Liberdade e Natureza

June 19, 2017 | Autor: D. Alves Fernandes | Categoria: Immanuel Kant, Liberdade
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Liberdade e Natureza

Aluno: Darley Alves Fernandes ([email protected]) Orientadora: Profª Drª Márcia Zebina de Araújo1 ([email protected]) Faculdade de Filosofia

1. Introdução e objetivo Talvez a maior dificuldade que a filosofia kantiana apresenta ao neófito pesquisador seja o fato de que não há no seu sistema filosófico uma espécie de obra introdutória que sirva de ponta pé inicial. Os principais obstáculos para o iniciante são (i) lidar e compreender a diversidade de conceitos que surgem nas suas diversas obras, por exemplo, juízos sintéticos e analíticos, imperativo categórico, juízo reflexivo etc (ii) articular tais conceitos que estão espalhados nas diversas obras é outra dificuldade recorrente – isso porque, existem afirmações que estão amparadas por conceitos que foram desenvolvidos em obras distintas, por exemplo, a noção de juízo reflexivo presente na última Crítica resolve e ampara uma série de questões que até então geravam enormes tensões (iii) dada a dimensão da filosofia kantiana é sempre difícil distinguir e separar alguns problemas sem que com eles venham outros maiores ainda, por isso, as vezes uma simples afirmação requer uma séries de precauções conceituais. Todas essas dificuldades apresentadas são pontuais e decorrentes da sistematicidade da filosofia kantiana, obstáculos que são superáveis com a disciplina dos estudos. Neste sentido, a pesquisa de iniciação científica (PIBIC) foi bastante produtiva e forneceu-nos uma visão ampla da filosofia kantiana, alguns pontos a destacar são; (i) a compreensão ainda que em linhas gerais do projeto crítico kantiano e os problemas que ele confronta nas três principais obras que constituem a espinha dorsal de sua filosofia (ii) contextualização da filosofia da história perante o conjunto das obras principais do autor (iii) aprofundamento bibliográfico, incluindo a bibliografia secundaria que é bastante vasta e requer certa filtragem. No presente relatório irei apresentar alguns dos resultados obtidos com a pesquisa, tais resultados foram obtidos por meio da leitura sistemática dos textos, confecção e apresentação de textos (comunicações) e discussões 1

revisado pela orientadora

com a orientadora, de modo que foi possível sanar algumas deficências, de maneira específica as dificuldades apresentadas no segundo item (ii) do primeiro parágrafo. O projeto de pesquisa tem como pano de fundo a filosofia da história, e neste âmbito há uma série de erros e interpretações equivocadas, tais interpretações surgem principalmente pela não compreensão da proposta kantiana e por tomar como afirmação aquilo é apenas inferência e que, se não colocadas no rigor crítico kantiano soam como contraditórias e até ingênuas. Por exemplo, o que significa dizer que a história humana está um contínuo progresso para o melhor? O que permite dizer que há uma providência divina que age no mundo com vistas a salvaguardar os propósitos da natureza? E mais, o que, e quais são os propósitos da natureza? Os opúsculos kantianos sobre a história são desenvolvidos no período mais produtivo de Kant, logo, são questões que contém certa dose de rigor crítico – portanto, situá-las de acordo com o pensamento do filósofo é tarefa do pesquisador que deve conciliar rigor sistêmico e coerência, porém, sem negar as tensões inerentes ao sistema. Esta é uma árdua tarefa da qual não devemos nos omitir e, creio que devemos buscar compreender o pensamento do autor apoiado no sistema filosófico sem, contudo, privilegiar apenas os aspectos formais do sistema. É justamente o que observa Ricardo Terra sobre a trivial dificuldade de compatibilizar pensamento filosófico e sistema filosófico. Vejamos: O fundamental é a pesquisa e os rumos que ela aponta, não o sistema a qualquer custo. Mesmo que Kant, em algumas passagens, caia em certo formalismo sistemático, este não é o movimento da sua reflexão. Ou melhor, poderíamos dizer que há, de um lado, uma forte tendência sistemática e, de outro, o processo de pensamento que não cabe no sistema, criando tensões e chegando a transbordar o sistema A Crítica do Juízo, por exemplo, elabora questões que não estavam previstas nas duas primeiras Críticas e, mais ainda, reformula o próprio sistema sem destruir as construções anteriores. Não se podem ler a Crítica da razão pura e a Crítica da razão prática sem levar em conta a terceira Crítica, mas esta não arruína as outras duas. Junto com a invenção constante, há o esforço sistematizador que engloba as obras anteriores sem superá-las radicalmente. (TERRA, 2003, p. 31).

Nosso interesse, portanto, é ler a principal obra a respeito da história (Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita) amparada pelo sistema crítico kantiano, assim, como o faz alguns comentadores como Gérard Lebrun e Otfried Höffe, cujo principal esforço é elucidar os liames entre história e a crítica transcendental da razão. O horizonte de investigação a respeito da história amplia-se quando se leva em conta estas considerações e, parte dela será apresentada no presente relatório e de modo

completo no trabalho monográfico. A princípio poderemos começar analisando o próprio título da obra, será de grande relevância compreender o que vem a ser Ideia (Idee) conforme Kant apresenta na Dialética Transcendental, tal compreensão nos levará a entender o que é o propósito (Absicht). O principal objetivo é chegar até o juízo reflexivo e apresentá-lo como exercício da razão que nos permite criar as regras para obtenção das finalidades prescritas pela razão prática.

2. Discussão 2.1 Filosofia da Historia: ideia e interesse prático Ideia é a expressão cujo conteúdo não é abstraído por meio da mera percepção sensorial, mas, ultrapassa os próprios conceitos do entendimento. As “ideias” estão situadas no domínio da razão suprema, portanto, partindo da experiência é impossível encontrar certa congruência entre ideia e objeto empírico. Na tradição filosófica é Platão o responsável por preencher a expressão do conteúdo que perdurou por séculos e que contemporaneamente é ambíguo, vazio de significado e reduzido a um relapso da razão. Deste modo, Kant reconhecendo o quanto é difícil encontrar uma expressão que exprimisse com exatidão os conceitos que visava desenvolver recorre ao significado atribuído por Platão ao termo “Ideia”. Num ato de reverência Kant presta odes a Platão da seguinte maneira. Platão observou muito bem que a nossa capacidade cognitiva sente uma necessidade bem mais alta do que simplesmente soletrar fenômenos segundo uma unidade sintética para / poder lê-los como experiência, e que a nossa razão eleva-se naturalmente a conhecimentos, que transcendem de muito a capacidade de qualquer objeto, proporcionável pela experiência, de jamais congruir com os mesmos. Tais conhecimentos possuem apesar disso a sua realidade e de modo algum são simples quimeras. (KANT, 1991, p. 16/17).

O trecho supracitado é bastante rico em conteúdo e diz muito da intenção kantiana ao apropriar da expressão “Ideia”, apesar de reconhecer que é preciso ter um esforço maior do que teve o próprio Platão para entender e determinar melhor este conceito. É importante destacar que as ideias não são como as categorias, apenas chaves para as experiências possíveis, seria então para as experiências impossíveis? Não, isso apenas quer dizer que a realização da ideia não é um preceito absolutamente necessário. Não obstante, a realização da ideia não é apenas não necessária, mas é irrealizável, visto que ela não cai nas categorias do entendimento, pois emana da razão suprema, e a razão

costumeiramente dirige-se rumo a representações que transcendem a experiência empírica. Outro ponto importante a destacar e que está presente em toda filosofia kantiana é a relação entre a capacidade cognitiva humana e os objetos do conhecimento, ou, objetos passíveis de conhecimento. O projeto crítico kantiano é conhecido principalmente por demarcar nitidamente as fronteiras e os limites do conhecimento humano, porém, há uma diferença considerável entre pensar e conhecer, visto que conhecer pressupõe sempre a sensibilidade e o entendimento, e o pensar é o exercício da razão da pura. Não há limites para o pensar, apenas para o conhecer - não por acaso Kant denomina “ideias da razão” aquilo que é impossível não pensar, mas, que é impossível conhecer. As ideias da razão2, isto é, a alma, Deus e a liberdade, observa Otfried Höffe “são sem dúvida representações possíveis, até necessárias, já que correspondem à consequência lógica do pensamento. Mas a consequência lógica não é um objeto próprio, e sim um princípio de investigação” (HÖFFE, 2005, p. 175). Os objetos da experiência (totalidade das condições) são limitados e a razão é a faculdade da totalidade, por isso, uma completude absoluta e ilimitada só é possível no âmbito da razão. Höffe3 afirma que ideias transcendentes são absolutamente necessárias, e isto inclui um inteligência extra mundana, pois, o incondicionado é a única coisa que atribui sentido ao objetivo final da razão teórica, isto é, o conhecimento completo. Percebe-se que, apesar de Kant citar Platão ele não considera as ideias como arquétipos das próprias coisas4 e do qual os homens participam, apenas os privilegiados, mas, é um conceito racional puro e necessário da razão, portanto, são ideias transcendentais. Os conceitos transcendentais da razão são apenas ideias e servem de princípio norteador ao entendimento, na linguagem kantiana as ideias transcendentais servem de cânone ao entendimento5.

Cf. Otfried Höffe “No caso das idéias, a razão ocupa imediatamente consigo mesma. Mas esta autoocupação da razão não é supérflua para o conhecimento. Pois é verdade que o conhecimento constituído por categorias conduz a um saber objetivo, mas não efetua a conexão sistemática do saber em uma ciência. Tal conexão alcançamos só quando nos deixamos guiar por representações de um todo absoluto, por idéias da razão. Por meio das idéias os conceitos e enunciados obtidos na experiência são orientados à completude” (HÖFFE, 2005, p. 175). 3 Ver Höffe 2005, p. 181 4 “Não quero meter-me aqui em nenhuma investigação literária para estipular o sentido que o sublime filósofo ligou a sua expressão” (KANT, 1991, p. 16) 5 Ver Kant 1991, p. 23 2

As ideias não são por causa de sua irrealização pensamentos quiméricos, mas, são princípios que orientam a experiência possível mediante representações do absoluto (completude ilimitada). Dois exemplos elucidam bem a função das ideias e justificam sua transcendência em relação à experiência, a saber, justiça e virtude. O que é a justiça? Há pelo menos vinte e cinco séculos o homem vem formulando respostas a essa pergunta e uma consenso parece estar bem distante, embora seja pertinente concordar que não é possível abstrair tal resposta da experiência, pois é ai onde reside as contradições. A justiça no âmbito da razão é uma ideia perfeita, imparcial e incorruptível, porém, a aplicação da justiça com vistas a resultados objetivos leva sempre a uma subjetivação incontornável – por isso, a justiça não se aplica, mas, é um princípio que serve de orientação para que os homens julguem ações, de modo, que apenas uma aproximação à ideia é possível. Outro exemplo é o da virtude, pois se um homem quisesse retirar os preceitos da virtude, a saber, justiça, temperança e etc, da experiência não teria êxito, mas ao contrário, “esse faria da virtude um equívoco nãoente, variável segundo o tempo e as circunstância e imprestável como regra” (KANT, 1991, p. 17). A ideia é, portanto, “um conceito a partir de noções, que ultrapassa a possibilidade da experiência, é a idéia ou conceito racional” (KANT, 1991, p. 19) - tal como em Platão as ideias referem-se e orientam aquilo que é prático, isto é, o que se funda sobre a liberdade6. A ideia, diferentemente das categorias não são chaves para a experiência, de modo que uma simetria entre ideia e objeto é irrealizável. Porém, o conteúdo da razão não é determinado segundo a capacidade da compreensão humana, exemplo disto são as ideias da razão, mas, ao contrário, as ideias enquanto servem de princípios de orientação são necessárias e devem ser colocadas como fundamento das leis em geral e, principalmente das leis morais7. Por isso Kant faz questão de ressaltar que “no que concerne às leis morais, a experiência é (infelizmente) mãe da ilusão; e é sumamente reprovável tirar as leis sobre o que devo fazer daquilo que é feito ou querer limitar a primeira coisa pela segunda” (KANT, 1991, p. 18). 6

Kant, 1991, p. 17. “Com efeito, não se pode encontrar algo mais prejudicial e mais indigno de um filósofo do que o apelo vulgar a uma experiência pretensamente contraditória, que simplesmente não existiria se no tempo oportuno fossem encontradas aquelas instituições segundo as idéias e se no seu lugar conceitos rudes, justamente por terem sido tirados da experiência não tivessem frustrado toda a boa intenção. Quanto mais a legislação e o governo fossem estabelecidos conforme esta ideia, tanto mais raras seriam com certeza as penas; e é, pois, perfeitamente racional pensar (como Platão afirma) que numa perfeita ordenação da legislação e do governo nenhuma pena seria necessária” (KANT, 1991, p. 18). 7

O arquétipo ideal de justiça e de virtude é indispensável aos homens que desejam ser justos e virtuosos – inatingível, a ideia tem a função de manter os homens dispostos a uma aproximação daquilo que é posto como ideal de perfeição. Diz Kant que “a realização da idéia é sempre limitada e defeituosa, mas, sob limites indetermináveis, portanto, sempre sob a influência do conceito de uma completude absoluta” (KANT, 1991, p. 23). Talvez essa inatingibilidade da ideia seja estratégica, e somos levados a pensar que sim, pois, se fosse algo realizável, saciaria o desejo e a curiosidade do homem que se estagnaria num mesmo ponto e levaria uma vida destituída de objetivos e esperanças. É neste ponto que se insere o discurso sobre a história e é neste sentido que Kant se apropria do termo ideia e desenvolve sua principal obra sobre o tema “Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita8”. Neste sentido, o conceito racional que orienta a investigação acerca da história parece ter um germe já na elaboração da primeira obra crítica, e Allen Wood concorda que as obras kantianas sofrem influência de sua concepção histórica, principalmente em relação à política. Allen Wood afirma que “a caracterização básica de Kant sobre a espécie humana em termos de suas possibilidades coletivas para a autodireção indica que sua concepção da própria natureza humana é uma concepção histórica” (WOOD, 2008, p. 138). Vejamos um pequeno trecho contido no livro primeiro da dialética transcendental que tomaremos como a ideia que guia a investigação a respeito da história humana no pensamento kantiano. Uma constituição da máxima liberdade humana, segundo leis que façam com que a liberdade de cada um possa coexistir com a liberdade dos outros (não uma constituição da máxima felicidade, pois esta seguir-se-á já espontaneamente), é pelo menos uma idéia necessária, que tem de ser colocada como fundamento não somente do primeiro projeto de uma constituição política, mas também de todas as leis, e em que inicialmente se tem que abstrair dos obstáculos presentes que talvez possam originar-se não tanto inevitavelmente da natureza humana quanto do desleixo da autênticas idéias na legislação (KANT, 1991, p. 18)

O conteúdo racional da ideia é reafirmado em diversas passagens da “Ideia de uma história universal” e da “Paz Perpétua” – a diferença básica talvez seja o fato de que aqui as ideias são assimiladas e convertidas em desafios práticos, isto é, propósitos (Absicht). O desafio e o propósito humano é constituir uma constituição civil que

O título original da obra é “Idee zu einer allgemeinen Geschicht in Weltbïrgelicher Absicht”, embora utilize a tradução de Ricardo Terra é mais coerente e correto traduzir “Absicht” por propósito como o faz Artur Morão na tradução portuguesa, e o texto kantiano aponta justamente para o propósito da história que a uma constituição cosmopolita” 8

administre universalmente o direito (Idee V) e fazer com que seja possível a convivência entre indivíduos livres. O interesse humano na história é um interesse prático de tornar as próprias ações inteligíveis, este interesse, segundo Allen Wood9 une “esperanças e objetivos racionais” que visam assegurar as liberdades individuas e promover o esclarecimento, o progresso moral e do direito e a paz entre as nações. A análise a respeito dos termos ideia e propósito constituem um passo inicial muito importante a respeito da pesquisa que tem como pano de fundo a filosofia da história, visto que é preciso inserir tais textos no âmbito da filosofia kantiana e não considerá-lo como uma obra que é fruto de um deslize intelectual de gosto popular. Outro passo complementar é compreender a função do juízo reflexivo, juízo que cria a passagem (Übergang) entre razão teórica e prática. A ideia de uma constituição civil perfeita que administre universalmente o direito pertence evidentemente apenas à razão há, contudo, o interesse prático de atingir tal constituição, o propósito é torna-la realizável. Porém é o juízo quem cria as regras para a obtenção de tal propósito, ou seja, o juízo que é uma faculdade mediadora entre razão e entendimento prescreve as regras para o entendimento siga, tais regras, no entanto, são apenas princípios heurísticos de investigação.

2.2 Juízo e princípio regulativo A Crítica da faculdade do juízo é a última obra crítica de Kant, obra que encerra o sistema filosófico e visa preencher o fosso existente entre as duas primeiras por meio de uma terceira faculdade, o juízo. O Juízo e uma faculdade de conhecimento constituída por princípios a priori que podem ser constitutivos ou regulativos e, sua principal função é fazer uma passagem10 (Übergang) entre a faculdade teórica e a prática. Passagem (Übergang) significa articulação e organização do sistema11, o juízo não está subjulgado aos domínios nem da razão pura e nem da razão prática, mas, seus princípios devem se ajustar a ambas as partes12. Interessa-nos investigar a função regulativa do 9

Ver Allen Wood 2008, p. 138 A crítica do juízo, é um termo médio entre as duas outras, e esta “passagem (Übergang) da filosofia teórica para a prática mostra vários níveis: a ideia de sublime indica o primeiro; o plano do todo da natureza como um sistema de fins, o segundo, a relação do fim último (Endzweck), o terveiro nível”. (TERRA, 2003, p. 48). 11 Ver Ricardo Terra, 2003, p. 58 12 Ver Kant, 2002, prologo. 10

juízo reflexivo na organização das leis empíricas e criar um liame entre juízo reflexivo e história – o principal objetivo é demonstrar que a filosofia da história, cujo principal objetivo esta centrado na realização da ideia, isto é, um todo cosmopolita (jus cosmopoliticum), utiliza-se da função regulativa do juízo para atingir tal propósito. Apesar da relevância que os comentadores atribuem a filosofia da história com vistas a compreender outros campos da filosofia kantiana como política, direito, antropologia e religião. Gerárd Lebrun13 talvez seja o único, ate agora estudado, a analisar a história amparada no juízo reflexivo e na filosofia prática em geral e defende que não há dicotomia entre os escritos sobre a história e a filosofia prática, mas, ao contrário, a cidadania filosófica conferida aos opúsculos sobre a história é uma exigência da razão prática14. Por isso, a distância cronológica entre as obras é um argumento inválido e pouco persuasivo, visto que, a Urteilskraft foi escrita tendo em vista superar tais abismos conceituais, e vale ressaltar que “o sistema kantiano tem de ser entendido não como dado de uma vez por todas, mas como um processo de formação, em que lacunas surgem e são superadas, em que problemas imprevistos se põem em que mesmo novos princípios têm de ser propostos” (TERRA, 2003, p. 54). Deste modo, ignorando as desconfianças aprofundaremos no nosso objetivo. Na introdução da Urteilskraft Kant acerca do juízo explicita o seguinte “a faculdade do juízo em geral é a faculdade de pensar o particular contido no universal” (KANT, 2002, p. 23). O juízo, porém, opera de dois modos distintos; quando recebe o princípio, regra, lei que são dadas a priori aplica-se ao caso específico e obtém-se o particular, este juízo ocorre na física em geral, isto é, se quero saber a velocidade atingida por um objeto num determinado espaço de tempo eu preciso aplicar as leis da física – Vm= ∆S/∆T; outro modo de operar do juízo é o reflexivo, neste caso, temos o caso particular, porém não temos a regra para investigar tal caso (natureza em geral), logo, é preciso pensar uma regra. Nesta particularidade dos casos onde não se aplicam as leis da física (leis dadas a priori) e, portanto, não se pode determinar os objetos reside a peculiaridade do juízo reflexivo, isto é, criar as próprias regras. O juízo apresenta-se então de duas maneiras distintas, são elas, determinante com função lógica e reflexivo com função regulativa, ambas, estabelecem a relação do geral 13

Ver Lebrun, 2011, p. 72 “Se assim for, a Weltgeschichte, longe de ser uma noção marginal ante a razão prática, contribuiria para garantir a supremacia da razão prática. (LEBRUN, 2011, p. 72) 14

com o particular, porém, de maneiras opostas. O juízo determinante é utilizado com vistas a um conhecimento objetivo do mundo, as leis e formas em geral. O juízo reflexivo, de gosto ou teleológico não fornece nenhum conhecimento objetivo, mas, permite-nos considerar a natureza como sendo uma algo mais do que um mecanismo cego – o juízo de reflexão “nos indica que é impossível reduzir a natureza à legislação do entendimento, e que é necessário nela supor uma outra forma de legalidade” (LEBRUN, 2011, p.100). Vejamos o que diz Kant a respeito do juízo reflexivo: A faculdade do juízo reflexiva, que tem a obrigação de elevar-se do particular na natureza ao universal, necessita por isso de um princípio que ela não pode retirar da experiência, porque este precisamente deve fundamentar a possibilidade da subordinação sistemática dos mesmos entre si. Por isso só a faculdade de juízo reflexiva pode dar a si mesma um tal princípio como lei e não retirá-lo de outro lugar (porque então seria faculdade de juízo determinante), nem prescrevê-lo à natureza, porque a reflexão sobre as leis da natureza orienta-se em função das condições, segundo as quais nós pretendemos adquirir um conceito seu, completamente contingente no que lhe diz respeito (KANT, 2002, p. 24).

Deste modo, o juízo reflexivo mediante a impossibilidade de retirar regras e leis da experiência empírica prescreve a si mesmo princípios heurísticos de investigação, tais princípios vale lembrar não determinam objetos, pois, “esta faculdade dá uma lei somente a si mesma e não à natureza” (KANT, 2002, p. 24). Ricardo Terra15 compreende que a diferença substancial entre juízo determinante e reflexivo é que, embora o juízo determinante “reflexione” quando aplica a regra ao caso o ato de reflexionar “desaparece nos resultados” obtidos, pois, limitou-se a executar os princípios práticos da razão, recebidos a priori, ao passo que “o juízo reflexionante leva a reflexão às últimas instâncias, pois não é guiado por regras prévias” (TERRA, 2003, p. 47). Criar as condições para o exercício da razão perante a natureza, da qual não é possível abstrair fins que esteja visível é o papel do juízo reflexivo, ou seja, refletir é retirar as regras e princípios das leis empíricas. Valério Rohden observa que o juízo reflexivo “é também não obstante um juízo a priori, na medida em que o próprio juízo reflexivo é o estabelecimento de uma certa ordem na contingência, que permite pensar a possibilidade desta nossa experiência particular de objetos através de leis empíricas sempre mais amplas (espécies e gêneros) como um sistema” (ROHDEN, 1991, p. 47). 15

Ricardo Terra 2003, p. 47

É preciso, porém, perguntarmo-nos de que maneira o juízo reflexivo pode nos ajudar em relação à realização da ideia no âmbito da filosofia da história. Qual a regra ou a orientação possível o juízo reflexivo cria para atingir a ideia (jus cosmopoliticum)? A constituição de uma sociedade civil regida sob os princípios republicanos que visam conciliar as liberdades individuais, de modo que, possa haver de maneira análoga a mesma relação entre os Estados é o objetivo da ideia, inatingível a princípio, Kant, porém diz no opúsculo sobre a Paz perpétua que tal aproximação não é o suficiente, mas, deve ser considerada no mínimo satisfatória. De acordo com Lebrun o juízo reflexivo opera a partir da “ideia de um aperfeiçoamento moral na humanidade, que a natureza pretende levar a termo neste mundo – mas sem que os homens tenham consciência disso” (LEBRUN, 2011, p. 100). É neste ponto que reside à maioria dos equívocos em relação aos opúsculos obre a história, a noção de um aperfeiçoamento moral inconsciente impulsionado por uma natureza materna causa reboliços e inquietações, principalmente nos adeptos de Nietzsche e Rousseau16 que zombam da ingênua crença kantiana no homem moderno. O juízo reflexivo é, porém, a única solução possível para interpretar o opúsculo kantiano sobre a história compreendendo os caminhos que o podem levar até a ideia. Lebrun interpreta o juízo reflexivo mediante a tarefa imposta pela razão prática da seguinte maneira: A razão prática, longe de nos lançar numa especulação sobre a Providência, somente nos incita a formular o seguinte problema: dado que seria quimérico aguardarmos o aparecimento de uma sociedade angélica, vamos encontrar o mecanismo graças ao qual os indivíduos, mau grado seu e mesmo a contragosto, são forçados a moralizar-se progressivamente (LEBRUN, 2011, p. 100/101)

Se, o papel do juízo reflexivo é organizar as leis empíricas sem, contudo cair em afirmações dogmáticas sobre a Providência podemos então chegar a duas conclusões; a primeira é que não é um erro utilizar o juízo reflexivo como premissa de compreensão da filosofia da história17 e; a segunda é que as representações da Natureza, Providência18 “É Kant que contra Rousseau, celebra o advento da cultura como um ganho para a humanidade, compensando, e muito, a perdição que pôde acarretar do indivíduo” (LEBRUN, 2011, p. 103). 17 “Daí provém o caráter muito singular da esperança que a Geschichte fomenta. Ela não nos leva a imaginar o dia em que os homens finalmente começariam, em plena consciência, a cumprir a missão a eles confiada pelo Criador: esta miragem a moralidade felizmente pode dispensar. A confiança do sujeito moral respousa em coisa inteiramente distinta: no olhar para trás que lhe permite constatar que a humanidade, sem o querer, já avançou nessa via, e que o supra-sensível já fez um caminho terrestre (através do antagonismo dos interesses, através das guerras, através da cultura e dos vícios por ela propagados – por mais que isso desagrade Rousseau” (LEBRUN, 2011, p. 101). 16

não indicam a existência de um Deus antropomórfico19 que age a revelia da vontade humana a fim de atingir seus objetivos. Para Lebrun, a crença na história e no curso do mundo não se funde com uma crença teológica e ressalta que Kant é mais adepto a usar desígnio da natureza do que providência e que Providência20 indica muito mais um “desenvolvimento das potencialidades naturais do homem, que certamente não passa pela iniciativa nem pela boa vontade dos indivíduos – por exemplo, o fato de que são os antagonismos sociais e as guerras que fazem avançar a realização do Soberano Bem político” (LEBRUN, 2011, p. 92). O juízo reflexivo é, portanto, a condição de possibilidade para obtenção de êxito na realização da ideia, pois, como observa Valério Rohden “a faculdade de julgar reflexiva – é a faculdade de projetar um mundo adequado ao homem” (ROHDEN, 1991, p. 52). A leitura e análise dos opúsculos kantianos a respeito da história devem ser precedidas pela compreensão do papel assumido pelo juízo reflexivo no propósito prático teleológico, ou seja, fazer com que o homem se dê fins que o tornem digno da sua capacidade racional e autônoma. A noção de um contínuo progresso no gênero humano não pode ser descartada, visto que, um primeiro estágio foi à domesticação dos impulsos agressivos e o estabelecimento da sociedade civil – longe do estágio moral os homens, porém, tornaram-se civilizados, graças à arte, a política e cultura, além da autonomia de prescrever seus próprios fins o homem tornou-se o fim último da natureza (Letztweck), esperançoso é claro com a possibilidade de um dia ser o fim final (Endzweck). 3. Considerações finais

“O que proporciona esta garantia é nada menos que a grande artista natureza (naturza daedala rerum), em cujo curso mecânico transparece visivelmente a finalidade de fazer prosperar a concordia pela discórdia dos homens, mesmo contra sua vontade, e é por isso que, assim como é denominada destino a necessidade de uma causa desconhecida por nós segundo suas leis de efeito, é assim denominada providência pela condição de sua finalidade no curso do mundo como sabedoria profunda de uma causa superior dirigida ao fim último do gênero humano e predeterminando o curso do mundo, que nós propriamente não podemos conhecer nessas obras de arte da natureza nem sequer daí inferir, mas (como em toda relação da forma das coisas com os fins em geral) somente podemos e temos de introduzir em pensamento para nos fazer um conceito de sua possibilidade segundo a analogia das obras de arte humana” (KANT, 2008, p. 43/44). 19 “O homem histórico não é o joguete de um Deus antropomórfico, mas a criatura cujos projetos, por princípio, são constantemente ultrapassados pelo desenvolvimento da Idéia” (LEBRUN, 2011, p. 92). 20 “O uso do termo natureza é também – quando como aqui, somente a ver com teoria (não com religião) – mais conveniente para as limitações da razão humana (como a que se tem de manter, com respeito à relação dos efeitos às suas causas, dentro dos limites da experiência possível) e mais modesta do que a expressão de uma providência cognoscível por nós, com a qual se colocariam temerariamente asas içarias para aproximar-se do segredo de sua intenção insondável” (KANT, 2008, p. 44/ 45). 18

A história, dada às premissas e fundamentos que a sustenta não deve, no entanto, ser objeto crença, nem deve ser considerada como um projeto prático político que visa ser uma sociedade angelical no mundo, isto é para Kant impossível, pois sujeito moral não habita o mundo fenomênico. A fé na história advém da natureza das coisas e não numa iluminação divina, repousa não só na capacidade cognitiva humana de criar artefatos, instrumentos, mas, principalmente na disposição (Gesinnung) moral que há no gênero humano. Nas palavras de Gérard Lebrun esta fé “proporciona ao homem uma convicção mais sóbria do que toda esperança religiosa: a de que, executando o mandamento incondicional da razão, ele também esta efetuando uma ação mundanamente racionável” (LEBRUN, 2011, p 104). 4. Resultados 4.1 Apresentação de trabalho e resumos publicados

 História e ação humana em Kant – XV Encontro Nacional de Pesquisa na Graduação em Filosofia da USP.

 Do rude ao culto e civilizado: Kant e a concepção de progresso humano- XIX Semana de Filosofia da UFG e XIV Semana de Integração da graduação e PósGraduação em Filosofia.

5. Metodologia O presente projeto de pesquisa conseguiu durante o seu desenvolvimento obedecer ao cronograma e as exigências estabelecidas no plano estudo enviado para avaliação e aprovação, o êxito do trabalho como um todo deve se em grande parte a metodologia seguida. Os pontos principais da metodologia foram os seguintes. 

Leituras sistemáticas e fichamento das principais obras políticas do filósofo e, ampliação e aprofundamento da bibliografia secundária, artigos, dissertações e comentários em geral.



Elaboração de pequenos estudos dirigidos, problemas decorrentes da leitura inicial, hipóteses a serem trabalhadas e discutidas nas reuniões mensais com o grupo de orientandos e a orientadora.



Redação e apresentação de artigos para apresentação de comunicações em congressos, encontros e jornadas científicas e dos relatórios de pesquisa (parcial e final).

6. REFERÊNCIAS HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. Trad. Christian Viktor Hamm, Valério Rohden. – São Paulo: Martins Fontes, 2005. – (Tópicos) LEBRUN, Gérard. Uma escatologia para a moral._ In Idéia de uma historia universal de um ponto de vista cosmopolita. São Paulo: Brasiliense, 1986. KANT, Immanuel. À Paz Perpétua. Porto Alegre: L&M, 1989. . Crítica da Razão Pura. Tradução: Valério Rohden e Udo Baldur Moosburguer: São Paulo: Nova Cultural – (Os pensadores). . Crítica da faculdade do Juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993. . Idéia de uma historia universal de um ponto de vista cosmopolita. São Paulo: Brasiliense, 1986. ROHDEN, Valério. Juízo e Reflexão desde um Ponto de Vista Prático. 1991 TERRA, Ricardo. Algumas questões sobre a filosofia da historia em Kant. In_ Idéia de uma historia universal de um ponto de vista cosmopolita. São Paulo: Brasiliense, 1986. . Passagens: estudos sobre a filosofia de Kant. - Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003. WOOD, Allen W. Kant. tradução José Volpato Dutra. – Porto Alegre: Artmed, 2008.

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