando faculdade, torna

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menos difícil o acesso ao mercado de trabalho. A maioria desses alunos trabalha em período oposto ao estudo, no grupo focal desenvolvido com os jovens da aldeia Jaguapiru, dos quinze que participaram, onze são trabalhadores. Esses alunos trabalhavam na Caixa Econômica Federal, oficinas mecânicas, como piscineiro, atendente de supermercado, cantor, em lavagem de roupa, etc. Seus pais, em sua maioria, trabalham em usinas, como trabalhadores braçais. Há poucos casos de cultivo de alimento. Segundo afirmaram, tem gente que arrenda sua terra para cultivo de soja. Em alguns casos alegaram haver falta de interesse em plantar, envolvendo “preguiça”. Os jovens apontaram as seguintes dificuldades de geração de renda: - Escassez de terras; - Descaso e falta de interesse de alguns indígenas; - “Arrendamento” de terras; - concentração de recursos por algumas lideranças. Nota-se que os jovens são bastantes críticos tanto em relação aos órgãos de assistência, quanto à forma de organização da própria população que vive na reserva, ou seja, a crítica se volta também para sua própria sociedade, inclui o modo de agir das lideranças e a falta de diligência de algumas famílias indígenas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O diagnóstico realizado junto às crianças e jovens revelou que estes segmentos comportam considerável diversidade interna, seja pelo pertencimento étnico, seja pelo grau de integração dos núcleos doméstico em parentela, ou mesmo pelo tipo de relação que cada parentela desenvolve com as agências externas que atuam na terra indígena de Dourados. Existem jovens que são politicamente mais atuantes, com destaque para os que cursam o ensino médio ou a universidade na reserva e os que militam na AJI. Estes jovens têm interesse em participar das atividades coletivas realizadas na aldeia. Entretanto, eles representam uma porcentagem pequena dos jovens que vivem na terra indígena, a maioria está envolvida mais no trabalho de corte de cana ou em trabalhos temporários, sendo que muitos passam grande parte do tempo ociosos na reserva. Muitos não estudam e passam muito tempo sem ocupação, pois o registro legal em carteira de trabalho só pode acontecer depois dos 18 anos, o que leva alguns menores a fraudar a documentação para ingressar no mercado de trabalho do corte da cana. A ociosidade e a falta de perspectivas de engajamento em atividades produtivas na própria reserva, são problemas que atingem diretamente a maioria dos jovens. Os jovens mais atuantes também reclamam que o consumo de drogas não é só realizado por pessoas dessa faixa etária, tem adultos que consomem drogas e álcool, mas só os jovens são apontados como culpados, reclamam que há uma generalização. Reconhecem, também, que muitas vezes os filhos tem mau exemplo em casa, por isso se envolvem com drogas. É difícil

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o diálogo de muitos pais com a nova geração de jovens, eles encontram dificuldades em entender as novas necessidades dos jovens, numa situação histórica em que o mundo indígena parece estar cada vez mais sitiado e dominado pelo mundo não indígena. Como boa parte dos pais parece não compreender os problemas e as necessidades dos jovens, encontram dificuldades em orientar os filhos sobre como proceder nas condições de vida atuais. Os jovens trataram dos problemas de saúde indígena em tom jocoso, sempre colocando uma pitada de humor ao falar dos problemas. O recurso ao humor e a ironia parece expressar um jeito jovem de expor e criticar os problemas cotidianos, sem desconsiderar que os índios sempre gostam muito de rir e demonstram grande habilidade para tirar motivo de humor de onde menos se espera. Disseram que os agentes de saúde apenas dão “role de magrela”, mas um dos presentes logo observou que sua mãe é agente de saúde e faz seu trabalho com eficácia e que ele inclusive a auxilia no trabalho que realiza. Fica evidente que o modo descontraído dos jovens não significa necessariamente falta de compromisso. O atendimento odontológico foi apontado como precário; um jovem disse que certo dentista não-índio não é competente em seu trabalho, porque atente aos jovens sem luvas e cheirando a cigarro. Concluíram que o serviço de saúde precisa de mais organização e higiene. Os jovens que participaram do grupo focal descreveram a precariedade do atendimento de saúde na reserva, com destaque para a AIDS, apontada como problema que afeta muitos jovens. A AIDS é considerada uma doença sem cura, ainda que com tratamento. O assunto parece cercado de tabus. Identificaram que a maior dificuldade é discutir os métodos preventivos e as formas de tratamento. Constata-se assim, a necessidade dos programas de saúde levar em conta as concepções de saúde e doença das etnias que vivem na reserva de Dourados. Chama a atenção o fato do tema do suicídio não surgir nas discussões sobre saúde, indicando ser um tema sobre o qual paira a postura do silenciamento, mesmo entre os jovens, entre os quais estatisticamente ocorre boa parte dos casos. Uma das reclamações dos jovens foi que a imprensa local e algumas agências indigenistas enfatizam apenas os pontos negativos da vida na aldeia e não divulgam as coisas boas que acontecem. Reclamam também da associação que se acaba fazendo entre o segmento jovem e o consumo de bebidas e drogas, o que leva a estigmatização de todos os jovens. Apareceram frases do tipo, uns erram e mancham todos os jovens, mas a maioria trabalha, estuda e leva uma vida correta. Os jovens reconhecem a reserva como um espaço onde impera a violência. Apontam a existência de violência dentro e fora das casas, no espaço público e no espaço privado da aldeia. A desunião entre os índios das aldeias foi apontada como um fator influente no aumento da violência. Segundo alguns jovens, a própria polícia indígena abusa do poder. O problema da “desunião” é um problema tão difícil de ser equacionado e discutido na reserva de Dourados que chega a ser uma espécie de tema tabu. As lideranças sempre procuram enfatizar a necessidade de união e detestam quando pesquisadores ou agentes públicos, falam da existência de “grupos”, ou mesmo dão muito destaque às distinções entre as etnias terena, kaiowá e guarani. As lideranças entendem que vivem no mesmo espaço e devem encontrar um caminho comum para enfrentar os problemas que afligem a todos os moradores.

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Os jovens consideram que a educação é importante para ter um futuro melhor e para seguir praticando a cultura. Enfatizam que pode-se tirar tudo, menos o conhecimento. A educação é tida como fundamental para mudar a imagem que os regionais têm dos indígenas e essa importância parece sobrepor a importância da escola como local de projeção ou reprodução da cultura indígena. Embora enfatizem que deveria ser criados nas escolas projetos que ‘resgatassem’ a cultura, parece prevalecer a importância dos domínios de conteúdos da cultura nacional. Entende-se que tais domínios aumentariam as chances dos jovens indígenas sofrerem menos preconceito e terem maior acesso a emprego e renda fora da reserva. Consideram importante que a maioria dos professores nas aldeias já são índios qualificados para a função. As atividades tidas como ‘culturais’ se reservam para datas especiais, quando se enfatiza o ‘resgate cultural’. Isto acontece principalmente no dia do índio ou quando algum turista visita a aldeia. Nessas ocasiões eles muitas vezes representam para si mesmos a cultura indígena. Reconhecem que alguns índios, principalmente os jovens, têm vergonha de falar a própria língua. Entre grande parte das crianças e jovens parece baixa estima em relação às práticas associadas a identidade étnica indígena, o que deve gerar dificuldades psicológicas de difícil dimensionamento. Felizmente, com o tempo a solidariedade parental e sociabilidade familiar acabam prevalecendo e promovendo situações que levam a positivação da valorização da própria cultura. Alguns jovens verbalizaram que é preciso criar um processo de atração dos jovens para não se sentirem atraídos pelo caminho das drogas. Isto poderia ser realizado a partir de projetos que poderiam funcionar nos finais de semana, dispondo de espaço físico capaz de atender todos os jovens. Isto seria importante para romper as distinções entre os jovens do “centro” e do “fundo” da aldeia, promovendo a integração entre todos. Os jovens também reconhecem uma distinção entre as duas aldeias, sendo comum que os membros de uma aldeia considerem os membros da outra como perigosos, motivo pelo qual percebem como necessário construir uma maior integração entre os jovens das duas aldeias. É notório que o alto grau de dependência da população aldeada em relação à sociedade nacional leva sempre a projetarem as saídas para seus problemas a partir de ações externas, com iniciativas que partam do Estado ou da sociedade civil. A demanda por programas de combate a violência contra mulher, de combate ao abuso sexual de crianças e de promoção de formas de sociabilidade entre jovens, etc., são uma constante. Essas solicitações parecem ir ao encontro de respostas a expectativas que os indígenas imaginam que as agências externas nutrem sobre eles. É difícil superar esse círculo vicioso e, de alguma forma, motivá-los a gestar propostas que emirjam das condições de interação vivenciadas cotidianamente em suas aldeias e que levem em conta as especificidades culturais de cada uma das etnias que vivem na reserva de Dourados.

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c) Percepções das mulheres Kaiowá, Guarani e Terena Vanderléia Paes Leite Mussi2 Considerações Iniciais

O presente texto é resultado do “Levantamento DIAGNÓSTICO Qualitativo sobre o Grau de Realização dos Direitos Humanos das Crianças e Mulheres INDÍGENAS Em Dourados/MS”. Tal estudo baseou-se em depoimentos colhidos junto a mulheres indígenas das aldeias Bororó e Jaguapiru entre dias 19, 26 e 27 de março de 2010/11. Os resultados, uma vez analisados e categorizados, demonstram que as crianças indígenas, em especial, e mulheres se encontram em condições de desenvolvimento social, mas, a despeito disso, necessitam de assistência e cuidados adequados. No caso específico das etnias Guarani, Kaiowá e Terena de Mato Grosso do Sul, percebese que ao longo dos anos, os povos indígenas, com destaque para as mulheres, têm redimensionado sua forma de organização social em virtude da ausência masculina, cada vez mais freqüente; absorvidos que estão os homens pelo mundo do trabalho fora de suas aldeias, ficam as mulheres com todas as responsabilidades da família, inclusive, em alguns casos, com o sustento da família. A ausência masculina é provocada pela impossibilidade da sobrevivência apenas com os rendimentos obtidos a partir do seu próprio território. Essa dificuldade faz com que os homens, especialmente os jovens, continuem em busca de trabalho fora da aldeia como, por exemplo, o trabalho de changa, do corte e plantio da cana-de-açúcar para as indústrias sucroalcooleiras, no estado, além da diversidade de ocupações informais, no mercado de trabalho urbano. Essa última assertiva não é comum na Região de Dourados, por ainda haver uma rejeição muito forte na absorção da mão-de-obra indígena para o mercado de trabalho na cidade. Assim sendo, a mulheres e crianças acabam por sofrer as consequências diretas na busca da sobrevivência física e cultural. Em vista deste cenário de contradições sócio-culturais, o “Grau De Realização Dos Direitos Humanos Das Crianças E Mulheres Indígenas” Guarani, Kaiowá E Terena Da Aldeia Da Região De Dourados/MS” procurou desvendar essa realidade, constituindo-se em um estudo elaborado a partir do material recolhido nas oficinas e nos grupos focais3 com lideranças, mulheres, crianças e jovens, professores e agentes de saúde, nas Aldeias do Bororó NAM Núcleo de Ações Múltiplas e na Escola TENGATUI no Jaguapiru. O convite para cada pessoa envolvida no grupo focal foi agendado com antecedência com as lideranças das respectivas 2

Docente da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Curso de História/CCHS. E-mail: [email protected] Técnica de entrevista direcionada a um grupo organizado a partir de determinadas características identitárias, visando obter informações qualitativas orientadas por um determinado quadro teórico de referência. A valorização dos debates e o tempo a eles destinado estabelecem uma série de balizamentos no uso da técnica, que propicia o aprofundamento da multiplicidade dos temas abordados, o que tornou possível a apresentação destes resultados. Durante a realização dos grupos focais, foram feitas fotos e filmagens, sempre com autorização dos participantes, assim como alguns depoimentos mais significativos e a técnica da “observação participante” – observação e registro de falas e atitudes durante a realização das atividades dos grupos focais.

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aldeias As datas foram marcadas para os sábados, para facilitar o acesso dos que trabalham e/ou frequentam a escola, e apenas um grupo no domingo. Para cada grupo focal, a duração média foi de duas a três horas, ou seja, meio período. Dessa forma, pudemos trabalhar, em alguns casos, com até dois grupos focais por dia nas duas aldeias respectivas. Os resultados aqui apresentados, portanto, restringem-se às percepções das mulheres mães e professoras- que nas Aldeias Jaguapiru e Bororó chegaram a somar cerca de 60 mulheres, nos dias 19, 26 e 27 de março. Antes da apresentação dos temas, porém, conviria registrar, conforme já apontado por Levi Marques, que foram incorporados aos registros as falas gravadas e transcritas pelos(as) alunos(as) que participaram do projeto, bem como observações anotadas em cadernos de campo dos envolvidos no projeto. Assim, é preciso alertar que “as expressões em itálico referem-se às manifestações verbalizadas pelos participantes indígenas nos grupos focais, sem que isto corresponda a citações literais”. O recurso visa pontuar as ideias expressas pelas mulheres e lideranças indígenas, no sentido de referendar as percepções e ou as interpretações construídas neste texto. Dessa forma, a discussão é apresentada pelos seguintes temas, de acordo com os encaminhamentos ocorridos nos grupos focais, cuja pergunta central foi: Qual o grau de realização dos Direitos Humanos entre as crianças e mulheres indígenas na região de Dourados/MS? Já os temas abordados foram: Saúde, Moradia, Proteção, Cidadania e Etnicidade, Educação, Segurança/Violência e Qualidade de vida.

A Saúde Indígena na Percepção das Mulheres O primeiro tema proposto pelos grupos focais foi relacionado à saúde. As perguntas norteadoras dessa oficina apresentam as seguintes questões: de que forma é realizado o atendimento de saúde às crianças e às mulheres indígenas nas aldeias da região de Dourados/MS? Esse atendimento respeita as especificidades culturais de cada etnia? Quais as soluções/ações que as políticas públicas governamentais e não governamentais buscam para sanar as problemáticas relacionadas aos altos índices de alcoolismo, uso de entorpecente, desnutrição, obesidade, suicídio, etc.? Antes da apresentação das respostas, a equipe fez uma breve explicação sobre a proposta do projeto e a apresentou à comunidade. As respostas das mulheres-mães da Aldeia Jaguapiru (escola Tengatui) apontaram para a falta de preparo dos profissionais de saúde, que não respeitam as práticas tradicionais tentando impor as práticas do não índio. Afirmam que a cultura não é respeitada no atendimento à saúde, pois os médicos não perguntam e não aceitam quando sabem que as mães fazem remédios caseiros. Tradicionalmente, os povos indígenas usam remédios caseiros que foram passados de geração em geração, mas preocupa a escassez dos recursos naturais, pois está cada vez mais difícil encontrar as ervas naturais (medicinais). Aliado a isso, as dificuldades aumentam quando apontam para a falta de remédios nos postos de saúde; além da dificuldade em se conseguir um atendimento. Relatam as mulheres, também, que para conseguirem uma vaga no atendimento têm de chegar muito cedo, por volta das 5 horas da

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manhã, ou até antes, para conseguirem uma vaga; assim, devem madrugar no local, pois caso contrário, não são atendidas. O professor Gersem dos Santos Luciano Baniwa, primeiro mestre em Antropologia Social da etnia Baniwa, aponta que o estado de saúde e doença para os povos indígenas, em seu aspecto primordial, é o resultado do tipo de relação individual e coletiva que se estabelece com as demais pessoas e com a natureza. Logo, há duas formas de se contrair a doença: ou por provocação de pessoas feitas ou ainda por provocação da natureza. Com isso, para os povos indígenas não existe doença natural, biológica ou hereditária. O que é natural é a saúde, pois ela é fonte da própria vida, uma dádiva da natureza, mas cuja manutenção depende de permanente vigilância e cuidado contra os espíritos maus da natureza. Assim sendo, a doença torna-se o resultado da luta interna da natureza entre espíritos bons e maus. Além disso, tem sua origem na própria natureza, sendo como uma ação dela mesma ou quando é provocada ou manipulada pelos homens4 (LUCIANO, 2006, p.173-4). Um fato que aponta para a problemática descrita por Baniwa foi o caso ocorrido em 2005, na região de Dourados/MS, com uma índia Kaiowá, que relutou em buscar atendimento médico para o filho que tinha dois anos e quatro meses, vindo o menino, em consequência a falecer. A mãe acreditava que o filho tivesse sido acometido por um feiticeiro, de nada valendo os cuidados médicos. É preciso registrar que o atendimento médico nas Aldeias é resultado da implantação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DISEIs); é uma iniciativa governamental relativamente recente, pois teve início nos anos de 1991 e só se consolidou em 1999, com a Lei Arouca, que regulamentou as atribuições ministeriais para a implantação de um sistema de atenção diferenciada à saúde indígena. Neste período, foram implantados 34 DISEIs, distribuídos por todas as regiões do País (LUCIANO, 2006, p.180). A implantação de postos de saúde nas comunidades indígenas não tem resolvido as demandas dessas comunidades. A situação fica mais complexa com relação às mulheres grávidas; na fala das mulheres, foram relatados problemas de toda ordem, desde a falta de vaga para o acompanhamento médico até a falta de veículo próprio para o atendimento da aldeia. A FUNASA (Fundação Nacional de Saúde) / SESAI fornece um carro para o atendimento na aldeia, mas “se o carro está numa aldeia e uma mulher passa mal em outra, esta fica esperando”. Houve caso “de uma das indígenas ter filho em casa, sozinha e o bebê quase morreu”. Assim sendo, no conceito da comunidade, a saúde precisa melhorar muito. Já as mulheres da Aldeia do Bororó-NAM relataram problemáticas também comuns, mas com especificidades distintas, dadas as condições da própria Aldeia. Neste grupo focal com mães, realizado no dia 26 de março 2011, ocorreu um fato importante que merece o nosso registro: foi a presença inicial de rezadores (02 homens e 02 mulheres) os quais fizeram uma cerimônia, fornecendo bênçãos para os trabalhos da tarde; após a reza, os homens continuaram presentes durante a oficina/grupo focal. Participaram 18 pessoas: 08 da etnia

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O autor chama a atenção para o fato de que o uso dos termos bons e maus espíritos nada têm a ver com as concepções judaico-ocidentais de Deus e Demônio, pois ambos pertencem à natureza. Entretanto, o conceito “mau” refere-se à capacidade de reação e autodefesa da própria natureza quando ela é transgredida.

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Guarani e 10 Kaiowá. A equipe do Projeto ficou constituída por: Vanderléia P. L. Mussi, Priscila de O. Gomes, Elizama T. Chamorro, Gabriela Sartomen, Edivânia Freitas. Com relação aos problemas referentes à saúde indígena, que se constituiu em proposta do primeiro eixo temático, foram apontados os seguintes aspectos: Como é o atendimento nos postos de saúde da aldeia? As repostas foram categóricas: Tem pessoas que moram longe e não conseguem chegar ao posto a tempo de serem atendidas. O médico às vezes só atende uma vez por semana, ficando somente os enfermeiros. Tem dias que o médico só atende 15 pessoas, se tem mais gente doente fica sem atendimento’. No posto 2 (Jaguapiru) eles precisam levar encaminhamento para serem atendidos. Quem mora no Bororó não pode ser atendido no posto da Jaguapiru e vice-versa. Faltam médicos o Bororó, mas os indígenas que residem nesta aldeia não podem ser atendidos no Posto da Jaguapiru. A dificuldade apontada em prestar o atendimento devido, com excesso de burocracia, é vista pela comunidade de mulheres como sendo uma justificativa para não trabalhar, ou seja: “os médicos só enrolam”. Na visão crítica dessas indígenas há médicos que atendem com boa vontade, mas tem que ter sorte para ser atendido. No caso das crianças em específico: algumas crianças não têm documentos e, mesmo que estejam doentes, não são atendidas. Afirmam que as doenças que mais atingem a aldeia são as doenças respiratórias como gripe, bronquite e tuberculose e as crianças e velhos, infelizmente, são os alvos mais vulneráveis. Agravando a situação, apontam, como na Jaguapiru, a falta de medicamentos. Os indígenas esperam de 2 a 3 dias para comprarem. A reivindicação feita por elas é a de que se ofereça aos indígenas um atendimento médico de 24 horas, inclusive nos finais de semana e feriados. Além disso, também solicitam no atendimento à saúde uma pessoa que entenda o português e o guarani, pois há dificuldades em relação à língua, muitos não entendem bem o português e não há quem atenda na língua guarani. Em se tratando da questão de atendimento à mulher no período de gestação, é feito uma parte em casa e a outra parte no posto. A Grávida tem preferência tanto no atendem em casa quanto no posto de saúde. Com relação ao pré-natal, o acompanhamento é feito por enfermeiras. Segundo elas, as gestantes chegam a fazer até sete consultas de pré-natal. São atendidas pelos médicos somente no término de gestação, quando vão ter a criança. Assim, para facilitar o transporte de gestantes a FUNASA deveria deixar um carro na aldeia para levar o paciente para a missão. No grupo, as mulheres relatam o caso de uma mãe que por não ter o atendimento devido acabou por perder o bebê, pois quando chegou ao hospital da missão a criança já tinha passado da hora de nascer e não resistiu. Reiteram a necessidade de se ter médico todos os dias, inclusive nos sábado e feriados, pois não se pode escolher o dia que se vai ficar doente. Segundo relatos, eles têm muita dificuldade de chegar ao posto, pois não tem carro para levar e se a pessoa está muito doente não tem condições de ir a pé. Quando não há médico nos postos de saúde, os indígenas são orientados a ir até a missão que fica quase á 10 km, mas os doentes não têm condição de chegar até lá. A situação é tão delicada que quando tem médico, não tem remédio, quando tem

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remédio não tem médico. Resta a estas mulheres, em meio a tanta privação de atendimento médico e amparo social, o sentimento de humilhação por serem mal atendidas. Assim como as mulheres da Aldeia Jaguapiru, as mulheres do Bororó também revelam a falta de ervas naturais, pois na reserva não há remédios caseiros, e por isso acabam ficando cada vez mais dependentes dos remédios dos brancos. Não tem mais remédios tradicionais no mato. Se os indígenas entram em alguma fazenda para procurar remédios caseiros podem ser mortos. Cada sociedade indígena tem um jeito próprio de lidar com as matas, os rios e os animais e todas demonstram práticas eficientes e respeitosas à natureza; podemos afirmar que os diferentes sistemas econômicos praticados pelos povos indígenas não são dirigidos para a produção de supérfluos e, portanto, não esgotam os recursos naturais, pois esperam o tempo necessário para a sua renovação. A sociedade não-indígena tem aprendido, aos poucos, essa lição de harmonia e respeito ao meio ambiente. Atualmente, nos empreendimentos da indústria extrativa de madeira, por exemplo, não se retiram todas as árvores, de uma vez só, de uma determinada área; seus técnicos planejam o corte, aguardam o tempo da “coleta”, preservam determinadas árvores para a produção de sementes, tudo para não depredar e esgotar a floresta, a que chamam de matéria prima. Entre os indígenas, pois, dificilmente se nota uma atitude de agressão desmotivada aos seres vivos ou de depredação ao solo. Para eles, como a qualquer ser humano previdente, tudo o que se fizer de errado ao meio ambiente, retornará em prejuízo à sua própria vida e à de seus filhos. A recuperação das matas degradadas, por exemplo, está intimamente relacionada à volta dos espíritos e das forças vitais da natureza, que foram levadas com a devastação. Assim, práticas como a caça, a pesca, a coleta de sementes e essências, ou a agricultura, podem ser coletivas ou individuais, dependendo da situação; entretanto, serão sempre realizadas com um profundo respeito à natureza, que é um bem coletivo, e tendo por princípio a solidariedade e a reciprocidade. Na cultura tradicional guarani, quando a mulher fica grávida avisa a mãe ou a avó, e começa a seguir uma série de restrições, e/ou proibições, a começar pelo tipo de alimentação. No sistema atual, a mulher pode escolher se usa o remédio do não-índio ou o tradicional. Entretanto, a quebra com a tradição pode trazer consequências danosas à comunidade e, por isso, a comunidade critica o modo atual das mulheres “abandonarem a tradição”. Algumas não tomam mais remédio tradicional e isso pode ocasionar problemas de saúde tanto para a mãe como para a criança. Neste sentido, a questão da saúde indígena pode ser avaliada sob dois aspectos: um que se refere ao cuidado e à mudança de hábitos alimentares e, o outro, que trata do tipo de relação que se estabelece com as pessoas e com a natureza. O cuidado com a alimentação, para as sociedades indígenas, não pode ser compreendido, tomando por base o tipo de alimentação, o preparo e a forma como a sociedade não-indígena lida com os alimentos. Geralmente, a sociedade não-indígena, quando

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cuida da alimentação, apesar de preocupar-se com a saúde e o bem estar, busca também adequá-la a dietas que aperfeiçoem ou mantenham a estética corporal, segundo a moda do momento. Ora, nas sociedades indígenas, isso não ocorre, porque o cuidado com os alimentos vai muito além do plano material, não podendo ser dissociado de sua dimensão espiritual e ritualística. Na concepção indígena, a natureza é uma mistura de seres naturais e sobrenaturais, isto é, para as sociedades indígenas, os seres vivos e não-vivos, reais e fantásticos, possuem uma dimensão espiritual. As plantas, os animais, todos possuem um espírito, um ancestral que os protege. Não é só na tradição guarani que se estabelece uma série de restrições e cuidados; no mito de iniciação de outros povos indígenas, como, por exemplo, os Tenetehara, a “mãe d’água” é uma espécie de espírito protetor das águas e todos lhe pediam que protegesse a menina (criança recém-nascida); também existe um espírito do mal, o “Iwán”, que carrega as moças pintadas... Por conta deste profundo sentimento mítico, toda comunidade indígena estabelece regras de conduta, para não ofender os seus antepassados míticos e para se protegerem de possíveis males que possam advir. Assim, quando essas regras são desrespeitadas, é inevitável que sejam punidos com doenças, ou até mesmo com a morte. Na cosmovisão Guarani quando a mulher indígena tem filho, tem que ficar de resguardo em casa, só podendo sair após o pôr-do-sol do sétimo dia; a quebra desta ação mítico-ritualística, de não cumprir com este resguardo, pode resultar na ausência de saúde para a mulher e também para o filho. O descumprimento de determinações míticas relacionadas com a alimentação - no caso do povo Baniwa, por exemplo, a ingestão de carne crua- pode provocar doenças no estômago: na concepção deles, uma espécie de bicho cresce no interior da pessoa, a partir do momento em que ela digere a carne crua. Da mesma forma, também acreditam que, quando se anda muito tempo no mato, vários seres visíveis e invisíveis cruzam o nosso caminho e, por isso, não se pode comer nada, sem antes tomar banho, pois isso pode provocar febres, dores de cabeça e dores de dente. Se forem observadas, com atenção e mentalidade aberta, essas regras de fundo mítico, todas têm um sentido bastante prático, de preservação à saúde humana e do meio ambiente. O que pode ser privação para uns pode não ser para outros, pois em algumas sociedades indígenas, o sistema de alimentação mais comum é o baseado na carne de animais (caça); já para outros grupos, como, por exemplo, alguns do Alto Xingu e do Alto rio Negro, a carne de caça, por não ser rica em proteínas, é substituída pelo peixe. Assim sendo, o consumo do alimento, entre os povos indígenas, obedece a critérios muito práticos, como o de ser ou não abundante e rico em determinada região; entretanto, o critério prático está submetido a regras e preceitos – e até preconceitos e tabus – que variam muito de região para região, de nação para nação, de aldeia para aldeia, mas estarão sempre presentes, como uma característica marcante da cultura indígena.

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A Educação Indígena na Percepção das Mulheres. No Grupo Focal do Bororó, Dona Tereza, uma anciã rezadora da Aldeia, ao falar de educação tradicional Guarani, começa falando no próprio idioma guarani, dizendo que não concorda com as mães que batem nos bebês menores de um ano. A partir dos oito anos, a mãe pode bater na criança, não para machucar, para educar. O pai não deve bater nas crianças, pois por ser forte, pode machucar. A partir dos doze anos, os pais devem sentar-se com seus filhos e aconselhá-los. A Educação não institucionalizada começa por incentivar o diálogo e evitar a violência; as palavras têm mais força do que as palmadas. Segundo essa anciã, quando os pais não conversam, não dialogam com os filhos, eles acabam perdendo a referência do que deve ser feito e não deve ser feito. Por isso, lamentou o fato de que, ao não se educar a criança nas tradições culturais, muitas delas acabam se perdendo. Para reafirmar o seu conceito de educação tradicional guarani, Dona Tereza apontou o exemplo de algumas crianças que, por terem perdido esta referência, a caminho da escola acabaram chegando alcoolizadas na sala de aula. Independente do estado em que esta criança chega à escola, o governo tem políticas de incentivo para incentivar os pais a mandarem seus filhos para a escola. As mulheres afirmam que algumas famílias recebem o Programa Bolsa Família como forma de manter o filho na escola. Estar com os filhos matriculados na escola já é um pré-requisito para o recebimento da Bolsa. Entretanto, ressaltaram que é muito difícil encontrar vaga na escola, não tem préalfabetização (Educação Infantil) e, por isso, muitas famílias ficam sem este benefício. Já com relação à escola, fazem uma série de reclamações como: A falta de salas de aula; a violência na escola: as crianças brigam, chutam, jogam comida; os professores são indígenas e não indígenas; a escola Ara-Porã não tem professores e nem coordenador, além de o prédio da escola se encontrar em péssimo estado... não tem banheiro, etc. Os professores não indígenas não conseguem ensinar as crianças porque não falam e nem entendem o idioma guarani e, por isso, acabam por não conseguir ensinar as crianças. Em casa, os pais só falam na língua materna. Outro aspecto sério tratado pelas mulheres, mães da Aldeia, que merece nosso registro, é a chamada disputa de poder na educação, que só resulta em prejuízos para todos, uma vez que prejudica o planejamento e os conteúdos específicos (educação diferenciada). O que seria da competência dos professores, eles acabam não dando conta, pois muitas crianças têm problemas mentais e passam despercebidas pelos pais e pelos professores. Segundo elas, há um distanciamento significativo entre a escola e a comunidade, pois os gestores da educação não têm grande comunicação com a comunidade: isso seria necessário para melhorar a política de valorização da cultura. Os próprios indígenas, ao invés de valorizar os seus profissionais, se aliam ao não-índio, tirando a gestão das escolas da mão dos indígenas. Sente-se uma desvalorização da cultura pelo próprio indígena, apesar de ser muito forte nas mulheres o sentimento de manterem a cultura. Reclamam que a valorização da cultura é pouco trabalhada nas escolas. Há muitas interferências externas (religiosa, governamental) à comunidade como, por exemplo, os protestantes índios que atacam os rezadores acusando-os de serem demônios. O conselho tutelar tira um pouco a autoridade dos pais para com os filhos. Muitos pais não

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conseguem educar os filhos, pois são barrados pelo conselho tutelar. A televisão influencia as crianças indígenas. Desenhos e filmes de luta, de violência influenciam muito as brincadeiras das crianças. Já na Aldeia Jaguapiru, na Escola Tengatui Marangatu, uma indígena da comunidade aproveita para falar sobre seu trabalho com as crianças da aldeia que não têm família; são aquelas que, por algum motivo, foram abandonadas pelos pais. Ao adotar essas crianças, ela procura manter e mandar para a escola, cuidando como se fossem os seus filhos. Conviria registrar que no momento da oficina realizada com essas indígenas, ela levou um menino de aproximadamente 12 anos de idade, dizendo que era o mais novo adotado. O menino não falava em português, por isso, tinha muitas dificuldades na escola. Segunda essa mulher indígena, no geral, as crianças falam guarani e entendem muito pouco o português, pois em casa os pais, para estimular a preservação da cultura, conversam em guarani com seus filhos; situação muito semelhante às vivenciadas pelas crianças da Aldeia do Bororó. Com relação à escola, assim como as mulheres do Bororó, as mulheres do Jaguapiru também apontam vários problemas de ordem estrutural, cultural e pedagógica, como: a escola, por ser construída de madeira, quando chove molha tudo por dentro; além do fato de serem pequenas, e não comportarem os alunos. Assim, além do problema estrutural há também os de ordem pedagógica, pois vários alunos estudam ao mesmo tempo, na mesma sala; são as chamadas salas multisseriadas, ou seja, vários alunos de diferentes faixas etárias, em diferentes níveis de escolarização, estudam no mesmo espaço. Ao tratar do respeito à cultura, afirmaram que na escola devem ser ensinadas as duas línguas, o guarani e o português, respeitando a língua tradicional. Da mesma forma que no Bororó, as mães do Jaguapiru também fizeram referências à bolsa-família, dizendo que quem tem filhos na escola recebem o bolsa-família e a cesta básica, mas a cesta não é suficiente, sempre acaba antes de chegar a outra, por isso, eles plantam legumes em casa.

A Violência Indígena na Percepção das Mulheres. Neste grupo focal, as questões que permearam as discussões foram: A aldeia se constitui como um lugar seguro para o desenvolvimento das crianças? Quais os principais atos de violência que ocorrem dentro das aldeias? Existem diferenças entre o chamado “centro” da aldeia e a “periferia”, em relação aos incidentes de violência? Quais os fatores externos à cultura tradicional que geram, ou agravam os incidentes de violência dentro das áreas em questão? As respostas fornecidas pelo grupo focal, constituído por mulheres da Aldeia do Bororó, apontaram que a questão da violência foi um dos aspectos mais emergentes, ficando assim mais evidenciada nos relatos, tanto da Aldeia do Bororó, quanto da Aldeia do Jaguapiru. As mulheres do Bororó afirmam que, muitas vezes, a violência acontece dentro da própria casa, pois alguns maridos praticam violência contra a mulher e contra os filhos.

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Preocupam as mães, professoras e mulheres dessa Aldeia o alto índice de violência. Segundo os relatos, a Aldeia vive em um estado constante e vigilante de terror, além do clima de muita tensão, por falta de segurança. Pedem policiamentos na Aldeia, mas, segundo elas, as responsabilidades em assumir a segurança resultam em um grande jogo de empurra, que acontece entre Estado Município e Ministério Publico Federal (Polícia Federal). Enquanto esses órgãos definem de quem é a responsabilidade, a Aldeia fica vulnerável a toda ordem de violência, fugindo completamente do controle da comunidade, o que pode ser conferido na própria ordem de problemas elencados por elas como, por exemplo: A venda de álcool: o alcoolismo tem gerado muitos problemas na aldeia, os homens bebem e batem nas esposas, nos filhos ou atacam as pessoas na rua. As mulheres que são agredidas não denunciam o marido por medo; quando o marido bebe, essas mulheres dormem no vizinho ou no mato. Dentro da reserva, ocorre a venda de bebidas alcoólicas pelos próprios indígenas: as pessoas veem, mas têm medo de denunciar, pois correm o risco de serem mortas. Os próprios indígenas vendem as drogas nas aldeias. O branco traz para o índio distribuir (vender/comprar). Em relato, uma indígena diz que o filho saiu de casa para vender drogas; a maioria dos jovens está envolvida com drogas, crianças de até dez anos já estão fumando. E não existe nenhum tipo de tratamento contra isso; os jovens roubam e matam para comprar drogas; as crianças estão começando a usar drogas cada vez mais cedo; muitas vezes, os pais sabem e não fazem nada, pois a família não sabe o que fazer; as crianças roubam coisas sem valor para comprar drogas; as mães não têm para quem reclamar. As crianças já não ouvem. As crianças ficam “loucas”, pois as drogas afetam a cabeça. Jovens bebem, fumam e vão para a estrada com facões para cometer violência. Jovens brigam com as pessoas da própria família. Filhos batem nas mães. Entre os conselheiros, somente cinco homens trabalham e, voluntariamente, (da própria comunidade e da liderança). A liderança da aldeia tenta conversar com os jovens que estão causando desordem na aldeia, mas eles não são respeitados. A liderança perdeu autoridade. Reafirmam que há muita falta de segurança. Na delegacia, não tem ninguém que os apóie, ou ajude. Pelo contrário, riem e debocham dos problemas de violência. Eles sentem que seus direitos não são respeitados. Os indígenas sentem que não têm para quem pedir socorro. Quando denunciam os criminosos, eles ficam presos por um ou dois dias e são soltos. Depois, voltam para a aldeia e fazem ainda mais arruaça. Em um dos relatos, falam sobre o caso de uma criança que começou a consumir drogas com 9 anos e, aos 17, já estava louca. Chegaram à triste constatação de que as drogas enlouquecem e não tem mais cura, os jovens falam sozinhos, andam sujos na estrada, abandonam a escola, preferem andar pela estrada à noite, em vez de ir à escola. Afirmam sobre a necessidade de conhecer os remédios tradicionais para se combater as drogas. E, por fim, reclamam sobre a falta de informação a respeito do combate às drogas, pois não se conversa sobre drogas e tratamento. Reivindicam formação, no sentido de se saberem mais sobre isso, de como evitarem e combaterem as drogas. Da mesma forma, sugerem que haja um projeto para os jovens estudarem e trabalharem, se envolvendo com a terra, recebendo bolsa, pois os pais tradicionalmente costumavam introduzir os filhos no trabalho agrícola, desde pequenos, e essa ocupação os impede de fazerem coisas erradas; porém, os conselhos tutelares tiram a autonomia das famílias. O serviço de saúde não consegue chegar aos jovens para fazer trabalho de conscientização. (álcool, drogas, violência e gravidez). A violência é atribuída à

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falta de espaço. A falta de terra é evidenciada como um dos fatores que contribuem para ocasionar a violência. Segundo os relatos, é por causa das drogas que acontecem as chamadas “facãozadas”. Relatam as mulheres, com sentimento de tristeza e de impotência, que as chamadas “facãozadas” alcançam o extremo nível de violência. Segundo elas, são jovens, crianças de até 11 anos de idade, que saem de uma Aldeia para outra em busca de algo para roubar, vender e trocar por drogas. Os velhos têm sido alvos fáceis de agressão, cujas vítimas não reagem e muitas vezes pagam com a própria vida. O desespero é tanto, e a busca por respostas é tão variada, que em um dos relatos, uma indígena chegou a mencionar como resposta, que isso se constitui em uma estratégia de acabarem com toda comunidade indígena. Segundo ela, como o homem branco não tem como chegar à aldeia e matar todo mundo, arrumou uma forma bem estratégica de acabar com todos sem levantar nenhuma suspeita: jogaram essa tal de droga no meio da comunidade como uma forma de um matar o outro, ou seja, do índio matar o próprio índio. Já na Aldeia do Jaguapiru, o tema da violência também foi marcado basicamente pelos mesmos problemas já apontados pelas mulheres da Bororó, que assim o elencaram: Há casos de marido que agride esposa. Uma das mulheres da comunidade contou que era agredida pelo marido, quando este estava alcoolizado: “Batia em mim e na minha filha, até que me separei e voltei a morar com minha mãe”. Outra mulher da comunidade relata que o marido bebia e a agredia, brigava com os filhos e com a família. A igreja ajudou a melhorar o jeito dele e hoje ele não bebe mais. Já a outra que estava no grupo quis falar alguma coisa, mas preferiu se calar. Também disseram que a violência verbal também está presente. Há violência gerada pelo álcool e outras drogas: Tem muita droga e bebida alcoólica na aldeia. A liderança pouco faz para mudar isso. Tem adolescentes de 12 a 15 anos que estão envolvidos em atos de violência. Elas evitam sair de casa à noite, eles usam instrumentos como facão, foice e pedra para atacar as pessoas: É muito perigoso andar pela aldeia, uma criança foi atropelada por um carro e o motorista sequer prestou socorro, nos conta uma das mães. Como sugestão, essas mulheres apontaram a necessidade se ter um centro de tratamento a dependentes químicos e programas de combate a violência. Reclamaram da omissão da FUNAI que nada faz para prevenir a questão das drogas e do alcoolismo nas aldeias. Também não eximem as responsabilidades da família ao afirmar que às vezes, os próprios pais não aconselham os filhos; o que tem que ser feito desde pequenos, por isso muitos jovens se envolvem com drogas. Em se tratando do entendimento de violência, Renata Maria Libório, doutora em Psicologia Social, ao tratar de sua pesquisa com exploração sexual comercial infanto-juvenil, parte das definições de Maria Lucia Leal (2001), definindo três tipos de violência:

A violência estrutural (em cujo interior encontramos a exclusão social, a influência da globalização e da imposição das leis do mercado), a violência social (expressas nas dimensões de gênero, raça/etnia e geracional) e a violência interpessoal (presente nas relações interpessoais, tanto intra como extra familiar), aspectos psicológicos (a construção de identidade e o processo

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de vulnerabilização), sendo entendidos dentro do contexto da adolescênciassexualidade-violência e violação dos direitos (LIBÓRIO, 2004, p.24).

Como forma de amenizar a violência contra as diferenças, torna-se necessário, como primeiro passo, estabelecer um diálogo intercultural. O diálogo intercultural é possível, mediante o reconhecimento das relações que permeiam a dinâmica de organização sociocultural entre os povos: sejam indígenas e não indígenas; seja na aldeia ou no contexto urbano; seja, ainda, no entorno da sociedade envolvente: é preciso aprender suas vozes dissonantes; é preciso aprender a desconstruir os discursos preconceituosos e violentos que historicamente foram sendo construídos e sedimentados como valores naturais. O antropólogo João Pacheco entende que é imprescindível considerar os impactos provocados por esse processo de interação com a sociedade envolvente, agora na ordem econômica, social, cultural, ambiental e educacional. Por isso, o principio da igualdade deve ocorrer entre os diferentes, e sendo diferentes, não é possível traçar políticas públicas homogeneizadoras, com modelos únicos, acabados e rígidos. Essa tentativa de se apresentarem modelos únicos e estranhos às comunidades indígenas, sejam eles econômicos, culturais, políticos, sociais, ambientais e até pedagógicos, para se adequarem às expectativas das sociedades não indígenas, resultaram no princípio da violação dos direitos humanos e culturais, causando assim grandes prejuízos, além de inúmeros problemas sociais, principalmente, aqueles que se encontra em contextos urbanos. Além de se constituir em um tipo de violência estrutural, social e até violência interpessoal (OLIVEIRA, 1999, p. 20). Desta forma, podemos entender que o Estado, ao traçar políticas públicas homogeneizadoras, como modelos únicos, está agindo também como um dos maiores violadores dos direitos humanos e, por conseguinte, causando também um tipo de violência. A que podemos chamar de “violência simbólica”. O sociologógo, Pierre Bourdieu, entende a violência simbólica como uma forma de coação, (é entendida como mal injusto, grave e eminente, utilizado contra uma pessoa por meio de manobras/maquinações, podendo ser com violência física ou psíquica, com o objetivo de forçar uma declaração contra a vontade voluntária do coagido), privação, que se apoia no reconhecimento de uma imposição determinada, seja ela econômica, social ou simbólica, ou seja, é um meio de exercício do poder; é o chamado “poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”. Por isso, identificar a violência simbólica é tarefa ainda mais difícil, pois não há percepção de sua existência em agressões psicológicas, humilhações e constrangimentos. Logo, o que pode ser verificado por meio dos relatos das mulheres da região de Dourados é que a comunidade vem sofrendo toda ordem de violência: estrutural, social, interpessoal e simbólica (BOURDIEU, 2000, p. 08).

A Moradia Indígena, na Percepção das Mulheres. Neste grupo focal, as perguntas que permearam as discussões foram: As casas comportam e correspondem às necessidades das famílias, na Aldeia? Os serviços de

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saneamento básico, como distribuição de água e energia, escoamento de esgoto e coleta de lixo atendem às demandas das famílias? Como são realizados dentro das Aldeias? Em relação à coleta de lixo e esgoto. Qual é o tratamento fornecido pelas políticas públicas referentes ao destino do lixo e do esgoto? Como a comunidade lida com isso? Qual a forma que as famílias hoje buscam para realizar seu sustento? O tamanho das áreas demarcadas para cada uma das aldeias é insuficiente para sustentar as formas tradicionais de agricultura, pesca e coleta? Quais as atividades laborais executados pelas mulheres/mães que contribuem para a geração de renda dentro do grupo familiar? As crianças executam algum tipo de trabalho com o intuito de gerar renda para as suas famílias? Se sim, identifique quais são esses trabalhos e em quais períodos eles ocorrem. Na Aldeia do Bororó, as mulheres, mães e professoras apontaram sobre a problemática da moradia os seguintes pontos: Falta água. Quando tem é só da meia-noite às seis da manhã; as mulheres afirmam que a falta de água sempre foi um problema nessa região da Aldeia. Reclamam que a água está contaminada e que os indígenas são proibidos de tomá-la. Com relação à falta de moradia, denunciam que não tem casa para todos e que quem cadastra as famílias nos programas de habitação são os agentes de saúde; a FUNASA não acompanha o cadastramento, só cadastra seus parentes para ter casa, mas, quem mais precisa não tem. Afirmam que há casas em que moram até oito pessoas em uma casa. Quem ganha casa do governo são os que já têm. Fazem uma série de denuncias dizendo que as casas não estão prontas, porém os donos das casas são obrigados a assinar dizendo que a casa está completa. Faltam casas, principalmente por falta de documentação ou por documentação irregular. O processo de escolha das famílias para conseguir a casa não atende direito as necessidades da comunidade, pois há muita corrupção na escolha das famílias. Muitas viúvas não têm casa e, com sentimento de tristeza garantem: branco tem casa, índio não tem. A aldeia está esquecida, desorganizada, ninguém manda na aldeia... Já na Aldeia do Jaguapiru, as mulheres, assim com as do Bororó, também reclamam a falta de moradia; dizem que quem realmente precisa de casa, que mora na aldeia não consegue e muitos que são de fora ganham e depois vendem. As que estão na Aldeia e têm casa afirmam que as condições muito precárias, pois, quando venta e chove muito, molha todo o interior das casas. A problemática é tão alarmante que das mulheres presentes no grupo focal, somente uma delas conseguiu ser beneficiada com uma casa do governo.

A Proteção e Cidadania na Percepção das Mulheres Indígenas Em se tratando do último eixo temático tratado nos grupos focais, as dúvidas se relacionavam, principalmente, ao reconhecimento da identidade indígena, ou seja, se havia acesso aos dois tipos de registro: o registro civil e o registro administrativo da FUNAI. E quais seriam os maiores problemas da comunidade? Também se procurou saber quais são os programas sociais do Governo: Bolsa Família, BPC, aposentadoria, cestas de alimentos, entre outros, a que as famílias estão tendo acesso. Em se tratando da Aldeia Bororó, as resposta

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acabaram por retomar os vários problemas existentes na comunidade, relacionados à documentação; programas sociais do governo; a violência; o trabalho infantil; a questão das drogas, o que pode ser evidenciado na escala de problemas apontados pelas mulheres, como: muitos alteram os documentos de idade para prolongar o recebimento de auxílios. Também relatam a presença do não-índio na aldeia, usufruindo de benefícios. Observam que têm acesso ao Bolsa-Família, porém perdem quando o pai sai para trabalhar nas usinas. A bolsa-família tem ajudado muito essas famílias; em algumas situações, tem sido a salvação de algumas crianças, principalmente quando as crianças são rejeitadas pelos padrastos e a bolsa serve para a mãe comprar coisas para a criança que não é do marido. Entretanto, o valor do Bolsa-Família está sendo retido (em algumas famílias). Com relação à questão da violência e do trabalho infantil, as mulheres da Aldeia fazem referências que devem ser analisadas no contexto em que uma situação acaba se desdobrando em outra. Na sequência de afirmações, a seguir, isso fica bem evidenciado: o não-índio influencia o jovem na questão da violência. Ninguém pergunta o que eles pensam. Pelo contexto de proximidade com os centros urbanos, as crianças têm acesso ao dinheiro, cuidando de carros, por exemplo, o que facilita o acesso ao álcool e às drogas. O Conselho Tutelar, que deviria contribuir para amenizar esses problemas, acaba gerando outro, pois, segundo essas mulheres indígenas, acaba por tirar a autonomia dos pais no cuidado da criança. Por falta de conhecimento, os pais ficam perdidos no cuidado dos filhos, e isso é um fator que gera violência; segundo os relatos, todos acreditam que a educação e o aconselhamento familiar formam boas pessoas. Algumas crianças se envolvem no crime por falta de dinheiro, outras por falta de ocupação, esporte, lazer, etc. Também fazem sugestões como: cursos seriam interessantes, porém o ideal é que fossem remunerados. Tentar inserir o adolescente no mercado de trabalho, as vagas disponíveis não são ocupadas pelos indígenas. Já com relação à Aldeia do Jaguapiru, a questão da cidadania ficou marcada pelo registro da documentação, como forma primeira de ser reconhecido na sociedade, logo, afirmam que o documento da FUNAI, todos têm, mas o documento civil nem todos possuem. Na realidade, observa-se que a questão da cidadania diferenciada pela comunidade indígena ainda está em fase de construção. A propósito, Gersem Luciano Baniwa afirma que essa construção torna-se possível no momento em que o princípio da tutela está sendo superado nos instrumentos jurídicos do Estado e na prática de algumas políticas públicas voltadas para os povos indígenas. Para o autor, a questão fundamental para se pensar a questão da cidadania indígena é superar a noção limitada e etnocêntrica de cidadania, sendo entendida apenas como direitos e deveres comuns a indivíduos que partilham os mesmo símbolos e valores nacionais. Isso é indevido porque, na concepção do indígena da etnia Baniwa, os povos indígenas não partilham a mesma língua, a mesma história, os mesmos símbolos, a mesma estrutura social e, muito menos, a mesma estrutura política e jurídica da sociedade brasileira não indígena, uma vez que possuem símbolos, valores, histórias e sistemas sociais, políticos, econômicos e jurídicos próprios (LUCIANO, 2006, p.87-88). Na realidade, a cidadania do ponto de vista dos povos indígenas, conforme menciona o autor, é almejada segundo a necessidade, a partir do amparo legal do país, para reivindicar seus

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direitos à terra, à saúde, à educação, à cultura, à auto-sustentação e outros direitos nos marcos do Estado nacional. Afirma, conforme aponta as mulheres tanto da Aldeia do Bororó, quanto do Jaguapiru, que a Carteira de Identidade, ou o CPF, são absolutamente desnecessários, mas se tornam importantes e, até mesmo imprescindíveis, quando lidam com a sociedade nacional, e/ou sociedade envolvente. Neste sentido, a cidadania é um recurso apropriado pelos povos indígenas para garantir seu espaço de sobrevivência em meio à sociedade majoritária (LUCIANO, 2006, p. 89).

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d) Percepções das lideranças Kaiowá, Guarani e Terena Antonio H. Aguilera Urquiza Muitas vezes se pergunta o que a comunidade pensa, Mas o que ela diz não é levado em consideração na hora de formular e implantar os projetos (liderança G/K)

Considerações iniciais O projeto LEVANTAMENTO DIAGNÓSTICO QUALITATIVO sobre o grau de realização dos direitos humanos das crianças e mulheres INDÍGENAS Em Dourados/MS, foi proposto pelo UNICEF com o objetivo de conhecer melhor a realidade das aldeias da região de Dourados, em especial, a percepção de realização de Direitos Humanos de mulheres e crianças, tendo em vista situações de desnutrição, altos índices de violência, dificuldades para geração de renda e produção de alimentos por um lado e dependência dos programas sociais de outro, falta de oportunidades para os jovens, entre outros. Nesse quadro, muitas instituições governamentais e ONG’s vêm desenvolvendo inúmeras ações, no entanto, com uma característica comum: quase sempre são ações fragmentadas, sem continuidade e, no mais das vezes, com soluções a partir de nossas análises e tentativas de compreensão, sem levar em conta a realidade e a percepção dos próprios indígenas, sobre seus problemas e sugestões de solução. A proposta deste levantamento é subsidiar estas agências que praticam intervenção nas aldeias de Dourados, com a visão e a versão dos próprios indígenas sobre sua realidade, com a intenção de subsidiar atuais e futuras atividades de intervenção nas aldeias. Dessa forma, o primeiro grupo a ser ouvido através da técnica do grupo focal, foi o das lideranças e representantes das duas comunidades. Diante da diversidade colocada pelas distintas aldeias, foram formados dois grupos focais, na aldeia Bororó (19/03) e na aldeia Jaguapiru (27/03). No dia 19 de março de 2011, nos encontramos no NAM (Núcleo de Ações Múltiplas) da Aldeia Bororó, com representantes da comunidade (Odaléia: profª de Educação Física; Fernando: Presidente do Conselho Municipal de Saúde; Ataleu e Tibúrcio: membros do conselho da aldeia; Profº João: mestrando na UFGD; Getúlio, Adimir e Epitácio Silva: representantes da comunidade; Ade: Agente indígena de saúde; Assunção: foi vice-capitão até 2008) e as principais lideranças: Cézar Isnard: capitão da aldeia Bororó e Aniceto: vice-capitão. O grupo seleto, de 12 pessoas, com apenas uma mulher, mas, com paridade nas funções e representatividade: lideranças, professores, agente de saúde, etc. Foi explicado para o grupo os objetivos do encontro: realizar um levantamento diagnóstico sobre o grau de realização dos Direitos Humanos de mulheres e crianças nas aldeias de Dourados. Trata-se, na verdade, de ouvi-los sobre vários temas e, a partir desta percepção, elaborar um documento para subsidiar as futuras ações de instituições nas aldeias. No dia 27 de março foi o Grupo Focal dom as lideranças e representantes da Aldeia Jaguapiru (Ricardo - Comunidade Jaguapiru, Edite - Associação de Mulheres Indígenas, Edna de

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Souza – Professora, Romero – Liderança, Silvio - Liderança, representante do cacique Vilmar, Floriza - Ñandeci (rezadora e artesã), Jorge - Ñanderu e ceramista). O conteúdo a seguir, foi elaborado a partir do material recolhido nas observações e nos grupos focais com lideranças e representantes das aldeias Bororó e Jaguapiru. Aparecem no texto registros de falas gravadas e transcritas pela equipe do projeto. Estão em itálico, as expressões que se referem a manifestações verbalizadas pelos próprios indígenas durante as discussões nos grupos focais. Nem sempre, no entanto, estes fragmentos correspondem a citações literais, mas, é uma tentativa de separar os discursos dentro texto. Logo após as apresentações e exposição dos objetivos do encontro, alguns dos presentes destacaram a importância de sermos ouvidos, pois o que sempre acontece é que chegam muitos projetos nas aldeias e ninguém pergunta se é o que a gente realmente precisa, se é o melhor para a comunidade. Outro acrescentou no mesmo tom: a gente tinha que ser consultado antes de qualquer projeto vir par a aldeia. Esses projetos tinham que ser feitos junto com a gente.

A SAÚDE INDÍGENA Após estes comentários introdutórios, o primeiro tema abordado foi o da Saúde. As questões levantadas, inicialmente foram: de que forma é realizado o atendimento da saúde aqui na aldeia? Esse atendimento respeita a cultura? Os integrantes do grupo afirmam que o atendimento não é bom, e que não há respeito à cultura, pois nos postos de saúde não tem ninguém que faça a tradução da língua Guarani; aí fica muito difícil, pois alguns indígenas não falam o português. Outro afirma: A recepcionista do posto tem vergonha de falar em Guarani. Eles também relatam que alguns médicos são omissos e que não há políticas de prevenção ao HIV e que na aldeia há aproximadamente seis casos de pessoas com esta doença. O HIV é um tabu para a população indígena, o diagnóstico é difícil principalmente entre os jovens. Aqui, também, a gente não tem psicólogos e assistentes sociais suficientes para atender às pessoas da aldeia. Outro participante afirma que a saúde hoje é boa, antigamente tinha muitos problemas, espancamento de mulheres, inclusive gestantes. O médico vem de segunda a sexta feira, às vezes atende nas casas, às vezes atende no postinho. Mas, constata-se, também, que o funcionário público, nem sempre tem paciência com as pessoas; Para trabalhar na saúde, tem que amar a todos. Às vezes há falta de respeito com as mães e as crianças. Afirmam que há máquinas quebradas e insuficiência de carros para atender as pessoas da aldeia. Os carros são dois e atendem toda a região. Faltam recursos para esses órgãos (carro, remédio, médicos, atendentes). Falta de remédios para doenças crônicas, como do coração, a alternativa é “usar remédios ensinados pelos nossos pais”. Outro aspecto levantado é que os agentes de saúde demoram muito (quatro meses) para realizar visitas e quando aparecem são muito superficiais.

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Na opinião do grupo, um dos grandes problemas da saúde, inclusive das crianças é o álcool e as drogas, vendidos na aldeia pelos próprios indígenas. A gestão administrativa anterior (capitão) tentou buscar ajuda com senador e outros políticos, para resolver este problema das drogas, mas nada aconteceu. Na verdade, segundo eles, não existem projetos na área da saúde na prevenção e tratamento de alcoolismo e dependência química. Existe uma cota de atendimento de 20 pessoas por dia nos postos de saúde. Se uma mãe chega ao posto de saúde com seu filho o médico não atende se já tiver completado a cota de 20 pessoas. Não se costuma verificar se é uma urgência, apenas não atendem os que passam da cota. Se está sobrecarregado precisaria de mais médicos. Foi discutida, também, a questão do pré-natal; o grupo relata que existe certa resistência por parte das mulheres indígenas, principalmente por parte das adolescentes em ir ao posto de saúde fazer o pré-natal. Todas as gestantes devem ter mais de 4 consultas de prénatal. Os AIS encontram as gestantes e as convencem de fazer o pré-natal. Quanto à “gravidez precoce”, as adolescentes escondem a gravidez e iniciam o pré-natal tardiamente. Encontra-se uma maior incidência de gravidez na adolescência. Entra aqui, a questão discutida anteriormente, no tema das crianças e adolescentes, da “gravidez precoce”, ou indesejada, situação quase sempre deixada para a “menina” resolver com sua parentela. Afirma-se que a prioridade da saúde para indígenas, é o atendimento de crianças menores de 01 ano. Constatou-se no grupo a sobrecarga de trabalho sobre o agente de saúde que é quem está mais próximo da população e alguém chegou a afirmar que há mais de oito meses, a enfermeira não passa na minha casa. Esse trabalho dos Agentes Indígenas de Saúde fica ainda mais prejudicado pelo descaso por parte da prefeitura com relação as estradas da aldeia que se encontram em péssimo estado. Algumas lideranças consideram a estrada como problema de saúde, pois dificulta o acesso de crianças e gestantes ao atendimento médico. Quando chove as pessoas ficam isoladas. Quanto ao respeito às particularidades da cultura no atendimento médico, responderam que geralmente não se respeita, não entende a língua, não respeita os medicamentos tradicionais, só receita medicamento de ‘não-índio’. Falta de incentivo às parteiras tradicionais, importância de remuneração e do acompanhamento da parteira no prénatal e no momento do nascimento. Importante o posto de saúde criar espaço para que as parteiras participem dos atendimentos. Neste sentido afirmam que é importante capacitar os médicos, agentes e enfermeiros nos conhecimentos específicos dos povos atendidos, ou seja, conhecimentos tradicionais desses povos, da perspectiva antropológica no atendimento de saúde. As lideranças apontam outro problema que são as quadras de esportes das escolas. De seis quadras apenas uma possui cobertura. Segundo a comunidade a exposição ao sol prejudica a saúde das crianças. Sabe-se que recentemente foi inaugurado um grande complexo olímpico na região de fronteira entre as duas aldeias para atender, especialmente, aos jovens e crianças indígenas.

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Para finalizar este tema, foi afirmado que o trabalho é também considerado importante para garantir o direito à saúde, pois sem trabalho não se pode ter as condições mínimas de vida.

A EDUCAÇÃO INDÍGENA Na sequência do grupo, o próximo tema abordado foi o do da Educação, com algumas questões para os participantes: como está a educação na aldeia? A escola tem respeitado a tradição e a cultura indígena? Segundo o grupo, Apesar de ter tido uma melhora na educação, ainda há muitas coisas a serem melhoradas. Há um alto nível de evasão e repetência nas escolas devido a não compreensão dos indígenas de algumas matérias por não compreenderem bem a língua portuguesa. Uma dificuldade de educação indígena é a troca de gestão, toda vez que muda o diretor da escola, muda o programa pedagógico. Mesmo assim, constata-se que o programa pedagógico melhorou bastante. Nas várias escolas municipais das aldeias de Dourados, onde acontece o Ensino Fundamental, os diretores, coordenadores e professores são indígenas; o mesmo não acontece com o Ensino Médio. Quanto ao processo de aprendizagem, afirmaram que ainda existem evasão e repetência em alto nível, pois os alunos não acompanham; eles não entendem as aulas, por questões ligadas à língua e a prática de ensino. Segundo o grupo, a política do município interfere no plano pedagógico e na prática de ensino, além de que a pedagogia diferenciada precisa ser criada pelo professor, enquanto que a educação do não-índio tem muito mais material didático, o que parece dar mais embasamento para as atividades do professor. Neste sentido, todos afirmaram a carência de material didático específico para as aldeias de Dourados. Ainda quanto aos procedimentos do professor: ele (o professor) deve ter paciência com o aluno, pois não é fácil levar ao mesmo tempo os dois modelos educacionais. Ao mesmo tempo em que constatam a baixa qualidade da educação oferecida nas aldeias, afirmam também, que a educação é importante para que o indígena conheça seus direitos. As próprias lideranças e representantes das comunidades reconhecem que as novas gerações deverão ter maior nível de escolaridade para enfrentar as novas realidades e dificuldades que estão aparecendo. Sabemos da dificuldade que é transpor dos textos legislativos, a proposta da educação indígena específica, diferenciada, bilíngue, intercultural e comunitária, para a realidade da sala de aula. Apesar da maioria destes professores indígenas ter passado por cursos de formação de professores específicos, o cotidiano da educação indígena é repleto de contradições, afinal, estamos em uma região de fronteira, para usar conceito de Fredrik Barth (2002), adaptado à realidade da escola indígena por Antonella Tassinari (2002). A escola indígena é espaço de fronteira, entendida aqui não como

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Na atualidade, quando se fala em educação escolar indígena, normalmente temos por um lado: currículo indígena, professor indígena, língua e saberes indígenas e, por outro lado: educação e disciplinas escolares, sistemas de ensino, conteúdos legitimados em “grades curriculares” etc. Duas lógicas de produção de conhecimento, de leitura da realidade que pressupõem o encontro de identidades e diferenças que buscam dialogar sob o paradigma da interculturalidade, bem como construir um cotidiano escolar para os povos indígenas com um novo sentido e um novo significado. Nesta possibilidade de encontro entre culturas, produz-se um novo espaço com novas complexidades. O modelo escolar assimilado pelas comunidades indígenas, e as aldeias de Dourados não fogem a esta regra, é o de uma escola homogeneizadora e etnocentrista (Missões, SPI/FUNAI) e que sempre se pautou pela não inclusão das culturas diferenciadas. Na atualidade, entretanto, confronta-se, por força de conquistas legitimadas por lei, com propostas de uma nova epistemologia, a interculturalidade. Dessa forma, ao conquistarem o direito a uma escola específica e diferenciada, os povos indígenas abrem um campo de atuação, no qual se movimentam como protagonistas, no sentido de pensar o currículo a partir de outra lógica: a lógica do diálogo entre os seus saberes e os saberes legitimados historicamente pela cultura escolar. Temos clareza que a educação escolar é apenas uma das formas encontradas pela civilização ocidental para sistematizar o processo de socialização de seus membros. Depreendese, dessa maneira, que “a educação escolar indígena, diz respeito aos processos de produção e transmissão dos conhecimentos não-indígenas e indígenas por meio da escola, que é uma instituição própria dos povos colonizadores” (LUCIANO, 2006, p. 129). Essa escola, quando assumida pela comunidade e ressignificada segundo sua realidade e demandas, torna-se valioso instrumento de construção da autonomia, de maneira especial, porque começa a valorizar aspectos da cultura, sobretudo a língua, como acontece nas escolas das aldeias de Dourados. Ter uma escola indígena é um avanço, ainda que pese a continuidade das muitas contradições, como apontadas no decorrer deste estudo. Quanto à temática da cultura e o respeito às especificidades da educação indígena, começaram afirmando que nos conteúdos dos livros, temática indígena ainda é estereotipada, na imagem do colonizador. Os livros trazem muito pouco da história indígena, e o pouco que trazem são repletos de senso comum. Foi ressaltada a importância do ensino da língua Guarani nas escolas. Um integrante do grupo destaca que o ensino da língua Guarani deve ser iniciado em casa com os pais e ter continuidade nas escolas. Para outro, é necessário ensinar a língua Guarani escrita, pois muitos sabem falar em Guarani, mas, não conseguem ler nem escrever. Não é comum, mas acontece que alguns pais levam seus filhos para estudar na cidade, pois acreditam que a língua já foi aprendida em casa. É uma forma de resistência, em não aceitar a nova proposta de educação indígena e por pensarem que o que vale, na verdade, é a educação do “branco”. Foi debatida a dificuldade que os indígenas têm de se inserir no mercado de trabalho: Há um grande preconceito, às vezes tem a vaga e tem a pessoa capacitada, mas ela não consegue o emprego por ser indígena, diz um integrante do grupo. Por outro lado, o indígena

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não se especializa, pois sabe que não há mercado de trabalho para ele fora da aldeia devido ao preconceito. Muitos, na verdade, nem chegam a terminar o ensino médio e entram para o trabalho assalariado no corte da cana para as usinas da região. Uma liderança da Aldeia Jaguapiru fala sobre a falta de efetividade dos projetos que vem para a aldeia, não tem o incentivo que realmente precisa, falta de educação, a má distribuição das casas que são distribuídas na comunidade. Não tem como o índio jovem competir pela falta de andamento dos projetos que vem pra cá, isso desanima os jovens que após a frustração começam a beber e usar droga. Acrescenta dizendo que a escola não oferece espaço para a realização de atividades de lazer e não oferece atividades em tempo integral para as crianças, isso aumenta a possibilidade de envolvimento com drogas e álcool.

PROTEÇÃO, CIDADANIA E ETNICIDADE A partir de questões como a falta de documentação na aldeia foi aberta a conversa sobre esta nova temática. Foi constatado que muitos lugares não aceitam a carteirinha de identidade da FUNAI, como nos bancos e na polícia. Esses órgãos alegam que a carteirinha só tem validade dentro da aldeia, o que causa um grande constrangimento para eles. Afirmam que embora o documento indígena seja válido em todo o território nacional, não é aceito por todos, por exemplo, os bancos não aceitam esse documento para abrir contas ou fazer empréstimos. Normalmente os adultos costumam ter os documentos em dia, já as crianças geralmente não tem. Segundo o grupo, os não-índios utilizam a carteirinha da FUNAI como mais um instrumento de discriminação. Neste sentido, recentemente várias instituições, dentre elas o Ministério Público Federal e a FUNAI, realizaram mutirão nas aldeias de Dourados para a confecção de documentos para a população. Segundo a Agência Brasil de notícias (18/06/2011 - http://agenciabrasil.ebc.com.br), cerca de 8.500 índios da região de Dourados (MS) receberam nos dias 18 e 19/06/2011, documentos civis básicos como certidão de nascimento, identidade, CPF, Carteira de Trabalho e Rani (Registro Administrativo de Nascimento de Índio). A emissão desses documentos faz parte do projeto Cidadania, Direito de Todos, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que, desde o ano passado, atendeu aproximadamente 08 mil índios que habitam em aldeias próximas às áreas urbanas de Campo Grande e Ponta Porã. A distribuição dos documentos foi feita na Escola Municipal Indígena Tengatui Mangaratú, na aldeia Jaguapiru. De acordo com o CNJ, a emissão de documentos civis aos indígenas permitirá o aumento do número de matrículas de crianças e jovens nas escolas públicas e também possibilitará a inclusão de adultos índios no mercado formal de trabalho. Segundo as lideranças, há tempos que estavam esperando por uma solução nesta questão da documentação. O registro da FUNAI, segundo eles, é interessante para ser usado em locais onde se deve comprovar que a pessoa é indígena, como por exemplo, vestibular e concursos. Durante certo tempo ficaram com receio de tirar o documento de identidade e CPF, pois ouviram dizer que deixariam de ser índios com estes documentos. Não há dúvida de que este acesso universal aos documentos básicos é uma conquista para o exercício da cidadania.

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Quanto aos programas sociais do governo – bolsa família, cesta básica, etc. – estão acontecendo, apesar de às vezes atrasarem. Há, porém, uma burocracia muito grande para receber esses benefícios; muitos casais, por exemplo, não têm certidão de casamento, o qual é uma das exigências para conseguir o benefício. Sugerem que as políticas públicas (programas sociais) nas aldeias devem ser feitas de maneira diferente de como é feita nas cidades. Falta sensibilidade. Em outras palavras, a prática do Estado é universalizar as políticas públicas, sem preocupar-se com as especificidades culturais e regionais das sociedades que habitam neste país. Além deste aspecto, há outros elementos que merecem nossa consideração: Mato Grosso do Sul iniciou o programa social de cestas básicas para a população de baixa renda (assentamentos, indígenas, moradores de periferias, lavradores pobres, entre outros) no final da década de 1990, antes do Programa Fome Zero do Governo Federal, de 2003. Desde este período “todas” as famílias indígenas, ou sua quase maioria recebe cestas básicas todos os meses. Se por um lado esta política é emergencial, na tentativa de suprir as carências alimentares, por outro ela deveria buscar a superação da dependência e, no médio prazo, proporcionar a possibilidade de geração de renda. Não é o que vem acontecendo nas aldeias do estado. Neste período de mais de 10 anos de política pública “assistencialista”, as consequências foram quase todas negativas: brusca mudança nos padrões de alimentação (muitos açúcares, com significativo aumento da diabetes e obesidade nas aldeias), desmobilização das roças familiares caindo vertiginosamente a capacidade de produção de alimentos nas aldeias, aumento da dependência, entre outros. Na fala de um deles, o que agente precisa é terra para plantar e não cesta básica.

O TEMA DA VIOLÊNCIA Para este momento a pergunta básica foi: a aldeia é um lugar seguro para viver? O que precisa ser feito para se viver melhor na aldeia na questão da segurança? Este foi o tema que gerou maior participação. Todos falaram e deram sua opinião, constatando tratar-se de tema que, de uma forma ou outra, atinge a toda a comunidade. Lembrando sempre das considerações e ressalvas feitas anteriormente, no texto das crianças, sobre o lugar de produção do discurso, existe uma unanimidade quanto à sensação de insegurança nas aldeias. Segundo os participantes do grupo, há muita violência na aldeia, não tem mais segurança como tinha antes. A aldeia cresceu muito e a violência aumentou, tem boca de fumo na aldeia o que acaba gerando toda a violência. Os jovens são os mais afetados com a violência. Um integrante do grupo relata que na época dos seus avôs havia preservação da cultura, não era permitido a venda de bebidas alcoólicas dentro das aldeias. Hoje há roubos, assassinatos e não há punição, antes quem cometia algum erro principalmente os jovens eram mandados para a roça trabalhar ou tampar os buracos das ruas. Era uma maneira de corrigi-los, o que não

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acontece mais, hoje o jovem rouba e fica por isso mesmo. Há uma impunidade dentro da aldeia, homicídios foram cometidos e os assassinos estão impunes. A violência esta presente tanto no centro da aldeia quanto na periferia. È perigoso sair á noite, as pessoas procuram ficar em suas casas. No caso dos representantes e lideranças da Aldeia Jaguapiru, os depoimentos foram mais enfáticos: as lideranças abriram muito espaço para pessoas de fora. Existem não índios morando aqui, tem pessoas que vem de fora, compram um pedaço de terra e vem morar aqui, relata um líder da aldeia. Segundo outro depoimento, o álcool e a droga tem sido um grande mal dentro da aldeia. O álcool já não é mais o maior problema, atualmente as drogas ilícitas são as que oferecem maiores problemas a comunidade. Sobre a causa imediata da violência nas aldeias, há uma quase unanimidade: ela é fruto das drogas lícitas (álcool) e ilícitas (maconha, cocaína e crack). Afirmam que a rodovia é uma porta aberta, não se sabem quem entra e quem sai da aldeia. As “leis” indígenas não têm sido respeitadas. “Existe muita mistura dentro da aldeia”. Há falta de autonomia e organização das lideranças devido à interferência dos órgãos externos. Outro elemento importante a ser considerado é a falta de diálogo dos órgãos de segurança com a dimensão da cultura. Além da ausência do Estado nas aldeias, na promoção da segurança pública, quando ocorre alguma ação, ela é pontual e desconsiderando os aspectos culturais destes povos. Neste sentido falam da intransigência dos órgãos externos em relação a liderança tradicional, ou seja, desrespeito das formas de regulamento da própria comunidade, assim como o não atendimento, quando solicitado, a intervenção por parte da policia federal. Assim, é preciso fazer um regimento da aldeia para dar maior poder ao capitão para punir atos de violência. Diante dos muitos relatos de “bocas” de vendas de drogas dentro da aldeia, desde junho a Política Federal desenvolve nestas aldeias a operação Tekoha, uma intervenção na área da segurança, com forte repressão ao tráfico e consumo de drogas ilícitas. Em vários momentos surge o tema da presença de não-índios dentro da área das aldeias. Na fala das lideranças, a nossa vontade é que os brancos que moram na aldeia vão embora. E na sequência, sobre a excessiva quantidade de pessoas nas aldeias, afirma que a falta de terra é um grande problema, gera muitas dificuldades conforme as famílias crescem. Pode-se afirmar que a violência é devido ao confinamento: A aldeia já virou periferia da cidade de Dourados, a violência é generalizada, não está concentrada em apenas um local. Para finalizar este tema, fica o registro da fala de uma liderança da Aldeia Jaguapiru. Afirma que há um sentimento de impunidade dentro da aldeia, homicídios foram cometidos e os assassinos estão sem solução, os autores raramente são presos. TEMA DA MORADIA Nos últimos anos, tendo em vista as aldeias de Dourados tem se transformado no foco de vários temas que chegam com grande impacto à imprensa local, regional e nacional (às

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vezes até internacional), como a desnutrição, casos de violência física, suicídios, entre outros, os políticas começaram o processo de construção de moradias nas aldeias. Mesmo assim, na fala de alguns dos representantes, o direito a moradia precisa melhorar muito, a aldeia cresceu e muitas famílias não têm onde morar. Matéria prima para construir novas casas já não há: bambu, sapé, cipó. Precisamos de mais casas, pois a população está crescendo e as moradias não estão atendendo a todos. Mesmo nesta linguagem direta, está claro que as demandas por moradia nas aldeias de Dourados, um direito humano básico, estão longe de serem atendidas satisfatoriamente. Em anos anteriores o poder público municipal construiu algumas dezenas de casas nas aldeias e, com poucos meses de uso, foi enunciado na imprensa as precárias condições das moradias, construídas com materiais impróprios e, até, com superfaturamento. Mais uma vez, constata-se que recursos destinados aos povos indígenas, são sistematicamente desviados, ou mal utilizados e, quase sempre, sem consultá-los, para saber que tipo de moradia eles preferem. Ao final destes grupos focais com as lideranças, um deles comentou que o grupo sentiu a falta de abordar o tema da terra e agricultura, pois ela é uma forma de trabalho e subsistência comum na aldeia. Na verdade, o tema da produção de alimentos é prioridade, na atual conjuntura das aldeias de Dourados, tendo em vista as difíceis condições para a utilização da terra, a falta de políticas de incentivo e produção e consumo desses alimentos.

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3.2- ANÁLISE DOS RESULTADOS DO LEVANTAMENTO NO ALTO RIO SOLIMÕES

a) Breve Histórico das Aldeias da Região do Alto Rio Solimões/AM A primeira referência aos Ticuna, remonta aos meados do século XVII e se encontra no livro Novo Descobrimento do Rio Amazonas, de Cristobal de Acuña. Os primeiros contatos com os brancos datam do final do século XVII, quando jesuítas espanhóis, vindos do Peru e liderados pelo Padre Samuel Fritz, criaram diversos aldeamentos missionários às margens do Rio Solimões. Essa foi à origem das futuras vilas e cidades da região, como São Paulo de Olivença, Amaturá, Fonte Boa e Tefé. Tais missões foram dirigidas principalmente para os Omágua, que dominavam as margens e as ilhas do Solimões, impressionando fortemente os viajantes e cronistas coloniais pelo seu volume demográfico, potencial militar e pujança econômica. Os registros da época falam em muitos outros povos (como os Miranhas ou os Içás, Xumanas, Passes, Júris, entre outros, dados como extintos já na primeira metade do século XIX pelos naturalistas viajantes), que foram aldeados juntamente com os Omágua e os Tikuna, dando lugar a uma população ribeirinha mestiça. Nas duas últimas décadas do século XIX, com a exploração da borracha, a Amazônia se tornou palco de uma intensa exploração do trabalho seringueiro. O Alto Solimões, apesar de não contar com seringais tão produtivos quanto os do Acre, por exemplo, também não ficou de fora da corrida pelo “ouro branco”, como era chamada a borracha. Através da instituição do sistema de barracão, o “patrão” tinha exclusividade no comércio com índios, já que seu armazém era o intermediário comercial obrigatório. A legitimidade dessa empresa era dada por títulos de propriedade conseguidos por poucas famílias, vindas em sua maioria do Nordeste, que incidiam sobre a terra dos Ticuna, os quais passavam a dever obediência aos recém-chegados. Os patrões instalaram-se na boca dos principais igarapés, controlando assim os moradores dali. Para reforçar esse controle, o patrão ainda nomeava um Tuxaua que exerceria a liderança entre os índios, cuidando dos seus interesses. Esta liderança nem sempre se baseava em relações tradicionais, mas na subserviência do Tuxaua aos patrões seringalistas. Em 1910, ainda segundo Nimuendaju, uma nova agência de contato se faz presente no Alto Solimões. Nessa época, capuchinhos vindos da província da Úmbria, na Itália, instalam a Prefeitura Apostólica do Alto Solimões. A presença do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), nessa situação de domínio dos seringalistas, era meramente formal, ou seja, restrita a relatórios de um delegado desta repartição a partir de 1917. É somente em 1942 que este órgão da administração federal vai criar um posto na região. Uma nova situação histórica começa a se delinear em meados da década de 1960: a Amazônia e sua faixa de fronteira vão sendo transformadas em área de segurança nacional para o exército brasileiro. A atuação da Igreja Católica - por meio da província apostólica do Alto Solimões, inaugurada pelos capuchinhos em 1910 - gerou uma infra-estrutura de saúde e educação pouco

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desprezível. Durante a década de 1960, também missionários batistas americanos chegam ao Alto Solimões com o objetivo de catequizar os índios. Em uma época em que os “patrões” ainda dispunham de autoridade, principalmente por serem considerados os donos da terra onde moravam os Tikuna, utilizaram como uma das estratégias de mobilização da população indígena da região a compra de terras, que disponibilizaram para os que quisessem viver junto, compartilhando os ensinamentos de sua religião. Desta forma, surgiram ainda outros aglomerados que hoje constituem algumas das aldeias Ticuna de maior expressão populacional, como Campo Alegre e Betânia. O número dos que passaram a viver em aldeias, no entanto, só vai sofrer alterações realmente significativas a partir do aparecimento do movimento messiânico da Irmandade da Santa Cruz. Em um contexto de progressiva perda de autoridade sobre os índios, já no princípio da década de 1970, os antigos “patrões” deram apoio à penetração das idéias de um homem chamado José Francisco da Cruz. Com alguma correspondência com a tradição ticuna, já que esta admitia a possibilidade de punição divina em momentos de intensa desagregação sócio-cultural, e com o apoio das principais lideranças políticas da região, as idéias de José da Cruz vingaram com extrema facilidade e o movimento religioso por ele fundado se tornou hegemônico em pouco tempo. Converteu, deste modo, índios e não-índios por todo o alto Solimões, e assim as posições de liderança na hierarquia da Irmandade foram sendo rapidamente conquistadas pelos antigos “patrões”. Estes conseguiram contornar a crise de autoridade pela qual passavam, ao instituir uma nova legitimidade moral/religiosa para o controle que exerciam (OLIVEIRA, 1978). Os funcionários da FUNAI, que nessa época já substituíra o antigo SPI, também perceberam logo a utilidade do movimento da Santa Cruz como catalisador de seu projeto de integração do indígena e passam a apoiar explicitamente aquelas lideranças ligadas ao movimento, incentivando, inclusive, o faccionalismo religioso que até hoje divide aldeias como Umariaçú e Belém do Solimões (Oliveira, 1987). No final de 1981, as principais lideranças ticuna convocaram uma reunião na aldeia de Campo Alegre, onde foi discutida a proposta de demarcação de suas terras, encaminhada à FUNAI. Nesta reunião foi escolhida também uma comissão para ir até Brasília apresentar ao Presidente a proposta ali debatida. Como resultado dessa pressão dos Ticuna, a FUNAI mandou, em 1982, um grupo de trabalho com o fim de identificar as áreas ticuna nos municípios de Fonte Boa, Japurá, Maraã, Jutaí, Juruá, Santo Antônio do Içá e São Paulo de Olivença. Também em 1982, os Ticuna criam o Conselho Geral da Tribo Ticuna (CGTT), com a figura do coordenador geral, eleito em assembléias a cada quatro anos entre todos os capitães de aldeia e com poderes semelhantes aos de um ministro das relações exteriores. Posteriormente, outras organizações indígenas foram criadas: a Organização dos Professores Ticuna Bilíngües (OGPTB), foi fundada em 1986 no intuito de realizar cursos de reciclagem e formação dos professores; a Organização dos Monitores de Saúde do Povo Ticuna (OMSPT); e a Organização de Saúde do Povo Ticuna do Alto Solimões (OSPTAS), em 1990, cuja atuação teve como marco o combate à cólera vinda da Colômbia e do Peru.

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Durante estas últimas três décadas a etnia Ticuna, que representa uma das mais populosas etnias indígenas falantes no Brasil vem sofrendo grandes transformações, alcançados pelos processos de urbanização e a influências de culturas não indígenas em seu cotidiano, eles vem se organizando no sentido de manter viva a prática e as lembranças de seu povo. Hoje, na região do Alto Solimões organizam-se em 34 aldeias, com uma população aproximada de 14.000 pessoas.

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b) Percepções das crianças, adolescentes e jovens indígenas Luiz Felipe Barbosa Lacerda

Pensar a infância nos dias atuais é um desafio interessante. Passamos da época onde as crianças eram consideradas como sendo adultos em miniaturas e chegamos ao discurso moderno de garantir o espaço para brincar e o direito a crescer com os requisitos mínimos para o bom desenvolvimento. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em seu artigo II, afirma: Considera-se criança, para efeitos desta lei, a pessoa até doze anos de idade incompleto, e adolescente aquela entre doze e quatorze anos de idade. Eles gozam de todos os direitos inerentes a pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral, assegurando-se todas as oportunidades e facilidades afim de facultar desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade. Contudo, o que percebemos na maior parte das vezes é uma superprodução de uma infância que a todo momento troca o lúdico pelo sonho de um futuro promissor, desta forma ao invés de tempo livre para brincar após as aulas temos o inglês, a natação, o computador e a televisão como elementos que buscam gerar atributos ditos úteis dentro de uma perspectiva de futuro de sucesso. Por outro lado, quando tratamos das classes menos favorecidas de nossa sociedade encontramos a figura infantil como promotora de renda e trabalho para o núcleo familiar. Tanto implicada na mão de obra, quanto no papel de chamariz de benefícios oriundos de programas sociais, a criança desempenha importante e triste papel nas famílias de classe baixa. O ECA é claro nas penalidades referentes ao trabalho infantil, como é o caso do Capitulo V: É proibido qualquer trabalho a menores de dezesseis anos de idade, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos. Neste sentido é que realizamos nosso primeiro apontamento frente às crianças Tikuna com quem trabalhamos. Nesta realidade as crianças desempenham, também, certo trabalho laboral, contudo, este trabalho não possui conotação de exploração ou é utilizado de alguma forma, com segundas intenções. Neste contexto o trabalho infantil, se assim podemos chamálo, refere-se ao aprender atividades necessárias para a sobrevivência. Além disto, desempenhar tal função, acompanhando o pai no caso dos meninos e a mãe no caso das meninas (pois estamos falando de uma sociedade bem segmentada nas questões de gênero) significa ingressar na cultura, fazer parte do que é importante no dia-dia e aprender práticas que lhe conferem status social frente ao grupo. Assim, o tempo livre, fora da escola divide-se em auxiliar os pais nos trabalhos laborais e exercitar a arte de brincar. Neste ponto relatamos fato importante: nos parece que tais crianças

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ainda mantêm a prática de brincar ao ar livre, nos rios e nas matas, em contato com a natureza. A população infantil é a maior entre os segmentos etários nas aldeias, a média de filhos por família aproxima-se a cinco e isto faz, também, com que os irmãos e irmãs mais velhos assumam o papel de cuidadores dos mais novos. Assim, mostram-se crianças extremamente tímidas frente aos estranhos de outras etnias, mas também extremamente afetuosas entre os seus. Pela falta de adultos a todo o momento monitorando as ações das crianças encontramos uma infância com maior autonomia, sem os vícios da super proteção que percebemos em nossa cultura, onde a comunidade apresenta-se como espaço coletivo e universal para descobertas sem muitos limites. Contudo, a cultura Tikuna, entre todas existentes no Alto Solimões, é a que mais sofre com a proximidade da cultura não indígena. Ao olharmos para os adolescentes percebemos a adoção das roupas não indígenas, o uso de celulares assim como um fascínio a tudo que remete a cidade. Com as crianças não é diferente e identificamos isto principalmente na influência da televisão em seu cotidiano. Sabemos que os meios de comunicação, na maior parte das vezes, apresentam conteúdos inapropriados para crianças, que retratam de forma imparcial as diversas realidades e buscam assumir para si status de produtor de verdade em nossa sociedade. Obviamente quando pensamos a realidade indígena, percebemos que raramente esta é retratada de maneira adequada pelos meios de comunicação, ao contrário, se vende uma falsa ideia de um mundo não indígena cheio de maravilhas e possibilidades, que em última análise afasta as crianças de sua própria cultura. Entre muitos casos é conhecida a péssima influência, por exemplo, da onda de desenhos orientais nos aspectos referentes a agressividade infantil. Com as crianças indígenas esse caso não é diferente. Nas comunidades maiores e mais próximas da cidade esta “confusão” identitária é percebida com clareza em alguns desenhos anexados nos produtos anteriores. Somado a isto, também fica claro a frágil presença da figura paterna no imaginário infantil. Quando aparece, o pai é representado como uma figura de pouca comunicação e pouca afetividade. Obviamente tal papel familiar afeta de maneira significativa o desenvolvimento emocional de tais crianças. A sexualidade aparece como fator normal e adequado de acordo com as idades. Não foi encontrado nenhum indício de abuso ou exploração sexual, por exemplo, nas crianças que participaram dos grupos focais. Apesar da cultura indígena carregar um imaginário social de precocidade frente a este tema, todos apresentaram um desenvolvimento psico-sexual sadio. O principal problema surge da falta de água potável nestas comunidades, este é um elemento originário de diversos outros problemas como a falta de merenda escolar e as principais doenças que assolam estas crianças. Ao refletirmos sobre os direitos básicos e os elementos minimamente necessários para um desenvolvimento sadio encontramos um cenário um tanto caótico no que refere à saúde e a educação.

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A falta de preparo de professores indígenas para ministrar o ensino do português e a não periodização dos alunos que na maior parte das vezes comungam classes multi-seriadas, são alguns dos problemas que tornam a educação indígena precária, somando a isto a falta de espaço curricular para a valorização da cultura tradicional, os problemas de estrutura escolar e, em nível mais avançado, a falta de cursos profissionalizantes. Podemos assim concluir que tais crianças carecem de fortalecimento dos aspectos de sua própria cultura, da ressignificação da imagem e da função da figura paterna e de condições educacionais adequadas e que as políticas públicas respeitem as peculiaridades de sua etnia. Mesmo assim, nos parece que certo espaço do mundo infantil é mantido e respeitado dentro destas comunidades, percebemos isto nas festas comunitárias, nas comemorações do dia do índio e das crianças. Outro elemento interessante de relevar é o pouco contato com drogas ilícitas relatadas pelas crianças, apesar disto o álcool é o principal elemento conhecido no cotidiano das comunidades, ocasionando brigas, mortes e um alto índice de suicídio, de acordo com os relatos. Salvo algumas exceções, as crianças apresentam bom desenvolvimento mental e psicomotor, demonstrados nos desenhos e atividades que realizaram ao longo dos grupos focais. Contudo, apresentam também baixo índice de escolarização e pouco conhecimento geral, com severas dificuldades frente à língua portuguesa.

Percepções dos JOVENS TIKUNA da Região do Alto Rio Solimões

Sebastião Rocha de Sousa

Nos últimos anos a questão indígena vem sendo recorte de vários debates no contexto da sociedade brasileira, dada a significância destas, para consolidar Leis e tecer políticas públicas. Nos anteriores trabalhos foram abordados um pouco da visão dos jovens no que diz respeito à percepção de direitos da mulher e da criança. Procurou-se fazer uma amostragem em que todos pudessem expressar seus anseios sobre os direitos da mulher e da criança no contexto das comunidades indígenas. Participaram alunos das escolas municipais e estaduais. A voz da juventude tornou-se um termômetro vivo para que se possam tomar os devidos nortes no que diz respeito às políticas que fortaleçam estas populações que anseiam melhorias. Mesmo porque, essas

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populações já adotaram muitos hábitos dos não indígenas e isto é um caminho que não pode retroceder, mas construir condições que mesmo estes sendo indígenas, possam usufruir de todas as oportunidades que são criadas para o cidadão brasileiro. Apesar da maioria das ações públicas estarem sendo efetivadas nas comunidades, ainda fica muito a desejar em sua qualidade e eficácia, até mesmo no que se refere às formas que divulguem as campanhas a respeito das políticas de direitos. É notório que as comunidades indígenas no alto rio Solimões, apesar de ser uma população bastante grande, ainda não se beneficiam a contento com as políticas de direitos da mulher e da criança. Visto que muitas das ações sociais voltadas à população de massa (os não indígenas) são erroneamente adaptadas aos povos da floresta. Pode-se perceber o quanto o povo indígena luta para que as políticas de direitos sejam efetivadas a todos, sem classificá-los em homens e mulheres. Todos os itens aqui expostos nos levam a interpretar como se constrói uma identidade cultural atravessada por elementos adaptados de uma realidade que não é sua própria. A despeito do que se espera, a força do pensamento jovem está muito atento para os acontecimentos dentro e fora das aldeias. Ficam aqui os registros que as políticas de direitos para a mulher e a criança precisam ser especificas, não adaptadas, para que se tenha qualidade de vida no meio das populações indígenas.

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c) Percepções das mulheres Tikuna Teresinha Barbosa Rosenhaim

Ao longo dos grupos focais, contamos com a participação de aproximadamente 100 mulheres das comunidades participantes deste diagnóstico. Mulheres mães, donas de casa, estudantes, professoras, profissionais liberais e funcionárias municipais. Os encontros em grande parte fluíram com naturalidade e boa participação das mulheres, em alguns poucos caso a timidez exigia maior intervenção da coordenadora. Sobre os rituais, vêem no Ritual da Moça Nova um dos últimos elos que ainda lhes liga com seu passado e cultura. Reclamam da falta de segurança onde vivem e depositam a culpa no Estado, que é conivente com a entrada de estrangeiros nas suas aldeias, que acabam vendendo drogas para a comunidade e ao mesmo tempo proíbem a atuação da Policia Indígena. Não concordam com o modo de trabalho que a FUNASA/SESAI vem realizando com eles, no campo da saúde, apesar de só procurarem o médico quando seus remédios caseiros já não funcionam. E não acreditam nos profissionais que a entidade disponibiliza para a comunidade. As mulheres mostram saber muito bem que são o esteio de suas casas e consequentemente da comunidade, os afazeres são divididos com seus maridos de forma natural. Querem ver a escola melhor estruturada, pois reconhecem o valor dela para todos da aldeia, elogiaram bastante os professores que ali trabalham e veem o esforço do corpo docente para manter o ensino mesmo nas precárias condições que a escola oferece. A medicina natural ainda é mantida e passada de mães para filhas, são assim, as mulheres as principais responsáveis pela manutenção destes conhecimentos tradicionais. Concordam que a escola precisa de melhorias, apesar de estarem satisfeitas com ela, mas sabem que é pequena para tantas crianças e o calor juntamente com a falta de água desgasta o aluno e o aprendizado fica a desejar muitas vezes. A vida da comunidade gira em torno da escola e elas demonstraram muito amor por ela e o corpo de docentes que lá atua. Já estão acostumadas a lidar com as novas tecnologias e nem sempre concordam com as novidades que isto lhes impõe, mas não podem combatê-las. Relatam com frequência que lhes prende a aldeia são unicamente a família e os amigos, o grupo que ali esteve não soube identificar um lugar bonito ou agradável para estarem juntos dentro da comunidade sem ser a escola, ou as ruas; muitas delas são intrafegáveis. Com relação à Saúde repetindo às duas comunidades anteriores as reclamações são variadas, mas o que mais as deixam frustradas é que não existe um médico na comunidade, quando necessário são atendidas por enfermeiros ou agentes de saúde. No caso de haver uma

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emergência devido a distancia com Tabatinga, o paciente pode perder a vida, como relatos que fizeram. Um problema sério que todos da comunidade enfrentam é a falta de água, ainda coletam água da chuva para o preparo da alimentação e quando não chove recolhem-na do rio, e poucas disseram que tratam a água do rio, pois eles sentem a alteração do sabor. Ficando assim expostos a muitos tipos de doenças. A necessidade por água é tão grande que muitas vezes a escola não pode fornecer merenda por falta dela. Implicando assim o ensino, porque sem a merenda a escola tem que liberar os alunos mais cedo. Acham que se todas as casas tivessem caixas de água este problema seria solucionado. A renda vem comumente do plantio da roça e da pesca e as mulheres são ativas neste ofício. Ainda são bastante ligadas ao artesanato, mas não encontram retribuição que as faça produzir, pois no comércio de Leticia-Colômbia, elas são mal pagas por eles. Isto as desestimula. E não existe uma associação unicamente de mulheres. Elas pensam se não nesta próxima eleição, mas futuramente colocar o nome de uma mulher para vereadora Tikuna, pois estão insatisfeitas com os vereadores homens que elas ajudaram a eleger, e querem apostar em uma Tikuna para lhes representar. Ao contrário de Umariaçu I e II as mulheres de Belém do Solimões participam de atividades esportivas, elas jogam futebol e realizam campeonatos entre si e com outras comunidades. Relataram também a falta de um lugar melhor para estas atividades. As mulheres desta comunidade também mostram muito preocupadas com o destino do lixo ali produzido. Refletindo sobre o papel da mulher na cultura Tikuna Lévi-Strauss diz: "é à índia que compete fabricar os recipientes de cerâmica e servir-se deles, porque a argila de que são feitos é feminina como a terra". Guardadas todas as situações de discriminação e exploração da mulher na sociedade Tikuna, pode-se dizer que elas são parte integrante desse sistema simbólico. O trabalho é visto como um fator de maturação e desenvolvimento social para as mulheres, que só são desobrigadas das atividades laborais aos 60 anos de idade, momento em que elas vão assumir outras funções como conselheiras, dando palpites sobre o que fazer em determinadas situações e até impedindo as guerras. De maneira geral, as mulheres não mediram esforços para estarem conosco deixando seus afazeres domésticos para primeiramente saber o que era de fato que estava acontecendo e ao saberem o que era se mantiveram no local para assim contribuir. É incrível como elas se colocam no poder e no comando da organização, às vezes como submissas e outras vezes como verdadeiras matriarcas e donas de conhecimentos inimagináveis.

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Em todas estas comunidades de tribos Tikuna elas ressaltaram que estão cansadas de promessas não cumpridas, de projetos que nunca chegaram, se sentem usadas por organizações que só usam as suas imagens e mesmo assim estão prontas a acreditar que um dia a coisa pode melhorar... E esta melhora poderia ser obtida se as ferramentas que hoje existem funcionassem de fato. São motivadas pelo amor em suas famílias, pela cultura de suas raízes, não precisam de dinheiro para viver em paz, pois isto, elas tem com seus amigos em suas comunidades. Querem apenas continuar em suas terras vivendo como hoje vivem, mas com as coisas básicas que todo ser humano precisa saúde, segurança e que seus filhos possam ter acesso as novas tecnologias sem precisarem sair da comunidade, e que isto seja de sua própria escolha. Que sua cultura continue sendo preservada como hoje é, sendo repassada para seus filhos e que eles as repassem aos seus netos para a eternidade. Querem que seus filhos tenham orgulho de suas raízes vêem com positividade se a língua delas for ensinada em instituições educacionais, ao mesmo tempo foram unânimes em afirmar que certas vezes perdem o domínio sobre os jovens e adolescentes e que precisam de uma ferramenta mais ágil para ajudá-las como seria o caso de um Conselho Tutelar Indígena para dar autoridade maior junto a eles, muitas delas tem vergonha dos filhos(as) que fogem para as festas retornado para casa dias depois. Sabem de sua fragilidade e o quanto sofrem com a violência doméstica que existe e o quanto o álcool e as drogas ajudam para que este excesso de violência e crueldade no seu mundo aconteça. Não adotam em nenhuma delas o infanticídio ou o afastamento das crianças que nascem com alguma deficiência, ao contrário, são totalmente contra, pois as vêem como pessoas realmente especiais e que precisam de carinho. São mulheres fortes, guerreiras, companheiras, caridosas e bastante comunicativas, por isto reclamam da falta de apoio por parte das diversas autoridades de nosso estado com total consciência e razão. São exigentes quanto ao que produzem no artesanato, não aceitam falhas, pois, segundo elas, como papel de mulher elas têm que ter a perfeição sobre o que fazem. E assim são elas as mulheres Tikuna com a sua visão sobre suas famílias e a natureza.

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d) Percepções das lideranças sobre o grau de realização dos Direitos Humanos de mulheres e crianças na Região do Alto Rio Solimões/MS José Roberto Faria e Faria

O seguinte trabalho tem por objetivo, a conclusão do levantamento dos produtos dois e três nas comunidades indígenas do município de Tabatinga e nas comunidades do município de São Paulo de Olivença, região do Alto Solimões do Estado do Amazonas, sobre a percepção dos direitos indígenas pelas mulheres e crianças indígenas dessas localidades. Foram consultadas as lideranças indígenas nas referidas comunidades do município de Tabatinga, onde três comunidades serviram de referência, sendo as de Umariaçú I e Umariaçú II, comunidades de perfil integrados e localizados na sede do município, e por último a comunidade de Belém do Solimões, esta com distância de 45 km da sede, com característica urbana e perfil integrado. Outro município de referência é o de São Paulo de Olivença, com duas comunidades indígenas pesquisadas, que são as comunidades de Campo Alegre e Vendaval, todas com a distância de 30 km da sede e com características urbanas de perfil integrado. Os questionários aplicados nessas cinco comunidades levam em consideração a percepção de seus habitantes sobre temas como Educação, Saúde, Laser, Moradia, Renda, Cultura e violência. Cada tema era composto de cinco a oito perguntas aplicadas individualmente ao grupo focal de liderança em cada comunidade indígena. Devido ao estudo compreender assuntos objetivos e subjetivos é importante antes de relatar a conclusão, fazer ou traçar um panorama relativo sobre cada município, com suas comunidades, para melhor embasar e logisticamente traçar as características socioeconômicas sobre as suas percepções dos assuntos pedidos neste trabalho.

Município de Tabatinga Primeiramente, foram visitadas as comunidades do município de Tabatinga que tem como perfil municipal alguns dados interessantes que são: sua data de instalação como município que foi no ano de 1981, portanto, uma cidade bastante nova em comparação com os outros municípios da região, sua população medida pelo censo do IBGE em 2010 foi de 52.279 habitantes, gerando uma densidade demográfica de 16,21 hab/km2 com área de 3.225 km2. Embora tenha 30 anos de existência, vem crescendo a uma taxa de entorno de 4% ao ano, passando de 27.923 habitantes em 1991 para 37.919 em 2000 e 52.279 em 2010. Sua taxa de urbanização e mais de 70% e seu índice de desenvolvimento humano - IDH é de 0,699.

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Segundo a classificação do PNUD, o município está entre as regiões consideradas de médio desenvolvimento humano. Em relação aos outros municípios do Brasil, Tabatinga apresenta situação intermediária, ocupando a 300º posição, sendo que 3002 municípios (54,5%) estão em situações melhor e 2.504 municípios (45,5%) estão em situações pior ou igual. Já em relação aos municípios do Estado do Amazonas, Tabatinga apresenta uma situação boa, ocupando a 4º posição em todo o Estado do Amazonas. Em 2000, o índice de desenvolvimento humano municipal - longevidade do Brasil era de 0,727 e o de Tabatinga tinha o valor de 0,718, não muito atrás do índice nacional. No IDH – Educação, em 2000, o índice no Brasil era de 0,849 e Tabatinga de 0,780. O IDEB é um índice que combina o rendimento escolar com as notas do Exame Prova Brasil, aplicadas as crianças de 4º a 8º série do ensino fundamental e segundo esse índice, Tabatinga se encontra na 4.091º posição entre os 5.564 municípios do Brasil quando avaliados os alunos de 4º série, e fica na 3.880º posição no caso dos alunos de 8º série. Os dados de 2009 foram de 3,6 para os de 4º série e de 3,3 para os de 8º série, sendo que se levarmos em consideração os resultados das provas aplicadas nas comunidades de Umariaçú I e II e de Belém do Solimões esses índice, nas duas séries, ficara abaixo de 2,8 devido o baixo aproveitamento do ensino da Língua Portuguesa, nesses lugares. Trataremos mais adiante desse tema. Na taxa de mortalidade é de 17,3 para cada 1.000 crianças menores de um ano em 2010, e neste mesmo ano 93,7% das crianças menores de um ano estavam com carteira de vacinação em dia, isto se repete também nas comunidades. O percentual de domicilio com acesso a água ligada a rede de esgoto sanitário adequado em 2010 era de 40,8% para água e de 25,8% para esgoto sanitário, sendo que se observarmos as três comunidades, esses índices serão bem inferiores.

Comunidade de Umariaçú I O trabalho executado frente à liderança da comunidade do Umariaçú I foi reunido no dia 27 de setembro deste corrente ano, na Escola Municipal O’I TCHURUNE, com a participação de dezessete pessoas de vários estratos da liderança local. No tema educação, nos foi observado que embora a maioria reconheça que houve avanço na melhoria da educação nos últimos anos, ainda tinha questões que faltavam melhorar na parte física da escola ou mesmo na construção de outra escola mais moderna com aceso a internet e com mais salas de aula. Quase todos os professores têm curso superior, e desses 95% são indígenas, embora a liderança não faça nenhuma questão se o professor seja homem branco, eles preferem que a maioria seja indígena. As aulas são ministradas em língua Tikuna e em língua portuguesa nas primeiras séries, e depois em português com tradução em Tikuna nas séries mais elevadas. O grande gargalo encontrado na educação foi a falta de domínio da língua portuguesa dos professores e a falta

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generalizada do interesse dos alunos em estudar, não há qualquer metodologia que estimule o aprendizado dos jovens. Não houve maiores reclamações sobre a merenda escolar, que embora às vezes atrasasse atrasada. A falta de espaço adequado à prática de esporte, tanto na escola quanto na comunidade, foi bastante citada, devido haver somente dois campos de futebol improvisado na comunidade e não haver nenhuma na escola. Na saúde, não nos foi relatado maiores problemas a respeito à recepção dos agentes de saúde que são muito parecidos com as da população em geral. Mesmo não havendo médicos à disposição no posto de saúde, possuem somente enfermeiros e técnico de enfermagem, a curta distância do hospital em tabatinga não era encarada como empecilho de seu atendimento. Foi relatado que ainda existia o costume de consultar o pajé e usar remédios tradicionais na comunidade, mas não há nenhuma relação entre os médicos e remédios de laboratórios e os de tradicionais. Na moradia, o maior problema relatado foi à falta de água potável. Não que exista encanamento para levar a água, mas que não há força suficiente durante o dia para a água chegar a todos os pontos da comunidade, que está crescendo muito rapidamente sem nenhum planejamento. Outro problema encontrado é que 98% das casas ainda têm banheiro no quintal, sem nenhuma força adequada para receber os desejos. Até hoje não houve projetos governamentais nas três esferas para tratar desse assunto. A questão da violência está relacionada com o consumo de bebida álcool, causando brigas entre os adolescentes e em pequena escala violência domiciliar (contra mulheres e crianças). O problema levantado foi à falta de segurança na comunidade, devido o desinteresse dos moradores em fazer parte do destacamento de vigilância da comunidade PIASOL, onde os integrantes não recebem nenhuma forma de gratificação pelo serviço prestado e a polícia diz que como é área de reserva indígena não pode ficar mandando policiamento para a comunidade, isso seria obrigação da polícia federal. No tema cultura, pode-se constatar que embora ainda haja de maneira sutil o costume de se celebrar a dança da moça nova, hoje eles comemoram o dia do índio com músicas estrangeiras e brasileiras sem haver nenhum constrangimento. Há também festas nas escolas todos os anos na época de arraial.

Comunidade de Umariaçú II Foram encontradas muitas semelhanças nas respostas dos grupos focais com as lideranças do Umariaçú II com as do Umariaçú I, devido à proximidade das duas comunidades que estão dividas por uma ponte sobre um igarapé As reuniões do grupo focal com as lideranças foram feitas na Escola Municipal Indígena João Cruz, com a presença de doze

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pessoas, estratificados com professores, diretores, agentes de saúde, guardas da comunidade, cacique e ex-caciques, representantes de times de futebol e grupo musical da comunidade. Na questão da educação, foi abordado um bom índice de qualidade dado à educação, mesmo que não se reflita nas avaliações do IDEB municipal. Todos os professores da escola possuem curso superior (Normal Superior) na maioria cursado na Universidade do Estado do Amazonas, as aulas são ministradas em Português e traduzidas automaticamente para a língua Tikuna, não há problemas na aceitação de professores brancos em ministrar aulas na escola. Também não existe material didático em língua Tikuna nas duas comunidades. Foi questionada a falta de uma melhor infra-estrutura na escola, embora esta tenha três anos de trabalho, já carece de uma reforma. O maior problema enfrentado na escola é a falta de internet, com poucos momentos de funcionamento e poucos computadores funcionando. Existe a falta de luz e água com frequência, a rede de luz não esta suportando a demanda da escola, e como em toda comunidade a rede de água não atende de maneira satisfatória a periferia onde se encontra a escola. O lazer é encarado como insuficiente pela liderança da comunidade, embora haja oficialmente 23 times de futebol masculino e 4 feminino, dentre os masculino também há time de veteranos, não há espaço ou campo adequado ou suficiente para atender a demanda esportista da comunidade. Foi relatado não haver incentivo por parte das autoridades governamentais, para o esporte local, mesmo com grande participação da comunidade nos campeonatos locais. A escola carece de espaço para a recreação esportiva, pois possuem somente uma pequena quadra de areia para a prática de esporte. A questão da saúde, também existe o hábito de consultar o Pajé e usar os remédios tradicionais, embora tenha sido observada que nas faixas etárias mais novas também há preferência de consultar primeiro o posto de saúde local, deixando os casos mais simples para o Pajé. Não existem médicos de plantão no posto, há somente enfermeiros, dentistas e técnicos de enfermagens no atendimento. Em caso de urgência é chamado à ambulância para o atendimento no hospital em Tabatinga, em um percurso de 15 minutos viajem. Há grande mobilidade de pessoas, devido as duas comunidades serem atendidas pelo transporte público de Tabatinga e de Letícia (Capital do Departamento do Amazonas na Colômbia). Na moradia, foram relatados os mesmos problemas de Umariaçú I, quase 100% das casas tem banheiro externo sem saneamento básico adequada, todas têm luz e água encanada, embora a constantes faltas de energia e água algumas vezes ao dia.

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O problema da violência é provocado em grande parte devido ao consumo de álcool, nos finais de semana com suas maiores alterações, provocando brigas nas ruas e violência doméstica contra as mulheres e filhos. A perda da continuidade do trabalho de vigilância do grupo comunitário de segurança PIASOL, enfraqueceu o combate a violência na comunidade. Não existe também nenhum apoio oficial das autoridades a esse grupo, e a polícia militar não tem autoridade de vigiar essa área por ser de reserva indígena, com responsabilidade da polícia federal. A respeito da cultura, como no Umariaçú I e no Umariaçú II ainda existe o costume de celebrar a dança da moça nova nas famílias, embora esteja diminuindo a frequência dessas danças nas famílias. É comemorado o dia do índio, e nos meses de julho acontece o arraial com comidas e músicas nativas, brasileiras e estrangeiras nas escolas. Existe um grupo musical local com CD gravado em Tikuna, cantando músicas de rock nacional, o conjunto tem como nome: Éwari. As duas comunidades são atendidas por ruas asfaltadas, mas em péssimas condições e transporte público regular, sendo que em época de chuva, o transporte fica bastante prejudicado. Existe um representante na Câmara Municipal de Tabatinga, do Umariaçú II e uma melhor organização comunitária do que a do Umariaçú I.

Comunidade de Belém do Solimões A comunidade de Belém do Solimões é a comunidade mais afastada do município de Tabatinga, com uma distância de 45 km. Funciona como um pólo com seu entorno com mais de comunidades menores. É uma comunidade de perfil integrado e bem urbanizado, tendo um pequeno porto, um posto de saúde avançado com médicos, telefones públicos, uma usina de geração de energia e uma população com mais de cinco mil habitantes. O trabalho do grupo focal com Lideranças foi coordenado pelo Sr José Roberto Faria com auxílio da assistente Débora Rocha de Souza, na Escola Estadual de Belém do Solimões, com um grupo de vinte pessoas com diferentes perfis de cidadãos da comunidade. Foi observado na questão da educação que existem duas escolas com oito salas de aula cada, sendo uma estadual e outra municipal. Todos os professores têm curso de graduação superior formados em Normal Superior na Universidade do Estado do Amazonas. As aulas são ministradas basicamente em português e traduzidas para o Tikuna, sendo que não há material didático em Tikuna nas escolas, somente alguns exemplares de Bíblias traduzidas para o Tikuna. Existe o bairrismo quanto à contratação de professores “não índios”, sendo bastante evitada a contratação do não indígena.

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O maior entrave para a educação é a falta de água potável, embora na comunidade tenha poço artesiano e caixa d’água de grande capacidade, não atende toda a comunidade, prejudicando o funcionamento da escola e a preparação da merenda escolar. Este problema está gerando grande discussão e irritação na comunidade. Não há falta de professores e de material, as acomodações das escolas estão em boa conservação e existe satisfação na profissão de professor. Na área de lazer, foram constatadas que são insuficientes os campos de futebol e que existe só uma quadra poliesportiva na comunidade. Também existe uma praça, onde se realiza comícios e festas de época, servindo de espaço para crianças brincarem nos finais de tarde. Apesar de haver 18 times de futebol, com times femininos e de sênior, não há grandes incentivos governamentais para a prática do esporte. O atendimento à saúde é considerado de boa qualidade, com atendimento ambulatorial com um médico, um dentista, dois enfermeiros e seis técnicos em enfermagem. Ainda há uma ambulância e uma lancha ambulância para os casos de emergências até o hospital em Tabatinga. São atendidas as mulheres grávidas com acompanhamento de pré-natal e alguns mutirões de saúde. Ainda existe o hábito de consultar o Pajé e tomar remédios tradicionais, essa cultura ainda e passada de geração para geração. Devido ser bastante distante de Tabatinga os traços culturais ainda são bastante fortes e presentes na comunidade. Boa parte da população não entende o português e é sempre necessário um interprete. Com relação à moradia, ainda, como em quase todas as comunidades da região, os banheiros são fora das casas sem nenhuma força adequada. Todas as casas têm encanamento e rede elétrica. Todas as ruas são asfaltadas em bom estado de conservação. As casas têm em média de 2 a 3 quartos e cozinha atrás da casa. A violência é observada mais nos finais de semana, onde devido o consumo de álcool, gera brigas de turmas de adolescentes e nos domicílios. A pouca incidência de violência contra as mulheres e crianças. Com o enfraquecimento da guarda da comunidade está aumentando o índice de violência. Ainda acontece periodicamente o suicídio, mais acentuado na faixa etária dos 15 aos 25 anos de ambos os sexos. A questão da renda foi constatada que o setor da roça fica principalmente para as mulheres e a pesca para os homens. Não há lugar para a comercialização de artesanato na comunidade, o pouco que se produz é vendido em Tabatinga. Devido ao excesso de contatos com o não índio, podemos constatar que diminuindo os aspectos que caracteriza a cultura indígena, já não há tanto o costume de se comemorar a dança da moça nova e outras danças indígenas. Belém do Solimões devido ao seu tamanho e

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sua urbanização esta perdendo suas características indígenas. Ainda é comemorado o dia do índio, mas com pouca ênfase. Acontecem todos os anos nas escolas os arraiais e desfile dede setembro e boa parte das casas tem televisão com antenas parabólicas.

Município de São Paulo de Olivença Data de instalação foi em 1882, o município de São Paulo de Olivença está localizado nas margens do rio Solimões a pouco mais de 110 km de distância de Tabatinga e a 988 km da Capital do Amazonas (Manaus). Com relevo bastante acidentado, a cidade não teve um bom projeto urbanístico. Pelo censo de 2010, há 31.426 habitantes no município, sendo 13 mil na 26 cidade e entorno de 18 mil na zona rural. O crescimento vegetativo anual de 2000-2007 ficou em torno de 3,12% com área de 19.746 km2 e densidade demográfica de 1.59 hab/km2.O número de comunidade é de sessenta e duas, sendo Vendaval e Campo alegre os maiores e mais populosos. Seu Índice de Desenvolvimento Humano – IDH é um dos piores do Brasil (5.393º no ranking nacional) e um dos piores do Estado do Amazonas com taxa de 0,536, na educação do IDH-E é de 0,576 no IDH - Longevidade o índice é de 0,604 e no IDH - Renda, ficando no 0,428, com essas taxas, o município levaria 136,8 anos para alcançar São Caetano do Sul (SP) e 93,2 para alcançar Manaus, o município de melhor IDA-M do Estado (0,774) mesmo verificando uma melhora substancial nos últimos anos, São Paulo de Olivença ainda têm o 52º pior colocado no amazonas, trata-se de uma região muito pobre e isolada do Estado. O trabalho de grupo local de liderança foi coordenado pelo coordenador José Roberto Faria e Faria e a assistente Débora Rocha de Souza, em Vendaval e Campo Alegre, nos dias 29 de setembro deste corrente ano.

Comunidade de Campo Alegre Nesta comunidade, foi feito o trabalho de grupo focal com as lideranças da comunidade em 29 de setembro deste ano, na Escola Municipal Campo Alegre, pelo coordenador José Roberto Faria e Faria e assistente Débora Rocha de Souza. Quanto ao aspecto da saúde, foi constatado que existe um posto de saúde com dois enfermeiros e três técnicos em enfermagem, que prestam atendimentos durante 20 dias por mês e o restante do mês fica sem atendimentos porque os enfermeiros vão para a cidade. Houve reclamações a respeito da necessidade de acompanhamento dos doentes que são encaminhados para o hospital da cidade, alegam de não terem nenhuma assistência e também estadia enquanto estão doentes na cidade. A necessidade de transporte hospitalar, embora exista uma lancha de seis lugares, não há combustível suficiente para todo o mês.

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Ainda existe a cultura de consultar o pajé antes de procurar o posto de saúde e também a cultura do uso de remédios naturais e caseiros que ainda e bastante comum. Incentivando seus costumes, todas as quinta e sexta-feira é feito o pré-natal comas mulheres. No tema educação, foi constatado que nem todos os professores possuem curso superior e muitos deles ainda estão se formando no curso multicultural da OGPTB feito em parceria com a UEA na aldeia de Filadélfia. O material didático é todo em português e as aulas nos primeiros anos são de 80% em língua Tikuna, sem muita tradução. Já nas séries de 6º a 9º ano é dada mais atenção à língua portuguesa. No tópico sobre o laser e esporte foi constatado que embora existam dezoito times de futebol e exista campeonato todos os anos, alegam que não têm assistência técnica para ajudar na organização e orientação de regra. Está previsto a inauguração de uma nova escoa estadual de padrão moderna, mas esqueceram de fazer um ginásio como tem em todos no estado. Não existe espaço suficiente e adequado para a prática de esportes e brincadeiras, as crianças brincam na rua em frente de suas casas onde moram. Na questão da segurança, foi constatado que existe um grupo de guarda comunitária com um efetivo de trinta integrantes o chamado PIASOL, onde a organização e escolha e feita dentro da comunidade, escolhido pelo capitão, este escolhido pelos moradores da comunidade também acontecem brigas esporadicamente entre jovens nos finais de semana devido ao uso de bebidas alcoólicas. Já foram relatados casos de estupro e violência com as crianças, mas por falta de pessoal e material adequado o grupo de segurança comunitária não consegue atender suficientemente a comunidade. Há ocorrência de morte por atropelamento por moto com frequentemente, devido à falta de sinalização e preparo das pessoas que manuseiam as referidas motos e também não posto policial na comunidade. Na questão de moradia como em todas as comunidades, não existem banheiro dentro de casa, todos são no quintal em cima de um buraco que serve como fossa sanitária. Todas as casas têm luz e encanamento de água, embora a falta de água potável seja maior problema da comunidade. Existe também caixa d’água e água encanada, mas o problema é que o poço foi perfurado em camada rasa, atingindo um extrato ferroso, deixando a água sem condições de usá-la para o consumo humano e as autoridades há mais de dois anos não dão atenção para o problema. Sobre a renda, foi constatada que as mulheres ajudam na renda familiar, trabalhando na roça. O homem fica responsável pela caça e pesca, e seu excedente é vendido no porto da comunidade. Os trabalhos dos pescadores ficam bastante afetados no verão, devido à seca que

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provoca o assoreamento do rio que passa na frente da comunidade, deixando uma praia de mais de 1,5 km de extensão, inviabilizando o carregamento e transporte da produção. A cultura e carregada de aspectos indígenas também não houve grandes perdas nos costumes e músicas da aldeia. A festa da moça nova é comemorada em todas as famílias, além disso, comemoram o dia do índio e a semana da pátria e o aniversário da comunidade e comemoradas com comidas típicas da comunidade. A comunidade tem dois representantes na Câmara Municipal e existem urnas eletrônicas para atender as outras comunidades vizinhas.

Comunidade de Vendaval O grupo focal com as lideranças contou a presença de 14 pessoas representantes de estratos sociais com: cacique, conselho, representante das mulheres, professores, agente de saúde indígenas, técnico de enfermagem, enfermeiro, representante da igreja católica e representante de futebol. Na questão da saúde foi constatada que a comunidade está satisfeita com o atendimento do posto de saúde prestado por dez funcionários, embora, solicitem a presença de um médico de fato morando na comunidade. Existe um transporte para levar os casos mais graves para o hospital de São Paulo de Olivença. Constatamos ainda existir a prática do uso de remédios tradicionais e de consultar o pajé é que dependendo da família, busca-se primeiro o atendimento do pajé. Quando questionados se todas as casas tinham água encanada, foi dita que em torno de 60% tinha funcionado, o restante estavam com a encanação quebrada, causando falta de água e o sistema de escoamento de água não está mais atendendo a periferia da comunidade que cresceu muito rápida e a bomba de água não consegue atender a demanda. Boa parte da água da escola e de muitas casas é tida através de externas com capacidade de água de chuva. Na questão da violência, foi constatado que há muitos relatos de brigas na rua ou em lugares que vendem sem autorização o álcool. Estas brigas influenciadas pelo álcool atingem as mulheres em muitos casos. Muitos desses casos levaram as pessoas envolvidas ao suicídio. Segundo as lideranças no ano de 2010 houve seis suicídios derivados de brigas nas famílias que tinham o álcool como razão do acontecido. Não há incidência de uso de entorpecente até agora identificado. Na questão do esporte e lazer, também não existe quadra poliesportiva na comunidade, somente há dois campos de futebol, onde só são praticados ao dia. Foi relatado que existem quatro times de futebol de mulheres. Dos veteranos não há times e o local de lazer para as crianças também não há, as duas escolas não tem áreas de brincadeiras para as crianças.

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Na educação, as lideranças mostraram apoio e conhecem a história da educação na comunidade, mostrando que acompanham desde a primeira escola implantada no local que foi em 1976, e hoje com duas escolas em boa condição de ensino. Há em torno de 90% dos professores com o curso de graduação na escola municipal e na estadual todos estão se formando este ano no curso da OGPTB com parceria com a UEA. Todas que lecionam as séries fundamentais são indígenas, havendo não indígenas nas séries de segundo grau. As aulas são ministradas em português e traduzidas para o Tikuna. Um dos professores da reunião informou que a educação melhorou nos últimos anos, porque professores não indígenas estavam ministrando aulas de português e não, mas indígenas ministravam a língua portuguesa e o material didático era todo em Tikuna. Quanta merenda escolar foi constatada que não há falta, somente alguns atrasos na entrega. O maior problema enfrentado é as condições de preparo e falta de água, porque somente durante uma hora por dia a água chega água no encanamento na escola, 90% da água usada na escola é capitada da chuva. Outro fator de descontentamento é a falta de funcionários administrativos e de limpeza que não há na escola estadual, professores e a diretora improvisam as tarefas da escola. A secretaria de educação do município sempre faz visitas nas escolas. Na moradia, algumas casas têm o rodapé em alvenaria como fase, mas no restante, todas são de madeira, todas têm energia elétrica. Foi constatado que todos os banheiros estão do lado de fora, é não têm sanitário adequado. As cozinhas são abertas no quintal. Na água, muitas têm água encanada, mas dessas muitas estão com problemas de infiltração, com suas tubulações quebradas. As novas casas no entorno da comunidade não recebem água, devido à bomba de água não alcançar esses ligares. Na questão da renda, podemos observar que existem muitos programas assistencialistas e previdenciários na comunidade. O maior gerador de renda na comunidade é a pesca do peixe liso, que é vendido aos barcos colombianos, sendo a roça uma renda suplementar exercida basicamente pelas mulheres. Na cultura foi constatado que na comunidade ainda há a pratica do ritual da moça nova nas famílias e todos os anos eles fazem a festa do pajé. É comemorado o aniversário da comunidade, da padroeira, dia dos índios, dia das mães e das crianças, todos comemorados de acordo com a tradição indígena, embora, os jovens gostem de ouvir músicas pop de não indígenas. As práticas medicinais ainda são passadas de pais para filhos com todos os seus rituais. Por último foi colocado a questão territorial; esse tema provocou muita discussão, pois muitos reclamaram que o representante eleito para a câmara municipal não dá apoio e pouco

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ter vindo na comunidade, existe a sensação de abandono da classe política quanto a comunidade. Houve reclamações quanto ao pagamento dos salários dos agentes de saúde, esses com atraso de cinco meses é que seriam a ONG e a FADE que pagam os agentes. Não há problemas de seca e de enchente na comunidade. Também não há desmatamento na região, o desmatamento só para consumo local.

CONCLUSÃO Podemos concluir que a população indígena Tikuna apesar de ser a maior em número populacional, tem enfrentando grandes impactos no que diz respeito às garantias de direitos, isso por que ultimamente vem sofrendo grandes influenciam das populações não indígenas envolventes. A despeito do que vem acontecendo com os povos de pouco contato, esses povos sofrem com o crescente índice de doenças, aculturação, atendimento educacional, não respondente aos contextos comunitários de maneira satisfatória. Acabam assim, por substituir sua cultura por outras culturas que, em um primeiro contato, lhes parece mais atraente. Contudo, é um povo que mesmo com as diversidades, continua resistindo aos impactos sociais, assim falar de Direitos Humanos das Crianças e Mulheres Indígenas do Município de Tabatinga, torna-se indispensável para que se concretize a efetivação das políticas publicas que auxiliem no processo de resgate e fortalecimento de sua cultura. Foram observadas nas duas comunidades similaridades dos problemas encontrados, refutando que a presença do Estado ainda é essencial como motor de desenvolvimento sócioeconômico e ambiental nessas comunidades isoladas. Na falta do comprometimento político e da presença do Estado agrava a situação, já quase calamitosa, das comunidades indígenas verificadas de São Paulo de Olivença. Como exemplo imperativo desta falta de condições básicas de sobrevivência tem, em todas as comunidades, o problema da água potável. Este problema identificado nas duas comunidades, que embora não deveria ser mais discutido em pleno Século XXI, ainda consome bastante atenção dos moradores locais. Não adianta tentar construir políticas publicas voltada para a cidadania, se ao menos tentarmos resolver o problema da água nessas comunidades, a percepção de direitos humanos melhoraria consideravelmente. Por tanto, antes de se planejar alguma política publica de cunho humanitário, é importante, primeiramente, ou de forma complementar, adotar projetos de infra-estrutura junto com projetos voltados para os indígenas.

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A partir destas percepções dos indígenas registradas da técnica dos grupos focais, podemos elaborar este denso relatório, com reflexões e análise em confronto com o que foi observado in locu, e na conversa com os atores sociais: indígenas, parceiros e outros. Terminamos esta etapa ciente da complexa situação em que se encontram tais comunidades indígenas, através de uma combinação de intervenções históricas assistencialistas e mal sucedidas a população indígena demonstra grande dificuldade de organização própria, somando-se a isto certo fascínio pela cultura não indígena que cada vez circunda e penetra em suas comunidades. Em ultima análise, todo este processo nos apresenta um contexto dinâmico onde a população indígena busca manter-se em suas raízes sem poder evitar o intercambio cultural.

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3.3- ANÁLISE COMPARATIVA DO GRAU DE CONHECIMENTO E REALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DE MULHERES E CRIANÇAS INDÍGENAS EM Dourados/MS e Alto Rio Solimões/AM Este é o item mais importante deste Relatório Final, por tratar especificamente da análise comparativa entre os resultados do LEVANTAMENTO DIAGNÓSTICO QUALITATIVO sobre o grau de realização dos direitos humanos das crianças e mulheres indígenas em Dourados/MS e na Região do Alto Rio Solimões. Trataremos os dados comparativamente, a partir dos aspectos que consideramos convergentes (aqueles em que apesar da diversidade histórico-regional entre os povos indígenas, podemos afirmar que conservam alguns elementos em comum) e os divergentes (elementos distintos da realidade dos direitos humanos de crianças e mulheres indígenas destes contextos pesquisados).

a) Aspectos convergentes entre as duas realidades Apesar da diversidade histórico-regional entre os povos indígenas presentes na região de Dourados/MS e na Região do Alto Rio Solimões/AM, foi possível observar que, no contexto atual e, a partir do resultado do Levantamento nos grupos focais, estas realidades apresentam alguns elementos em comum. A referência da análise comparativa será sempre a dos direitos humanos de crianças e mulheres indígenas.

1. Quanto ao aspecto da Educação Tanto na região de Dourados/MS, quando na do Alto Rio Solimões/AM, há um consolidado movimento de professores indígenas, com associações atuantes a mais de dez anos5, assim como a realização de cursos, em nível médio (magistério) e superior (licenciaturas) de formação de professores indígenas, dentro dos parâmetros dos RCNEI (Referenciais Curriculares Nacionais da Educação Indígena). Destaca-se como elemento comum, a realidade da formação de professores indígenas para o magistério em suas aldeias, a partir da consolidação do próprio movimento dos professores e o apoio das universidades. Para a formação destes professores e aparelhamento de suas respectivas escolas, surgiram, nos últimos anos, políticas públicas específicas, como é o caso do PROLIND (Programa de Apoio à formação superior e à Licenciatura Indígena) do Governo Federal. 5

OGPTB: Organização Geral dos Professores Tikuna Bilíngües, criada em 1986, é considerada a primeira associação de professores organizada neste nível de abrangência no Brasil; a Associação de Professores Guarani, Kaiowá e Terena de Mato Grosso do Sul;

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As crianças indígenas do Alto Rio Solimões e de Dourados, no entanto, deparam-se no cotidiano da educação formal, com estruturas físicas ainda limitadas: falta de espaço, salas com pouca iluminação ou ventilação, problemas com a merenda, entre outros. O mais importante, no entanto, e que é um elemento comum nas duas realidades é a acanhada efetividade de uma verdadeira educação indígena, que seja específica, diferenciada, intercultural, bilíngue e comunitária, como preconiza os Referenciais Curriculares Nacionais da Educação Indígena (MEC, 1996). O material didático, em sua maioria não é bilíngue, ou seja, é semelhante aos das escolas não indígenas, em língua portuguesa; os conteúdos tradicionais das culturas indígenas não recebem o mesmo tratamento curricular que os conteúdos eurodescendentes nas escolas indígenas. Na fala dos jovens: a pedagogia diferenciada precisa ser criada pelo professor, enquanto a educação do não-índio tem muito material didático, o que parece dar mais embasamento para o professor e facilitar o processo de educação. Assim, reconhecem que a educação indígena está por ser construída. Mães, crianças e jovens reconhecem que a educação é importante para que o indígena conheça seus direitos. O respeito aos elementos culturais repassados no processo de educação das novas gerações é um tema que diz respeito aos Direitos Humanos, conforme preconizado na Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho); Crianças e jovens indígenas, de ambas as regiões, consideram que a educação oferecida a eles afeta diretamente os destinos de suas vidas. Um problema grave, no entanto, é o alto índice de evasão e repetência, pois os alunos não acompanham, ou seja, não compreendem as aulas, por questões ligadas à língua e a prática de ensino (currículo da “escola do branco”, segundo eles). Dessa forma, as crianças e jovens reconhecem que a educação deixa muito a desejar, embora, como seus pais, valorizem muito a escola. É possível também detectar um discurso hegemônico sobre a importância da educação, embora tal reconhecimento não implique necessariamente em ações práticas por parte de muitas famílias indígenas para que suas crianças efetivamente tenham um bom desempenho na escola. A falta de letramento dos pais e a pouca experiência com o mundo da escrita faz com que muitas vezes eles não disponham de referências para apoiar concretamente a vida escolar dos filhos. Existe certo desestímulo dos alunos em se aplicarem a vida escolar. Faltam-lhes referências de profissionais indígenas bem sucedidos a partir da educação, essas referências nem sempre são próximas, pois nem sempre se pode contar com alguém na parentela que sirva de referência e estímulo para a vida escolar. Existem exemplos contrários, de indígenas que estudaram, se formaram, e não conseguiram vaga de trabalho fora da aldeia. De acordo com a compreensão de alguns jovens, o indígena não se especializa, pois sabe que devido ao preconceito não há mercado de trabalho para ele fora da aldeia. Certas famílias indígenas não confiam muito na educação fornecida nas aldeias. Acreditam que ela é propositalmente de má qualidade e/ou que os professores indígenas nem

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sempre estão qualificados para ministrar a educação mais apropriada para seus filhos. Alguns pais levam seus filhos para estudar na cidade, pois acreditam que a língua já foi aprendida em casa, e o maior desafio para seus filhos é aprender a língua e os costumes do branco, para se relacionar com eles de modo mais favorável. A expectativa de muitos pais é que os filhos, através da escolarização dominem a cultura do branco para não serem vítimas dos mesmos preconceitos que sofrem no dia a dia. A educação indígena enfrenta ainda o problema da dificuldade do acesso. No caso de Dourados/MS, a má condição das estradas na reserva. Isto prejudica o acesso das crianças à escola, pois quando chove o ônibus de transporte escolar não consegue passar, e as crianças acabam perdendo vários dias letivos. No caso do Alto Rio Solimões, as distâncias a serem percorridas a barco, a pé ou de motocicleta para chegar às escolas, ás vezes desestimula as crianças e jovens. Muitas vezes as crianças indígenas também são prejudicadas por não terem registro civil ou outros documentos, isto dificulta o acesso aos serviços de educação escolar.

2. Quanto ao aspecto da Saúde Nas duas realidades a saúde passa, no momento, por um processo de transição administrativa, entre a FUNASA e a SESAI. Conforme depoimento de todos os seguimentos no projeto de Levantamento Diagnóstico foi consenso a afirmação de que a saúde melhorou para os indígenas. Nas aldeias de Dourados tem posto de saúde com atendimento diário de médicos e enfermeiras, além dos Agentes Indígenas de Saúde. O mesmo acontece nas principais aldeias Tikuna do Alto Rio Solimões. Uma crítica, no entanto, também é comum às duas realidades: tanto em Dourados quanto no Alto Rio Solimões, a saúde de matriz alopática e eurocêntrica, não consegue dialogar com a saúde indígena e respeitar seus usos costumes e tradições. Neste sentido, não concordam com o modo de trabalho que a FUNASA/SESAI vem realizando com eles, no campo da saúde. Na fala de uma das mães Tikuna, esta realidade fica clara “só procuramos o médico quando os remédios caseiros já não funcionam”. Constatamos, assim, que muitas mães costumam fazer uso dos conhecimentos medicinais nos cuidados com as crianças enfermas. As crianças que participaram dos grupos focais disseram que as mães fazem remédio de erva-doce, erva-cidreira, eucalipto, casca de pau-vermelho (para gripe), quebra-pedra e sabugueiro. As crianças consideram o remédio da mãe bom para sarar as doenças. Apesar de mais de cem anos de intenso contato com os nãoindígenas e a chamada “medicina ocidental”, a confiança nos remédios indígenas ou caseiros, como costumam ser chamados, é muito forte. Independente da faixa etária, de ser evangélico, praticante da religião tradicional, professor, agente de saúde, etc., todos acreditam na eficácia de determinadas fórmulas caseiras, que muitas vezes podem ser consideradas como patrimônio da família, guardados como os segredos da vovó. Vale lembrar que, em ambas regiões da pesquisa, nem sempre os profissionais de saúde veem como positivo essa mescla de

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utilização, muitas vezes simultânea, de remédios caseiros e os receitados pelo médico, pois pode envolver riscos para o paciente sob tratamento. Apenas para exemplificar, na fala de uma das mães da Aldeia Jaguapiru (Dourados/MS) aponta para a falta de preparo dos profissionais de saúde, que não respeitam as práticas tradicionais tentando impor as práticas do não índio. Afirma que a cultura não é respeitada no atendimento à saúde, pois os médicos não perguntam e não aceitam quando sabem que as mães fazem remédios caseiros. Outro elemento em comum é a dificuldade de atendimento às mães gestantes. Apesar do apoio dos Agentes Indígenas de Saúde, em especial as jovens mães têm dificuldade em confiar nos médicos homens e que não conhecem a língua e a cultura indígena. Todos os seguimentos reclamaram muito da inexistência de projetos significativos na área da saúde que atuem na prevenção e tratamento de alcoolismo e dependência química de drogas. Falta também, um programa de prevenção de HIV, tema cercado de tabu para a população indígena, de diagnóstico difícil, principalmente entre os jovens. Com relação à gravidez precoce, os jovens acrescentaram que as adolescentes escondem a gravidez e iniciam o pré-natal tardiamente. Vale lembrar que até a poucos anos os casamentos eram realizados com pouca idade. As meninas normalmente se casavam entre os 13 e 17 anos e os meninos entre 14 e 18. Nos últimos anos, tanto na região de dourados/MS, quanto na região do Alto Rio Solimões/AM, os casamentos começaram a ocorrer um pouco mais tarde, principalmente entre as famílias indígenas mais próximas das agências da sociedade nacional. Mesmo assim, continua ocorrendo um número significativo de gravidez de meninas logo que atingem a puberdade, o que, ao contrário do que acontecia no passado, nem sempre resulta em casamento, pois as parentelas perderam a capacidade de atuar mais diretamente nos arranjos matrimoniais. Resulta daí mães solteiras muito jovens, que nas condições atuais das reservas, nem sempre podem contar com o apoio de suas famílias. Muitos adultos entendem que o serviço de saúde não consegue chegar aos jovens para fazer o trabalho de conscientização sobre os efeitos danosos do álcool, drogas, violência e gravidez precoce. A compreensão é que faltam projetos de atendimento à saúde, voltado para a criança e a juventude. De maneira geral, todos sentem o sistema de saúde distante de suas necessidades.

3. Aspecto da Cidadania (documentação, moradia, luz elétrica) Nas Aldeias da região de Dourados, a questão da cidadania ficou marcada pelo registro da documentação, como forma primeira de ser reconhecido na sociedade, logo, afirmam que o documento da FUNAI, todos têm, mas o documento civil nem todos possuem. Na realidade, observa-se que a questão da cidadania diferenciada pela comunidade indígena ainda está em fase de construção.

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Também na Região do Alto Rio Solimões/AM a cidadania é entendida como uma conquista diária por direitos negados durante tanto tempo a eles, legítimos cidadãos brasileiros. Também ali, o Estado brasileiro se faz presente cada vez mais intensamente, na regularização dos documentos. A propósito, Gersem Luciano (Baniwa do Alto Rio Negro) afirma que essa construção da cidadania torna-se possível no momento em que o princípio da tutela está sendo superado nos instrumentos jurídicos do Estado e na prática de algumas políticas públicas voltadas para os povos indígenas. Para o autor, a questão fundamental para se pensar a questão da cidadania indígena é superar a noção limitada e etnocêntrica de cidadania, sendo entendida apenas como direitos e deveres comuns a indivíduos que partilham os mesmo símbolos e valores nacionais. Isso é indevido porque, Os povos indígenas não partilham a mesma língua, a mesma história, os mesmos símbolos, a mesma estrutura social e, muito menos, a mesma estrutura política e jurídica da sociedade brasileira não indígena, uma vez que possuem símbolos, valores, histórias e sistemas sociais, políticos, econômicos e jurídicos próprios (LUCIANO, 2006, p. 87-88).

Na realidade, a cidadania do ponto de vista dos povos indígenas, conforme menciona o autor, é almejada segundo a necessidade, a partir do amparo legal do país, para reivindicar seus direitos à terra, à saúde, à educação, à cultura, à auto-sustentação e outros direitos nos marcos do Estado nacional. Afirma, conforme aponta as mulheres indígenas das várias aldeias, que a Carteira de Identidade, ou o CPF, são absolutamente desnecessários, mas se tornam importantes e, até mesmo imprescindíveis, quando lidam com a sociedade nacional, e/ou sociedade envolvente. Neste sentido, a cidadania é um recurso apropriado pelos povos indígenas para garantir seu espaço de sobrevivência em meio à sociedade majoritária (LUCIANO, 2006, p.89). Quanto à moradia, constata-se da mesma forma, a presença cada vez mais marcante do Estado em suprir a carência de moradia, de maneira especial, na região de Dourados/MS, onde o aumento populacional e a exiguidade de recursos da área indígena impossibilita a construção de novas moradias com recursos próprios, necessitando o auxílio de políticas públicas.

4. Segurança pública e violência Nas duas regiões percebe-se a centralidade do tema da segurança pública. Reconhecem que antigamente existiam menos problemas, pois se observava normas mais rígidas na convivência entre as pessoas que viviam na reserva e havia maior disciplina, sendo que a própria liderança resolvia a maior parte dos conflitos. Neste caso, constata-se que tanto em Dourados/MS, quanto no Alto Rio Solimões, a presença histórica – desde início do século XX – do órgão indigenista federal (SPI e depois FUNAI) colaborou com o esvaziamento simbólico da figura das lideranças tradicionais, trazendo para seu lugar a figura do capitão, uma liderança

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imposta e não pactuada entre as relações de parentesco. Esta situação histórica acaba gerando dificuldades na resolução de conflitos no interior das aldeias, quando muitas vezes se solicita a presença de elementos externos: Polícia Militar, Polícia Federal, Conselho Tutelar, etc. Estas mudanças históricas das últimas décadas tornaram impraticável parte significativa dos mecanismos de controle social da parentela, em conseqüência, as pessoas ficaram mais livres para experimentarem outras formas de sociabilidade. Nesse novo ambiente, as crianças e jovens passaram a se associar com membros de sua geração, formando grupos com relativa autonomia em relação aos pais. Na atualidade, em muitas aldeias pesquisadas, grande parte dos adultos (mulheres e lideranças) apresenta uma visão muito crítica em relação ao comportamento dos jovens. O ponto comum, neste caso, é a facilidade para a compra e ingestão de bebida alcoólica dentro das aldeias. Há casos em que a violência perpetrada pelo marido que faz uso de bebida alcoólica atinge tanto a mãe como os filhos. Uma das mulheres Kaiowá da aldeia Bororó contou que era agredida pelo marido quando este estava alcoolizado: “batia em mim e na minha filha até que me separei e voltei a morar com minha mãe”. Muitos jovens disseram que a violência é uma experiência vivida por muitos desde bem cedo. Segundo relato dos jovens da aldeia Jaguapiru (Dourados/MS), as bebidas geram o problema da violência. Os jovens bebem e começam a bagunçar. Como explicação para o consumo de bebidas, os jovens disseram que a aldeia fica muito próxima da cidade, o que dificulta tudo, pois a aldeia se tornou um bairro da cidade e a polícia age como se estivesse na cidade. Na comunidade Umariaçu I (Tabatinga/AM), por exemplo, as mulheres entendem que a questão da violência está relacionada com o consumo de bebida álcool, causando brigas entre os adolescentes e em menor escala, violência domiciliar (contra mulheres e crianças). O problema levantado foi à falta de segurança na comunidade. Outro elemento comum neste aspecto da segurança pública nas duas regiões é a frequente ausência do Estado, pois segundo depoimentos, a polícia diz que como é área de reserva indígena não pode ficar mandando policiamento para a comunidade, isso seria obrigação da polícia federal. Nestas situações, as comunidades, sem a força cultural dos seus antigos líderes, muitas vezes sentem-se desprotegidas diante de práticas de violência.

5. Impactos culturais Este é um tema comum, não apenas às duas regiões pesquisadas no âmbito do Projeto do Levantamento Diagnóstico, mas trata-se de uma realidade que perpassa a quase totalidade dos povos indígenas no Brasil.

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Na atualidade muitas aldeias encontram-se próximas aos centros urbanos (na verdade, as cidades foram se formando próximas às aldeias indígenas), o que acaba aumentando as relações de dependência. Muitas famílias mantêm interação freqüente e intensa com os nãoíndios que vivem fora da Terra Indígena, mas cujos interesses estão de alguma forma voltados para a população que vive na Terra Indígena, tais como comerciantes, agenciadores de mão-deobra, políticos, funcionários públicos, ONGs, pesquisadores, universidades, religiosos, etc. Os indígenas, por sua vez, transitam quase que cotidianamente pela cidade por diversos motivos, tais como: estudo, trabalho, diversão, vendas de artesanato e produtos agrícolas, compra de alimentos, dentre outros motivos. Os meios de comunicação de massa como a TV, jornal e o rádio fazem parte do dia-a-dia das famílias, sendo comum presenciar situações em que as formas de conduta indígena se inspiram diretamente em programações veiculadas pela mídia. É importante observar que essas articulações para fora contribuem ainda mais para potencializar a complexidade das configurações sociais das populações indígenas estudadas. Teorias antropológicas, hoje consideradas como ultrapassadas, tais como o evolucionismo e as teorias aculturativas, mas que gozavam de enorme prestígio até meados do século XX, acreditavam que os grupos étnicos em interação tenderiam a uniformização a partir da adoção de um padrão dominante. Acredita-se que isto ocorreria principalmente a partir da predominância da vertente cultural ocidental, considerada mais bem equipada e a única com futuro histórico possível. A realidade encontrada nas aldeias de Dourados/MS e do Alto Rio Solimões/AM demonstra que ali acontece exatamente o contrário, pois, conforme Barth (2000), a interação entre os grupos, ao invés de reduzir a heterogeneidade, potencializa-a, expandido o potencial de diversidade entre os grupos, a ponto de dificultar ou mesmo impossibilitar o tratamento do sistema multiétnico instaurado nesta terra indígena enquanto uma unidade em termos políticos ou culturais. Tal característica se apresenta como um desafio permanente para as lideranças internas da população indígena aí radicada e para os gestores públicos. Dessa forma, ao contrário do senso comum, o sentimento de pertença a um grupo étnico diferenciado permanece entre estes povos indígenas, mais por questões simbólicas do que devido a manutenção de traços diacríticos, como é o caso da língua Guarani e Tikuna.

b) Aspectos divergentes entre as duas realidades Apesar da diversidade histórico-regional entre os povos indígenas presentes na região de Dourados/MS e na Região do Alto Rio Solimões/AM foi possível observar que, no contexto atual e, a partir do resultado do Levantamento nos grupos focais, estas realidades apresentam muitos elementos divergentes, ou seja, distintos. A referência da análise comparativa será sempre a dos direitos humanos de crianças e mulheres indígenas.

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1. Quanto ao aspecto da Educação Como dissemos anteriormente, muitos elementos referentes ao universo da educação formal entre os povos indígenas destas duas regiões são semelhantes. No entanto, constata-se algumas diferenças, em especial com relação à estrutura física das escolas: na região de Dourados/MS, as escolas apresentam um aspecto mais próximo do modelo chamado “ocidental”, enquanto que as escolas na Região do Alto Rio Solimões ainda são, em boa parte, construídas de madeira, à beira dos rios, com exceção de Umariaçu I e II, aldeias consideradas bairros de Tabatinga/AM. Quanto ao uso da língua materna, a maior parte dos jovens e outros segmentos das etnias terena, kaiowá e guarani tendem a considerar que a língua materna deve ser ensinada pela família e a escola deve se dedicar mais ao ensino da língua portuguesa. Reconhecem que as crianças devem aprender a falar e escrever a língua materna, porém deve ser ensinada por uma pessoa da etnia, que domine a língua. Na Região do Alto Rio Solimões, por outro lado, percebe-se que o valor da língua materna é algo inquestionável, pois todos falam, na escola ou no cotidiano das aldeias, mesmo naquelas próximas aos centros urbanos, como o caso de Umariaçu I e II. Neste sentido, cabe aqui, uma reflexão: como sabemos, o ensino da língua nativa está muito associado ao ensino de regras comportamentais, campo sobre o qual cada parentela expressa compreensão diferente. Assim, o próprio ensino da língua materna e a forma como é tratada na escola tem a ver, também, com a cosmovisão e a própria efetivação de regras comportamentais de cada grupo e cada realidade. Ainda no aspecto da educação escolar, outro elemento comentando por todos os seguimentos das aldeias do Alto Rio Solimões, foi referente à falta de água potável. Na descrição do relatório da equipe da UEA: Um problema sério que todos da comunidade enfrentam é a falta de água, ainda coletam água da chuva para o preparo da alimentação e quando não chove recolhem-na do rio, e poucas disseram que tratam a água do rio, pois eles sentem a alteração do sabor. Ficando assim expostos a muitos tipos de doenças. A necessidade por água é tão grande que muitas vezes a escola não pode fornecer merenda por falta dela. Implicando assim o ensino, porque sem a merenda a escola tem que liberar os alunos mais cedo. Acham que se todas as casas tivessem caixas de água este problema seria solucionado.

Como podemos perceber por este relato, talvez pudéssemos afirmar que a falta de água potável seja o principal problema a ser resolvido para que efetivamente mulheres e crianças possam tem mais respeitados seus direitos humanos básicos, para uma melhor qualidade de vida. O tema da água afeta a escola diretamente, mas, afeta a saúde de maneira geral, assim como o cotidiano das aldeias, problema não encontrado na região de Dourados/MS.

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2. Quanto ao aspecto da Saúde Quanto a este elemento, constatou-se que os aspectos divergentes entre as duas regiões têm mais a ver com as particularidades ambientais, tendo em vista que a agência que gerencia esta política pública seja a mesma, atualmente, a SESAI – Secretaria de Saúde Indígena, órgão ligado diretamente ao Ministério da Saúde. O que mais salta aos olhos é a dificuldade de locomoção para as emergências e atendimentos de alta complexidade na Região do Alto Rio Solimões. Para alguns casos, contam apenas com o Hospital da Base Militar de Tabatinga/AM. O mesmo não acontece na região de Dourados, onde as aldeias são muito próximas da cidade. Outro elemento importante refere-se ao tratamento preventivo para as drogas lícitas (álcool) e ilícitas (maconha, cocaína, crack). Na região de Dourados/MS esta é uma demanda constante, tendo em vista a situação atual das aldeias que acabaram envolvidas nas rotas de tráficos, com várias “bocas de fumo” instaladas dentro das próprias aldeias, em especial a Aldeia Jaguapiru. Na Região do Alto Rio Solimões o álcool permanece sendo o maior problema. Pode-se afirmar que as drogas ilícitas ainda não chegaram com o mesmo impacto que na região de Dourados/MS. Mesmo assim, em ambas as regiões, as ações da saúde preventiva deixam a desejar para esta realidade.

3. Segurança pública e violência Quanto a este aspecto, as equipes do levantamento constataram grande diferença entre as duas regiões pesquisadas. Nas duas regiões os dados mostram que as várias formas de violência têm aumentado. No entanto, se é que podemos expressar desta forma, a violência e sensação de insegurança são infinitamente maiores entre as aldeias de Dourados/MS que entre as aldeias do Alto Rio Solimões/AM. Na região de Dourados/MS, as crianças e os jovens consideram que a aldeia não é um local seguro para a família. As crianças e jovens vivem sob constante ameaça. Apontam como problema o aumento da população, presença de bocas-de-fumo, gangues que assassinam idosos para roubar, etc. Muitas vezes disseram que esses problemas são decorrentes da explosão demográfica. Aqui, mais uma vez, se remetem a origens endógenas para os problemas sociais vividos na reserva. Grande parte dos adultos apresenta uma visão muito crítica em relação ao comportamento dos jovens. É comum acusarem os jovens de roubar para trocar os objetos por drogas. Os jovens são bastante estigmatizados como violentos, pelos adultos e velhos, mas vale registrar que eles geralmente são as principais vítimas da violência. Na compreensão dos adultos, a droga é a novidade introduzida na reserva de Dourados a partir do momento em que, pela falta de terra para a subsistência, os índios começaram a sair

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para trabalhar nos canaviais da região. Seria ela a grande responsável pela violência, o que se expressa em frases como: • A maioria dos jovens está envolvida com drogas; • Crianças de até dez anos já estão fumando e não existe nenhum tipo de tratamento contra isso; • Os jovens roubam e matam para comprar drogas; • As crianças estão começando a usar drogas cada vez mais cedo, muitas vezes os pais sabem e não fazem nada. A família não sabe o que fazer; • Os próprios indígenas vendem as drogas nas aldeias. O branco traz para o índio distribuir; • Não se conversa sobre drogas e tratamentos; • As crianças roubam coisas de valor para comprar drogas; • Por causa das drogas acontecem as “facãozadas”; • As mães não têm para quem reclamar. As crianças já não ouvem; • Crianças ficam “loucas”, pois as drogas afetam a cabeça. Uma criança começou a consumir drogas com 9 anos e aos 17 já estava louca; • Drogas? Não tem mais cura, os jovens falam sozinhos, andam sujos na estrada, abandonam a escola, preferem andar pela estrada à noite; • Jovens bebem, fumam e vão para a estrada com facões para cometer violência; • Jovens brigam com as pessoas da própria família. Filhos batem nas mães; Este quadro desolador apresentado acima demonstra a falência das políticas públicas em relação aos indígenas das aldeias de Dourados/MS. Esta situação mostra ainda várias violações aos direitos básicos de cidadania, como tratamento para os viciados, ações de prevenção, ações do estado em parceria com as lideranças das aldeias para garantir um mínimo de segurança para esta população, falta de perspectiva para criança, adolescentes e jovens, opções de lazer, atividades geradoras de renda e cursos profissionalizantes, entre outros. A conversa com o grupo focal dos jovens foi importante para entender como esse segmento geracional pensa os problemas enfrentados na reserva. Segundo eles disseram, a aldeia fica muito próxima da cidade, o que dificulta tudo, pois a aldeia se tornou um bairro da cidade e a policia age como se estivesse na cidade. Reconhecem que a aldeia está se tornando um lugar sem lei, pois não dá para sair na rua usando objetos novos como tênis, bicicleta que a pessoa se torna alvo de assaltos. Para os jovens que participaram do grupo focal, a proximidade da cidade de Dourados com a fronteira torna fácil o trafico de drogas na aldeia. Os jovens também consideraram que a violência é um problema que atinge tanto a aldeia Jaguapiru quanto a aldeia Bororó. Há outros casos de violência doméstica, em que a violência perpetrada pelo marido que faz uso de bebida alcoólica atinge tanto a mãe como os filhos. Uma das mulheres Guarani Ñandeva contou que era agredida pelo marido quando este estava alcoolizado: “batia em mim e na minha filha até que me separei e voltei a morar com minha mãe”. Muitos jovens disseram que a violência é uma experiência vivida por muitos desde bem cedo. Adolescentes de 12 a 15

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anos estão envolvidos em atos de violência, isto faz com que muitas pessoas evitem sair de casa à noite. Tais jovens fazem uso de ferramentas, como facão, foice, armas artesanais, e mesmo pedra para atacar as pessoas. Preocupam as mães, professoras e mulheres das Aldeias de Dourados/MS o alto índice de violência. Segundo os relatos, a Aldeia vive em um estado constante e vigilante de terror, além do clima de muita tensão, por falta de segurança. Pedem policiamentos na Aldeia, mas, segundo elas, as responsabilidades em assumir a segurança resultam em um grande jogo de empurra, que acontece entre Estado Município e Ministério Publico Federal (Polícia Federal).

Quadro sobre a Violência nas Aldeias de Dourados/MS

FONTE: Revista Época – Edição de 02/12/2011

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Enquanto esses órgãos definem de quem é a responsabilidade, a Aldeia fica vulnerável a toda ordem de violência, fugindo completamente do controle da comunidade, o que pode ser conferido na própria ordem de problemas elencados por elas como, por exemplo: A venda de álcool: o alcoolismo tem gerado muitos problemas na aldeia, os homens bebem e batem nas esposas, nos filhos ou atacam as pessoas na rua. As mulheres que são agredidas não denunciam o marido por medo; quando o marido bebe, essas mulheres dormem no vizinho ou no mato. Dentro da reserva, ocorre a venda de bebidas alcoólicas pelos próprios indígenas: as pessoas veem, mas têm medo de denunciar, pois correm o risco de serem mortas. Afirmam sobre a necessidade de conhecer os remédios tradicionais para se combater as drogas. E, por fim, reclamam sobre a falta de informação a respeito do combate às drogas, pois não se conversa sobre drogas e tratamento. Reivindicam formação, no sentido de se saberem mais sobre isso, de como evitarem e combaterem as drogas. Da mesma forma, sugerem que haja um projeto para os jovens estudarem e trabalharem, se envolvendo com a terra, recebendo bolsa, pois os pais tradicionalmente costumavam introduzir os filhos no trabalho agrícola, desde pequenos, e essa ocupação os impede de fazerem coisas erradas; porém, os conselhos tutelares tiram a autonomia das famílias. O serviço de saúde não consegue chegar aos jovens para fazer trabalho de conscientização. (álcool, drogas, violência e gravidez). A violência é atribuída à falta de espaço. A falta de terra é evidenciada como um dos fatores que contribuem para ocasionar a violência.

4. Relação com o território e autonomia Este último aspecto apresentado, dentro do eixo das divergências não é o que aparece em um primeiro momento de análise, porém, é aquele aspecto que traduz uma grande diferença entre as realidades das aldeias da Região de Dourados/MS e as do Alto Rio Solimões/AM. Ao tratar do tema da relação com o território e a autonomia, trataremos igualmente, do tema correlato da dependência das políticas públicas, assim como de outro tema correlato, a autonomia e identidade étnica. Entende-se, no âmbito deste projeto de pesquisa (Levantamento Qualitativo) que grande parte das disparidades entre as duas regiões estudadas tem a ver com a relação destas comunidades com o território. No caso das aldeias do Alto Rio Solimões/AM, após mais de cem anos de dominação e um quase sistema de escravidão, no período da exploração da borracha (segunda metade do século IXX e primeira metade do século XX), quando tinham que trabalhar de sol-a-sol e ficavam sempre devendo para o capataz, no regime conhecido como de “barracão”, os povos Tikuna e outros da região, através do movimento indígena organizado e apoio de universidade e ONGs, a

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partir dos anos de 1980, conseguiram assegurar um considerável território que lhes permite viverem da pesca, da caça e do extrativismo, ou seja, um estilo de vida totalmente compatível com sua trajetória identitária dos últimos séculos. O fato de terem um território compatível com suas demandas lhes transmite mais segurança, autonomia diante da sociedade não indígena e, sobretudo, opções de sobrevivência e opção de futuro para as novas gerações. Em outros termos, a relação destas comunidades com o território, lhes permite a reprodução física e cultural, sem muitos transtornos. Não significa, no entanto, que estas comunidades não tenham problemas, em especial, em relação ao respeito aos direitos humanos. Para isto, basta atentar para o relatório apresentado até o presente momento. Entretanto, os mesmo problemas vividos pelas aldeias da região de Dourados/MS, são tratados pelos Tikuna e outros povos da região de forma diferenciada, tendo em vista, de maneira particular a relação com o território, o qual gera mais autonomia e, como consequência, menos dependência das políticas públicas. Este quadro acaba contribuindo para gerar maior autonomia e afirmação da identidade étnica. O mesmo não se pode dizer das aldeias de Dourados/MS. Aliás, pode-se dizer exatamente o contrário: como a relação destas comunidades com o território é uma relação limitada, devido à já conhecida escassez, não conseguem viver da terra, mas, simplesmente tentar sobreviver naquela minúscula terra.

Quadro apresentado pela Revista Época – Edição de 02/12/2011

Este tema da falta de território, mesmo não sendo estimulado nas rodas de conversa dos grupos focais, ele apareceu com certa frequência, em especial, entre as lideranças e as mulheres. Trata-se, na verdade, de um tema complexo e que remete à questões estruturais, que não dependem de políticas de Organismos Internacionais, mas de atitudes políticas de governos. Mesmo assim, fica o registro para este elemento dissonante, e que salta aos olhos, entre as realidades das aldeias do Alto Rio Solimões e as Aldeias da região de Dourados/MS, no qual a absoluta falta de território acaba por comprometer a sobrevivência com dignidade destes povos, impossibilitando sua reprodução física e cultural.

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PART E IV

CONSIDERAÇÕES FINAIS O projeto LEVANTAMENTO DIAGNÓSTICO QUALITATIVO sobre o grau de realização dos direitos humanos das crianças e mulheres INDÍGENAS Em Dourados/MS e no Alto Rio Solimões/AM, foi proposto pelo UNICEF com o objetivo de conhecer melhor a realidade destas aldeias, em especial, a percepção de realização de Direitos Humanos de mulheres e crianças, tendo em vista situações de desnutrição, altos índices de violência, dificuldades para geração de renda e produção de alimentos por um lado e dependência dos programas sociais de outro, falta de oportunidades para os jovens, entre outros. Nesse quadro, muitas instituições governamentais e ONG’s vêm desenvolvendo inúmeras ações, no entanto, com uma característica comum: quase sempre são ações fragmentadas, sem continuidade e, no mais das vezes, com soluções a partir de nossas análises e tentativas de compreensão, sem levar em conta a realidade e a percepção dos próprios indígenas, sobre seus problemas e sugestões de solução. A proposta deste levantamento foi subsidiar estas agências que praticam intervenção nas aldeias destas duas regiões, com a visão e a versão dos próprios indígenas sobre sua realidade, com a intenção de subsidiar atuais e futuras atividades de intervenção nestas realidades. É notório que o alto grau de dependência da população aldeada em relação à sociedade nacional leva sempre a projetarem as saídas para seus problemas a partir de ações externas, com iniciativas que partam do Estado ou da sociedade civil. A demanda por programas de combate a violência contra mulher, de combate ao abuso sexual de crianças e de promoção de formas de sociabilidade entre jovens, etc., são uma constante, em especial na região de Dourados/MS. Essas solicitações parecem ir ao encontro de respostas a expectativas que os indígenas imaginam que as agências externas nutrem sobre eles. É difícil superar esse círculo vicioso e, de alguma forma, motivá-los a gestar propostas que emirjam das condições de interação vivenciadas cotidianamente em suas aldeias e que levem em conta as especificidades culturais de cada uma das etnias que vivem nestas aldeias. Constatamos até o momento alguns elementos relevantes quanto ao tema: é generalizado o sentimento de desesperança e desconfiança da população, dada a quantidade de projetos e ações nestas aldeias e sem grandes impactos e mudanças efetivas na qualidade de vida. Ao mesmo tempo, foi possível constatar, em relação a este projeto (UNICEF), certa expectativa e entusiasmo, na esperança de que venha a redundar em ações concretas, em prol de novas e efetivas políticas públicas para as comunidades indígenas. Ressalvado a questão do “contexto em que se constitui o sujeito da fala e o contexto de produção do texto/fala” (absorção do discurso produzido sobre eles no entorno regional, com

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posicionamento moralizante ante algumas práticas, como o consumo de álcool; como se todos os índios fossem bêbados e preguiçosos, sendo esta a raiz de todos os males, na opinião de alguns), os temas foram densamente debatidos nos grupos focais, com análises surpreendentes e, em geral, uma boa compreensão do que acontece nestas aldeias. A situação mais grave é quanto à sensação de insegurança, ante tanta violência: física (brigas, mortes, espancamentos, suicídios). Destacamos, em especial, a prática da violência simbólica: humilhações e preconceitos por serem índios; não atendimento das necessidades básicas (saneamento, alimentação, moradia, etc.); dificuldades para geração de renda e emprego; ausência de expectativas de futuro e opções de ocupação para os jovens. Podemos concluir que a população indígena Tikuna apesar de ser a maior em número populacional, tem enfrentando grandes impactos no que diz respeito às garantias de direitos. Ultimamente vêm sofrendo grandes influências das populações não indígenas envolventes. A despeito do que vem acontecendo com os povos de pouco contato, esses povos sofrem com o crescente índice de doenças, vertiginosa mudança cultural, o atendimento educacional não respondente aos contextos comunitários de maneira satisfatória. Acabam assim, por sofrer forte influência de outras culturas que lhes parecem mais atraentes. Contudo, estes povos, mesmo nas adversidades continuam resistindo aos impactos sociais. Dessa forma, falar de Direitos Humanos das Crianças e Mulheres Indígenas no contexto destas aldeias de Dourados/MS e Alto Rio Solimões/AM, torna-se indispensável para que se concretize a efetivação das políticas públicas que auxiliem no processo de valorização e fortalecimento de sua cultura. Foram observadas nas comunidades similaridades dos problemas encontrados, reforçando que a presença do Estado ainda é essencial como motor de desenvolvimento socioeconômico e ambiental nessas aldeias. Porém, a falta do comprometimento político e da presença do Estado agrava a situação, já quase calamitosa, das comunidades indígenas. Como exemplo imperativo desta falta de condições básicas de sobrevivência, na região do Alto Rio Solimões, em quase todas as comunidades encontramos o problema da falta de água potável. Não adianta tentar construir políticas públicas voltada para a cidadania, se ao menos tentarmos resolver o problema da água nessas comunidades, a percepção de direitos humanos melhoraria consideravelmente. Por tanto, antes de se planejar alguma política pública de cunho humanitário, é importante, primeiramente, adotar projetos de infra-estrutura junto com projetos voltados para os indígenas. Estas comunidades, de maneira geral, vivem complexa situação, uma combinação de intervenções históricas assistencialistas e mal sucedidas, o que tem dificultado as formas próprias de organização, somando-se a isto certo fascínio pela cultura não indígena que cada vez circunda e penetra em suas comunidades. Em última análise, todo este processo nos apresenta um contexto dinâmico onde a população indígena busca manter-se em suas raízes sem poder evitar o intercambio cultural.

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PARTE V RECOMENDAÇÕES Para finalizar este Relatório Final, algumas recomendações da equipe de sistematização dos dados do Levantamento Diagnóstico Qualitativo sobre o grau de percepção dos Direitos Humanos de Mulheres e Crianças Indígenas, nas aldeias de Dourados/MS e do Alto Rio Solimões/AM. 1. Qualquer ação de intervenção nestas aldeias deverá ter como referencial devolver o protagonismo e a autonomia a estes povos. Este direito está garantido na Convenção 169 da OIT, que ressalta o imperativo de “sempre ouvir as comunidades interessadas antes de implantar políticas em suas comunidades”. 2. A necessidade emergencial de providenciar tecnologias para garantir água potável para as comunidades do Alto Rio Solimões, pois este problema, apesar de tão primário, é a gênese de outras diversas dificuldades na área da saúde, da renda, da moradia e da educação. 3. Quanto ao tema da violência: para que haja mais segurança as lideranças da aldeia deveriam atuar na segurança acompanhando os policiais, e deveria haver algumas regras na aldeia, como de horário de circulação noturna. Para o problema do consumo de drogas, a solução apontada pelos jovens foi terminar com as bocas de fumo dentro das aldeias e a promoção de programas de educação (dentro e fora da escola), pois estes problemas geram conflitos geracionais nas aldeias. O consumo de drogas tem a ver com a relação entre aldeias/cidade e entre índio/não-índio, traficantes brancos vão à aldeia vender drogas para usuários índios e usuários brancos vão à aldeia buscar drogas de traficantes indígenas (fala dos jovens das aldeias de Dourados/MS). 4. Como sugestão de combate à violência, as mulheres das aldeias de Dourados/MS apontaram a necessidade se ter um centro de tratamento a dependentes químicos e programas de combate a violência. Reclamaram da omissão da FUNAI que nada faz para prevenir a questão das drogas e do alcoolismo nas aldeias. Também não eximem as responsabilidades da família ao afirmar que às vezes, os próprios pais não aconselham os filhos; o que tem que ser feito desde pequenos, por isso muitos jovens se envolvem com drogas. Em se tratando do entendimento de violência, Renata Maria Libório, doutora em Psicologia Social, ao tratar de sua pesquisa com exploração sexual comercial infanto-juvenil, parte das definições de Maria Lucia Leal (2001), definindo três tipos de violência:

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A violência estrutural (em cujo interior encontramos a exclusão social, a influência da globalização e da imposição das leis do mercado), a violência social (expressas nas dimensões de gênero, raça/etnia e geracional) e a violência interpessoal (presente nas relações interpessoais, tanto intra como extra familiar), aspectos psicológicos (a construção de identidade e o processo de vulnerabilização), sendo entendidos dentro do contexto da adolescênciasexualidade-violência e violação dos direitos (LIBÓRIO, 2004, p. 24).

Como forma de amenizar a violência contra as diferenças, torna-se necessário, como primeiro passo, estabelecer um diálogo intercultural. O diálogo intercultural é possível, mediante o reconhecimento das relações que permeiam a dinâmica de organização sociocultural entre os povos: sejam indígenas e não indígenas; seja na aldeia ou no contexto urbano; seja, ainda, no entorno da sociedade envolvente: é preciso aprender suas vozes dissonantes; é preciso aprender a desconstruir os discursos preconceituosos e violentos que historicamente foram sendo construídos e sedimentados como valores naturais. O antropólogo João Pacheco entende que é imprescindível considerar os impactos provocados por esse processo de interação com a sociedade envolvente, agora na ordem econômica, social, cultural, ambiental e educacional. Por isso, o principio da igualdade deve ocorrer entre os diferentes, e sendo diferentes, não é possível traçar políticas públicas homogeneizadoras, com modelos únicos, acabados e rígidos. Essa tentativa de se apresentarem modelos únicos e estranhos às comunidades indígenas, sejam eles econômicos, culturais, políticos, sociais, ambientais e até pedagógicos, para se adequarem às expectativas das sociedades não indígenas, resultaram no princípio da violação dos direitos humanos e culturais, causando assim grandes prejuízos, além de inúmeros problemas sociais, principalmente, aqueles que se encontra em contextos urbanos. Além de se constituir em um tipo de violência estrutural, social e até violência interpessoal (OLIVEIRA, 1999, p. 20). Desta forma, podemos entender que o Estado, ao traçar políticas públicas homogeneizadoras, como modelos únicos estão agindo também como um dos maiores violadores dos direitos humanos e, por conseguinte, causando também um tipo de violência. A que podemos chamar de “violência simbólica”. O sociologógo, Pierre Bourdieu, entende a violência simbólica como uma forma de coação, (é entendida como mal injusto, grave e eminente, utilizado contra uma pessoa por meio de manobras/maquinações, podendo ser com violência física ou psíquica, com o objetivo de forçar uma declaração contra a vontade voluntária do coagido), privação, que se apoia no reconhecimento de uma imposição determinada, seja ela econômica, social ou simbólica, ou seja, é um meio de exercício do poder; é o chamado “poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”. Por isso, identificar a violência simbólica é tarefa ainda mais difícil, pois não há percepção de sua existência em agressões psicológicas, humilhações e constrangimentos. Logo, o que pode ser verificado por meio dos relatos das mulheres da região de Dourados é que a comunidade vem sofrendo toda ordem de violência: estrutural, social, interpessoal e simbólica (BOURDIEU, 2000, p. 08).

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5. Tema da alimentação. Na Terra Indígena de Dourados muitos são os desafios para produzir as condições de existência material de modo satisfatório. Um dos desafios é ampliar e assegurar o acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente para nutrir e manter a saúde da população. Com a destruição das matas na Terra Indígena e no seu entorno, as atividades de caça, pesca e coleta, perderam sua importância no provimento de alimentos, e mesmo o cultivo de roças de coivara ou mecanizada tornou-se impossível ou insuficiente para a maioria das famílias, independente de sua etnia. Em décadas passadas existia muita falta de alimentação, sendo que nos últimos anos os governos implantaram uma série de programas sociais que asseguram o fornecimento de cestas básicas, bem como outros programas de seguridade social. A mudança na dieta alimentar criou o problema da carência de proteína, vitaminas e outros nutrientes, já que a alimentação fornecida é baseada na oferta de energéticos (carboidratos e amido). A população indígena da Terra Indígena de Dourados vive uma situação de insegurança alimentar, com ingestão inadequada de nutrientes, monotonia alimentar e tendência à diminuição do aleitamento materno. Em relação aos macro-nutrientes, os hábitos alimentares da população indígena parecem estar relacionados com um alto consumo de carboidratos associado ao baixo consumo de proteínas, o que os especialistas em nutrição identificam como um sério problema alimentar. 6. Apoiar iniciativas de grupos de famílias. As aldeias indígenas pesquisadas apresentam outros problemas sociais, como índices elevados de violência, ausência de segurança interna, falta de acesso à educação de qualidade, entre outros. Apoiar iniciativas de grupos de famílias organizadas para pensar soluções a partir da própria experiência vivida dentro deste cenário pode ser de fundamental importância para a reversão desse quadro de vulnerabilidade social. 7. Criação de espaços de sociabilidade. Constatamos, ainda, que não existem nestas aldeias espaços adequados para sociabilidade das pessoas, como praças, por exemplo, assim como espaços para reuniões, para discutir assuntos de interesse da comunidade. Como constatamos nos grupos focais, normalmente as famílias não costumam participar de atividades. Geralmente os que participam são os que vivem mais nos espaços centrais das aldeias, próximos às escolas ou outros espaços (CRAS, FUNAI, etc.). 8. Quanto à saúde, na fala dos próprios indígenas: capacitar os médicos, agentes e enfermeiros nos conhecimentos específicos dos povos atendidos, ou seja, conhecimentos tradicionais desses povos, da perspectiva antropológica no atendimento de saúde e respeito à cultura. 9. Quanto à educação. Continuar com as políticas de formação de professores e respeitar as particularidades destas escolas, alem de efetivar o diálogo intercultural dos conteúdos, para que a escola indígena seja efetivamente específica e diferenciada. 10. Atenção especial ao seguimento juvenil, com oportunidades de educação (Ensino Médio) de qualidade além de opções de cursos profissionalizantes, inclusive voltados, também, para a gestão dos próprios territórios.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARTH, F. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. [S.l.]: Bertrand Brasil, 2000. BRAND, A. J. O Impacto da Perda da Terra sobre a Tradição Kaiowá/Guarani: os difíceis caminhos da palavra. Tese. Pontifícia Universidade Católica – PUC/RS. 1997; 382 p. Centro de Trabalho Indigenista. Situação dos Detentos Indígenas do Estado de Mato Grosso do Sul. 1ª ed. - Brasília: CTI, 2008. COHN, Clarice. Antropologia da criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. FERREIRA, Eva Maria Luiz. A participação dos índios Kaiowá e Guarani como trabalhadores nos ervais da Companhia Matte Larangeira (1902-1952); Dissertação de Mestrado em História Indígena; UFGD, 2007. LIBÓRIO, Renata Maria Coimbra; SOUSA, Sônia, M Gomes(Orgs). A Exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil: Reflexões teóricas, relatos de pesquisas e intervenções psicossociais. São Paulo: Casa do Psicológico, 2004. LUCIANO, Gersem J. dos Santos. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Coleção Educação para todos. Brasília: MEC/Secad; LACED/Museu Nacional, 2006. MEC. Referenciais Curriculares Nacionais da Educação Indígena (RCNEI). Brasília: MEC, 1999. PACHECO DE OLIVEIRA, J. (Org.). A Viagem da Volta: Etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. 1a. ed. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1999. ________. Ensaios em Antropologia Histórica. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999. SAKURA, Maria. O desenho e a criança. Petrópolis, Vozes, 2000. SORATTO, Marinês. A construção do sentido da escola para os estudantes indígenas do ensino médio da Reserva Francisco Horta Barbosa – Dourados/MS; Dissertação de Mestrado em Educação. UCDB, 2007. TASSINARI, A. M. I. Escola indígena: novos horizontes teóricos, novas fronteiras de educação. In: LOPES da SILVA, A.; FERREIRA, M. K. L. (Org.) Antropologia, História e Educação: a questão indígena e a escola. São Paulo: Global, 2001.

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