Liberdade e motivações (Parte 3)

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Liberdade e motivações (Parte 3)


Atahualpa Fernandez(




Se considero, por exemplo, minha filha como uma
pessoa "corrupta" e "caída", incapaz de ter bons desejos e
de comportar-se de acordo com estes, seguramente serei um
pai aberrantemente desconfiado, ferinamente vigilante e
desnaturadamente repressor; ao contrário, se parto da
premissa de que minha filha é capaz de eleger seus desejos,
de aspirar por si mesma ao bem, de se automodelar e de
comportar-se segundo esta aspiração, seguramente serei um
pai muito mais confiante, tolerante e infinitamente menos
vigilante.




Pois bem, dado que o sentido comum aceitou desde sempre a mundana
realidade dos vilões e dos corruptos, do abismo profundo proposto entre a
moralidade e a natureza[1], e é sentir moral comum também a necessidade de
enfrentá-los como tal, esta mudança de postura antropológica acaba por
afetar profundamente a forma de elaborar, interpretar, justificar e aplicar
as normas de conduta que regulam, em função do indivíduo, o intercâmbio
social recíproco.
Com efeito, se tomamos como evidente a circunstância de que o
conjunto de fatos que podemos aprender acerca do ser humano pode afetar
profundamente nossa tendência a considerá-lo e a tratá-lo, parece que há
modos mais seguros para tratar o problema do nosso comportamento ético-
jurídico ou para legitimar o direito a partir da determinação do homem, em
especial se consideramos que as ações humanas são movidas por uma grande
coleção de mecanismos cognitivos e comportamentais específicos, cada um dos
quais é produto da evolução por seleção natural.
Se considero, por exemplo, minha filha como uma pessoa "corrupta" e
"caída", incapaz de ter bons desejos e de comportar-se de acordo com estes,
seguramente serei um pai aberrantemente desconfiado, ferinamente vigilante
e desnaturadamente repressor (e com este caráter desenharei as micronormas
que regerão este tipo de relação familiar); ao contrário, se parto da
premissa de que minha filha é capaz de eleger seus desejos, de aspirar por
si mesma ao bem, de se automodelar e de comportar-se segundo esta
aspiração, seguramente serei um pai muito mais confiante, tolerante e
infinitamente menos vigilante (e as micronormas que regerão essa relação
terão um caráter de todo distinto das anteriores).
Quando passamos de fatos específicos de indivíduos a generalizações
acerca de grupos de indivíduos, a assunção de uma das premissas acima
referidas passa a fazer uma gigantesca diferença à hora de desenhar o
conjunto normativo que regulará – satisfazendo nossa inata capacidade e
necessidade de predizer, manipular e controlar o comportamento dos demais –
as relações jurídicas (nas quais subjazem os vínculos sociais relacionais)
entabuladas pelo ser humano[2].
O que implica que o melhor caminho para explicar, entender e aplicar o
direito parece ser o da compreensão da natureza humana, ou seja, da ideia
do homem em sua tríplice configuração: i) o homem em sua existência
individual, separada e autônoma (e, como tal, princípio do direito) ; ii)
como fim de seu mundo (e, portanto, também do direito); e iii) como sujeito
dos (quatro) vínculos sociais relacionais elementares através dos quais
constrói, a partir de uma pluralidade de motivações e das reações do outro,
os estilos aprovados de uma vida sociocomunitária (ou seja, como titular de
direitos e deveres que projetam na coletividade a sua existência como
cidadão).[3]
Ademais, não se trata somente de que a tradição republicana seja
capaz de reconhecer esta pluralidade das motivações da vida social humana,
o que seguramente já constitui uma gigantesca vantagem de partida com
relação ao monismo motivacional – aberto , ou vergonhoso – da tradição
liberal. Mais importante ainda é a circunstância de que, além desse
simples reconhecimento, é exatamente na tradição republicana que podemos
encontrar vias de articulação dessas formas de vida social: modos adequados
de combiná-las, de potenciar e cultivar seus melhores lados, e de
mitigar ou jugular seus lados destrutivos e perigosos. Seu peculiar talante
de modelo ético-político aberto aporta valores de cidadania e de
metodologia jurídica-política essencialmente úteis para tomar o direito
como um instrumento de construção social e, muito particularmente, para
assimilar os câmbios formais e materiais no processo de elaboração das
normas jurídicas e de tomada de decisões ante a dinâmica fluída e por
vezes enlouquecida do "mundo da vida" cotidiana.
Daí que a ideia de direito fundado na natureza humana é central na
perspectiva republicana, porque somente a partir de uma compreensão mais
profunda das causas ou motivações últimas (radicadas em nossa natureza) do
comportamento humano será possível descobrir quais são os limites e as
condições de possibilidade da ética e do direito no contexto das sociedades
contemporâneas. Por outro lado, não sobra dizer que o conhecimento da
natureza humana também tem consequências profundas sobre nossos sistemas de
justiça e a dinâmica de poderes, na medida em que esta não somente gera e
restringe as condições de possibilidade de nossas sociedades senão que, e
muito particularmente, guia e põe limites ao conjunto institucional e
normativo que regula as relações jurídicas e os sistemas jurídicos
concretos. É a natureza humana a que impõe constrições significativas para
a percepção, transmissão e armazenamento discriminatório de representações
culturais, limitando as variações sociais, morais e jurídicas possíveis.
Estabelecer princípios e preceitos normativos que não têm nada que
ver com a natureza humana é o mesmo que condená-los ao fracasso. É muito
provável, por que não dizê-lo, que a maior parte das propostas de
fundamentação teórica e metodológica do direito que já se formularam ao
longo da história peque precisamente por sua inviabilidade em função dessa
desatenção com relação à realidade biológica que nos constitui, ou seja,
pela falta de precisão de sua adesão à condição ou natureza humana.
Depois de tudo, como a gente culta compreende, não somente não se
pode esperar explorar os caminhos da explicação social ou da avaliação
jurídica e política sem ter uma visão de conjunto das pessoas e da
sociedade, isto é, sem ter um desenho indicativo da natureza dos indivíduos
e das diferenças (não indefinidas e ilimitadas, registre-se) que os
estímulos provenientes da vida social provoca neles, senão que tampouco se
pode ter uma visão global das pessoas e da sociedade se não adotamos um
desenho da constituição cognitiva humana, um desenho do que é estar
psicologicamente equipado como seres humanos.



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( Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public
Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/
Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research)
Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu
Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-
civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral
research)/Center for Evolutionary Psychology da University of
California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/
Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-
Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia
Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista
Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate
Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y
Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de
Cognición y Evolución humana (Human Evolution and Cognition Group)/Unidad
Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y
Sistemas Complejos/UIB/España.
[1] Não resulta difícil encontrar a origem do abismo proposto entre a
moralidade e a natureza. Semelhante ideia está firmemente estabelecida em
âmbitos alheios à ciência. A imagem da depravação inata do homem é
calvinista por antonomásia, pois se remonta à doutrina paulina do pecado
original. Assim mesmo, a tensão entre a ordem cívica e nosso passado animal
constitui o núcleo do "El malestar en la cultura" de Freud, onde o autor
afirma que para construir uma sociedade moderna devemos submeter nossos
instintos básicos e renunciar a eles. Esta perspectiva dualista iria
conseguir um enorme empurrão de respeitabilidade por parte dos livros de
Freud, que se baseavam nos contrastes entre o consciente e o inconsciente,
o ego e o superego, e deixava que a civilização surgisse de uma renúncia
dos instintos, do controle sobre as forças da natureza e a construção de um
superego cultural. Mas sua perspectiva não somente mantinha a certa
distância aos animais, senão que também excluía às mulheres. Eram os homens
os únicos que chegavam a alcançar o ápice da civilização, levando a cabo
intrincadas sublimações que "as mulheres dificilmente poderiam haver sido
capazes de realizar". Portanto, não somente estamos falando de uma teoria
biológica, senão de uma convergência entre o pensamento religioso,
psicanalítico (pseudocientíficos) e evolucionista (científico), segundo a
qual a vida humana é fundamentalmente dualista. O homem voa entre o céu e a
terra com uma asa "boa" – o sentido adquirido da ética e a justiça – e com
outra "má" – o egoísmo profundamente arraigado. Trata-se da visão clássica
de uma humanidade metade bruta e metade angelical, que nega a existência de
uma clara continuidade entre a natureza humana e a moralidade, isto é, em
lugar de um todo integrado.
[2] Segundo Steven Pinker, todo mundo tem uma teoria implícita sobre a
natureza humana. Todos nos afanamos em prever o comportamento dos demais, o
que significa que todos necessitamos entender "o que" é o que move as
pessoas a adotar determinadas condutas. Na própria maneira de pensar sobre
a gente subjaz uma teoria tácita da natureza humana – a saber, que são os
pensamentos e os sentimentos os causadores da conduta. Damos corpo a esta
teoria analisando nossa mente e supondo que nossos semelhantes são como
nós, assim como observando o comportamento das pessoas e formulando
generalizações. Ademais, também absorvemos outras ideias de nosso ambiente
intelectual: da experiência dos expertos e da sabedoria convencional do
momento. Nossa teoria sobre a natureza humana é a fonte de grande parte do
que ocorre em nossa vida. A ela nos remetemos quando queremos convencer ou
ameaçar, informar ou enganar. É esta teoria que nos aconselha sobre como
manter vivo nosso matrimônio, educar aos filhos e controlar nossa própria
conduta. Seus supostos sobre a aprendizagem condicionam nossa política
educativa; seus supostos sobre a motivação dirigem as políticas sobre
economia, justiça e delinquência. E dado que delimita aquilo que as pessoas
podem alcançar facilmente, aquilo que podem conseguir somente com
sacrifício ou sofrimento, e aquilo que não podem obter de modo algum, afeta
os nossos valores: aquilo pelo que pensamos que podemos lutar razoavelmente
como indivíduos e como sociedade. As teorias opostas da natureza humana se
entrelaçam em diferentes maneiras de viver e em diferentes sistemas
políticos, e tem sido causa de grandes conflitos ao longo da história.
[3] Como bem expressado por Nicholas Humphrey: os historiadores podem
descrever as forças impessoais como queiram, mas a realidade é que não há
forças impessoais na sociedade humana; não há um só acontecimento
significativo que não tenha sido modelado por mentes humanas em interação
com outras mentes humanas. A história da sociedade humana nos últimos
milhares de anos é a história do que as pessoas disseram umas às outras, do
que pensaram umas das outras, de rivalidades, de amizades, de ambições
pessoais e nacionais.
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