Liberdade e Justiça como Reconhecimento

July 17, 2017 | Autor: Marcelo Cattoni | Categoria: Legal Philosophy
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1 Liberdade e Justiça como Reconhecimento: Notas introdutórias sobre Sofrimento de Indeterminação, de Axel Honneth1 “We have this [concrete] freedom already in the form of feeling – in friendship and love, for example. Here, I am not one-sided, in myself; instead, I restrict myself gladly in relation myself to another, but this restriction I know myself as myself. In this determinacy one should not feel oneself determined; on the contrary, in considering the other as other, one first attains the feeling of being a self. Freedom thus lies neither in indeterminacy nor in determinacy; it is both at once. The will that restricts itself simply to a ‘this’ is the will of the obstinate person who supposes that he would not be free if he did not have precisely the will he has. But the will is not bound to anything restricted; it must go further, for the nature of willing is not this one-sidedness and bondage. To be free is to will something determinate, yet in this determinacy to be at home with itself and to revert again to the universal” (Hegel, The Philosophy of Right, §7, trad. Alan White)

David Gomes2 Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira3

I

O presente texto tem por objetivo apresentar os principais argumentos articulados por Axel Honneth em um momento importante na formulação de sua proposta de reatualização da Filosofia do Direito, de Hegel: trata-se do desenvolvimento dado a esse tema nas Spinoza-Lectures, ministradas por Honneth em Amsterdã, no verão de 1999, e publicado posteriormente, em 2001, com o título de Sofrimento de Indeterminação: Uma reatualização da Filosofia do Direito de Hegel (HONNETH, 2007).

Nesse texto, Honneth parte de um diagnóstico sobre a filosofia contemporânea: apesar do interesse que o pensamento de Hegel tem voltado a despertar tanto na tradição continental quanto na tradição analítica, esse interesse não tem repercutido igualmente no campo da filosofia política, com raras exceções. Dois motivos - ou melhor, duas objeções - seriam os principais responsáveis por essa ausência de Hegel. Uma primeira 1

O presente texto foi publicado inicialmente como capítulo da obra CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade e GOMES, David. Constitucionalismo e Dilemas da Justiça. Belo Horizonte: Ed. Initia Via, 2014, p. 66 a 85. 2 Bacharel, Mestre e Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Assistente A do Departamento de Direito da Universidade Federal de Lavras. 3 Bolsista em produtividade do CNPq (1D). Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Estágio Pós-Doutoral com Bolsa da CAPES na Università degli Studi di Roma III. Professor Associado 4 da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.

2 objeção dirige-se ao que seriam as consequências antidemocráticas, voluntárias ou não, que decorreriam do fato de Hegel situar as liberdades individuais no horizonte da autoridade ética do Estado. Uma segunda objeção, de ordem metodológica, refere-se ao lugar da lógica hegeliana na tarefa de compreensão das suas reflexões políticas. Nos termos dessa segunda objeção, somente seria possível compreender tais reflexões a partir dos encadeamentos da Lógica, o que se teria tornado impossível em um contexto pós-metafísico tendo-se em mente os pressupostos ontológicos do conceito hegeliano de espírito sem os quais a lógica não subsiste.

É frente a esse panorama que Honneth irá propor o que chama de uma reatualização sistemática da Filosofia do Direito de Hegel, mas uma reatualização traçada por um caminho indireto. Esse caminho indireto consiste exatamente em, ao buscar oferecer uma explicitação da intenção fundamental e da estrutura do texto, abrir mão tanto do conceito hegeliano de Estado quanto da Lógica hegeliana e seu correspondente conceito ontológico de espírito: “Nem o conceito de Estado de Hegel, nem seu conceito ontológico de espírito me parecem hoje passíveis de serem de algum modo reabilitados. Por essa razão, tenho que me contentar com a forma indireta de reatualização de sua Filosofia do direito. Por essa razão, no presente ensaio gostaria de propor um esboço passo a passo de como a intenção fundamental e a estrutura do texto no seu todo devem ser compreendidas, sem com isso precisar das instruções metódicas da ‘Lógica’ nem da concepção basilar do Estado” (...). (HONNETH, 2007, p. 50-51) Honneth tem consciência dos riscos envolvidos nessa sua proposta, isto é, o perigo de se acabar perdendo de vista o teor próprio da obra hegeliana. Para tentar evitar esse efeito não desejado, seu primeiro esforço é no sentido de resgatar o que para ele seriam os dois elementos teóricos sem os quais não seria possível proceder a uma justa e adequada reatualização: “[T]rata-se, num caso, das ricas intuições que Hegel ligou ao seu conceito de ‘espírito objetivo’, e, no outro caso, daquelas múltiplas razões que o levaram a adotar o conceito de ‘eticidade’”. (HONNETH, 2007, p. 51)

3 Quanto ao primeiro, (...) “sob uma desconsideração de sua vinculação com o conjunto do sistema hegeliano, me parece conter a tese de que toda realidade social possui uma estrutura racional, diante da qual se devem evitar conceitos falsos ou insuficientes que levem a consequências negativas no interior da própria vida social, uma vez que estas encontram aí uma aplicação prática; em suma, Hegel quer afirmar com sua representação da sociedade como ‘espírito objetivo’ que a violação contra argumentos racionais, com os quais nossas práticas sociais sempre se encontraram entrelaçadas num determinado tempo, causa danos e lesões à realidade social.” (HONNETH, 2007, p. 51-52)

Quanto ao segundo, (...) “me parece ao contrário conter a tese de que na realidade social, ao menos na modernidade, encontram-se dispostas esferas de ação nas quais inclinações e normas morais, interesses e valores já se misturaram anteriormente em formas de interações institucionalizadas; desse modo, Hegel pode afirmar de forma consequente que aquelas próprias esferas de ação receberam uma marca normativa no conceito de ‘eticidade’, em vez de se ter buscado isso segundo meios conceituais ligados a uma orientação normativa do sujeito na forma de conceitos morais abstratos”. (HONNETH, 2007, p. 52)

Feito esse conjunto de ressalvas fundamentais, Honneth pode então apresentar com mais clareza quais são suas pretensões e quais são os passos que devem ser trilhados para concretizá-las. Em primeiro lugar, a questão se coloca como sendo a de conceber a filosofia hegeliana do direito como a formulação de uma teoria da justiça: “Em particular, gostaria de proceder na minha tentativa de reatualização, de tal modo a reinterpretar primeiramente a intenção fundamental da filosofia do direito hegeliana e mostrar claramente a utilidade desse texto sob as premissas teóricas da discussão do presente na filosofia política; tratar-se-á acima de tudo de um esclarecimento atualizador do pensamento que Hegel exprime com sua formulação dificilmente compreendida de que a ‘ideia’ da ‘vontade livre universal’ determina o âmbito total daquilo que devemos chamar de ‘direito’; tentarei interpretar essa determinação como o núcleo de uma teoria da justiça que visa à garantia universal das condições

4 intersubjetivas de auto-realização individual” (...). (HONNETH, 2007, p. 52) Em segundo lugar, a questão passa a ser a de tornar claro o modo como Hegel relaciona internamente suas reflexões a um diagnóstico de época acerca de patologias sociais, sendo possível que se fale tanto de um “sofrimento de indeterminação” quanto de uma função terapêutica embutida na filosofia hegeliana: “Hegel liga de um modo imanente o projeto de sua teoria da justiça com um diagnóstico da patologia social; pois, como o núcleo propriamente original da Filosofia do direito, entendo a proposta de conceber ambos os conceitos de ‘direito abstrato’ e de ‘moralidade’ como duas determinações insuficientes da liberdade individual que no mundo da vida se exprimem em um ‘sofrimento de indeterminação’; com isso, também terei de esclarecer nesse contexto em que medida Hegel atribui ao projeto de sua teoria da justiça ao mesmo tempo o significado terapêutico de uma emancipação dos fenômenos de sofrimento” (...). (HONNETH, 2007, p. 53) Finalmente, em terceiro lugar, emerge a questão, por um lado, de como compreender adequadamente o que Hegel denominava “eticidade” e suas implicações para a realização moderna das liberdades individuais e, por outro, de quais seriam os limites dessa concepção hegeliana: “No último passo, esclarecerei finalmente o conceito hegeliano de ‘eticidade’, no qual apresento as condições complexas que aquelas esferas sociais, de acordo com sua convicção, devem preencher na modernidade, possibilitando assim a realização da liberdade individual; aqui devem tornar-se claros também os limites da abordagem hegeliana, na qual noto uma representação muito institucionalista das condições de liberdade individual” (...). (HONNETH, 2007, p. 53) São essas pretensões de Honneth e esses passos a elas correspondentes que iluminam sua leitura de Hegel e orientam a estrutura que essa leitura assume ao longo das três partes em que se divide seu livro. São os traços fundamentais dessas pretensões e desses passos que abaixo são trabalhados.

II

5 A primeira pretensão e o primeiro passo consistem, portanto, em atualizar, nos termos do núcleo de uma teoria da justiça, a concepção hegeliana segundo a qual a “ideia da vontade livre” determina o âmbito total do direito. Isso exige uma série de esclarecimentos.

Para Hegel, o princípio fundamental de sua reflexão filosófica sobre o direito reside na ideia da “vontade livre universal”. Essa formulação, não compreensível senão com um grau elevado de dificuldade, Honneth interpretará como sendo a assertiva segundo a qual a Filosofia do Direito deveria ser capaz de apresentar-se como uma teoria da justiça na medida em que apresentasse as condições modernas capazes de possibilitar a “existência” da “vontade livre”: “Vimos até agora que Hegel pretendeu desenvolver os princípios de uma ordem social justa de tal forma que pudesse apresentar a ‘existência da vontade livre’; (...) sob o termo existência (Dasein) deve-se entender o conjunto dos pressupostos sociais ou institucionais externos que a ‘vontade livre’ necessita para sua realização. Para a explicação disso que Hegel quis compreender precisamente como o princípio da ‘vontade livre’, essa determinação provisória das tarefas pode ser enriquecida ainda com uma parte essencial: tais condições sociais ou institucionais devem ser concebidas estritamente como o conjunto de uma ordem social justa que permite a cada sujeito individual participar em relações comunicativas que podem ser experienciadas como expressão da própria liberdade; pois somente na medida em que os sujeitos são capazes de participar desse tipo de relações sociais, eles podem, por conseguinte, realizar sem coerção sua liberdade no mundo exterior”. (HONNETH, 2007, p. 63) Assim, a apresentação das condições sociais e institucionais – das condições externas, portanto – adequadas para a vivência da liberdade sem coerção externa constituiria o cerne da proposta hegeliana. Tal definição permitiria inclusive o entendimento adequado do título de sua obra4. É conhecida a estranheza que costuma causar o fato de Hegel haver tratado, sob o nome de Filosofia do Direito, de esferas como o direito abstrato, a moral e a eticidade – além da história do mundo. Para Honneth, seguindo Ludwieg Siep, cada uma dessas esferas seria uma condição 4

Essa releitura da concepção fundamental e da estrutura da Filosofia do Direito, de Hegel, foi também retomada por Honneth no texto "The realm of actualized freedom: Hegel's notion of a 'Philosopht of Right'” (Honneth, 2012: 2030). Cf. também Honneth, Axel. “Justicia y liberdad comunicativa. Reflexiones en conexión con Hegel.” In Honneth, 2009b: 225-247.

6 necessária da realização da liberdade, assim como, por isso mesmo, teria uma pretensão justificada no arranjo institucional das sociedades modernas. Logo, o termo “direito” estaria referido ao direito que essas esferas possuem cada qual a seu lugar legítimo no quadro geral da existência da liberdade: “Essa proposta conceitual de Hegel deve-se a uma transposição do conceito moderno de ‘direito’, ou seja, da representação normativa mediante a qual competem a um sujeito pretensões válidas universalmente e sancionadas pelo Estado, transposição essa que passa da esfera do indivíduo às relações e estrutura sociais: de acordo com o uso que Hegel, em sua Filosofia do direito, faz primeiramente do conceito de direito, não devem caber aos indivíduos os direitos universais vigentes, mas àquelas formas de existência sociais que se deixam mostrar como bens sociais básicos no interesse da realização da ‘vontade livre’. Certamente, que o uso esboçado do conceito tornar-se-á mais claro se respondermos corretamente ainda à questão de como as diferentes esferas devem possuir, por sua vez, uma pretensão justificada; nesse uso Hegel parece insistir no fato de que tais formas, na medida de sua insubstituibilidade quanto à possibilitação social de autodeterminação individual, têm o direito de receber um lugar legítimo na ordem institucional de sociedades modernas”. (HONNETH, 2007, p. 66) Todavia, se com isso se esclarece o que se pretende dizer com “existência” da “vontade livre”, bem como com o enigmático título Filosofia do Direito, continua carente de sentido a própria definição da “vontade livre”. Esta pode ser definida como a vivência individual da liberdade, de modo pleno, sem coerção exterior, de maneira que seja a um só tempo a própria expressão universal da liberdade.

Essa definição, contudo, requer cautela, posto que guarda proximidade com acepções modernas de autonomia exatamente contra as quais Hegel irá insurgir-se. Em sua discussão categorial sobre o conceito de “vontade livre”, Hegel, segundo Honneth (2007, p.57-58), aborda a noção moderna de autonomia individual ou autodeterminação, apontando para duas maneiras de se a conceber: por um lado, a autonomia ou autodeterminação individual significaria: (...) “a capacidade dos homens de, por força de uma determinação da vontade, se distanciarem de todas aquelas

7 ‘carências, desejos e impulsos’ que podem ser experienciados como limitação da independência do Eu; Hegel está convencido de que com essa determinação foi compreendido um componente elementar da liberdade individual, tal como se mostra na capacidade humana do suicídio, mas como resultado ela conduz a uma perda da ação, porque o agir está ligado à posição de fins limitados (§ 5).” (HONNETH, 2007, p. 57-58) Ou seja, uma “interpretação, somente negativa, da vontade livre” (HONNETH, 2007, p. 58).

Por outro lado, a autonomia individual ou autodeterminação significaria: (...) “a capacidade de escolha ou de decisão refletida entre ‘conteúdos dados’; sob essa rubrica, e é assim que devemos entender o § 6 da Filosofia do Direito, também se incluem os princípios da filosofia moral de Kant e Fichte, porque eles não podem pensar a liberdade da vontade individual senão de acordo com o padrão de uma deliberação moral sobre os impulsos da ação ou inclinações indisponíveis” (HONNETH, 2007, p. 58) ou “modelo ‘optativo’ da ‘vontade livre’” (HONNETH, 2007, p.58). A essas duas maneiras de se conceber a autonomia individual ou autodeterminação corresponderiam as duas esferas aptas a prover condições igualmente incompletas de realização da liberdade individual: respectivamente, o direito abstrato e a moralidade: “Hegel pode (...) descobrir em ambos os modelos de liberdade do ‘direito abstrato’ e da ‘moralidade’ o traço característico que, no primeiro caso, se exprime numa determinação meramente ‘negativa’, e no segundo caso, ao contrário, numa determinação ‘optativa’ da ‘vontade livre’” (...). (HONNETH, 2007, p. 72) 5 5

Cabe comparar com Honneth, 2012, p. 26, sobre o direito abstrato: “The prerequisite of self-determination that he calls ‘pure indeterminacy’ (§ 5) is in his [Hegel] eyes far too general, almost anthropological, to deserve being included in the modern system of various aspects of freedom. Instead, what ‘abstract right’ refers to and what it must bring to objective validity is the second form of freedom: ‘arbitrariness’ or ‘caprice’” (grifos nossos). Como Honneth já havia dito páginas antes (2012, p.21-22), a segunda forma de liberdade é a do § 6, das LinhasFundamnetais da Filosofia do Direito: “The second model of the freedom of the will addresses this deficit of the first model [a do § 5] by grasping the exercise of individual freedom as a rational decision for a certain ‘content’, which provides aim to our actions (§ 6). For Hegel, who at this point has Kant in mind (§ 15), this idea amounts to ‘arbitry freedom’ or ‘caprice’ (Willkürfreiheit)”. E sobre a moralidade, cabe comparer com Honneth, 2012, p. 27-28: “If we relate this form of self-determination back to the differentiations Hegel makes in the Introduction, then it represents a new, previously unaccounted for phenomenon. It is as if Hegel once more subdivides the stage of ‘determinate freedom’ in order to get sight of Kantian notion of autonomy, alongside arbitrariness, as central, indispensable form of freedom in modernity.” (grifos nossos). Para a leitura de Hegel desenvolvida em Honneth, 2012, cf. também

8

Esse traço de incompletude justifica-se pelo tratamento, e justifica o tratamento, meramente individualista que ambas receberão de Hegel (HONNETH, 2007, p. 70). Ao contrário, a esfera da eticidade será tratada como lugar de relações comunicativamente estabelecidas. Não se trata aqui de uma ênfase na linguagem e no discurso, mas do fato de que as relações da esfera da eticidade assentam-se sobre o reconhecimento recíproco entre os sujeitos, ou seja, não se podem compreender senão sob o pressuposto da comunicação intersubjetiva. Apenas nessa esfera da eticidade preenchida por relações comunicativas de reconhecimento recíproco seria possível falar-se de condições completas de realização da liberdade, de realização adequada da “vontade livre”.

Entretanto, se as duas acepções modernas da autonomia que correspondem ao direito abstrato e à moral são incompletas e insuficientes, nem por isso elas são dispensáveis: para Hegel, elas constituem pressupostos necessários sem os quais a plena realização da liberdade, da “vontade livre” na esfera da eticidade, não seria possível (HONNETH, 2007, p. 71) - afinal, conforme dito acima, também essas duas esferas devem gozar de seu direito específico de compor o quadro institucional da existência da liberdade nas sociedades modernas.

Por conseguinte, Hegel precisará encontrar, na perspectiva do que Honneth irá chamar de uma “teoria ética do direito e da moral” (HONNETH, 2007, p. 85), os aspectos no direito abstrato e na moral que contribuem para a vivência da liberdade nas relações comunicativas que compõem a eticidade, ao mesmo tempo em que precisará também apontar quais os problemas derivados de uma limitação da liberdade tão só aos seus aspectos jurídicos ou morais.

Sobre o direito abstrato, Honneth, leitor de Hegel, dirá: “[P]ara poder contemplar sua própria liberdade da vontade na realidade exterior, cada sujeito precisa da possibilidade de acesso permanente às coisas desejadas (§ 45); mas a competência dessa pretensão autêntica só lhe cabe sob a condição de que todos os sujeitos possam se conceder reciprocamente a mesma pretensão; nessa medida, o princípio Neuhouser, Frederick. Foundations of Hegel’s Social Theory: Actualizing Freedom. Cambridge, Mass.: Harvard University, 2000.

9 segundo o qual o direito formal é fundamentado como uma esfera de pretensões mutuamente autênticas consiste no mandamento: ‘seja uma pessoa e respeite o outro como pessoa’, no qual pessoa aqui significa o homem como portador de pretensões de direito (§ 36). (...) com a aceitação do direito de propriedade e da liberdade de contrato abriu-se para os indivíduos a chance de considerar uma multiplicidade de possíveis ações vinculadas sem ter de comprometer a validade do direito com alguma ação em particular”. (HONNETH, 2007, p. 87) (...) “[A] aplicação justa e equitativa das competências jurídicas pressupõe em geral que se tomou consciência da ligação entre direitos subjetivos e as chances individuais; o indivíduo deve aprender em certa medida que o caráter negativo do direito formal contém ao mesmo tempo a grande vantagem de poder nesse caso prescindir de todas as relações concretas e papéis sociais, para com isso insistir na própria indeterminação e abertura. Entretanto, o valor do direito formal para Hegel, para formulá-lo paradoxalmente, reside na ideia simples segundo a qual a pessoa é portadora de direitos; pois com isso é dada a chance aos indivíduos de, no interior da esfera ética, manterem aberta uma possibilidade de se retirarem de toda a eticidade. Assim se pode esboçar em que consistem a função e os limites do direito abstrato em seu projeto de uma teoria da justiça: sua função consiste em manter no interior da eticidade uma consciência da individualização legítima” (...). (HONNETH, 2007, p. 90) Por sua vez, quanto à moral, nela (...) “está contida aquela atividade de avaliação reflexiva que cada sujeito deve ser capaz de empreender em face de si mesmo caso queira conceber suas atividades e interações como expressão da liberdade; desse modo, pertence às condições de auto-realização individual o direito - entendido aqui num sentido mais amplo - de tornar o consentimento para com as práticas sociais dependente do resultado obtido por meio da avaliação feita à luz de argumentos racionais”. (HONNETH, 2007, p. 93) Quanto aos problemas derivados da liberdade juridicamente concebida, “Hegel não havia somente levantado contra este modelo a objeção de que com isso já se pretende afirmar conceitualmente a possibilidade de utilizar a liberdade do outro como um simples meio para a própria liberdade; não, sua objeção central dizia que, segundo uma tal concepção, é completamente irrelevante

10 para o conceito de liberdade individual aquilo que sempre se entendia como meta de uma ação livre”. (HONNETH, 2007, p. 92) Finalmente, quanto à avaliação também negativa da liberdade concebida apenas do ponto de vista moral, Honneth afirma: “Das diversas formulações que resumiram a objeção de Hegel contra uma tal concepção de liberdade individual, apenas uma me parece realmente apropriada para determinar o ponto digno de ser considerado, justamente por ser o mais importante; tratase da objeção contra a cegueira em face do contexto” (...). (HONNETH, 2007, p. 94) (...) “Nesse sentido, Hegel admite sob tais condições que adotar o ponto de vista moral significa tender a perder-se num profundo apelo à própria consciência, a partir do qual, sem as normas e obrigações previamente aceitas, não há como escapar; em certa medida, a reflexão moral segue vazia, porque não pode perceber que a aplicabilidade do princípio de universalização se deve à confiança na validade racional de uma série de prerrogativas normativas; e nesses casos a fronteira das patologias sociais é transgredida logo que ocorre a autonomização do ponto de vista moral, levando à extinção de todos os preceitos práticos e, com isso, à perda da ação”. (HONNETH, 2007, p. 97)

Frente a essas objeções formuladas, uma síntese dos caracteres comuns apontados contra o direito abstrato e a moral poderia ser elaborada nestes termos: “Hegel procede negativamente em sua argumentação, no sentido de que tenta circunscrever o ‘lugar’ adequado, o ‘direito’ específico de ambos os modelos incompletos de liberdade, mediante a demonstração dos danos sociais a que levaria o emprego totalizante de cada um deles: com a absolutização de uma das duas representações da liberdade individual, seja em sua versão como pretensão de direito, seja em sua comparação com a autonomia moral - assim afirma a linha de raciocínio decisiva -, ocorrem rejeições patológicas na própria realidade social que são um indicador preciso e ‘empírico’ de que os limites do âmbito de validade legítimo foram transgredidos”. (HONNETH, 2007, p. 73) É porque toda realidade social se veio historicamente a configurar como dotada de uma estrutura racional (HONNETH, 2007, p. 83), capaz de reagir frente a conceitos

11 falsos ou insuficientes, que a insistência na unilateralidade do direito abstrato ou da moral transgride os limites legítimos dos respectivos âmbitos de validade e produzem fenômenos patológicos como os que estavam presentes no diagnóstico que Hegel fazia de sua época. Esses fenômenos, como o individualismo romântico e o refúgio na tradição de uma religião acrítica (HONNETH, 2007, p. 97-98), trabalhados por ele, sobretudo, no âmbito da esfera moral (HONNETH, 2007, p. 90-91), (...) “podem valer como indicadores de uma transgressão das esferas legítimas do ‘direito abstrato’ e da ‘moralidade’; e os conceitos com os quais ele procura caracterizar tais patologias sociais são expressões do diagnóstico da época, tais como ‘solidão’ (§ 136), ‘vacuidade’ (parágrafo 141) ou ‘abatimento’ (§ 149), que podem ser colocados conjuntamente sob o denominador comum de um ‘sofrimento de indeterminação’”. (HONNETH, 2007, p. 74) Esclarece-se com essa passagem não mais o título da clássica obra de Hegel, mas o próprio título do livro de Honneth dedicado a uma tentativa de leitura reatualizante daquela obra, com o que se torna compreensível também o interesse central de Honneth: é no vínculo entre diagnóstico de época e teoria da justiça, vínculo esse que se expressa de modo privilegiado na expressão “sofrimento de indeterminação”, que ele apoia sua própria interpretação de Hegel e, por consequência, sua própria concepção de como deve ser elaborada uma teoria moderna da justiça. Como se percebe, neste ponto já se está a tratar da segunda daquelas pretensões levantadas por Honneth, acima citadas. Para contemplá-la adequadamente, porém, falta mostrar como, em face do diagnóstico das patologias sociais de sua época, Hegel atribui a suas reflexões um sentido terapêutico. Este pode ser aferido na maneira como é trabalhada a transição à eticidade: é como libertação, em um duplo sentido, que essa transição se apresenta, libertação tanto como desvinculação das esferas anteriores e dos modos incompletos e insuficientes de vivência da liberdade, quanto como chegada à esfera das relações no interior dos quais é possível experienciar a completa liberdade: “Nesse duplo significado da expressão ‘libertação’ - a qual indica ao mesmo tempo tanto negativamente o desvincular de duas perspectivas que restringem a liberdade e são altamente unilaterais, como também positivamente o voltar-se para a liberdade real (eticidade) - deve ser reconhecida pela primeira vez em todo o volume a função terapêutica que Hegel procurou

12 atribuir à sua doutrina da eticidade”. (HONNETH, 2007, p. 99100) A última das pretensões declaradas por Honneth com as investigações que constituem seu Sofrimento de indeterminação deverá dar conta de oferecer um esclarecimento atualizante acerca dessa esfera da eticidade, assim como precisará mostrar os limites da abordagem que Hegel deu a ela. Desde o início, Hegel procedera a partir de uma teoria da ação, estando menos interessado na atividade subjetiva e mais no tipo de ação ligado à restrição da liberdade ao direito abstrato ou à moral (HONNETH, 2007, p. 85). Também no caso da eticidade a discussão girará em torno do tipo de ação característico dessa esfera: são ações intersubjetivas e que devem ser capazes de expressar determinadas formas de reconhecimento recíproco (HONNETH, 2007, p. 106-109). Somente assim a eticidade poderá fornecer aos sujeitos a possibilidade de completa realização prática da liberdade individual.

Essas ações intersubjetivas constituem a eticidade por meio de uma ordenação gradual de diferentes formas de reconhecimento que se dão nas três esferas em que a eticidade é subdividida, a saber: a família, a sociedade civil e o Estado. O interior de cada uma delas é perpassado por mandamentos morais que assumem a qualidade de normas necessárias: “Traduzido na terminologia da teoria da ação que Hegel tem em vista, podemos falar aqui de uma forma de ação social cuja característica não pode ser descrita sem a nomeação de certas normas morais; ou, formulado diferentemente, a execução de tais ações só é possível sob a condição de que determinadas normas sejam experenciadas como obrigatórias”. (HONNETH, 2007, p. 111) Aqui pode ser situada uma diferença fundamental em relação a Kant. Hegel retoma a relevância do dever, mas não o situa de modo abstrato na construção de um imperativo categórico. No interior de cada esfera da eticidade, já se encontram presentes deveres, mandamentos morais, que vieram historicamente a ser constitutivos do padrão de ação correspondente. É só quando se respeita a dimensão normativa interna desse padrão de ação que esta se realiza e que, portanto, pode-se falar de reconhecimento recíproco. Logo, a eticidade como um todo precisa ser compreendida como um conjunto

13 de ações que possuem uma normatividade interna, uma normatividade necessária devido ao fato de que, sem o respeito a ela, não se pode mais dizer que tal ou qual ação assegure o reconhecimento intersubjetivo e assim a vivência da liberdade e a autorrealização individual. Se uma das críticas levantadas contra a acepção de liberdade correspondente à moral estava em que a autonomia era vista como capacidade optativa de escolher entre fins que permaneciam externos à vontade, agora esses fins são trazidos para dentro do padrão da ação e sobre eles não se pode mais dispor livremente senão sob a pena de que a própria ação perca seu traço característico: “Nesse sentido, um dever não representa para Hegel aquele ponto de vista isolado que Kant quis antepor à escolha entre alternativas de ação enquanto critério de decisão, senão o elemento interno, ‘necessário’, de uma ação que pode ser a expressão do reconhecimento; e a elaboração de uma ‘doutrina ética do dever’ significa correspondentemente fornecer um panorama sistemático sobre as formas de ação intersubjetiva que podem expressar reconhecimento graças à sua qualidade moral”. (HONNETH, 2007, p. 112) Para completar a caracterização das ações que compõem a eticidade e sua subdivisão em três esferas, falta um único aspecto. Na medida em que os deveres internos às ações de cada uma dessas esferas precisam ser compreendidos como mandamentos morais que vieram historicamente a se assentar e que, por isso, encontram-se arraigados em práticas sociais habituais, a externalidade da moral diante dos dados sobre as quais exerce seu julgamento também deixa de fazer sentido. Pois as próprias inclinações humanas não são um dado cru da natureza, mas se formam no interior das esferas que Hegel tem em mente com o conceito de eticidade. Para tanto, cada uma dessas esferas deve carregar o potencial formativo - no sentido de Bildung para promoverem a cada nova geração disposições que motivem os indivíduos a se engendrarem nas correspondentes práticas: “[P]orque nos padrões de ação correspondentes sempre estão fundidas inclinações e deveres, carências e mandamentos, de modo a poderem engendrar práticas morais plenas de conteúdo, devem eles possuir então a capacidade de poder gerar sempre novamente uma tal fusão para com isso estarem em condição de se auto-reproduzirem; pelo que foi dito até o momento, isso só pode significar que eles são capazes de iniciar, por sua vez, processos de formação por meio dos quais são produzidos

14 aqueles hábitos práticos que residem constitutivamente na base dos mesmo processos. Deve-se dizer, por conseguinte, que Hegel ainda tem de prover as esferas de ação éticas com a capacidade de desenvolverem de modo renovado em cada geração as disposições comportamentais que motivam os indivíduos a participarem nas práticas correspondentes” (...). (HONNETH, 2007, p. 114) Assim se completa a complexa articulação hegeliana da real liberdade, da “vontade livre” em sua existência plena no campo da eticidade, uma articulação que ocorre entre autorrealização, reconhecimento e formação.

Uma vez esclarecida conceitualmente a esfera da eticidade, cabe a Honneth oferecer as críticas frente à leitura que Hegel ele mesmo faz dela. Essas críticas dizem respeito, sobretudo, ao que seria um caráter excessivamente institucionalista da abordagem. Hegel teria deixado de analisar a realidade social por meio dos princípios internos específicos a cada uma das formas determinadas de reconhecimento, caminhando, ao contrário, na direção de uma afirmação apenas daquelas instituições que, conquanto adequadas a ações intersubjetivas aptas a propiciar reconhecimento, gozavam do respaldo do Estado por meio de seu direito positivo. Assim, por exemplo, nas ações em que o reconhecimento vem fincado no princípio do amor, Hegel restringiu-se à família patriarcal burguesa institucionalizada à sua época, não levando a cabo os importantes comentários que já havia feito na introdução de seu livro acerca da amizade (HONNETH, 2007, p. 124-134).

Diante do que entende como uma superinstitucionalização na abordagem hegeliana, Honneth conclui, no quadro das análises que Hegel faz da sociedade civil, que essa superinstitucionalização representa um obstáculo a seu - dele, Honneth próprio empreendimento atualizador (HONNETH, 2007, p. 140-142), pois sua proposta de uma “reconstrução normativa” partia exatamente da possibilidade de resgatar internamente as normas já presentes no interior das esferas da eticidade, para então erguer uma teoria da justiça nas sociedades modernas, não atrelada a tal ou qual configuração institucional histórica, mas inclusive capaz de fornecer um parâmetro de

15 crítica a configurações institucionais incapazes de assegurar aos indivíduos a autorrealização livre em relações intersubjetivas de reconhecimento recíproco.6

III

Em que pese o tom crítico, Honneth não deixou de acreditar que a Filosofia do Direito de Hegel continha elementos fundamentais para a possibilidade de uma teoria da justiça adequada à complexidade social moderna. Essa teoria da justiça viria a se colocar como alternativa ao modo como o tema vem sendo trabalhado na linha das reflexões de John Rawls sobre a justiça como equanimidade (1971). Quanto à relação entre Rawls e Hegel, Honneth afirma: “[P]ara formular de maneira um pouco mais abrangente a intenção de Hegel descrita acima, pode-se dizer também que ele considerou as relações comunicativas como um ‘bem básico’ (basic good) que tem de se colocar ao interesse de todos os homem em vistas à realização de sua liberdade; entretanto, devido a uma tal formulação, é preciso acrescentar que Hegel, diferentemente de Rawls, não supõe que esse bem básico seja repartido com justiça por meio de alguns princípios; parece que ele visa, na verdade, chegar à ideia de que a ‘justiça’ das sociedades modernas depende da capacidade destas de possibilitar a todos os sujeitos igual participação no ‘bem básico’ de tais relações comunicativas”. (HONNETH, 2007, p. 63. Os destaques em negrito são meus) (...) “[N]aturalmente a utilização da expressão econômica ‘bem’ não pode derivar para a idéia de que, para Hegel, estariam em jogo na definição de justiça regras de distribuição no sentido rawlsiano; antes, ele parece partir da hipótese de que as relações comunicativas incidem na classe daqueles bens que podem ser produzidos e conservados somente por meio de práticas comuns, de modo que podemos falar, no máximo, da preparação geral das condições de tais práticas. Estou mais do que convencido de que, por meio de uma reelaboração ampliada dessa distinção entre Hegel e Rawls, chegamos exatamente ao ponto no qual se poderia conhecer, em traços largos, a concepção de justiça da Filosofia do direito”. (HONNETH, 2007, p. 79) Se Rawls pensou a justiça como distribuição, como o estabelecimento procedimentalizado de princípios de justiça a serem aplicados na distribuição de bens 6

Cf. também HONNETH, 2009b, p. 225-247; 2012, p. 19-31; 2013, p.287-298, e 2014.

16 sociais básicos (RAWLS, 1993), com Hegel seria possível pensar uma justiça não mais como distribuição, mas como reconhecimento (HONNETH, 2009b, p. 225-247), e o problema seria, assim, não o de bens a serem distribuídos, mas o de relações adequadas de reconhecimento recíproco nas quais os sujeitos pudessem participar e encontrar a possibilidade da autorrealização. Esse é o caminho que será seguido por Honneth nos anos posteriores a Sofrimento de Indeterminação7.

Referências bibliográficas

HEGEL, G.W.F. The Philosophy of Right. Trad. Alan White. Newburyport, 2002. HONNETH, Axel. Redistribución como reconocimiento: respuesta a Nancy Fraser. In: FRASER, Nancy; HONNETH, Axel. ¿Redistribución o Reconocimiento? Madrid y A Coruña: Ediciones Morata y Paideia, 2006, p. 89-148. HONNETH, Axel. Sofrimento de Indeterminação. Uma Reatualização da Filosofia do Direito de Hegel. Trad. Denílson Luiz Werle e Rúrion Soares. São Paulo: Esfera Pública, 2007. HONNETH, Axel. A textura da justiça. Sobre os limites do procedimentalismo contemporâneo. Trad. Emil A. Sobottka e Joana Cavedon Ripoll. Civitas, v. 9, n. 3, p. 345-368, set./ dez. 2009a. HONNETH, Axel. Crítica del agravio moral: Patologías de la sociedad contemporanea. Trad. Peter Storandt Diller. Buenos Aires: Fondo de Cultura Economica; Universidad Autonoma Metropolitana, 2009b. T , xel;

R

, Joel. utonomia, ulnerabilidade, Reconhecimento e

Justiça. Cadernos de filosofia alemã, São Paulo, n. XVII, jan.-jun. 2011. HONNETH, Axel. The I in We: Studies in the Theory of Recognition. Trad. Joseph Ganahl. Cambridge: Polity, 2012. HONNETH, Axel. Un monde de déchirements: Theorie critique, psychanalyse, sociologie. Trad. Pierre Rusch e Olivier Voirol. Paris: La découverte, 2013. HONNETH, Axel. El derecho de la libertad: Esbozo de una eticidad democratica. Trad. Graciela Calderón. Buenos Aires: Klatz, 2014.

7

Cf. por exemplo, HONNETH, 2006; 2009a; 2009b, 2011, 2012, 2013, 2014.

17 NEUHOUSER, Frederick. Foundations of Hegel’s Social Theory: Actualizing Freedom. Cambridge, Mass.: Harvard University, 2000. RAWLS, John. A Theory of Justice. Cambridge, Mass.: Harvard University, 1971. RAWLS, John. Political Liberalism. New York: Columbia University, 1993.

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