LIBERDADE DE EXPRESSÃO

July 26, 2017 | Autor: Claudio Willer | Categoria: Literatura Comparada
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Liberdade de expressão
Claudio Willer
O texto a seguir traz, com pequenas alterações, o que eu
apresentei na sessão com esse título realizada no Centro
Cultural do IEL, Instituto de Estudos da Linguagem da
UNICAMP, dia 19 de março de 2015, em companhia dos
professores Márcio Seligmann-Silva, que coordenou a sessão,
e Roberto Romano.

Hoje, Baudelaire é, dentre os poetas do século 19, o mais estudado e
lido. Não obstante, As flores do mal foi recebido com um processo por
obscenidade ao ser publicado em 1857. Teve poemas proibidos e o poeta ainda
pagou uma multa.
Entre os poemas censurados, aqueles sobre lésbicas, que o fascinavam
por achá-las impossíveis, realizações do anti-natural, encarnações do
andrógino primordial. Homenageou-as de modo passional em "Lesbos" e
"Delfina e Hipólita". Também foram censurados os intensamente líricos "À
que está sempre alegre" e As jóias", e os necrófilos "O Letes" e "As
metamorfoses do vampiro". Cito os versos finais de "A que está sempre
alegre", bom exemplo da ambivalência baudelairiana, ao declarar que
destruirá a amada:
E, como em êxtase supremo,
Por entre esses lábios frementes,
Mais deslumbrantes, mais ridentes,
Infundir-te, irmã, meu veneno! (1995, p. 239)
Em nota, Baudelaire reclamou de censores interpretarem a estrofe como
intenção de inocular sua sífilis na amada. (idem, p. 1059).
Já me detive, em uma mesa sobre obscenidade e pornografia que teve
lugar uns dez anos atrás, na comparação dos poemas de Baudelaire com
trechos de outro livro proibido, porém pouco mais de um século depois:
Nacked Lunch, Almoço nu de William Burroughs. Edifiquei o público com a
leitura de trechos dos relatos de orgias pederásticas e sado masoquistas,
como no capítulo "O quarto do esculacho de Hassan" (p. 77-78), com a
descrição do que o Mugwump, criatura disforme, faz com um garoto, sufocando-
o e sodomizando-o sob aplausos dos convidados á festa:
De repente o Mugwump empurra o garoto para a frente no espaço, livre
do seu caralho. Estabiliza seu corpo com as mãos nos ossos dos
quadris, estende as mãos hieroglíficas estilizadas e estala o pescoço
do garoto. Um estremecimento lhe percorre o corpo. Seu pênis levanta-
se em três grandes impulsos puxando a pélvis para cima e ejacula
imediatamente. (1984, p. 78)
São algumas páginas de relatos desse teor. Segundo Barry Miles, na
minuciosa biografia Call me Burroughs – A life, pesadelos de um intoxicado,
porém incorporando e elaborando o que viu e aquilo de que participou
enquanto morava em Tanger, onde a prostituição juvenil era disseminada.
A liberação de Nacked Lunch, após um processo que durou de 1963 a
1966, foi um marco histórico. Acabou com a censura a obras literárias nos
Estados Unidos. Fortaleceu jurisprudência que anulou leis anti-obscenidade
em vigor. Pelo seguinte: magistrados guiaram-se pela premissa de que, se a
obra tinha valor literário ou interesse social, não poderia ser proibida.
Ora, se algo como Nacked Lunch atendia a esses requisitos, então não havia
como proibir o que fosse.
O desfecho coroou uma sucessão de vitórias contra a censura, em
confrontos iniciados com a apreensão em 1956 de Howl and other Poems, Uivo
e outros poemas de Allen Ginsberg, publicado pela City Lighst Books, de
Lawrence Ferlinghetti.
Portanto, autores ligados à Geração Beat contribuíram para um avanço
real, possibilitando que possamos ler o que quisermos, sem recorrer a
edições clandestinas. Isso, além de anteciparem a contracultura,
estimularem rebeliões juvenis, atuarem como arautos de temas que compõem um
debate em curso, envolvendo setores mais amplos da sociedade – não só
relativos à liberdade de expressão, mas em favor da diversidade,
pluralismo, tolerância. A defesa da integridade de obras literárias, por
sua vez, contribuiu para a queda do espantoso código de censura no cinema,
o Código Hays, assim como no teatro, outros campos da criação artística, e
nas comunicações e expressão de idéias em geral
Semelhante abertura não aconteceu de modo natural. Foi o resultado de
uma luta, desgastante para alguns de seus protagonistas. Algo está relatado
em um livro publicado recentemente no Brasil, A hora terna do crepúsculo de
Richard Seaver, um dos diretores da Grove Press de Barney Rosset, o
corajoso editor que publicou, entre outros autores de seminal importância
como Samuel Beckett e Jean Genêt, os então proibidos D. H. Lawrence, Henry
Miller e William Burroughs. Naquela época, agências postais podiam atuar
como censores, confiscando livros; juízes municipais podiam abrir processos
por obscenidade e determinar apreensões. Os vaivens jurídicos até que os
casos finalmente chegassem à Suprema Corte, o STF deles, exauriram
financeiramente a Grove Press, mesmo com lançamentos como O amante de Lady
Chatterley em listas de mais vendidos. A obra de D. H. Lawrence precisou de
um ano, entre 1956 e 58, para circular livremente. Trópico de Cancer de
Henry Miller foi objeto de sucessivos embates entre 1959 e 1963. E a luta
para liberar Almoço nu, conforme já relatado, foi de 1963 a 66.
E aqui, no Brasil? É possível fazer paralelos com o que ocorreu nos
Estados Unidos, bem como na França e Inglaterra, em meados do século 20.
Contudo, como sabem, o acesso à informação e ao entretenimento teve uma
intercorrência, correspondente ao regime militar de 1964 a 1985, que
incluiu o exercício de uma pesada censura direta a órgãos de imprensa entre
1969 e 1976, com censores nas redações, além do que enfrentaram cineastas,
músicos, dramaturgos e encenadores, bem como editores e autores de obras
literárias.
É, contudo, falacioso relacionar a censura e outras eclosões locais de
autoritarismo exclusivamente ao regime militar. O Brasil era obscurantista.
Em 1958, por exemplo, a peça teatral Quarto de empregada de Roberto Freire,
que hoje pode ser encenada sem restrições de faixa etária, foi sumariamente
proibida por determinação direta do governador de São Paulo, Janio Quadros.
No ano seguinte, tivemos a proibição do filme Les amants de Louis Malle,
por aquela modestíssima sugestão de um beijo abaixo da cintura e um orgasmo
da protagonista interpretada por Jeanne Moreau. Isso, entre tantos outros
casos. A hipocrisia campeava.
Milagre ou intervenção de orixás haverem liberado com uns poucos
cortes minha encenação, junto com Décio Bar, de América, um espetáculo de
poemas de autores beat, em 1967. Incluiu minha tradução de Uivo de Ginsberg
na íntegra. Contemporizei em umas poucas passagens, usei um ou outro
eufemismo: o "deixaram-se enrabar por motociclistas santificados" tornou-se
"deixaram-se sodomizar". Acho que tive sorte por não ser famoso, não estar
estigmatizado como, por exemplo, Plinio Marcos, com quem cruzei no corredor
daquele departamento de censura – tentava mostrar-lhes o absurdo de
proibirem seu recital de poemas de Carlos Drummond de Andrade.
Além de várias outras intervenções, inclusive um recital de poesia do
qual fui um dos organizadores junto com Ruth Escobar, homenagem a Pablo
Neruda com atores lendo poemas, e que foi expressamente proibido pelo então
ministro da justiça Armando Falcão em setembro de 1977 – estava programado
para o Largo de São Francisco, fizemos assim mesmo, no pátio da faculdade
de Direito – em 1982, ao ser eleito secretário geral da União Brasileira de
Escritores, participei da organização de um comitê contra a censura
motivado pela proibição do filme Pra frente Brasil de Roberto Farias, junto
com outras entidades e organizações.
Na época, chegavam ao conhecimento do público relatórios e instruções
para funcionários do Departamento de Censura. O conjunto oferecia um
admirável exemplo de paranóia conspiratória. Referiam-se a um Movimento
Comunista Internacional, que tratavam pela sigla MCI. Um objetivo do MCI
seria a dissolução da família; por isso, difundiam a licenciosidade e a
pornografia. Combatendo-a, censores faziam frente à ameaça comunista.
Consterna imaginar pessoas pagas com dinheiro público ocupando-se com
tais fantasias, movidas por tamanha falta de informação. Bando de
incompetentes, como tive ocasião de verificar ao ter acesso a minhas fichas
no DOPS: não entenderam nada do que se passava – felizmente. Afinal, a
família soviética era muito mais estável do que aquela dos países
capitalistas avançados. E um tema forte do comunismo de orientação
soviética sempre foi a "decadência" burguesa, a dissolução dos costumes
contrastando com a saudável família proletária. Algo que André Breton já
havia observado em suas críticas ao stalinismo de 1935, publicadas em
Posição política do surrealismo, após citar trechos de uma reportagem do
Pravda intitulada "Respeitai vossos pais":
Limitamo-nos a registrar o processo de regressão rápida que quer que,
depois da pátria, seja a família que saia indene da agonizante
Revolução russa (que pensa disto André Gide?). Só lhes falta, agora,
restabelecer a religião – por que não? – e a propriedade privada, para
que se tenha dado cabo das mais belas conquistas do socialismo. Ainda
que arriscando provocar a fúria de seus turiferários, perguntamos se é
necessário outro balanço para julgar a partir de suas obras um regime,
no caso, o regime atual da Rússia Soviética, e o chefe todo-poderoso
sob o qual esse regime se converte na negação mesma do que deveria ser
e do que foi. (2001, p. 301)
O beatnik mais paramentado, o hippie em sua indumentária, foram
criaturas permanentemente sob dois fogos: da severa militância e da polícia
burguesa. Nas minhas pesquisas sobre contracultura, examinei documentos
sobre perseguição aos hippies nos Estados Unidos a partir de 1967:
instruções aos policiais para reprimir os "hippie tipes". Durante a
vigência de ditaduras mais tenebrosas, como na Argentina a partir de 1976,
era arriscado usar cabelos compridos e trajar-se de modo mais informal. Há
continuidade histórica: na França, após o golpe dado por Napoleão III,
durante o regime ditatorial do Segundo Império (1851-1870), no tempo em que
Baudelaire foi censurado e Gérard de Nerval se suicidou, funcionários
públicos eram proibidos de usar barba, emblema dos "Jeune France", rebeldes
românticos precursores dos beats. Curiosa recíproca dos países em que,
hoje, homens são obrigados a usar barba, atestado de sua condição
masculina.
Tive a satisfação, em 1988, como presidente da UBE, de comparecer à
Assembléia Constituinte junto com representantes de outras entidades, para
apresentar propostas, todas incorporadas à Constituição, inclusive a que
resultou no inciso IX do artigo 5º: " é livre a expressão da atividade
intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de
censura ou licença". Uma nação saturada de arbitrariedades e imbecilidades
como essas que citei apoiou garantias de que tais coisas não voltariam a
repetir-se. Durante o debate a seguir poderei comentar a piora da
representação parlamentar, se comparada àquele tempo: era entrar nos salões
do Congresso e dar de cara, por exemplo, com Florestan Fernandes, um dos
constituintes da Assembléia presidida pelo Dr. Ulisses.
Até agora, até esta altura da minha argumentação, fui tendencioso.
Orientei-me propositadamente por um viés, como se isso que apresentei
correspondesse a uma linha reta, em trajetória ascendente. É a perspectiva
iluminista, ou do Esclarecimento, fundamento da modernidade. Repousa na
contribuição de pioneiros como o grande poeta John Milton, autor de Paraíso
Perdido, que em 1644 lançou Areopagítica, panfleto em favor da publicação
livre de licença prévia – lembrando que o título remete ao Areópago, a
praça pública ateniense, cenário do debate e consulta democrática. Outros
pilares do iluminismo são conhecidos por quem estuda política: John Locke,
com seus tratados sobre o governo de 1681, apresentando a idéia do contrato
social; Montesquieu, com sua obra monumental, O espírito das leis, em
defesa da tripartição do estado, dos três poderes, de 1748; Rousseau, com O
contrato social, de 1762; Voltaire; Diderot e D'Alembert, com sua
enciclopédia publicada entre 1751 e 1772, precedida por aquela de Pierre
Bayle, de 1697.
Entre as premissas do iluminismo, a associação de progresso e
ampliação do saber. Sua conseqüência, a defesa da educação universal, do
ensino à disposição de todos. Realizações, as declarações de direitos,
desde aquela francesa, dos direitos do homem e do cidadão de 1789, até a da
ONU, de 1948. E constituições, a começar pela Bill of Rights britânica de
1689, aquela dos Estados Unidos de 1791, obra de genuínos iluministas como
Thomas Jefferson e Benjamin Franklin.
A linha que desenhei, desde a censura a As flores do mal de Baudelaire
em 1857 até a liberação de Almoço nu de Burroughs em 1966, pode ser
associada a um progresso; a um avanço de ideais iluministas. Não obstante,
mostra-se quebrada e sinuosa. Em 1789, Valetine de Gouges apresentou à
convenção uma declaração dos direitos da mulher; pouco depois, porém, seria
decapitada como girondina. A consolidação de direitos da mulher, a meu ver
medida do progresso, foi ocorrendo ao longo do século 20. Mesmo na década
de 1980, ouvi pessoas cultas reclamarem do projeto de um novo Código Civil,
argumentando que a família deveria ter um chefe e pressupondo que tal chefe
seria o homem da casa.
Direitos do cidadão, naquelas cartas, eram direitos do burguês – em
alemão, as duas categorias, burguês e cidadão, são designadas pelo mesmo
termo, bürger, derivado de burg, cidade ou povoado. Direitos de
trabalhadores assalariados foram conquistados através de lutas que marcaram
os séculos 19 e 20. Isso, além de países que adotaram tais cartas seguirem-
nas para uso interno; mas não em suas ações coloniais. E do progresso no
campo dos direitos civis ser recente, especialmente naqueles países que
foram escravocratas até a segunda metade do século 19.
Tracei essa linha, contudo, para examinar algo do que compromete ou
complica essa visão da história, fundada em valores dos quais,
evidentemente, não se pode discordar. Como assim...? perguntarão alguns. O
rebelde romântico, o beat, o surrealista, defensor do iluminismo? Da
racionalidade do curso da história? Tenho resposta. Rebelião romântica e
seus desdobramentos fazem sentido no ambiente criado pelo iluminismo, mesmo
sendo sua crítica; ou, ao menos, uma crítica à classe social que ascendeu
impulsionada por valores iluministas e à sociedade que realizou a idéia de
progresso, ou daquele progresso diretamente associado ao desenvolvimento
científico e tecnológico. São metacrítica (a expressão é de Kostas Axelos
em Vers la Pensée Planétaire),
Comecemos por aquilo que perturba em âmbito local, em nosso entorno
imediato. Os pequenos acontecimentos que registro em meu blog. Por exemplo:
a censura a um dicionário[1]: "O Ministério Público Federal (MPF) entrou
com ação na Justiça Federal em Uberlândia (MG) para tirar de circulação o
dicionário Houaiss, um dos mais conceituados do mercado. Segundo o MPF, a
publicação contém expressões "pejorativas e preconceituosas", pratica
racismo contra os ciganos e não atendeu às recomendações de alterar o
texto, como fizeram outras duas editoras com seus dicionários." "A ditadura
do politicamente correto.", comentei.
Outro caso semelhante, também de 2012, que retornou recentemente: a
ação contra o "racismo" em Caçadas de Pedrinho de Monteiro Lobato[2]. Quero
deixar claro: não se deve perdoar ou obliterar o racismo do grande
narrador: apenas, sou contra a judicialização de questões pedagógicas; quem
tem que tratar disso são educadores, não magistrados. Além do argumento
infalível: por esse critério, em um conto como "São Marcos", em Sagarana de
Guimarães Rosa não sobraria quase nada.
Um recorde de acessos em meu blog – mais de 900 no dia da publicação -
foi por causa da reação de um grupo feminista à publicação, de 2006 pela
editora Azougue, do Manual de boas maneiras para meninas, do belga Pierre
Louÿs, sátira aos bons costumes de 1917[3]. Atribuindo a publicação à
cervejaria Devassa, enxergaram a mão maligna do capitalismo, empenhada em
perverter os costumes. Observei: "Logo pedirão novamente a censura de Henry
Miller. De James Joyce. De D. H. Lawrence. De William Burroughs. De Sade.
Das obras libertinas de Apollinaire. De… E reativarão, é claro, o escândalo
de 1990 em torno de Hilda Hilst e de O caderno rosa de Lori Lamby." E,
ainda: "Esse prefeito de Coari, Amazonas, que finalmente, anos depois, foi
preso por encabeçar uma rede de prostituição infanto-juvenil – ele, seus
inúmeros comparsas, seus incontáveis equivalentes – vocês acham que algum
deles já leu Pierre Louÿs? Nem sabem quem é. Vocês acham que algum
estuprador de verdade leu Sade? Enfim, e como sempre, os moralistas, os
preconceituosos, retrógrados e histéricos jamais chegam perto de qualquer
problema real." Pois não é que, nos comentários, veio o seguinte: "acho
sim, que estupradores "de verdade"leram sade, por que não? afinal, quem
estupra são os pais, irmãos amigos, preto, branco, rico, pobre,
universitário, professor, médico, pedreiro, office boy, executivo, enfim,
homens, machistas. aliás, muitas das obras citadas pelo articulista são
sexistas." Sim – a militante classificou autores como "sexistas", como se
isso fizesse algum sentido.
Grave, mesmo, é a pouca repercussão de outro caso que denunciei, da
censura em um edital da Funarte e Biblioteca Nacional, de 2012[4]. Trazia
estes tópicos:
1.2. Os projetos concorrentes não sofrerão quaisquer restrições quanto
à temática abordada dentro da sua categoria, desde que não
caracterizem: a) promoção política de candidatos e/ou partidos; b)
dano à honra, a moral e aos bons costumes de terceiros e da sociedade;
c) pornografia; d) pedofilia; e) discriminação de raças e/ou credos;
f) tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins; g) terrorismo; h)
tráfico de animais.
Reparem que isso é censura institucionalizada, como política de
governo. O "desde que não caracterizem" é tão vago que poderia implicar
veto a qualquer coisa. Informei à UBE, que pediu explicações à Biblioteca
Nacional. Responderam que acatavam determinações da ministra Maria do
Rosário, da Secretaria de Direitos Humanos. Estranhei uma coisa dessas
repercutir pouco. Escritores, alguns muito participativos, engajados,
vieram a público reclamar do atraso no edital – mas não questionaram essas
cláusulas aberrantes. Defesa da liberdade de expressão tem lado? Contrastou
com a adesão a meu dossiê sobre censura no Facebook, com 100 casos
registrados[5]. A propósito dessa prática grotesca, o controle de conteúdo
praticado por idiotas, resultando em punição a usuários que reproduziram
matérias em jornais e obras de arte livremente expostas em museus,
aguardamos instalação da comissão prevista no Marco Civil da Internet, para
pedir o devido enquadramento da rede social na legislação brasileira.
Mereceria figurar em outro debate, aquele sobre as tecnologias da
comunicação e sua dupla face, como instrumentos de acesso á informação e ao
mesmo tempo de controle.
Outro tema do qual me ocupei foi aquele das restrições brasileiras à
publicação de biografias[6]. Felizmente, após a desastrada intervenção dos
integrantes do grupo que as defendia, a questão parece liquidada.
Contudo, registros locais empalidecem diante dos acontecimentos em
âmbito planetário. Tive, a propósito, a paciência de ler Versos satânicos
de Salman Rushdie, marco inicial de um ciclo de violências, pela condenação
à morte do autor por blasfêmia em 1994 – editores e tradutores também
sofreram ameaças. Narrativa prolixa, teria alguma aclamação relacionada ao
prestígio da categoria "pós modernidade"; e, como sempre acontece, foi
projetada pela proibição – lembrando que Howl de Ginsberg teve 250.000
exemplares vendidos imediatamente após sua liberação. Versos satânicos de
fato contém blasfêmias, inclusive alcunhar o profeta Maomé de "Mahound",
ofensa grave. Contudo, Rushdie distribuiu tais ofensas em todas as
direções: deprecia também britânicos e indianos não-muçulmanos. Se
atingidos fossem tomar a mesma atitude das autoridades iranianas, o
escritor teria que buscar refúgio em outro planeta.
Quando ocorreu o recente atentado ao Charlie Hebdô, imediatamente
estampei um "Je suis Charlie" em minha página de Facebook. Um intelectual
muito qualificado – aliás, meu tradutor – comentou que sim, assassinatos
são inadmissíveis; mas não se deve ofender a religião dos outros; e eu
deveria levar em conta que são oprimidos. Outros se manifestaram contra e
também utilizaram as conjunções adversativas ou advérbios: mas, porém,
contudo, entretanto – só não vi o todavia. Comentei que esses grupos e
governos em regimes mais fechados são, na verdade opressores, mais que
oprimidos, pela rígida disciplina a que submetem súditos, com a supressão
dos valores iluministas. Principalmente, a idéia de que democracia não é
apenas a manifestação da vontade da maioria, porém o respeito á minoria, à
diferença. Ilustrei com imagens das estátuas gigantescas de Buda em Bamyan,
antes e depois do tratamento que receberam do Talibã[7]. Se o post fosse
mais recente, poderia ter ilustrado com a depredação de relíquias e sítios
arqueológicos assírios, deixados lá por Alexandre o Grande e por romanos,
partas, o califado persa, ocupantes mongóis, tártaros, turcos, para
acabarem destruídos pelo Estado Islâmico em pleno século 21. Vestígios
materiais de outros tempos e outras civilizações receberam o mesmo
tratamento que seus remanescentes humanos, como se viu pelo massacre dos
yazids, minoria religiosa curda aparentada ao zoroastrismo e gnosticismo,
que conseguiu resistir e conviver com outras doutrinas por dois milênios,
aproximadamente.
Meu propósito não é denunciar o que todo mundo sabe, porém, diante
desses acontecimentos – de tantos acontecimentos, diria – ensejar alguma
reflexão sobre o sentido ou ausência de sentido da história. Começo
lembrando que antigamente era o contrário. Para não serem exterminados na
Península Ibérica nos séculos 15 e 16, muitos judeus refugiaram-se no
Oriente Médio; retornaram à Palestina. Lá, desenvolveram centros de estudos
cabalísticos, alguns, ou talmúdicos. Outros migraram para a Holanda e
Inglaterra, para o ambiente mais plural, mais tolerante após a Reforma
protestante, e contribuíram para o desenvolvimento econômico daqueles
países.
Nas ocasiões em que estive em Roma, fiquei em um hotel na belíssima
Piazza Campo di Fiori. Diante da estátua de Giordano Bruno; do lugar onde
ele foi queimado em 1600. A propósito, a excelente historiadora Frances A.
Yates, em seu Giordano Bruno e a tradição hermética, comenta que, por volta
de 1600, havia cerca de 100 queimas de bruxas e hereges em Paris. Assistir
às execuções era entretenimento: famílias traziam as crianças, faziam
lanche enquanto assistiam ao espetáculo.
Vale a pena assistir ao filme Rainha Margot, de Patrice Chéreau,
encenador extraordinário. É sobre a Noite de São Bartolomeu de 1573, quando
católicos massacraram protestantes, mostrada como genocídio.
Recentemente, assisti a uma peça teatral que focalizou, entre outras
grandes mulheres, a cientista Hipácia de Alexandria, apedrejada e
esquartejada por volta de 400 d.C. Embora a destruição final da Biblioteca
de Alexandria só corresse mais tarde – segundo consta, houve três
incêndios, um com a chegada de Júlio César, outro cristão e o último pelo
califa Omar em 642 d.C – o episódio marcou o final de um ciclo. Aquele
durante o qual a metrópole egípcia foi uma capital não só comercial, mas
cultural, a partir de 304 a.C. sob Ptolomeu I Soter, um dos sucessores de
Alexandre, conquistador sanguinolento, mas que introduziu o "eukumenós",
"ecumenismo", a convivência de diferentes culturas em contraste com a
categoria grega "barbaroy", bárbaros, para designar estrangeiros, inclusive
por seu professor Aristóteles.
A biblioteca de Alexandria foi construída pelo primeiro Ptolomeu em
282 a.C. e ampliada por seus sucessores Ptolomeu II Filadelfo e Ptolomeu
III Evergetes (cf. Flower, 1999). Lá desenvolveram seus trabalhos o
geômetra Euclides, o médico Herófilo, o historiador Maneton, poetas como
Teócrito, o gramático Calímaco, os astrônomos Aristarco, Eratóstenes e
Ptolomeu, o físico Arquimedes. Em uma etapa subseqüente, filósofos como
Plotino e Filo, líderes religiosos como Valentino, além de vários dos Pais
da Igreja.
Portanto, a valorização do conhecimento resultou em um legado, uma
contribuição efetiva ao progresso humano. Alexandria foi uma curiosa
antecipação do melhor do iluminismo; sincronicamente, um lugar de enorme
liberdade ou liberalidade de costumes, inclusive com as práticas de
erotismo religioso nos cultos a Afrodite e Istar. Ou seja, uma das
realizações de tudo o que os fundamentalistas modernos abominam, desde
esses que atuam no Oriente Médio até os que se abrigam nos templos neo-
evangélicos aqui no Brasil. Ao mesmo tempo, uma sociedade rigidamente
estratificada, escravocrata, sob regime absolutista marcado por terríveis
intrigas palacianas. Foram déspotas esclarecidos, a exemplo de alguns
monarcas e dirigentes do século 18?
Um amigo meu chegou a comentar sua impressão de que partes do mundo
vivem, hoje em tempos diferentes. Algumas, não tão distantes – estão aí,
basta dobrar a esquina, como se vê pelo avanço de lideranças evangélicas
mais intolerantes, que prefeririam apagar alguns tópicos da nossa
Constituição. Ou, também no campo ocidental, os fundamentalistas nos
Estados Unidos, os militantes do Tea Party que se empenham em anular os
avanços nos direitos civis, assim como seus equivalentes europeus – aqueles
franceses, especialmente ameaçadores, dispostos a revogar o legado
iluminista.
Diante disso, de tais paradoxos, dessa inquietante diversidade, qual
modelo ou paradigma projetaríamos na história? Aquele proposto por William
Blake, de que "opostos movem o mundo"? Aquele pessimista, de Adorno e
Horkheimer, conforme o qual a racionalidade iluminista também seria o
fundamento do nazismo, de outros totalitarismos e modos de dominação?
Um amigo meu certa vez transmitiu sua impressão de que povos e
sociedades contemporâneas parecem viver em tempos diferentes. É como se
houvesse, eu diria, pseudomorfoses da diacronia na sincronia, invasões do
passado no presente. Ou então, talvez se possa constatar que há vários
tempos, simultâneos, coexistindo agora. Temas para debater, para tentar
aprofundar seu exame.
Lembro a definição de Octavio Paz, em Os Filhos do Barro, da "idade
moderna como uma idade da crítica, nascida da negação", e,
conseqüentemente, da crítica como fundamento da modernidade. Como resume em
Solo a Dos Voces, "Na Idade Média, a religião funda a sociedade. Porém,
desde que a burguesia fez a crítica do mundo sagrado, o fundamento da
sociedade é a crítica. O mundo do passado estava assentado em verdades
imutáveis, invulneráveis à crítica. Agora, o fundamento do mundo é a
crítica." O trecho pode conferir sentido ao "sejamos absolutamente
modernos" de Rimbaud: passaria a ser entendido como "sejamos absolutamente
críticos". Exerçamos a crítica. Contribuiremos, quem sabe, para mover a
história.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BAUDELAIRE, Charles. Charles Baudelaire, Poesia e Prosa, org. Ivo Barroso,
diversos tradutores. As flores do mal por Ivan Junqueira, Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1995;
BRETON, André, Manifestos do Surrealismo, tradução de Sérgio Pachá, Rio de
Janeiro: Nau, 2001;
BURROUGHS, William, Almoço nu, tradução de Maura Sá Rego Costa e Flávio
Moreira da Costa, São Paulo: Brasiliense, 1984;
FLOWER, Derek Adie, Biblioteca de Alexandria, São Paulo: Nova Alexandria,
2002;
MILES, Barry, Call me Burroughs – A Life, New York: Hachette, 2013;
PAZ, Octavio. Os Filhos do Barro, tradução de Olga Savary, Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1984;
SEAVER, Richard, A hora terna do crepúsculo, tradução de Cid Knipel, São
Paulo: Globo, 2013;
YATES, Frances A, Giordano Bruno e a Tradição Hermética, tradução de
Yolanda Steidel de Toledo, São Paulo: Cultrix, 1995;


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[1] Em https://claudiowiller.wordpress.com/2012/02/27/censura-a-dicionario/
e https://claudiowiller.wordpress.com/2012/02/28/as-palavras-proibidas/
[2] Em https://claudiowiller.wordpress.com/2012/09/11/monteiro-lobato-
censura-e-analfabetismo-funcional/
[3] Em https://claudiowiller.wordpress.com/2014/03/31/obscurantismo-
histeria-e-principalmente-analfabetismo-funcional/
[4] Em https://claudiowiller.wordpress.com/2012/09/17/caso-gravissimo-
censura-em-edital-da-funarte-e-biblioteca-nacional/
[5] Em https://claudiowiller.wordpress.com/2012/03/22/censura-no-facebook-
um-dossie/
[6] Em maio detalhe, entre outros lugares, em
https://www.academia.edu/8955476/Em_defesa_das_biografias
[7] Em https://claudiowiller.wordpress.com/2015/01/11/oprimidos-e-
opressores-ainda-a-proposito-do-que-aconteceu-em-paris-uma-suite-da-
postagem-precedente/
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