Liberdade comunicativa como ação democratizante e educadora ou porque a democracia exige o princípio performático da tolerância?

June 30, 2017 | Autor: J. Iulianelli | Categoria: Ethics, Jurgen Habermas, Deliberative Democracy
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Liberdade comunicativa como ação democratizante e educadora ou porque a democracia exige o princípio performático da tolerância?
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Por Jorge Atilio Silva Iulianelli
Resumo: O conceito de liberdade comunicativa tem uma aparição não muito extensa, na obra de Habermas, porém, podemos dizer, cumpre um papel teórico relevante. Ele aparece nas discussões sobre a democracia, em especial a partir de Faktizität und Geltung (FG), e depois comparece nas obras Zwischen Naturalismus und Religion (NR) e Zukunfut der Menschlichen Natur(ZM). Ele não está explícito na Teoria do Agir Comunicativa e nem nas obras anteriores; bem como não está presente nas obras mais recentes que lidam com problemas políticos europeus, sobretudo. Nas três obras que nas quais o uso desse conceito é explícito, também, não é propriamente unívoco. Sua aparição quer responder aos problemas da desobediência civil e das relações autônomas dos cidadãos nas comunidades políticas, com a autoria responsável dos indivíduos, cidadãos e construtores de personalidade, e com nossa ação ética e moral. Nesse último ponto, em relação à perspectiva moral da razão prática, a liberdade comunicativa se articula ao conceito poder comunicativo. É propriamente o poder comunicativo, por exemplo em FG, que cumpre o papel de articular a ação público-política, no sentido de assegurar o cumprimento dos direitos civis, por exemplo. A liberdade comunicativa, de certo modo, estaria mais vinculada ao papel ético da razão prática, no sentido de entronizar-nos em nossa própria eleição de um estilo de vida, de um modo de vida democrático, arraigado em nossa própria identidade e personalidade, em nossa autoria responsável. Neste sentido, o conceito de liberdade comunicativa tem que ver com nossos modos de aprendizagem comunicativa, nossas interações comunicacionais emancipatórias, que podem ser promovidas, também, por meio de ações educativas. É esta capacidade de e para que é a própria liberdade comunicativa que coloca em outros termos o problema da justiça (que tem como elemento de solução o poder comunicativo). Na medida em que a liberdade comunicativa se conecta às opções por estilos de vida que podem favorecer nossa autorrealização, ela também pode ser expressa no modo com o qual interagimos o mais autenticamente possível. Não por acaso Habermas recorre a Kierkegaard para remeternos a essa dimensão autoral da liberdade comunicativa. Ela é um elemento de nossa estrutura existencial, como abertura ao possível, possibilidade que elegemos. Ora, é parte da dimensão da política como arte do possível, porém, muito mais. Haja vista que se vincula ao elemento fundamental da responsabilidade que se reivindica, responsabilidade ancorada em nossa vida comum, em nosso mundo da vida, em nossas experiências prépolíticas, por assim dizer. Propriamente o campo da soberania popular, no qual entrelaçamos nossas vivências em busca da afirmação do modo de constituição da esfera pública política. É nesta direção que a liberdade comunicativa permite questionar os modos com os quais se constitui o poder político. Permite que estejamos, até mesmo, na contramão ou na contracorrente do pensamento hegemônico. Como diz Habermas, é um elemento anárquico, persistente na liberdade comunicativa que abre a experiência democrática às inovações possíveis – como o cosmopolitismo europeu, que Habermas tanto aspira, ou às experiências latinoamericanas de participação em favor da democratização. Neste artigo quero explorar, com Siebeneichler (2015) e Mendieta (2015), o papel da liberdade comunicativa na nossa constituição autoral, responsável e aberta às experiências libertadoras. Num primeiro momento, articulase a noção de liberdade comunicativa como apresentada nas obras em que ela tem papel preponderante. Em segundo lugar, discute-se como esse conceito permite pensar processos educativos e políticos como construtores de nossa autoria responsável. Finalmente, dialogando com Siebeneichler e Mendieta chegamos à noção de liberdade comunicativa libertadora.
Palavras-chave: Liberdade comunicativa, democracia deliberativa, educação e tolerância

Liberdade comunicativa nas obras fundamentais

Liberdade comunicativa, educação e democratização

Liberdade comunicativa libertadora

A tradição filosófica consagrou o tema da liberdade a uma dupla dimensão, a saber, existencial e política. A primeira perspectiva, enseja a noção da liberdade ser um elemento da condição humana. Independente de abordar a, assim chamada, querela dos modernos e dos antigos, há na tradição do conceito existencialista de liberdade um elemento quasi-metafísico ou mesmo ontológico. Trata-se de uma nota do papel constitutivo da liberdade como modo de ser do ser humano. A tradição existencialista, propriamente, em que sopesem as diferenças entre os pensadores, Heidegger, Sartre, Jaspers, faz notar o papel da liberdade como elemento da estrutura humana, definidor de nossa personalidade. A tradição da filosofia política, por outro lado, identifica a liberdade negativa, e fala da construção da liberdade, liberdade que é fruto da ação e da decisão humana. Para falar ao modo de Hannah Arendt, por exemplo, não nascemos livres, nos fazemos livres. Em princípio, pois, essas duas tradições seriam antitéticas. A liberdade é elemento constitutivo de nossa identidade ou elemento construído politicamente? E ao falarmos sobre a constituição ou a construção da liberdade, nem estamos nos referindo aos problemas filosóficos das relações entre liberdade e determinismo.
O conceito de liberdade comunicativa oferece uma resposta que elimina o problema. Talvez porque ele tenha sido mal proposto pela tradição. De qualquer modo, Habermas reconhece que as teorias filosóficas sobre a liberdade não conseguiram ter um consenso, tem um concerto de vozes dissonantes (Habermas: 2009). Ele se dá conta da continuidade atual dessa discussão, que se desdobra em determinismo, naturalismo, epifenomenalismo, dentre outras teorias, sem que se apresente uma solução apropriada. A estratégia habermasiana, ao invés do engajamento nesse debate é outra. Ele prefere discutir as questões pragmáticas e praxísticas vinculadas à noção de liberdade, a partir do contexto ilocucionário, no qual falantes podem/devem dizer sim ou não. Já sabemos que, neste contexto, Habermas buscará o caminho do meio entre a afirmação da perspectiva descritivista e aquela performática.

Mendieta (2015) propõe que pensemos a questão da liberdade em correlação ao da liberdade. Propõe ele que iniciemos uma reflexão sobre tal fenômeno não a partir da assunção teórica das formulações do conceito de liberdade. Ele nos solicita uma abertura a nossos sentimentos morais, faz isso a partir da descrição de duas fotografias. A primeira, de uma criança famélica, foto de Sebastião Salgado, de criança africana, que está desesperadamente buscando ser salva, a se apoiar numa corda. A outra, fotos de Abuh Grabi, da tortura perpetrada pelos soldados estadunidenses naquelas instalações. Ele indica que o sofrimento, presente nas duas condições, foram sofrimentos perpetrados por seres humanos contra seres humanos. E que, ao mesmo tempo, ressente em tal situação a dignidade, violada, daqueles que sofrem. Mendieta nota que o conceito de dignidade pode estar articulado em uma perspectiva subjetivista. Ser por isso um conceito relativo, fungível, podendo até mesmo ser prejudicial e levar à violência. Por outro lado, a centralidade do conceito dignidade humana na Declaração Universal dos Direitos Humanos fazem com que tal conceito seja central para a definição mesma de direitos humanos. O conceito de dignidade tem sido fraco e pouco eficaz, porém necessita maior explicação, retomaremos adiante isso. Agora, nos interessa a articulação do conceito de dignidade com o de liberdade. Mendieta faz isso a partir do conceito de liberdade reflexiva, que ele tomará de Honneth. Porém, em um determinado momento de sua argumentação, ele retoma o conceito de liberdade comunicativa, de Habermas.

O ponto central ressaltado por Mendieta é o mesmo que faz Siebeneichler. Diz Mendieta: "a articulação da liberdade como liberdade comunicativa que assume que ser livre significa ser livre em relação a como os outros iriam responder a minhas ações, e como, por sua vez, eu teria que responder. Ser livre significa que sempre temos que reconhecer que nossas ações têm consequências." (MENDIETA: 2015, 70). Vejamos o que diz Sibeneichler: "liberdade comunicativa tem a ver, precisamente, com a possibilidade, ou melhor, com a obrigatoriedade de alguém se posicionar discursivamente – por argumentos – quanto a exteriorizações de um interlocutor e quanto a pretensões de validade que dependem de reconhecimento intersubjetivo comunicativo." (Sibeneichler: 2015, 47). Notamos aqui, em ambos, a indicação reflexiva da liberdade comunicativa e sua interação com a responsabilidade autoral. No primeiro caso ressalta-se o papel da ação geradora de consequências, e no segundo o papel da interação comutativa, geradora de obrigações (morais).

O conceito de obrigatoriedade comunicativa é habermasiano e tem que ver com a liberdade de afirmar ou negar algo quando se age comunicativamente. Conceito, como demonstrou Siebeneichler, que Habermas adota daquele de obrigatoriedade ilocucionária, de Austin (1962). A liberdade gera, pois, a partir dessa articulação da autoria responsável, o poder comunicativo, a capacidade de instituir politicamente nossa intervenção na esfera pública. Se aceitamos essa noção de autoria responsável, presente em Habermas e articulado pelos dois autores e se aceitamos que este conceito implica a necessidade de adotar como critério de aferição da liberdade comunicativa a capacidade de agir responsavelmente, haveria alguma conexão entre tal conceito e a noção de dignidade humana? Traria a existência de tal conexão alguma contribuição para ações promotoras da democracia radical?

Quando nos perguntamos sobre os limites do exercício dos direitos, sobre como a tolerância deve ser exercida, estamos nos perguntando sobre se há reconhecimento da dignidade humana como elemento limitante de ações antidemocráticas. Porém, não é algo simples e determinável. Podemos nos chocar com as atitudes dos policiais húngaros no atendimento aos refugiados sírios, ou com a atitude dos jovens de Santa Maria (RS) que incineraram o jovem senegalês naquela cidade. Podemos, até mesmo, nos chocar com a virulência da ação política que se opõe à manutenção do Estado democrático de direito, ou a revés, contrário à manutenção da aparência de Estado democráticos de direitos em função do exercício ilegítimo do poder – como foi o caso da ditadura militar no Brasil e em outros países latinoamericanos. Em que a liberdade comunicativa poderia nos auxiliar em relação a isso?

Habermas propõe três argumentos que influenciariam a liberdade de escolha:
– Argumentos de primeira ordem, assumem a forma de desejos e preferências de uma pessoa ou de um indivíduo [ordem pragmática da razão prática].
– Argumentos que se referem ao que é melhor para a felicidade e a vida e de uma pessoa tomada em seu conjunto, decisões sobre estilo de vida. São argumentos éticos.
– Argumentos morais que se colocam quando estão em jogo obrigações e deveres que nós, na qualidade de pessoas dotadas de autoria responsável, vontade livre e liberdade comunicativa assumimos uns em relação aos outros no âmbito da sociedade (HABERMAS, 2005, p. 165-166; 1993: 1-19).

Siebeneichler conclui dessa perspectiva sobre a razão prática: "Podemos constatar que esse elenco de tipos de argumentos não comporta nenhum tipo de razões apriorísticas. Isso porque a ligação íntima entre uma vontade livre e o mundo dos argumentos obriga Habermas a abandonar qualquer tipo de justificação racional da liberdade apoiada em fundamentos últimos ou metafísicos" (SIEBENEICHLER: 2015, 48). O que se dá é o fato de termos um processo por meio do qual nossas ações são deliberadas e nos fazem participar politicamente da esfera pública. Nossa ação comunicativa e livre ocorre no âmbito da política – e vale lembrar a co-originariedade que Habermas atribui à soberania popular e ao Estado democrático de direito. O exercício coletivo do controle social é um exercício comunicativo. Trata-se de um processo de radicalização da democracia. Vale uma citação de A Constituição Europeia, na qual o tema da liberdade comunicativa não é articulado explicitamente, porém, pode ser subsumido no tema da dignidade humana, ao menos nessa passagem assim parece:

A ideia de dignidade da pessoa humana é o eixo conceitual que liga a moralidade do respeito igual para todos, com o direito positivo e um processo legislativo democrático de tal forma que a sua interação pode dar origem a uma ordem política fundada sobre os direitos humanos ... Porque a promessa moral de igual respeito por todos deve ser consagrada em uso geral legal, os direitos humanos exibem um rosto de Janus, virado simultaneamente à moral e à lei. Não obstante o seu conteúdo moral exclusivo, eles têm a forma positiva, de direitos subjetivos exigíveis que garantem liberdades e reivindicações específicas. Eles são projetados para ser explicitados em termos concretos, através de legislação democrática, para serem determinados a cada caso em julgamento e serem executados com a sanção pública. (Sobre a Constituição Europeia, 81-82)

A liberdade é condicionada, ao menos pelas pressões sociais, determinismos naturais e argumentos. Porém, a liberdade comunicativa, como se depreende da reflexão acima, é fundamental na ordem discursiva para o estabelecimento de uma ordem política que se funde nos direitos humanos. Tratase do elemento ético-moral e moralpolítico da reciprocidade. Os direitos são exigíveis, e se confirmam em garantias de liberdades. Mendieta tem razão ao afirmar que o direito se assenta sobre a lei da liberdade, é ela quem sanciona publicamente o direito e pode cooperar para reparação de suas violações. Toda exploração e degradação do ser humano, pois, diante da liberdade comunicativa, não tem outra alternativa senão se render à necessidade de interrupção de tal injustiça e da reparação da injustiça cometida, como ato de exigência daquelas e daqueles que têm a própria dignidade violada, e daquelas e daqueles que lhes são solidários – por obrigatoriedade comunicativa (que termina por adquirir força de constrangimento moral).

Por outro lado, diante de manifestações de ódio político, por dissenso provocado ao redor de derrota eleitoral, por exemplo, o que pode a liberdade comunicativa? "nos titubeios de tal liberdade não existe mais nenhum ponto fixo a não ser, unicamente, o procedimento democrático" (HABERMAS, 1994, p. 10-11). E, também, "os direitos do homem que permitem exercer a soberania popular, não pode constituir uma restrição externa desta prática" (Habermas: 1994, p.135). Nesse ponto está estabelecida a co-originariedade das liberdades individuais e direitos políticos. O que orienta essa reconstrução é nossa condição intersubjetiva.

É uma tese complexa, considerando os direitos subjetivos. Porém, considerando a autonomia jurídica, o círculo virtuoso da autonomia privada e pública. Disso se pode concluir que o usufruto das liberdades fundamentais é a condição necessária para o exercício da autonomia jurídica, é a condição necessária para a autolegislação. Isto está no coração mesmo da reconstrução do direito efetuada por Habermas. Neste papel que o direito é um dique aos processos que colocam em risco a democracia e o Estado democrático de direito. E isto remete diretamente ao processo e aos procedimentos da democracia deliberativa. Tais processos incluem a liberdade comunicativa, que ultrapassa essas dimensões juridificadas das relações políticas.

A liberdade comunicativa depende essencialmente de duas condições que são, de um lado, o uso de uma linguagem orientada por entendimento e, de outro, a correspondente obrigatoriedade ilocucionário-argumentativa. E tal dependência é anterior a qualquer ato de institucionalização jurídica. Além disso, as garantias jurídicas capazes de assegurar a legitimidade dos resultados obtidos dependem, sempre, de certas formas de comunicação, de procedimentos discursivos, de decisões fundadas em argumentos, por conseguinte, do uso público da liberdade comunicativa e da autoria responsável. Por estas razões, concordamos com a conclusão a que chega Siebeneichler: "Habermas reitera a tese de que, dado o fato de a democracia ser capaz de se relacionar não somente com o direito, mas também com a moral, a ciência e o Estado, somente procedimentos democráticos, radicais, apresentam condições de produzir, sob as pressuposições sociais e políticas atuais, poder legítimo" (SIEBENEICHLER, 2015, 57).

Referências bibliográficas:
AUSTIN, J. L. How to do things with words. Oxford: Clarendom Press, 1962.
NIESEN, Peter; HERBORTH Benjamin (Eds.). Anarchie der kommunikativen Freiheit. Jürgen Habermas und die theorie der internationalen politik. Frankfurt: Suhrkamp, 2007.
HABERMAS, Jürgen. Faktizität und geltung. Beiträge zur diskurstheorie des rechts und des demokratischen rechtsstaats. 4. ed. Frankfurt: Suhrkamp, 1994.
______. Facticidade e Validade: direito e democracia. Trad. Flavio Beno Siebeneichler. RJ: Tempo Brasileiro, 1994. 2v.
______. Wahrheit und rechtfertigung. Philosophische aufsätze. Frankfurt: Suhrkamp, 1999.
______. Zwischen naturalismus und religion. Philosophische Aufsätze. Frankfurt: Surkamp, 2005.
______. Kommunikative rationalität und grenzüberscheitende politik: eine replik, In: NIESEN, Peter; HERBORTH, Benjamin (Eds.). Anarchie der kommunikativen Freiheit. Jürgen Habermas und die theorie der internationalen politik. Frankfurt: Suhrkamp, 2007. p. 406-459.
______. Kritik der vernunft: philosophische texte. Frankfurt: Suhrkamp, 2009. (Studienausgabe in fünf Bänden, 5).
_______. Sobre a constituição da Europa. Trad. Luiz Repa. SP: EdUnesp, 2012.
MENDIETA, E. The moral orthopedia of the law: dignity, communicative freedom and the decolonization of human rights. In RCJ – Revista Culturas Jurídicas, Vol. 1, Nº. 2, p. 35-74, 2014.
SIEBENEICHLER, F.B. Considerações sobre o conceito de liberdade comunicativa na filosofia habermasiana, In LOGEION: Filosofia da informação, Rio de Janeiro, v. 1 n. 1, p. 43-58, ago./fev. 2014


Professor Adjunto do PPG Educação da Universidade Estácio de Sá, participante do GP Filosofia Política da Informação, coordenado pelo Prof. Clovis Montenegro, e do GP Políticas, Gestão e Formação de Educadores, coordenado pela Profa. Wania Gonzalez.



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