Liberdade e necessidade - Análise temática da totalidade da correspondência entre Gottfried Leibniz e Samuel Clarke (1715/1716)

Share Embed


Descrição do Produto

Liberdade e necessidade Análise temática da totalidade da correspondência entre Gottfried Leibniz e Samuel Clarke (1715/1716)

Joaquim Narciso

Versão corrigida e aumentada de uma dissertação de mestrado de Filosofia de 2015 apresentada na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e intitulada A importância da liberdade na correspondência entre Gottfried Leibniz e Samuel Clarke (1715/1716) - Análise temática da totalidade da polémica

1

© Joaquim Narciso, 2016 Registo do IGAC 4689/2016 ISBN: 978-989-20-8598-2

2

Índice Agradecimentos ................................................................................................................ 5 Notas preliminares ............................................................................................................ 6 I. Introduções .................................................................................................................... 7 1.

Introdução contextualizadora da polémica entre Leibniz e Clarke ................... 7

2.

Introdução temática .............................................................................................. 12

II. Questões preliminares ................................................................................................ 15 1.

Contraposição entre metafísica e os princípios matemáticos da filosofia ........ 17

2.

A distinção entre verdades de razão e verdades de facto .................................. 21

3. O princípio da razão suficiente e seus derivados: Os princípios da plenitude, da identidade dos indiscerníveis e da conveniência ................................................... 25 4.

Os tipos de necessidade ......................................................................................... 36

5.

O contingente em Leibniz ..................................................................................... 44

6.

A fatalidade e a predeterminação ........................................................................ 47

III. A indiferença de equilíbrio ....................................................................................... 51 1. A conceção clarkiana dos motivos e do princípio ativo como princípio físico de agir .................................................................................................................................53 2.

A conceção clarkiana de causalidade e o problema da liberdade ..................... 58

3.

O problema epicurista do acaso ........................................................................... 63

4.

O princípio do melhor em Leibniz e a rejeição da liberdade de indiferença ... 65

5.

O problema da liberdade em Leibniz .................................................................. 71

6.

A possibilidade de suspensão da resolução em Leibniz ..................................... 76

7.

Dificuldades centrais e a questão da justiça ....................................................... 80

IV. A liberdade divina e a natureza do espaço e do tempo ............................................ 85 1.

O sensório de Deus ................................................................................................ 87

2.

Relação de Deus com o espaço e o tempo: atributos, propriedades ou modos 92

3.

Relação de Deus com o espaço e o tempo: a "indiscerpibilidade" ................... 98

4.

Os próprios espaço e tempo: concretos ou abstratos ....................................... 103

5.

Os próprios espaço e tempo: absolutos ou relativos ........................................ 110

6.

O próprio espaço: vazio ou pleno....................................................................... 116

7.

Os próprios espaço e tempo: a indiscernibilidade ............................................ 126

8.

O próprio espaço: o movimento e a força; a observabilidade ......................... 134

9.

Átomos e mónadas ............................................................................................... 141

10.

Limitação do Universo .................................................................................... 153

V. A comunicação entre o corpo e a alma .................................................................... 161 1.

Da possibilidade da materialidade à extensão da alma ................................... 161

2.

Da mónada à harmonia pré-estabelecida .......................................................... 174

3

VI. Liberdade e Providência ......................................................................................... 193 1.

O relógio de Deus................................................................................................. 194

2.

O governo do mundo ........................................................................................... 199

3.

Milenarismo e progresso ..................................................................................... 208

4.

Transcendência ou imanência divina ................................................................ 214

5.

A definição de milagre e a gravitação................................................................ 217

6.

O corpo orgânico: milagroso ou maquinal ....................................................... 232

7.

O eco originário ou os fenómenos de Deus ........................................................ 235

8.

A força ativa......................................................................................................... 258

9.

Conceções de religião natural............................................................................. 274

VII. Acabamentos ......................................................................................................... 307 1.

Confronto entre dogmatismos ........................................................................ 309

a) Os dogmatismos de Leibniz .............................................................................. 314 b) O dogmatismo newtoniano .............................................................................. 328 c)

Extrapolação final .............................................................................................. 353

2.

Conclusão ............................................................................................................. 355

Bibliografia ................................................................................................................... 359 Fontes dos autores envolvidos na polémica: ............................................................ 359 Contexto histórico-filosófico: ..................................................................................... 361 Comentadores: ............................................................................................................ 365 Índice remissivo............................................................................................................ 371

4

Agradecimentos Apesar de ser o único local onde irei utilizar a primeira pessoa, visto não se agradecer indeterminadamente, o meu primeiro agradecimento é curiosamente impessoal. Gostaria de agradecer à empresa Google pela possibilidade que me deu de investigar ao nível académico mais elevado, fornecendo o acesso digital a muitas edições de outra forma inacessíveis, incluindo primeiras edições e outras edições publicadas ainda em vida dos autores relevantes. A Google surge aqui como representante de um número mais vasto de sites que me forneceram esta possibilidade, visto disponibilizar, sem sombra de dúvida, o maior acervo. Pena é, aliás, que o acervo não seja ainda maior. Apesar de existirem em suporte digital no meio académico internacional, muitas outras edições estão inacessíveis a quem não tem credenciais académicas especiais. É difícil, para mim, perceber, aliás, porque são tão ciosos os meios académicos das autorizações necessárias para aceder a tais ficheiros. Não havendo qualquer ameaça criminosa discernível no acesso a fontes históricas, só posso considerar que tais restrições nascem de desejar manter a própria investigação restringida, o que me parece contraditório com o que deveria ser o espírito académico. Não há qualquer possibilidade sequer de tais edições poderem interessar pessoas que não sejam investigadores, pelo que a restrição a uma sanção institucional parece ter apenas o objetivo de afirmar o domínio dessas próprias instituições, em vez de promover o conhecimento, objetivo, afinal, para o qual, alegadamente, essas instituições foram constituídas. Desta forma, não posso deixar de me congratular pela existência de outras instituições, eventualmente com outros objetivos estranhos ao conhecimento, que possibilitam um acesso aberto às fontes históricas, permitindo investigações que as instituições para isso vocacionadas parecem pouco disponíveis para admitir e evidenciando o caráter obsoleto de certas formas de pensar e agir. O presente trabalho é uma versão corrigida e aumentada de uma dissertação de mestrado apresentada na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 2015. Gostaria de agradecer ao seu orientador, o Prof. Pedro Alves, a liberdade que me foi dada para seguir o meu próprio caminho, mesmo quando a sua discordância era óbvia, o que evidencia um espírito antidogmático correspondente às melhores tradições filosóficas e que nem sempre é característico do meio académico. Naturalmente, se o Prof. Pedro Alves não pode ser considerado responsável por qualquer das minhas afirmações na dissertação, a que deu o aval académico mas não a concordância generalizada, ainda menos pode sê-lo em relação às atuais adições e correções que nem sequer acompanhou. Gostaria, igualmente, de agradecer as palavras de incentivo não só do Prof. Pedro Alves, mas também do Prof. Leonel Ribeiro dos Santos, do Prof. Rui Moreira e do Prof. Adelino Cardoso, membros do júri que avaliou a dissertação. As adições da atual versão já tinham sido pensadas e, em parte, até escritas na altura não da defesa, mas até da entrega da dissertação, mas o tempo, as dimensões requeridas e a maturação de alguns assuntos não permitiram a entrega de uma versão mais finalizada. Porém, já na defesa foram referidas, sobretudo aquela que me parecia uma exigência intelectual incontornável, a de me confrontar com a hipótese leibniziana contemporânea à polémica do vínculo substancial, assim como com a importância que, de qualquer forma, tem a noção de organismo na filosofia leibniziana. Penso que algumas das adições e correções poderão satisfazer algumas das objeções do Prof. Adelino Cardoso, muito embora algumas só pudessem ser satisfeitas através da reescrita integral da dissertação, visto dizerem respeito à sua organização global. Porém, mesmo quando não tenha sido possível acomodar tais objeções, não deixou de ser imensamente útil a leitura crítica e atenta revelada pelo Prof. Adelino Cardoso que, certamente, influenciará a orientação futura das minhas investigações e que muito agradeço. Por fim, talvez se 5

possa considerar que as adições mais substanciais, as novas secções VI. 7 e VII. 1, são corpos estranhos à análise da polémica, mas a primeira era requerida para aferir da consistência das teses leibnizianas, ao passo que a segunda, a partir de um balanço mais genérico, procurou apontar novos caminhos para a continuação da investigação aqui empreendida, o que não me pareceu inadequado como parte de uma conclusão mais alargada.

Notas preliminares A citação das obras mais repetidamente utilizadas será substituída, nas notas de rodapé, por uma abreviatura constituída por uma a três letras maiúsculas (normalmente, duas), seguida do volume, caso exista mais do que um, indicado por um numeral romano sem menção da palavra "volume", e da página, indicada por um numeral árabe, exceto nos casos em que a paginação original seja romana, sem menção da palavra "página". Sempre que se considere adequado, a abreviatura em maiúsculas será ou antecedida de ou sucedida por indicações mais precisas relativas ao trecho, sem referência à edição, visto esta estar contemplada na abreviatura, para facilitar a consulta ao leitor que utilize outras edições. O autor será antes indicado, salvo raras exceções, até por, por vezes, como no caso dos textos de Clarke na polémica, não ser o mesmo da obra da citada, muito embora se reduza o seu nome ao apelido. A abreviatura acima referida será indicada entre parêntesis retos, em rodapé, na primeira citação e, após a entrada respetiva, na Bibliografia. Isto significa que a primeira citação será sempre completa. Nas notas de rodapé, se um título ou subtítulo reiteradamente citado for demasiado extenso, poder-se-á recorrer a uma abreviação do mesmo, encerrada com reticências. Diversos são os textos que surgem em diversas edições e é possível que nem sempre se tome a mesma edição como referência (por exemplo, a edição Gerhard de Leibniz), mas tentou-se manter a congruência das referências salvo casos devidamente justificados por alguma particularidade.

6

I. Introduções 1. Introdução contextualizadora da polémica entre Leibniz e Clarke Esta é uma dissertação histórico-filosófica. Não pretende extrapolar conclusões para debates relativos à atual ciência ou filosofia, não pretende decidir quem teve razão, não pretende exaltar, nem denigrir seja quem for, não pretende tomar partidos. Pretende compreender uma polémica que marcou um período da história do pensamento e, para compreendê-la, recorre aos textos e às obras dos envolvidos, cronologicamente mais próximos da polémica, visto corresponderem mais fielmente ao pensamento que os autores manifestaram, nem sempre de forma muito clara, nesta querela. É essa falta de clareza, aliás, que mais obriga à contextualização, por vezes estendida para lá dos autores envolvidos, mas sempre motivada pelas referências feitas por esses mesmos autores. Para compreender a polémica e os autores, a dissertação examina a consistência das suas argumentações, até porque ela é testada e atacada pelos argumentos da parte contrária, mas isso não significa qualquer filiação numa das partes, até porque o fará em ambos os sentidos. Não considera, porém, que ignorar certos temas e certas linhas de argumentação simplesmente por se considerarem, atualmente, menos relevantes, possa contribuir para compreender o pensamento destes autores. Tal implicaria uma visão truncada do pensamento da época e destes autores, uma perda de sentido de boa parte das suas teses e a redução de boa parte dos seus argumentos a um espantalho dos originais. Por isso, esta dissertação tentará ser tão abrangente quanto lhe for possível, considerando todos os temas, todas as teses e todos os argumentos da polémica. A polémica entre Gottfried Leibniz e Samuel Clarke decorreu entre Novembro de 1715 e Novembro de 1716, tendo sido terminada abruptamente pela morte de Leibniz. Foi iniciada por uma parte de uma carta dirigida por Leibniz à princesa de Gales, Carolina, esposa de Jorge Augusto, rei de Inglaterra a partir de 1727, herdeiro da casa de Hannover, à qual Leibniz estava ligado desde 1676. Embora tenha aí tido uma imensa variedade de tarefas ao longo dos 40 anos de serviço, começando, aliás, pela de bibliotecário, a principal foi, desde 1678, a de conselheiro. Nessa carta, Leibniz acusava de decadência (s’affaiblit extrêmement) a religião natural inglesa, exemplificando a tese com hipóteses ou teorias de Locke e seus seguidores e, sobretudo, de Newton, nas quais, supostamente, se admitia o caráter corporal da alma ou de Deus. 1 A esta acusação, acrescentava outra dirigida a Newton e seus seguidores, na qual visava a própria teoria da gravitação universal, alegadamente minimizadora da obra divina, por não a conseguir explicar a não ser por um concurso sobrenatural.2 Tendo a princesa solicitado a resposta dos visados (Locke havia morrido em 1704, não sem antes ter menosprezado a primeira versão das críticas de Leibniz aos seus Ensaios), em vez de Isaac Newton, em tempos correspondente de Leibniz, respondeu à 1

Gottfried Wilhelm Leibniz, ed. C. I. Gerhard, Leibnizens mathematische Schriften, Berlin (1º e 2º vols.), Halle (3º a 7º), A. Asher (iniciais), H. W. Schmidt (restantes), 1849-1863 [G], Vol. VII, Streitschriften zwifchen Leibniz und Clarke. 1715. 1716., p. 352, 1º escrito, §§ 1-3: "Il semble que la religion naturelle même s'affoiblit extremement. Plusieurs font les ames corporelles, d'autres font Dieu luy même corporel. M. Locke et ses sectateurs doutent au moins, si les ames ne sont materielles, et naturellement perissables. M. Newton dit que l’Espace est l'organe dont Dieu se sert pour sentir les choses." 2 Leibniz, Streitschriften..., 1º escrito, § 4, G, VII, 352: "Monsieur Newton et ses sectateurs ont encore une fort plaisante opinion de l'ouvrage de Dieu. Selon eux, Dieu a besoin de remonter de temps en temps sa Montre. Autrement elle cesseroit d'agir. Il n'a pas eu assés de veue pour en faire un mouvement perpetuel. Cette Machine de Dieu est même si imparfaite selon eux, qu'il est obligé de la décrasser de temps en temps par un concours extraordinaire, et même de la raccommoder, comme un horloger son ouvrage ; qui sera d'autant plus mauvais maistre, qu'il sera plus souvent obligé d'y retoucher et d’y corriger."

7

acusação, claramente em sua defesa (e um pouquinho de Locke 3 ), Samuel Clarke (1675-1729), clérigo anglicano que há muito se dedicava à filosofia natural e metafísica, enfileirado nos newtonianos pelo menos desde o início do século. A sua muito newtoniamente anotada tradução latina do Tratado de física do cartesiano Jacques Rohault, muito embora tenha sido publicada, pela primeira vez, em 1697, só foi profusamente adornada com as refutações newtonianas a partir da edição de 1710.4 Este tratado servia de manual de física na universidade e as suas anotações muito contribuíram para a aceitação e implementação de uma física newtoniana até aí muito mal compreendida pela generalidade do meio académico. 5 Porém, já em 1695 havia defendido os pontos de vista newtonianos no âmbito das provas académicas e, embora não se conheça exatamente a evolução da sua relação com Newton (até porque o facto de terem morado próximo durante muito tempo fez com que não haja qualquer correspondência entre eles), foi seu amigo íntimo, tendo sido constante e marcante a influência do mentor. É admissível que algumas das formulações teológicas na polémica lhe sejam próprias, mas é ele próprio que afirma que os pontos de vista que está a defender são os de Newton, muito embora, na sua edição da polémica, tente escudar essa afirmação em passagens dos textos de Newton. De qualquer forma, eram, na altura, bem conhecidas as conferências de Boyle de 1704 e 1705, a primeira das quais seria um dos alvos da crítica desenvolvida por Hume nos Diálogos sobre Religião Natural,6 a polémica em torno de uma obra de Henry Dodwell que também envolveu Anthony Collins,7 e a sua obra de 1712 sobre a Trindade,8 que lhe valeu o envolvimento numa polémica mais vasta e uma queixa de que teve de se defender, no âmbito da Igreja Anglicana, em 1714.9 Porém, é a própria princesa de Gales que, na carta onde envia as segundas réplicas de Clarke, afirma: “Não se engana de todo quanto ao odor das respostas; não são escritas sem o conselho do Cavaleiro Newton que eu gostaria que se reconciliasse consigo. Não sei se quererá consentir, mas o Abade Conti e eu própria erigimo-nos mediadores; e será uma pena que dois tão grandes homens como vós e ele se afastem devido a mal-entendidos.”10 No mínimo, nada há na polémica, escrito por Clarke, que 3

Clarke distingue as simples dúvidas de Locke dos seus seguidores, a que chama materialistas, que pouco ou nada teriam aprovado dos escritos de Locke para além dos seus erros, na sequência da polémica de 1706 acerca da imortalidade da alma e do batismo, onde se destacou o lockiano Anthony Collins. Cf. Clarke, Streitschriften..., 1ª réplica, § 2, p. 5, G, VII, 353: "That Mr. Locke doubted whether the Soul was immaterial or no, may justly be suspected from some Parts of his Writings: But herein he has been followed only by some Materialists, Enemies to the Mathematical Principles of Philosophy; and who approve little or nothing in Mr. Locke’s Writings, but his Errors." 4 Cf. E. J. Aiton, The Vortex theory of Planetary Motions, New York/London, American Elsevier Inc./Macdonall, 1972 [VT], pp. 71-72, o que se pode verificar facilmente, comparando: Jacobi Rohaulti, trad. lat. e notas Samuel Clarke, Physica, Secundâ Editione, Londini, Jacobi Knapton, 1702; com a: Editio Quarta, Londini, Jacobi Knapton, 1718. 5 J. P. Ferguson, An Eighteenth Century Heretic: Dr. Samuel Clarke, Kineton, The Roundwood Press, 1976 [EH], pp. 6-7. 6 David Hume, Dialogues concerning Natural Religion, ed. Norman Kemp Smith; tr. port. Álvaro Nunes, Diálogos sobre a Religião Natural, Lisboa, Edições 70, 20059. 7 Samuel Clarke, A letter to Mr. Dodwell, 6ª edição, London, James and John Knapton, 1731 [LD]. 8 Samuel Clarke, The Scripture-Doctrine of the Trinity, 2nd. ed., London, James Knapton, 1719. [ST] 9 Samuel Clarke in Account of the late proceedings in convocation relating to Dr. Clarke’s writings about the Trinity, 2nd. ed., London, John Baker, 1714. 10 John M. Kemble, State Papers and Correspondence illustrative of the Social and Political State of Europe from the Revolution to the Accession of the House of Hanover, London, John W. Parker and son, 1857 [SP], carta da Princesa de Gales para Leibniz de 10/30 de Dezembro de 1715, p. 535: "Vous ne vous eté point trompe à lodeur des reponce ; elles ne sont pas ecrit sans lavie du Chev : Neuthon, que ie vousderais racomodé avec vous. Je ne scais sy vous y voulez consantir, mais l'abbe condy et moy nous

8

não tivesse recebido o assentimento de Newton. A dar crédito a Brewster, esta parceria terá sido combinada na corte inglesa na sequência de uma solicitação do rei, a quem Leibniz não agradava particularmente, feita a Newton, que teria ficado encarregado dos aspetos mais matemáticos, deixando as formulações mais estritamente filosóficas a cargo de Clarke. 11 Não existindo questões propriamente matemáticas na polémica, poder-se-ia pensar que esta divisão não se aplicasse a esta correspondência, mas é o próprio Brewster que, um pouco adiante, refere a existência de rascunhos de Newton das teses afirmadas por Clarke.12 Esta dupla13 intermediação entre Leibniz e Newton justifica-se no quadro das relações muito degradadas entre os dois, provocado pela polémica relativa à descoberta do cálculo diferencial. Embora latente desde 1697 ou até mesmo antes, esse conflito atingiu o seu ponto alto em 1711-12, por causa de uma queixa de Leibniz à Royal Society, da qual era membro desde 1673, relativamente à acusação de plágio de John Keill (1708).14 Sendo Newton presidente da Royal Society desde 1703, não admira que em 1712 a Royal Society se declare favorável à tese de Keill, que era, de facto, a de Newton. É possível, aliás, considerar esta polémica uma das suas ramificações, visto a carta inicial poder ser uma reação à notícia recebida, através de uma carta do Abade Conti, 15 do relatório anónimo de Newton 16 referente não só ao processo relativo à questão do cálculo, mas também concluído com uma comparação entre as duas filosofias. Pior ainda, os empregadores de Leibniz, a casa de Hannover, que mudam a sua corte, em peso, para Londres em 1714, mostram, claramente, o desejo de se harmonizar com a cultura britânica, tendo muito pouco interesse em hostilizar a sua maior figura científica e a sua instituição científica mais prestigiada. Pelo contrário, o nous avons erigée an midyateurs, et il sera a plaindre que deu aussy grands homes que vous et luy fussié desvny pour des mesandanties." 11 David Brewster, Memoirs of the Life, Writings and Discoveries of Sir Isaac Newton, Edinburgh/London, Thomas Constable/Hamilton, Adams, 1855 [ML], Vol. II, Chap. XXII, pp. 285-286: "These views of Leibnitz having become the subject of conversation at court, where Newton and Locke were in high esteem, the king, who never seems to have had much affection for his countryman, expressed a wish that Sir Isaac Newton would draw up a reply in defence of his philosophy, as well as of his claim to be the original inventor of Fluxions. It was accordingly arranged that Newton should undertake the mathematical part of the controversy, while Dr. Clarke was entrusted with the defence of the English philosophy." 12 Brewster, ML, II, 287. Aliás, nesta mesma página, Brewster refere-se à assistência astronómica de Newton, quando não existiram também questões astronómicas. Em ambos os casos, Brewster deverá estar a referir-se, no todo ou na parte, a questões cosmológicas. 13 Ou tripla, a pensar em Conti que acabará por ser rejeitado por Leibniz, comparando-o a um camaleão; cf. André Robinet, ed., Correspondance Leibniz-Clarke, Paris, Presses Universitaires de France, 1957 [CLC], carta de Leibniz para a Princesa de Gales de 12 de Maio de 1716, p. 75: "La maniere d'agir de l'Abbé Conti, a contribué à mes soubçons. Elle est un peu irreguliere à mon egard, et je le luy ay fait sentir par une reponse aussi seche que sa lettre, mais cela n'importe gueres. Il ne paroist pas d'avoir des principes fixes et ressemble au cameleon, qui prend (dit-on) la couleur des choses qu'il touche." É notório que Leibniz se sentirá cada vez mais acossado, até porque a metáfora camaleónica se poderia aplicar também à princesa, o que o levará a procurar ainda outros intermediários, como Rémond (vide carta de Leibniz para Arnold de 5 de Junho de 1716, Robinet, CLC, 102), e outros apoios, através de múltipla correspondência. 14 Richard S. Westfall, Never at Rest - A Biography of Isaac Newton, New York, Cambridge University Press, 1980, 20th. pr. 2010 [NR], pp. 715-718. 15 A carta é de 12/7/1715, mas seguiu, juntamente com outras duas cartas, com uma carta de Remond de 18/10/1715: G, III, 654-5. É fácil ver a sequência das datas. 16 Isaac Newton, Opera quae exstant omnia, Londini, Johannes Nichols [OO], Tomus quartus, 1782, Recensio, pp. 450-495; Isaac Newton, "Account of the Book entituled Commertium Epistolicum", in A. Rupert Hall, Philosophers at War – The Quarrel Between Newton and Leibniz, Cambridge, Cambridge University Press, 1980, 2002[PW], pp. 263-314.

9

velho conselheiro da casa de Hannover vê-se relegado, nos últimos anos da sua vida, para uma posição secundária, provavelmente visto como um incómodo, não só, mas também por causa das posições tomadas contra Newton nos domínios científico, metafísico e teológico. No último verão da vida de Leibniz, durante um período de visita do rei à Alemanha, o velho filósofo terá de suportar o redobrar dos sarcasmos de um senhor 17 que, porventura, ao contrário dos seus antecessores, nunca o terá respeitado. Além deste contexto, é conhecida a aversão de Newton a qualquer contestação, revelada desde bastante cedo. Já em 1672/73, tanto Hooke como Huygens, a propósito da teoria newtoniana da refração, criticam-lhe a falta de referência a causas fisicamente inteligíveis,18 crítica semelhante a várias que se encontram na polémica com Leibniz – o que provoca, em ambos os casos, respostas desabridas, juntamente com a manifestação da intenção de se demitir da Royal Society, acabando numa declaração ao Secretário da mesma Royal Society, manifestando a sua intenção de não ser mais solícito em assuntos de Filosofia. 19 Ora, neste caso, Newton até tinha avançado com uma hipótese especulativa, a da natureza corpuscular da luz. Foi o facto de lhe atacarem a consistência desta conceção que provocou a irritação de Newton, sobretudo porque este considerava que o que sustentava a sua teoria das cores era os factos experimentalmente verificados e não qualquer hipótese especulativa. 20 De qualquer forma, em 1675, voltava a apresentar uma Hipótese na Royal Society sobre a natureza da luz e a sua relação com o éter. Além disso, nos seus escritos alquímicos, em diversas cartas e até nas suas obras-primas, quer explícita (por exemplo, nas queries), quer implicitamente (alguns casos serão, aliás, considerados aqui), não faltam hipóteses especulativas. Ressaltam destes episódios acerca da luz dois aspetos que se tornarão característicos do pensamento de Newton: uma certa dificuldade em aceitar responder a objeções metafísicas; e uma insistência na fundamentação factual das suas teorias científicas, consideradas certezas não hipotéticas,21 sem necessidade de quaisquer hipóteses quanto 17

Leibniz, carta para a Princesa de Gales de 18 de Agosto de 1716, CLC, 120. Aliás, na mesma página, refere-se uma passagem com o mesmo teor, três dias anterior, de uma carta para Rémond. Esse período prolongou-se, aliás, para lá da morte de Leibniz, o que não impediu (ou até terá provocado) a ausência de toda a corte no seu funeral: cf. Maria Rosa Antognazza, Leibniz – An Intellectual Biography, New York, Cambridge University Press, 2009 [IB], p. 545. 18 Rob Iliffe, Newton: A Very Short Introduction, Oxford, New York, Oxford University Press, 2007 [NV], p. 50. 19 Newton, Carta para Oldenburg de 23/6/1673 in J. Edleston, Correspondence of Sir Isaac Newton and Professor Cotes,including letters of other eminent men, London e Cambridge, John W. Parker e John Deighton, 1850 [CC], p. 252: "I must, as formerly, signify to you y t I intend to be no further sollicitous about matters of Philosophy. And therefore I hope you will not take it ill if you find me cease from doing any thing more in yt kind, or rather yt you will favour me in my determination by preventing so far as you can conveniently any objections or other philosophical letters that may concern me." Aliás, tal intenção é reafirmada ainda em 5/12/1674 e a atitude será reiterada, ao longo da vida, em diversos contextos. 20 E. g., Newton, Carta para Oldenburg de 7/1672, OO, IV, 320-1: "The theory which I propounded, was evinced to me, not by inferring, it is thus, because it is not otherwise; that is, not by deducing it only from a confutation of contrary suppositions, but by deriving it from experiments concluding positively and directly. […] And therefore I could wish all objections were suspended taken from hypotheses," admitindo apenas objeções de teor experimental. Esta, como diversas passagens desta altura, 1672/3, mostra como as declarações do final dos Principia são resultado de uma decisão estratégica bem mais antiga de separar o que considerava matematicamente e/ou factualmente certo do que considerava incerto, hipotético e especulativo, e de, tanto quanto possível, só dar a conhecer publicamente o primeiro conjunto, de forma a evitar controvérsias ou, caso surgissem, dar uma resposta matemática ou experimentalmente demonstrativa e definitiva, não vendo qualquer interesse nas disputas intelectuais que não fosse, eventualmente, o de derrotar os adversários (ou quem julgava como adversários). 21 Newton, Carta para Oldenburg, OO, IV, 310, preferindo, aliás, que fossem consideradas especulações fúteis e vazias a meras hipóteses: "Sed alio tamen consilio proposueram, & nihil aliud continere videtur

10

às causas dos fenómenos e, por isso, não podendo ser desmentidas por quaisquer especulações e objeções que se tecessem acerca dessas causas. É, pois, decorrente do seu comportamento habitual que Newton não queira responder diretamente a Leibniz, muito embora, como anteriormente, nunca deixe de estar por detrás das réplicas dos seus partidários ou dos textos publicados anonimamente (tática, aliás, também abundantemente usada por Leibniz), influenciando as respostas nos bastidores. Só o facto de, em 1715, estar já plenamente consagrado no mundo científico (com um poder não só científico, mas político, em virtude da sua posição como Master of Mint, em detrimento de Leibniz que, apesar da sua recente publicação da Teodiceia, tendia a tornar-se uma figura esquecida ou menosprezada, ao menos no mundo britânico e na sua própria casa empregadora22, já nem sequer tendo a importância diplomática que, em tempos, teve), chegaria para Newton não se dignar a responder a Leibniz diretamente. 23 É verdade que Newton acabou por deixar o anonimato na questão do cálculo, mas apenas porque a isso foi instado por um corpo diplomático que pretendia persuadir 24 e, mesmo assim, só através, novamente, de interposto correspondente.25 Além disso, os temas suscitados, desde a primeira carta, por Leibniz, dificilmente não levariam a uma discussão metafísica, duplamente repudiável por Newton: por ser discussão e por ser metafísica. Pior ainda, Newton tendia a considerar que este desvio da disputa do cálculo era uma de várias manobras de diversão levadas a cabo por Leibniz para não tratar frontalmente a questão factual da prioridade. 26 Finalmente, mesmo outros eventuais temas, como os teológicos ou os cosmológicos, incluindo o próprio âmbito das causas físicas, também não eram assuntos que Newton discutisse fora de um núcleo restrito. Por seu lado, Leibniz mostrou-se sempre disponível para uma boa polémica e as maiores obras filosóficas nasceram da discussão com outros filósofos: o Discurso de Metafísica e a correspondência subsequente com Arnauld, os Novos Ensaios com Locke e a Teodiceia com Bayle. De facto, no caso dos Novos Ensaios, até debatia, mesmo que o outro não quisesse debater. Embora haja semelhanças assinaláveis entre os dois filósofos (Leibniz e Newton), nomeadamente na polivalência demonstrada e na multiplicidade dos seus interesses, a forma oposta como encaram o debate filosófico é uma das diferenças mais marcantes. Outra diferença reside num aspeto antes referido: o facto de Leibniz julgar poder rejeitar afirmações de Newton que supostamente tinham fundamento factual, através de alegadas inconsistências conceptuais (as “noções incompletas”, as abstrações, as ficções quiméricas imaginárias ou impossíveis, as noções superficiais vulgares, as coisas meramente ideais, etc.) ou da não satisfação de certos princípios arquitetónicos (razão suficiente, indiscerníveis, plenitude, quàm proprietates quasdam lucis, quas jam inventas probare haud difficile existimo, & quas si non veras esse cognoveram, pro futili & inani speculatione mallem repudiare, quàm pro meâ hypothesi agnoscere." Cf. .James Gleick, Isaac Newton, New York, Pantheon Books, 2003; New York, Vintage Books, Random House, 20046, e.g., p.86. 22 De facto, ainda em 1714, era recebido com todas as honras, pelo imperador, em Viena, era conselheiro privado de Pedro o Grande e produzia resumos da sua filosofia para a comitiva do Duque de Órleans e para o mais famoso general imperial. Cf. Yvon Belaval, Études leibniziennes, s/l, Éd. Gallimard, 19769 [EL], pp. 190-191. 23 Isso não significa que Newton não tenha dado enorme atenção às polémicas. De facto, elas tornaram-se quase uma obsessão. Cf., e. g., Westfall, NR, 769. Aliás, a maior preocupação com o rigor na 2ª ed. dos Principia está diretamente ligado com a oposição a Leibniz (ibidem, 734) e o próprio prefácio de Cotes tem como principal alvo o mesmo (ibidem, 749). 24 Westfall, NR, 775. 25 Newton, "Additamenta Commercii Epistolici...", Carta de 26 Fev. 1715/6 para Conti, OO, IV, 597-600; também não são diretamente dirigidas a Leibniz as "Observations...", OO, IV, 607-14. 26 Westfall, NR, 773, referindo-se a um rascunho de carta dirigido a Des Maizeaux.

11

continuidade, etc.). Ambas as diferenças serão decisivas, primeiro, nos estranhos rituais da polémica, através de dois intermediários, e, segundo, na forma como se desenrola a própria polémica. A polémica constará de dez cartas, cinco de cada um dos interlocutores. O primeiro segmento da carta de Leibniz à princesa cabe, com facilidade, numa página impressa. A última carta do mesmo Leibniz ocupa algumas dezenas de páginas. Leibniz escreve em francês e Clarke responde em inglês. Ainda agastado com a polémica do cálculo, poder-se-á perguntar se o otimismo leibniziano terá sido abalado por estes últimos meses de polémica, abandonado pelos seus patronos, aparentemente alinhados com os adversários. A própria princesa de Gales que cada uma das partes procurava captar para o seu lado,27 cedeu cada vez mais, ao longo do período da polémica, aos argumentos de Clarke e Newton.28 Leibniz declarava-se orgulhoso de não ter seguidores e desprezava o espírito sectário. Parece ter pagado o preço dessa independência no final da sua vida. Certamente, estas polémicas não terão ajudado a sua saúde e, pelo menos, a sua tendência a tudo conciliar terá ficado abalada. Mas, afinal, tratou-se de uma pequena dissonância dramática que contribuiu para o efeito total da obra e da pessoa, tal como Leibniz pensava poder-se explicar o mal no conjunto da obra da criação. Tanto esta como a polémica do cálculo terão continuações após a morte de Leibniz, protagonizadas por diversos autores, incluindo o próprio Newton, mas já não será intenção desta dissertação abordá-las. 2. Introdução temática A polémica entre Gottfried Leibniz e Samuel Clarke é conhecida, habitualmente, sobretudo pelas conceções relativas ao espaço e ao tempo. Associadas a estas conceções, a conceção do conjunto do universo, sua relação com Deus, as conceções mecanicistas, a noção de força, a conceção do movimento, o vazio e os átomos, etc., são normalmente mencionadas. Admitindo que todos esses temas são muito importantes, existem vários outros que são abordados, como, por exemplo, o confronto entre a metafísica e os princípios matemáticos da filosofia (como Clarke chama à filosofia 27

Vide D. Bertoloni Meli, "Caroline, Leibniz, and Clarke" in Journal of the History of Ideas, University of Pennsylvania Press, 19997, Vol. 60, No. 3, pp. 469-486 [CL]. 28 Por exemplo, Carolina defende Conti explicitamente contra Leibniz e confessa-se encantada com os experimentos newtonianos, já se mostrando mais favorável ao vazio contra o qual estava, antes, prevenida: Robinet, carta da Princesa de Gales para Leibniz de 15/26 de Maio de 1716, CLC, 77-78: "tout piqué que vous me paroissez étre contre luy, permettez moy que je vous dise que cet homme a une veritable envie de rechercher la verité, et se conforme le plus qu'il luy semble à la raison. Je vous prie d'employer votre temps plus utilement que de disputer ensemble, et le moins qu'on en parlera, le mieux cela se fera. Je suis dans les experimens, et suis de plus en plus charmée des couleurs. Je ne puis m'empêcher d'étre un peu prévenue pour le vuide ; mais je crois que l'on ne se comprend pas, puisque ce que ces Messieurs icy appellent ainsi ne doit pas signifier rien, mais une chose qui n'est pas matiere." Já antes, Carolina havia se mostrado, em função dos argumentos de Clarke, inclinada para o vazio, pedindo a Leibniz, na carta seguinte, que a salve da conversão: Robinet, carta da Princesa de Gales para Leibniz de 24 de Abril de 1716, CLC, 66: "leur [de Conti e Clarke] savoir et manière de raisonner claire de Mr Clarke m'a presque fait me convertir pour le vuide"; carta da Princesa de Gales para Leibniz de 4/15 de Maio de 1716, CLC, 67: "Demain nous verrons les expérimens des couleurs et un que j'ay vu pour le vuide, m'a presque convertie. C'est votre affaire, Monsieur, de me ramener dans le droit chemin, et je l'attends pour la réponse que vous ferez à Mr. Clarke." Leibniz não deixa, aliás, de expressar a mágoa pela perda: Robinet, carta de Leibniz para a Princesa de Gales de 2 de Junho de 1716, CLC, 80: "Si V. A. S. elle-même avoit moins d'estime pour mes sentimens qu'auparavant, j'en serois faché, mais je n'aurois aucun sujet de m'en plaindre." Posteriormente, anuncia uma leitura "acompanhada" por Conti e Clarke da Teodiceia: Robinet, carta da Princesa de Gales para Leibniz de 15/26 de Junho de 1716, CLC, 107: "Je la [a Teodiceia] relirai en présence de Mr. Conti et du docteur Clarke, avec votre permission."

12

natural de Newton29), a distinção entre o necessário e o contingente, o princípio da razão suficiente e outros a ele supostamente ligados, a religião natural e o materialismo, a comunicação entre a alma e o corpo, a conceção da alma, a liberdade quer divina, quer humana, a predestinação e a providência, a transcendência ou imanência de Deus, a natureza dos milagres, a conceção dos animais e das plantas, etc., alguns deles tão centrais como a temática pela qual é mais conhecida a correspondência. Todas estas temáticas são, habitualmente, consideradas como acessórias e tratadas quase como notas de rodapé das questões estritamente cosmológicas. Esta dissertação adota um ponto de vista contrário e tenta compreender as teses cosmológicas a partir das teses metafísicas e teológicas mais especificamente associadas à problemática da liberdade e das noções a ela associadas (escolha, indiferença, determinação, necessidade, fatalidade, presciência, predestinação, providência, a noção de agente, etc.). Quanto às razões para o ponto de vista adotado, o da liberdade, pelo lado de Leibniz, a busca de uma solução para o problema da liberdade promove a distinção gnosiológica entre verdades de razão e de facto, por sua vez assente na distinção da lógica modal do necessário e do contingente; encontra seu princípio determinante no princípio que Leibniz aplica a toda a metafísica e física, o princípio da razão suficiente; a própria conceção da liberdade divina constitui, pelo menos argumentativamente, o cerne das objeções às conceções do espaço e do tempo absolutos, assim como ao atomismo; explica, como opção divina, a necessidade de uma criação, em vez de admitir um mundo eterno, ao contrário da infinitude em extensão; compatibiliza-se, através do princípio da razão, com a predeterminação e a harmonia pré-estabelecida; é inerente à conceção leibniziana da alma regida pelas causas finais que fornece o modelo para a explicação de todas as substâncias simples, as mónadas, fonte das forças primitivas que, ao menos segundo a crença expressa por Leibniz, estão na origem das forças derivativas observáveis nos fenómenos; 30 finalmente, liberdade, predeterminação, harmonia e conservação da força conjugam-se na conceção da providência divina que se expressa numa natureza tão perfeita quanto é possível ao criado e no peculiar mecanicismo leibniziano. Pelo contrário, essa mesma liberdade, entendida em Clarke de forma algo diferente31, sustenta a intervenção casuística de Deus no mundo, quer na sua criação no espaço e no tempo, quer no seu atomismo, quer na eventual limitação do universo, quer na explicação da teoria da gravitação e na compatibilização desta com o mecanicismo, sustenta uma conceção de Deus e da sua Providência muito mais envolvida nos assuntos mundanos, e sustenta a conceção realista da comunicação entre a alma e o corpo, etc. Por outro lado, por antinomia, as acusações mútuas de fatalismo e necessitarismo são também testemunhos da importância decisiva da problemática da liberdade. 29

Clarke, Streitschriften..., e. g., 1ª réplica, § 1, G, VII, 353. Como será tratado no final da dissertação, esta ligação entre as mónadas e as forças derivativas mantém-se mesmo se for suposto, como ocorreu a determinado momento da correspondência com Des Bosses, um estatuto intermédio, o das substâncias compostas, às quais seriam atribuídos os poderes passivos e ativos primitivos, assim como a matéria prima e a forma substancial, antes atribuídos direta e exclusivamente às mónadas: cf. Leibniz, Carta para Des Bosses de 19 de Agosto de 1715, G, II, 506. Para a conceção anterior, entre imensas referências possíveis, e. g., Leibniz, Carta para De Volder de 20 de Junho de 1703, G, II, 250-2; Leibniz, Essais de Théodicée, 1ª parte, § 87, G, VI, 150 (esta última referência apenas para que se veja a atribuição direta de força à alma, ou melhor, a identificação da alma como força). 31 Mas longe da diametral oposição que, por vezes, parece ser sustentada por alguns comentadores, incluindo os melhores como Alexandre Koyré, From the Closed World to the Infinite Universe, Baltimore, The John Hopkins Press, 1957 [IU], p. 245: “The Newtonian [...] concludes the freedom of God, that is, the non-necessity of a determining reason or motive for God's choice and action.” Como se verá, a posição de Clarke está longe de ser esta, muito embora também não chegue à completa determinação de Leibniz. 30

13

Desta forma, a noção de liberdade tem um papel estruturante neste projeto, até porque parece tê-lo, igualmente, na polémica entre os autores. Além disso, a importância da problemática excede, claramente, os limites desta correspondência. Poderia não ser assim, poderia ter ocasionalmente adquirido essa importância no debate e até de forma acidental, por surgir em diversos contextos de debate, sem ser nunca fulcral e não tendo unidade nesses vários aparecimentos. Mas seria estranho que assim acontecesse, tendo em conta a importância da temática em ambos os autores. Em Leibniz, constitui o primeiro dos dois grandes labirintos da razão 32, influindo também, como se pode ver nesta polémica, decisivamente no segundo. Aliás, até mesmo a determinação física está dependente da liberdade, visto a necessidade física estar fundada na necessidade moral 33 . Por outro lado, no conjunto da obra de Clarke, é também evidente o destaque dado à temática da liberdade, nomeadamente no empenho que mostra no ataque às teses de Hobbes, Spinoza e, mais tarde, Collins. Assim, a questão da liberdade é central na obra destes autores e é central na polémica – não é, por isso, de admirar que Leibniz se refira, durante a correspondência, várias vezes, à Teodiceia, cujo tema está inequivocamente centrado no primeiro dos labirintos acima referidos. Não se pretende, naturalmente, que a polémica só se possa entender a partir das conceções de liberdade; apenas se procura aqui estabelecer a legitimidade da abordagem adotada, alicerçada, ainda por cima, no próprio pensamento dos autores. Aliás, muitas vezes, outras abordagens inserem-se num tratamento histórico-filosófico e histórico-científico que extravasa completamente a abordagem destes autores e subordina a polémica a enfoques que, do ponto de vista do tratamento dos próprios textos em si, se revelam restritivos. Porém, é bem sabido como, particularmente no caso de Leibniz, se encontram com facilidade interpretações globais, através de um enfoque redutor (panlogismo, pan-matematismo, pampsiquismo, pandinamismo, subordinação a motivações teológicas, etc.), devido ao facto de, no sistema leibniziano, como no “universo” leibniziano, tudo se espelhar, tudo conspirar e permitir que tudo possa, praticamente, ser tratado partindo de seja o que for. Não é pretensão deste trabalho acrescentar mais um “pan-qualquer-coisa” à longa lista de interpretações da filosofia leibniziana. Por outro lado, também há que reconhecer que, do lado de Clarke, apesar da extrema importância da conceção de liberdade no seu pensamento, este pensamento é tributário do de Newton, onde as conceções estritamente físicas parecem ter o primado. Por isso, o enfoque adotado surge como um ponto de vista a partir do qual se pretende, eventualmente, aclarar aspetos menosprezados por outras abordagens e conseguir uma diferente compreensão até dos temas mais exaustivamente tratados por outras perspetivas, sem que isso implique pretender negá-las, alterá-las ou superá-las. Como Leibniz, acredita-se aqui que a multiplicidade de pontos de vista contribui não só para uma realidade mais rica, mas também para uma compreensão mais complexa e completa. E é um ponto de vista possível sobre esta polémica que aqui é oferecido.

32

Leibniz, Essais de Théodicée, Préface, G, VI, 29: "Il y a deux Labyrinthes fameux, où nostre raison s’égare bien souvent : l´un regarde da grande Question du Libre et du Nécessaire, sur-tout dans la production et dans l’origine du Mal ; l’autre consiste dans la discussion de la continuité, et des indivisibles, qui en paroissent les Éléments, et où doit entrer la considération de l’infini." Aliás, poder-se-á perguntar porque é que numa polémica que se julga centrada nos temas físicos, o labirinto que aparentemente mais lhe diz respeito, o do contínuo, nem sequer é nomeado. 33 Leibniz, Essais de Théodicée, Discours de la Conformité de la Foi avec la Raison, § 2, G, VI, 50: "La nécessité physique est fondée sur la nécessité morale, c’est-à-dire sur le choix du sage, digne de sa sagesse."

14

II. Questões preliminares Parecendo desmentir o caráter central do tema da liberdade na polémica, o mesmo só surge sob a forma de poder de escolha de uma causa inteligente e livre, no seu quarto escrito, ou seja, na segunda réplica de Clarke 1 . Porém, esta primeira referência surge como resposta à exemplificação utilizada por Leibniz do princípio da razão suficiente, através de uma passagem de Arquimedes onde este recorre ao exemplo da balança equilibrada por pesos iguais2. Ora, é verdade que Leibniz não está a falar da liberdade ou do poder de escolha, mas da passagem da Matemática à Física. Porém, acrescenta que tal princípio é demonstrativo não só na Física, em especial na Dinâmica, mas também em toda a Metafísica ou Teologia Natural. Além disso, nota-se alguma precaução de Leibniz na entrada neste tema, visto Clarke já o ter acusado, nesta altura, de a sua conceção do mundo como uma grande máquina que não precisa de manutenção levar a uma conceção fatalista3. Leibniz prefere responder a esta objeção através da sabedoria divina, tal como havia já feito no trecho da carta à princesa Carolina que havia iniciado a polémica, ao atacar a necessidade do Deus de Newton arranjar a sua máquina de tempos a tempos 4 . Segundo o próprio Clarke, na sua edição de 1717 5 , Leibniz estaria a referir-se à tradução latina da Ótica feita pelo próprio Clarke em 1706, onde surgem algumas Questões que não estavam na 1ª edição6 e que só viriam a ser publicadas em inglês já após a morte de Leibniz, em 1717, onde Newton admite a necessidade de Deus reformar o Universo devido aos estragos na ordem original causados pelos cometas7, mas onde, por sinal, pretendia apresentar um argumento de desígnio, em relação aos movimentos planetários, contrário à “fatalidade cega”. Além disso, também pode ser referida a esta questão a crítica à incapacidade do Deus de

1

Clarke, Streitschriften..., 2ª réplica, § 1, G, VII, 359-360. Leibniz, Streitschriften..., 2º escrito, § 1, G, VII, 356: "C'est pourquoy Archimede, en voulant passer de la Mathematique à la Physique dans son livre de l’Equilibre, a eté obligé d'employer un cas particulier du grand Principe de la raison suffisante ; il prend pour accordé, que s'il y a une balance où tout soit de même de part et d'autre, et si l’on suspend aussi des poids egaux de part et d'autre aux deux extrêmités de cette balance, le tout demeurera en repos. C'est parce qu’il n'y a aucune raison pourquoy un coté descende plustost que l'autre." Este exemplo é, aliás, recorrente em Leibniz, cf. G, VII, 301: "Exempli causa Archimedes vel quisquis est autor libri de aequiponderantibus assumit, duo pondera aequalia eodem modo in libra respectu centri vel axis sita esse in aequilibrio. Quod corollarium est tantum hujus nostri Axiomatis, cum enim omnia utrinque eodem modo se habere ponantur, nulla ratio fingi potest, cur in alterutram potius partem libra inclinetur. Hoc autem assumto caetera jam mathematica necessitate ab Archimede demonstrantur."; e G. W. Leibniz, ed. Louis Couturat, Opuscules et fragments inédits, Paris Presses Universitaires de France, 1903; Hildesheim, Georg Olms Verlagsbuchhandlung, 1966 [OF], p. 519. 3 Clarke, Streitschriften..., 1ª réplica, § 4, G, VII, 734: "The Notion of the World’s being a great Machine, going on without the Interposition of God, as a Clock continues to go without the Assistance of a Clockmaker; is the Notion of Materialism and Fate, and tends (under pretense of making God a Supra-mundane Intelligence) to exclude Providence and God’s Government in reality out of the World." 4 Leibniz, Streitschriften..., 1º escrito, § 4, G, VII, 352. 5 Samuel Clarke, A Collection of Papers, Which passed between the late Learned Mr. Leibnitz, and Dr. Clarke, In the Years 1715 and 1716, Relating to the Principles of Natural Philosophy and Religion, London, James Knapton, 1717 [CP], p. 5. 6 Isaac Newton, Opticks, London, Sam Smith & Benj. Walford, 1704. 7 Isaac Newton, Optics, Qu. 31, OO, IV, 261-262: "For while comets move in very excentrick orbs in all manner of positions, blind Fate could never make all the planets move one and the same way in orbs concentrick, some inconsiderable irregularities excepted, which may have risen from the mutual actions of comets and planets upon one another, and which will be apt to increase, till this system wants a reformation." Aliás, um pouco adiante, fala de uma forma mais geral da reforma das várias partes do universo, através da sua presença universal no famoso uniforme sensorium, ou seja, o espaço. 2

15

Newton dar à sua máquina um movimento perpétuo8. Porém, o facto de Leibniz não ter respondido à acusação de fatalismo no seu segundo escrito não o impediu de devolver o insulto de caírem nos defeitos dos materialistas e, adiciona Leibniz, de Spinoza, ao conceberem Deus sem a sabedoria necessária para fazer uma máquina que funcione por si mesma sem qualquer necessidade de um concurso extraordinário9. Mas, perguntar-se-á, de onde retira Clarke, num exemplo da Física, a associação do poder de escolha divino aos pratos de uma balança? A questão é que Clarke já conhecia a parte publicada da obra de Leibniz. Clarke, na passagem já citada da primeira réplica, acusa que se pretende fazer de Deus uma Inteligência Supramundana. Ora, Leibniz ainda não tinha usado semelhante expressão na correspondência. Porém, embora surja apenas por uma vez, a conceção de Leibniz estava expressa na já então publicada Teodiceia, atacando, tal como nesta passagem da polémica, a conceção (estoica, neste caso) da alma do mundo: “Este erro nada tem em comum com o nosso dogma: Deus, segundo nós, é intelligentia extramundana, como Martianus Capella lhe chama, ou antes, supramundana.”10 Aliás, na passagem onde reage, não deixa de passar ao ataque, adotando um tom ameaçador, perante a possibilidade de se estar a defender Deus como uma Intelligentia Mundana, ou seja, a Alma do Mundo. 11 Mas de que Clarke conhecia, ao menos, parte da obra de Leibniz e, sobretudo, a Teodiceia, não parece haver grande dúvida – aliás, Leibniz chega a queixar-se de Clarke fingir desconhecer a obra12. É verdade que exatamente a mesma menção surgia no já referido relatório anónimo newtoniano do balanço feito pela Royal Society quanto à polémica do cálculo. 13 Na verdade, o teor da passagem antecipa várias das acusações feitas na polémica, naturalmente porque Newton tinha conhecimento das críticas que Leibniz havia feito em diversa correspondência. É sabido que Newton tinha um exemplar da versão original da Teodiceia, mas não se sabe quando o terá adquirido. 14 Mas não parece crível que, tendo em conta os interesses de ambos, Newton tivesse lido a Teodiceia e Clarke não. Além disso, o facto de ter dificuldades no francês, onde terá sido ajudado por Fatio de Duillier mais de vinte anos antes,15 até poderia propiciar que Clarke o lesse antes, muito embora tivesse o interesse adicional, evidenciado pelas dobras no exemplar, de saber o que os adversários dele diziam. Mas, quanto mais não fosse devido à polémica do cálculo, é natural que ambos a conhecessem, muito embora, como se verá, os interesses teológicos de Newton estivessem pouco inclinados para obras metafísicas. De qualquer forma, por alturas do início da polémica, a princesa Carolina declarava a Leibniz que a pessoa mais indicada para traduzir a Teodiceia para inglês era Clarke. Mas, ao desencadear-se a polémica, acabou por abandonar essa possibilidade devido à alegada demasiada oposição de Clarke às posições de Leibniz, 8

Newton, ibidem., OO, IV, 258. Leibniz, Streitschriften..., 2º escrito, §§ 6-7, G, VII, 357-8. 10 Leibniz, Essais de Théodicée, 2ª parte, § 217, G, VI, 248: "Cette erreur n’a rien de commun avec nostre dogme ; Dieu, selon nous, est Intelligentia extramundana, comme Martianus Capella l’appelle, ou plustost supramundana." 11 Leibniz, Streitschriften..., 2º escrito, § 10, G, VII, 358. 12 E. g., Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 76, G, VII, 409: "Comme si l’on ignoroit que j’ay refuté cela solidement dans la Theodicée." 13 Newton, Recensio, OO, IV, 495; Newton, "Account...", PW, 314: "The one teaches that God (the God in whom we live and move and have our Being) is Omnipresent; but not as a Soul of the World, but INTELLIGENTIA SUPRAMUNDANA, an Intelligence above the Bounds of the World; whence it seems to follow that he cannot do any thing within the Bound of the World, unless by an incredible Miracle." 14 I. Bernard Cohen, "Newton's Copy of Leibniz's Théodicée: With Some Remarks on the Turned-Down Pages of Books in Newton's Library" in Isis, Vol. 73, Nº 3, 19829, pp. 410-414. 15 Betty Jo Teeter Dobbs, The Foundations of Newton's Alchemy, New York, Cambridge University Press, 1975, re-issued 2008 [FA], p. 22. 9

16

exatamente por ser newtoniano.16 Ora, voltando à questão inicial deste parágrafo, Clarke sabe bem que Leibniz subscreveu na Teodiceia a comparação de Pierre Bayle17 da alma com uma balança, exatamente a propósito da questão da liberdade.18 Aliás, um pouco adiante, sugeria uma comparação alternativa, com o ar fortemente comprimido dentro de um frasco de vidro, ou seja, com novo fenómeno físico. Ora, é a estas imagens de Leibniz que Clarke se está a referir, e aproveita a referência ao exemplo de Arquimedes para tentar provocar a resposta, provavelmente para o tentar mostrar como fatalista ou, como se diria hoje, determinista. 1. Contraposição entre metafísica e os princípios matemáticos da filosofia Porém, qual é a conceção de Leibniz que Clarke pretende atacar neste passo? A conceção leibniziana do livre-arbítrio ancora-se nas suas conceções lógicas e gnosiológicas fundamentais, nomeadamente a distinção entre verdades de razão e verdades de facto (ou o inverso, a distinção é, pelo menos, estimulada pelo objetivo de sustentar a liberdade). Quando evoca o exemplo arquimediano da balança, fá-lo para distinguir os dois domínios, muito embora os não denomine desta forma em toda a polémica. Procura, aliás, negar, implicitamente, que os simples princípios matemáticos, como afirmava Clarke, pudessem sustentar as conceções de Newton (que alega próximas do materialismo), visto o fundamento das matemáticas ser o princípio da contradição ou da identidade que, segundo Leibniz, demonstra todas as matemáticas. Ora, ao se passar para a física, ou seja, para o domínio dos factos, é necessário recorrer a outro princípio, o princípio da razão suficiente.19 Antes de avançar, porém, no caminho para o esclarecimento da temática central, importa esclarecer um pouco o contexto temático das passagens referidas. A réplica leibniziana da balança advém da discussão iniciada na mensagem inicial pela sua acusação vaga já referida de enfraquecimento da religião natural, ligada a uma acusação implícita, mas mais concretizada, de materialismo. Ora, na sua primeira resposta, Clarke pretendeu que os princípios matemáticos da filosofia de Newton fossem a melhor defesa da religião natural e o melhor ataque contra os materialistas.20 Deixando para mais tarde 16

Roger Ariew, ed., intr., G. W. Leibniz and Samuel Clarke Correspondence, Indianapolis/Cambridge, Hackett Publishing Company, Inc., 2000, Introduction, xi, citando as passagens das cartas de Carolina. 17 Pierre Bayle, Réponses aux questions d'un provincial, Rotterdam, Reinier Leers, 1706, Tome Second, Ch. CXXXIX. 18 Leibniz, Essais de Théodicée, 3ª parte, § 324, G, VI, 308-9: "Monsieur Bayle remarque fort bien luy même que la liberté d’indifference (telle qu’il faut admettre) n’exclut point les inclinaisons, et ne demande point l’equilibre. Il fait voir assés amplement [...] qu’on peut comparer l’ame à une balance, où les raisons et les inclinations tiennent lieu de poids. Et selon luy, on peut expliquer ce qui se passe dans nos resolutions, par l’hypothese que la volonté de l’homme est comme une balance qui se tient en repos, quand les poids de ses deux bassins sont egaux, et qui penche tousjours, ou d’un côté ou de l’autre, selon que l’un des bassins est plus chargé. Une nouvelle raison fait un poids superieur, une nouvelle idée rayonne plus vivement que la vieille, la crainte d’une grosse peine l’emporte sur quelque plaisir ; quand deux passions se disputent le terrain, c’est tousjours la plus forte qui demeure la maitresse, à moins que l’autre ne soit aidée par la raison, ou par quelque autre passion combinée. Lorsqu’on jette les marchandises pour se sauver, l’action [...] est volontaire et libre ; et cependant l’amour de la vie l’emporte indubitablement sur l’amour du bien. Le chagrin vient du souvenir des biens qu’on perd ; et l’on a d’autant plus de peine à se determiner, que les raisons opposées approchent plus d’egalité, comme l’on voit que la balance se determine plus promtement, lorqu’il ya une grande difference entre les poids." 19 Leibniz, Streitschriften..., 2º escrito, § 1, G, VII, 355-6. A distinção ainda é aflorada no 3º escrito, § 1, G, VII, 363; e, implicitamente, no 5º escrito, § 130, G, VII, 420. 20 Clarke, Streitschriften..., 1ª réplica, § 1, G, VII, 353: "This is to be principally ascribed to the false Philosophy of the Materialists, to which the Mathematick Principles of Philosophy are the most directly repugnant. That Some make the Souls of Men, and others even God himself to be a Corporeal Being; is also very true: But those who do so, are the great Enemies of the Mathematical Principles of Philosophy; which Principles, and which alone, prove Matter, or Body, to be the smallest and most inconsiderable Part

17

a questão daquilo em que Clarke se apoia para considerar que esses materialistas são os maiores inimigos da ciência newtoniana, a oposição ao materialismo é sustentada pelo facto das teorias newtonianas defenderem que a matéria ou o corpo é a menor e mais irrelevante parte do Universo. Não é ainda a altura de abordar a estranha conceção que aqui contrapõe ao materialismo o próprio Universo material, naturalmente por não ser apenas concebido como tal, mas é importante referir a pretensão de resolver questões metafísicas e, porventura, teológicas, através de meras teorias físicas. A isto, Leibniz riposta não apenas com a implícita distinção já referida entre verdades de razão e verdades de facto, mas com a afirmação de que não só os referidos princípios matemáticos da filosofia não são opostos aos do materialismo, sendo antes os mesmos (embora com uma estranha exceção que altera tudo, a de admitirem substâncias imateriais21), mas defendendo que só os princípios metafísicos se opõem a eles. A esse propósito evoca, aliás, as autoridades primitivas de Pitágoras, Platão e Aristóteles, mas pretendendo que só na sua Teodiceia (a primeira de várias referências) tais princípios foram estabelecidos demonstrativamente. 22 Percebe-se, aliás, pelo conjunto da passagem que, se existe algum domínio subordinado a outro, é o da física à metafísica e não o inverso. Ambas são postas sob a tutela conjunta do princípio da razão suficiente e deste depende a demonstração quer num domínio, quer no outro. Porém, enquanto a metafísica é toda demonstrada por ele, apenas uma parte da física, eventualmente mais ligada à metafísica, o é. Trata-se da parte respeitante à noção de força, por sinal considerada independente dos princípios matemáticos.23 Esta discussão que se pode considerar preliminar, é muito mais relevante do que aparenta à primeira vista. Em primeiro lugar, considerar a noção de força independentemente de princípios matemáticos colide diretamente com a noção apresentada por Newton nos Principia, em que a força é reduzida a um conceito puramente matemático, suspendendo o juízo quanto a possíveis causas ou razões físicas. 24 Assim foi, aliás, herdada pela ciência newtoniana posterior, uma noção meramente operativa. Em segundo lugar, Clarke tenta distanciar a filosofia natural newtoniana do materialismo, assim como, esclarecer-se-á posteriormente, do fatalismo e do necessitarismo, procurando aproximar o seu rival ao menos destes últimos, ao passo que Leibniz tenta fazer o inverso. Ora, isso é o que acontece na réplica seguinte de Clarke. Justifica esse distanciamento pelo facto de, segundo a ciência newtoniana, o atual estado de coisas não se poder explicar materialmente, mecanicamente ou até sem uma causa inteligente e livre. Ver-se-á bem mais adiante porquê. Porém, para a temática atual, a passagem mais relevante é aquela que parece condescender com a abordagem leibniziana, admitindo que, quanto à justeza do nome, se se seguem demonstrativamente of the Universe." Cf. a mesma pretensão que será seguida na polémica e já aqui aflorada, precisada com a teoria da gravitação, em Clarke, LD, "A Third Defence of an Argument...", 301-302. 21 Leibniz, Streitschriften..., 2º escrito, § 1, G, VII, 355: "Les Mathematiciens Chrestiens admettent encor des substances immaterielles." 22 Leibniz, ibidem, G, VII, 355: "Pythagore, Platon et en partie Aristote, en ont eu quelque connoissance, mais je pretends les avoir établis demonstrativement, quoyqu'exposés populairement dans ma Theodicée." 23 Leibniz, ibidem, G, VII, 356: "Or par ce principe seul, [...] se demonstre la Divinité, et tout le reste de la Metaphysique ou de la Theologie Naturelle, et même en quelque façon les Principes Physiques independans de la Mathematique, c'est à dire les Principes Dynamiques ou de la Force." 24 Isaac Newton, Philosophiæ naturalis..., Def. VIII, OO, II, 5-6: "Mathematicus duntaxat est hic conceptus: nam virium causas & sedes physicas jam non expendo. [...] Voces autem attractionis, impulsus, vel propensionis cujuscunque in centrum, indifferenter & pro se mutuò promiscuè usurpo; has vires non physicè sed mathematicè tantùm considerando. Unde caveat lector, ne per hujusmodi voces cogitet me speciem vel modum actionis, causamve aut rationem physicam, alicubi definire; vel centris (quæ sunt puncta mathematica) vires verè & physicè tribuere; si fortè aut centra trahere, aut vires centrorum esse dixero."

18

consequências metafísicas dos princípios matemáticos, então estes poder-se-ão chamar princípios metafísicos.25 Admitir que os princípios matemáticos se possam considerar metafísicos é qualquer coisa que muito newtoniano poderia considerar herético, mas, na verdade, Clarke procura, simplesmente, minimizar a questão. Porém, fá-lo de tal forma que mostra uma clara distinção da conceção leibniziana, muito embora pareça pretender não haver diferença: admite a possibilidade de consequências metafísicas e não propriamente pontos de partida metafísicos. Nitidamente, Leibniz não quis deixar a questão em branco, até porque se relaciona com a distinção fundamental que será tratada em seguida. Daí que, no terceiro escrito, distinga o domínio da matemática do da metafísica. “Os princípios matemáticos são aqueles que consistem nas matemáticas puras, como números, figuras, aritmética, geometria. Mas os princípios metafísicos dizem respeito às noções mais gerais, como, por exemplo, a causa e o efeito.”26 Mas Clarke responde a isso passivamente, aceitando a distinção e apenas defendendo que se podem aplicar raciocínios matemáticos às questões físicas e metafísicas.27 Perante esta desistência, esta falta de comparência na discussão, Leibniz parece deixar cair o assunto. Mas este passo revela muito da falta de à vontade de Newton com a ligação da sua ciência com eventuais fundamentos metafísicos – e é de facto Newton que está aqui em causa, porque são os seus “princípios matemáticos” que aqui estão em causa e porque não seria certamente o metafísico Clarke que estaria pouco à vontade neste assunto. Dando o modelo da atitude da ciência newtoniana dos séculos seguintes, ignora-se a relação com a metafísica e, frente às objeções óbvias de Leibniz, tenta-se menorizar o assunto, sublinhar a sua falta de interesse, reduzindo-o a uma mera disputa verbal, até condescendendo com os significados que Leibniz quer dar aos termos, o que ainda mais reforça a sua suposta pouca importância. Mas o assunto não é pouco importante e a atitude newtoniana estará na raiz do futuro divórcio entre filosofia e ciência. Admite explicitamente apenas consequências metafísicas, quando muitas das suas noções mais basilares são de caráter metafísico. Apesar de Leibniz parecer deixar cair a questão, visto não poder discordar da aplicação de raciocínios matemáticos a assuntos físicos e metafísicos a que Clarke acabou por reduzir a questão, muito embora essa aplicação, em Leibniz e em matéria metafísica, seja apenas analógica, volta a insistir na sua conceção muito diferente do papel da metafísica e da sua “substituição” por raciocínios matemáticos. Fá-lo, em primeiro lugar, atacando as teses newtonianas relativas aos átomos e ao vazio28; em segundo, 25

Clarke, Streitschriften..., 2ª réplica, § 1, G, VII, 359: "The Mathematical Principles of Philosophy show on the contrary, that the State of Things (the Constitution of the Sun and Planets) is such as could not arise from any thing but an Intelligent and Free Cause. As to the Propriety of the Name, so far as Metaphysical Consequences follow demonstratively from Mathematical Principles, so far the Mathematical Principles may (if it be thought fit) be called Metaphysical Principles." 26 Leibniz, Streitschriften..., 3º escrito, § 1, G, VII, 363: "Les Principes Mathematiques sont ceux qui consistent dans les Mathematiques pures, comme nombres, figures, Arithmetique, Geometrie. Mais les Principes Metaphysiques regardent des notions plus generales, comme par exemple la cause et l’effect." 27 Clarke, Streitschriften..., 3ª réplica, § 1, G, VII, 367: "This relates only to the Signification of Words. The Definitions here given, may well be allowed; And yet Mathematical Reasonings may be applyed to Physical and Metaphysical Subjects." 28 Leibniz, Streitschriften..., 4º escrito, § 4, G, VII, 372: "C'est un argument contre les Atomes, qui ne sont pas moins combattus que le vuide, par les principes de la veritable metaphysique"; ibidem, P. S., G, VII, 378: "Il n'y aura point de Vuide du tout ; car la perfection de la matiere est à celle du Vuide, comme quelque chose à rien. Il en est de même des Atomes. Quelle raison peut on assigner de borner la nature dans le progrès de la subdivision ? Fictions purement arbitraires, et indignes de la vraye Philosophie. Les raisons qu’on allegue pour le Vuide, ne sont que des Sophismes."; ibidem, 5º escrito, § 26, G, VII, 395: "La Philosophie superficielle, comme celle des Atomistes et Vacuistes, se forge des choses que les

19

desconsiderando a abordagem estritamente matemática 29 ; e, em terceiro lugar, defendendo a força demonstrativa dos seus princípios arquitetónicos inequivocamente metafísicos30 . Na última passagem referida, a queixa de ordinariamente se reduzir a metafísica a simples doutrina dos termos, não se indo à discussão das coisas, como se a metafísica ficasse no domínio estritamente verbal, faz lembrar a forma como Clarke evitou esta discussão. Embora Leibniz não reduza todas as questões à fundamentação metafísica, mesmo a própria ciência natural, muito embora exija rigor analítico e corroboração empírica (prévia e consequencial), não dispensa o exame da compatibilidade com os princípios arquitetónicos, 31 e isso será notório ao longo de toda a polémica. Pelo contrário, Clarke e Newton nunca percebem como se podem pôr em causa descrições que consideram estritamente factuais com princípios genéricos, exatamente porque o seu modelo de ciência dispensa o último componente referido do modelo leibniziano. É verdade que o entendimento quer do rigor analítico envolvido na noção leibniziana de mathesis, quer da corroboração empírica, poderá ser diferente em Clarke e Newton, mais restrito no primeiro caso, mais decisivo no segundo, mas não será aí, ao menos nesta correspondência, que mais se notará a diferença entre modelos. De qualquer forma, no que se refere ao segundo aspeto, haverá a oportunidade de ver uma pretensão semelhante ao experimentum crucis exigido por Hooke,32 na sequência da abordagem de Bacon,33 e que Newton reivindicava haver feito nas experiências relativas à refração da luz descritas em 72, 34 sobretudo na abordagem da questão do espaço e movimento absolutos. Mas o fundamental é que a metafísica de Clarke subordinar-se-á constantemente à física de Newton, ao passo que a física de Leibniz é regulada e, ao menos parcialmente, determinada pela sua metafísica, e esta parece ser a grande razão não só da incompatibilidade dos modelos, mas da própria impossibilidade de entendimento. A pretensão leibniziana de rejeitar determinadas teorias com base na aplicação de princípios genéricos e na inexistência de explicação causal é explicitamente contestada por Clarke na polémica, 35 seguindo a regra até nesta raisons superieures n’admettent point"; ibidem, 5º escrito, § 29, G, VII, 395-6: "La Fiction d'un Univers materiel fini, qui se promene tout entier dans un espace vuide infini, ne sauroit étre admise. [...] Ce sont des imaginations des Philosophes à notions incompletes, qui se font de l'espace une realité absolue." 29 Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 29, G, VII, 396: "Les simples Mathematiciens qui ne s'occupent que du jeu de l'imagination, sont capables de se forger de telles notions ; mais elles sont détruites par des raisons superieures." 30 Leibniz, Streitschriften..., 4º escrito, § 5, G, VII, 372: "Ces grands principes de la raison suffisante et de l'identité des indiscernables, changent l'etat de la Metaphysique, qui devient reelle et demonstrative par leur moyen : au lieu qu'autres fois elle ne consistoit presque qu'en termes vuides."; 5º escrito, § 26, G, VII, 395: "La Metaphysique a eté traitée ordinairement en simple doctrine des termes, comme un dictionnaire philosophique, sans venir à la discussion des choses. [...] J'espere que mes demonstrations feront changer de face à la philosophie, malgré les foibles contradictions telles qu'on m’oppose icy." 31 François Duchesneau, Leibniz et la méthode de la science, Paris, Presses Universitaires de France, 19933, e.g., entre muitas outras referências possíveis, p. 165. 32 Newton, Carta para Oldenburg de 11/7/1672, OO, IV, 341. 33 Francis Bacon, Novum Organum, Academia de Toulouse, The Latin Library, eLiber, 2002 [NO], II, XXXVI, pp. 216-230; trad. ingl. William Wood, London, William Pickering, 1844, pp. 219-237; embora o termo usado seja instantia crucis. O facto de os exemplos de Bacon serem tão "newtonianos" (marés, rotação ou não da Terra, aumento da gravidade com a proximidade, magnetismo, solidez da lua, movimento dos projéteis, até mesmo as explosões e o fogo), devido, em certos casos, à sua superação, deveria ter levado Newton a duvidar do caráter definitivo da "verificação" crucial, mas é difícil ser prudente (como era aconselhado por Boyle) quando se está sedento de certezas. 34 Newton, Carta para Oldenburg de 2/1671-2, OO, IV, 295-308. A referência ao experimentum crucis está na p. 298. 35 Clarke, Streitschriften..., 5ª réplica, §§ 118-123, G, VII, 439.

20

dissertação já reiterada, mas explicitamente estabelecida nos Principia, da rejeição de hipóteses não sustentadas experimentalmente, 36 de acordo com a sua conceção da filosofia experimental. 37 Displicentemente, Clarke até admite que outros tentem descobrir as causas, mas com claras dúvidas que o consigam de forma não hipotética, o que acaba por minimizar essa busca. 2. A distinção entre verdades de razão e verdades de facto Ainda antes de considerar os princípios arquitetónicos referidos, parece adequado esclarecer a distinção que motivou, da parte de Leibniz, o exemplo da balança, distinção apresentada apenas implicitamente, como já foi dito, na polémica. Há que salientar que existe uma considerável oscilação na linguagem de Leibniz a propósito da distinção entre verdades de razão e verdades de facto. Na Teodiceia, bem após a distinção já ter sido estabelecida, ela parece ser repentinamente anulada, incluindo ambos os domínios nas verdades de razão: aí, as verdades de razão são divididas em eternas, absolutamente necessárias, de forma que o oposto implica contradição, e positivas, relativas às leis que Deus decidiu dar à natureza ou destas dependentes. Estas últimas, por sua vez, são ou a posteriori ou a priori, sendo estas resultantes da consideração da conveniência que levou à sua escolha, ou seja, o princípio da razão suficiente. 38 Esta é, aliás, a passagem já citada que subordina a necessidade física à necessidade moral. Porém, no terceiro apêndice da obra, Leibniz afirma que distingue as verdades de razão das verdades de facto, muito embora faça depender estas do confronto com as verdades de razão e da redução às perceções imediatas.39 Esta dependência das verdades de razão parece estar em contradição direta com a distinção apresentada nos Novos Ensaios. Esta última versão da distinção parece, aliás, a que melhor antecipa a de David Hume, entre relações de ideias e questões de facto 40 , muito embora não possa ser a que Hume conhecia. 41 Na primeira distinção esclarecida entre as verdades necessárias e as verdades de facto, Leibniz atribui a fonte das primeiras ao entendimento e a fonte das segundas às experiências dos sentidos e às perceções confusas estritamente internas.42 Pouco adiante, as verdades necessárias são 36

Isaac Newton, Philosophiæ naturalis..., Liber tertius, Regulæ Philosophandi, OO, III, 4. Isaac Newton, Philosophiæ naturalis..., Liber tertius, Scholium generale, OO, III, 174: isto apesar de, logo a seguir, no parágrafo final, avançar, de forma vaga, com uma hipótese. 38 Leibniz, Essais de Théodicée, Discours…, § 2, G, VI, 50: "Les verités de la Raison sont de deux sortes ; les unes sont ce qu’on appelle les Verités Eternelles, qui sont absolument necessaires, en sorte que l’opposé implique contradiction ; et telles sont les Verités, dont la necessité est logique, metaphysique, ou geometrique, qu’on ne sauroit nier sans pouvoir estre mené à des absurdités. Il y en a d’autres qu’on peut appeller Positives, parce qu’elles sont les loix qu’il a plû à Dieu de donner à la nature, ou qu’elles en dependent. Nous les apprenons, ou par l’experience, c’est à dire à posteriori, ou par la raison, et a priori, c’est à dire par des considerations de la convenance, qui les ont fait choisir." 39 Leibniz, Essais de Théodicée, Remarques sur le livre de l’origine du mal publié depuis peu en Angleterre, § 5, G, VI, 404: "Je distingue entre les Verités de Fait et les Verités de Raison. Les verités de fait ne peuvent être verifiées que par leur confrontation avec les verités de raison, et par leur reduction aux perceptions immediates qui sont en nous." 40 David Hume, Enquiry concerning the Human Understanding, 1748; ed. Selby-Bigge, Clarendon Press, 1909, 1972; Oxford University Press, 1975; trad. port. Artur Morão, Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, Edições 70, 19851, Sec. IV, pp. 31-32. 41 Existe, aliás, quem defenda a origem leibniziana da distinção: Vadim Vasilyev, “Hume: Between Leibniz and Kant (The role of pre-established harmony in Hume’s philosophy)” in Hume Studies, University of Western Ontario, Volume XIX, Number 1, 1993 4, pp. 20-21. Presume-se que não podia conhecer os Novos Ensaios, visto estes só terem sido publicados em 1765. O artigo aqui referido toma como referência a Teodiceia. 42 Leibniz, Nouveaux essais sur l’entendement humain, L. I, Ch. I, § 1, G, V, 67: "Il n'a pas assez 37

21

afirmadas como inatas, ao contrário das verdades de facto estabelecidas pelas experiências. 43 Bem mais adiante, a existência dos seres reais contingentes é considerada uma questão (point) de facto ou de história, enquanto o conhecimento das possibilidades e das necessidades faz as ciências demonstrativas.44 Para complicar ainda mais, Leibniz distingue entre verdades primitivas, conhecidas por intuição, e derivativas, ambas podendo ser quer de razão, quer de facto, sendo o cogito afirmado como uma proposição de facto e, porém, uma verdade primitiva e inata, tal qual, aliás, os cogitata.45 Finalmente, ao referir a distinção entre proposições de facto e proposições de razão, considera que as primeiras se podem tornar gerais por indução ou observação.46 A aparente contradição entre verdades de facto que estão dependentes das verdades de razão e verdades de facto cuja fonte é estritamente empírica é esclarecida, porém, nos próprios Novos Ensaios de forma inteiramente análoga à passagem citada da Teodiceia. Está aqui em causa o problema da natureza do conhecimento na sua versão mais radical, aquela que é exposta, através dos argumentos da loucura e dos sonhos, por Descartes, por exemplo, nas Meditações. 47 Ora, Leibniz considera que o critério de verdade neste domínio reside na ligação dos fenómenos, utilizando a experiência de diferentes lugares, tempos e homens, mas garantida pelas verdades de razão.48 Também na Teodiceia, afirma que a ligação entre as perceções, através das “regras da matemática e outras verdades de razão”, é “o único meio de as distinguir das imaginações, sonhos e visões. Assim, a verdade das coisas fora de nós não poderia ser reconhecida senão pela ligação dos fenómenos. O criterion das verdades de razão ou que vêm das conceções distingué à mon avis l’origine des verités necessaires dont la source est dans l’entendement, d'avec celle des verités de fait qu'on tire des expériences des sens, et même des perceptions confuses qui sont en nous." 43 Leibniz, op. cit., § 5, G, V, 75: "Il est tousjours clair dans tous les estats de l’ame, que les verités necessaires sont innées et se prouvent par ce qui est interne, ne pouvant point estre establies par les experiences, comme on establit par là les verités de fait." 44 Leibniz, op. cit., L. III, Ch. V, §§ 2-3, G, V, 280: "L'existence reelle des Estres qui ne sont point necessaires, est un point de fait ou d’Histoire, mais la connoissance des possibilités et des necessités (car necessaire est dont l’opposé n'est point possible) fait les sciences demonstratives." 45 Leibniz, op. cit., L. IV, Ch. II, § 1, G, V, 342-8; para um segmento apenas referente ao cogito, Ch. VII, § 7, G, V, 391-2: "On peut tousjours dire que cette Proposition : j'existe, est de la derniere evidence, estant une proposition, qui ne sauroit estre prouvée par aucune autre, ou bien une verité immediate. Et de dire : je pense, donc je suis, ce n'est pas prouver proprement l’existence par la pensée, puisque penser et estre pensant est la même chose ; et dire : je suis pensant, est déja dire : je suis. Cependant vous pouvés exclure cette proposition du nombre des Axiomes avec quelque raison, car c’est une proposition de fait, fondé sur une experience immediate et ce n'est pas une proposition necessaire, dont on voye la necessité dans la convenance immediate des idées. [...] En tout cas on peut asseurer que c’est une verité primitive [...] c'est à dire, que c’est une des Enonciations premieres connues, ce qui s'entend dans l’ordre naturel de nos connoissances, car il se peut qu'un homme n’ait jamais pensé à former expressement cette proposition, qui luy est pourtant innée." 46 Leibniz, op. cit., L. IV, Ch. XI, §§ 13-14, G, V, 428: "Les propositions de fait aussi peuvent devenir generales en quelque façon, mais c’est par l’induction ou observation, de sorte que ce n’est qu'une multitude de faits semblables, comme lorsqu'on observe que tout vif argent s'evapore par la force du feu, et ce n’est pas une generalité parfaite, parcequ'on n’en voit point la necessité. Les propositions generales de raison sont necessaires, quoyque la raison en fournisse aussi qui ne sont pas absolument generales, et ne sont que vraisemblables, comme par exemple, lorsque nous presumons qu'une idée est possible, jusqu'à ce que le contraire se decouvre par un plus exacte recherche." 47 René Descartes, Oeuvres et Lettres, s/l, Gallimard, 1953, reimpr. Bruges, Gallimard, 19838 [OL], 1ª Med., pp. 268-269. 48 Leibniz, op. cit., L. IV, Ch. II, § 14, p. 336, G, V, 355: "La liaison des phenomenes, qui garantit les verités de fait à l’egard des choses sensibles hors de nous, se verifie par le moyen des verités de raison ; comme les apparences de l’Optique s'eclaircissent par la Geometrie." Ver também Ch. XI, §§1-10, p. 408, G, V, 426.

22

consiste num uso exato das regras da lógica.” 49 Numa outra passagem dos Novos Ensaios, afirma que “o fundamento da verdade das coisas contingentes e singulares reside no facto de os fenómenos dos sentidos estarem ligados precisamente como as verdades inteligíveis o exigem.”50 Em nenhuma destas declarações, porém, Leibniz faz depender as verdades de facto do princípio da razão suficiente. Na Monadologia, onde as verdades de raciocínio são opostas às de facto, na medida em que o necessário é oposto ao contingente, afirma-se que também se deve encontrar o princípio da razão suficiente para as verdades contingentes ou de facto, muito embora a análise das mesmas, em busca da razão, progrida ao infinito e tenha assim que ser encontrada fora da própria série, ou seja, em Deus.51 Assim, é esta infinidade que torna inacessível a generalidade do conhecimento dos factos ao meio a priori proporcionado pelo princípio da razão suficiente, a não ser de forma genérica pela dependência de Deus, obrigando ao recurso à experiência, incapaz, porém, de assegurar o conhecimento da mais elementar realidade sem a assistência das regras da lógica e suas derivadas. Mas essa forma genérica é extensamente utilizada por Leibniz para deduzir características do mundo a partir dos atributos divinos e, em especial, o da sua sabedoria. Além disso, na própria polémica, Leibniz defende, para lá da forma a priori, a associação do princípio com a filosofia experimental, utilizando-o de forma a posteriori.52 Ainda antes de se abordar o princípio da razão suficiente, a posição de Clarke, durante a polémica, relativamente a esta distinção, é a de uma permissão breve e seca.53 Porém, tal como se verá noutros casos, esta reserva não implica, no fundamental, discordância. Numa conferência famosa, a primeira de uma sequência de duas, proferida uma dúzia de anos antes do final desta correspondência, Clarke coloca claramente fora do Poder divino (Leibniz diria da Vontade, visto que o que está em questão é a possibilidade de escolha) as verdades de razão de Leibniz: “O Poder infinito atinge todas as coisas possíveis; mas não se pode dizer que se estenda ao funcionamento de alguma coisa que implique contradição: como que uma coisa possa ser e não ser ao mesmo tempo, que a mesma coisa possa ser feita e não ser feita ou ter sido e não ter sido, que duas vezes dois não devam fazer quatro ou que o que é necessariamente falso deva ser verdadeiro.”54 Embora esta posição não seja nova na época, mesmo entre os 49

Leibniz, Essais de Théodicée, Remarques..., § 5, G, VI, 404-5: "Pour juger si nos apparitions internes ont quelque realité dans les choses, et pour passer des pensées aux objects, mon sentiment est, qu’il faut considerer si nos perceptions sont bien liées entre elles et avec d’autres que nous avons eues, en sorte que les regles des Mathematiques et autres verités de raison y ayent lieu : en ce cas, on doit les tenir pour reelles, et je crois que c’est l’unique moyen de les distinguer des imaginations, des songes, et des visions. Ainsi la verité des choses hors de nous ne sauroit être reconnue que par la liaison des phenomenes. Le Criterion des Verités de Raison, ou qui viennent des Conceptions, consiste dans un usage exact des regles de la Logique." 50 G. W. Leibniz, Nouveaux Essais sur l’entendement humain, tr. port. Adelino Cardoso, Novos Ensaios sobre o Entendimento humano, Lisboa, Colibri, 1983 [NE], p. 278; cf. Leibniz, Nouveaux essais..., L. IV, Ch. IV, §§ 1-5, G, V, 373: "Le fondement de la verité des choses contingentes et singulieres est dans le succès, qui fait que les phenomenes des sens [s]ont liés justement comme les verités intelligibles le demandent." 51 Leibniz, La Monadologie, §§ 33-38, G, VI, 612-3. Vide, especialmente, § 36, G, VI, 612: "Mais la raison suffisante se doit aussi trouver dans les verités contingentes ou de fait." 52 Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 129, G, VII, 420: "Ce qui doit faire juger raisonnablement, qu’il [o princípio da razão suficiente] reussira encore dans les cas inconnus, ou qui ne devriendront connus que par son moyen, suivant la Maxime de la Philosophie experimentale, qui procede a posteriori ; quand même il ne seroit point d’ailleurs justifié par la pure raison ou a priori." 53 Clarke, Streitschriften..., 3ª réplica, § 1, p. 18, G, VII, 367. Ver II. 1, nota 27. 54 Samuel Clarke, A Demonstration of the Being and Attributes of God, London, James Knapton, 1705, X, p. 154 [DB]: "That infinite Power reaches all Possible things; but cannot be said to extend to the working any thing which implies a Contradiction: As, that a Thing should be and not be at the same time; that the

23

cartesianos (é o caso de Malebranche), é importante lembrar que não era a de Descartes.55 É talvez por causa da concordância que se limita a responder na abordagem inicial da questão, algo com que, como já se viu, Leibniz também concordaria: que os raciocínios matemáticos podem ser aplicados a questões físicas e metafísicas.56 Mais ainda, Clarke parece reduzir as verdades morais a verdades de razão, sendo antecedentes à própria vontade divina,57 o que, aliás, parece um pouco contraditório com a declaração inicial de que, na segunda conferência, não seria possível a força demonstrativa e a certeza matemática da primeira, mas apenas evidência moral. 58 Poder-se-á, porém, considerar que se esteja a referir a outros segmentos deste segundo discurso, mais baseados em autoridades que em demonstrações. Por fim, é importante, porém, para a compreensão daquele que surge, usualmente, como o tema central desta polémica, a natureza do espaço, salientar que Leibniz é claro a colocar quer este, quer o tempo, no domínio das verdades de razão, como coisas ideais e abstratas, e não como entidades concretas.59 Se nas passagens da same thing should be made and not be made, or have been and not have been; that twice two should not make four, or that That which is necessarily False, should be True." 55 E. g., Descartes, Lettre a Arnauld, 29/7/1648, OL, 1309-1310: "On ne doit dire d’aucune chose qu’elle ne peut pas être faite par Dieu ; étant donné que toute espèce de vrai et de bien dépend de sa toutepuissance, je n’oserais même pas dire que Dieu ne peut pas faire qu’une montagne soit sans vallée, ou qu’un et deux ne fassent pas trois ; mais je dis seulement qu’il m’a donné un esprit de telle nature que je ne saurais concevoir une montagne sans vallée ou une somme d’un et de deux qui ne serait pas trois, etc., et que de telles choses impliquent contradiction dans ma conception." Esta conceção é contestada por Malebranche diversas vezes. De forma direta, por exemplo, Nicolas Malebranche, De la Recherche de la Verité, 4ª ed., Amsterdam, Henry Desbordes, 1688, Tome II, pp. 380-381: Visto os homens não saberem “que les idées intelligibles qui font l’objet immediat de leur esprit, ne sont point créées, ils s’imaginent que les loix éternelles & les veritez immuables, ont établies telles par une volonté libre de Dieu : Et c’est ce qui a fait dire à M. Descartes, que a pû faire que [...] les trois angles du triangle ne fussent pas égaux a deux droits". A passagem continua, citando Descartes e concluindo que há uma ordem que Deus ama necessariamente e lhe é coeterna. Mas há muitas outras passagens. E. g., todo o esclarecimento da pág. 426 à 443 é dedicado ao tema. 56 Clarke, Streitschriften..., 3ª réplica, § 1, G, VII, 367. 57 Samuel Clarke, A Discourse concerning the Being and Attributes of God, the Obligations of Natural Religion, and the Truth and Certainty of the Christian Revelation, 10th. ed., London, H. Woodfall e outros, 1767, A Discourse concerning the Unchangeable Obligations of Natural Religion, and the Truth and Certainty of the Christian Revelation [DC], pp. 68-69: "As this Law of Nature is infinitely superior to all Authority of Men, and independent upon it, so its Obligation, primarily and originally, is antecedent also even to this Consideration, of its being the positive Will or Command of God himself. For, as the Addition of certain Numbers necessarily produces a certain Sum; and certain Geometrical or Mechanical Operations give a constant and unalterable Solution of certain Problems or Propositions: So, in moral Matters, there are certain necessary and unalterable Respects or Relations of Things which have not their Original from arbitrary and positive Constitution, but are of eternal Necessity in their own Nature. For example: As, in Matters of Sense, the reason why a Thing is visible, is not because 'tis Seen; but 'tis therefore Seen, because 'tis visible: So in Matters of natural Reason, and Morality, that which is Holy and Good [...] is not therefore Holy and Good, because 'tis commanded to be done; but is therefore commanded by God, because 'tis Holy and Good." Também, nas pp. 89-90, a lei não é só para as criaturas, mas para o próprio Deus. Por outro lado, a equiparação das questões morais às matemáticas e lógicas é múltiplas vezes reiterada, embora nem sempre de forma tão clara, quanto a este assunto, como, por exemplo, nestas passagens: Samuel Clarke, DC, 31-2, 40, 53-4. 58 Samuel Clarke, DC, 11: "the same demonstrative Force of reasoning, and even Mathematical Certainty, which in the main Argument was there easy to be obtained, ought not here to be expected; but that such moral Evidence, or mixt Proofs from Circumstances and Testimony, as most Matters of Fact are only capable of, and wise and honest Men are always satisfied with, ought to be accounted sufficient in the present Case." 59 Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 27, G, VII, 395: "Les parties du temps ou du lieu, prises en elles mêmes, sont des choses ideales ; ainsi elles se ressemblent parfaitement, comme deux unités abstraites. Mais il n'en est pas de même de deux Uns concrets, ou de deux temps effectifs ; ou de deux espaces

24

polémica, poderá haver algum equívoco quanto à sua natureza, nos Novos Ensaios, Leibniz não poderia ser mais claro quanto ao seu estatuto de verdade eterna60, aliás correspondente à extensão inteligível, como ideia inteligível de uma infinidade de mundos possíveis, em Malebranche61. Que neste estatuto do espaço, entre as verdades de razão, se encontra uma das grandes razões da discórdia entre Leibniz e Clarke, tornase evidente por uma nota da edição de 1717 desta polémica, em que Clarke faz, igualmente, uma distinção entre o abstrato e o concreto, só que para distinguir o espaço abstrato e mental do concreto e real, o immensum, a que Leibniz não reconhece existência concreta.62 3. O princípio da razão suficiente e seus derivados: Os princípios da plenitude, da identidade dos indiscerníveis e da conveniência O princípio da razão suficiente é, pela primeira vez, enunciado, de forma abreviada, na polémica, na passagem já referida onde Leibniz recorre à balança de Arquimedes: “nada acontece sem que haja uma razão porque isso seja assim em vez de ser de outra forma.”63 Será utilizado, nomeado ou suposto implicitamente, ao longo do remplis, c’est à dire, veritablement actuels." Tal estatuto, ao referir-se à pura possibilidade, já poderia ser percebido no 3º escrito, p. 743, G, VII, 363: "L'espace marque en termes de possibilité un ordre des choses qui existent en même temps, en tant qu’elles existent ensemble, sans entrer dans leur manieres d'exister particulieres." 60 Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XIII, § 17, G, V, 136: "C'est un rapport, un ordre, non seulement entre les existans, mais encor entre les possibles comme s'ils existoient. Mais sa verité et realité est fondée en Dieu, comme toutes les verités eternelles."; juntamente com o tempo, op. cit., Ch, XIV, § 26, G, V, 140: "Le temps et l'espace marquent des possibilités au delà de la supposition des existences. Le temps et l'espace sont de la nature des verités eternelles qui regardent egalement le possible et l'existant."; finalmente, referindo-se, em geral, ao infinito (esta última com uma referência aplicável a Newton, a da impossibilidade de chegar a esta noção por indução), op. cit., Ch, XVII, § 3, G, V, 145: "La consideration de l'infini vient de celle de la similitude ou de la même raison, et son origine est la même avec celle des verités universelles et necessaires. Cela fait voir comment ce qui donne de l'accomplissement à la conception de cette idée, se trouve en nous mêmes, et ne sauroit venir des experiences des sens, tout comme les verités necessaires ne sauroient estre prouvées par l'induction ny par les sens." Cf. Yvon Belaval, EL, 206-214. 61 Entre muitas outras referências possíveis, e. g., Nicolas Malebranche, Meditations Chrétiennes et Métaphysiques, nouv. ed., Lyon, Leonard Plaignard, 1707 [MC], p. 188; trad. port. Adelino Cardoso, Meditações Cristãs e Metafísicas, Lisboa, Ed. Colibri, 200312, Med. IX, 9, p. 114: "L’étenduë intelligible est éternelle, immense, nécessaire. C’est l’immensité de l’Etre Divin, entant qu’infiniment participable par la créature corporelle, entant que représentatif d’une matiére immense, c’est en un mot l’idée intelligible d’une infinité de mondes possibles." 62 Samuel Clarke, 5ª réplica, § 46, nota, CP, 303-305: "The principal Occasion or Reason of the confusion and inconsistencies, which appear in what most writers have advanced concerning the Nature of Space, seems to be This: that (unless they attend carefully,) men are very apt to neglect That Necessary distinction (without which there can be no clear Reasoning,) which ought always to be made between Abstracts and Concretes, such as are Immensitas & Immensum, & also between Ideas and Things, such as are The Notion (which is Within our own Mind) of Immensity and the real Immensity actually existing Without us." 63 Leibniz, Streitschriften..., 2º escrito, § 1, G, VII, 356: "Rien n’arrive, sans qu’il y ait une raison pourquoy cela soit ainsi plustost qu’autrement." Talvez, a forma mais clara do princípio surja nos Princípios da natureza e da graça: Leibniz, Principes de la Nature et de la Grace fondés en Raison, § 7, G, VI, 602: "Il faut s’elever à la Metaphysique, en nous servant du Grand principe, peu employé communement, qui porte que rien ne se fait sans raison suffisante, c’est à dire que rien n’arrive, sans qu’il soit possible à celuy qui connoitroit assés les choses, de rendre une Raison qui suffise pour determiner, pourquoy il en est ainsi, et non pas autrement. Ce principe posé, la premiere question qu’on a droit de faire, sera, Pourquoy il y a plustôt quelque chose que rien ? Car le rien est plus simple et plus facile que quelque chose. De plus, supposé que des choses doivent exister, il faut qu’on puisse rendre raison, pourquoy elles doivent exister ainsi, et non autrement." Há, porém, outras formulações alternativas interessantes como a que é enunciada em Leibniz, Essais de Théodicée, Remarques..., § 14, G, VI, 413-4:

25

debate, um imenso número de vezes, nas mais variadas situações. Sem penetrar ainda na sua utilização no tema central desta tese, ou seja, a liberdade e a escolha pelo critério do melhor, aliás só explicitada na derradeira carta,64 por motivos de organização da análise, cumpre fornecer uma panorâmica global da sua restante utilização por Leibniz. A sua utilização mais básica de todas, a que já se aludiu, como prova da existência de Deus, apenas é referida no final da polémica e como parte de um protesto contra a objeção à utilização exaustiva deste princípio.65 A primeira vez que é, implicitamente, aplicado a um objeto específico, através da sabedoria divina, é para rejeitar o vazio e afirmar o máximo de matéria possível, o que resulta na afirmação, também implícita, de um dos princípios dedutíveis do princípio da razão suficiente, o princípio da plenitude.66 Após ter ignorado uma contra objeção interessante por parte de Clarke, referindo, contudo, nesse contexto, explicitamente o princípio da razão suficiente, empreende, no quarto escrito, uma demonstração da plenitude e infinitude da matéria que faz lembrar a versão original anselmiana do argumento ontológico.67 Posteriormente, na apostila associada, desde a edição de Clarke, ao quarto escrito, reafirma o argumento, mas sendo muito mais claro na conclusão: “tudo é pleno” – e procura sustentar, assim, não só o infinitamente grande, como o infinitamente pequeno.68 Mas a infinitude do universo é mais claramente associada à escolha sábia de Deus no quinto escrito, onde Leibniz afirma a possibilidade do contrário69 e associa a posição de Descartes à sua.70 Associada "Celuy de la Raison suffisante, qui porte qu’il n’y a point d’enonciation veritable dont celuy qui auroit toute la connoissance necessaire pour l’entendre parfaitement, ne pourroit voir la raison." 64 A abordagem desse princípio, em Leibniz, será feita já no ponto seguinte, a propósito da necessidade moral, e no ponto final desta parte, a propósito da liberdade. No 5º escrito, surge explicitamente tratado nos §§ 4, 7, 8, 9 e 76: Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, G, VII, 389-390 e 409. 65 Leibniz, op. cit., 5º escrito, § 126, G, VII, 419: "Sans ce grand Principe, on ne sauroit venir à la preuve de l’existence de Dieu, ny rendre raison de plusieurs autres verités importantes." 66 Leibniz, op. cit., 2º escrito, § 2, G, VII, 356: "Plus il y a de la matiere, plus y at-il de l'occasion à Dieu d'exercer sa sagesse et sa puissance ; et c'est pour cela, entre autres raisons, que je tiens qu'il n'y a point le vuide du tout." 67 Leibniz, op. cit., 4º escrito, §§ 21-23, G, VII, 374: "21. Il n'y a point de raison possible, qui puisse limiter la quantité de la matiere. Ainsi cette limitation ne sauroit avoir lieu. 22. Et supposé cette limitation arbitraire, on pourroit tousjours adjouter quelque chose sans deroger à la perfection des choses qui sont déja : et par consequent il faudra tousjours y adjouter quelque chose, pour agir suivant le principe de la perfection des operations divines. 23. Ainsi on ne sauroit dire que la presente quantité de la matiere est la plus convenable pour leur presente constitution. Et quand même cela seroit, il s'ensuivroit que cette presente constitution des choses ne seroit point la plus convenable absolument, si elle empeche d'employer plus de matiere ; il faudroit donc en choisir une autre, capable de quelque chose de plus." 68 Leibniz, op. cit., 4º escrito, P.S., G, VII, 378: "Sans parler de plusieurs autres raisons contre le Vuide et les Atomes ; en voicy celles que je prends de la perfection de Dieu et de la raison suffisante. Je pose que toute perfection que Dieu a pû mettre dans les choses sans deroger aux autres perfections qui y sont, y a eté mise. Or figurons nous un Espace entierement vuide, Dieu y pouvoit mettre quelque matiere sans deroger en rien a toutes les autres choses : donc il l’y a mise : donc il n'y a point d’Espace entierement vuide : donc tout est plein. Le même raisonnement prouve qu'il n’y a point de corpuscule, qui ne soit subdivisé. Voicy encor l’autre raisonnement pris de la necessité d'une raison suffisante. Il n'est point possible qu’il y ait un Principe de determiner la proportion de la matiere ou du Rempli au Vuide, ou du Vuide au Plein. On dira peutetre que l’un doit etre égal à l’autre ; mais comme la matiere est plus parfaite que le Vuide, la raison veut qu'on observe la proportion Geometrique, et qu'il y ait d’autant plus de Plein, qu’il merite d’etre preferé. Mais ainsi il n'y aura point de Vuide du tout ; car la perfection de la matiere est à celle du Vuide, comme quelque chose à rien. Il en est de même des Atomes. Quelle raison peut on assigner de borner la nature dans le progrés de la subdivision ?" 69 Leibniz, op. cit., 5º escrito, § 30, G, VII, 396: "Absolument parlant, il paroist que Dieu peut faire l'univers materiel fini en extension, mais le contraire paroist plus conforme à sa sagesse." 70 Leibniz, op. cit., 5º escrito, § 32, G, VII, 396: "Descartes a soutenu que la matiere n'a point de bornes, et je ne crois pas qu'on l'ait suffisament refuté. Et quand on le luy accorderoit, il ne s'en suit point que la matiere seroit necessaire, ny qu'elle ait eté de toute eternité, puisque cette diffusion de la matiere sans

26

ainda à afirmação da plenitude, está a rejeição dos átomos, pela limitação que isso significaria na criação divina, assim como pela inevitável subdivisão de qualquer corpúsculo. 71 Esta rejeição é, aliás, reforçada pela formulação do princípio dos indiscerníveis, associada, curiosamente, a argumentos empíricos, antes de ser proposta como argumento contra os átomos.72 Este princípio não é, porém, referido pela primeira vez, na polémica, nesta passagem. Tal como o princípio da plenitude, o princípio dos indiscerníveis é inferido, neste debate, da aplicação do princípio da razão suficiente a uma questão específica. Para refutar a tese do espaço como substância ou como ser absoluto, recorre ao princípio da razão suficiente e mostra que, sendo esse espaço absolutamente uniforme, sem coisas nele, um ponto no espaço não diferiria em nada de outro ponto. Desta forma, não existiria qualquer razão para que Deus tivesse colocado as coisas nesse espaço desta forma e não de qualquer outra. Por exemplo, de ter colocado tudo da direita para a esquerda, em vez da esquerda para a direita. Pelo contrário, se o espaço fosse apenas a ordem de coexistência, não haveria qualquer diferença entre as duas disposições e dois corpos que estivessem na mesma situação em relação aos outros corpos, seriam exatamente o mesmo corpo, seriam indiscerníveis e, como tal, não haveria qualquer razão para perguntar a razão da sua situação em vez da outra.73 Logo em seguida, o mesmo raciocínio é aplicado ao tempo.74 Em resposta às objeções de Clarke, volta a remeter, por diversas vezes, para o princípio dos indiscerníveis, muitas vezes associado, como sua aplicação, ao princípio da razão suficiente, quer nesta questão, a do espaço absoluto,75 quer em relação à posição e movimento da totalidade do universo,76 quer relativamente ao tempo da criação,77 quer, de novo, em relação aos átomos,78 quer em relação às coisas sensíveis, como argumento empírico.79 Diga-se, aliás, que nem sempre o faz de forma clara, como Clarke acabará por se queixar na derradeira missiva: 80 mesmo tendo em conta que Clarke parece ter bornes, ne seroit qu'un effect du choix de Dieu, qui l'auroit trouvé mieux ainsi." 71 Leibniz, op. cit., 4º escrito, P. S., G, VII, 378. Transcrito na nota 68. 72 Leibniz, op. cit., 4º escrito, § 4, G, VII, 372: "Il n'y a point deux individus indiscernables. [...] Deux gouttes d'eau ou de lait regardées par le Microscope, se trouveront discernables. C'est un argument contre les Atomes, qui ne sont pas moins combattus que le vuide, par les principes de la veritable metaphysique." 73 Leibniz, op. cit., 3º escrito, § 5, G, VII, 363-4: "L'Espace est quelque chose d'uniforme absolument, et sans les choses y placées, un point de l’espace ne differe absolument en rien d’un autre point de l’espace. Or il suit de cela, supposé que l’espace soit quelque chose en luy même, outre l’ordre des corps entre eux, qu'il est impossible qu'il y ait une raison, pourquoy Dieu, gardant les mêmes situations des corps entre eux, ait placé les corps dans l’espace ainsi et non pas autrement, et pourquoy tout n'a pas eté mis à rebours (par exemple) par un échange de l’orient et de l’occident. Mais si l’espace n'est autre chose que cet ordre ou rapport, et n'est rien du tout sans les corps, que la possibilité d'en mettre ; ces deux etats, l’un tel qu'il est, l'autre supposé à rebours, ne differeroient point entre eux : leur difference ne se trouve que dans notre supposition chimerique de la realité de l’espace en luy même. Mais dans la verité, l’un seroit justement la même chose que l’autre, comme ils sont absolument indiscernables, et par consequent, il n'y a pas lieu de demander la raison de la preference de l’un à l’autre." 74 Leibniz, op. cit., 3º escrito, § 6, G, VII, 364. 75 Leibniz, op. cit., 4º escrito, § 3, G, VII, 372; § 18, G, VII, 374; 5º escrito, § 53, G, VII, 404 (muito embora também se refira à impossibilidade de um universo móvel e de lugares fora do universo); § 60, G, VII, 406. 76 Leibniz, op. cit., 4º escrito, § 6, G, VII, 372; § 13, G, VII, 373; 5º escrito, § 52, G, VII, 403-4. 77 Leibniz, op. cit., 4º escrito, § 15, G, VII, 373-4; 5º escrito, § 56, G, VII, 405; §§ 58-59, G, VII, 405-6. 78 Leibniz, op. cit., 5º escrito, §§ 21-22, G, VII, 393-4; §§ 24-25, G. VII, 394-5. 79 Leibniz, op. cit., 5º escrito, §§ 23-25, G. VII, 394-5. 80 Clarke, Streitschriften..., 5ª réplica, §§ 26-32, G, VII, 424: "It is allowed that Two Things exactly alike, would really be Two; and yet it is still alledged, that they would want the Principle of Individuation; And in Paper 4th, § 6, it was expresly affirmed, that they would be only the same Thing under two Names. A

27

dificuldade em compreender a distinção entre ideal e abstrato, por um lado, e concreto e atual (existente), por outro, assim como entre impossível e inconveniente, à luz da escolha sábia de Deus, é difícil perceber como é que duas coisas (ou estados, ou espaços, ou tempos) exatamente iguais seriam a mesma coisa e, depois, afirmar, mesmo que de um ponto de vista ideal, o contrário: “Reconheço que se duas coisas perfeitamente indiscerníveis existissem, elas seriam duas; mas a suposição é falsa e contrária ao grande princípio da razão.”81 A questão, ao que parece, é que a existência de duas coisas indiscerníveis seria impossível porque a sua situação no universo, fazendo parte dos seus predicados sucessivos, o seu ponto de vista, imediatamente tornaria duas coisas discerníveis, só sendo possível pensar essa indiscernibilidade em abstrato, esvaziando as coisas dos seus predicados que perfazem a noção completa 82 de cada uma, e considerando-as apenas diferenciadas solo numero. Também já no referente ao princípio da plenitude, Clarke havia notado a inconsistência de evocar a autoridade cartesiana para uma infinitude do mundo resultante da vontade divina, quando a mesma em Descartes resulta da impossibilidade da limitação.83 Tendo em conta que a conceção da máquina divina (o mundo), em termos da necessidade ou não do concurso divino após a criação, é também relacionada com a sabedoria divina, parece óbvio que também se trata de uma aplicação, ao menos implícita, do princípio da razão suficiente. 84 Existem múltiplas outras aplicações do princípio nas diversas diatribes da polémica, para lá da referência a outras supostas refutações não explicadas, como, por exemplo, da existência de partes em Deus e extensão nos espíritos,85 da atração à escolástica (como Leibniz interpreta a de Newton, alegando ser uma qualidade oculta) e da influência física entre a alma e o corpo.86 Ou seja, ainda nem considerando a sua aplicação à questão da liberdade, é perfeitamente evidente que, mesmo nesta polémica, para não falar do conjunto do sistema leibniziano, o princípio da razão suficiente é o princípio estruturador da sua compreensão da realidade. Considerando este tão fundamental papel, poder-se-ia pensar que seria na discordância em relação a este princípio que residiria o pomo da discórdia entre os dois autores. Ora, na primeira vez que se confronta com a afirmação leibniziana já citada do princípio da razão suficiente, longe de Clarke o pôr em causa ou limitá-lo, afirma-o de forma clara. 87 Volta, aliás, a fazê-lo no início da terceira réplica. 88 Mas, de facto, Supposition is allowed to be possible, and yet I must not be allowed to make the Supposition. The Parts of Time and Space are allowed to be exactly alike in Themselves, but not so when Bodies exist in them. Different co-existent Parts of Space, and different successive Parts of Time, are compared to a strait Line cutting another strait Line in two coincident Points, which are but one Point only." 81 Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 26, G. VII, 395: "J'avoue quo si deux choses parfaitement indiscernables existoient, elles seroient deux. Mais la supposition est fausse, et contraire au grand Principe de la raison." Para a afirmação anterior, cf. Leibniz, op. cit., 4º escrito, § 6, G, VII, 372: "Poser deux choses indiscernables, est poser la même chose sous deux noms." 82 Leibniz, OF, 520: "Notio completa seu perfecta substantiæ singularis involvit omnia ejus prædicata præterita, præsentia ac futura." 83 Clarke, Streitschriften..., 5ª réplica, §§ 26-32, G, VII, 425. Mas o tema será tratado na parte IV. Cf. Descartes, OL, 1336. 84 Leibniz, Streitschriften..., 2º escrito, §§ 6-7, G. VII, 357-8; 3º escrito, § 13, G, VII, 366. 85 Leibniz, op. cit., 5º escrito, § 48, G. VII, 402: "N'est ce pas renverser les notions des choses, donner à Dieu des parties, donner de l'étendue aux esprits ? Le seul principe du besoin de la raison suffisante fait disparoitre tous ces spectres d'imagination. Les hommes se font aisement des fictions, faute de bien employer ce grand principe." 86 Leibniz, op. cit., 5º escrito, §§ 127-128, G. VII, 420. 87 Clarke, Streitschriften..., 2ª réplica, § 1, G, VII, 359: "Tis very true, that nothing is, without a sufficient Reason why it is, and why it is thus rather than otherwise. And therefore, where there is no Cause, there can be no Effect."

28

contesta as aplicações leibnizianas do mesmo, ao ponto de ter levado Leibniz a suspeitar que a sua aceitação do princípio era meramente retórica: “Até tinha concordado comigo ou fingido concordar (...): talvez porque tivesse parecido demasiado chocante negá-lo; mas ou não o fez senão em palavras, ou se contradisse, ou se desdisse.”89 De facto, no final de toda a polémica, é o próprio Clarke que manifesta alguma hostilidade em relação ao princípio, como se lhe fosse estranho e considerando-o equívoco. Ver-se-ão mais tarde as razões aduzidas para essa equivocidade, mas Clarke considera explicitamente que o uso leibniziano do princípio lhe permite tudo afirmar sem prova: “Quanto ao grande princípio de uma razão suficiente, tudo o que este erudito escritor aqui junta a seu propósito é apenas uma forma de afirmar e não provar a sua conclusão e, por isso, não precisa de resposta.” 90 Se apenas se considerasse esta polémica, poder-se-ia pensar que, de facto, a aceitação inicial do princípio por Clarke fora meramente retórica, não retirando do mesmo qualquer implicação e sendo-lhe globalmente hostil. Mas não é, de facto, assim. Por exemplo, na mais famosa das conferências de Boyle proferidas por Clarke91, onze anos antes do início da polémica, acerca da existência e dos atributos de Deus, Clarke afirma: “Seja o que for que exista, tem uma causa da sua existência, quer na necessidade da sua própria natureza; e então deve ser eterno: ou na vontade de algum outro ser; e, então, esse outro ser deve, ao menos na ordem da natureza e causalidade, ter existido antes dele.”92 Mas na derradeira versão desta conferência, editada em 1728 (já a 7ª edição), é surpreendente a adaptação da linguagem à de Leibniz, o que mostra, simultaneamente, que Clarke foi influenciado, de facto, pelo seu suposto rival e que considerou que o raciocínio por si utilizado era o mesmo que o de Leibniz: “Seja o que for que exista, tem uma causa, uma razão, uma base da sua existência, uma fundação na qual a sua existência está suportada, uma base ou razão porque isso existe em vez de não existir, quer na necessidade da sua própria natureza (e, então, deve ser, por si próprio, eterno), ou na vontade de algum outro ser (e, então, esse outro ser deve, ao menos na ordem da natureza e causalidade, ter existido antes dele).”93 Também num parágrafo que não existia na versão original, usa a expressão: “base ou razão necessária

88

Clarke, op. cit., 3ª réplica, § 2, G, VII, 367: "Undoubtedly nothing is, without a sufficient Reason why it is, rather than not; and why it is Thus, rather than Otherwise." 89 Leibniz, op. cit., 5º escrito, § 125, G. VII, 419: "On me l’avoit même accordé, ou fait semblant de l’accorder [...] : peutétre parce qu’il auroit paru trop choquant de le nier. Mais ou on ne l’a fait qu’en paroles, ou l’on se contredit, ou l’on se retracte." De facto, esta suspeita já está expressa, de forma mais breve, no 3º escrito, § 7, G, VII, 364. 90 Clarke, op. cit., 5ª réplica, §§ 124-130, G, VII, 440: "As to the grand Principle of a sufficient Reason; all that this Learned Writer here adds concerning it, is only by way of Affirming, not proving, his Conclusion; and therefore needs no Answer. I shall only observe, that the Phrase is of an equivocal Signification”. 91 Tanto é assim que parece ter inspirado uma das personagens de Hume, Demea, meio século depois, nos seus diálogos, visando a argumentação central de Clarke numa das suas partes: David Hume, Dialogues concerning Natural Religion, ed. Norman Kemp Smith; tr.port. Álvaro Nunes, Diálogos sobre a Religião Natural, Lisboa, Edições 70, 20059, Parte IX. 92 Clarke, DB, I, 18-19: "Whatever Exists, has a Cause of its Existence, either in the Necessity of its own Nature; and then it must have been Eternal: Or in the Will of some other Being; and then that Other Being must, at least in the Order of Nature and Causality, have Existed before it." 93 Samuel Clarke, A Demonstration of the Being and Attributes of God and other writings, Cambridge, Cambridge University Press, 1998 [DA], I, p. 8: "Whatever exists has a cause, a reason, a ground of its existence, a foundation on which its existence relies, a ground or reason why it does exist rather than not exist, either in the necessity of its nature (and then it must have been of itself eternal), or in the will of some other being (and then that other being must, at least in the order of nature and causality, have existed before it)."

29

porque a primeira causa exista em vez de não existir.”94 Mas que o espírito da aplicação do princípio já constava da conferência inicial, mostra-se nesta passagem: “Uma necessidade de conveniência, quer dizer, uma necessidade de que as coisas devam ser como são com o fim da harmonia do todo, pode existir em todas essas coisas”.95 É verdade que já se está, aqui, a entrar na temática da necessidade, mas é evidente a aplicação do princípio da razão suficiente na decisão tomada através da sabedoria divina. Um pouco adiante refere a necessidade a respeito da Sabedoria e da preservação da beleza e ordem do todo.96 Na mesma linha, Clarke afirma, na versão original: “As coisas são, assim, necessárias tal como são, porque a infinita sabedoria e bondade não poderia fazer as coisas senão naquela ordem que fosse a mais conveniente e sábia no todo”.97 Muitas outras são as menções a este propósito, incluindo uma no final em que afirma que Deus tem de fazer “o que é melhor e mais sábio no todo.” 98 Na segunda conferência de Boyle, o princípio do melhor torna-se mesmo estruturante não só da criação do mundo, mas do próprio dever moral humano99 e a necessidade de conveniência ou adequação (fitness) é sistematicamente utilizada para fornecer as razões eternas das próprias coisas.100 Naturalmente, isso não significa que, nesta primeira fase, Clarke, mesmo que a conhecesse, estivesse a pensar na formulação leibniziana. Henry More, cuja influência silenciada, na obra publicada por

94

Clarke, DA, III, 17: "Necessary ground or reason why the first cause does exist rather than not exist." Clarke, DB, III, 44: "A Necessity indeed of Fitness, that is, a Necessity that Things should be as they are in order to the Well-being of the whole, there may be in all these Things." 96 Clarke, DB, III, 45. 97 Clarke, DB, III, 52: "Things are therefore Necessarily such as they are, because Infinite Wisdom and Goodness could not possibly make Things but in that Order which is Fittest and Wisest in the Whole." 98 Clarke, DB, XII, 247: "God is a most perfectly free Agent, yet he cannot but do always what is Best and Wisest in the whole." O prof. Adelino Cardoso chamou a atenção, pessoalmente e com toda a razão, para a distinção do princípio do melhor em relação ao da conveniência. Certamente, este último é análogo à harmonia leibniziana, onde se distinguiria mas também não estaria separado, antes se deduziria, do princípio do melhor. Assim acontece, e. g., em Leibniz, Essais de Théodicée, Preface, G, VI, 37: "Dieu même, quoyqu'il choisisse tousjours le meilleur, n'agit point par une necessité absolue; et que les loix de la Nature que Dieu luy a prescrites, fondées sur la convenance, tiennent le milieu entre les verités Geometriques, absolument necessaires, et les decrets arbitraires"; ibidem, Discours..., § 2, G, VI, 50: "Cette convenance a aussi ses regles et raisons, mais c'est le choix libre de Dieu, et non pas une necessité Geometrique, qui fait preferer le convenable, et le porte à l'existence. Ainsi on peut dire, que la necessité physique est fondée sur la necessité morale, c'est à dire sur le choix du sage, digne de sagesse". Em Clarke, a conveniência, à falta de melhor tradução para fitness, é a forma como especificamente concebe esse máximo qualitativo. Porventura, haverá alguma diferença semântica, com origem linguística e/ou filosófica, em relação a Leibniz, mas não há dúvida quanto à utilização do princípio do melhor, como acontece na citação desta nota, mesmo sem a referência explícita à conveniência. 99 Clarke, DC, 30: 'Tis a Thing manifestly fitter in itself, that the All-powerful Governor of the World should do always what is Best in the Whole, and what tends most to the universal Good of the whole Creation"; 38-39: "His Divine Will cannot but always and necessarily determine itself to chuse to Do what in the Whole is absolutely Best and Fittest to be done"; e 57: "For if (as has been before proved) there be a natural and necessary Difference between Good and Evil, and that which is Good is Fit and Reasonable, and that which is Evil is Unreasonable to be done; and that which is the greatest Good, is always the most Fit and Reasonable to be chosen: Then, as the Goodness of God extends itself universally over all his Works through the whole Creation, by doing always what is absolutely best in the Whole; so every rational Creature ought in its Sphere and Station, according to its respective Powers and Faculties, to do all the Good it can to all its Fellow-creatures." 100 Clarke, entre inúmeras menções que poderiam ser feitas, e. g., DC, 18: "from these necessary Differences of Things there cannot but arise a Fitness or Unfitness of the Application of different Things or different Relations one to another; and infinite Knowledge can no more fail to Know, or infinite Wisdom to Choose, or infinite Power to Act according to these eternal Reasons and Proportions of Things, than Knowledge can be ignorance, Wisdom be Folly, or Power Weakness". 95

30

Newton e Clarke, é óbvia, defendeu o princípio do melhor na ação divina, 101 aliás recorrendo aos mesmos atributos divinos que Leibniz (Bondade, Sabedoria e Poder), o que, aliás, é óbvio, igualmente, noutras passagens. 102 Na verdade, outros autores também poderiam ter influenciado Clarke, como Malebranche,103 isto apesar da negação deste princípio por parte de Boyle, 104 mas isso não explicaria a formulação adotada tardiamente, por Clarke, para o princípio da razão suficiente. Além disso, nas vésperas desta polémica, Bourguet parecia atribuir a Clarke (entre outros) o uso do princípio leibniziano do melhor,105 confirmando mais tarde a atribuição, 106 em plena polémica. Naturalmente, o próprio Bourguet poderia estar equivocado quanto à origem ou a influência estar circunscrita ao princípio do melhor, mas, pelo menos, parece ser possível concluir que, se Clarke ainda não tinha adotado completamente a formulação leibniziana do princípio por altura da polémica, acabou por a adotar de forma inequívoca. Porém, parece ser claro que não acompanha Leibniz em todas as suas implicações e que considera que o uso que ele faz do princípio é algo equívoco, ver-se-á posteriormente porquê. Pior é a sua reação aos dois princípios que Leibniz deriva, explicitamente na própria polémica (porque muitos outros são derivados no conjunto da obra), do princípio da razão: o princípio da plenitude e o princípio da identidade dos indiscerníveis. O primeiro é rejeitado, liminarmente, na sua primeira aparição implícita já referida, em que se afirmava um máximo de matéria para o máximo de poder e sabedoria divina, quer através da simples negação da afirmação anterior, quer através da afirmação da existência de outras coisas não materiais, quer através de uma curiosa redução ao absurdo do argumento leibniziano: se é necessário que haja o máximo de 101

Henry More, Divine Dialogues, containing sundry Disquisitions & Instructions concerning the Attributes of God and his Providence in the World, 2nd. ed., London, Joseph Downing, 1713 [DD], 4 th. dial., VII, p. 302: "his infinite Goodness, Wisdom and Power, issue out all the Orders of the Creation in the whole Universe. So that all the Creatures being his, and his Goodness being so perfect, immutable and permanent, as never out of any humour, (as I may so speak) vacillancy, or supine indifferency, to be carried otherwise than to what is the best, and his Wisdom never at a loss to discern, nor his Power to execute it; we see the clearest foundation imaginable of the Right of that absolute Sovereignty we acknowledge in God. For is there not all reason, that he that is so immutably Good, that it is repugnant that he should ever will any thing but what is absolutely for the best, should have a full right of acting merely according to the suggestions and sentiments of his own Mind, it being impossible but that they should be for the best, he having proportionable Wisdom also and Power adjoined to this infinite Goodness, to contrive and execute his holy, just and benign designs?" 102 E. g., Henry More, DD, 1st. dial., V-VI, 12-3, DD, 2nd. dial., VIII, 112-3, DD, X, 117, DD, XVI, 136, DD, 4th. dial., VIII, 304-5. Aliás, este não é o único aspeto em que o pensamento de More tem semelhanças com o de Leibniz, como se pode ver na terceira passagem aqui referida, em que o mundo é visto como um autómato criado por Deus, sem necessidade do constante recurso ao Artífice. 103 Apenas a título de exemplo, entre inúmeras referèncias possíveis: Nicolas Malebranche, Oeuvres Complètes, Tomes XII – XIII, Entretiens sur la Métaphysique et sur la Religion; Entretiens sur la mort, 1965; 4ª ed., Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1991, Entretiens sur la Métaphysique, X, § 17, p. 248: "Certainement Dieu avant cette premiere impression en a connu clairement toutes les suites, & toutes les combinaisons de ces suites ; non seulement toutes les combinaisons physiques, mais toutes les combinaisons du physic avec le moral, & toutes les combinaisons du naturel avec le surnaturel. Il a comparé emsemble toutes ces suites avec toutes les suites de toutes les combinaisons possibles dans toutes sortes de suppositions. Il a, dis-je, tout comparé dans le dessein de faire l'ouvrage le plus excellent par les voïes les plus sages & les plus divines."; XIII, § 3, p. 309: "Puisque c'est Dieu qui a établi les loix naturelles, il a dû combiner le Physic avec le Moral, de maniere que les suites de ces loix soient les meilleurs qui puissent être, je veux dire les plus dignes de sa justice & de sa bonté, aussi-bien que de ses autres attributs." 104 John Henry, "Henry More" in The Stanford Encyclopedia of Philosophy, Edward N. Zalta (ed.), Fall 2012 Edition, URL = , 6. 105 Leibniz, Carta para Bourguet de 5 de Agosto de 1715, G, III, 581. 106 André Robinet, Carta de Bourguet para Leibniz de 31 de Março de 1716, CLC, 75.

31

sujeitos para que Deus tenha um exercício adequado do seu poder e sabedoria, então deveriam existir infinitos homens e infinito membros de cada uma das outras espécies.107 O argumento é bom e ainda é melhor no contexto global da fase final da filosofia leibniziana, não só no âmbito da aplicação do princípio da plenitude mas de outro que lhe é solidário e que só surge de forma muito pouco explícita nesta polémica, o princípio da continuidade. Já foi salientado que, nas versões mais elaboradas do princípio da plenitude na polémica, no quarto escrito, o pleno é afirmado quer a nível do infinitamente grande, quer do infinitamente pequeno, o que é requerido como uma das aplicações do princípio da continuidade. Se Leibniz tivesse tido o ensejo de expor a sua completa monadologia (como se verá, apenas aflorada na correspondência), essa continuidade plena seria assegurada por uma imensa multiplicação de infinitos, em que cada entidade orgânica seria composta de uma infinidade de entidades orgânicas e esta de outras ao infinito.108 Nesse caso, Clarke poderia ter estendido bem mais o seu argumento: não se trataria só de cada espécie dever ter um número infinito de membros, mas de não haver razão nenhuma para não haver também animais bem maiores em que os próprios homens e outras espécies se incluíssem, e assim sucessivamente em progressão ao infinitamente grande. De facto, porquê exigir que cada ser vivo seja composto de outros seres vivos e estes de outros, e assim sucessivamente, no sentido do cada vez menor e não do cada vez maior? Não tornaria isso mais pleno o universo e mais adequado a ser domínio do exercício do poder e sabedoria de Deus? Ora, como é sabido, em Leibniz, há, de facto, um limite na progressão da vida para o maior, embora não para o mais perfeito,109 ou por motivos empíricos (visto uma pedra,110 um planeta ou uma galáxia não parecerem ser vivos ou corpos orgânicos), ou por motivos teológicos (muito embora sejam várias as passagens em que Leibniz tenda a minimizar um pouco a importância do homem no plano divino 111 ). Mas os primeiros não se percebem, visto também não ter comprovação 107

Clarke, Streitschriften..., 2ª réplica, § 2, G, VII, 360: "By the same Argument it might just as well have been proved, that Men, or any other particular Species of Beings, must be infinite in Number, least God should want Subjects, on which to exercise his Power and Wisdom." 108 A mais compacta e, talvez, expressiva enunciação desta tese surge em Leibniz, La Monadologie, §§ 64-70, G, VI, 618-9: "Les Machines de la Nature, c’est à dire les corps vivants, sont encor des machines dans leur moindres parties jusqu’à l’infini. [...] Il y a un Monde de Creatures, de vivans, d’Animaux, d’Entelechies, d’Ames dans la moindre partie de la matiere. Chaque portion de la matiere peut être conçue comme un jardin plein de plantes, et comme um étang plein de poissons. Mais chaque rameau de la plante, chaque membre de l’Animal, chaque goutte de ses humeurs est encor un tel jardin ou un tel étang. [...] Chaque corps vivant a une Entelechie dominant qui est l’Ame dans l’animal ; mais les membres de ce corps vivant sont pleins d’autres vivants, plantes, animaux, dont chacun a encor son Entelechie ou son ame dominante." Aliás, estas passagens surgem pouco após a afirmação do mesmo princípio da plenitude, muito embora com um alcance ainda maior, o da ligação da matéria que faz que cada parte da matéria se ressinta de toda e qualquer outra no universo, sendo tudo conspirante, como também diz noutras obras: Leibniz, op. cit., § 61, G, VI, 617. 109 Leibniz, Nouveaux essais..., L. IV, Ch. XVII, §§ 15-16, G, V, 473: "Les manieres et les degrés de perfection varient a l'infini. Cependant le fonds est par tout le même, ce qui est une maxime fondamentale chez moy et qui regne dans toute ma Philosophie. Et je ne conçois les choses inconnues ou confusement connues que de la maniere de celles qui nous sont distinctement connues ; ce qui rend la Philosophie bien aisée et je croy même qu'il en faut user ainsi. Mais si cette Philosophie est la plus simple dans le fonds, elle est aussi la plus riche dans les manieres, parceque la nature les peut varier à l'infini, comme elle le fait aussi avec autant d'abondance, d'ordre et d'ornemens, qu'il est possible de se figurer. C'est pourquoy je croy qu'il n'y a point de Genie, quelque sublime qu'il soit, qui n'en ait une infinité au dessus de luy." 110 Leibniz, Considerations sur le Principe de Vie, et sur les Natures Plastiques, G, VI, 539: "Si quelcun prend le Terme comme ceux qui s'imaginent qu'il y a une forme substantielle d'un morceau de pierre, ou d'un autre corps non-organique ; car les principes de Vie n'appartiennent qu'aux corps organiques." 111 Uma das mais eloquentes, até porque não envolve criaturas superiores (anjos, etc.), mas sim animais irracionais, mais precisamente leões, é a seguinte: Leibniz, Essais de Théodicée, 2ª parte, § 118, G, VI,

32

empírica senão de um nível adicional, tornado acessível pelo microscópio, aplicando apenas uma analogia aos níveis seguintes até ao infinito, o que facilmente também poderia fazer no sentido contrário. E os segundos poderiam ser compreensíveis, não fosse a sistemática insistência de Leibniz na conformidade entre a fé e a razão, não hesitando em afirmar que um mistério irreconciliável com a razão seria falso.112 Aliás, Leibniz chega a enunciar semelhante possibilidade de progressão para o maior a propósito das teses de alguns chineses que assimila à posição estoica, ou seja, à conceção da Alma do Mundo que se contraporia à transcendência de Deus. 113 Pressupondo que a transcendência de Deus fosse inquestionável, não se percebe, de acordo com a própria formulação leibniziana, por que tal progressão ao infinitamente maior tivesse de produzir um todo, visto ser o próprio Leibniz que multiplíssimas vezes insiste que uma progressão infinita nunca se poderia encerrar. Assim, nem mesmo a rejeição da Alma do Mundo justifica a rejeição de uma progressão dos estratos de vida inversa à afirmada por Leibniz. Ora, a defesa de Leibniz ao contra-argumento de Clarke ao princípio da plenitude é, no mínimo, bem fraca: não poderia existir um número infinito de homens ou de outra espécie porque isso tiraria o lugar a outras espécies.114 É difícil ver a razão por que, num todo infinito, um infinito tiraria lugar a outros, até porque é o próprio Leibniz que insiste nos infinitos existentes na menor extensão imaginável e sublinha a compossibilidade desses múltiplos infinitos. A impossibilidade de coexistência não parece porvir do número mas das essências e das naturezas das entidades. Num universo de tamanho infinito, não é compreensível que não possam existir infinitos membros de uma espécie como consequência da aplicação do princípio da plenitude. É sabido que Leibniz dá um valor intrínseco à variabilidade natural, expressão fenoménica da infinita diferenciação monádica, que contribui para a maior perfeição do todo, tal como as variações numa composição musical contribuem para a maior harmonia do todo. “A sabedoria deve variar. Multiplicar unicamente a mesma coisa, por muito nobre que ela possa ser, seria supérfluo, seria uma pobreza [...] A natureza precisa de animais, de plantas, de corpos inanimados; há nestas criaturas irracionais maravilhas que servem para exercer a razão.”115 Infelizmente para o argumento, num mundo infinito, há lugar para uma infinita variabilidade mesmo que cada espécie dessa variação também incluísse uma variedade infinita de indivíduos. Aplicando o argumento da plenitude 169: "Il est seur que Dieu fait plus de cas d’un homme que d’un lion ; cependant je ne say si l’on peut assurer que Dieu prefere un seul homme à toute l’espece des lions à tous egards : mais quand cela seroit, il ne s’ensuivront point que l’interet d’un certain nombre d’hommes prevaudroit à la consideration d’un desordre general repandu dans un nombre infini de Creatures. Cette opinion seroit un reste de l’ancienne maxime assés decriée, que tout est fait uniquement pour l’homme." 112 E. g., Leibniz, op. cit., 3ª parte, § 294, G, VI, 291: "Si les mysteres étoient irreconciliables avec la raison, et s’il y avoit des objections insolubles, bien loin de trouver le mystere incomprehensible, nous en comprendrions la fausseté." Cf, também Leibniz, op. cit., Discours..., § 42, G, VI, 74. 113 Gothofredi Guillelmi Leibnitii, Opera Omnia, Genevae, Frates de Tournes, 1768 [OM], Tomus Quartus, p.184: "ainsi ce seroit le monde entier conçu comme un animal, un vivant universel, un génie suprême, un grandissime personnage ; & les Stoïciens parlent du monde sur ce ton. Parmi les parties de ce grand & total animal il y auroit des animaux particuliers ; comme parmi nous de petits animaux entrent dans la composition des corps des grands animaux." Vide G. W. Leibniz, Lettre de M. G. G. de Leibniz sur la philosophie chinoise à M. de Rémond, trad. port. Adelino Cardoso, Discurso sobre a Teologia Natural dos Chineses, Lisboa Colibri, 199111, p. 56. Uma versão que salta logo para a Alma do Mundo é apresentada em Leibniz, Essais de Théodicée, 2ª parte, § 195, G, VI, 232. 114 Leibniz, Streitschriften..., 3º escrito, § 9, G, VII, 365. 115 Leibniz, Essais de Théodicée, 2ª parte, § 124, G, VI, 179: "La sagesse doit varier. Multiplier uniquement la même chose, quelque noble qu’elle puisse être, ce seroit une superfluité, ce seroit une pauverté [...]. La nature a eu besoin d’animaux, de plantes, de corps inanimés ; il y a dans ces Creatures non raisonnables des merveilles qui servent à exercer la raison."

33

correspondente ao poder e à sabedoria de Deus que exige uma plenitude infinita de matéria, não se vê por que não poderiam existir infinitos indivíduos de cada espécie. Só na quarta réplica, Clarke volta ao argumento, estendendo-o à infinitude do universo, não só no espaço, como no tempo, não só para o futuro, mas desde toda a eternidade, o que já tinha sido antes tratado nesta réplica, e à duração dos próprios seres infinitos de cada espécie.116 Infelizmente, utiliza-o de forma despropositada em relação a uma passagem de Leibniz que não tem relação inteligível com esta questão. As questões concretas aqui evocadas serão tratadas mais adiante nesta dissertação, mas parece evidente que esta extensão do argumento não trouxe grandes vantagens porque, como se verá, a eternidade anterior do mundo não é uma questão idêntica à posterior, e a posterior, assim como a duração interminável dos seres, até é defendida por Leibniz. De resto, a rejeição clarkiana do princípio da plenitude segue uma linha de argumentação que deveria ser familiar ao próprio Leibniz, quando, sistematicamente, justifica todo o mal que possa ser observado, por exemplo na Teodiceia, mesmo que se estivesse a viver no inferno, com a escolha divina do melhor possível.117 De facto, por pior que seja o mundo que observemos ou que venhamos a observar, está garantido à partida, pela natureza de Deus, que estamos no melhor mundo possível. Da mesma forma, Clarke garante que seja qual for a quantidade de matéria no universo “é a mais conveniente para a presente estrutura (frame) da natureza ou o presente estado (state) de coisas; (...) Uma maior (ou também menor) quantidade de matéria teria feito a presente estrutura (frame) do mundo menos conveniente e, consequentemente, não teria sido um maior objeto sobre o qual Deus tivesse exercido a sua bondade.” 118 Que é a mais conveniente (equivalente ao critério leibniziano de melhor) é um pressuposto dado à partida que nenhum vazio ou limitação da matéria (tal como nenhum mal no caso de Leibniz) pode pôr em causa. A comparação ainda se afigura mais legítima se se tiver em conta que a raiz do mal, em Leibniz, está no mal metafísico, ou seja, a necessária privação e limitação da criatura por ter sido criada a partir do nada.119 É difícil perceber 116

Clarke, Streitschriften..., 4ª réplica, § 40, G, VII, 387: "This Argument (if it be good) proves that the Material World must be infinite, and that it must have been from eternity, and must continue to eternity: And that God must always have created as many Men, and as many of all other things, as ‘twas possible for him to create; and for as long a Time also, as it was possible for him to do it." Vide a passagem anterior, §§ 21-23, G. VII, 385-6. 117 Entre muitas outras passagens, Leibniz, op. cit., §§ 122-123, G, VI, 176-8, especialmente por causa da frase do § 123 onde se pode inferir que, mesmo que toda a humanidade fosse danada, isso teria contribuído para o melhor mundo possível, G, VI, 178: "Le peché et le malheur (que des raisons de l’ordre supreme ne permettoient point d’exclure entierement de la nature des choses), n’y sont presque rien en comparaison du bien, et servent même à de plus grands biens. Or puisque ces maux devoient exister, il falloit bien qu’il y eût quelques uns qui y fussent sujets, et nous sommes ces quelques uns." 118 Clarke, op. cit., 3ª réplica, § 9, G, VII, 369: "I suppose, That determinate Quantity of Matter that is now in the world, is the most convenient for the Present Frame of Nature, or the Present State of Things: And that a Greater (as well as a Less) Quantity of Matter, would have made the Present Frame of the World less convenient; and consequently would not have been a greater Object for God to have exercised his Goodness upon." Para a resposta de Leibniz a este argumento, ver a anterior nota 67. 119 Talvez não seja muito clara esta conclusão, visto o mal metafísico estar ligado, em especial, à imperfeição e não em geral a toda e qualquer limitação ou privação da criatura. Ver a distinção entre os tipos de mal, Leibniz, op. cit., 1ª parte, § 21, G, VI, 115. O mal em geral é, na sequência de Agostinho, definido como privação de ser e atribuído à limitação original das criaturas (vide ibidem, §§ 29-30, G, VI, 129-30; cf. também ibidem, 2ª parte, § 153, G, VI, 201), a propósito da qual surge o exemplo que será utilizado recorrentemente do barco carregado. Ao contrário do mal físico e moral, o mal metafísico é necessário no criado porque o criado não poderia ser perfeito, sob pena de se reproduzirem múltiplos Deus, todos idênticos, o que ofenderia também o princípio da identidade dos indiscerníveis (vide ibidem, § 200, G, VI, 235, onde essa multiplicação não é considerada nem conveniente, nem possível). Que esta seja a limitação original da criatura que está na origem do próprio pecado, não é inequívoco na maioria das passagens, mas é nesta: ibidem, § 156, G, VI, 235: "Le Diable est l’auteur du peché : mais l’origine

34

a razão por que se rejeita a priori, pelo princípio da plenitude, a limitação quantitativa, quando se afirma uma necessária limitação qualitativa. Da mesma forma, rejeita-se a possibilidade de aumento quantitativo, quando se admite a possibilidade de aumento qualitativo.120 Aliás, há que considerar que a rejeição do princípio da plenitude por Clarke se restringe à sua ação criadora, entendida como determinada pelo desígnio da conveniência (fitness). Clarke aplica, porém, este princípio à própria presença de Deus, deduzida da existência necessária, ou seja, da existência fundada em si mesma (self-existent). A sua infinitude não é apenas uma imensidade mas uma infinitude de plenitude (fulness no original). 121 Isso mostra que não existe tanto uma rejeição clarkiana do princípio em geral, mas sim da sua aplicação leibniziana. Já a rejeição clarkiana do princípio da identidade dos indiscerníveis é bastante mais completa e perfeitamente compreensível à luz da sua militância newtoniana, na medida da sua compreensão ou estritamente matemática, ou matemático-empírica da realidade física. A este propósito até reconhece a verdade ao argumento empírico de Leibniz a respeito das folhas e das gotas, mas apenas por serem dois corpos muito compostos.122 Implicitamente, as partículas simples (assim como o movimento), ou seja, a base da realidade física, é compreendida de forma abstrata e matemática. Mas, sobretudo, em oposição ao princípio leibniziano, é rejeitada a aparentemente alegada impossibilidade lógica de duas coisas iguais poderem ser feitas por Deus. Ora, como já foi visto, para lá das eventuais incongruências, Leibniz acabará por subordinar à escolha sábia de Deus o princípio dos indiscerníveis, como uma aplicação do princípio da razão suficiente. A este nível de tratamento, sem entrar ainda nos temas concretos, o que é interessante é a reação clarkiana que revela que a sua utilização do princípio da razão suficiente é muito mais abstrata e indeterminada, não tendo, de todo, a função arquitetónica que tem em Leibniz. “Mas como sabe ele que não seria sábio para Deus fazer isso? Pode ele provar que não é possível que Deus possa ter sábias razões para criar muitas partes de matéria exatamente iguais em diferentes partes do universo?”123 A resposta vai ser parcialmente dada pela abordagem da noção de liberdade ainda nesta parte e na seguinte da dissertação, mas requereria uma abordagem mais aprofundada do fundamento monádico, da conceção de noção completa da substância simples que du peché vient de plus loin, sa source est dans l’imperfection originale des creatures : cela les rend capables de pecher." 120 Vide nota 66 (Leibniz, Streitschriften..., 2º escrito, § 2, G, VII, 356) para a rejeição da limitação quantitativa. Para a admissão, Leibniz, Essais de Théodicée, 2ª parte, § 202, G, VI, 237: "On pourroit dire que toute la suite des choses à l’infini peut être la meilleure qui soit possible, quoyque ce qui existe par tout l’univers dans chaque partie du temps ne soit pas le meilleur. Il se pourroit donc que l’univers allât tousjours de mieux en mieux, si telle étoit la nature des choses, qu’il ne fût point permis d’atteindre au meilleur d’un seul coup". 121 Clarke, DB, VI, 89: "the Infinity of the Self-Existent Being, must be an Infinity of Fulness as well as of Immensity; that is, it must not only be without Limits, but also without Diversity, Defect, or Interruption. [...] Whatever is Self-Existent, must of Necessity Exist absolutely in every Place alike, and be equally present every where; and consequently must have a true and absolute Infinity, both of Immensity and Fulness." Por alguma razão, na edição mais tardia, a sua segunda referência à "fullness" é substituída por "wholeness". 122 Clarke, Streitschriften..., 4ª réplica, §§ 3-4, G, VII, 382: "Tis very true, that no two Leaves, and perhaps no two drops of Water are exactly alike; because they are Bodies very much compounded. But the case is very different in the parts of simple solid Matter. And even in Compounds, there is no impossibility for God to make two drops of Water exactly alike. And if he should make them exactly alike, yet they would never the more become one and the same drop of Water, because they were alike." 123 Clarke, op. cit., 5ª réplica, §§ 21-25, G, VII, 423: "But how does he know, it would not be Wise for God to do so? Can he prove that it is not possible God may have Wise Reasons for creating Many Parts of Matter exactly alike in different Parts of the Universe?"

35

implica uma diferenciação qualitativa e não apenas quantitativa, como se poderá ver na quarta parte deste projeto. 4. Os tipos de necessidade Embora, como se viu no início do ponto II desta dissertação, tenha sido sob a configuração da fatalidade que foi introduzido o tema por Clarke, do ponto de vista da ordenação lógica das temáticas, há ainda uma condição necessária que é preciso satisfazer para tratar, em ambos os autores, as temáticas da fatalidade e da liberdade, a dos tipos de necessidade, visto ser imediatamente decorrente da distinção entre verdades de razão e de facto, e da aplicação do princípio da razão suficiente. De facto, o tema da fatalidade é introduzido por Clarke por uma conjunção com a necessidade, como se não existisse qualquer diferença para ele. Aliás, ataca, sob diversos pretextos, o rival ou defende-se dele com a expressão “necessity and fate” ou combinações semelhantes, antes de conseguir uma resposta significativa de Leibniz.124 Perante essas acusações, até admira que esta questão tenha sido esclarecida tão tardiamente na polémica e que, apesar de tudo, novamente, exista uma razoável concordância entre os autores. De facto, antes do quinto e derradeiro texto de Leibniz, a necessidade apenas havia sido referida, pelo próprio, como “necessidade bruta” equivalente à fatalidade e contraposta à providência divina.125 Após se ter queixado de não se dar suficiente atenção à diferença entre liberdade, contingência e espontaneidade, e necessidade absoluta, acaso e coação, estabelecida na Teodiceia126 (na quarta de nove menções à obra durante a polémica), Leibniz apresenta a mesma distinção entre os tipos de necessidade que havia sustentado nessa obra:127 “É preciso distinguir (...) entre uma necessidade absoluta e uma necessidade hipotética. É preciso distinguir também entre uma necessidade que tem lugar porque o oposto implica contradição e que é chamada lógica, metafísica ou matemática; e uma necessidade que é moral que faz com que o sábio escolha o melhor e que qualquer espírito siga a inclinação maior. A necessidade hipotética é aquela que a suposição ou hipótese da previsão de Deus impõe aos futuros contingentes.”128 Mais adiante, Leibniz afirma que a necessidade lógica ou metafísica se aplica às essências e que a necessidade moral se aplica às existências, sendo o princípio das existências o princípio da razão suficiente e o das essências, o da identidade ou da contradição.129 Em resposta a uma das acusações de fatalidade e necessidade, remetendo pela sétima vez para a Teodiceia, Leibniz declara ter refutado “a opinião daqueles que sustentam que não há nada possível 124

Clarke, op. cit., 2ª réplica, § 1, G, VII, 359; 4ª réplica, §§ 1-2, G, VII, 381; §§ 5-6, G, VII, 382; § 18, G, VII, 385; §§ 22-23, G, VII, 386; § 32, G, VII, 386. 125 Leibniz, Streitschriften..., 3º escrito, § 8, G, VII, 365: "Ce n'est pas cette fatalité (qui n'est autre chose que l’ordre du plus sage ou de la providence) mais une fatalité ou necessité brute, qu'il faut éviter, où il n’y a ny sagesse ny choix." 126 Leibniz, op. cit., 5º escrito, § 2, G, VII, 389. 127 Leibniz, Essais de Théodicée, Préface, G, VI, 37; ver também, 1ª parte, § 37, G, VI, 123-4; §§ 44-45, G, VI, 127-8; §§ 52-53, G, VI, 131-2; 2ª parte, § 132, G, VI, 184; § 168, G, VI, 210-1; 3ª parte, § 282, G, VI, 284-5, etc., visto existirem imensas repetições e aplicações destas distinções. 128 Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, §§ 4-5, G, VII, 389: "Il faut distinguer entre une necessité absolue et une necessité hypothetique. Il faut distinguer aussi entre une necessité qui a lieu, parce que l’opposé implique contradiction, et laquelle est appellée logique, metaphysique ou mathematique; et entre une necessité qui est morale, qui fait que le sage choisit le meilleur, et que tout esprit suit l’inclination la plus grande. La necessité Hypothetique est celle, que la supposition ou hypothese de la prevision et preordination de Dieu impose aux futurs contingens." 129 Leibniz, op. cit., § 9, G, VII, 390: "C'est confondre les Termes, la puissance et la volonté, la necessité metaphysique et la necessité morale, les essences et les existences. Car ce qui est necessaire, l'est par son essence, puisque l'opposé implique contradiction ; mais le contingent qui existe, doit son existence au principe du meilleur, raison suffisante des choses."

36

senão o que efetivamente acontece”. “Confunde-se a necessidade moral que vem da escolha do melhor, com a necessidade absoluta, confunde-se a vontade com a potência de Deus. Ele pode produzir tudo o que é possível ou o que não implica contradição, mas ele quer produzir o melhor entre os possíveis.”130 Insolitamente, numa polémica em que as questões físicas tiveram um lugar preponderante, em que Leibniz defendeu, ao contrário de Clarke, uma determinação pelas leis naturais da máquina da natureza que dispensava qualquer concurso adicional, ordinário ou extraordinário, de Deus, nunca se refere, explicitamente, a necessidade física ou natural. É verdade que, como já foi referido, a necessidade física se subordina à moral.131 Por esse mesmo motivo, também se aplica à necessidade física (e assim a todas as verdades contingentes) a célebre expressão de “inclinar sem necessitar”. “As consequências geométricas e metafísicas necessitam, mas as consequências físicas e morais inclinam sem necessitar, tendo o próprio físico qualquer coisa de moral e de voluntário por relação a Deus, visto que as leis do movimento não têm de todo outra necessidade senão a resultante do melhor.”132 Admite, porém, que os corpos não possam escolher e até admite que, por isso, sejam chamados agentes necessários – mas porque Deus escolheu por eles, sendo, talvez por isso, verdadeiramente contingentes. No entanto, isso ocorreu apenas no ato da criação, havendo posteriormente inequívoca diferença entre necessidade moral e necessidade física, caso contrário, ou se atribuiria livre escolha às entidades materiais, ou negar-se-ia essa escolha aos espíritos. Na generalidade dos casos, Leibniz apenas distingue a necessidade absoluta, lógica e metafísica ou, em geral, da necessidade hipotética, ou da necessidade moral. Mas a defesa da liberdade humana está dependente da distinção da necessidade natural ou física, até porque é nesta que Clarke parece fazer residir as fundamentais acusações de fatalismo (necessitarismo ou determinismo no sentido atual). A distinção acaba por ser, implicitamente, feita, mas num contexto eventualmente problemático para a defesa das acusações de Clarke, na medida em que defende uma concordância total entre as duas segundo a harmonia pré-estabelecida: “A alma não perturba de todo as leis do corpo, nem o corpo as da alma, e (...) harmonizamse somente, uma agindo livremente, seguindo as regras das causas finais, e o outro agindo maquinalmente, seguindo as leis das causas eficientes. Mas isso não impede a liberdade das nossas almas, pois qualquer agente que aja segundo as causas finais é livre, embora aconteça que se concilie com aquilo que não age senão pelas causas eficientes, sem conhecimento ou maquinalmente; visto que Deus, prevendo o que a causa livre faria, regulou a sua máquina inicialmente de forma que ela não pudesse deixar de se harmonizar com a alma.”133 Importa reter, nesta passagem, a declaração de 130

Leibniz, op. cit., § 76, G, VII, 409: "J'ay renversé l’opinion de ceux qui soutiennent qu'il n'y a rien de possible, que ce qui arrive effectivement [...]. On confond la necessité morale, qui vient du choix du meilleur, avec la necessité absolue ; on confond la volonté avec la puissance de Dieu. Il peut produire tout possible, ou ce qui n’implique point de contradiction ; mais il veut produire le meilleur entre les possibles." 131 Leibniz, Essais de Théodicée, Discours..., § 2, G, VI, 50. 132 Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XXI, § 13, G, V, 164: "Les consequences Geometriques et Metaphysiques necessitent, mais les consequences Physiques et Morales inclinent sans necessiter ; le physique même ayant quelque chose de morale et de volontaire par rapport à Dieu, puisque les loix du mouvement n'ont point d’autre necessité que celle du meilleur." 133 Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 92, G, VII, 412: "L'Ame ne trouble point les loix du corps, ny le corps celles de l’ame, et [...] ils s'accordent seulement, l’un agissant librement, suivant les regles des causes finales, et l’autre agissant machinalement, suivant les loix des causes efficientes. Mais cela ne deroge point à la liberté de nos Ames, comme on le prend icy. Car tout Agent qui agit avec choix suivant les causes finales, est libre, quoyqu’il arrive qu’il s'accorde avec celuy qui n’agit que par des causes efficientes sans connoissance, ou par Machine, parce que Dieu prevoyant ce que la cause libre feroit, a

37

que toda e qualquer ação por causas finais é livre, visto aqui residir um dos problemas da teoria leibniziana da liberdade. Já a seguinte passagem parece ter uma linguagem menos problemática, mas o problema em causa, que mais tarde será tratado, continua a lá estar implícito: “As forças naturais dos corpos estão todas submetidas às leis mecânicas, e as forças naturais dos espíritos estão todas submetidas às leis morais. As primeiras seguem a ordem das causas eficientes e as segundas seguem a ordem das causas finais. As primeiras operam sem liberdade, como um relógio; as segundas são exercidas com liberdade, embora se harmonizem exatamente com essa espécie de relógio que uma causa livre superior acomodou com elas antecipadamente.”134 Ora, esta distinção e a inclusão da necessidade física ou natural entre as necessidades hipotéticas visto depender da livre condição divina, tem especial relevância para os equívocos e incompreensões desta polémica. Aparentemente, Clarke não parece seguir as distinções leibnizianas neste aspeto e não parece ver qualquer diferença entre a necessidade lógica e a necessidade física. Em resposta à primeira passagem do parágrafo anterior, volta a insistir, na sequência das anteriores acusações de fatalismo e necessitarismo: “Supor que todos os movimentos dos nossos corpos são necessária e inteiramente causados por meros impulsos mecânicos da matéria totalmente independentes da alma, é o que (...) tende a introduzir a necessidade e a fatalidade. Tende a fazer dos homens meras máquinas, como Descartes imaginou que seriam as bestas, retirando todos os argumentos tirados dos fenómenos, a partir das ações dos homens, para provar que existe alguma alma ou, de todo, qualquer coisa mais que a mera matéria no homem.”135 Ou seja, não só não vê diferença entre a necessidade física e a lógica, como considera que é posta em causa a própria necessidade moral, visto se explicar o movimento dos corpos humanos como resultado das meras leis mecânicas e, assim, não se poder explicar esses movimentos como resultantes de uma causa livre imediata. Quanto à própria necessidade moral proposta por Leibniz, Clarke parece menorizá-la, como se fosse apenas uma forma inadequada de se referir ao que está em causa: “A necessidade, em questões filosóficas, significa sempre necessidade absoluta. Necessidade hipotética e necessidade moral são apenas formas de falar figurativas e, na estrita verdade filosófica, não são necessidade alguma. A questão não é se uma coisa tem de ser, quando é suposto que seja ou que possa vir a ser (que é a necessidade hipotética); nem é questão se é verdadeiro que um ser bom, continuando a ser bom, não pode fazer o mal, ou um sábio, continuando a ser sábio, não pode agir de forma ignorante, ou uma pessoa honesta, continuando a ser honesta, não poderia dizer uma mentira (o que é a necessidade moral).”136 Mas, tal como na passagem anterior, coloca a reglé d'abord sa machine, en sorte qu'elle ne puisse manquer de s’y accorder." 134 Leibniz, op. cit., § 124, G, VII, 419: "Les forces naturelles des corps sont toutes soumises aux loix mechaniques ; et les forces naturelles des esprits sont toutes soumises aux loix morales. Les premieres suivent l’ordre des causes efficientes ; et les secondes suivent l’ordre des causes finales. Les premieres operent sans liberté, comme une montre ; les secondes sont exercées avec liberté, quoyqu'elles s’accordent exactement avec cette espece de montre qu’une autre cause libre superieure a accommodée avec elles par avance." 135 Clarke, Streitschriften..., 5ª réplica, § 92, G, VII, 430: "To suppose, that all the Motions of our Bodies are necessary, and caused entirely by mere mechanical impulses of matter, altogether independent on the Soul; is what [...] tends to introduce Necessity and Fate. It tends to make Men be thought as mere Machines, as Des Cartes imagined Beasts to be; by taking away all Arguments drawn from Phaenomena, that is, from the actions of Men, to prove that there is any Soul, or any thing more than mere Matter in Men at all." 136 Clarke, op. cit., 5ª réplica, §§ 1-20, G, VII, 423: "Necessity, in Philosophical Questions, always signifies absolute Necessity. Hypothetical Necessity, and Moral Necessity, are only Figurative Ways of Speaking, and in Philosophical strictness of Truth, are no Necessity at all. The Question is not, whether a

38

verdadeira questão da liberdade no facto da causa física imediata estar no agente. Quanto à expressão “formas de falar figurativas”, parece desqualificar as expressões como se lhe fossem estranhas, o que, por si só, é deveras estranho tendo em conta as teses e a linguagem das conferências já antes examinadas. Aí, em primeiro lugar, Clarke define a necessidade absoluta de forma estritamente lógica, como Leibniz: “Uma necessidade, não relativa ou consequencial, mas absoluta na sua própria natureza, não é nada mais do que a completa impossibilidade, implicando uma contradição, de supor o contrário. Por exemplo, a relação de igualdade entre duas vezes dois e quatro, é uma absoluta necessidade apenas porque é uma imediata contradição nos termos supô-los desiguais. Esta é a única ideia que podemos formar da necessidade absoluta e usar a palavra em qualquer outro sentido parece ser usá-la de todo sem qualquer significação.”137 Resta saber qual é a palavra a que se está a referir porque, se se trata da palavra “necessidade” e não da expressão “necessidade absoluta”, então boa parte da mesma conferência perde o sentido. Por exemplo, reconhece a existência de uma necessidade de conveniência (fitness), de sabedoria, de preservação da Beleza e Ordem, do melhor, perfeitamente idêntica à necessidade de escolher o melhor em Leibniz,138 que opõe à necessidade absoluta. Mas contrapõe: “Uma tal necessidade não é uma natural, mas apenas uma necessidade moral e consequencial”; e, tendo como alvo Spinoza, opõe-se a que Deus seja “determinado, não pela necessidade de sabedoria ou bondade, mas por uma mera necessidade natural, excluindo vontade ou escolha, para fazer as coisas tal qual elas agora são”.139 Ou seja, Clarke opõe a necessidade moral, relativa ou consequencial, à necessidade absoluta e natural, mesmo tendo em conta que considera a Natureza determinada pela necessidade moral de Deus, ao passo que Leibniz, quando usa a expressão necessidade física ou natural, está sempre a pensar numa necessidade hipotética porque dependente da escolha, segundo a necessidade moral, de Deus. Mais ainda, nem é claro que, quando Clarke se está a referir à necessidade física ou natural, esteja a pensar no mundo criado, visto também aplicar as expressões ao próprio juízo de Deus.140 Este passo, porém, só poderá ser inteiramente explicado em associação com a sua teoria da liberdade. De qualquer forma, parte da sua argumentação contra Spinoza incide sobre o caráter arbitrário das verdades naturais. Inicialmente, reduz ao absurdo a possibilidade de ser contraditório supor mais ou menos estrelas, planetas, plantas ou animais, ou supô-los constituídos de diferentes formas.141 Mas, posteriormente, utiliza, como prova Thing must be, when it is supposed that it is, or that it is to be; (which is Hypothetical Necessity:) Neither is it the Question whether it be True that a good Being, continuing to be Good, cannot do Evil; or a wise Being, continuing to be Wise, cannot act unwisely; or a veracious Person, continuing to be veracious, cannot tell a Lie; (which is moral Necessity:) But the true and only Question in Philosophy concerning Liberty, is, whether the immediate Physical Cause or Principle of Action be indeed in Him whom we call the Agent; or whether it be some other Reason sufficient, which is the real Cause of the Action, by operating upon the Agent, and making him to be, not indeed an Agent, but a mere Patient." 137 Clarke, DB, III, 31: "Now a Necessity, not relatively or consequentially, but absolutely such in its own Nature; is nothing else but a plain Impossibility or Implying a Contradiction to suppose the contrary. For instance; the Relation of Equality between twice two and four, is an absolute Necessity; only because it is an immediate Contradiction in Terms to suppose them unequal. This is the only Idea we can frame, of an Absolute Necessity; and to use the Word in any other Sense, seems to be using it without any Signification at all." 138 Ver II. 3 e as notas 95 a 98, Clarke, DB, III, 44, 45, 52, XII, 247. 139 Clarke, DB, III, 52: "That God was determined, not by a Necessity of Wisdom and Goodness, but by a mere Natural Necessity, exclusive of Will and Choice, to make all Things just as they now are." 140 Samuel Clarke, Remarks upon a Book entituled A Philosophical Enquiry concerning Human Liberty, London, James Knapton, 1717 [RB], p. 35: "God judges what is right, and approves what is Good, by a physical necessity of Nature." 141 Clarke, DB, III, p. 45.

39

da escolha e da sabedoria, a arbitrariedade da natureza, insistindo no caráter contingente das próprias leis newtonianas: “Não há a menor aparência de uma necessidade absoluta da natureza (de forma a que qualquer variação implicasse uma contradição) em qualquer dessas coisas. O próprio movimento e todas as suas quantidades e direções, com as leis da gravitação, são inteiramente arbitrárias; e poderiam ter sido, no seu conjunto, diferentes do que são agora.”142 Se, por exemplo, o movimento dos planetas mostra uma ordem e um desígnio, o movimento dos cometas mostra que não tinha de ser assim. Da mesma forma, não existe qualquer necessidade não só no número, mas também na ordenação de qualquer coisa, como se pode ver nos órgãos dos seres vivos.143 Essa linha de argumentação está, aliás, presente na polémica, onde a limitação da matéria existente no universo é apresentada como uma escolha que é a mais adequada por ser divina.144 Da mesma forma, o próprio Newton, nos Principia, atribui a diversidade das coisas naturais às ideias e vontade de um Ser necessário e não à necessidade metafísica cega.145 Ora, o carácter contingente das leis da natureza (mesmo não sendo as mesmas) não só também é afirmado por Leibniz, como é afirmado com o mesmo objetivo, como prova da existência de um criador inteligente e livre, aliás, também por oposição às teses de Spinoza.146 Isso, porém, não o faz afirmar qualquer arbitrariedade, pelo que poderá existir aqui alguma diferenciação adicional. Mas o que importa agora é que Clarke não vê que a natureza seja mais determinada necessariamente que Leibniz, antes pelo contrário. Parece óbvio que Clarke considera que não existe qualquer necessidade absoluta na Natureza no seu todo e reserva o termo para uma compreensão espinosista da natureza, sem desígnio, sem finalidade. Onde está, então, a diferença em relação a Leibniz, uma diferença que seja maior que uma leve diferença de linguagem? Na citação anterior, assim como na própria polémica, 147 Clarke admite que as próprias leis da natureza podem ser mudadas, 142

Clarke, DB, IX, 136-7: "There is not the least appearance of an Absolute Necessity of Nature, (so as that any Variation would imply a Contradiction,) in any of these Things. Motion it self, and all its Quantities and Directions, with the Laws of Gravitation, are intirely Arbitrary; and might possibly have been altogether different from what they now are." 143 Clarke, DB, IX, 138-9. 144 Clarke, Streitschriften..., 3ª réplica, § 9, G, VII, 369. 145 Newton, Philosophiæ naturalis..., Liber tertius, Scholium generale, OO, III, 173: "Deus sine domínio, providentiâ, & causis finalibus nihil aliud est quàm Fatum & Natura. A cæcâ necessitate metaphysicâ, quæ utique eadem est sempre & ubique, nulla oritur rerum variatio. Tota rerum conditarum pro locis ac temporibus diversitas, ab ideis & voluntatis Entis, necessariò existentes, solummodo oriri potuit." Aliás, a referência às ideias e vontade de Deus, assim como à diversidade, estão em consonância com Leibniz e Malebranche. 146 Leibniz, Essais de Théodicée, 3ª parte, § 345, G, VI, 319: "Les loix du mouvement qui se trouvent effectivement dans la nature, et sont verifiées par les experiences, ne sont pas à la verité absolument demonstrables, comme seroit une proposition geometrique : mais il ne faut pas aussi qu’elles le soyent. Elles ne naissent pas entierement du principe de la necessité, mais elle naissent du principe de la perfection et de l’ordre ; elles sont un effect du choix et de la sagesse de Dieu. Je puis demontrer ces Loix de plusieurs manieres, mais il faut tousjours supposer quelque chose qui n’est pas d’une necessité absolument geometrique. De sorte que ces belles loix sont une preuve merveilleuse d’un être intelligent et libre, contre le systeme de la necessité absolue et brute de Straton ou de Spinosa." Há, porém, uma diferença mais subtil nas duas abordagens aparentemente idênticas: enquanto Clarke afirma as leis naturais como “inteiramente arbitrárias”, Leibniz contenta-se a dizer, pela negativa, que “não nascem inteiramente do princípio da necessidade”. Leibniz parece querer dizer que existe uma base necessária que é modulada pela escolha divina. 147 Clarke, op. cit., 2ª réplica, § 8, G, VII, 361: "The present Frame of the Solar System (for instance) according to the present Laws of Motion, will in time fall into Confusion; and perhaps, after That, will be amended or put into a new Form. But this Amendment is only relative, with regard to Our Conceptions. In reality, and with regard to God, the present Frame, and the consequent Disorder, and the following Renovation, are all equally parts of the Design framed in Gods Original perfect Idea. Tis in the Frame of

40

seguindo embora o desígnio divino existente desde sempre. Ora, quando Leibniz fala de necessidade física, embora esta esteja dependente da necessidade moral divina, está a pensar em sequências necessárias que não podem ser mudadas após a criação. Esta questão está intimamente ligada à diferente conceção de Providência destes autores que será tratada na sexta parte desta dissertação. Regressando à rejeição da necessidade natural, ainda ao falar dos espinosistas, Clarke declara: “Se, por necessidade da natureza divina, não entendem a perfeição e a retidão da sua vontade, pela qual Deus é inalteravelmente determinado a fazer o que é melhor para o todo (como confessadamente não o fazem porque isto é consistente com a mais perfeita liberdade e escolha), mas, pelo contrário, significam uma absoluta e estritamente natural necessidade, segue-se, evidentemente, que quando dizem que Deus, pela necessidade da sua natureza, é a causa e o autor de todas as coisas, entendem-no como causa e agente em nenhum outro sentido que aquele em que um homem dissesse que uma pedra, pela necessidade da sua natureza, é a causa da sua queda e de atingir o chão, o que não é, de todo, ser um agente ou causa”.148 Não é possível deixar de lembrar o próprio exemplo de Spinoza,149 até porque a dependência da pedra ou qualquer outro ser criado individual de causas externas, não deixa de lembrar a linguagem de Clarke acerca da liberdade (ou melhor, da falta dela). Por outro lado, para quem menosprezava os termos necessidade moral ou hipotética na polémica, poder-se-ia pensar que admitia, nessas situações, alternativas, ao contrário de Leibniz. Ora, nesta passagem, já surge a expressão “inalteravelmente determinado” que parece corresponder à conceção de Leibniz. Em várias outras passagens, opõe os tipos de necessidade, nomeadamente distinguindo também a impossibilidade moral da impossibilidade natural. 150 Porém, nunca põe em causa a certeza da determinação moral, pelo menos em relação a Deus. Por exemplo: “Embora todas as ações de Deus sejam inteiramente livres e, consequentemente, o exercício dos seus atributos morais não possa ser considerado necessário, no mesmo sentido de necessidade em que a sua existência e eternidade são necessárias, porém, esses atributos morais são real e verdadeiramente necessários, por uma tal necessidade que, embora não seja, de todo, inconsistente com a liberdade, é, no entanto, tão igualmente certa, infalível e fiável como até a própria existência ou a eternidade de Deus.”151 Clarke tenta resolver este aparente paradoxo, refutando que a presciência implique a necessidade, visto a previsão não ser causa e, como tal, o que the World, as in the Frame of Mans Body: The Wisdom of God does not consist, in making the present Frame of Either of them Eternal, but to last so long as be thought fit." É claro que esta passagem diz muito mais... 148 Clarke, DB, IX, 128-9: "For if by the Necessity of the Divine Nature they understand not the Perfection and Rectitude of his Will, whereby God is unalterably determined to do always what is best in the whole; (as confessedly they do not; because this is consistent with the most perfect Liberty and Choice;) but on the contrary they mean an Absolute and Strictly Natural Necessity: It follows evidently, that when they say God, by the Necessity of his Nature, is the Cause and Author of all things; they understand him to be a Cause or Agent in no other Senses than as if a Man should say that a Stone, by the Necessity of its Nature, is the Cause of its own falling and striking the Ground; which is really not to be an Agent or Cause at all." 149 Benedictus de Spinoza, ed. Gebhardt, Heidelberg, 1926; tr. ingl. Samuel Shirley, Complete Works, Indianapolis, Hackett, 2002 [CW], Letter to G. H. Schuller de 8/10/1674, p. 909. 150 Clarke, DB, X, 208. 151 Clarke, DB, XII, 243: "That though All the Actions of God, are entirely Free; and consequently the Exercise of his Moral Attributes cannot be said to be Necessary, in the same Sense of Necessity as his Existence and Eternity are Necessary; yet these Moral Attributes are really and truly Necessary, by such a Necessity, as, though it be not at all inconsistent with Liberty, yet is equally Certain, Infallible, and to be Depended upon, as even the Existence it self, or the Eternity of God."

41

ocorrer, ocorreria mesmo sem qualquer previsão.152 Não deixa, aliás, mais uma vez, de ser surpreendente a semelhança com a argumentação do próprio Leibniz a este propósito.153 Porém, a criação é causa e o que rege a criação é, exatamente, a referida necessidade moral infalível. Ora, enquanto Leibniz se defende da acusação de necessitarismo ou fatalismo, escudando-se nas distinções lógicas modais entre o necessário e o contingente, e entre o impossível e o possível, mas reconhecendo, como se verá, a predeterminação física e anímica, evitando sempre utilizar a palavra “impossível” para a alternativa à predeterminação, Clarke, apesar de fazer uma definição idêntica da necessidade absoluta, talvez por a confundir com a necessidade natural e não ter tanta consciência do seu fundamento na lógica modal e de ser aí que reside a sua única defesa, acaba por resvalar na linguagem utilizada: “porém, é, não obstante, tão verdadeira e absolutamente impossível para Deus não fazer ou fazer qualquer coisa contrária ao que os seus atributos morais lhe requerem que faça, como se ele realmente fosse não um agente livre, mas sim um necessário.”154 Não deixa de ser curioso que alguém que tanto ataca o rival de necessitarismo e fatalismo, nomeadamente em relação ao próprio Deus, acabe por declarar, até contraditoriamente com a sua definição, que lhe seria impossível fazer o contrário daquilo que fez. Talvez isto permita compreender, além disso, a linguagem utilizada na segunda conferência de Boyle, onde, como já se viu, equipara as verdades morais às verdades matemáticas. Múltiplas vezes se refere às diferenças necessárias das coisas e às necessárias e eternas diversas relações das coisas155 como referencial para a necessidade moral das criaturas, mas deixando em aberto se em si mesmas são moralmente necessárias ou absolutamente necessárias, até por muitas vezes estarem acompanhadas pela noção de natureza ou do respetivo adjetivo, assim como deixa em aberto como seria essa necessidade para Deus. 156 Porém, parece considerar absolutamente necessária essa conveniência ou inconveniência das coisas 157 e já foi referido que essa lei moral da natureza é antecedente à própria decisão divina. 158 Curiosamente, as leis estritamente físicas parecem ser mais arbitrárias e menos naturais, no sentido em que constantemente funde matemático e natural, do que a lei moral. Não se julgue, porém, que o próprio Leibniz se reduzia a uma noção puramente lógica da necessidade absoluta. Talvez a confusão entre a necessidade lógica e a necessidade física também persistisse um pouco em Leibniz. As leis da natureza estão num meio-termo entre a absoluta necessidade e a completa arbitrariedade, mas apenas 152

Clarke, DB, X, 217: "Mere Certainty of Event therefore, does not in any measure imply Necessity: And consequently Fore-knowledge, however impossible to be explained as to the Manner of it, yet since 'tis evident it implies no other Certainty but only that Certainty of Event which the Thing would equally have without being fore-known, 'tis evident that It also implies no Necessity." Vide o mesmo argumento, juntamente com a distinção entre necessidade e aparência, em Clarke, RB, 38-9. 153 Leibniz, Essais de Théodicée, 1ª parte, §§ 37-38, G, VI, 123-4. 154 Clarke, DB, XII, 244: "Yet it is nevertheless as truly and absolutely impossible for God not to do (or to do any thing contrary to,) what his Moral Attributes require him to do; as if he was really, not a Free, but a Necessary Agent." Naturalmente, o negrito não é do autor. Não se trata, porém, de um deslize ocasional. Na sequência, volta a afirmar o mesmo, a impossibilidade de fazer o contrário, por, pelo menos, duas vezes. Além disso, não alterou estas afirmações nas versões subsequentes da conferência, como já se viu noutros casos. 155 Clarke, DC, 27-9. 156 Clarke, DC, 40. 157 Clarke, DC, 95: "The Nature indeed and Relations, the Proportions and Disproportions, the Fitness and Unfitness of Things, are eternal, and in themselves absolutely unalterable". 158 Clarke, DC, 68-9. Ver II. 2, nota 57. Mas há um passo final relevante para a questão anterior da necessidade natural: "their Proportions [das coisas], which are abstractly of eternal Necessity, are also in the Things themselves absolutely unalterable."

42

por serem uma escolha de Deus, em primeiro lugar, e por dependerem, constantemente, da finalidade das próprias mónadas, em segundo. De facto, ao enumerar os casos possíveis, diz: “primeiramente, uma necessidade absoluta, metafísica ou geométrica que se pode chamar cega e que não depende senão das causas eficientes”.159 É verdade que esta não é a necessidade física que Leibniz advoga, mas sê-lo-ia caso não existisse a determinação por causas finais,160 como acontece na conceção de Spinoza. Ora, como pode Leibniz sustentar que uma estrita causalidade eficiente implicaria uma necessidade lógica, redutível ao princípio de identidade, em que o oposto implicaria contradição? Se não houvesse escolha, a contingência seria necessária? Talvez seja a altura de abordar uma distinção que, eventualmente, já poderia ter sido tratada no ponto II. 2., mas que se torna muito mais premente neste assunto: a distinção entre essencial e natural. Leibniz distingue-os na Teodiceia, através do exemplo do movimento: “é como naturalmente o mesmo movimento dura, se alguma nova causa não o impedir ou mudar, porque a razão 159

Leibniz, Essais de Théodicée, 3ª parte, § 349, G, VI, 321: "Les loix de la nature qui reglent les mouvemens ne sont ny tout à fait necessaires, ny entierement arbitraires. Le milieu qu’il y a à prendre, est qu’elles sont un choix de la plus parfaite sagesse. Et ce grand exemple des loix du mouvement fait voir le plus clairement du monde, combien il y a de difference entre ces trois cas, savoir premierement une necessité absolue, metaphysique ou geometrique, qu’on peut appeler aveugle et qui ne depend que des causes efficientes ; en second lieu, une necessité morale, qui vient du choix libre de la sagesse par rapport aux causes finales ; et enfim en troisieme lieu, quelque chose d’arbitraire absolument, dependant d’une indifference d’equilibre qu’on se figure, mais qui ne sauroit exister, où il n’y a aucune raison suffisante ny dans la cause efficiente ny dans la finale." Este passo talvez não seja claro mas, se se pensar que o recurso ao princípio do melhor envolve a consideração da finalidade, esta referência a provas a priori parece remeter para as verdades de razão: Leibniz, op. cit., Discours…, § 59, G, VI, 83: "Celuy qui prouve une chose a priori, en rendre raison par la cause eficiente." 160 Aliás, parece que o único motivo porque as causas eficientes não estão na dependência das verdades de razão e do princípio da necessidade lógica é a sua subordinação às causas finais divinas, à sabedoria divina: Leibniz, Principes..., § 11, G, VI, 603: "Par la seule consideration des causes efficientes ou de la matiere, on ne sauroit rendre raison de ces loix du mouvement découvertes de notre temps, et dont une partie a été découverte par moy même. Car j’ay trouvé qu’il y faut recourir aux causes Finales, et que ces loix ne dependent point du principe de la necessité, comme les verités Logiques, Arithmetiques et Geometriques, mais du principe de la convenance, c’est à dire du choix de la sagesse." Ainda é mais clara a ligação do que, hoje, se chama inércia (a inércia de Leibniz é a de Kepler, a resistência ao movimento) à sabedoria divina: Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XXI, § 9, G, V, 161: "Cette verité conditionelle, savoir : supposé que la balle soit en mouvement dans un horison uni sans empechement, elle continuera le même mouvement, peut passer pour necessaire en quelque manière, quoyque dans le fonds cette consequence ne soit pas entierement geometrique, n'estant que présomtive pour ainsi dire et fondée sur la sagesse de Dieu qui ne change pas son influence sans quelque raison, qu'on presume ne se point trouver presentement ; mais cette proposition absolue : la balle que voicy, est maintenant en mouvement dans ce plan, n'est qu'une verité contingente". Para tornar tudo mais claro, nesta identificação entre necessidade geométrica e determinação exclusivamente por causas eficientes, Leibniz chega a usar a expressão “necessidade geométrica por causas eficientes”, Leibniz, Essais de Théodicée, 3ª parte, § 350, G, VI, 322: "Cela seroit vray, si par exemple les loix du mouvement, et tout le reste, avoit sa source dans une necessité geometrique des causes efficientes ; mais il se trouve que dans la derniere analyse, on est obligé de recourir à quelque chose qui depend des causes finales, ou de la convenance." Porém, em vários passos, fá-las depender de quaisquer causas finais, mesmo as das mónadas não espirituais, onde é discutível onde está a escolha sábia, a não ser na dependência da escolha divina original: Leibniz, Carta para Remond de Julho de 1714, G, III, 623: "Les loix du mouvement, etant fondées dans les perceptions des substances simples, viennent des causes finales ou de convenance, qui sont immaterieles et en chaque monade ; mais si la matiere estoit substance, elle viendroient de raison brutes ou d'une necessité geometrique, et seroient tout autres qu'elles ne sont." É verdade que, neste passo, a hipótese seria a de uma matéria, uma coisa extensa, não fenoménica, como em Descartes que, exatamente, a reduziu às determinações geométricas. Aparentemente, as causas finais cegas das mónadas mais básicas são também garantia da execução do plano divino e, por isso, garantia de leis naturais não necessárias. Resta saber como é que o contrário de uma bola em movimento se tornaria contraditório, caso não existissem causas finais.

43

que o faz cessar nesse instante, se não é nova, já o teria feito cessar mais cedo”, 161 ao passo que, se algo for essencial, não pode ser mudado de forma alguma. A distinção parece correspondente à distinção entre verdades de razão e verdades de facto, e entre necessidade lógica e necessidade hipotética. O natural não é essencial porque o contrário do natural não é impossível. Como pode então um movimento que tivesse uma origem, mesmo que quimérica do ponto de vista leibniziano, estritamente eficiente ser absolutamente necessário? Nesse caso, o seu contrário seria impossível? Leibniz nunca se refere à necessidade física como absoluta, mas, no fundo, porque considera que o mundo não poderia existir se não fosse criado por Deus e, como tal, resultado da sua escolha entre possíveis. Um mundo que tivesse surgido ou existisse desde sempre, unicamente por causas eficientes, seria uma quimera inconcebível e é por isso que Leibniz não utiliza o termo necessidade física ou natural neste sentido. Aliás, do ponto de vista de Leibniz, sem Deus, de facto o contrário do natural seria impossível, porque nem sequer existiria o possível.162 5. O contingente em Leibniz Numa passagem do final da Teodiceia, Leibniz explica o contingente pelo facto de que, se tentasse fazer a sua análise como nas verdades necessárias, ela seria interminável, nunca chegando a verdades cujo contrário implicasse contradição.163 São conhecidas as comparações da diferença entre verdades necessárias e contingentes com a dos números racionais em relação aos surdos164, ou entre uma equação exata e os limites de uma aproximação, que procuram mostrar não apenas o facto de serem análises só resolúveis ao infinito, mas também e talvez sobretudo, de serem inacessíveis aos espíritos criados. Duchesneau, seguindo a análise de Adams, refere que mesmo Deus não poderia terminar tal análise.165 Nesse caso, poder-se-ia pensar numa diferença lógica de raiz, mas a formulação é equívoca visto uma análise infinita não poder ter, obviamente, termo. Deus não precisa fazer qualquer análise porque conhece, de um só golpe, a série total das coisas.166 Assim, parece que, mais do que uma diferença lógica, se coloca uma questão epistemológica que consiste em ser mais difícil, para os homens, 161

Leibniz, Essais de Théodicée, § 383, G, VI, 342: "C’est la difference qu’on peut faire entre l’essentiel et le naturel ; c’est comme naturellement le même mouvement dure, si quelque nouvelle cause ne l’empêche, ou le change, parce que la raison qui le fait cesser dans cet instant, si elle n’est pas nouvelle, l’auroit déja fait cesser plustost." Ver também Leibniz, Nouveaux essais..., L. IV, Ch. IX, § 1, G, V, 414. 162 Leibniz, Essais de Théodicée, 2ª parte, § 184, G, VI, 226-7: "Sans Dieu, non seulement il n’y auroit rien d’existant, mais il n’y auroit rien de possible." 163 Leibniz, op. cit., Remarques..., § 14, G, VI, 414: "Lors que poussant l’analyse tant qu’il vous plaira, on ne sauroit jamais parvenir à de tels elements de la verité donnée, il faut dire qu’elle est contingente, et qu’elle a son origine d’une raison prevalante que incline sans necessiter." 164 Leibniz, Specimen inventorum de admirandis naturae Generalis arcanis, G, VII, 309: "Essentiale est discrimen inter Veritates necessarias sive aeternas, et veritates facti sive contingentes, differuntque inter se propemodum ut numeri rationales et surdi." Ainda mais claro em Leibniz, OF, 17-8: "Itaque Veritates contingentes ad necessarias quodammodo se habent ut rationes surdæ, numerorum incommensurabilium, ad rationes effabiles numerorum commensurabilium. [...] Hoc solum interest, quod in rationibus surdis nihilominus demonstrationes instituere possumus, ostendendo errorem esse minorem quovis assignabili, at in Veritatibus contingentibus ne hoc quidem concessum est menti creatæ. Atque ita arcanum aliquod à me evolutum puto, quod me ipsum diu perplexum habuit; non intelligentem, quomodo prædicatum subjecto inesse posset, nec tamen propositio fieret necessaria. Sed cognitio rerum Geometricarum atque analysis infinitorum hanc mihi lucem accendêre, ut intelligerem, etiam notiones in infinitum resolubiles esse." 165 François Duchesneau, op. cit., p. 133. 166 Leibniz, Praecognita ad Encyclopaediam sive Scientiam universalem, G, VII, 44: "Quanquam autem et quae facti sunt, rationes suas habeant adeoque sua natura resolvi possint, non tamen a nobis a priori per suas causas sciri possent nisi cognita tota serie rerum, quod humani ingenii vim superat, itaque a posteriori discuntur experimentis."

44

ser profeta do que ser geómetra. 167 Isso coloca o contingente dependente da escolha divina e das limitações do nosso conhecimento (que Deus, por sinal, não tem). Mas não podendo Deus ser em nada contingente, pode-se perguntar como poderia a sua escolha e a sua criação serem outras (ou seja, como pode a sua escolha ser contingente), especialmente porque a escolha do universo é só uma, estando nele tudo ligado como num oceano, inextricavelmente indissociável.168 Na própria polémica, aliás referindo-se à Teodiceia, afirma: “Não há senão um só decreto no universo inteiro pelo qual foi resolvido de admitir a possibilidade à existência.”169 Pondo de lado a questão de se para Deus seriam verdades necessárias, já que parece contraditório não só com a sua natureza, mas também com a sua essência, não escolher o melhor, o que é um facto é que as razões aduzidas para a postulação do contingente não são de estrita ordem lógica. Uma poder-se-á dizer que é ontológica e a outra é gnosiológica. É possível que seja esta fraca sustentação da contingência, dependente das nossas limitações cognitivas e de uma escolha que parece decorrer da essência divina, que tenha feito Leibniz persistir, embora, como se verá, sob forma algo crítica, na tese cartesiana da criação contínua.170 A tese é afirmada e reafirmada contra Clarke para se contrapor à relação pensada por Newton entre Deus e as coisas criadas (quer por se relacionar de menos, uma mera presença, quer por se envolver de mais, através dos “arranjos” concretos da sua máquina) e para conceber de outra forma a dependência da criatura em relação ao criador.171 Porém, tendo em conta que tudo é decidido por Deus 167

Leibniz, Carta para Arnauld de 14/7/1686, G, II, 53: "Quoyqu’il soit aisé de juger, que le nombre des pieds du diametre n’est pas enfermé dans la notion de la sphere en general, il n’est pas si aisé de juger certainement (quoyqu’on le puisse juger assez probablement), si le voyage que j’ay dessein de faire est enfermé dans ma notion, autrement il seroit aussi aisé d’estre prophete que d’estre geometre." 168 Leibniz, Essais de Théodicée, 1ª parte, § 9, G, VI, 107-8: "Tout est lié dans chacun des Mondes possibles : l’Univers, quel qu’il puisse être, est tout d’une pièce, comme un Ocean ; le moindre mouvement y etend son effect à quelque distance que ce soit, quoyque cet effect devienne moins sensible à proportion de la distance : de sorte que Dieu y a tout reglé par avance une fois pour toutes, ayant prevu les prieres, les bonnes et les mauvaises actions, et tout le reste ; et chaque chose a contribué idealement avant son existence à la resolution qui a été prise sur l’existence de toutes les choses. De sorte que rien ne peut être changé dans l’univers (non plus que dans un nombre) sauf son essence, ou si vous voulés, sauf son individualité numerique." 169 Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 66, G, VII, 407: "J'ay montré dans la Theodicée, qu’à proprement parler, il n'y a qu’un seul decret pour l’univers tout entier, par lequel il est resolu de l’admettre de la possibilité à l’existence." 170 O argumento original de Descartes que é, indiretamente, visado na Teodiceia (Leibniz, Essais de Théodicée, 3ª parte, § 383, G, VI, 342), surge, e. g., Descartes, Méditations, Med. troisième, OL, 297. O texto seguinte é uma tradução, mas uma tradução revista e corrigida pelo próprio Descartes, como esclarece Baillet, pelo que se pode considerar um segundo texto original: "Tout le temps de ma vie peut être divisé en une infinité de parties, chacune desquelles ne dépend en aucune façon des autres ; et ainsi, de ce qu’un peu auparavant j’ai été, il ne s’ensuit pas que je doive maintenant être, si ce n’est qu’en ce moment quelque cause me produise et me crée, pour ainsi dire, derechef, c’est-à-dire me conserve. En effet c’est une chose bien claire et bien évidente (à tous ceux qui considéreront avec attention la nature du temps), qu’une substance, pour être conservée dans tous les moments qu’elle dure, a besoin du même pouvoir et de la même action, qui serait nécessaire pour la produire et la créer tout de nouveau, si elle n’était point encore : En sorte que la lumière naturelle nous fait voir clairement, que la conservation et la création ne diffèrent qu’au regard de notre façon de penser, et non point en effet." 171 O âmbito em que estas questões são discutidas será tratado mais tarde, Neste momento, só interessa a sua relevância para a determinação do contingente. Começa por afirmar a produção contínua, Leibniz, Streitschriften..., 2º escrito, § 5, G, VII, 357: "Dieu [...] conserve les choses par une action qui produit continuellement ce qu'il y a de bonté et de perfection en elles"; e, de forma vaga, a sua influência contínua, ibidem, § 8, G. VII, 358; estranhamente e talvez contraditoriamente, faz depender o conhecimento divino das coisas da produção contínua, ibidem, 4º escrito, § 30, G, VII, 375: "Dieu connoist les choses, parce qu'il les produit continuellement"; insiste que a dependência das criaturas provém da produção contínua que as mantém a existir, ibidem, 5º escrito, §§ 85-86, G, VII, 410-1; e,

45

num só decreto, o da criação, e que cada substância se autodetermina, a partir daí, como uma séria causal infinita, em que as disposições anteriores causam os estados posteriores, para que serve, na “economia” explicativa do sistema leibniziano, a criação contínua? O próprio Leibniz critica a tese cartesiana através da distinção já referida entre natural e essencial. Considera que, de não se seguir necessariamente a existência agora da existência anterior, não significa que não se siga naturalmente, e que os cartesianos entendem o tempo como um conjunto de momentos descontínuos, em vez de modalidades do contínuo, ou melhor, extremidades das partes que lhe podemos assinalar. 172 Nessa sequência, começa por assegurar apenas a dependência contínua, admitindo que se lhe possa chamar produção e até mesmo conservação, mas estando longe de mostrar o entusiasmo pela tese patenteado na correspondência com Clarke.173 Porém, notoriamente insatisfeito com esta admissão, para manter a sequência causal determinada de cada criatura, defende uma anterioridade de natureza, seguindo a ordem sábia de Deus, em que a essência da criatura é produzida antes dos acidentes, e a natureza antes das operações, reproduzindo Deus sempre as mesmas substâncias e almas, também sempre naquilo que nelas for perfeição e não nas suas limitações.174 Além disso, embora a criatura se não dê a si própria a existência (mas também a não possa perder naturalmente), em harmonia com o seu pensamento, teve de defender um concurso próprio da criatura em tudo o resto.175 Todas estas reticências não são notórias na polémica, porventura por se estar a defender da acusação que será tratada no ponto seguinte, à qual estava associada uma outra, a de excluir Deus do mundo, quase o acusando de deísmo176. É verdade que, no final da polémica, acaba por afirmar que, em cada substância, a partir da criação inicial, o estado seguinte é consequência do anterior de forma perpétua.177 Mas nunca põe, na correspondência, esta tese, com tudo o que ela implica, em direto confronto com a tese cartesiana, como o faz na Teodiceia. Apesar disso, alguma razão mais forte que as circunstâncias das controvérsias deverá ter levado à aceitação, mesmo que limitada, por Leibniz, da tese aparentemente dispensável no seu finalmente, responde ao descanso divino alegado por Clarke (estranhamente, tendo em conta a constante intervenção divina defendida), defendendo a produção contínua, apesar de reconhecer não haver substâncias novas, ibidem, § 88, G, VII, 411: "Ce seroit bien abuser du Texte de la Sainte Ecriture, suivant lequel Dieu repose de ses ouvrages que d'en inferer qu'il n’y a plus de production continuée. Il est vray qu'il n'y a point production de substances simples nouvelles." 172 Leibniz, Essais de Théodicée, 3ª parte, §§ 383-384, G, VI, 342-3. 173 Leibniz, op. cit., § 385, G, VI, 343-4: "Ce qu’on peut dire d’asseuré sur le present sujet, est que la creature depend continuellement de l’operation Divine, et qu’elle n’en depend pas moins depuis qu’elle a commencé, que dans le commencement. Cette dependance porte, qu’elle ne continueroit pas d’exister, si Dieu ne continuoit pas d’agir ; enfim que cette action de Dieu est libre. Car si c’étoit une emanation necessaire, comme celle des proprietés du cercle, qui coulent de son essence, il faudroit dire que Dieu a produit d’abord la creature necessairement, ou bien, il faudroit voir comment en la creant une fois, il s’est imposé la necessité de la conserver. Or rien n’empêche que cette action conservatice ne soit appellée production, et même creation, si l’on veut. Car la dependance étant aussi grande dans la suite que dans le commencement, la denomination extrinseque, d’être nouvelle ou non, n’en change point la nature." 174 Leibniz, op. cit., §§ 388-391, G, VI, 345-7. 175 Leibniz, op. cit., § 391, G, VI, 347: "J’accorde donc que la creature ne concourt point avec Dieu pour se conserver [...], mais je ne voy rien qui l’empêche de concourir avec Dieu pour la production de quelque autre chose, et particulierement de son operation interne, comme seroit une pensée, une volition, choses réellement distinctes de la substance." 176 Clarke, Streitschriften..., 2ª réplica, § 4, G, VII, 355: "His Doctrine does in Effect tend to Exclude God out of the World." Não o faz na polémica, mas, em nota (posterior) à primeira e mais grave (porque abrangente) forma de deísmo identificada na segunda conferência de Boyle, associa a intelligentia supramundana de Leibniz (embora sem o nomear) ao deísmo e até, implicitamente, ao materialismo: Clarke, DC, Introduction, 13, nota. 177 Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 91, G, VII, 412.

46

sistema, da criação contínua. A única razão que parece fazer sentido é a de, exatamente, reforçar o caráter contingente do criado, através da dependência contínua do criador. 6. A fatalidade e a predeterminação A acusação que levou Leibniz a distinguir, na polémica, os tipos de necessidade, não era apenas a relativa à necessidade, mas também a relativa à fatalidade. A primeira resposta de Leibniz a esta última acusação é a de que essa alegada fatalidade não passaria da ordem mais sábia da Providência, contrária a uma fatalidade ou necessidade bruta, mas admite, implicitamente, tratar-se de uma fatalidade. 178 Porém, após a distinção já tratada entre os tipos de necessidade, sente necessidade de fazer, tal como havia feito na Teodiceia, 179 uma distinção entre os tipos de fatalidade: “Quanto à fatalidade que também me imputam, é de novo um equívoco. Há fatum mahometanum, fatum stoicum, fatum christianum. O destino à turca quer que os efeitos cheguem mesmo que evitássemos a causa, como se houvesse uma necessidade absoluta. O destino estoico quer que estejamos tranquilos porque é preciso ter paciência à força, visto não podermos resistir à sequência das coisas. Mas nós aceitamos que haja fatum christianum, um destino certo de todas as coisas, regulado pela presciência e pela providência de Deus. Fatum (...), no bom sentido, significa o decreto da providência. E aqueles que a ele se submetem pelo conhecimento das perfeições divinas, do qual o amor de Deus é uma consequência (pois consiste no prazer que dá este conhecimento), não adquirem apenas paciência como os filósofos pagãos, mas estão mesmo contentes com o que Deus ordena, sabendo que ele faz tudo para o melhor; e não somente para o maior bem em geral, mas ainda para o maior bem particular daqueles que o amam.”180 Note-se, antes de mais, que este trecho contém a única referência da polémica à conceção leibniziana do amor, expressa de forma magistralmente concisa como corolário do conhecimento de Deus. Por outro lado, veja-se que Leibniz não hesita em utilizar a palavra destino para a conceção de fatalidade que defende, o que não é surpreendente, tendo em conta que toda a sua conceção de liberdade foi elaborada com o objetivo de compatibilizar esta com a predeterminação. O destino estoico é apresentado de forma tão abreviada que não é possível ver a parcial aprovação e integração da noção na conceção cristã feita na passagem já referida da Teodiceia. Pode-se considerar que o destino estoico corresponde, para Leibniz, à face negativa do destino cristão, na medida em que ensina a paciência e o abandono das preocupações e dos esforços inúteis. A conceção que é, por ele, verdadeiramente condenada é aquela que denomina turca e que corresponde, grosso modo, a uma falácia por ele muito criticada, a falácia da razão preguiçosa. Aliás, logo a seguir à passagem referida da Teodiceia, Leibniz lastima-se de tal conceção ser muito generalizada entre os próprios cristãos, não tanto quando os perigos são evidentes ou as esperanças manifestas, mas quando os mesmos são duvidosos e distantes: aí já respondem, frequentemente, que os 178

Leibniz, op. cit., 3º escrito, § 8, G, VII, 365. Ver II. 4, nota 125. Leibniz, Essais de Théodicée, Préface, pp. 6-7, G, VI, 30-1. 180 Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 13, G, VII, 391: "Pour ce qui est de la Fatalité, qu’on m’impute aussi, c’est encore une Equivoque. Il y a fatum Mahometanum, fatum Stoicum, fatum Christianum. Le destin à la Turque veut que les effects arriveroient quand on en eviteroit la cause, comme s’il y avoit une necessité absolue. Le destin Stoicien veut qu’on soit tranquille : parce qu’il faut avoir patience par force, puisqu’on ne sauroit regimber contre la suite des choses. Mais on convient qu’il y a fatum Christianum, une destinée certaine de toutes choses, reglée par la prescience et par la providence de Dieu. Fatum [...], dans le bon sens, il signifie le decret de la providence. Et ceux qui s’y soumettent par la connoissance des perfections divines, dont l’amour de Dieu est une suite (puisqu’il consiste dans le plaisir que donne cette connoissance) ne prennent pas seulement patience comme les philosophes payens, mais ils sont même contents de ce que Dieu ordonne, sachans qu’il fait tout pour le mieux, et non seulement pour le plus grand bien en general, mais encore pour le plus grand bien particulier de ceux qui l’aiment." 179

47

nossos dias estão contados e que não serve de nada lutar contra o que Deus nos destina.181 Da mesma forma, o senso comum (le vulgaire) negligencia os votos e as orações, os méritos e as boas ações, visto nada alterarem em relação ao que está destinado.182 Leibniz pretende superar o sofisma preguiçoso, considerando que nele se imaginam os efeitos desligados das causas, não compreendendo que se Deus previu os efeitos, também previu as causas, e que se previu que uma criança morreria de fome, também previu que isso ocorreria porque o pai julgou que não valia a pena ir trabalhar. 183 A este propósito, pode-se entrever um dos aspetos menos explicitados e mais problemáticos, relacionado normalmente com a aparência de indiferença, da sua conceção de liberdade no que se refere ao ser humano: a ignorância. “Todo o futuro está determinado, sem dúvida; mas como não sabemos como ele o está, nem o que está previsto ou resolvido, devemos fazer o nosso dever, segundo a razão que Deus nos deu e seguindo as regras que nos prescreveu; e, depois disso, devemos ter o espírito em repouso e deixar ao próprio Deus cuidar do sucesso”. 184 A entrega confiante a Deus constitui, assim, a natureza do fatum christianum. Intimamente ligada com a questão da fatalidade, está a questão da predestinação e da predeterminação. Estranhamente, há menos reservas, em Leibniz, quanto à predeterminação do que quanto à predestinação, mas isso acontece porque este último tema surge mais associado às questões da graça, do pecado, da salvação e da danação, que excedem, em geral, o âmbito da polémica entre Leibniz e Clarke. Como já se viu, com uma argumentação muito semelhante à de Clarke e contrária a outros autores da época, Leibniz considera que a presciência não determina em nada os acontecimentos, mas acrescenta à argumentação de Clarke (que se escuda na impossibilidade de saber como Deus prevê) que só prevê porque os acontecimentos estão determinados. O próprio Leibniz antecipa o que um adversário da liberdade poderia dizer e que Clarke procurou evitar: “Concordo que a presciência, em si mesma, não torna de todo a verdade mais determinada, mas é a causa da presciência que o faz. Pois, é bem preciso que a presciência de Deus tenha o seu fundamento na natureza das coisas e esse fundamento, tornando a verdade predeterminada, impedi-la-á de ser contingente e livre.” 185 Daí, aliás, que inúmeros filósofos e teólogos tenham tentado, pelo menos, limitar esta predeterminação. Leibniz reconhece o problema: “Se a presciência de Deus nada tem em comum com a dependência ou independência das nossas ações livres, o mesmo não acontece 181

Leibniz, Essais de Théodicée, Préface, G, VI, 31. Leibniz, op. cit., 1ª parte, § 54, G, VI, 132. 183 Leibniz, op. cit., § 55, G, VI, 132-3: "L’effect étant certain, la cause qui le produira l’est aussi ; et si l’effect arrive, ce sera par une cause proportionée. Ainsi vostre paresse fera peutêtre que vous n’obtiendrés rien de ce que vous souhaités, et que vous tomberés dans les maux que vous auriez evités en agissant avec soin. L’on voit donc que la liaison des causes avec les effects, bien loin de causer une fatalité insupportable, fournit plustost un moyen de la lever. Il y a un proverbe Allemand qui dit, que la mort veut tousjours avoir une cause ; et il n’y a rien de si vray. Vous mourrés ce jour lá (supposons que cela soit, et que Dieu le prevoye) ouy, sans doute ; mais ce sera parce que vous ferés ce qui vous y conduira." 184 Leibniz, op. cit., § 58, G, VI, 134: "Tout l’avenir est determiné, sans doute : Mais comme nous ne savons pas comment il l’est, ny ce qui est prevu ou resolu, nous devons faire nostre devoir, suivant la raison que Dieu nous a donnée, et suivant les regles qu’il nous a prescrites ; et apres cela nous devons avoir l’esprit en repos, et laisser à Dieu luy même le soin du succès." 185 Leibniz, op. cit., § 38, G, VI, 124: "Je vous accorde que la prescience en elle même ne rend point la verité plus determinée, mais c’est la cause de la prescience qui le fait. Car il faut bien que la prescience de Dieu ait son fondement dans la nature des choses, et ce fondement rendant la verité predeterminée, l’empêchera d’être contingente et libre." 182

48

com a preordenação de Deus, com os seus decretos e com a sequência de causas que creio sempre contribuírem para a determinação da vontade.” Mas confirma a predeterminação, defendendo-se, apenas, com o habitual argumento modal: “Sou da opinião que a vontade está sempre mais inclinada para o partido que toma, mas que nunca está na necessidade de o tomar. É certo que tomará esse partido, mas não é necessário que o tome.” 186 Compara, aliás, esta predeterminação com a suposta nos astros (a que chama, seguindo Bayle, fatum Astrologicum 187 ), salientando que, ao contrário das previsões astrológicas que tanto falham, estas são infalíveis e que, longe de considerar apenas uma eventual parte das inclinações (a dos astros), aqui está em causa o resultado de todas as inclinações. Esta conceção de um resultado de multiplíssimas inclinações estava já presente no prefácio da Teodiceia: “Todas essas razões de determinação que parecem diferentes concorrem enfim como linhas para um mesmo centro: pois há uma verdade no evento futuro que é predeterminada pelas causas e Deus pré-estabelece-a ao estabelecer as causas.”188 A forma como esta predeterminação se efetiva é a da disposição, muito embora seja curioso que aqui não parece haver uma clara diferenciação entre espíritos, almas e quaisquer outras coisas, ao contrário do que se poderia supor pelo teor do termo: “Uma causa não poderia agir, sem ter uma disposição para a ação; e é esta disposição que contém uma predeterminação, seja o agente que a receba de fora ou que a tenha em virtude da sua própria constituição anterior.”189 Independentemente da extensão a que se aplique a frase, o termo preferido por Leibniz para designar esta disposição nos espíritos é o de inclinação. A própria vontade é uma inclinação, para o melhor no caso de Deus, para o que aparenta ser melhor no caso dos espíritos criados. A noção de que a predeterminação seja imposta à vontade é rejeitada por Leibniz, visto que a própria vontade é suposta nessa determinação: A “previsão e predeterminação [das ações] não são de todo absolutas, mas supõem a vontade: se é seguro que serão feitas, não é menos seguro que se quererá fazê-las. Essas ações voluntárias e suas consequências não acontecerão seja o que for que façamos ou seja que as queiramos ou não, mas porque as faremos e porque quereremos fazer aquilo que aí conduz. E isso está contido na previsão e na predeterminação, fazendo mesmo a sua razão. E a necessidade de tais eventos é chamada condicional ou hipotética, ou melhor, necessidade de consequência, porque supõe a vontade e os outros requisitos”.190 186

Leibniz, op. cit., § 43, G, VI, 126: "Si la prescience de Dieu n’a rien de commun avec la dependence ou l’independence de nos actions libres, il n’en est pas de même de la preordination de Dieu, de ses decrets, et de la suite des causes que je crois tousjours contribuer à la determination de la volonté. [...] Je suis d’opinion que la volonté est toujours plus inclinée au parti qu’elle prend, mais qu’elle n’est jamais dans la necessité de le prendre. Il est certain qu’elle prendra ce parti, mais il n’est point necessaire qu’elle le prenne." 187 Leibniz, op. cit., 3ª parte, § 300, G, VI, 296. Esta referência respeita ao termo. A frase em que está inserida refere-se a Leibniz, op. cit., 1ª parte, § 43, p. 109, G, VI, 126-7. 188 Leibniz, op. cit., Préface, G, VI, 30: "Toutes ces raisons de determination qui paroissent differentes, concourent enfin comme des lignes à un même centre, car il y a une verité dans l’evenement futur, qui est predeterminée par les causes, et Dieu la préétablit en établissant les causes." 189 Leibniz, op. cit., 1ª parte, § 46, G, VI, 128: "Une cause ne sauroit agir, sans avoir une disposition à l’action ; et c’est cette disposition qui contient une predetermination, soit que l’agent l’ait reçue de dehors, ou qu’il l’ait eue en vertu de sa propre constitution anterieure." 190 Leibniz, op. cit., Abregé de la controverse reduite a des arguments en forme, III, G, VI, 380: "Leur prevision et predetermination n’est point absolue, mais elle suppose la volonté : s’il est seur qu’on les fera, il n’est pas moins seur qu’on les voudra faire. Ces actions volontaires, et leur suites, n’arriveront point, quoyqu’on fasse, ou soit qu’on les veuille, ou nom ; mais parce qu’on fera, et parce qu’on voudra faire, ce qui y conduit. Et cela est contenu dans la prevision et dans la predetermination, et en fait même la raison. Et la necessité de tels evenements est appelée conditionnelle ou hypothetique, ou bien necessité de consequence, parce qu’elle suppose la volonté, et les autres requisits."

49

Sabe-se que estes requisitos se relacionam com a multiplicidade de ínfimas inclinações resultantes de uma infinidade de perceções, a maioria das quais inconsciente, mas isso será tratado depois. É importante, porém, salientar que, muito embora, como se verá, o sistema leibniziano possa escapar às acusações de necessitarismo e fatalismo, sobretudo por causa da comparação com Spinoza e Hobbes, dificilmente escaparia a qualquer definição contemporânea de determinismo: “Pode, inclusivamente, dizer-se que, em consequência dessas pequenas perceções, o presente está grávido do futuro e carregado do passado, que tudo é conspirante (...) e que na menor das substâncias, olhos tão penetrantes como os de Deus poderiam ler toda a sequência das coisas do universo.” 191 Tendo em conta que a presciência resulta da predeterminação, este, como tantos outros trechos, mostra a rígida determinação que, a partir de qualquer coisa, permitiria calcular toda a sequência de coisas no universo – o que poderia levar a questionar o sistema de castigos e prémios morais, judiciais ou soteriológicos, que Leibniz defende que não é posto em causa pela sua conceção. Além disso, boa parte das acusações já referidas de fatalidade dirigidas, por Clarke, a Leibniz diziam respeito não tanto ao criado, mas ao próprio Deus. Curiosamente, tanto Clarke 192 como Leibniz preservam a liberdade divina através da separação entre entendimento e vontade. Mas se esta conceção é inerente a toda a teoria de Clarke sobre a liberdade (como se verá), o mesmo não é evidente em Leibniz que chega a criticar tal separação artificial no caso da alma, 193 ou do próprio Deus.194 Aliás, não é só a liberdade que é preservada com essa separação, mas também a isenção de responsabilidade divina no pecado, contido no entendimento divino, mas rejeitado pela vontade, ao menos pela vontade antecedente que quer o bem, sendo apenas permitido pela vontade consequente que divisa o melhor.195

191

Leibniz, NE, 30; cf. Leibniz, Nouveaux essais..., Préface, G, V, 48: "On peut même dire qu'en consequence de ces petites perceptions le present est gros de l’avenir et chargé du passé, que tout est conspirant [...] et que dans la moindre des substances, des yeux aussi perçans que ceux de Dieu pourroient lire toute la suite des choses de l’univers." Cf. também Leibniz, La Monadologie, § 61, G, VI, 617 - só que neste se refere aos corpos e não às substâncias. 192 Clarke, RB, 35. 193 Leibniz, Essais de Théodicée, Remarques..., § 16, G, VI, 416. 194 Leibniz, op. cit., 2ª parte, § 193, G, VI, 128: "La volonté de Dieu n'est point independante des regles de la Sagesse." 195 Leibniz, op. cit., 1ª parte, §§ 22-23, G, VI, 115-6. A conceção é afirmada imensas vezes na Teodiceia, e. g., Préface, G, VI, 47; 1ª parte, § 25, G, VI, 117; § 80, G, VI, 145-6; § 84, G, VI, 147-8; 2ª parte, §§ 114-116, G, VI, 166-7; § 119, G, VI, 170 (onde admite ainda uma vontade média); § 209, G, VI, 242; § 222, G, VI, 250-1; § 237, G, VI, 258; 3ª parte, § 282, G, VI, 284-5.

50

III. A indiferença de equilíbrio Regressando ao tema inicial, Clarke, após ter aprovado, de facto, como se viu, o princípio da razão suficiente, considera, porém, que essa razão suficiente pode ser, muitas vezes, a mera vontade de Deus. A justificação desta tese é que dará origem àquele que muitos consideram o tema central da polémica, o problema do caráter absoluto ou relativo do espaço, visto até aí a discussão sobre o espaço se ter centrado na diatribe do termo sensorium. A conceção do espaço absoluto está claramente implícita neste passo: “Não pode haver outra razão que não a mera vontade de Deus, por exemplo, para que este sistema particular de matéria deva ser criado num lugar particular e aquele noutro lugar particular, quando (sendo todos os lugares indiferentes a toda a matéria) seria exatamente a mesma coisa ao contrário, supondo que os dois sistemas (ou partículas) de matéria fossem iguais.”1 Se ele só pudesse agir através de uma causa predeterminada, como a balança, retirar-se-ia todo o poder de escolha a Deus e reduzir-se-ia o mesmo à fatalidade. Ora, Leibniz considerou que esta aceitação do princípio da razão suficiente era meramente retórica,2 o que já se viu que não é verdadeiro, mas que Leibniz será cada vez mais levado a pensar. Ao considerar que a razão suficiente poderia ser uma vontade sem qualquer razão, arbitrária, está-se a sustentar o contrário do princípio, ou seja, que Deus quer qualquer coisa sem que haja uma razão suficiente da sua vontade. Isso é cair na indiferença vaga como se, quer Deus, quer as criaturas, pudessem agir sem razão. Ao contrário de o sujeitar à fatalidade da necessidade bruta, sustenta-se o poder de escolha de Deus quando se funda esse poder na razão da escolha conforme à sua sabedoria ou fatalidade da sua providência. 3 Longe do argumento de Clarke provar que a razão suficiente poderia ser uma vontade sem qualquer razão, serve, segundo Leibniz, para provar a falsidade da premissa implícita, ou seja, o espaço e o tempo absolutos, visto qualquer ponto ou instante dessas noções quiméricas ser idêntico a qualquer outro e, como tal, por serem indiferentes, não forneceriam qualquer razão para uma ação em vez de outra.4 É verdade que foi esta questão que desencadeou o aprofundamento do debate sobre a natureza do espaço, mas ela está longe de se cingir a essa questão e, segundo Clarke, a questão de se o espaço é ou não real (propondo Leibniz que seja a mera ordem dos corpos) é até irrelevante para ela, colocando-se da mesma forma mesmo que o espaço seja relativo.5 Clarke procura distinguir a sua bem mais subtil discordância da aplicação do princípio da razão suficiente à vontade, da discordância muitíssimo mais 1

Clarke, Streitschriften..., 2ª réplica, § 1, G, VII, 359: "This sufficient Reason if oft-times no other, than the mere Will of God. For instance: Why This particular System of Matter, should be created in one particular Place; when (all Place being absolutely indifferent to all Matter) it would have been exactly the same thing vice versa, supposing the two Systems (or the Particles) of Matter to be alike; there can be no other Reason, but the mere Will of God." 2 Leibniz, Streitschriften..., 3º escrito, § 7, G, VII, 364: "On voit par tout ce que je viens de dire, que mon Axiome n’a pas eté bien pris, et qu’en semblant l’accorder, on le refuse." 3 Leibniz, op. cit., §§ 7-8, G, VII, 364-5: "C'est justement soutenir que Dieu veut quelque chose, sans qu'il y ait aucune raison suffisante de sa volonté contre l’Axiome, ou la regle generale de tout ce qui arrive. C'est retomber dans l’indifference vague, que j'ay amplement refutée et que j'ay montrée chimerique absolument, même dans les creatures ; et contraire à la sagesse de Dieu, comme s'il pouvoit operer sans agir par raison. On m'objecte qu'en n'admettant point cette simple et mere volonté, ce seroit oter à Dieu le pouvoir de choisir, et que ce seroit tomber dans la fatalité. Mais c'est tout le contraire : on soutient en Dieu le pouvoir de choisir, puisqu'on le fonde sur la raison du choix conforme à sa sagesse." 4 Leibniz, op. cit., §§ 5-6, G, VII, 364. Já transcrito o § 5 em II. 3, nota 73. Algumas passagens que se seguem não serão aqui transcritas, pois serão tratadas com um detalhe um pouco maior na próxima parte. 5 Clarke, op. cit., 3ª réplica, § 2, G, VII, 367.

51

extrema em relação ao princípio dos indiscerníveis que não é, por ele, considerado um corolário do anterior, defendendo que, muito embora isso seja irrelevante para a questão da liberdade, o argumento prova que diferentes espaços, mesmo que pareçam exatamente iguais, são realmente distintos. A uniformidade do espaço serviria para provar, de facto, que Deus não poderia ter tido qualquer razão externa para criar as coisas antes num lugar que noutro, e onde existir qualquer diferença na natureza das coisas, a consideração dessa diferença determina sempre um agente inteligente, mas supor que um agente inteligente não teria motivo caso não fosse determinado por coisas extrínsecas ou razões externas, é reduzi-lo a uma condição mecânica, na qual, como se viu anteriormente, não age mas antes se padece (being acted upon).6 A própria vontade pode ser uma razão suficiente para agir num qualquer lugar, visto poder existir uma boa razão para agir indiferentemente ao lugar, em algum lugar 7 – e considerar isto impossível é reduzir um agente livre a um agente necessário, o que, para Clarke, como já se viu, não é agente nenhum. Boa parte da réplica de Leibniz é uma simples reafirmação das teses já avançadas: nas coisas absolutamente indiferentes, não há escolha e, por consequência, nem eleição, nem vontade, pois a escolha deve ter qualquer razão ou princípio;8 uma simples vontade sem qualquer motivo é uma ficção, contraditória e incompatível com a definição de vontade;9 a ordenação de três corpos idênticos, em tudo semelhantes, seja em que ordem for, é indiferente e, como tal, nunca ocorrerá, visto que aquele que nada faz sem sabedoria nem sequer os produziria, 10 até porque não há vários indivíduos indiscerníveis; 11 se duas coisas incompatíveis forem igualmente boas, Deus não produzirá nenhuma.12 Com tais sugestões, não é de admirar que Clarke regressasse ao exemplo da balança. Mas, antes disso, Leibniz riposta ao argumento clarkiano da determinação externa de Deus (ou da vontade em geral), declarando que “Deus nunca é determinado pelas coisas externas, mas sempre pelo que existe nele, quer dizer, pelos seus conhecimentos, antes que haja alguma coisa fora dele.”13 Também na questão da uniformidade do espaço, não haveria qualquer razão externa, mas apenas uma interna, até porque a externa se teria que fundar na interna, visto o discernimento ser interno e a escolha de Deus implicar discernimento.14 Após a insistência de Clarke no argumento de que Deus não teria um princípio de ação se fosse determinado externamente, Leibniz ainda responderá que as próprias ideias das coisas externas pré-existem nele e, assim, ele é determinado pela sua sabedoria com suas razões internas. 15 Pior ainda, uma vontade sem razão seria uma vontade à sorte, idêntica ao acaso dos epicuristas.

6

A expressão é utilizada várias vezes, mas a anterior referência era esta: Samuel Clarke, DB, IX, 127: "For Intelligence without Liberty (as I there hinted) is really (in respect of any Power, Excellence, or Perfection,) no Intelligence at all. It is indeed a Consciousness, but is merely a Passive One; a Consciousness, not of Acting, but purely of being Acted upon." 7 Clarke, Streitschriften..., 3ª réplica, §§ 5-7, G, VII, 369. A mesma tese é afirmada, abreviadamente, na 3ª réplica, § 16, G, VII, 370-1. 8 Leibniz, op. cit., 4º escrito, § 1, G, VII, 371. 9 Leibniz, op. cit., § 2, G, VII, 371-2. 10 Leibniz, op. cit., § 3, G, VII, 372. 11 Leibniz, op. cit., § 4, G, VII, 372. 12 Leibniz, op. cit., § 19, G, VII, 374. 13 Leibniz, op. cit., § 20, G, VII, 374: "Dieu n’est jamais determiné par les choses externes, mais tousjours par ce qui est en luy, c’est à dire, par ses connoissances, avant qu’il y ait aucune chose hors de luy." 14 Leibniz, op. cit., § 18, G, VII, 374. 15 Leibniz, op. cit., 5º escrito, § 72, G, VII, 408: "Les idées des choses externes sont en luy, et qu’ainsi il est determiné par des raisons internes, c’est à dire par sa sagesse."

52

1. A conceção clarkiana dos motivos e do princípio ativo como princípio físico de agir Embora Leibniz nunca tenha utilizado, até aqui, na polémica, a balança de Arquimedes como um exemplo de escolha da vontade, tendo em conta a passagem antes referida da Teodiceia, Clarke aproveita o exemplo para distinguir a sua conceção da que ele defende que é a conceção de vontade de Leibniz. Considera ele (com razão) que Leibniz considera que os motivos têm a mesma (ou análoga) relação com a vontade que os pesos têm com uma balança. Ora, isto faz com que se concebam os agentes inteligentes como passivos. Desta forma, tal como a balança (ou o chamado burro de Buridan), se os pesos/motivos são iguais, nada a pode mover. Mas, ao contrário, Clarke defende que os seres inteligentes têm poderes ativos e movem-se a si próprios, podendo ter motivos mais fortes ou mais fracos, ou sendo as coisas completamente indiferentes, caso em que podem ter razões para agir, muito embora seja indiferente porque forma.16 Parece já evidente que há aqui um pequeno problema terminológico a dilucidar porque se distingue, implicitamente, nesta passagem, entre motivos e razões. Na passagem relativa ao mesmo assunto da quinta réplica, para lá da mesma distinção entre uma balança estritamente passiva e uma mente em parte passiva e em parte ativa e só por isso livre, ocorre a identificação, já antes referida, da necessidade física como necessidade absoluta. Mas o que mais importa para o assunto atual é a forma como entende os motivos, como “a impressão feita na mente pelo motivo, na qual a mente é puramente passiva. O motivo ou coisa considerada como em vista é alguma coisa extrínseca à mente. A impressão feita na mente por esse motivo é a qualidade percetiva na qual a mente está passiva.”17 Aqui, torna-se perfeitamente evidente que Clarke considera que os motivos são apenas as coisas desejadas ou temidas, o objeto da intencionalidade da ação, e não podem ser quaisquer razões internas. Utilizando um exemplo defeituoso, pois também seria externo, visto ter como fonte a situação do corpo, é como se se considerassem como motivos apenas dois bolos à frente do sujeito e não a fome que o sujeito sentia. Ou, para dar um exemplo mais “mental”, é como se dois pobres com um ar esfomeado fossem motivos e o mandamento de ajudar o próximo, não um motivo, mas apenas uma razão para dar a única maçã que tinha na mão a um deles, ao acaso. Percebe-se como, neste caso, se torna difícil a comunicação com um autor para quem todos os motivos são internos, mesmo os que representam algo externo. Ver-se-á, aliás, como nesta questão se nota, em Clarke, os efeitos de uma posição empirista algo ingénua. Com um notório paralelismo com o exemplo da pedra já citado de Spinoza, mas aproveitando agora a ficção de uma consciência que não foi aproveitada no exemplo clarkiano da pedra, e com um objetivo exatamente oposto, Clarke imagina que a balança fosse dotada do poder, por ele entendido como passivo, de perceção, podendo iludir-se, julgando que se movia, ou podendo julgar-se indecisa com os pesos equilibrados. Estaria, nesse caso, na mesma situação que Leibniz atribui ao agente livre. Aliás, é o próprio Leibniz que dá um exemplo metafórico em tudo semelhante, na Teodiceia, o da 16

Clarke, op. cit., 4ª réplica, §§ 1-2, G, VII, 381: "But Intelligent Beings are Agents; not passive, in being moved by Motives, as a Balance is by Weights; but they have Active Powers and do move Themselves, sometimes upon the View of strong Motives, sometimes upon weak ones, and sometimes where things are absolutely indifferent. In which latter case, there way be very good reason to act, though two or more Ways of acting may be absolutely indifferent." 17 Clarke, op. cit., 5ª réplica, §§ 1-20, G, VII, 421: "The impression made upon the Mind by the Motive, wherein the Mind is purely passive. The Motive, or thing considered as in View, is something extrinsick to the Mind: The impression made upon the Mind by That Motive, is the perceptive Quality, in which the Mind is passive."

53

agulha de uma bússola, tentando refutar a alegada prova cartesiana da liberdade no sentimento vivo interno: “Não podemos propriamente sentir a nossa independência e não nos apercebemos sempre das causas, muitas vezes impercetíveis, das quais a nossa resolução depende. É como se a agulha magnética tivesse prazer de se virar para norte; pois ela acreditaria voltar-se independentemente de qualquer outra causa, não se apercebendo dos movimentos insensíveis da matéria magnética.” 18 Clarke considera essa conceção falaciosa porque um agente livre, para lá dos motivos exteriores, em situações de indiferença total ou, como Leibniz gostava de dizer, indiferença de equilíbrio, possui ainda um princípio de se mover a si próprio e pode ter razões para, de todo, não se abster de agir.19 É verdade que a linguagem de Clarke é oscilante e, depois de atacar Leibniz, extensamente, por reduzir a ação à determinação por causas extrínsecas, reduzindo os motivos a estas causas extrínsecas, ao transpor o argumento anterior para Deus e para a sua eventual criação de partículas iguais no meio do espaço absoluto vazio, acaba por declarar: “Mesmo isto, não pode ser razoavelmente dito ser uma vontade sem motivo porque, quanto às sábias razões que Deus possa ter para criar muitas partículas de matéria exatamente iguais, deve ser, consequentemente, um motivo para ele, ao contrário de uma balança, tomar uma de duas [ordenações] absolutamente indiferentes, quer dizer, colocá-las numa situação, quando a transposição delas [para outra ordem ou situação] poderia ser exatamente tão boa.”20 Parece ser claro que aqui admite um motivo interno, ao contrário de toda a argumentação anterior, correspondente às sábias razões de Deus. Apesar de tudo, não deixa de ser um pouco surpreendente esta argumentação, visto que, na conferência de Boyle antes citada, a sua argumentação dista, como se verá em seguida, da de Leibniz, mas não na determinação da ação humana pela necessidade hipotética ou moral, opondo-se apenas a que seja uma necessidade natural que, naturalmente, pelo já visto, ele considera absoluta. 21 Nessa passagem, dá diversos exemplos de completa determinação moral, sem que isso implique necessitarismo, antes pelo contrário, incluindo uma afirmação de impossibilidade moral para as criaturas superiores ao homem (génios, anjos). Noutro texto, chega a pôr a possibilidade de a ação ser sempre consequente à perceção e ao juízo, muito embora sem conexão necessária ou física.22 Só em versões posteriores da conferência, como se pode ver na edição de 1728, embora nada retirando da argumentação anterior, acrescenta uma série de esclarecimentos muito significativos, onde parece haver uma clara influência de Locke. Não sendo um estrito lockiano, mas sim um newtoniano, a forma como, na própria polémica, num outro assunto, se refere a Locke é sempre respeitosa e, frente a 18

Leibniz, Essais de Théodicée, 1ª parte, § 50, G, VI, 130: "Nous ne pouvons pas sentir proprement nostre independence, et nous ne nous appercevons pas tousjours des causes, souvent imperceptibles, dont nostre resolution depend. C’est comme si l’éguille aimantée prenoit plaisir de se tourner vers le Nord ; car elle croiroit tourner independamment de quelque autre cause, ne s’appercevant pas des mouvemens insensibles de la matiere magnétique." 19 Clarke, op. cit., 5ª réplica, §§ 1-20, G, VII, 422: "A Free Agent, when there appear two, or more, perfectly alike reasonable ways of acting; has still within itself, by virtue of its Self-Motive Principle, a Power of acting: And it may have very strong and good Reasons, not to forbear acting at all." 20 Clarke, ibidem, G, VII, 422-3: "Even This cannot be reasonably said to be a Will without Motive; for as much as the wise reasons God may possibly have to create many particles of Matter exactly alike, must consequently be a Motive to him to take (what a Balance could not do) one out of two absolutely Indifferents; that is, to place them in one Situation, when the transposing of them could not but have been exactly alike good." 21 Clarke, DB, X, 206-9. 22 Clarke, RB, 9-10: "Action may be consequent (tho'without any Physical connexion,) upon Perception ou judgement; nay, it may easily (if you please) be supposed ALWAYS consequent upon it, and yet that at the same time there be no manner of Physical or necessary connexion between them."

54

Collins, chega a utilizá-lo como argumento de autoridade. 23 De qualquer forma, a influência de Locke era já notória, neste assunto, em alguma terminologia (por exemplo, free agent em vez de free will).24 Mas, no passo em causa, critica, de modo semelhante ao lockiano,25 colocar-se em questão querer ou não querer, em vez de agir ou abster-se de o fazer,26 como sendo a essência da liberdade.27 É sabido, porém, que a conceção lockiana se opunha claramente à liberdade de indiferença. Ora, Clarke defendeu-a na polémica com Leibniz e parece estranho estar tão ausente deste texto. Apenas esta frase parece talvez poder ser interpretada nesse sentido, muito embora o contexto seja o do poder de suspensão da ação seguindo a conceção lockiana: “Nem é este livre arbítrio (free agency) diminuído de todo pela impossibilidade dele escolher dois contraditórios ao mesmo tempo ou pela necessidade que um dos dois contraditórios deva sempre ser feito.”28 Mas não é nada claro que esteja em causa um equilíbrio nos motivos. Também o poder de agir e o princípio de se mover a si próprio são de inspiração lockiana. Porém, a forma de entendê-los, e de os relacionar (ou não) com o último juízo do entendimento, parece ser original. “O início da ação consequente ao último juízo do entendimento, não é determinado ou causado por este último juízo como pelo eficiente físico, mas apenas como motivo moral.”29 Como esclarece numa das cartas a Bulkeley, imediatamente posterior à polémica com Leibniz, a essência da liberdade reside, tanto no homem, como em Deus (e não se percebe porque não noutros animais, visto ser idêntico), no poder físico de agir. Mesmo admitindo que o último juízo do entendimento é sempre moralmente necessário, como Clarke considera que é, é passivo e em nada altera o poder ativo.30 Noutra carta, em que até volta a usar o exemplo da 23

Clarke, LD, "A Third Defence of an Argument...", 278: "This Argument, is Mr. Locks own words, (Book IV, ch. 10, Sect. 17.) to which I cannot but suppose you will give some Deference." 24 John Locke, An Essay concerning Humane Understanding, 4th. ed. with large additions, London, Awnsham and John Churchil/Samuel Manship, 1700, [EU] Book II, Chap. XXI, §§ 15-16, pp. 128-129, onde Locke distingue entre o poder da vontade de preferir e o poder da liberdade de realizar ou suspender a ação, ambos atribuíveis ao agente. 25 Locke, EU, § 25, 132: "For to ask, whether a Man be at Liberty to will either Motion, or Rest, Speaking, or Silence, which he pleases, is to ask, whether a Man can will, what he wills; or be pleased with what he is pleased with. A Question, which, I think, needs no answer; and they, who can make a Question of it, must suppose one Will to determine the Acts of another, and another to determine that; and so on in infinitum, an absurdity before taken notice of." 26 Locke, EU, § 48, 141: "For the mind having, in most cases, as is evident in Experience, a Power to suspend the execution and satisfaction of any of its desires, and so all, one after another, is at liberty to consider the objects of them; examine them on all sides, and weigh them with others. In this lies the liberty Man has; and from the not using of it right comes all that variety of mistakes, errors, and faults, which we run into, in the conduct of our lives, and our endeavours after happiness; whilst we precipitate the determination of our wills, and engage too soon before due Examination. To prevent this we have a power to suspend the prosecution of this or that desire, as every one daily may Experiment in himself. This seems to me the source of all liberty; in this seems to consist that, which is (as I think improperly) call'd Free Will." 27 Clarke, DA, X, 74: "The essence of liberty consists, not in the agent’s choosing whether he shall have a will or no will, that is, whether he shall be at all an agent or no, whether he shall be what he is or no, but it consists in his being an agent, that is, in his having a continual power of choosing whether he shall forbear acting." 28 Clarke, DA, X, 75: "Nor is this free agency at all diminished by the impossibility of his choosing two contradictories at once by the necessity that one of two contradictories must always be done." 29 Clarke, DA, X, 73. Vide nota 37. 30 Clarke, DA, Other writing, IV, 125-126: "The eye, when open, sees the object necessarily because it is passive in so doing. The understanding likewise, when open, perceives the truth of a speculative proposition, or the reasonableness of a practical proposition, necessarily because the understanding is passive in so doing. [...] Judging is one thing, and acting is another. They depend upon principles totally different from each other, and which have no more connection than activeness and passiveness. Neither God nor man can avoid seeing that to be true which they see is true, or judging that to be fit and

55

balança, tenta mostrar que se houvesse uma conexão necessária, ou seja, natural, entre o último juízo que é passivo e o princípio ativo, este último deixaria de ser ativo e passaria a ser passivo.31 A sustentação da sua conceção de liberdade reside, assim, na impossibilidade de o passivo causar eficientemente o ativo, muito embora esteja presente uma necessidade moral. Esta conceção pode, aliás, ser considerada uma interpretação da conceção lockiana dos poderes passivos e ativos. 32 Porém, Locke considera que o entendimento é apenas sempre passivo na receção das ideias simples, mas não considera que o entendimento seja sempre passivo, quer na formação das ideias complexas, quer no juízo.33 Além disso, Clarke estende a passividade do entendimento e do juízo, ao assentimento, à aprovação e ao próprio gosto.34 Acrescenta-se, ainda, que, nesta carta, se mostra mais uma vez a confusão clarkiana entre necessidade lógica e necessidade física ou natural, quando se refere ao facto de algo moralmente contraditório, não ser uma contradição na física e, em seguida, se refere aos atributos naturais de Deus serem necessários em sentido físico. Regressando à polémica, Clarke acusa Leibniz de se contradizer quando afirma que a vontade não segue sempre o entendimento prático, admitindo que se podem encontrar razões para suspender a resolução até uma discussão ulterior, 35 o que, parecendo corresponder à posição já vista de Locke e, aparentemente, à do próprio Clarke, no âmbito da polémica, é difícil de compatibilizar com as restantes afirmações. Mas, ao fazer corresponder essas razões ao último juízo de entendimento prático, não reasonable which they see is fit and reasonable. But in all this there is no action, any more than God’s being omnipresent (which depends not on his will) can be said to be a divine act. The physical power of acting (which both in God and man is the essence of liberty) continues exactly the same after the last judgment of the understanding as before. [...] There is no connection between approbation and action, between what is passive and what is active. The spring of action is not the understanding, for a being incapable of action might nevertheless be capable of perception. But the spring of action is the self-motive power which is (in all animals) spontaneity, and (in rational ones) what we call “liberty.”" 31 Clarke, op. cit., DA, 128: "There is no connection at all between them, and that in their not being connected lies the difference between action and passion, which difference is the essence of liberty. If the two things now mentioned were (as you suppose) connected by a true physical necessity, there would remain no difference between action and passion, but this only, that what we now call an agent would erroneously imagine itself to be an agent when in reality it was merely passive. Nay, indeed, there would be no such thing as an agent or action in the universe. Neither man, nor angel, nor even God himself, would act in any other sense than a balance determined on one side by an overplus of weight, supposing it endued with perception or understanding." Quanto ao exemplo da balança, ele tornar-se-á comum em Clarke, como se pode ver em diversas passagens de Clarke, e. g., RB, 5-6, 12 e 14-15. 32 Locke, EU, § 72, 152; em edições posteriores, § 74, cf. John Locke, An Essay concerning human understanding, New York, Dover pub., 1959; coor. trad. port. Eduardo Abranches de Soveral, Ensaio Sobre o Entendimento Humano, Lisboa, Fund. Calouste Gulbenkian, 2008, pp. 372-374. 33 Existem diversas passagens que se poderiam referir, mas para referir uma que resuma o essencial, e. g., Locke, EU, Book II, Cap. XXII, § 2, 154: "That the Mind, in respect of its simple Ideas, is wholly passive, and receives them all from the Existence and Operations of Things, such as Sensation or reflection offers them, without being able to make any one Idea, Experience shews us. But if we attentively consider these Ideas I call mixed Modes, we are now speaking of, we shall find their Original quite different. The Mind often exercises an active Power in making these several Combinations: For it being once furnished with simple Ideas, it can put them together in several Compositions, and so make variety of complex Ideas, without examining whether they exist so together in Nature. And hence, I think, it is, that these Ideas are called Notions: as if they had their Original, and constant Existence, more in the Thoughts of Men, than in the Reality of Things". 34 Clarke, RB, 9: "Understanding or Judgment or Assent or Approbation or Liking, or whatever Name you please to call it by, can no more possibly be the efficient Cause of Action, than Rest can be the Cause of Motion." 35 Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 11, G, VII, 391: "Notre volonté ne suit pas tousjours precisement l’entendement practique, parce qu'elle peut avoir ou trouver des raisons pour suspendre sa resolution jusqu'à une discussion ulterieure.

56

está Clarke a atribuir a esse último juízo uma capacidade eficaz sobre o princípio de ação? 36 Na conferência examinada, Clarke admite a possibilidade de se identificar o último juízo do entendimento com o ato de volição, mas prefere a alternativa, separá-lo, sem eficiência física, do princípio ativo. 37 O regresso à alternativa preterida terá ocorrido, porventura, para se aproximar da linguagem de Locke. Porém, num texto pouco posterior inteiramente dedicado ao tema, volta a considerar inteiramente passiva a última perceção (ou juízo) do entendimento,38 o que, aliás, parece ser fundamental na sua conceção. Em qualquer caso, a separação entre o princípio ativo e o entendimento fica sempre sujeita à crítica que Leibniz dirigiu a outro autor, por separar vontade de entendimento, fazendo a vontade julgar sobre o que lhe era dado pelo entendimento, o que requeria ter um entendimento próprio diferente daquele que julgava para entender o que lhe era apresentado.39 Acerca, ainda, da liberdade de indiferença, Clarke volta a insistir, na quarta réplica, nos seus argumentos baseados na conceção do espaço vazio e absoluto, afirmando que a conceção de Leibniz tornaria impossível a criação, pois estaria numa situação análoga à do burro dito de Buridan perante uma infinidade de fardos ou prados idênticos, nem se colocando a questão da distância visto Deus ser omnipresente. Assim aconteceria perante partículas idênticas de matéria, perante a determinação original do movimento, perante a localização num espaço ou perante a criação num tempo.40 No mesmo passo, encontra-se o princípio do ataque já tratado à alegada absurdidade do princípio da identidade dos indiscerníveis. Na quinta réplica, Clarke rebela-se, autenticamente, com a pretensão de Leibniz de saber quais as razões de Deus, insistindo na possibilidade de existirem muito boas razões de conjunto para colocar em qualquer espaço ou em qualquer direção ou sob qualquer ordenação ou em qualquer instante, quaisquer partículas. 41 Repare-se que Clarke nunca diz que Deus não precise de uma razão – é verdade que inicialmente apenas refere como razão a própria vontade divina, em abstrato, remetendo, posteriormente, para as razões de conjunto que Deus pode ter e que, naturalmente, nos 36

Clarke, Streitschriften..., 5ª réplica, §§ 1-20, G, VII, 423: "For are not those very Reasons, the last Judgment of the practical Understanding?" 37 Clarke, DA, X, 73: "For the last judgment of the understanding is nothing else but a man’s final determining, after more or less consideration, either to choose or not to choose a thing, it is the very same with the act of volition. Or else, if the act of volition be distinguished from the last judgment of understanding, then the act of volition, or rather the beginning of action consequent upon the last judgment of the understanding, is not determined or caused by the last judgment as by the physical efficient, but only as the moral motive." 38 Clarke, RB, p. 7: "The Last Perception of the Understanding , which is entirely passive." 39 Leibniz, Essais de Théodicée, Remarques..., § 16, G, VI, 416: "Si la Volonté doit juger, ou prendre connoissance des raisons et des inclinations que l’entendement ou les sens luy presentent, il luy faudra un autre entendement dans elle même, pour entendre ce qu’on luy presente." 40 Clarke, Streitschriften..., 4ª réplica, §§ 3-4, G, VII, 382: "This Argument, if it was true, would prove that God neither has created, nor can possibily create any Matter at all. For the perfectly solid parts of all Matter, if you thake them of equal figure and dimensions (which is always possible in Supposition) are exactly alike; and therefore it would be perfectly indifferent if they were transposed in Place; and consequently it was impossible (according to this Learned Author's Argument) for God to place them in those Places wherein he did actually place them at the Creation, because he might as easily have transposed their Situation." Repetição dos primeiros argumentos no § 19, G, VII, 385. 41 Clarke, op. cit., 5ª réplica, §§ 21-25, G, VII, 423-4: "The only argument he alledges, is, that then there would not be a sufficient Reason to determine the Will of God, which Piece should be placed in which Situation. But if, for ought that any otherwise appears to the contrary, God may possibly have many wise Reasons for creating many Pieces exactly alike; will the Indifference alone of the Situation of such Pieces, make it impossible that he should create, or impossible that it should be Wise in him to create them?"

57

são desconhecidas. No balanço final acerca desta questão, parece regressar à simples vontade divina, embora admita que esta questão só se coloca em relação a situações onde seria muito razoável agir (ou seja, haveria muitas razões para agir), com o objetivo de sustentar a possibilidade de diferentes caminhos possíveis igualmente razoáveis – o que reenvia para a ideia das razões de conjunto para que algo exista em vez de não existir (ou aja em vez de não agir), muito embora tanto possa existir desta forma como daquela, se ambas são indiferentes. Para defender esta possibilidade, sustenta a sua conceção da distinção entre o princípio de ação e as razões, mas, neste caso, utilizando tanto o termo motivo, como o termo razão, para os objetivos em vista. 42 Isso não é estranho porque as razões incluem os motivos, pensados como coisas ou objetivos extrínsecos, ao passo que podem existir razões intrínsecas, o que é especialmente evidente no caso de Deus. 2. A conceção clarkiana de causalidade e o problema da liberdade Talvez seja a altura de tentar responder a uma questão que antes ficou em suspenso: a razão da acusação clarkiana de equivocidade no uso leibniziano do princípio da razão suficiente. Alega ele que a expressão tanto pode “ser entendida como significando só necessidade, como podendo incluir, da mesma forma, vontade e escolha.”43 Tendo em conta a forma como Leibniz explica a sua conceção de liberdade e de escolha pelo princípio da razão suficiente, é difícil perceber como não incluirá vontade e escolha. A razão reside na peculiar teoria da liberdade de Clarke que dissocia o princípio de ação dos motivos. Não se trata sequer da questão da determinação, visto Clarke aceitar uma determinação hipotética e moral. Trata-se de considerar que os motivos causam a escolha ou a ação. Naturalmente, o princípio de ação autodetermina-se pelas causas finais, considerando os motivos, mas não é determinado eficientemente por estes últimos. Para Clarke, os motivos são recebidos passivamente e, como tal, não podem causar o espírito de forma final, mas sim eficiente, caso em que o espírito é apenas passivo e, como tal, não livre. Daí que Clarke rejeite a conceção leibniziana de liberdade em que a escolha é causada finalmente pelas razões, motivos, inclinações, predisposições, etc. Naturalmente, Leibniz pode sustentar a sua conceção porque todas essas razões, motivos e inclinações são internas, mesmo quando representam algo externo. Mas não se deve ignorar a objeção de Clarke, sobretudo se se tiver em conta, como se verá, que boa parte desta determinação causal é inconsciente. No texto já referido em que Clarke ataca um pequeno livro determinista de Anthony Collins,44 uma novidade um pouco insólita resulta da estranha adaptação da noção de abstração, para devolver a acusação tantas vezes feita por Leibniz. Anteriormente, Clarke utilizou a noção de "abstrato" para designar, em primeiro lugar, noções complexas, alegadamente com uma realidade exclusivamente mental, que resultavam da consideração global de processos materiais como o magnetismo, a eletricidade, o todo corporal, o tempo do relógio, a visão do olho ou a cor e textura da

42

Clarke, op. cit., 5ª réplica, §§ 124-130, G, VII, 440: "The Question is, whether, in some Cases, when it may be highly reasonable to act, yet different possible Ways of acting may not possibly be equally reasonable; and whether, in such Cases, the bare Will of God be not it self a sufficient Reason for acting in this or the other particular manner; and whether in Cases where there are the strongest possible Reasons altogether on One Side, yet in all Intelligent and Free Agents, the Principle of Action (in which I think the Essence of Liberty consists) be not a distinct Thing from the Motive or Reason which the Agent has in his View." 43 Clarke, op. cit., 5ª réplica, §§ 124-130, G, VII, 440: "The Phrase is of an equivocal Signification; and may either be so understood, as to mean Necessity only, or so as to include likewise Will and Choice." 44 Anthony Collins, Philosophical inquiry concerning Human Liberty, London, R. Robinson, 1717. [PL]

58

rosa 45 ; em segundo, noções ainda mais genéricas e menos associadas a processos materiais concretos como a própria noção de qualidade,46 as abstrações matemáticas47 ou a própria noção mental de espaço 48 ; em terceiro, noções relativas a entidades desconhecidas e apenas supostas como condição de outra coisa (e. g., a substância material como condição da solidez) 49 ; e, finalmente, como qualificativo das especulações metafísicas ou dos seus objetos globais 50 . Mas, Clarke, neste texto, considera que as razões, os motivos, os argumentos, as perceções e até as promessas divinas e as causas finais, não podem ser causas da ação por serem noções ou considerações abstratas e por não serem substâncias. 51 De facto, para Leibniz, a substância era a verdadeira realidade concreta, mas com todos os seus predicados que incluíam toda a série de representações, perceções, motivos, disposições que exatamente a tornavam concreta. É verdade que também em Leibniz a substância é, essencialmente, ativa, correspondente ao princípio ativo de Clarke. Como todos os motivos, perceções, juízos, etc., são considerados dados passivos do espírito por Clarke, é natural que os considere como abstratos, visto serem o contrário da realidade concreta da substância que é ativa. Além disso, poderá aqui estar ainda implícita a noção de motivo como algo extrínseco, considerado abstrato como a cor é em relação à luz realmente refletida no olho. De qualquer forma, há aqui um esclarecimento adicional da teoria causal de Clarke e da sua contraposição a Leibniz: a verdadeira causalidade é a eficiente, as causas finais nada verdadeiramente causam, não passando de considerações abstratas/passivas; daí que Clarke possa admitir as causas morais ou finais como determinações/necessidades morais, sem que, segundo ele, isso implique uma verdadeira determinação causal da ação. Nitidamente, esta precisão teórica e terminológica feita logo a seguir à polémica destinou-se a fazer frente aos argumentos leibnizianos adiante tratados, nomeadamente os relativos às noções de motivo e razão. Embora as definições de correntes e posições, as etiquetas dos “ismos”, sejam sempre redutoras e tendam a reunir sob um mesmo rótulo teorias muito diferentes (por exemplo, Descartes e Leibniz sob a etiqueta racionalismo), talvez tenha alguma utilidade, para a clareza da exposição, tentar ver qual será a posição de Clarke de acordo com os rótulos atuais relativos à questão da liberdade. Talvez pudesse parecer, através da polémica, que Clarke adotava uma posição libertista semelhante àquela que Leibniz atacou, no final da Teodiceia, defendida por William King. E, se lermos as palavras de Leibniz a propósito de King, a semelhança salta à vista: “não é senão por essa potência que somos verdadeiramente a causa das nossas ações, a quem elas podem ser

45

Clarke, LD, 94-95, 150, 152, 154, 156-157, 165, 169, 180-181, 186, 244, 263, etc. Clarke, LD, 250. 47 Clarke, LD, 175, 186. 48 Clarke, DB, IV, 79; Clarke, 5ª réplica, § 46, nota 142, CP, 305. 49 Clarke, DA, 1998, X, p.58. Como não surge na 1ª ed., é possível que este sentido seja tardio. 50 Clarke, LD, "A Second Defence of an Argument...", 147; Clarke, DC, e.g., 5, 13, 114,147-148, 154, 160, 163, 189. 51 Clarke, RB, 10, 11, 16, 26 e 43; na p. 16, e. g., para ilustrar a atribuição do qualificativo abstrato por não ser uma substância: "In which Matter, the Author is guilty of a double Absurdity. First, in supposing Reasons or Motives […] to make the same necessary Impulse upon Intelligent Subjects, as Matter in Motion does upon unintelligent Subjects; which is supposing Abstract Notions to be Substances."; nas pp. 35-36, refere-se às promessas divinas e às causas finais: "I have shown above, (pag. 9;) both from the Nature of the thing, and from the Instance of a Promise made by a Perfect Being, which is ALWAYS followed with Performance and yet, being a mere Abstract, cannot be itself a physical or immediate efficient Cause of Action. A proper physical efficiency might as well, and with as much truth, be ascribed to Final Causes, which every one knows to be nothing but Abstract Considerations; as it is by This Author ascribed to Moral Causes, to Reasons, Arguments, Judgment, and the like." 46

59

imputadas, porque, de outra forma, seríamos forçados pelos objetos externos.” 52 A potência referida é a potência ativa de eleger o indiferente. Ora, King considera que, para lá dessa potência ativa (por sinal, designada razão de ação 53 ), só se pode ser determinado por motivos que considera externos, sendo, nesse caso, o espírito passivo. Leibniz acusa de incoerência King por todos os animais serem ativos (no caso de Leibniz, até todas as substâncias), mas King reservar para Deus e os seres racionais a liberdade, quando faz depender toda a liberdade apenas dessa atividade.54 Resta saber se o próprio Leibniz não poderia ser acusado de análoga incoerência. De qualquer forma, toda esta caracterização, como já se viu, poderia ser feita ao pensamento de Clarke. Porém, quando se analisa o próprio texto de King, percebe-se que o seu libertismo é incompatível com as teses de Clarke e a sua proximidade ao menos à linguagem de Locke, sobretudo se tivermos como referência a conferência de Boyle e outros textos. Isso ainda é mais notório através das notas do tradutor inglês Edmund Law, embora este estivesse mais interessado em atacar Locke, Leibniz, Collins e Hobbes. Segundo King, essa potência não pode ter em consideração sequer as representações do entendimento, caso em que se tornaria imediatamente passiva. O próprio Deus, no ato de criação, não poderia ser determinado pelas suas ideias ou pela sua representação do que seria melhor porque, nesse caso, seria passivo e a sua ação tornada necessária, visto ser impossível alguém agir contrariamente ao que julga melhor e essa representação, tendo em conta que se referia a algo que poderia vir a existir fora dele, ser considerada externa. O que isto significa é que a natureza de Deus, pelo seu ato de criação, ao escolher o que existe, é que torna boas as coisas, tendo que estas ser à partida completamente indiferentes, 55 quer isoladamente, quer em conjuntos, quer no todo. Como já foi referido, Clarke reconhece a existência de uma necessidade moral, de conveniência (fitness), na ação, criadora ou não, de Deus, que é explicitamente rejeitada, por King, no exercício da potência ativa56 e na criação divina.57 Já se viu que o próprio Newton considera que a vontade de Deus toma como referência as suas ideias. Tendo em conta que, em ambos os autores, Deus serve de modelo para o homem, apesar das limitações deste, torna-se claro que, comparativamente a King, Clarke seria considerado um compatibilista, por muito libertista que pareça em relação a Leibniz. O próprio Clarke refere-se ao facto de King e outros considerarem todas as coisas, na sua natureza, indiferentes, como fracas expressões.58 Como já foi referido, é verdade que, na polémica, talvez também por influência de Newton, Clarke admite a liberdade de indiferença, mas em situações excecionais e sempre subordinadas a razões de conjunto que Deus pudesse ter. Porém, defende uma ausência de determinação causal entre os juízos do entendimento e o princípio ativo, muito embora reconheça a existência de necessidade moral. Por isso, parece encontrar-se numa posição intermédia entre King e 52

Leibniz, Essais de Théodicée, § 19, G, VI, 420: "Ce n’est que par cette puissance que nous sommes la vraye cause de nos actions, à qui elles puissent être imputées, puisqu'autrement nous serions forcés par les objets externes." 53 William King, De origine Mali, Bremen, seguindo uma cópia de Londres, Philippum Godofredum Saurmannum, 1704; trad. ingl. Edmund Law, An Essay on the Origin of Evil, Cambridge, W. Thurlbourn Bookseller, 1731, Ch. V, Sec. I, Subs. IV, § IX, p. 190. Trata-se, porém, como se verá de uma razão ainda mais indeterminada que em Clarke, sobretudo porque King, ao menos no caso de Deus, considera que, sabendo que se determina a si próprio, não devemos nos preocupar a tentar saber como: ibidem, Ch. V, Sec. I, Subs. IV, § X, p. 190. 54 Leibniz, op. cit., § 20, G, VI, 421: "Les Bêtes ne sont point libres, et cependant elles ne laissent pas d’avoir des Ames actives." 55 William King, op. cit., e. g., Ch. V, Sec. I, Subs. IV, § VII, p. 188. 56 William King, op. cit., Ch. V, Sec. I, Subs. III, § IV, p. 174. 57 William King, op. cit., Ch. V, Sec. I, Subs. IV, § XVII, p. 195. 58 Clarke, RB, 34.

60

Locke. A muito apreciável análise de Vailati da correspondência 59 pressupõe sempre que a posição de Clarke é libertista devido à rejeição da determinação causal, e com certeza que o é em comparação com Leibniz, sobretudo na correspondência, mas o objetivo de Clarke é, pelo menos, análogo ao de Leibniz, o de conciliar a liberdade com a determinação moral e hipotética. Enquanto Leibniz julga consegui-lo apenas através da distinção entre os tipos de necessidade, Clarke considera necessário, adicionalmente, restringir a verdadeira causalidade à causalidade eficiente. Isso, porém, não o impede, como já foi visto, de considerar, sobretudo em Deus, tal como Leibniz, a sua inalterável determinação moral como certa e infalível. 60 Aliás, Clarke restringe a arbitrariedade divina, ou seja, a sua não determinação, com semelhanças com Leibniz, à existência das coisas e aos seus modos de existir, sendo inevitavelmente levado, de resto, a escolher o determinado pela lei da natureza, absolutamente inalterável como lei das próprias coisas criadas. 61 Além disso, há que lembrar que também em Leibniz a determinação das almas é final e não eficiente, pelo que a diferença é bem mais subtil do que parece, incidindo no facto de se admitir ou não a determinação por causas finais como uma verdadeira determinação causal. Por isso mesmo, apesar de sublinhar a sua argumentação libertista contra Spinoza e Hobbes, Harris acaba por considerar que Clarke intenta construir, tal como Leibniz, uma posição intermédia entre o voluntarismo e o necessitarismo espinosista. 62 Talvez pela sua maior sensibilidade teológica, Ferguson, um detalhado conhecedor da obra de Clarke, não tem dúvidas em sublinhar a determinação moral de Deus63 (e, consequentemente, na medida das suas limitações, do homem). 59

Ezio Vailati, Leibniz & Clarke - A Study of their Correspondence, New York/Oxford, Oxford University Press, 1997 [LC]. 60 Ver pág. 41. Devido à rejeição da ligação causal, nem por um momento Vailati duvida não só do seu libertismo, como do seu libertismo radical, visto o agente se apresentar como causa única da ação. Porém, como é natural, acaba por se confrontar com a determinação moral infalível de Deus aqui referida, embora apenas numa nota, Vailati, LC, ch. 3, nota 11, 207-8, onde a sua implícita tendência leibniziana, acaba por ceder a um típico recurso newtoniano, o de remeter para futuras investigações. Pareceria melhor tentar integrar esses textos na análise. 61 Samuel Clarke, DC, 69: "The Existence indeed of the Things themselves, whose Proportions and Relations we consider, depend entirely on the mere arbitrary Will and good Pleasure of God, who can create Things when he pleases, and destroy them again whenever he thinks fit. But when Things are created, and so long as it pleases God to continue them in Being; their Proportions, which are abstractly of eternal Necessity, are also in the Things themselves absolutely unalterable."; p. 95: "Now that Things Exist in such Manner as they do, or that they Exist at all, depends intirely on the Arbitrary Will and good Pleasure of God. At the same Time therefore, and by the same Means, that God manifests it to be his Will that Things should Exist, and that they should Exist in such Manner as they do (as by Creating them he at first did, and by Preserving them he still continually does, declare it to be his Will they should) he at the same Time manifestly declares, that all such moral Obligations, as are the Result of the necessary Proportions and Relations of Things, are likewise His positive Will and Command." 62 James Harris, Of Liberty and Necessity, Oxford, Oxford University Press, 2005, p. 47 e segs.. Porém, considera que o voluntarismo contra o qual se insurge seria o calvinista, quando este último é apenas relativo a Deus. É verdade que, depois, acaba por associá-lo a King, mas poderia também associá-lo a Descartes. Em qualquer caso, se Clarke se opõe ao voluntarismo, este é relativo tanto a Deus, como à vontade humana. 63 Ferguson, EH, 28-9: "Once the fitness that constitutes moral obligation has been recognised, action in accordance with it should follow. It does so in the case of God, whose will is always and necessarily determined by the eternal fitness that constitute the reason of things. In the case of man, however, his will may be prevented from being so determined because of error and passion. [...] Fitnesses and unfitnesses of things which, when recognised, impose obligations on all rational creatures, are prior to and independent of all will, law or command. They are, for example, independent of the will of God. Morality cannot be simply identified with what is commanded by God. On the contrary it is because a course of action is antecedently fit that is willed by God."

61

A resposta de Clarke ao livro de Collins ainda esclarece melhor a sua posição. Collins havia tratado a questão da liberdade de indiferença através de um outro exemplo (muito embora também utilize, seguindo Cícero, o da balança) recorrente nesta época, o da escolha de ovos, dando, aliás, uma resposta à questão muito semelhante à de Leibniz. 64 Aliás, apesar das divergências filosóficas muito significativas, é notória alguma influência de Leibniz no lockiano Collins, ao ponto de este se referir a Leibniz como "génio universal".65 Porventura, por notar isso é que Clarke liga a argumentação de Collins à de Leibniz quando este defende, nesta polémica, a impossibilidade de Deus criar duas peças de matéria iguais.66 Mas o mais relevante neste comentário é o facto de Clarke centrar a sua argumentação contra Collins, implicitamente, na acusação de este cometer uma falácia do falso dilema, por não admitir qualquer meio-termo entre a necessidade e a absoluta indiferença.67 Aliás, procurando, provavelmente, aproximar-se de Locke, mas acabando por também se aproximar de Leibniz, Clarke procura distinguir a indiferença de Poder (entendida como o poder de agir ou suspender a ação) da indiferença de inclinação, sendo clara a sua contraposição à segunda.68 Naturalmente, é muito discutível que seja indiferente mesmo o poder de agir ou não agir, mas parece haver, neste como noutros textos, uma grande distância em relação à aparente defesa de uma liberdade de indiferença na polémica, 69 procurando Clarke antes de mais salvaguardar a independência causal eficiente do princípio ativo, mesmo que determinado moralmente por supostas causas finais, sendo, para ele, pouco relevante se os objetos são iguais ou desiguais, indiferentes ou diferentes.70 O que importa é que o princípio ativo não seja causalmente (eficiente e fisicamente) determinado. Ainda no âmbito da conceção clarkiana de ação livre, Clarke opõe-se, na polémica, à tese leibniziana da incomunicabilidade entre a alma e o corpo, nomeadamente na transmissão de nova força ao corpo, 71 visto destruir a harmonia universal defendida por Leibniz e declarada desde o início da polémica pela afirmação 64

Collins, PL, 44-9. Collins, PL, 28. 66 Clarke, RB, 32-3. 67 Clarke, RB, 36: "Than all which Assertions, nothing can be more absurd; They being all built entirely upon such Suppositions as these; that there is no Middle between Necessity and Absolute Indifferency; that Perception of Truth, is as much an Action, as Doing what is right; and that either Necessity or Nothing, is the efficient Cause of all Choice and Action." 68 Clarke, RB, 40: "That an Indifferency as to Power, (that is, an equal physical Power either of acting or of forbearing to Act;) and an Indifferency as to Inclination, (that is, an equal Approbation or Liking of one Object or of the contrary;) is One and the same thing. Than which, nothing can be more evidently absurd." 69 A única passagem detetada, fora da polémica, que poderia contribuir para legitimar os termos da polémica é uma referência às coisas moralmente indiferentes: Clarke, DC, 35. Após se referir às coisas boas e más (evil): "Lastly, other Things are in their own Nature Indifferent; that is, (not absolutely and strictly so; as such trivial Actions, which have no Way any Tendency at all either to the public Welfare or Damage; For, concerning such Things, it would be childish and trifling to suppose any Laws to be made at all; But they are) such Things, whose Tendency to the public Benefit or Disadvantage is either so small or so remote, or so obscure and involved, that the Generality of People are not able of themselves to discern on which Side they ought to act." Tal como tais coisas indiferentes podem sustentar leis humanas arbitrárias, poder-se-ia pensar uma análoga arbitrariedade divina no moralmente indiferente. Mas esta interpretação é notoriamente forçada. 70 Clarke, DC, 23: "Nor does it make any Alteration in this Case, whether the Objects proposed be perfectly alike and indifferent, or whether they be unlike and different." 71 Leibniz, Streitschriften..., 4º escrito, § 32, G, VII, 375: "Ceux qui s'imaginent que les ames peuvent donner une force nouvelle au corps et que Dieu en fait autant dans le monde pour redresser les defauts de sa machine, approchent trop Dieu de l’Ame, en donnant trop à l’ame et trop peu à Dieu." Ver também 5º escrito, § 94, G, VII, 413: "Il est insoutenable que l’ame donne de la force au corps ; car alors tout l’univers des Corps recevroit une nouvelle force." 65

62

da permanência da força.72 Visto Clarke considerar que a liberdade na ação depende da eficiência física do agente e que a própria ação só é concebível como começo de um novo movimento onde não havia nenhum antes, a partir de um princípio de vida,73 é natural que considere que privar a alma da capacidade de dar novo movimento à matéria, realizando-se todos os movimentos corporais mecanicamente, é reduzir a ação à fatalidade e à necessidade. É, porém, importante sublinhar que Clarke se está a referir, neste passo, a todo o movimento animal espontâneo74 — o que deixa por explicar a razão da ausência de liberdade nos animais. Mas esta questão é esclarecida no já referido comentário ao livro de Collins, numa curiosa e intraduzível distinção entre freedom e liberty, eventual evolução da distinção que surge na polémica entre espontaneidade e liberdade.75 Free parece ter o sentido de estar liberto de uma coação exterior, descrito como liberdade física (physical liberty), ao passo que liberty implica a consciência do bem e do mal, evoluindo as próprias crianças de uma condição para a outra, ao contrário das bestas.76 Como se verá, a conceção não está muito distante da do próprio Leibniz, com a diferença de supor a referida eficiência física entre a alma e o corpo que não existe em Leibniz. Por isso, considera Clarke, na quinta réplica, que a conceção de Leibniz põe em causa todos os argumentos fenoménicos, a partir da ação humana, para provar sequer a existência de alguma alma ou alguma coisa para lá da matéria.77 Como bem salienta, nesse caso, os próprios corpos humanos funcionam como as bestas de Descartes, dispensando totalmente a alma. 3. O problema epicurista do acaso Merece, ainda, alguma atenção a pequena diatribe sobre Epicuro, não relativamente às referências iniciais ao seu materialismo, na segunda vaga das cartas, mas relativamente às passagens que colocam o problema contrário ao da fatalidade, o problema do acaso. Tendo Leibniz feito corresponder a vontade sem razão ao acaso 72

Leibniz, op. cit.,1º escrito, § 4, G, VII, 352: "Selon mon sentiment, la même force et vigueur y subsiste tousjours, et passe seulement de matiere en matiere, suivant les loix de la nature, et le bel ordre preétabli." 73 Clarke, Streitschriften..., 5ª réplica, §§ 93-95, G, VII, 433: "Action, is the beginning of a Motion where there was none before, from a Principle of Life or Activity: And if God or Man, or Any Living or Active Power, ever influences any thing in the material World; and every thing be not mere absolute Mechanism; there must be a continual Increase and Decrease of the whole Quantity of Motion in the Universe." 74 Clarke, op. cit., 4ª réplica, § 32, G, VII, 386: "To suppose that in spontaneous animal-motion, the Soul gives no new motion or Impression to Matter; but that all spontaneous animal-motion is performed by mechanical impulse of Matter; is reducing all things to mere Fate and Necessity." 75 Clarke, op. cit., 5ª réplica, §§ 1-20, G, VII, 421: "The Doing of any thing, upon and after, or in consequence of, that perception; this is the Power of Self-Motion, or Action: Which, in All animate Agents, is Spontaneity; and, in moral Agents, is what we properly call Liberty." 76 Clarke, DC, 27-8: "The Actions of Children, and the Actions of every living Creature, are all of them essentially Free. The Mechanical and involuntary Motions of their Bodies, such as the Pulsation of the Heart, and the like, are indeed all necessary; but they are none of them Actions. Every Action, every Motion arising from the Self-moving Principle, is essentially free. The Difference, is This only. In Men, this Physical Liberty is joined with a Sense or consciousness of moral good and evil, and is therefore eminently called Liberty. In Beasts, the same Physical Liberty or Self-moving Power, is wholly separate from a Sense or consciousness or capacity of judging of moral good and evil; and is vulgarly called Spontaneity. In Children, the same Physical Liberty always is from the very Beginning; And in proportion as they increase in Age, and in capacity of Judging, they grow continually in Degree, not more Free, but more Moral, Agents." 77 Clarke, Streitschriften..., 5ª réplica, § 92, G, VII, 432: "To suppose, that all the Motions of our Bodies are necessary, and caused entirely by mere mechanical Impulses of Matter, altogether independent on the Soul; is what (I cannot but think) tends to introduce Necessity and Fate. It tends to make Men be thought as mere Machines, as Des Cartes imagined Beasts to be; by taking away all Arguments drawn from Phaenomena, that is, from the Actions of Men, to prove that there is any Soul, or any thing more than mere Matter in Men at all."

63

epicurista,78 muito embora na terceira réplica, muito brevemente, já Clarke avançasse a possibilidade das tais razões aqui chamadas de conjunto,79 Clarke riposta que o acaso não é uma escolha da vontade, mas a cega fatalidade da necessidade.80 Já tendo a este propósito rejeitado que os motivos sejam externos porque, mesmo quando se refiram a coisas exteriores, não deixam de ser internos (o que não corresponde, como aqui se viu, ao significado de motivo em Clarke), rejeita a afirmação de Clarke, visto que o acaso foi introduzido por Epicuro para evitar a necessidade, e insiste em que uma vontade sem motivo seria exatamente um cego acaso e não uma cega fatalidade. 81 As duas referências seguintes de Leibniz a Epicuro têm também relação com o indeterminismo, a questão da declinação dos átomos82 e a rejeição do princípio de contradição,83 embora surjam no contexto de rejeição da atração e de contestação às objeções à aplicação do princípio da razão suficiente. Relativamente à segunda referência, Leibniz considera que Epicuro acabou por negar o princípio da não contradição porque se fosse verdadeiro ontem, o que aconteceu hoje, seria necessário ontem o que acontecesse hoje. Como tão-pouco poderia ser falso, Epicuro teria negado que fosse quer verdadeiro, quer falso84 (o que, de facto, nega mais aquilo a que hoje se chama de princípio do terceiro excluído). Já quanto à primeira referência, Leibniz parece ter uma certa predileção por ela, como exemplo de absurdo, de ofensa ao princípio da razão suficiente e como defesa de que algo possa vir do nada. É interessante, porém, que reconheça uma causa final a Epicuro, refutando-o pela falta de eficiência natural. 85 Essa causa final era, porém, do próprio Epicuro e não dos átomos que, apesar de serem imaginados com vontade (não deixa de ser curiosa a linguagem, tendo em conta as mónadas), se desviariam da linha reta sem qualquer

78

Leibniz, op. cit., 4º escrito, § 18, G, VII, 374: "La volonté sans raison seroit le hazard des Epicuriens." Clarke, op. cit., 3ª réplica, § 5, G, VII, 369: "Does That hinder his Own Will, from being to it self a sufficient reason of Acting in Any place, when All Places are Indifferent or Alike, and there be good reason to act in Some place?" 80 Clarke, op. cit., 4ª réplica, § 18, G, VII, 385: "The Epicurean Chance, is not a Choice of Will, but a blind Necessity of Fate." 81 Leibniz, op. cit.,5º escrito, § 70, G, VII, 407-8: "On y oppose que le hazard d’Epicure est une necessité aveugle, et non pas un choix de volonté. Je replique que le hazard d'Epicure n'est pas une necessité, mais quelque chose d’indifferent. Epicure l’introduisoit exprès pour eviter la necessité. Il est vray quo le hazard est aveugle, mais une volonté sans motif ne seroit pas moins aveugle, et ne seroit pas moins due au simple hazard." 82 Leibniz, op. cit.,5º escrito, § 128, G, VII, 420. 83 Leibniz, op. cit.,5º escrito, § 130, G, VII, 420. 84 Leibniz, Essais de Théodicée, 2ª parte, § 169, G, VI, 211: "Il paroit qu’Epicure, pour conserver la liberté et pour eviter une necessité absolue, a soutenu apres Aristote, que les futurs contingens n’étoient point capables d’une verité determinée. Car s’il étoit vray hier que j’écrirois aujourdhuy, il ne pouvoit donc point manquer d’arriver, il étoit déja necessaire ; et par la même raison, il étoit de toute eternité. Ainsi tout ce qui arrive est necessaire, et il est impossible qu’il en puisse aller autrement. Mais cela n’étant point, il s’ensuivroit selon luy, que les futurs contingens n’ont point de verité determinée. Pour soutenir ce sentiment, Epicure se laissa aller à nier le premier et le plus grand principe des verités de raison, il nioit que toute enonciation fût ou vraye ou fausse. Car voicy comment le poussoit à bout : Vous niés qu’il fût vray hier que j’écrirois aujourdhuy, il étoit donc faux. Le bon homme ne pouvant admettre cette conclusion, fut obligé de dire qu’il n’étoit ny vray ny faux." 85 Leibniz, op. cit., 3ª parte, §§ 303-304, G, VI, 297: "S’il avoit une telle indifference vague, ou bien si l’on y choisissoit sans qu’il eût rien qui nous portât à choisir, le hazard seroit quelque chose de reel, semblable à ce qui se trouvoit dans ce petit detour des atomes, arrivant sans sujet et sans raison, au sentiment d’Epicure, qui l’avoit introduit pour eviter la necessité, dont Ciceron s’est tant moqué avec raison. Cette declinaison avoit une cause finale dans l’esprit d’Epicure, son but étant de nous exemter du destin ; mais elle n’en peut avoir d’efficiente dans la nature des choses, c’est une chimere des plus impossibles." 79

64

motivo. 86 Leibniz considera mesmo como sendo um sinal da imperfeição de uma filosofia a necessidade de um filósofo defender qualquer coisa para a qual não tem razão.87 De qualquer forma, um tal absurdo acaso, ainda por cima, poria em causa toda a possibilidade de previsão, tanto a divina, como a nossa,88 e, assim, poria em causa o próprio conhecimento dos factos. Clarke responde, negando que se possa comparar um acaso sem vontade e sem inteligência com a escolha entre várias maneiras de agir igualmente boas,89 pois aí já existem razões para que se aja em vez de não agir, muito embora possa ser indiferente qual a alternativa. Quanto às referências seguintes, responde apenas através de um juízo de valor irónico em relação à comparação entre uma matéria de facto como a gravitação e uma ficção como a declinação dos átomos. 90 Clarke ainda identificará esta argumentação de Leibniz à de Collins, na primeira de duas referências diretas a esta polémica no comentário ao livro do último, apenas havendo a novidade de interpretar o acaso como resultante da ignorância das causas.91 4. O princípio do melhor em Leibniz e a rejeição da liberdade de indiferença A resposta leibniziana à aplicação do exemplo da balança à questão da liberdade, não podia ser mais clara: As razões no espírito dos sábios, e os motivos no espírito de seja quem for, fazem o que os pesos fazem numa balança. 92 “Mas o bem, tanto verdadeiro como aparente, numa palavra, o motivo, inclina sem necessidade, quer dizer, sem impor uma necessidade absoluta.”93 Todos os motivos são bens desejados, podendo apenas ser aparentes, de acordo com a limitação do entendimento. Assim, todo o motivo se regula pelo princípio do melhor que regula a ação divina e toda a ação consciente, aplicando à escolha o princípio da razão suficiente. Só que enquanto Deus escolhe 86

Leibniz, op. cit., 3ª parte, §§ 320-321, G, VI, 306-7: "La declinaison des Atomes d’Epicure [...] pretendoit qu’un de ces petits corps allant en ligne droite, se detournoit tout d’un coup de son chemin sans aucun sujet, seulement parce que la volonté le commande. [...] Il est plaisant qu’un homme comme Epicure, apres avoir ecarté les Dieux et tous les substances incorporelles, a pu s’imaginer que la volonté, que luy même compose d’atomes, a pu avoir un empire sur les atomes, et les detourner de leur chemin, sans qu’il soit possible de dire comment." 87 Leibniz, op. cit., 3ª parte, § 340, G, VI, 316: "Rien ne marque mieux l’imperfection d’une Philosophie, que la necessité où le Philosophe se trouve d’avouer qu’il se passe quelque chose, suivant son systeme, dont il n’y a aucune raison ; et cela vaut bien la declinaison des Atomes d’Epicure"; seria de questionar se não se encontram muitas teses na filosofia de Leibniz sem apresentação de uma razão ou apresentando uma mera razão de conveniência como a de Epicuro, teses como a do vínculo substancial, cuja explicação parece ser remetida para os mistérios divinos. Cf., e. g., Yvon Belaval, Leibniz, Initiation à sa Philosophie, 1961, 5ª ed., Paris, Libr. Phil. J. Vrin, 1984 [LI], p. 250. 88 Leibniz, op. cit., 3ª parte, § 362, p. 314, G, VI, 329-30. 89 Clarke, op. cit., 5ª réplica, §§ 66-70, G, VII, 430: "Comparing the Will of God, when it chooses one out of many equally good ways of acting, to Epicurus’s Chance who allowed No Will, No Intelligence, No Active Principle at all in the formation of the Universe; is comparing together Two things, than which No Two things can possibly be more different." 90 Clarke, op. cit., 5ª réplica, §§ 124-130, G, VII, 440: "To compare Gravitation (which is a Phaenomenon or actual Matter of Fact) with Epicurus’ Declination of Atoms (which, according to his corrupt and Atheistical Perversion of some more antient and perhaps better Philosophy, was an Hypothesis or Fiction only, and an impossible one too, in a World where no Intelligence was supposed to be present) seems to be a very extraordinary Method of reasoning"; as razões para o tom usado excedem este ponto. 91 Clarke, DC, 31: "As if Epicurus’s supposing Lifeless Atoms to be moved by Chance, that is, by Causes to Him unknown; was the same thing as our ascribing either to God or Man, a Principle or Power of Action or of beginning Motion." 92 Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 3, G, VII, 389: "Les Raisons font dans l’esprit du sage, et les Motifs dans quelque esprit que ce soit, ce qui répond à l’effect que les poids font dans une balance." 93 Leibniz, op. cit., 5º escrito, § 8, G, VII, 390: "Mais le bien, tant vray qu’apparent, en un mot le motif, incline sans necessiter, c’est à dire, sans imposer une necessité absolue."

65

mesmo o melhor, os espíritos criados escolhem o que aparenta ser melhor. 94 Desta escolha do melhor, não se pode inferir uma necessidade metafísica, mas apenas uma necessidade moral. Como se viu, nada existe aqui com que Clarke não concorde, incluindo a afirmação de que há uma total certeza e infalibilidade, pelo menos no que diz respeito à escolha e presciência divina em relação às coisas contingentes. Leibniz qualifica essa necessidade moral como feliz 95 visto corresponder à maior liberdade, devida à aplicação infalível do princípio do melhor; do mesmo modo que o homem mais livre é o que se aproxima mais desta infalibilidade na busca do melhor. É sabido como, a este propósito, autores anteriores tinham lançado dúvidas sobre este princípio. Locke, por exemplo, tinha introduzido a noção de inquietação, na sequência de uma reflexão cujos exemplos faziam lembrar Spinoza na carta já referida, assim como na própria Ética96, inclusive citando o mesmo verso das Metamorfoses de Ovídio, para explicar, em parte, por que razão a maior consciência do maior bem ou do maior mal não parece ser capaz de fazer agir a maior parte dos homens na maior parte das situações para o maior bem ou para longe do seu maior vício.97 Ora, Leibniz não considera que a inquietação impeça a aplicação do princípio do maior bem. Naqueles casos em que Locke considerava que existia consciência da virtude ou da gravidade do vício em que se tinha caído, Leibniz, dando aqui mais atenção à experiência que o próprio Locke, chama a atenção para o facto de que “nas matérias e nas ocasiões em que os sentidos quase não agem”, em que se raciocina só com palavras, sem ideias expressas ou com ideias muito ténues, sem quase ter o objeto no espírito, os pensamentos são surdos ou abstratos, vazios de perceção ou de sentimento, e, como tal, um tal conhecimento, sem algo mais vivo, não tem qualquer poder para afetar os homens. “Se preferimos o pior, é porque sentimos o bem que ele encerra, sem sentir o mal que nele existe, nem o bem que está no partido contrário.” Recita-se o que se ouviu, lembra-se o que se pensou, pensa-se nos preceitos morais e nas regras da prudência, mas a alma não lhes é sensível porque a virtude não é visível. “Não é de espantar que, no combate entre a carne e o espírito, o espírito sucumba tantas vezes, porque ele não utiliza convenientemente os seus recursos.” 98 Concluindo, todos os homens, todas as almas 94

Leibniz, op. cit., 5º escrito, § 7, G, VII, 390: "Lorsque le sage, et sur tout Dieu (Ie sage souverain) choisit le meilleur, il n’en est pas moins libre ; au contraire, c'est la plus parfaite liberté, de n'estre point empeché d'agir le mieux. Et lors qu’un autre choisit selon le bien le plus apparent, et le plus inclinant, il imite en cela la liberté du sage à proportion de sa disposition ; et sans cela, le choix seroit un hazard aveugle." 95 Leibniz, op. cit., 5º escrito, § 10, G, VII, 390-1: "Cette necessité morale est heureuse, conforme à la perfection Divine, conforme au grand principe des existences, qui est celuy du besoin d'une raison suffisante." 96 Spinoza, CW, Ethics, 3ª parte, Prop. II, Escólio, 281. 97 Locke, EU., Book II, Ch. XXI, § 35, 135-6. 98 Leibniz, NE, 126; cf. Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XXI, § 35, G, V, 171-2: "Dans les matières et dans les occasions, où les sens n'agissent guères, la pluspart de nos pensées sont sourdes pour ainsi dire [...], c'est a dire vuides de perception et de sentiment, et consistant dans l’employ tout nù des caracteres [...]. On raisonne souvent en paroles, sans avoir presque l’objet même dans l’esprit. Or cette connoissance ne sauroit toucher, il faut quelque chose de vif pour qu’on soit emù. Cependant c’est ainsi que les hommes le plus souvent pensent à Dieu, à la vertu, à la felicité ; ils parlent et raisonnent sans idées expresses ; ce n’est pas qu’ils n'en puissent avoir, puisqu’elles sont dans leur esprit. Mais ils ne se donnent point la peine de pousser l'analyse. Quelques fois ils ont des idées d'un bien ou d’un mal absent, mais très foibles ; ce n'est donc pas merveille qu'elles ne touchent guères. Ainsi si nous préferons le pire, c'est que nous sentons le bien qu'il renferme, sans sentir ny le mal qu’il y a, ny le bien qui est dans le parti contraire. Nous supposons et croyons, ou plustost nous recitons seulement sur la foy d’autruy ou tout au plus sur celle de la memoire de nos raisonnemens passés, que le plus grand bien est dans le meilleur parti ou le plus grand mal dans l’autre. Mais quand nous ne les envisageons point, nos pensées et raisonnemens contraires au sentiment sont une espece de psittacisme, qui ne fournit rien pour le present à l’esprit ; et si

66

buscam o que percecionam, concretamente, como melhor, mesmo quando é, de facto, pior ou mesmo o pior. Isso não significa que Leibniz tenha desprezado a noção de inquietação. Pelo contrário, vai integrá-la na sua teoria das impressões insensíveis, absolutamente decisiva para explicar a aparente indiferença de muitas das nossas decisões. Na polémica, tal teoria não é explicitada, mas está claramente implícita. Regressando ao exemplo da balança, Leibniz declara: “Os motivos não agem sobre o espírito como os pesos sobre a balança; Mas é antes o espírito que age em virtude dos motivos que são as suas disposições para agir. Assim, querer (...) que o espírito prefira, por vezes, motivos fracos aos mais fortes e mesmo o indiferente aos motivos, é separar o espírito dos motivos como se estivessem fora dele, como os pesos são distintos da balança e como se houvesse, dentro do espírito, outras disposições para agir para além dos motivos, em virtude das quais o espírito rejeitaria os motivos. Pelo contrário, na verdade, os motivos compreendem todas as disposições que o espírito humano pode ter para agir voluntariamente, pois não compreendem somente razões, mas ainda as inclinações que vêm das paixões ou de outras impressões precedentes. Assim, se o espírito preferisse a inclinação fraca à forte, agiria contra si mesmo e de outro modo que [aquele segundo a qual] está disposto a agir.”99 Por amor à verdade, é de salientar que Clarke não tinha dito que se prefira motivos fracos aos fortes, ou o indiferente aos motivos, mas sim que há ações motivadas por motivos fortes, fracos ou até casos que são indiferentes. Mas, de facto, Leibniz identificou o problema da conceção de Clarke que considera, em geral, os motivos como se estivessem fora do espírito. Só por isso é que consegue sustentar que se pode ter boas razões apesar de não ter motivos: “Dizer que o espírito pode ter boas razões para agir quando não há quaisquer motivos e quando as coisas são absolutamente indiferentes, é uma contradição manifesta – porque se há boas razões para a opção que tomamos, as coisas não lhe são de todo indiferentes.”100 De facto, ao menos durante a polémica, Clarke parece sempre supor dentro do espírito disposições ou razões que não concebe como motivos e que não contabiliza para a escolha final, muito embora acabe por referi-las. Não repara que, mesmo que alguém se decidisse, após tudo ter sido considerado, fazer exatamente o contrário do que lhe agradava e do que achava que devia, apenas para se mostrar livre, um tal capricho também seria uma razão que entraria na ponderação da balança e a sua escolha não deixaria de ser determinada pela

nous ne prenons point de mesures pour y remedier, autant en emporte le vent, [...] et les plus beaux preceptes de morale avec les meilleures regles de la prudence ne portent coup, que dans une ame, qui y est sensible [...] et qui n’est pas plus sensible à ce qui y est contraire. Ciceron dit bien quelque part, que si nos yeux pouvoient voir la beauté de la vertu, nous l’aimerions avec l’ardeur : mais cela n’arrivant point ny rien d’équivalent, il ne faut bien s’étonner si dans le combat entre la chair et l’esprit, l’esprit succombe tant de fois, puisqu’il ne se sert pas bien de ses avantages." 99 Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 15, G, VII, 392: "Les motifs n’agissent point sur l’esprit comme les poids sur la balance ; mais c'est plustost l’esprit qui agit en vertu des motifs, qui sont ses dispositions à agir. Ainsi vouloir comme l’on veut icy, que l’esprit prefere quelques fois les motifs foibles aux plus forts, et même l’indifferent aux motifs, c’est separer l’esprit des motifs, comme s’ils etoient hors de luy, comme le poids est distingué de la balance ; et comme si dans l’esprit il y avoit d’autres dispositions pour agir que les motifs, en vertu desquelles l’esprit rejetteroit ou accepteroit les motifs. Au lieu que dans la verité les motifs comprennent toutes les dispositions que l’esprit peut avoir pour agir volontairement, car ils ne comprennent pas seulement les raisons, mais encore les inclinations qui viennent des passions ou d’autres impressions precedentes. Ainsi si l’esprit preferoit l’inclination foible à la forte, il agiroit contre soy même, et autrement qu’il est disposé d’agir." 100 Leibniz, op. cit., 5º escrito, § 16, G, VII, 392: "De dire aussi que l’esprit peut avoir de bonnes raisons pour agir, quand il n’a aucuns motifs, et quand les choses sont absolument indifferentes, comme on s’explique icy, c'est une contradiction manifeste. Car s’il a de bonnes raisons pour le parti qu’il prend, les choses ne luy sont point indifferentes."

67

perceção.101 Ora, na primeira passagem citada no parágrafo anterior, Leibniz contabiliza entre os motivos, as razões, as paixões e as impressões precedentes. Nunca refere impressões insensíveis, mas sabe-se que elas são decisivas. Na única menção ao burro de Buridan, aliás, conjunta com mais uma menção à balança, nos Novos Ensaios, Leibniz lamenta-se: “Vejo que há alguns entre aqueles que falam da liberdade que, não dando atenção a essas impressões insensíveis, capazes de inclinar a balança, imaginam uma indiferença total nas ações morais, como a do burro de Buridan, dividido entre dois prados.” 102 Não só as “ações não deliberadas resultam de um concurso de pequenas perceções”, como têm, igualmente, grande influência nas deliberações e acabam por formar as disposições notáveis. Ora, Leibniz agregará estas impressões à noção lockiana de inquietação para conceber as “pequenas solicitações impercetíveis que nos ocupam permanentemente,” determinações confusas que chegam a incomodar-nos sem que saibamos o que nos falta, para lá de poderem formar as próprias paixões e inclinações notáveis, e estas também provocarem inquietação. “É por isso que nós não somos nunca indiferentes, quando mais parecemos sê-lo, por exemplo, quando viramos à direita e não à esquerda no fim de um cruzamento. Com efeito, o partido que tomamos deriva dessas determinações insensíveis, misturadas com as ações dos objetos e com o interior do corpo, que nos faz sentir mais à vontade numa maneira de nos deslocarmos do que na outra.” 103 Aliás, numa nova utilização do exemplo da balança (junto, aliás, com o habitual exemplo do relógio para as máquinas corporais) que faz lembrar o conceito contemporâneo de homeostasia, Leibniz aplica a conceção ao próprio corpo: “O mesmo se passa no nosso corpo, que nunca poderia estar perfeitamente a seu gosto: porque, quando o estivesse, uma nova impressão dos objetos, uma pequena mudança nos órgãos, nos vasos e nas vísceras desequilibrará, desde logo, a balança e levá-lo-á a despender algum pequeno esforço para se colocar de novo no melhor estado possível”.104 O espírito e o corpo, aliás, como que se espelham analogicamente, até na 101

Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XXI, § 25, G, V, 168: "Ils disent qu'aprés avoir tout connu et tout consideré, il est encor dans leur pouvoir de vouloir, non pas seulement ce qui plaist le plus, mais encor tout le contraire, seulement pour monstrer leur liberté. Mais il faut considerer qu'encor ce caprice ou entêtement ou du moins cette raison qui les empeche de suivre les autres raisons, entre dans la balance, et leur fait plaire ce qui ne leur plairoit pas sans cela, de sorte que le choix est tousjours determiné par la perception." 102 Leibniz, NE, 77-8; cf. Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. I, § 15, G, V, 105: "Toutes nos actions indeliberées sont des resultats d’un concours de petites perceptions, et même nos coustumes et passions, qui ont tant d’influence dans nos deliberations, en viennent : car ces habitudes naissent peu à peu, et par consequent sans les petites perceptions on ne viendroit point à ces dispositions notables. J’ay déja remarqué que celuy qui nieroit ces effects dans la morale, imiteroit des gens mal instruits qui nient les corpuscules insensibles dans la physique : et cependant je voy, qu’il y en a parmy ceux qui parlent de la liberté qui ne prenant pas garde à ces impressions insensibles, capables d’incliner la balance, s’imaginent une entiere indifference dans les actions morales, comme celle de l’âne de Buridan miparti entre deux prés." 103 Leibniz, NE, 112; cf. Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XX, § 6, G, V, 152-3: "Mais pour revenir à l’inquietude, c'est à dire aux petites sollicitations imperceptibles, qui nous tiennent tousjours en haleine, ce sont des determinations confuses, ensorte que souvent nous ne savons pas ce qui nous manque, au lieu que dans les inclinations et passions nous savons au moins ce que nous demandons, quoyque les perceptions confuses entrent aussi dans leur maniere d'agir, et que les mêmes passions causent aussi cette inquietude ou demangeaison. Ces impulsions sont comme autant de petits ressorts, qui tachent de se debander et qui font agir nostre machine. Et j’ay déja remarqué cy dessus que c’est par là que nous ne sommes jamais indifferens, lorsque nous paroissons l’estre le plus, par exemple de nous tourner à droit plustost qu’à gauche au bout d’une allée. Car le parti que nous prenons vient des ces determinations insensibles, melées des actions des objets et de l’interieur du corps, qui nous fait trouver plus à nostre aise dans l’une que dans l’autre maniere de nous remuer." 104 Leibniz, NE, 112-3; cf. Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XX, § 6, G, V, 153: "Il en est de même

68

falta de consciência do que neles ocorre: “Se nem sempre notamos a razão que nos determina, ou antes, pela qual nós nos determinamos, é porque somos igualmente incapazes de nos apercebermos de todo o jogo do nosso espírito e dos seus pensamentos, o mais das vezes impercetíveis e confusos, como de destrinçar todas as máquinas que a natureza faz jogar no corpo.” 105 Note-se, aliás, como estas determinações insensíveis são contabilizadas nas razões pelas quais o espírito se determina, o que, naturalmente, não pode ser ignorado no problema da liberdade. Percebendo que a noção lockiana de inquietação pode ser demasiado restrita, apenas se referindo a desprazeres notáveis, Leibniz frisa que, nesse caso, não seria o único aguilhão, tendo em conta as pequenas perceções insensíveis que constituem pequenas impulsões para a alma e o corpo se libertarem de pequenos impedimentos, determinando-nos “antes de qualquer consulta nos casos que nos parecem mais indiferentes, porque não estamos nunca em perfeito equilíbrio e não poderíamos estar exatamente a meio caminho entre duas possibilidades.” 106 Aliás, a sua discordância advém do facto da inquietação que defende ser essencial à felicidade das criaturas, a qual não é uma posse perfeita, mas sempre um progresso contínuo e ininterrupto. Aliás, num novo recurso ao exemplo da balança, a mais premente das inquietações pode não prevalecer porque muitas pequenas tendências opostas podem pesar mais na balança.107 Chega a utilizar a imagem de uma assembleia e respetiva pluralidade de votos, mas, no dans nostre corps qui ne sauroit jamais estre parfaitement à son aise : parceque quand il le seroit, une nouvelle impression des objets, un petit changement dans les organes, dans les vases et dans les viscères changera d’abord la balance et les fera faire quelque petit effort pour se remettre dans le meilleur estat qu’il se peut ; ce qui produit un combat perpetuel qui fait pour ainsi dire l’inquietude de nostre Horloge, de sorte que cette appellation est assés à mon gré." 105 Leibniz, NE, 120; cf. Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XXI, § 13, G, V, 164: "Si nous ne remarquons pas tousjours la raison qui nous determine ou plustost par laquelle nous nous determinons, c’est que nous sommes aussi peu capables de nous appercevoir de tout le jeu de nostre esprit et de ses pensées, le plus souvent imperceptibles et confuses, que nous sommes de demêler toutes les machines que la nature fait jouer dans le corps." 106 Leibniz, NE, 128; cf. Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XXI, § 36, G, V, 174-5: "Si vous prenés vostre uneasiness ou Inquietude pour un veritable deplaisir, en ce sens je n'accorde point qu'il soit le seul aiguillon. Ce sont le plus souvent ces petites perceptions insensibles, qu’on pourroit appeller des douleurs inapperceptibles, si la notion de la douleur ne renfermoit l’apperception. Ces petites impulsions consistent à se delivrer continuellement des petits empechemens, à quoy nostre nature travaille sans qu’on y pense. C’est en quoy consiste veritablement cette inquietude qu’on sent sans la connoistre, qui nous fait agir dans les passions aussi bien que lorsque nous paroissons les plus tranquilles, car nous ne sommes jamais sans quelque action et mouvement, qui ne vient que de ce que la nature travaille tousjours à se mettre mieux à son aise. Et c’est ce qui nous determine aussi avant toute consultation dans les cas qui nous paroissent les plus indifferens, parceque nous ne sommes jamais parfaitement en balance et ne saurions estre mi-partis exactement entre deux cas. [...] Bien loin qu’on doive regarder cette inquietude comme une chose incompatible avec la felicité, je trouve que l’inquietude est essentielle à la felicité des creatures, laquelle ne consiste jamais dans une parfaite possession qui les rendroit insensibles et comme stupides, mais dans un progres continuel et non interrompu à des plus grands biens, qui ne peut marquer d’estre accompagné d’un desir ou du moins d'une inquietude continuelle, mais telle que je viens d’expliquer, qui ne va pas jusqu’à incommoder, mais qui se borne à ces elemens ou rudimens de la douleur, inapperceptibles à part, lesquels ne laissent pas d'estre suffisans pour servir d’aiguillon et pour exciter la volonté." 107 Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XXI, § 40, G, V, 178-9: "Il peut arriver que la plus pressante des inquietudes ne prevale point ; car quoyque elle prevaudroit à chacune des tendences opposées, prise à part, il se peut que les autres jointes ensemble la surmontent. L’Esprit peut même user de l’adresse des dichotomies pour faire prevaloir tantost les unes, tantost les autres, comme dans une assemblée on peut faire prevaloir quelque parti par la pluralité des voix, selon qu'on forme l’ordre des demandes. Il est vray que l’esprit doit y pourvoir de loin ; car dans le moment du combat, il n’est plus temps d'user de ces artifices ; tout ce qui frappe alors, pese sur la balance, et contribue à former une direction composée presque comme dans la mecanique, et sans quelque promte diversion on ne sauroit l’arrester."

69

momento do combate entre inclinações contrárias, tudo pesa, imediatamente, de forma a formar uma direção composta, tal como na mecânica do movimento composto.108 Esta contabilidade dos pesos na balança chega mesmo a fazê-lo recorrer, conjuntamente com a metáfora da balança, à metáfora dos livros de contas.109 O que é importante é que se tenha noção que é sempre por vias determinadas, e nunca por uma indiferença perfeita ou de equilíbrio, que se chega à decisão. Nunca se está indiferente, pois o que se faz, mesmo sem pensar, é determinado por um concurso de disposições interiores e impressões exteriores.110 A questão da liberdade de indiferença ocupa um lugar central na Teodiceia, onde Leibniz por diversas vezes admite a possibilidade de alguma indiferença, mas nunca uma indiferença de equilíbrio. 111 Ainda se refere outras vezes a uma indiferença indefinida, indeterminada e vaga, arbitrária, completa, plena, 112 em vez de ou conjuntamente com a de equilíbrio, mas onde é mais claro é nas passagens em que só admite alguma indiferença se ela for entendida como sendo a simples contingência.113 Nota-se, aliás, que só o faz para se compatibilizar com diversos autores que afirmam essa indiferença sem, declaradamente ou por suposição, negar a existência de inclinações (o que, como já se viu, até acaba por ser o caso de Clarke e, provavelmente, de Newton). Porém, as razões de conjunto apresentadas por Clarke na polémica seriam sempre insuficientes para desfazer a indiferença porque, tal como na existência, a conceção leibniziana de ação é radicalmente individualizada, sendo determinada, como se verá em seguida, ao nível do mais ínfimo detalhe.114 De qualquer forma, são claras as suas intenções: pela contingência, procura evitar a necessidade, o que já foi amplamente tratado; pela rejeição da indiferença de 108

Leibniz, Essais de Théodicée, 1ª parte, § 22, G, VI, 116. Mais um exemplo mecânico. Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XXI, § 67, G, V, 192: "En effect il faut bien de choses pour se prendre comme il faut, lorsqu’il s'agit de la balance des raisons ; et c'est à peu près comme dans les livres de compte des marchands. Car il n’y faut negliger aucune somme, il faut bien estimer chaque somme à part, il faut les bien arranger, et il faut enfin en faire une collection exacte." 110 Leibniz, op. cit.,L. II, Ch. XXI, §§ 47-48, G, V, 181-3. 111 Apenas alguns exemplos: Leibniz, Essais de Théodicée, Préface, G, VI, 37; 1ª parte, § 35, G, VI, 122-3; 2ª parte, § 132, G, VI, 184; § 175-176, G, VI, 218-9; § 199, G, VI, 234-5; § 232, G, VI, 256; 3ª parte, § 324, G, VI, 308 (onde surge o exemplo da balança tirado de Bayle); § 349, G, VI, 321; § 365, G, VI, 331; § 367, G, VI, 332-3 (muito claro); § 369, G, VI, 334; sem contar com os apêndices e com muitas outras menções menos claras. 112 Outros exemplos: Leibniz, op. cit., 3ª parte, §§ 314-315, G, VI, 303; § 320, G, VI, 306. 113 E. g., Leibniz, op. cit.,1ª parte, § 46, G, VI, 128; 3ª parte, §§ 302-303, G, VI, 296-7: "Il faut l’admettre [a indiferença como condição necessária da liberdade], si l’indifference signifie autant que contingence ; car j’ay déja dit cy dessus, que la liberté doit exclure une necessité absolue et metaphysique ou logique. Mais, comme je me suis déja expliqué plus d’une fois, cette indifference, cette contingence, cette non-necessité, si j’ose parler ainsi, qui est un attribut caracteristique de la liberté, n’empêche pas qu’on n’ait des inclinations plus fortes pour le parti qu’on choisit ; et elle ne demande nullement qu’on soit absolument et egalement indifferent pour les deux partis opposés. Je n’admets donc l’indifference que dans un sens, qui la fait signifier autant que contingence, ou non-necessité. Mais comme je me suis expliqué plus d’une fois, je n’admets point une indifference d’equilibre, et je ne crois pas qu’on choisisse jamais, quand on est absolument indifferent. Un tel choix seroit une espece de pur hazard, sans raison determinante, tant apparente, que cachée. Mais un tel hazard, une telle casualité absolue et reelle, est une chimere qui ne se trouve jamais dans la nature. Tous les sages conviennent que le hazard n’est qu’une chose apparente, comme la fortune : c’est l’ignorance des causes qui le fait." 114 Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 17, G, VII, 392-3: "on n'a pas une raison suffisante pour agir, quand on n’a pas une raison suffisante pour agir tellement, toute action estant individuelle, et non generale, ny abstraite de ses circonstances, et ayant besoin de quelque voye pour etre effectuée. Donc quand il y a une raison suffisante pour agir tellement, il y en a aussi pour agir par une telle voye, et par consequent les voyes ne sont point indifferentes. Toutes les fois qu’on a des raisons suffisantes pour une action singuliere, on en a pour tous ses requisits." 109

70

equilíbrio, procura rejeitar o acaso, como já se viu na diatribe em relação a Epicuro. A rejeição do acaso leva, aliás, Leibniz a aprovar115 Hobbes no seu comentário a uma obra sobre o assunto.116 A principal razão apresentada é que seria um caso de produção de algo a partir de nada, visto não existir razão ou causa, ou seja, por ofensa do princípio da razão suficiente. 117 Mas, em ambos os casos, Leibniz acrescenta que o acaso, tal como a liberdade de indiferença, não passam de aparências que resultam da ignorância das causas. Não se pode deixar de ver alguma influência de Spinoza aqui.118 Porém, a ignorância das causas servia, em Spinoza, para explicar a ilusão da liberdade. Como os homens tinham consciência dos seus apetites, pensavam que tinham liberdade por decidirem as causas finais. Na verdade, essas causas finais não passariam de ficções porque na verdade os homens eram determinados por causas eficientes que desconheciam e que determinavam a ação sem que tivessem conhecimento disso. Ora, em Leibniz, essa ignorância das causas explica apenas a ilusão da indiferença e do acaso, sendo as causas finais determinantes de toda a ação, incluindo quando a determinação é inconsciente. 5. O problema da liberdade em Leibniz Mas se a determinação é inconsciente, mesmo que apenas em parte, poder-se-á falar de liberdade? Isso coloca outra questão, relativa aos limites da liberdade. A própria preferência de Leibniz por um exemplo inanimado, a balança (preferência até bastante mais notória nos Novos Ensaios), fazia Clarke pôr em causa a sua conceção de liberdade. Afinal, isso fazia lembrar os exemplos de muitos necessitaristas, entre os quais o próprio Hobbes, muito embora tente compatibilizar a necessidade com a liberdade, através de uma definição meramente negativa de liberdade como ausência de coerção. Esta conceção é, aliás, exemplificada, exatamente, com a água de um canal.119 Leibniz, ao responder a Clarke em relação à diferença entre uma balança ativa e os agentes inteligentes, afirma que quer os agentes, quer os pacientes, necessitam de uma razão suficiente.120 Isso não é dizer grande coisa visto tudo ter uma razão suficiente, até 115

Leibniz, Essais de Théodicée, Réflexion sur l’ouvrage que M. Hobbes..., § 2, G, VI, 389: "Il [Hobbes] fait fort bien voir qu’il n’y a rien qui se fasse au hazard, ou plustost que le hazard ne signifie que l’ignorance des causes qui produisent l’effect et que pour chaque effect il faut un concours de toutes conditions suffisantes, anterieures à l’evenement, dont il est visible que pas une ne peut manquer, quand l’evenement doit suivre, parce que ce sont des conditions ; et que l’evenement ne manque pas non plus de suivre, quand elles se trouvent toutes ensemble, parce que ce sont des conditions suffisantes." 116 Thomas Hobbes, The English Works, London, John Bohn, 1861, Vol. V, The Questions concerning Liberty, Necessity, and Chance. 117 Leibniz, op. cit., Réflexion..., § 5, G, VI, 392: "On soutient [Hobbes...], que le hazard [...] ne produit rien. C’est à dire, qu’il ne se produit rien sans cause ou raison. Fort BIEN, j’y consens, si l’on entend parler d’un hazard reel. Car la fortune et le hazard ne sont que des apparences, qui viennent de l’ignorance des causes, ou de l’abstraction qu’on en fait." 118 Entre muitas outras referências possíveis, Spinoza, CW, Ethics, 1965, 1ª parte, Apêndice, 239. 119 Thomas Hobbes, trad. port. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva, Leviatã, 4ª ed., Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2010, 2ª parte, Cap. XXI, p. 176; cf. Thomas Hobbes, Leviathan or The Matter, Forme, & Power of a Common-Wealth Ecclesiasticall and Civill, London, Andrew Crooke, 1651; repr. 1st. ed., 1909, Oxford, Clarendon Press, 1929, p. 162: "Liberty, and Necessity are Consistent: As in the water, that hath not only liberty, but a necessity of descending by the Channel: so likewise in the Actions which men voluntarily doe; which, because they proceed from their will, proceed from liberty; and yet, because every act of mans will, and every desire, and inclination proceedeth from some cause, and that from another cause, in a continuall chaine, (whose first link in the hand of God the first of all causes,) they proceed from necessity. So that to him that could see the connexion of those causes, the necessity of all mens voluntary actions, would appeare manifest." 120 Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 14, G, VII, 391-2: "On objecte que la balance est purement passive et poussée par les poids, au lieu que les agens intelligens et doués de volonté sont actifs. A cela je reponds, que le principe du besoin d'une raison suffisante est commun aux agens et aux patiens. Ils ont

71

as verdades de razão, embora essa razão seja a fornecida pelo princípio de identidade. Além disso, na polémica, Leibniz pode ter usado o exemplo da balança para aplicar o princípio da razão suficiente na física, mas fá-lo para ilustrar a liberdade noutras obras. Mas não só. Após ter aprovado a rejeição de Hobbes, semelhante à já vista em Locke, da liberdade da vontade por atribuir a liberdade ao agente, assim como o facto de o sistema de penas e recompensas servir para os homens fazerem as ou absterem-se das ações, mesmo com a certeza ou até mesmo com a necessidade das ações,121 declara o seguinte: “Dá também uma noção suficientemente boa da liberdade, enquanto ela é tomada num sentido geral comum às substâncias inteligentes e não inteligentes, dizendo que uma coisa é considerada livre quando o poder que tem não é de todo impedido por uma coisa externa.”122 Pode-se aceitar um sentido de liberdade comum às substâncias inteligentes e não inteligentes? Entre os sentidos de liberdade apresentados por Leibniz nos Novos Ensaios,123 este parece corresponder à liberdade de facto que inclui o sentido mais puro da liberdade do querer, mas parece se aplicar melhor à liberdade particular de fazer.124 Tal como foi visto anteriormente que a eficiência física não era concebida como completamente distinta da necessidade lógica,125 poder-se-á colocar a questão de se não existirá uma maior continuidade do que usualmente se julga, com base, é verdade, nas oposições inequivocamente afirmadas pelo próprio Leibniz, entre necessidade e contingência, sobretudo, a contingência física. Mais ainda, poder-se-á colocar a questão de se não existirá uma maior continuidade também entre o físico e o psíquico. Mesmo que apenas analogicamente, não é arbitrária a escolha do termo autómato não só para designar as máquinas corporais, determinadas pelas causas eficientes, embora com vista a uma finalidade global, mas também as máquinas espirituais, determinadas pelas causas finais.126 Como é compatível a noção de autómato espiritual com a necessidade besoin d'une raison suffisante de leur action, aussi bien que de leur passion. Non seulement la balance n’agit pas, quand elle est poussée egalement de part et d’autre, mais les poids egaux aussi n'agissent point, quand ils sont en equilibre, en sorte que l’un ne peut descendre, sans que l’autre monte autant." 121 O assunto é extensamente tratado em Leibniz, Essais de Théodicée, 1ª parte, §§ 67-71, G, VI, 139-41, onde, aliás, reconhece que a necessidade absoluta nada traria de novo à certeza infalível de uma necessidade hipotética (§ 67, p. 122). Aliás, a propósito, refere-se à obra de Hobbes (§ 72) mais adiante analisada. 122 Leibniz, op. cit., Réflexion..., § 4, G, VI, 391: "Il donne aussi une notion assés bonne de la liberté, en tant qu’elle est prise dans un sens general, commun aux substances intelligentes et non intelligentes, en disant qu’une chose est censée libre, quand la puissance qu’elle a n’est point empêchée par une chose externe." 123 Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XXI, § 8, G, V, 160-1. 124 Leibniz, op. cit., L. II, Ch. XXI, § 8, G, V, 160: "On entend la liberté particulièrement de l’usage des choses, qui ont coûtume d'estre en nostre pouvoir et sur tout de l'usage libre de nostre Corps. Ainsi la prison et les maladies, qui nous empechent de donner à nostre corps et à nos membres le mouvement que nous voulons et que nous pouvons leur donner ordinairement, derogent à nostre liberté : c’est ainsi qu'un prisonnier n’est point libre, et qu’un paralytique n’a pas l’usage libre de ses membres." 125 Ver as págs. 43 e 44, no final do tópico sobre os tipos de necessidade. 126 E. g., Leibniz, La Monadologie, § 18, G, VI, 609-10; Essais de Théodicée, 1ª parte, § 52, G, VI, 131; 3ª parte, § 403, G, VI, 356; Leibniz, "Eclaircissement des difficultés que Monsieur Bayle a trouvées dans le systeme nouveau de l'union de l'ame et du corps", G, IV, 522: "Je n’ay comparé l’ame avec une pendule qu’à l’egard de l’exactitude reglée des changemens, qui n’est même qu’imparfaite dans les meilleures horloges, mais qui est parfaite dans les ouvrages de Dieu ; et qu’on peut dire que l’ame est un Automate immateriel des plus justes. Quand il est dit, qu’un estre simple agira tousjours uniformement, il y a quelque distinction à faire : si agir uniformement est suivre perpetuellement une même loy d’ordre ou de continuation, comme dans un certain rang ou suite de nombres, j’avoue que de soy tout Estre simple, et même tout Estre composé agit uniformement ; mais si uniformement veut dire semblablement, je ne l’accorde point. Pour expliquer la difference de ce sens par un exemple : un mouvement en ligne parabolique est uniforme dans le premier sens, mais il ne l’est pas dans le second, les portions de la ligne

72

prática de conceder prémios e castigos aos agentes, sobretudo se for vista não em termos de utilidade ou conveniência, mas em termos de justiça? Poder-se-á dizer que, apesar de determinados, os espíritos são livres visto se regerem por causas finais cujo fundamento é a sua própria espontaneidade que se expressa através do desejo. Infelizmente, se for esse o fundamento da liberdade, ela teria que ser atribuída a todos os animais e, se calhar, a todo o vivo, ou seja, a todas as mónadas. A este propósito, faz sentido lembrar o burro dito de Buridan (aparentemente, para refutar ou ridicularizar João Buridan) e, sobretudo, a primeira das duas abordagens da figura na Teodiceia.127 A justificação para a impossibilidade de um burro morrer à fome por estar a igual distância de dois prados (e não fardos, como é habitual referir), não é o facto de possuir um princípio ativo independente do juízo,128 mas sim o de não poder atingir o equilíbrio de uma balança, visto ser, ao contrário da balança, uma substância e a sua noção completa incluir a representação de todo o universo. Ora, o universo, para lá dos prados, não poderia ser cortado exatamente ao meio e, em cada metade, tudo ser igual à outra metade. De facto, nem as duas metades do burro seriam iguais, havendo diferenças entre o lado esquerdo e direito do corpo no que respeita às suas vísceras. Mais ainda, nem os prados, visto a sua diferente posição fornecer pontos de vista diferentes em relação a todo o universo. “Haveria, pois, sempre, muitas coisas quer no burro, quer fora dele, que o determinariam a ir para um lado em vez de ir para o outro.”129 O mesmo aconteceria a um homem, muito embora, porventura, só um anjo ou o próprio Deus pudessem dar a razão suficiente da decisão.130 Quer isto dizer que, embora só analogicamente se pudesse comparar um homem com uma balança, a comparação com o burro a respeito da liberdade já seria literal? Nesta mesma passagem, Leibniz afirma que o homem é livre e o burro não,131 mas é difícil perceber porquê. Em primeiro lugar, é óbvio que esta não é aquela conceção hobbesiana de liberdade que até incluía as coisas inanimadas. Em segundo lugar, parece óbvio que o burro se rege por causas finais tal qual o homem. Em terceiro lugar, seguindo a conceção tradicional de liberdade, atribuída por Leibniz a Aristóteles,132 há parabolique n’estant pas semblables entre elles, comme celles de la ligne droite. [...] Il faut considerer aussi que l’ame, toute simple qu’elle est, a tousjours un sentiment composé de plusieurs perceptions à la fois ; ce qui opere autant pour nostre but, que si elle estoit composée de pièces, comme une machine. Car chaque perception precedente a de l’influence sur les suivantes, conformement à une loy d’ordre qui est dans les perceptions comme dans les mouvemens." 127 Leibniz, Essais de Théodicée, 1ª parte, § 49, G, VII, 129-30. 128 Leibniz, op. cit., 3ª parte, § 305, G, VI, 298: "Vouloir faire simplement usage de sa liberté n’a rien de spécifiant, ou que nous détermine au choix de l’un ou de l’autre parti." 129 Leibniz, op. cit.,1ª parte, § 49, G, VI, 129-30: "Le cas de l’âne de Buridan entre deux prés, egalement porté à l’un et à l’autre, est une fiction qui ne sauroit avoir lieu dans l’univers, dans l’ordre de la nature [...]. Il est vray, si le cas étoit possible, qu’il faudroit dire qu’il se laisseroit mourir de faim : mais dans le fond, la question est sur l’impossible, à moins que Dieu ne produise la chose exprès. Car l’univers ne sauroit être miparti par un plan tiré par le milieu de l’âne, coupé verticalement suivant sa longueur, en sorte que tout soit egal et semblable de part et d’autre [...]. Car ny les parties de l’Univers, ny les visceres de l’animal, ne sont pas semblables, ny egalement situés de deux côtés de ce plan vertical. Il y aura donc tousjours bien des choses dans l’âne et hors de l’âne, quoyqu’elles ne nous paroissent pas, qui le determineront à aller d’un côté plustost que de l’autre." 130 Leibniz, op. cit.,1ª parte, § 49, G, VI, 130: "Il ne laisse pas d’être vray par la même raison, qu’encor dans l’homme le cas d’un parfait equilibre entre deux partis est impossible, et qu’un ange, ou Dieu au moins, pourroit tousjours rendre raison du parti que l’homme a pris, en assignant une cause ou une raison inclinante, qui l’a porté veritablement à le prendre ; quoyque cette raison seroit bien composée et inconcevable à nous mêmes, parce que l’enchainement des causes liées les unes avec les autres va loin." 131 Leibniz, op. cit.,1ª parte, § 49, G, VI, 130: "Quoyque l’homme soit libre, ce que l’âne n’est pas." 132 Parece estar a referir-se ao início do Livro III da Ética a Nicómaco e, mais especificamente, aos dois primeiros capítulos, onde se contrapõe o ato voluntário (a espontaneidade a que se refere Leibniz) à escolha refletida ou deliberada; esta última, está vedada aos seres irracionais, apenas capazes de desejo e

73

dois componentes necessários na liberdade: a espontaneidade e a escolha.133 O primeiro corresponde, aliás, ao princípio ativo de Clarke, apenas não tendo independência dos motivos por estes serem igualmente internos. Trata-se de afirmar que a ação vem do fundo próprio do sujeito e não de qualquer outra coisa, o que, pelo menos em relação ao criado, Leibniz garante. Quanto à escolha, já se viu que Leibniz a considera predeterminada, de forma certa e infalível, apesar de não necessária, muito embora possa dizer que é feita pelo sujeito porque é feita com vista a causas finais, isto apesar de nem ter, por vezes, consciência de quais, visto ser determinado por perceções inconscientes. Ora, não se percebe, consideradas estas duas condições, porque que não pode o burro ser livre. É verdade que já aqui Leibniz se refere à necessidade de juízo para a deliberação. Porém, a representação do melhor necessária à escolha também não existe no burro? E, no homem, é sempre requerido o juízo explícito do entendimento?134 Mesmo se tivermos em conta a versão dos Novos Ensaios, com a mesma referência a Aristóteles, em que, em vez de escolha, surge a deliberação (o que já surgia, sob forma verbal, na passagem anterior),135 poder-se-ia considerar que entre o burro e o homem haveria apenas uma diferença de grau e não de natureza, pelo que o burro seria menos livre, mas não deixaria de ser livre, assim como um homem que se entrega completamente às paixões, por muito embrutecido que esteja, não deixa, contudo, de ser livre. Numa outra versão desta dupla condição, na Teodiceia, Leibniz considera, porém, que a deliberação resulta das duas condições, sendo que essas duas passam a ser a espontaneidade e a inteligência. Ora, esta última, tal como em Aristóteles, está vedada às bestas.136 É sabido, aliás, que, nesta questão, Leibniz admite a possibilidade de uma exceção no seu sistema natural, propondo a hipótese, fundamentalmente por motivos teológicos, de uma intervenção milagrosa, uma transcriação,137 embora pela única razão que, na própria polémica, admite milagres, ou seja, pela graça divina.138 Porém, se, na passagem referida, parece inclinar-se para uma intervenção sobrenatural, numa outra parece inclinar-se para a outra alternativa, consistente com a tendência leibniziana a rejeitar milagres nos processos naturais, a da existência seminal da razão naquelas almas que estão destinadas a tornar-se humanas.139 Em qualquer caso, continua a ser difícil ver movimentos do coração; Aristóteles, tr. fr. Jean Voilquin, Éthique de Nicomaque, Paris, Garnier fréres, 1965 ; Garnier-Flammarion, 1987, Livre III, Ch. II, p. 69, 1111 b6-1111b17. 133 Leibniz, op. cit., 1ª parte, § 34, G, VI, 122: "Aristote a déja remarqué qu’il y a deux choses dans la liberté, savoir la spontaneité et le choix, et c’est en quoy consiste nostre empire sur nos actions. Lorsque nous agissons librement, on ne nous force pas, comme il arriveroit, si l’on nous poussoit dans un precipice, et si l’on nous jettoit du haut en bas : et on ne nous empêche pas d’avoir l’esprit libre lorsque nous deliberons, comme il arriveroit, si l’on nous donnoit un breuvage qui nous ôtat le jugement. Il y a de la contingence dans mille actions de la nature ; mais lorsque le jugement n’est point dans celuy qui agit, il n’y a point de liberté. Et si nous avions un jugement qui ne fût accompagné d’aucune inclination à agir, nostre ame seroit un entendement sans volonté." 134 Leibniz, op. cit., 1ª parte, § 51, G, VI, 130 . Ver nota 152. 135 Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XXI, § 9, G, V, 161: "Si libre estoit ce qui agit sans empechement, la balle estant une fois en mouvement dans un horison uni seroit un agent libre. Mais Aristote a déja bien remarqué que pour appeller les Actions libres, nous demandons non seulement qu'elles soyent spontanées, mais encor qu'elles soyent deliberées." 136 Leibniz, Essais de Théodicée, 3ª parte, § 302, G, VI, 296: "Nous avons expliqué les deux conditions de la Liberté dont Aristote a parlé, c’est à dire la spontaneité et l’intelligence, qui se trouvent jointes en nous dans la deliberation, au lieu que les bestes manquent de la seconde condition." 137 Leibniz, op. cit., 1ª parte, § 91, G, VI, 153. 138 Leibniz, Streitschriften..., 1º escrito, § 4, G, VII, 352: "Et je tiens, quand Dieu fait des miracles, que ce n’est pas pour soûtenir les besoins de la nature, mais pour ceux de la grace." 139 Leibniz, Essais de Théodicée, 3ª parte, § 397, G, VI, 352-3. A discrepância entre estas duas passagens talvez se explique por uma evolução de Leibniz, durante a redação da Teodiceia, provocada por Des

74

o que um homem terá de fundamentalmente diferente de um burro, visto não se negar, em absoluto, a liberdade ao homem quando este age sob a influência das multiplíssimas impressões inconscientes, pois continua a agir pelas causas finais e a escolher, mesmo que não saiba bem porquê. Naturalmente, se a ação for totalmente inconsciente como a de um sonâmbulo, não se estará livre. Mas Leibniz reconhece que essas impressões inconscientes ou semiconscientes influenciam sempre a decisão, surgindo esta, sempre, como um resultado de múltiplos fatores.140 Aparentemente, a doação da razão aos espíritos, nomeadamente aos homens, torna-os capazes de liberdade, no sentido de se aproximarem ao infinito da liberdade perfeita de Deus, mas havendo uma continuidade que vai desde a inconsciência ou da consciência estritamente sensível, idêntica à das bestas, até uma motivação estritamente racional. “Quanto mais nos aproximamos de Deus, mais a liberdade é perfeita e mais ela se determina pelo bem e pela razão.”141 Assim, é como se um homem quase pudesse estar ao nível do burro, mas não o inverso, porque o homem se pode tornar tão bruto quanto o burro, mas ao burro está, por natureza, vedada a racionalidade.142 Ao tentar Bosses, muito embora aquele alegue, na própria correspondência, tratar-se da sua solução preferida já antes das objeções de Des Bosses e até indo buscar, para tal sustentar, um seu texto alegadamente anterior: cf., Leibniz, Carta para Des Bosses de 8 de Setembro de 1709, G, II, 389-90. Que tenha sentido necessidade de tal recurso diz alguma coisa, sobretudo por não admitir de todo tal alternativa em carta anterior, onde só admite duas alternativas miraculosas (conjuntamente com uma referência sumária à transdução), ou a criação de uma nova mónada, ou a transcriação referida e nesta carta preferida por Leibniz: Leibniz, Carta para Des Bosses de 24 ou 30 de Abril de 1709, G, II, 371: "possibile esse ut Deus creet novas Monades. Sed non tamen definio, a Deo novas Monades creari. Imo putem defendi posse et probabilius esse contrarium, adeoque praeexistentiam Monadum. Et pro creatione absoluta animae rationalis defendi posset Trancreatio animae non rationalis in rationalem, quod fieret addito miraculose gradu essentiali perfectionis." Para as objeções de Des Bosses, cf. Des Bosses, Carta para Leibniz de 30 de Julho de 1709, G, II, 375-6, e, sobretudo quanto à questão dos milagres, Carta para Leibniz de 6 de Setembro de 1709, G, II, 387-8. Não seria a última vez e, certamente, não seria a mais importante em que as objeções de Des Bosses fariam Leibniz alterar a sua formulação, pelo menos no seio da correspondência entre ambos. 140 Veja-se como Leibniz descreve o concurso que forma a volição perfeita, a vontade plena, como resultado do conflito entre múltiplas perceções e inclinações, e. g., Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XXI, § 39, G, V, 178: "Plusieurs perceptions et inclinations concourent à la volition parfaite, qui est le resultat de leur conflit. Il y en a d'imperceptibles à part, dont l’amas fait une inquietude, qui nous pousse sans qu’on en voye le sujet ; il y en a plusieurs jointes ensembles, qui portent à quelque objet, ou qui en éloignent, et alors c’est desir ou crainte, accompagné aussi d’une inquietude, mais qui ne va pas tousjours jusqu’au plaisir ou deplaisir. Enfin il y a des impulsions, accompagnées effectivement de plaisir et de douleur, et toutes ces perceptions sont ou des sensations nouvelles ou des imaginations restées de quelque sensation passée (accompagnées ou non accompagnées du souvenir) qui renouvellant les attraits que ces mêmes images avoient dans ces sensations precedentes, renouvellent aussi les impulsions anciennes à proportion de la vivacité de l’imagination. Et de toutes ces impulsions resulte enfin l’effort prevalant, qui fait la Volonté pleine." 141 Leibniz, Essais de Théodicée, 3ª parte, § 318, G, VI, 305: "Nous avons assés prouvé qu’il n’y a que l’ignorance ou la passion qui puisse tenir en suspens, et que c’est pour cela que Dieu ne l’est jamais. Plus on approche de luy, plus la liberté est parfaite, et plus elle se determine par le bien et par la raison." 142 A não ser pelo referido milagre da transcriação, onde seria adicionado a uma alma bestial um grau de perfeição. Na segunda das cartas onde Des Bosses apresenta as suas objeções a esta transcriação, quando Des Bosses interpreta a transcriação como a substituição de uma alma irracional por uma racional equivalente a uma nova criação, Leibniz rejeita, sumariamente, em nota, tal interpretação. Cf. G, II, 387. Porquê? Porque não considera que a adição de um grau de perfeição seja dar origem a algo completamente diverso, mas apenas a algo cuja natureza, embora análoga, é mais evoluída, visto possuir mais um grau essencial ou mais uma faculdade. Cf. Leibniz, Carta para Des Bosses de 8 de Setembro de 1709, G, II, 389. Que Des Bosses percebeu isto mostra-o a referência posterior à proposição proibida que admite um poder que, apesar de naturalmente incapaz de agir livremente, assim pode agir se elevado por Deus: Des Bosses, Carta para Leibniz de 18 de Janeiro de 1710, G, II, 395-6: "Unum adhuc moneo: vetitam a nobis defendi propositionem hanc: Possibilis est potentia quae quam vis naturaliter sit incapax

75

sustentar que o sofrimento dos animais não implicava injustiça, tendo em conta que um inocente não deveria ser miserável sob a tutela de Deus, após sustentar que os outros animais não pareciam capazes de tristeza ou alegria, Leibniz acaba por equipará-los aos homens mais embrutecidos.143 O homem é livre porque tem sempre a possibilidade de se determinar pela razão, muito embora não seja assim tão direta, como se verá, essa possibilidade de se tornar mais racional. Há, porém, um paradoxo evidente que excede os objetivos desta análise, comum, aliás, a muita da tradição filosófica e teológica: os pecaminosos e, ainda mais, os danados, por pouco uso da razão, são cada vez menos livres, cada vez mais escravos das paixões,144 e isso não impede que sejam considerados cada vez mais culpados. Não seria esse um argumento para considerar a sua responsabilidade limitada, visto as suas ações serem fruto da ignorância e a ignorância não resultar de uma escolha? Não deixa de ser curioso, porém, que, quando Leibniz tenta distinguir os espíritos das simples almas, para lá de se referir o facto de o espírito não apenas representar o mundo, mas também o próprio Deus, o que o faz à sua imagem e semelhança não é tanto a ação voluntária da conduta ética, da prática propriamente dita, mas outra ação voluntária, a do fabrico, da produção, da arte, onde o espírito imita a criação divina: “a nossa alma é arquitetónica ainda nas ações voluntárias e, descobrindo as ciências segundo as quais Deus regulou as coisas (...), imita no seu departamento e no seu pequeno mundo, onde lhe é permitido exercer-se, o que Deus faz no grande,”145 sendo como uma pequena divindade no seu departamento.146 6. A possibilidade de suspensão da resolução em Leibniz Uma última passagem da polémica a este propósito tem um caráter enigmático ou contraditório, de acordo com Clarke, se só se tiver em consideração as cartas desta operandi libere, divinitus tamen elevata libere operetur." 143 Leibniz, op. cit., § 250, G, VI, 266: "L’on ne sauroit douter raisonnablement qu’il n’y ait de la douleur dans les animaux ; mais il paroit que leur plaisirs et leur douleurs ne sont pas aussi vifs que dans l’homme : car ne faisant point de reflexion, ils ne sont point susceptibles ny du chagrin qui accompagne la douleur, ny de la joye qui accompagne le plaisir. Les hommes sont quelque fois dans un etat qui les approche des bestes, et où ils agissent presque par le seul instinct, et par les seules impressions des experiences sensuelles : et dans cet etat, leur plaisirs et leur douleurs sont fort minces." Aliás, faz o mesmo ao comparar o raciocínio nas bestas (a associação através de memória e imaginação) com o que fazem os homens empíricos: Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XXXIII, §§ 1-18, G, V, 252. 144 Leibniz, Essais de Théodicée, 3ª parte, § 289, G, VI, 288-9: "La connoissance distincte ou l’intelligence a lieu dans le veritable usage de la Raison ; mais les sens nous fournissent des pensées confuses. Et nous pouvons dire que nous sommes exemts d’esclavage, entant que nous agissons avec une connoissance distincte ; mais que nous sommes asservis aux passions, entant que nos perceptions sont confuses. C’est dans ce sens que nous n’avons pas toute la liberté d’esprit qui seroit à souhaiter, et que nous pouvons dire avec S. Augustin, qu’étant assujettis au peché, nous avons la liberté d’un esclave. Cependant un esclave, tout esclave qu’il est, ne laisse pas d’avoir la liberté de choisir conformement à l’etat où il se trouve, quoyqu’il se trouve le plus souvent dans la dure necessité de choisir entre deux maux, parce qu’une force superieure ne le laisse pas arriver aux biens où il aspire. Et ce que les liens et la contrainte font en un esclave, se fait en nous par les passions, dont la violence est douce, mais n’en est pas moins pernicieuse. Nous ne voulons à la verité que ce qui nous plait : mais par malheur ce qui nous plait à present, est souvent un vray mal, qui nous deplairoit, si nous avions les yeux de l’entendement ouverts. Cependant ce mauvais etat où est l’esclave, et celuy où nous sommes, n’empêche pas que nous ne fassions un choix libre (aussi bien que luy) de ce qui nous plait le plus, dans l’etat où nous sommes reduits, suivant nos forces et nos connoissances presentes." 145 Leibniz, Principes..., § 14, G, VI, 604-5: "notre Ame est Architectonique encore dans les Actions volontaires : et decouvrant les sciences, suivant lesquelles Dieu a reglé les choses (pondere, mensura, numero etc.). Elle imite dans son departement, et dans son petit Monde où il luy est permis de s’exercer, ce que Dieu fait dans le grand." 146 Leibniz, La monadologie, § 83, G, VI, 621; Essais de Théodicée, 2ª parte, § 147, G, VI, 197.

76

correspondência. Seria, aliás, um dos aspetos que poderia ter sido muito mais esclarecido se a morte de Leibniz não tivesse interrompido a polémica. Afirma Leibniz, na última carta: “A nossa vontade não segue sempre precisamente o entendimento prático porque ela pode ter ou encontrar razões para suspender a sua resolução até uma discussão ulterior.” 147 Como já se viu, Clarke não só acusa Leibniz de contradição, como se pergunta se essas razões não serão o último juízo do entendimento prático. Independentemente do significado que isto possa ter no pensamento de Clarke, aliás já examinado, ver-se-á, agora, que Leibniz nem se contradiz, nem as razões referidas têm de corresponder ao último juízo do entendimento prático. O pensamento de Leibniz a este propósito tem particularidades bastante subtis que podem causar algumas perplexidades, sobretudo se se toma como referência as teses de Locke que são claramente o pano de fundo das posições quer de Leibniz, quer de Clarke, a este propósito. Por exemplo, Leibniz admite a possibilidade de suspensão da escolha quanto a ocorrer ou não uma ação, 148 o que Locke rejeita, 149 e, porém, coloca reservas à conceção lockiana de liberdade como suspensão da realização de desejos. 150 Não é claro, aliás, em que sentido Leibniz enuncia a possibilidade de suspensão na passagem acima referida. Há, pelo menos, três sentidos em que estabelece essa possibilidade. Em primeiro lugar, o menos relevante deles, mas aquele que mais corresponde aos termos da passagem, é, porventura, a referida suspensão da escolha por falta de resolução. Leibniz argumenta que, se é verdade que a ação não ocorreu por enquanto, isso não aconteceu, nesse caso, porque houvesse uma decisão quanto à sua não existência, mas porque se suspendeu a decisão. Presume-se que Locke, se lhe tivesse respondido, ter-lhe-ia dito que, se se suspendeu a decisão, então decidiu-se a sua não efetivação, pelo menos provisoriamente. A sua efetivação futura implicaria uma nova e diferente decisão. Mesmo neste caso, porém, Leibniz parece fazer depender a não resolução da intervenção de outros pensamentos que, de alguma forma, pesam na balança. De qualquer forma, não é seguro que esse seja o sentido da passagem em questão porque não é a este propósito que Leibniz costuma falar de não se seguir o entendimento prático. Em segundo lugar, a suspensão da ação pode não seguir o entendimento prático por intervenção de inclinações e perceções insensíveis. Em geral, Leibniz distingue entre o juízo do entendimento prático e as confusas perceções dos sentidos, as paixões e 147

Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 11, G, VII, 391: "Notre volonté ne suit pas tousjours precisement l’entendement practique, parce qu’elle peut avoir ou trouver des raisons pour suspendre sa resolution jusqu’à une discussion ulterieure." 148 Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XXI, § 23, G, V, 167: "Je croirois qu’on peut suspendre son choix, et que cela se fait bien souvent, surtout lorsque d’autres pensées interrompent la deliberation : ainsi, quoyqu’il faille que l’action, sur laquelle on delibere, existe ou n’existe pas, il ne s’en suit point, qu’on en doit resoudre necessairement l’existence ou la non-existence, car la non-existence peut arriver encor faute de resolution." 149 John Locke, EU, Book II, Chap. XXI, § 23, 131: "For it being unavoidable that the Action depending on his Will, should exist, or not exist; and its existence, or not existence, following perfectly the determination, and preference of his Will, he cannot avoid willing the existence, or not existence, of that Action; it is absolutely necessary that he will the one, or the other; i. e. prefer the one to the other: since one of them must necessarily follow; and that which does follow, follows by the choice and determination of his Mind, that is, by his willing it: for if he did not will it, it would not be. So that in respect of the act of willing, a Man is not free: Liberty consisting in a power to act, or not to act, which, in regard of Volition, a Man has not. For it is unavoidably necessary to prefer the doing, or forbearance, of an Action in a Man's power, which is once so proposed to his thoughts; a Man must necessarily will the one, or the other of them, upon which preference, or volition, the action, or its forbearance, certainly follows, and is truly voluntary: But the act of volition, or preferring one of the two, being that which he cannot avoid, a Man, in respect of that action is under a necessity, and so cannot be free". 150 Leibniz, op. cit., L. II, Ch. XXI, § 47, G, V, 181. Ver nota 157.

77

as inclinações insensíveis capazes de deformar aquele ou até de o contrariar. 151 Aliás, o facto de não se seguir sempre o último juízo do entendimento não só resulta desta intervenção de outras inclinações, como o resultado de todas as inclinações provenientes quer das razões, quer das paixões, pode nem requerer um expresso juízo do entendimento.152 Mais claramente ainda, Leibniz distingue entre entender as razões e sentir as inclinações, sendo a decisão resultante da predominância das representações sentidas e entendidas.153 Ainda mais claramente, se possível, Leibniz distingue o juízo do entendimento dos motivos que provêm das perceções insensíveis e das inclinações, considerando que a vontade segue sempre a representação que lhe parece mais vantajosa entre as razões, paixões e inclinações.154 Admite, aliás, a possibilidade de suspender o juízo, se encontrar motivos para isso, o que basicamente parece seguir o mesmo critério que a decisão anterior. Isso mostra que a primeira hipótese (a suspensão da escolha) não é, nas suas causas, diferente da suspensão da ação. Esta suspensão da ação pode ser potenciada por um outro fator, mesmo que ínfimo, o tempo. Com certas semelhanças com Clarke, Leibniz distingue entre o juízo do entendimento e o esforço de agir depois do juízo. Por muito pouco que seja, é necessário tempo para realizar esse esforço e, durante esse tempo, ele pode ser suspenso ou mesmo alterado. Mas tal não acontece a partir do nada, por um misterioso princípio ativo independente dos motivos, mas sim pela intervenção de uma nova perceção ou inclinação.155 Aliás, justifica esta ocorrência contrária ao entendimento prático da mesma forma que, como já se viu, utilizou para sustentar que se escolhe sempre o que parece melhor, pelo facto de, em grande parte destes casos, o entendimento usar pensamentos surdos, incapazes de tocar.156 Em terceiro lugar, o desejo pode ser suspenso por não ser bastante forte, por ser travado por inclinações contrárias ou por o espírito ser desviado noutra direção, mas 151

Leibniz, Essais de Théodicée, 3ª parte, § 310, G, VI, 300: "Il n’y a que la volonté de Dieu, qui suive tousjours le jugement de l’entendement : toutes les creatures intelligentes sont sujettes à quelques passions, ou à des perceptions au moins, qui ne consistent pas entierement en ce que j’appelle idées adequates. [...] Quant à nous, outre le jugement de l’entendement, dont nous avons une connoissance expresse, il s’y mele des perceptions confuses des sens, qui font naitre des passions et même des inclinaisons insensibles, dont nous ne nous appercevons pas tousjours. Ces mouvemens traversent souvent le jugement de l’entendement practique." 152 Leibniz, op. cit., 1ª parte, § 51, G, VI, 130: "Nous ne suivons pas aussi tousjours le dernier jugement de l’entendement practique, en nous determinant à vouloir ; mais nous suivons tousjours, en voulant le resultat de toutes les inclinations qui viennent tant du côté des raisons que des passions, ce qui se fait souvent sans un jugement expres de l’entendement." 153 Leibniz, op. cit.,Remarques..., § 16, G, VI, 416: "La verité est, que l’Ame, ou la Substance qui pense, entend les raisons, et sent les inclinations, et se determine selon la prevalence des representations qui modifient sa force active, pour specifier l’action." 154 Leibniz, op. cit., Remarques..., § 13, G, VI, 413: "Pour moy, je n’oblige point la volonté de suivre tousjours le jugement de l’entendement, parce que je distingue ce jugement des motifs qui viennent des perceptions et inclinations insensibles. Mais je tiens que la volonté suit tousjours la plus avantageuse representation, distincte ou confuse, du Bien et du Mal, qui resulte des Raisons, Passions et Inclinations, quoyqu’elle puisse aussi trouver des motifs pour suspendre son jugement. Mais c’est tousjours par motifs qu’elle agit." Ver, também, 3ª parte, § 314, G, VI, 303; 3ª parte, § 319, G, VI, 305-6, onde as paixões são consideradas a perceção confusa de um bem aparente. 155 Leibniz, op. cit., 3ª parte, § 311, G, VI, 301. 156 Leibniz, op. cit., 3ª parte, § 311, G, VI, 301: "Quelque perception qu’on ait du bien, l’effort d’agir apres le jugement, qui fait à mon avis l’essence de la volonté, en est distingué : ainsi, comme il faut du temps pour porter cet effort à son comble, il peut être suspendu, et même changé par une nouvelle perception ou inclination qui vient à la traverse, qui en detourne l’esprit, et qui luy fait même faire quelque fois un jugement contraire. C’est ce qui fait que nostre ame a tant de moyens de resister à la verité qu’elle connoit, et qu’il y a un si grand trajet de l’esprit au coeur : sur tout lorsque l’entendement ne procede en bonne partie que par des pensées sourdes, peu capables de toucher, comme je l’ay expliqué ailleurs. Ainsi la liaison entre le jugement et la volonté n’est pas si necessaire qu’on pourroit penser."

78

apenas se este estiver previamente preparado para isso. 157 No primeiro caso, Leibniz salienta que é preciso um motivo suficientemente forte para justificar o esforço ou o incómodo da ação, intervindo aqui a preguiça ou lassidão como uma resistência à ação ou motivo para nada fazer. Dessa forma, o primeiro caso não é significativamente distinto do segundo, havendo apenas a distinção entre uma inclinação contrária por nada desejar fazer e uma inclinação contrária por desejar fazer outra coisa. Em qualquer caso, nem o primeiro, nem o segundo caso correspondem à razão que leva Locke a considerar que é na suspensão do desejo que reside a liberdade humana. Ora, Leibniz considera que esse poder de suspensão do desejo para uma consideração racional e comparativa dos desejos não está, imediatamente, no poder do homem. O que pode suspender um desejo são as inclinações, as propensões e os desejos contrários que já têm de estar na alma para terem eficácia. Resistir a um desejo de maneira livre e voluntária, sem qualquer propensão prévia para isso, seria fazer algo sem motivo. Por isso, Leibniz sustenta a possibilidade de desviar a atenção do espírito, mesmo assim só possível por uma conveniente prévia preparação, acostumando-se a pensar de forma mais ligeira para conservar a liberdade de espírito, a proceder metodicamente de forma racional, nomeadamente no próprio fluxo dos pensamentos, a apartar-se do tumulto das impressões, recolhendo-se de tempos a tempos. Leibniz considera que o espírito não tem um poder completo e direto para travar os seus desejos, só o podendo fazer de forma indireta, fazendo intervir, na determinação das ações futuras, hábitos e predisposições contrárias a certos desejos,158 nomeadamente a firme resolução e hábito de pensar antes de agir.159 Aliás, esse costume de agir segundo a razão deveria ser potenciado pela educação, cujo principal objetivo deveria ser o de tornar sensíveis os verdadeiros bens e males, de forma a superar a abstração e surdez moral. 160 Apesar do império do homem ser o da razão, ele deve-se preparar 157

Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XXI, § 47, G, V,181: "L'exécution de nostre désir est suspendue ou arrêtée lorsque ce désir n'est pas assez fort pour nous émouvoir et pour surmonter la peine ou l’incommodité, qu’il y a de le satisfaire : et cette peine ne consiste quelques fois que dans une paresse ou lassitude insensible, qui rebute sans qu'on y prenne garde, et qui est plus grande en des personnes élevées dans la molesse ou dont le tempérament est phlegmatique, et en celles qui sont rebutées par l’âge ou par les mauvais succès. Mais lorsque le désir est assez fort en luy même pour émouvoir, si rien ne l’empêche, il peut être arrêté par des inclinations contraires ; soit qu’elles consistent dans un simple penchant, qui est comme l’élément ou le commencement du désir, soit qu’elles aillent jusqu’au désir même. Cependant comme ces inclinations, ces penchans et ces désirs contraires se doivent trouver déja dans l’ame, elle ne les a pas en son pouvoir, et par conséquent elle ne pourroit pas résister d’une manière libre et volontaire, où la raison puisse avoir part, si elle n'avoit encor un autre moyen, qui est celuy de détourner l’esprit ailleurs. Mais comment s’aviser de le faire au besoin? car c’est lá le point, sur tout quand on est occupé d’une forte passion. Il faut donc que l’esprit soit préparé par avance et se trouve déja en train d’aller de pensée en pensée, pour ne se pas trop arrêter dans un pas glissant et dangereux." 158 Leibniz, op. cit., § 48, G, V, 183; Essais de Théodicée, 1ª parte, § 64, G, VI, 137-8 – ver nota 162; 3ª parte, § 327, G, VI, 309-10. 159 Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XXI, § 36, G, V, 175: "C’est pourquoy la raison y oppose les images des plus grands biens ou maux à venir et une ferme resolution et habitude de penser, avant que de faire, et puis de suivre ce qui aura esté reconnu le meilleur, lors même que les raisons sensibles de nos conclusions ne nous seront plus presentes dans l’esprit et ne consisteront presque plus qu’en images foibles ou même dans les pensées sourdes que donnent les mots ou signes destitués d'une explication actuelle, de sorte que tout consiste dans le pensés y bien et dans le memento ; le premier pour se faire des loix, et le second pour les suivre, lors même qu'on ne pense pas à la raison qui les a fait naistre." 160 Leibniz, op. cit., § 35, G, V, 172-3: "Si l’esprit usoit bien de ses avantages, il triompheroit hautement. Il faudroit commencer par l’education, qui doit estre reglée ensorte qu'on rende les vrais biens et les vrais maux autant sensibles qu’il se peut, en revestissant les notions qu’on s’en forme, des circonstances plus propres à ce dessein. [...] A des sensibilités dangereuses on opposera quelqu’autre sensibilité innocente, comme l’agriculture, le jardinage ; on fuira l'oisiveté, on ramassera des curiosités de la nature et de l’art, on fera des experiences et des recherches ; on s’engagera dans quelque occupation indispensable, si on

79

antecipadamente para se opor à força das paixões161 que constitui a sua escravatura, pelo menos conseguindo diferir a resolução.162 Aliás, os diversos exemplos em que Leibniz refere o caminho indireto ou oblíquo, 163 como que de longe, 164 do mal para o bem, mostram que todas as formas de suspensão, do desejo, da resolução ou da ação, podem ser usadas da mesma forma porque o que está sempre em questão é o resultado do concurso entre as várias tendências existentes no espírito. 7. Dificuldades centrais e a questão da justiça Pode-se ver pela abordagem até aqui desenvolvida que, pelo menos neste assunto, se está muito longe de uma oposição diametral entre os autores, antes havendo pequenas diferenças subtis mas por vezes decisivas, para lá de alguns mal-entendidos que dificilmente poderiam ser resolvidos, dada a escalada de agressividade que se foi avolumando ao longo da polémica. Parece evidente que a separação afirmada por Clarke, muito mais acentuada nesta correspondência que noutros textos, entre o entendimento passivo e o princípio ativo é dificilmente sustentável, especialmente na forma extrema, embora excecional, que assume na polémica, de uma liberdade de indiferença. Ainda menos sustentável é a sua exclusão de motivos internos, aliás contraditória com a referência a razões supostamente internas. É notório, porém, que, após a polémica, o próprio Clarke sentiu a necessidade de apurar a sua teoria, muito embora possa ser discutível que se possa considerar tudo o que existe no espírito, exceto o princípio ativo, noções abstratas, incluindo motivos, disposições, inclinações, causas finais, perceções, juízos, etc. Por outro lado, é difícil perceber como o determinismo não necessitarista de Leibniz possa sustentar uma justa atribuição de penas e prémios, seja a nível humano, seja a nível divino. É verdade que a nível humano a determinação é problemática e abstrata, tendo em conta as limitações do nosso conhecimento. Mas o mesmo não se passa a nível divino. Aliás, quanto a este determinismo, é difícil perceber como se poderá interpretar a expressão “inclinar sem necessitar” num sentido probabilístico como faz C. D. Broad, considerando, aliás, que se refere a uma probabilidade superior a metade.165 Aliás, da mesma forma é interpretado o diferimento da resolução,166 como n’en a point, ou dans quelque conversation ou lecture utile et agreable." Não deixa de ser interessante a semelhança com os conselhos dados pelo seu rival Newton: Newton, Yahuda, MS 18 in Frank E. Manuel, The Religion of Isaac Newton, Oxford, Oxford University Press, 1974 [RI], p.13: "The way to chastity is not to struggle with incontinent thoughts but to avert the thoughts by some imployment, or by reading, or by meditating on other things, or by convers." 161 Leibniz, Essais de Théodicée, 3ª parte, § 326, G, VI, 309: "Son empire est celuy de la raison : il n’a qu’à se preparer de bonne heure pour s 'opposer aux passions, et il sera capable d’arrester l’impetuosité des plus furieuses." 162 Leibniz, op. cit., 1ª parte, § 64, G, VI, 137-8: "Elle a cependant quelque pouvoir encor sur des perceptions confuses, bien que d’une maniere indirecte ; car quoyqu’elle ne puisse changer ses passions sur le champ, elle peut y travailler de loin avec assés de succès, et se donner des passions nouvelles, et même des habitudes. Elle a même un pouvoir semblable sur les perceptions plus distinctes, se pouvant donner indirectement des opinions et des volontés, et s’empêcher d’en avoir de telles ou telles, et suspendre ou avancer son jugement. Car nous pouvons chercher des moyens par avance, pour nos arrêter dans l’occasion sur le pas glissant d’un jugement temeraire ; nous pouvons trouver quelque incident pour differer nostre resolution, lors même que l’affaire paroit prête à être jugée ; et quoyque nostre opinion et nostre acte de vouloir ne soyent pas directement des objets de nostre volonté [...] on ne laisse pas de prendre quelque fois des mesures pour vouloir, et même pour croire avec le temps, ce qu’on ne veut ou ne croit pas presentement." 163 Leibniz, op. cit., Réflexion..., § 4, G, VI, 391. 164 Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XXI, § 25, G, V, 168. 165 C. D. Broad, Leibniz – An Introduction, Cambridge, Cambridge University Press, 1975, reimps. com corr. 1979 [LA], p. 30. Para uma interpretação alternativa, muito bem associada aos tipos de fatalidade,

80

algo que está sempre ao dispor do homem. Ora bem, as maiores razões podem não decidir uma ação, mesmo quando uma forte propensão as acompanha, porque uma miríade de paixões, inclinações e perceções insensíveis fazem pender a balança num outro sentido. Diversas vezes, Leibniz refere o facto de os desejos, a vontade, as razões serem sempre inclinantes mas não necessárias, ao mesmo tempo que afirma que é certo e infalível que se fará a ação para onde se inclina.167 É verdade que Broad acaba por admitir que a decisão é sempre completamente determinada por estados prévios, muito embora pudessem não ser conscientes, 168 mas parece separar esta completa determinação da expressão “inclinar sem necessitar”, quando, na verdade, Leibniz faz as duas afirmações em conjunto porque, para ele, existe uma continuidade percetiva que vai da mais confusa paixão à mais distinta razão, muitas vezes tornando-se consciente uma acumulação de perceções inconscientes e havendo sempre influência de disposições, inclinações, desejos, paixões, perceções insensíveis no mais distinto motivo. Aliás, Leibniz utiliza inúmeras vezes a expressão para Deus, apesar de aí as melhores razões sempre determinarem a decisão: “A prevalência dos bens inclina sem necessitar, se bem que, tudo considerado, essa inclinação seja determinante e não deixe nunca de produzir o seu efeito.”169 Se se trata, pois, de uma questão de probabilidade, a mesma é sempre de 1 e não apenas de mais de 1/2. Sendo assim, resta sempre a pergunta: porquê premiar ou castigar quem fará certamente o que fará, conforme o decreto predeterminador de Deus e a sua noção completa contida no entendimento divino? O ataque leibniziano ao sofisma da preguiça pode ser e é aplicado a esta questão, na medida em que as próprias penas e prémios se inserem na determinação causal das ações. Mas isso mostra apenas a conveniência de um tal sistema, 170 não fundamenta a sua justiça. O próprio Leibniz sustenta que tal conveniência seria igual, caso as ações fossem absolutamente necessárias. Mais ainda, sustenta que os elogios ou as desaprovações mantêm todo o seu sentido mesmo que, como no caso do diamante, 171 não se extraia daí qualquer conveniência. É difícil perceber em que medida tais apreciações são relevantes para a conceção da justiça. ver Ezio Vailati, LC, ch. 3, p. 89. 166 C. D. Broad, LA, p. 31. 167 E. g., Leibniz, op. cit., L. II, Ch. XXI, § 8, G, V, 161: "La liberté de l’esprit, opposée à la necessité, regarde la volonté nue et en tant qu’elle est distinguée de l’entendement. C’est ce qu’on appelle le francarbitre et consiste en ce qu’on veut que les plus fortes raisons ou impressions, que l’entendement presente à la volonté, n’empechent point l’acte de la volonté d’estre contingent, et ne luy donnent point une necessité absolue et pour ainsi dire metaphysique. Et c’est dans ce sens que j’ay coutume de dire, que l’entendement peut determiner la volonté, suivant la prevalence des perceptions et raisons d’une maniere qui lors même qu’elle est certaine et infaillible, incline sans necessiter."; Leibniz, Essais de Théodicée, 1ª parte, § 43, G, VI, 126-7; 3ª parte, § 280, G, VI, 283; § 288, G, VI, 288; § 367, G, VI, 333; Abrégé..., III, G, VI, 381; Remarques..., § 14, G, VI, 414. 168 C. D. Broad, LA, p. 31. 169 Leibniz, NE, 135; cf. Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XXI, § 49, G, V, 184: "La prévalence des biens apperçus incline sans necessiter, quoyque tout considéré cette inclination soit determinante et ne manque jamais de faire son effect." 170 Leibniz, Essais de Théodicée, 3ª parte, § 369, G, VI, 334: "La determination certaine qu’il y a dans l’homme à pecher, ne l’empêche point de pouvoir ne point pecher (absolument parlant) et puisqu’il peche, d’être coupable et de meriter la punition : d’autant que cette punition peut servir à luy ou à d’autres, pour contribuer à les determiner une autre fois à ne point pecher." Pelo contrário, logo em seguida, Leibniz afirma que a justiça vindicativa não poderia ser posta em causa pela determinação certa, mas não sustenta a afirmação, antes regressando à correção como um dos fins da justiça. 171 Leibniz, op. cit., 1ª parte, § 75, G, VI, 143: "Les louanges et les blames, les recompenses et chatimens garderoient tousjours une grande partie de leur usage, quand même il y auroit une veritable necessité dans nos actions. Nous pouvons louer et blamer encor les bonnes et les mauvaises qualités naturelles, où la volonté n’a point de part dans un cheval, dans un diamant, dans un homme."

81

Leibniz, ao se confrontar com a crítica de King 172 a conceções análogas à sua que reduzem a justiça a uma conveniência social,173 acaba por, no fundamental, reafirmar a utilidade social. Apenas parece aceitar a justiça vindicativa num caso extremo: "A verdadeira justiça vindicativa que vai para lá da medicinal, supõe alguma coisa mais, quer dizer, a inteligência e a liberdade daquele que peca porque a harmonia das coisas exige uma satisfação." 174 Este caso é, porém, dificilmente compreensível à luz da associação leibniziana entre pecado e falta de entendimento.175 Em última análise, todo o pecado resulta dos pensamentos confusos e parece que quem tenha conhecimentos distintos não está sujeito à escravatura do pecado. Se existe pecado, apesar de se ter conhecimento distinto do melhor, dever-se-ia encontrar outra explicação para o pecado que dificilmente se compatibilizaria com o sistema leibniziano. Porém, onde obviamente a conceção leibniziana mostra maiores dificuldades de explicação da justiça é na danação eterna, assunto que excede os objetivos desta dissertação. De facto, se toda a justiça humana poderia ser entendida a partir dos pontos de vista defensivo, preventivo e corretivo, já é mais difícil perceber o sentido de uma pena eterna e, na verdade, Leibniz sente a dificuldade e procura construir uma conceção mais moralmente aceitável da danação, em que a mesma é encarada não tanto como um castigo, mas mais como uma consequência do pecado, dependente, aliás da sua continuação.176 Porventura, por sentir que, para lá da função defensiva, a justiça deve ter sempre uma função corretiva, Leibniz chega mesmo a duvidar da irreversibilidade da danação, admitindo, pelo menos, a diminuição das penas. 177 Apesar de não afirmar subscrever as suas teses, não só elogia o mérito da tese origenista da restituição universal de Petersen, 178 como estimula ativamente a sua promoção através de um 172

William King, op. cit., Ch. V, Sec. I, Subs. IV, § XVII, pp. 157-158. Leibniz, op. cit.,Remarques..., § 13, G, VI, 412. 174 Leibniz, op. cit., Remarques..., § 17, G, VI, 417: "La veritable justice vindicative, qui va au delà du medicinal, suppose quelque chose de plus, c’est à dire l’intelligence et la liberté de celuy qui peche, parce que l’harmonie des choses demande une satisfaction." 175 Leibniz, op. cit., 3ª parte, § 289, G, VI, 289: "Nous ne voulons à la verité que ce qui nous plait : mais par malheur ce qui nous plait à present, est souvent un vray mal, qui nous deplairoit, si nous avions les yeux de l' entendement ouverts." 176 Leibniz, op. cit., 2ª parte, § 133, G, VI, 186: "La damnation est une suite du peché, et je repondis autresfois à un ami, qui m’objecta la disproportion qu’il y a entre une peine eternelle et un crime borné, qu’il n’y a point d’injustice, quand la continuation de la peine n’est qu’une suite de la continuation du peché." Ver também os §§ 73-75 da 1ª parte, G, VI, 141-3. Cf. Gottfried Wilhelm Leibniz, ed. e trad. Michel Fichant, De l’Horizon de la Doctrine Humaine (1693); La restitution universelle (1715), Paris, Libr. Philosophique J. Vrin, 1991[HD], Comentário à obra de Petersen sobre a restituição universal, p. 95. 177 Leibniz, op. cit., 3ª parte, § 272, G, VI, 278-9. 178 Leibniz, Carta para Thomas Burnett de 27 de Fevereiro de 1702, G, III, 283: Tendo já se referido ao "sentiment d'Origene de la salvation finale de toutes les creatures intelligentes", acrescenta, depois, que "M. Petersen [...] a publié il y a deux ans ou environ un livre [...] intitulé ἀποκατάστασις πάντων ou de la restitution des toutes choses ; ce livre est fait avec beaucoup d'erudition et de jugement. L'auteur apporte tous les passages des anciens et modernes favorables à cette doctrine et il soutient son sentiment contre des savans adversaires avec beaucoup de moderation et de zele. Je l'ay parcouru avec plaisir et quoyque je n'aye garde de le suivre, je ne laisse de reconnoistre son merite. Il veut que des demibons souffriront pendant le regne de mille ans jusqu'au jour du jugement, qu'alors (ou même quelque uns plustost selon les degrés de la corruption) ils seront admis dans le regne de Jesus Christ, et les mechants qui n'ont pas pû estre corrigés pendant cet intervalle, seront precipités avec les demons pour y achever d'estre corrigés. C'est ce qui est la seconde mort. Mais enfim la mort perira elle même ; le diable même se ravisera et sera receu en grace avec tous ses anges, et tous les damnés. Et alors selon S. Paul, Dieu sera tout en tous." Já perante o texto do poema por si sugerido a Petersen, embora se recuse a mexer na parte respeitante a essa tese e deseje que o próprio autor a corrija, sublinha que, muito embora não a possa subscrever, por motivos claros de ortodoxia, é a tese que menos condena no mundo: Leibniz, Carta para Fabricius de 10 de Março de 1712, OM, V, 297: "Optarem ut ultimum librum suum Uraniados ipsernet emendaret 173

82

poema épico, por supor que o que não é aceitável a um teólogo (dogmatista) poderá ser perdoado a um poeta. 179 O próprio Clarke, embora em resposta a Collins, chama a atenção para o facto de o argumento da conveniência social não valer para a justiça divina. 180 Aliás, o facto de Leibniz tentar justificar a danação como consequência natural do pecado, assim como tenta explicar o pecado original como consequência natural, análoga à ocorrida na transmissão de doenças dos pais aos filhos,181 mostra a dificuldade de compatibilizar a completa determinação com uma justiça absoluta.

perficeretque Auctor doctissimus, quia in eo sententiam tractat, quam ego quidem minimè damno, meam tamen facere nolim." 179 O próprio esboço do projeto de poema que viria a chamar-se, já após a morte de Leibniz, mas não sem as correções do próprio Leibniz, Uranias (1720) parece ser uma proposta de Leibniz, numa resposta a uma carta de Petersen de 15 de Outubro de 1706: cf. Leibniz, HD, 25. Numa carta para Fabricius de 3 de Setembro de 1711, não só é muito mais pormenorizado no projeto, porventura por já se estar a desenvolver a colaboração com Petersen, como é claro quanto à esperança de que as teses do décimo segundo livro sejam toleradas, o que é pouco compatível com uma verdadeira discordância, fazendo antes suspeitar que se tratasse de uma tese secretamente perfilhada por Leibniz: Leibniz, OM, V, 294: "Duodecimus concluderet omnia per ἀποκατάστασιν πάντων, malis ipsis emendaris & ad felicitatem Deumque reductis, Deo jam omnia in omnibus sine exceptione agente. Hæc commodè ingrederetur suo passim loco sublimior quædam philosophia Theologiæ mysticæ mista, ubi de rerum fontibus ageretur, ad Lucretii, Vidæ & Fracastorii modum. Et poëtæ indulgerentur, quæ difficilius ferrentur in dogmatista." É claro que se havia boas razões para não defender uma pena eterna para pecados finitos, também havia boas razões para não aceitar uma salvação universal, visto aí se poder perguntar qual o desígnio divino que permitiu o pecado apenas para fazer regressar todos ao estado original, ou seja, para quê o desvio realizado. Daí que, para Leibniz, só se pudesse colocar esta possibilidade, como se verá adiante, no contexto de uma conceção evolutiva, em que o desígnio divino se revela através de uma progressão ao infinito. 180 Clarke, RB, 41-42: "But how much soever political Ends may sometimes possibly be served, by doing great Injuries to Innocent Persons, such as necessary Agents cannot but be; yet all Personal Justice and Injustice, all Right and Wrong with regard to particular Persons, is hereby totally taken away. And though Weak and Frail Men may fall under Necessities of doing great Hardships to particular Persons, when there is no other possible way of securing the Publick Safety; yet God Almighty, we are sure, can never be reduced to any such Distress, in order to support his own Government. And therefore, if there be no such thing as Free Agents, and consequently no such thing as Personal Merit or Demerit; God, to be sure, can never either reward or punish any Creature; (Punishment, at least, he can never possibly inflict;) because it must necessarily be always unjust. And thus this Author's Opinion [a de Collins] absolutely takes away all Foundation of Religion." 181 Leibniz, Essais de Théodicée, 2ª parte, § 112, G, VI, 164, embora o exemplo seja a de um hipotético alcoolismo transmissível: "Si les yvrognes engendroient des enfants inclinés au même vice par une suite naturelle de ce qui se passe dans les corps, ce seroit une punition de leur progeniteurs, mais ce ne seroit pas une peine de la loy."

83

84

IV. A liberdade divina e a natureza do espaço e do tempo A diferença entre a posição de Leibniz e a de Clarke a respeito da questão da liberdade reside no facto de o último considerar que a única verdadeira causalidade é a eficiente, não admitindo nenhuma verdadeira causalidade interna que não seja eficiente, apesar de admitir que a determinação ou necessidade moral é certa e infalível, pelo menos em Deus; ao passo que o primeiro parece apenas admitir, nas almas, a causalidade final, origem da mesma determinação certa e infalível, reforçada nos espíritos pela deliberação racional, exclusividades também difíceis de compreender tendo em conta o papel das perceções insensíveis na determinação da ação. No primeiro caso, é difícil perceber como algo pode determinar algo sem conexão causal, sendo notória alguma falta de penetração psicológica na reflexão; no segundo, é difícil perceber como esses processos psíquicos não têm qualquer origem eficiente, mesmo que sejam, em muitos casos cegamente, finais. Esta importante diferença será hiperbolizada na polémica pela sua aplicação às questões mais estritamente cosmológicas. Só a partir desta polémica, Clarke admitirá, claramente, a possibilidade de liberdade de indiferença ou de equilíbrio, sem, naturalmente, se morrer à fome como o burro de Buridan, muito embora nunca admita a inexistência de razões. Fá-lo, inequivocamente, no contexto da defesa de duas das mais características teses da filosofia natural newtoniana: o espaço e o tempo absolutos e o atomismo. É possível, igualmente, que a afirmação da escolha, especialmente a divina, em situações de absoluta indiferença e/ou de equilíbrio entre alternativas, fosse especialmente requerida ou forçada por uma das conceções newtonianas mais enraizadas, a de uma matéria católica, para utilizar a expressão de Boyle1, reduzida às qualidades primárias cartesianas, sem distinções qualitativas, a que se reduziriam todos os átomos e que permitiriam a transmutação dos materiais constituintes do mundo físico, como chega a ser expresso, não apenas nos escritos alquímicos, mas nos próprios Principia2. Isso implicaria que as distinções não só fossem estritamente quantitativas (pela figura e tamanho), como pudessem existir inúmeras partículas perfeitamente sólidas absolutamente idênticas. Uma tal conceção estava condenada a entrar em colisão com a de Leibniz. Nesta dissertação, ainda só foi abordada de passagem uma das conceções mais fundamentais do autor, a da noção completa da substância, e ainda não é o momento de a tratar com alguma atenção, muito embora nem se lhe possa aqui dar a importância devida, visto nem ser explicitamente afirmada na polémica. De facto, a referência a essa noção que alguns comentadores consideram mesmo um princípio fundamental 3 , só surge sob forma negativa, exatamente a este propósito, ao acusar os rivais de serem filósofos das noções incompletas4. A razão para esta omissão ou reserva estará, porventura, no facto 1

Robert Boyle, ed. M. A. Stewart, Selected Philosophical Papers, 1st. ed., Manchester University Press, 1979; Indianapolis/Cambridge, Hackett Publishing Co., 1991, (The Origin of Forms and Qualities According to the Corpuscular Philosophy, Oxford, 1666) p. 18: "I agree with the generality of philosophers, so far as to allow that there is one catholic or universal matter common to all bodies, by which I mean a substance extended, divisible, and impenetrable." Na verdade, é muito mais comum Boyle falar de afeções católicas e outras variações relativas às propriedades e leis da matéria. 2 Newton, Philosophiæ naturalis..., Liber tertius, OO, III, 170: "Vapores autem, qui ex Sole & stellis fixis & caudis Cometarum oriuntur, incidere possunt per gravitatem suam in Atmosphæras Planetarum, & ibi condensari & converti in aquam & spiritus humidos; & subinde per lentum calorem in sales, & sulphura, & tincturas, & limum, & lutum, & argillam, & arenam, & lapides, & coralla, & substantias alias terrestres paulatim migrare." 3 E. g., Broad, LA, 7, embora denomine o princípio "predicate-in-notion principle". 4 Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 21, G, VII, 394 (a propósito dos átomos); § 29, G, VII, 396 (a propósito do espaço vazio para lá de um mundo finito); § 66, G, VII, 407 (sobre a decisão de Deus a

85

de esta conceção reforçar, em muito, a tese da predeterminação5 e, assim, poder ajudar o rival a redobrar as acusações de fatalismo. Uma das conceções mais enraizadas de Leibniz, mantida desde o nominalismo da juventude e que faz duvidar do facto, por ele afirmado, nos Novos Ensaios, de a sua filosofia estar mais próxima de Platão do que de Aristóteles6, é a de que o real é composto de indivíduos, a de que o que é, é, na base de tudo o resto, a substância primeira. Essa individualidade é constituída pela entidade total 7 , o que faz com que a unidade da substância simples seja, em primeiro lugar, qualitativa, a base de uma multiplicidade que se sucede serialmente desde a criação.8 Não se trata de uma identidade psíquica ilusória, mas da constituição do indivíduo enquanto indivíduo: A continuação e a ligação das perceções, mesmo quando não consciente, fazem o próprio indivíduo real.9 Daí que Leibniz rejeite a noção lockiana (e clarkiana) de substância,10 considerando absurdo separar os atributos e os predicados da substância e concluindo, depois, nada se poder conhecer de particular da substância assim separada,11 isto num contexto em que, no parágrafo anterior, havia defendido a necessidade de conceber as qualidades de forma concreta.12 A substância é constituída pelo conjunto de predicados que lhe são inerentes e qualquer conceção de substância que se abstraia dos seus predicados concretos acaba por produzir um ser de razão indefinível que não pode corresponder a nada de real. Hoje, há a tendência para considerar que, numa proposição categórica, o sujeito está contido no predicado e não o respeito dos anteriores). 5 Leibniz, Nouveaux essais..., L. III, Ch. III, § 6, G, V, 268: "l'individualité enveloppe l'infini, et il n’y a que celuy qui est capable de le comprendre qui puisse avoir la connoissance du principe d’individuation d’une telle ou telle chose ; ce qui vient de l’influence (à l’entendre sainement) de toutes les choses de l’univers les unes sur les autres." Ora, é isso que suporta a já antes referida possibilidade (final de II. 6) de a partir de seja o que for no universo, ser possível a um entendimento superior ao humano ver toda a sequência de coisas no universo: Leibniz, op. cit., Préface, G, V, 48. 6 Por comparação com Locke, Leibniz, op. cit., Préface, G, V, 41. 7 Logo na tese de 1663, o princípio de individuação é assim tratado: Belaval, LI, 36: "Il faut que le principe d’individuation soit l’entité totale, puisqu’un être n’est ce qu’il est que par tout ce qu’il est". A noção completa corresponderá exatamente a esta conceção. 8 Leibniz, op. cit., L. II, Ch. I, § 12, G, V, 104: "Chaque ame garde toutes les impressions précedentes […]: l’avenir dans chaque substance a une parfaite liaison avec le passé, c’est ce qui fait l’identité de l’Individu." 9 Leibniz, op. cit., Ch. XXVII, § 14, G, V, 222: "Un Estre immateriel ou Esprit ne peut estre depouillé de toute perception de son existence passée. Il luy reste des impressions de tout ce qui luy est jamais arrivé et il a même des présentimens de tout ce qui luy arrivera : mais ces sentimens sont le plus souvent trop petits pour estre distinguables, et pour qu’on s’en apperçoive, quoyqu’ils pourroient peutestre se developper un jour. Cette continuation et liaison de perceptions fait le même individu reellement, mais les apperceptions (c’est à dire lorsqu’on s’apperçoit des sentimens passés) prouvent encore une identité morale, et font paroistre l’identité reelle." Aliás, esta ligação é estendida ao próprio corpo na página seguinte, embora esse corpo seja composto e essa composição esteja em alteração constante. 10 Locke, EU, B. II, Ch. XXIII, § 2, 158. "if any one will examine himself concerning his Notion of pure Substance in general, he will find he has no other Idea of it all, but only a Supposition of he knows not what support of such Qualities, which are capable of producing simple Ideas in us; which Qualities are commonly called Accidents." 11 Leibniz, op. cit., Ch. XXIII, § 2, G, V, 202: "En distinguant deux choses dans la Substance, les attributs ou prédicats et le sujet commun de ces predicats, ce n'est pas merveille, qu'on ne peut rien concevoir de particulier dans ce sujet. Il le faut bien, puisqu'on a déja separé tous les attributs, où l'on pourroit concevoir quelque détail. Ainsi demander quelque chose de plus dans ce pur sujet en general, que ce qu'il faut pour concevoir que c’est la même chose (p. e. qui entend et qui veut, qui imagine et qui raisonne) c’est demander l’impossible et contrevenir à sa propre supposition, qu’on a faite en faisant abstraction et concevant separément le sujet et ses qualités ou accidens." 12 Leibniz, op. cit., Ch. XXIII, § 1, G, V, 202: "C’est […] renverser les choses que de prendre les qualités ou autres termes abstraits pour ce qu’il y a de plus aisé et les concrets pour quelque chose de fort difficile."

86

inverso, mas essa é a forma abstrata de considerar a ligação. A esse propósito, aliás, Leibniz estabelece a distinção, hoje generalizada, entre extensão e compreensão (intensão) do conceito. 13 Mas, imediatamente antes, já Leibniz havia explicado a disposição aristotélica das proposições no silogismo através da sua conceção (e, aparentemente, a de Aristóteles) de inerência do predicado no sujeito: "o predicado está no sujeito, ou melhor, a ideia de predicado está envolvida na ideia de sujeito"14. Haverá oportunidade de tratar um pouco mais esta questão a propósito das mónadas, mas o que importa agora é sublinhar que esta conceção que, de certa forma, é também atomista, é diametralmente oposta à de Newton, visto se basear numa diferenciação absoluta entre as substâncias, como já foi visto acerca do princípio da identidade dos indiscerníveis, ao passo que as unidades que Newton pensava como sustentando toda a matéria podiam ser e até convinha que fossem indiferenciadas, o que Leibniz entende como entidades estritamente mentais resultantes de um processo de abstração. Aliás, por muito inovadoras que sejam as características da filosofia leibniziana, algumas dessas conceções, que o colocaram em oposição a Newton, têm raízes bem tradicionais e clássicas, como a conceção de predicação de Aristóteles, em que a substância primeira subjaz a toda a predicação, muito embora o género e a espécie possam ser predicáveis secundariamente, 15 devendo todas as categorias ser sempre vistas como atributos, diretos ou indiretos, concretos ou abstraídos, da substância. Num certo sentido, também assim será com Newton, mas esta será uma das razões por que Leibniz não podia aceitar o espaço absoluto de Newton. 1. O sensório de Deus O tema do espaço entra, de facto, na polémica desde a primeira comunicação. Mas entra de forma oblíqua, através da figura insólita do sensório. Leibniz ataca Newton por este, alegadamente, considerar o espaço o órgão de que Deus se serviria para sentir as coisas – implicando que, se Deus tem necessidade de um meio, seria porque as coisas não dependeriam inteiramente dele e não seriam tão-pouco por ele produzidas.16 Clarke nega, imediatamente, na primeira resposta, que o espaço seja o órgão de Deus, ou que este precise de algum meio para se aperceber das coisas. Afirma que Deus, pela sua presença em todo o lado, se apercebe das coisas pela sua imediata presença em todo o espaço em que elas se encontram. A referência ao sensorium é considerada uma comparação, uma analogia (similitude) com a mente, o cérebro e órgãos sensíveis humanos, sem que, porém, isso implique o recurso a qualquer meio ou a qualquer órgão. 17 Neste texto, embora se possa dizer que Clarke está a ter por 13

Leibniz, op. cit., L. IV, Ch. XVII, § 8, G, V, 469: "L’animal comprend plus d’individus que l’homme, mais l’homme comprend plus d’idées ou plus de formalités ; l’un a plus d’exemples, l’autre plus de degrés de realité ; l’un a plus d’extension, l’autre plus d’intension." 14 ibidem, G, V, 468: "Et cette maniere d'enoncer n’est pas à mepriser, car en effect le predicat est dans le sujet, ou bien l’idée du predicat est enveloppée dans l’idée du sujet." 15 Aristóteles, ͗Όργανον, trad. port. Pinharanda Gomes, Organon, Lisboa, Guimarães ed., 1985, 1º vol., I – Categorias, 5, p. 52, 2b37-3a7. 16 Leibniz, Streitschriften..., 1º escrito, § 3, G, VII, 352: "M. Newton dit que l’Espace est l’organe dont Dieu se sert pour sentir les choses. Mais s’il a besoin de quelque moyen pour les sentir, elles ne dependent donc point entierement de luy, et ne sont point sa production." 17 Clarke, Streitschriften..., 1ª réplica, § 3, G, VII, 353-4: "Sir Isaac Newton doth not say, that Space is the Organ which God makes use of to perceive Things by; nor that he has need of any Medium at all, whereby to perceive Things: But on the contrary, that he, being Omnipresent, perceives all Things by his immediate Presence to them, in all Space whereever they are, without the Intervention or Assistance of any Organ or Medium whatsoever. In order to make this more intelligible, he illustrates it by a Similitude: That as the Mind of Man, by its immediate Presence to the Pictures or Images of Things, formed in the Brain by the means of the Organs of Sensation, sees those Pictures as if they were the Things themselves;

87

referência o texto da Ótica, é visível que se assume como porta-voz da posição newtoniana e não simplesmente como seu defensor, visto não apresentar as suas afirmações como interpretações suas. Na sequência, Leibniz finca o pé na citação de que o espaço é o sensorium de Deus e que sensorium sempre significou órgão da sensação, muito embora, magnanimamente, consinta que Newton e os seus amigos se expliquem de outra forma.18 A crer em Koyré, Leibniz terá razão numa das partes desta sua declaração, 19 embora não a tenha na outra. De facto, Clarke emenda de novo e mais explicitamente Leibniz,20 tendo em conta a edição definitiva da tradução latina da Ótica feita pelo próprio Clarke, mas, aparentemente, terão sido distribuídos alguns exemplares antes de uma correção de Newton da página 315. 21 Porém, depois da insistência de Clarke,22 o próprio Leibniz considera a questão irrelevante (como, de facto, é: trata-se da simples diferença entre uma metáfora e uma comparação) porque considera tão difícil de entender que seja um sensório, quanto que seja como um sensório.23 Aliás, existe um outro passo da Ótica em que Newton refere o mesmo sensório, como adiante se verá, sem nenhum "como". Quanto à outra parte da declaração de Leibniz, até vão buscar dicionários, num momento um pouco mesquinho, em que Clarke salienta bem que o que interessa é o significado do conceito em Newton (muito embora seja bem menos intelectualmente honesto no que toca aos dicionários)24. Ora, é claro que, no passo da Ótica em questão, Newton afirma inequivocamente o sensório como lugar (that place, locus) da sensação, não apenas para Deus mas, em primeiro lugar, para todos os animais. 25 Sendo esta dissertação uma análise temática, importam pouco as diatribes e os comportamentos menos adequados à dignidade do pensamento, interessando sim as conceções envolvidas. Ora, neste caso, parece óbvio que Newton defendia que o espaço fosse não apenas o sensório, mas mesmo o sensoriomotor de Deus,26 como se pode ver na outra passagem referida da Ótica. Referindo-se a todos os processos naturais dinâmicos ou orgânicos que não podiam ser senão o efeito de um poderoso Agente eterno, acrescenta: "que, estando em todos os lugares, é mais capaz, pela sua vontade, de mover os corpos so God sees all Things, by his immediate Presence to them: he being actually present to the Things themselves, to all Things in the Universe; as the Mind of Man is present to all the Pictures of Things formed in his Brain. […] And in the Universe, ho doth not consider Things as if they were Pictures, formed by certain Means, or Organs; but as real Things, formed by God himself, and seen by him in all Places whereever they are, without the Intervention of any Medium at all. And this Similitude is all that he means when he supposes Infinite Space to be (as it vere) the Sensorium of the Omnipresent Being." 18 Leibniz, op. cit., 2º escrito, § 3, G, VII, 356. 19 Alexandre Koyré, trad. fr. Raissa Tarr, Du monde clos à l’univers infini, Presses Universitaires de France, 1962; s/l, Éditions Gallimard, 1973, pp. 251-252; trad. port. Jorge Pires, Do mundo fechado ao universo infinito, Lisboa, Gradiva, s/d, IX, p. 203. A nota não surge na ed. original. Cf. Koyré, IU, 209. 20 Clarke, Streitschriften..., 2ª réplica, § 3, G, VII, 360. 21 Alexandre Koyré, I. Bernard Cohen, "The Case of the Missing Tanquam: Leibniz, Newton & Clarke" in Isis, 196112, Vol. 52, Nº. 4, p. 564, onde se imprime a página original da Ótica. 22 Clarke, op. cit., 4ª réplica, §§ 24-28, G, VII, 386. 23 Leibniz op. cit., 5º escrito, § 78, G, VII, 409. 24 Clarke, op. cit., 3ª réplica, § 10, G, VII, 369-70. 25 Newton, Optics, Qu. 28, OO, IV, 238: "Is not the sensory of animals that place, to which the sensitive substance is present; and into which the sensible species of things are carried through the nerves and brain, that there they may be perceived by their immediate presence to that substance? And these things being rightly dispatched, Does it not appear from phænomena, that there is a Being incorporeal, living, intelligent, omnipresent, who, in infinite space, as it were his sensory, sees the things themselves intimately, and throughly perceives them, and compreends them wholly by their immediate presence to himself." Cf. Isaaco Newton, Latine reddidit Samuel Clarke, Optice, Londini, Sam. Smith & Benj. Walford, 1706 [OP], Qu. 20, p. 315, exatamente com o mesmo teor, sobretudo na questão inicial. 26 Para lá de sensorium, actorium: Koyré, EN, 47: "non seulement son sensorium, mais aussi, si l'on peut dire, son actorium."

88

dentro do seu sensorium uniforme ilimitado e, dessa forma, formar e reformar as partes do universo, do que nós somos, por nossa vontade, de mover as partes dos nossos corpos." 27 Samuel Horsley, na sua edição das obras de Newton, atribui, em nota, a origem desta conceção a um poema órfico,28 o que não é nada de estranhar tendo em consideração as teses newtonianas acerca da prisca sapientia e prisca theologia. Apesar da reprovação de Horsley, trata-se de uma conceção que parece ter acompanhado Newton talvez desde a juventude.29 Independentemente da inspiração arcaica, o que terá levado Newton a conceber o espaço como um sensório ou como um sensoriomotor? Aparentemente, por estranho que possa parecer, há uma forte ligação entre esta questão e a questão cartesiana da comunicação entre a alma e o corpo que está na raiz do problema idealista. Sem tratar ainda esta questão, é importante lembrar que ela foi central para os cartesianos subsequentes, sobretudo os ocasionalistas, mas não está apenas presente entre os cartesianos. Surge em muitos outros autores que sentiram a influência do pensamento cartesiano, nomeadamente os platónicos de Cambridge e, mais particularmente, Henry More. O imenso fosso entre os dois tipos de substância foi colmatado por More, fazendo da essência cartesiana do corpo, a essência de toda e qualquer substância, incluindo as almas e Deus. 30 O corpo mantinha as suas características passivas, geométricas, inerciais, mas a extensão era igualmente atribuída às substâncias ativas. O dualismo, por um lado, e o mecanicismo no que se refere à matéria, por outro, garantiam a indefensabilidade do materialismo porque não havia só matéria e porque toda a atividade estava dependente do espírito. A extensão garantia a ligação entre as realidades, em tudo o resto, opostas. Porém, mesmo para More, a ligação, ao menos entre Deus e a matéria parecia distante e, assim, criou um intermediário que, embora espiritual, estivesse mais próximo dos movimentos cegos, sem perceção e sem inteligência, da natureza. Seguindo Modos gerais e Leis da Natureza impostos por Deus, esse Espírito cego explica os processos dinâmicos da Natureza que não se poderiam explicar pela matéria passiva, mas que não pareciam ter qualquer finalidade moral, nem seguir qualquer critério de justiça.31 27

Newton, Optics, Qu. 31, OO, IV, 262: Toda a orgânica animal e o seu instinto "can be the effect of nothing else than the wisdom and skill of a powerful ever-living Agent; who, being in all places, is more able by his will to move the bodies within his boundless uniform sensorium, and thereby to form and reform the parts of the universe, than we are by our will to move the parts of our own bodies." 28 Horsley, OO, IV, 238-239, nota. 29 J. E. McGuire e P. M. Rattansi, "Newton and the 'Pipes of Pan'", in Notes and Records of the Royal Society of London, Vol. 21, nº 2, 196612 [PP], nota 23, p. 140; mais do que os rascunhos das queries, dando crédito à datação dos Hall, estão a pensar na analogia, também motora, estabelecida em Isaac Newton, "De Gravitatione et Aequipondio Fluidorum" in Isaac Newton, ed. e trad. ingl. A. Rupert Hall and Marie Boas Hall, Unpublished Scientific Papers, Cambridge, Cambridge University Press, 1962, paperback ed., 1978, re-issued 2009 [US], pp. 107-108: "Et praeterea ut (nobis intime conscijs) pateret Deum nulla alia quam volendi actione creasse mundum, quemadmodum et nos sola volendi actione movemus corpora nostra; et in super ut Analogiam inter nostras ac Divinas facultates majorem esse ostenderem quam hactenus animadvertere Philosophi." 30 Henry More, A collection of several Philosophical Writings, 2nd. ed. corrected and enlarged, London, James Flesher, 1662 [CS], Epistolæ quator ad Renatum Descartes, Carta para Descartes de 13 de Dezembro de 1648, p. 62: "Primò, deſinitionem Materiæ seu corporis instituis multò quam par est latiorem. Res enim extensa Deus videtur esse, atque Angelus, imò verò res quælibet per se subsistens; ità ut eisdem finibus claudi videatur extensio atque essentia rerum absoluta, quæ tamen variari potest pro essentiarum ipsarum varietate." 31 More, CS, The Preface general, 13, pp. xv-xvi: "This one, which virtually contains all every where, and is therefore rightly styl’d, The Universal Spirit of Nature: As also, That this Spirit need not be perceptive it self, it being the natural Transcript of that which is knowing or perceptive, and is the lowest substantial Activity from the All-wise God, containing in it certain general Modes and Laws of Nature, for the good

89

Newton nunca parece ter aceitado esse espírito da natureza, até mesmo na prisca sapientia onde surgia, aqui e ali, sob a figura da alma do mundo, sobretudo porque não percebia porque Deus necessitava de intermediário para a sua atuação.32 É possível que seja por essa divergência que quer Clarke, quer Newton se mostrem reservados em relação a More. 33 Mas o fator decisivo que o terá levado à conceção do sensorium parece estar expresso no próprio texto controverso em que o deu a conhecer. Isso será tratado mais tarde, mas um dos primeiros interesses de Newton que, porventura, o levou às descobertas óticas, era o de compreender como a alma recebe os dados materiais ou, após terem sido recebidos pelos sentidos, por exemplo, os raios de luz, como se formam as imagens. A própria glândula de Descartes abria caminho para sediar material ou espacialmente (o que, em Descartes, ia dar no mesmo) a ligação à alma. 34 Mas a glândula pineal continuava a ser um corpo que não explicava a ligação. Se, porém, se concebesse que a alma tinha, através da sua presença espacial, uma capacidade sensitiva do que se apresentasse no seu espaço próprio, o problema ficava resolvido ou era reduzido ao problema material da condução dos dados até ela. Evidentemente que explicando a comunicação num sentido, também se explicava no outro que até parecia interessar mais a Newton e, certamente, a Clarke porque dele dependia, como já foi visto, a própria possibilidade de liberdade: a eficácia física da alma, a sua capacidade motora. Provavelmente, Newton, em função do seu milenarismo, até estaria mais interessado na liberdade de Deus, entendida como possibilidade de interferência constante no mundo – e daí a ideia de dar à sua imensidade espacial funções sensoriomotoras. Naturalmente, o facto de assim se poder obter uma origem "local" e, por isso, mais aceitável mecanicamente, para a atração a distância, não é nada irrelevante. Mas a verdade é que Newton sempre preferiu suspender o juízo acerca da causa direta da gravidade ou até, simplesmente, se seria material ou imaterial,35 mesmo se a causa última não puder deixar de ser Deus. De qualquer forma, os dois fins não são estranhos um ao outro. Ao referir-se à ordenação do sistema solar, pouco antes da segunda referência ao sensorium, afirma Newton: "uma tal maravilhosa uniformidade no sistema planetário deve poder ser o efeito da escolha."36 Que é a liberdade da operação divina que está em causa, parece notar-se na resposta à objeção de Leibniz que afirma que Deus não está presente às coisas por situação, mas por essência e que a sua presença se manifesta pela sua operação imediata 37 : "Deus, sendo omnipresente, está realmente presente a tudo essencial e of the Universe. But the eye of particular Providence is not therein. Else why does a tyle fall upon the head of him that passes by in the streets, go he to either Play or Sermon?" 32 McGuire e Rattansi, PP, p. 124; cf. Newton, US, 108. É verdade que, segundo Dobbs, esse é papel de Cristo, do Logos, na teologia newtoniana. Cf. B. J. T. Dobbs, "Newton's Alchemy and His Theory of Matter" in Isis, The University of Chicago Press, 198212, Vol. 73, Nº 4 [NM], pp. 527-528. Porém, segundo Dobbs, embora possa cumprir as mesmas funções, este "espírito da natureza" está longe de ser cego e de não ter desígnio e finalidade como em More. 33 Isto apesar de Newton ter anotado e apreciado muito laudatoriamente, pelo menos, A Imortalidade da Alma de More: cf. I. Bernard Cohen, "A Guide to Newton's Principia" in Isaac Newton, trad. ingl. I. Bernard Cohen e Anne Whitman, The Principia – Mathematical Principles of Natural Philosophy, Berkeley and Los Angeles, University of California Press, 1999 [PM], ch. 4, sec. 8, p. 99. 34 Descartes, Les Passions de l'Âme, 31-32, OL, 710-711. 35 Newton, Terceira carta para Bentley, OO, IV, 438: "Gravity must be caused by an agent acting constantly according to certain laws; but whether this agent be material or immaterial, I have left to the consideration of my readers." É evidente que a questão da alma do mundo está aqui envolvida, caso a causa seja imaterial. Se for um espírito subordinado a Deus, acaba-se numa conceção análoga à de More. Se for o próprio Deus, pode-se reduzi-lo a uma Alma do Mundo. Mas esta questão será tratada adiante. 36 Newton, Optics, Qu. 31, OO, IV 262: "Such a wonderful uniformity in the planetary system must be allowed the effect of choice." 37 Leibniz, Streitschriften..., 3º escrito, § 12, G, VII, 365: "Dieu n’est pas present aux choses par situation,

90

substancialmente. A sua presença manifesta-se, de facto, pela sua operação, mas não poderia operar se lá não estivesse."38 Ou seja, Leibniz considera que a sua presença se manifesta pela operação e Clarke que a operação se manifesta porque está presente. Não é por acaso que Newton estabelece uma analogia com a nossa sensibilidade; mesmo que não seja um órgão, o sensório é concebido como um meio para a atuação divina. Daí que a acusação de Leibniz de Clarke e Newton fazerem de Deus a Alma do Mundo,39 não seja descabida, por muito que Newton, prevendo a possibilidade dessa interpretação, a tenha negado antecipadamente.40 Frente às acusações de conceber Deus à imagem da forma como se concebe a união da alma e do corpo, assim também parecendo que as coisas agem sobre Deus, como se pensa que a alma sente os corpos, Clarke repete as conceções de Newton que, ao tentarem evitar a acusação, a confirmam: se Deus não recorre a órgãos, o mesmo acontece, como ambos declaram, na própria ligação entre a alma e o corpo, pela simples presença às espécies ou imagens das coisas.41 O facto de se acrescentar à presença o ser um ser vivo e inteligente42 nada altera, visto poder ser atribuído à união entre a alma e o corpo. Embora quer a questão da Alma do Mundo, quer a da comunicação entre o corpo e a alma, tenham de ser tratadas, mais adiante, em secções distintas, visto excederem a simples temática do espaço, importa, porém, reter que, no passo referido, Newton, numa questão aparentemente alheia à vontade, faz questão de ligar a questão do sensorium à mais par essence ; sa presence se manifeste par son operation immediate." 38 Clarke, Streitschriften..., 3ª réplica, § 12, G, VII, 370: "God, being Omnipresent, is really present to every thing, essentially and substantially: His Presence manifests it self indeed by its Operation, but it could not operate if it was not There." 39 Leibniz, op. cit., 4º escrito, § 29, G, VII, 375: "Dieu s’apperçoit des choses en luy même. L’espace est le lieu des choses, et non pas le lieu des idées de Dieu : à moins qu’on ne considere l’espace comme quelque chose qui fasse l’union de Dieu et des choses, à l’imitation de l’union de l’ame et du corps qu’on s’imagine ; ce qui rendroit encor Dieu l’Ame du Monde"; 5º escrito, § 82, p. 786, G, VII, 410: "Si Dieu sent ce qui se passe dans le monde, par le moyen d’un Sensorium, il semble que les choses agissent sur luy, et qu’ainsi il est comme on conçoit l’Ame du Monde"; § 86, p. 787, G, VII, 410-1: "C’est donner justement dans la doctrine, qui fait de Dieu l’Ame du monde, puisqu’on le fait sentir les choses, non pas par la dependance qu’elles ont de luy, c’est à dire par la production continuelle de ce qu’il y a de bon et de parfait en elles, mais par une maniere de sentiment, comme l’on s’imagine que nostre ame sent ce qui se passe dans le corps. C’est bien degrader la connoissance divine." 40 Na 2ª edição dos Principia (Isaaco Newtono, Philosophiæ Naturalis..., ed. ultima, Amstælodami, Sumptibus societatis, 1714, Scholium Generale, p. 482: "Hic omnia regit, non ut Anima mundi, sed ut universorum Dominus"), Newton já tinha negado mais ou menos explicitamente que Deus fosse a Alma do Mundo, porventura devido às reações (incluindo as leibnizianas) à dúbia formulação da edição latina da Ótica (Newton, OP, Qu. 23, 346: "Voluntate sua corpora omnia in infinito suo Sensorio movere, adeoq; cunctas Mundi universi partes ad arbitrium suum fingere & refingere, multo magis quam Anima nostra, quæ est in Nobis Imago Dei, voluntate sua ad corporis nostri membra movenda valet"). Que o assunto o incomodou é óbvio quer pelo pequeno acrescento, na 3ª ed. dos Principia (Newton, Philosophiæ naturalis..., Liber tertius, Scholium generale, OO, III, 171: "uti sentiunt quibus Deus est Anima mundi"), explicitamente dirigido àqueles que julgam Deus a Alma do Mundo, mas, sobretudo, na reelaboração da passagem da Ótica na 2ª ed. inglesa. Cf. Isaac Newton, Opticks, 2nd. ed., London, W. and J. Innys, 1718 [OK], Qu. 31, p. 379: "And yet we are not to considerer the World as the Body of God, or the several Parts thereof as the Parts of God. He is an uniform Being, void of Organs, Members or Parts; and they are his Creatures subordinate to him, and subservient to his Will; and he is no more the Soul of them, than the Soul of a Man is the Soul of the Species of Things carried through the Organs of Sense into the place of Sensation, where it perceives them by means of its immediate Presence, without the Intervention of any third thing. The Organs of Sense are for enabling the Soul to perceive the Species of Things in its Sensorium, but only for conveying them thither; and God has no need of such Organs, he being every where present to the Things themselves." 41 Clarke, Streitschriften..., 2ª réplica, § 4, G, VII, 360; 4ª réplica, §§ 29-30, G, VII, 386; ou ainda o espaço como lugar da perceção, 5ª réplica, §§ 79 a 82, G, VII, 432. 42 Clarke, op. cit., 2ª réplica, § 5, G, VII, 360-1.

91

subserviência das criaturas à vontade divina, o que está intimamente ligado com a sua noção de governo e providência divinas, outra temática a tratar mais adiante.43 2. Relação de Deus com o espaço e o tempo: atributos, propriedades ou modos Sendo o espaço, em Newton, uma espécie de meio sensoriomotor de Deus, como definir a sua relação com Deus? Verdadeiramente, Leibniz só põe a questão na sua terceira carta, mas fá-lo de forma contundente: "Estes senhores sustentam, então, que o Espaço é um ser real absoluto: [...] parece que esse Ser deve ser Eterno e infinito. É por isso que há quem tenha acreditado que seria o próprio Deus, ou então, o seu atributo, a imensidade." 44 Ser o próprio Deus ou um seu atributo dava um pouco no mesmo, lembrava Spinoza.45 Estranhamente, Clarke (e, muito provavelmente, o próprio Newton, apesar de ter feito que Clarke mais tarde alterasse a sua posição) não se precaveu contra essa possibilidade, mesmo tendo em conta que reforçava as ligações com a conceção da Alma do Mundo, seja na versão estoica, seja na versão neoplatónica (próxima de More), seja diretamente no panteísmo de Spinoza, embora tenha respondido de uma forma um pouco equívoca: "O espaço não é um Ser, um Ser eterno e infinito; mas uma propriedade ou consequência da existência de um Ser infinito e eterno. O espaço infinito é imensidade: mas a imensidade não é Deus: e, por isso, o espaço não é Deus."46 Não haverá grande diferença entre propriedade e atributo e a verdade é que Clarke nunca emenda o termo leibniziano, até porque é o que já tinha utilizado como sinónimo de propriedade.47 Por outro lado, a alternativa apresentada ("consequência da existência"), ao menos nos textos da polémica, não é apresentada como uma conceção alternativa mas como uma expressão alternativa da mesma conceção. Assim, na quarta réplica, após reafirmar o espaço vazio como espaço vazio de corpos e propriedade de uma substância incorpórea, onde chega a utilizar, na sequência de Leibniz, o termo atributo, 48 Clarke apresenta as duas alternativas, propriedade e consequência da existência numa mesma explicação: "O espaço não é uma substância mas sim uma propriedade e, se é uma propriedade daquilo que é necessário, existirá, consequentemente (como todas as outras propriedades daquilo que é necessário têm que fazer), mais necessariamente (embora não seja, ele próprio, uma substância) que essas próprias substâncias que não são necessárias. O espaço é imenso e imutável e eterno, assim como também é a duração. Porém, de modo algum se segue disto que alguma coisa seja eterna hors de Dieu [fora de Deus]. Porque o espaço e a duração não estão hors de Dieu, mas são causados por e são consequências imediatas e necessárias da sua existência. E, sem eles, a sua eternidade e ubiquidade (ou omnipresença) seriam 43

Não parece ser necessário tratar argumentos menos sérios como o de Leibniz quando se pergunta se o espaço se lembra do corpo quando este sai dele, Leibniz, op. cit., 2º escrito, § 4, G, VII, 357. 44 Leibniz, op. cit., 3º escrito, § 3, G, VII, 363: "Ces Messieurs soutiennent donc, que l'Espace est un étre reel absolu [...]. Car il paroist que cet Etre doit étre Eternel et infini. C'est pourquoy il y en a qui ont crû que c'estoit Dieu luy même, ou bien son attribut, son immensité." Assim também dizia nos Novos Ensaios: Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XIII, § 17, G, V, 136: "Quelques uns ont crû que Dieu est le lieu des choses. [...] Mais alors le lieu contient quelque chose de plus, que ce que nous attribuons a l'espace que nous depouillons de toute action : et de cette manière, il n'est pas plus une substance que le temps." 45 Spinoza, CW, Ethics, 2ª parte, Prop. 2, 245. Segundo Koyré (Alexandre Koyré, EN, 205), talvez tenha sido esta similitude que tenha motivado a correção imposta por Newton, através de Clarke, na edição de Des Maizeaux, que, em breve, será abordada. 46 Clarke, Streitschriften..., 3ª réplica, § 3, G, VII, 368: "Space is not a Being, an eternal and infinite Being; but a Property, or a consequence of the Existence of a Being infinite and eternal. Infinite Space is Immensity: But Immensity is not God: And therefore Infinite Space is not God." 47 Clarke, DB, IV, 79. 48 Clarke, Streitschriften..., 4ª réplica, §§ 8-9, G, VII, 383.

92

retiradas."49 Para dizer a verdade, só se estivessem, de algum modo, fora de Deus, como uma criatura, uma propriedade de uma criatura, a relação entre as criaturas ou um fenómeno, é que seriam algo significativamente diferente de uma propriedade de Deus. Ora, tal possibilidade é perentoriamente afastada: "Mesmo que nenhumas criaturas existissem, a ubiquidade de Deus e a continuação da sua existência fariam o espaço e a duração ser exatamente o mesmo que são agora."50 Novamente, na quinta réplica, sublinhando mais a ideia de consequência, devido à possibilidade de se conceber Deus no espaço, acaba por afirmar que espaço e tempo não são distintos de Deus: "Deus não existe no espaço e no tempo, mas a sua existência causa o espaço e o tempo. E quando, de acordo com a analogia do discurso vulgar, dizemos que ele existe em todo o espaço e em todo o tempo, as palavras apenas significam que ele é omnipresente e eterno, quer dizer, que o espaço e o tempo ilimitados são consequências necessárias da sua existência, e não que o espaço e o tempo sejam seres distintos dele, nos quais ele exista."51 Não é crível que esta formulação não fosse do conhecimento de Newton. Pelo contrário, a adição da expressão "consequência da existência" não surge na primeira conferência de Boyle proferida por Clarke, ao contrário de propriedade e atributo, como já foi referido, e parece ser um contributo do próprio Newton que terá ficado, nessa altura, senão satisfeito, pelo menos conformado, com a junção explicativa das duas expressões. Porém, é sabida a aversão de Newton, em geral, a qualquer abordagem metafísica e, em particular, da natureza e essência de Deus que Newton pretendia que fosse inacessível, apenas tornada acessível de forma voluntarista pela submissão pessoal ao seu domínio, domínio, aliás, onde se revela a sua liberdade, ao contrário da sua quase inacessível natureza necessária. 52 Esse é, aliás, o sentido tornado absolutamente claro pelos rascunhos53 e outros manuscritos, do Escólio Geral dos Principia, em que, apesar do próprio Newton se referir a atributos,54 inequivocamente os desvaloriza, exatamente por não permitirem estabelecer a relação do crente com o seu Senhor. 55 Embora Clarke 49

Clarke, op. cit., 4ª réplica, § 10, G, VII, 383: "Space is not a Substance, but a Property; And if it be a Property of that which is necessary, it will consequently (as all other properties of That which is necessary must do,) exist more necessarily, (though it be not itself a Substance,) than those Substances Themselves which are not necessary. Space is immense, and immutabile, and eternal; and so also is Duration. Yet it does not at all from hence follow, that any thing is eternal hors de Dieu. For Space and Duration are not hors de Dieu, but are caused by, and are immediate and necessary Consequences of His existence: And without them, his Eternity and Ubiquity [or Omnipresence] would be taken away." 50 Clarke, op. cit., 4ª réplica, § 41, G, VII, 388: "If no Creatures existed, yet the Ubiquity of God, and the Continuance of his Existence, would make Space and Duration to be exactly the same as they are Now." 51 Clarke, op. cit., 5ª réplica, § 45, G, VII, 427: "God does not exist In Space, and In Time; but His Existence causes Space and Time. And when, according to the Analogy of vulgar Speech, we say that he exists in All Space and in All Time; the Words mean only that he is Omnipresent and Eternal, that is, that Boundless Space and Time are necessary Consequences of his Existence; and not, that Space and Time are Beings distinct from him, and IN which he exists." 52 Newton, Yahuda MS. 21, fol. 1r, RI, 21-22:: "To celebrate God for his eternity, immensity, omnisciency, and omnipotence is indeed very pious and the duty of every creature to do it according to capacity, but yet this part of God's glory as it almost transcends the comprehension of man so it springs not from the freedom of God's will but the necessity of his nature". 53 Sobretudo Newton, MS.Add.3965, fols. 361-2, US, 355-359. 54 Newton, Philosophiæ naturalis..., Liber tertius, Scholium generale, OO, III, 173: "Ideas habemus attributorum ejus, sed quid sit rei alicujus substantia minimè cognoscimus." 55 Newton, op. cit., OO, III, 171-2: "Deus summus est Ens æternum, infinitum, absolutè perfectum: sed Ens, utcunque perfectum, sine dominio, non est Dominus Dei. Dicimus enim Deus meus, Deus vester, Deus Israelis, Deus deorum, & Dominus dominorum: sed non dicimus Æternus meus, Æternus vester, Æternus Israelis, Æternus deorum; non dicimus Infinitus meus, vel Perfectus meus. Hæ appelationes relationem non habent ad servos." No rascunho já referido, Newton, US., 359, salienta mesmo que, sem o domínio, com esses atributos, não seria Deus, mas apenas natureza: "Ens aeternum, infinitum,

93

julgasse estar a ser fiel ao seu mestre, o seu pendor metafísico não poderia ser completamente bem visto por Newton, apesar de tolerar esta como muitas outras abordagens do círculo teológico newtoniano, por alguma conveniência. Além disso, parece claro que Newton não se sentiria à vontade nas discussões metafísicas como aquela que aqui está em causa, uma das razões por que delegou a sua defesa em Clarke, não se tratando apenas de uma questão de aversão, mas também de incapacidade (natural ou resultante do hábito de as não considerar) de lidar com as subtilezas conceptuais metafísicas. Dessa forma, as reticências de Newton à abordagem de Clarke devem ter-se acumulado, para lá de eventualmente sentir mal respondidas as objeções de Leibniz, não chegando a alterar o teor das cartas de Clarke, 56 mas já levando à introdução da longa nota sobre o abstrato e o concreto na edição de Clarke da polémica,57 e acabando por forçar58 Clarke a pedir a Des Maizeaux que acrescentasse um aviso ao leitor na sua publicação da correspondência.59 O sentido do trecho é relativamente claro, ao contrário do que diz Vailati, mesmo sem a carta para Waterland que cita60, em que Clarke chama a atenção para o facto de os atributos não serem predicáveis uns dos outros, ao passo que os modos da existência também se poderiam predicar dos atributos (e. g., a omnisciência eterna ou a omnipotência imensa), levando Vailati a conceder-lhes, com propriedade, o estatuto não adjetivo mas adverbial. Assim, alguns anos após a morte de Leibniz, talvez incomodado pelas suas objeções, ainda Newton fixava o sentido canónico de uma das mais fundamentais teses da sua física, o que mostra razoavelmente bem quanta falta de crítica tinham as noções metafísicas de Newton e quanta necessidade tinham do debate que Newton passou uma vida inteira a rejeitar. Quando Clarke, bem "aconselhado" por Newton, se desculpa com a dificuldade de falar sem ser através de expressões figuradas daquilo que não é objeto dos sentidos, trai duplamente a fraqueza central do pensamento de Newton: a dificuldade de pensar tudo o que não for empírico; e a dificuldade de lidar com os conceitos metafísicos que, exatamente, não são expressões figuradas – a que figura de estilo corresponde o modo ou atributo? Que se tratou de uma alteração canónica, também a alteração do Discurso de Clarke de 1704 nas derradeiras edições o sapientissimum, summe perfectum sine dominio non est Deus sed natura solum." 56 A referência ao immensum em vez de imensidade, Clarke, Streitschriften..., 5ª réplica, § 39, G, VII, 426; repete apenas o que está nos Principia, Newton, Philosophiæ naturalis..., Liber tertius, Scholium generale, OO, III, 172: "Non est æternitas & infinitas, sed æternus & infinitus; non est duratio & spatium, sed durat & adest." 57 Clarke, CP, 303-7. 58 Vailati, LC, ch. 1, nota 40, 200. 59 Pierre Desmaizeaux, Recueil de Diverses Pieces, sur la Philosophie, la Religion Naturelle, l'Histoire, les Mathematiques, &c. par Mrs. Leibniz, Clarke, Newton, & autres Auteurs célèbres, Amsterdam, H. du Sauzet, 1720; 2ª ed. ver, corr, e aum., Amsterdam, François Changuion, 1740 [RD], Tome I, pp. iv-v: "M. Clarke a souhaité que j'avertisse ses Lecteurs, que « lorsque'il parle de l'Espace infini ou de l'Immensité, & de la Durée infinie ou de l'Eternité ; & qu'il leur donne, par une imperfection inévitable de language, le nom de Qualitez ou de Proprietez de la Substance qui est immense, ou éternelle ; il ne prétend pas prendre le terme de qualité ou de proprieté, dans le même sens que le prennent ordinairement ceux qui traitent de la Logique, & de la Metaphysique lors qu'ils les appliquent à la Matière : mais que par lá, il veut seulement dire, que l'Espace & la Durée sont des Modes d'existence dans tous les Etres ; & des Modes infinis, & des Conséquences, de l'existence de la Substance qui est réellement, nécessairement, & substantiellement toute-presente, & éternelle. Cette Existence n'est point une Substance ; & elle ne sauroit être raportée à aucune espece de qualité ou de proprieté : mais c'est la Substance même avec tous les attributs, toutes ses qualitez, & toutes ses proprietez : & le Lieu, & la Durée, sont des Modes de cette existence, de telle nature, qu'on ne sauroit les rejetter sans rejetter l'Existence elle-même. Lorsque nous parlons de choses qui ne tombent pas sous nos sens ; il est difficile d'en parler sans se servir d'expressions figurées. »" 60 Vailati, LC., ch. 1, 36-7.

94

mostra: onde estava "atributo" surge, mais tarde, "modo".61 A dar crédito à datação dos Hall, 62 esta conceção esperou mais de cinquenta anos para encontrar a sua forma definitiva. Num fragmento por eles apresentado, Newton afirma que a infinitude não é uma perfeição, exceto quando é atributo de coisas perfeitas, como no intelecto infinito, no poder infinito, etc., mas não na ignorância ou na impotência infinitas, dependendo a perfeição da extensão infinita daquilo que é extenso.63 É fácil ver que também aqui a infinitude, associada à extensão, é atribuída aos próprios atributos, como Clarke defende na carta para Waterland relativamente à imensidade e eternidade. O estatuto dado aqui ao espaço ou extensão parece ser a de um modo adverbial, um modo de existência, como um efeito que emana de Deus ou uma afeção de todos os seres.64 Tendo em conta a condenação teológica feita por Newton das emanações, dificilmente estará aqui em causa uma nova versão das emanações neoplatónicas, visto explicitamente Newton distinguir este efeito das criações, apesar de não ser de excluir uma influência da linguagem dos platónicos de Cambridge, 65 nomeadamente de Henry More. Stein salienta que o termo "emanação" tem também o sentido de consequência necessária, termo que acabará por ser consagrado por Newton, inclusive nesta polémica, abandonando, talvez, o termo anterior pela possível associação com a corrupção da religião original pelos cabalistas, platónicos e gnósticos.66 O facto de esta conceção poder ser tão antiga não desmente a aceitação por 61

Clarke, DB, IV, 79: "Indeed they seem Both [espaço e duração] to be but Attributes of an Essence Incomprehensible to Us"; alterado para: Clarke, DA, 31: "Indeed, they seem both to be but modes of an essence or substance incomprehensible to us". 62 Segundo os Hall, o manuscrito que será agora considerado, "De Gravitatione et Aequipondio Fluidorum", terá sido escrito entre 1664 e 1668: Rupert Hall and Marie Hall, US, 90. A atribuição é discutível, tendo em conta que algumas conceções que se supunha de origem teológica, supostamente desenvolvidas sobretudo nos anos 70, são aqui expressas; além disso, há semelhanças insólitas com algumas teses de Locke surgidas mais de 20 anos depois; outras passagens parecem se assemelhar aos Principia. Apesar de tudo, Stein, ao discutir a questão (Howard Stein, "Newton's Metaphysics" in I. Bernard Cohen, George E. Smith, ed., The Cambridge Companion to Newton, Cambridge. Cambridge University Press, 2002, 2004, pp. 302-303), acaba por se inclinar para a data dos Hall, muito embora o argumento caligráfico pareça falível. O texto talvez seja, de facto, um pouco imaturo, como dizem os Hall, parecendo perder-se um pouco e dando demasiada importância à refutação de Descartes, mas não é seguro que ambas as coisas não pudessem suceder mais tarde, quer devido à dificuldade newtoniana de lidar com assuntos metafísicos, quer devido à importância que Descartes continuava a ter. Cohen, pelo contrário, dá razão a Dobbs, colocando o manuscrito entre o De motu e os Principia, ou seja, cerca de 1785, considerando que só nessa altura se consuma o corte definitivo com Descartes: cf. Cohen, "A Guide to Newton's Principia", ch. 3, sec. 1, PM, 47. Em Dobbs, NM, 522, Dobbs admite, na melhor das hipóteses, que se possa datar do início dos anos 80. Pelo contrário, sem grandes considerações, Westfall aproxima-se da datação dos Hall, indicando 68 como a data mínima: Westfall, NR, 301. 63 Newton, "De Gravitatione…", US, 102-3: "At nullo modo, nam infinitas non est perfectio nisi quatenus perfectionibus tribuitur. Infinitas intellectus, potentiae, faelicitatis &c est summa perfectio; infinitas ignorantiae, impotentiae, miserae &c summa imperfectio; et infinitas extensionis talis est perfectio qualis est extendi." 64 Segue-se aqui a trad. proposta por Howard Stein, op. cit, p. 266, visto ser mais literal: Newton, op. cit, p. 99: "De extensione jam forte expectatio est ut definiam esse vel substantiam vel accidens aut omnino nihil. At neutiquam sane, nam habet quendam sibi proprium existendi modum qui neque substantijs neque accidentibus competit. Non est substantia tum quia non absolute per se, sed tanquam Dei effectus emenativus, et omnis entis affectio quaedam subsistit". 65 E. g., Ralph Cudworth, ed. Thomas Birch, The Works, Oxford, D. A. Talboys, 1829, Vol.III, p. 479, partindo da análise da conceção de Gassendi, acaba por apresentar uma conceção e uma linguagem similar à de Newton neste fragmento. 66 Manuel, RI, 68-9. Talvez a utilização desta palavra seja um sinal de que o texto é anterior às investigações teológicas que culminaram nas teses anti-trinitárias: Se assim é, isso significa que existem conceções teológicas muito importantes, nomeadamente, para a física de Newton que são anteriores a essas investigações e que se mantiveram apesar das mesmas.

95

Newton das utilizações dos termos propriedade e atributo na polémica, até porque também neste texto espaço e tempo, a par de afeções, são considerados atributos.67 Mas é notório que, mesmo não partilhando de todas as conceções de More, neste aspeto, apesar de a própria linguagem ser diferente, Newton partilha da mesma conceção da espacialidade ser inerente a qualquer ser, muito embora lhe possa chamar afeção de todo o ser enquanto ser.68 Deixa-se aqui em suspenso a tese de Stein69 de que o espaço seria uma estrutura independente do próprio Deus que, mesmo que tenha sido defendida por Newton, poderá ter sido superada e, de qualquer forma, seria sempre um exercício abstrato. Em função dos textos, 70 percebe-se a interpretação de Stein, mas não parece muito compatível com a interpretação de ser uma consequência necessária da existência de Deus. De qualquer forma, menciona-se este estranho atributo sem sujeito por corresponder exatamente a uma das críticas de Leibniz: "Ora, a extensão deve ser a afeção de um extenso. Mas se este espaço estiver vazio, será um atributo sem sujeito, uma extensão de nenhum extenso."71 Mas isso mais facilmente, como afirma Leibniz, faria do espaço uma ordem de coisas e, portanto, algo relativo, do que uma realidade absoluta como pretende Newton. Considerando a possibilidade de ser algo sem sujeito, independente até de Deus, "se o espaço é uma realidade absoluta, bem longe de ser uma propriedade ou acidentalidade oposta à substância, será mais subsistente que as substâncias. Deus não a saberia destruir, nem mesmo mudar em nada. Seria não somente imenso no todo, mas ainda imutável e eterno em cada parte. Haveria uma infinidade de coisas eternas fora de Deus."72 Aqui já se aborda um segundo aspeto que será tratado mais adiante, o das partes, mas de qualquer forma a perspetiva que Newton parece defender no passo referido não parece consistente, sendo preferível pensar que, no atributo sem sujeito, estaria a pensar num qualquer sujeito que não fosse Deus. Mas é possível que estivesse a tentar pensar aquilo que Leibniz ridiculariza na derradeira carta: "Se o espaço é a propriedade ou afeção da substância que está no espaço, o mesmo espaço será tanto a afeção de um corpo, quanto de um outro corpo; tanto de uma substância imaterial, quanto talvez de Deus, quando estiver vazio de qualquer outra substância material ou imaterial. Mas eis uma estranha propriedade ou afeção que passa de sujeito em sujeito. Os sujeitos deixarão assim os seus acidentes como um fato, a fim de que outros sujeitos se possam tornar a vestir com ele. Depois disso, como distinguiremos os acidentes e as substâncias?"73 67

Newton, op. cit, 103: "scilicet ambae [espaço e duração] sunt entis affectiones sive attributa secundum quae quantitas existentiae cujuslibet individui quoad amplitudinem praesentiae et perseverationem in suo esse denominatur." 68 Newton, op. cit, 103: "Spatium est entis quatenus ens affectio." 69 Howard Stein, op. cit, pp. 271-272. 70 Mais este até do que o citado por Stein, em que Newton afirma que se poderia conceber a existência do espaço mesmo simulando que Deus não existiria: Newton, op. cit, 111: "animis nostris advertimus nos posse spatium sine aliquo subjecto existens concipere, dum vacuum cogitamus. Et proinde huic aliquid substantialis realitatis competit. [...] Ad eudem modum si Ideam Attributi sive potestatis istius haberemus quo Deus sola voluntatis actione potest entia creare: forte conciperemus Attributum istud tanquam per se sine aliqua subjecta substantia subsistens et involvens caetera ejus attributa." 71 Leibniz, Streitschriften..., 4º escrito, § 9, G, VII, 372: "L'étendue doit etre l'affection d'un étendu. Mais si cet espace est vuide, il sera un attribut sans sujet, une étendue d'aucun étendu." 72 Leibniz, op. cit., § 10, G, VII, 373: "Si l'espace est une realité absolue, bien loin d'etre une proprieté ou accidentalité opposée à la substance, il sera plus subsistant que les substances, Dieu ne le sauroit détruire, ny même changer en rien. Il est non seulement immense dans le tout, mais encor immuable et eternel en chaque partie. Il y aura un infinité de choses eternelles hors de Dieu." 73 Leibniz, op. cit., 5º escrito, § 39, G, VII, 398: "Si l'espace est proprieté ou l'affection de la substance qui est dans l'espace, le même espace sera tantost l'affection d'un Corps tantost d'un autre corps, tantost d'une substance immaterielle, tantost peutétre de Dieu, quand il est vuide de toute autre substance materielle ou

96

Em quase toda a polémica e em quase todo o tratamento destas questões nestes autores e nesta época, era usual transportar o que se dizia do espaço para o tempo, ou melhor, de acordo com as preferências de Newton, para a duração, seguindo aqui, aliás, novamente, a linguagem de More. Burtt afirma que More não estaria interessado no tempo e que o verdadeiro antecedente do tempo absoluto de Newton é Barrow e não More.74 Sem negar que o destaque dado, em More, ao espaço é muito maior do que ao tempo, motivado pela crítica ao cartesianismo e da sua conceção do corpo como res extensa, a verdade é que a duração onde o mundo decorre é entendida da mesma forma que a extensão onde o mundo se situa. Numa passagem da segunda carta dirigida a Descartes, More afirma que a duração continuaria a decorrer e a ser mensurável entre um universo que Deus tivesse aniquilado e um novo que viesse a criar, passado muito tempo.75 Numa obra posterior, afirma a duração absoluta, com o mesmo estatuto do espaço absoluto, enquanto atributos divinos. 76 Apesar de fazer questão de emendar diversas vezes a sua conceção inicial desta duração divina como sucessiva, rejeita sempre que a eternidade divina seja um eterno hoje, um "instante permanente" ou um "instante indivisível", antes contrapondo a permanência de Deus à fluidez do criado cuja sucessão tem sua referência absoluta na permanência divina, utilizando, para expressar esta noção, metáforas em que, por exemplo, contrapõe um rio a uma rocha.77 É possível que a primeira conceção fosse mais próxima de Newton e Clarke, mas, desde que se rejeite o eterno hoje da tradição patrística e escolástica, não se vê porque não poderiam também aceitar a segunda. Assim, a influência de More nas noções de espaço e tempo como propriedades ou modos de Deus, a tal devendo o seu estatuto absoluto, em Newton e Clarke, parece inegável, por muito que se sinta o silêncio destes em relação àquele, presumivelmente motivado por outras conceções (espírito da natureza, teologia necessitarista, trinitarismo, para lá das discordâncias proféticas e experimentais que pudessem existir). Até mesmo a sua crítica ao holenmerianismo, ou seja, o estar todo em toda a parte, segundo o neologismo criado por More, 78 parece ser seguida por immaterielle. Mais voilá une etrange proprieté ou affection, qui passe de sujet en sujet. Les sujets quitteront ainsi leur accidens comme un habit, à fin que d'autres sujets s'en puissent revestir. Apres cela, comment distinguerat-on les accidens et les substances." 74 E. A. Burtt, The Metaphysical Foundations of Modern Science, Doubleday, N. Y., ed. Garden City, 1954; Mineola, New York, Dover Publications, 2003 [MF], p. 155, embora a tese seja desenvolvida entre a p. 150 e a p. 161 – mas, fundamentalmente, o facto que faz de Barrow um passo necessário entre More e Newton é a sua abordagem matemática. 75 More, CS, Epistolæ quator ad Renatum Descartes, Carta para Descartes de 4 de Março de 1649, 73-74: "Id sanè concessi pacis ergô. Sed clarè mihi non constat. Nam si Deus hanc mundi universitatem annihilaret, & multò post aliam crearet de nihilo, Intermundium illud, seu absentia mundi, suam haberet durationem quam tot dies, anni, vel secula mensurâssent. Non existentis igitur est duratio, quæ extensio quædam est. Ac proinde Amplitudo Nihili, putà Vacui, per ulnas vel orgyas mensurari potest, ut Nonexistentis in sua non existentia duratio per horas, dies mensésque mensuratur." A tradução é apresentada em Koyré, IU, 120. 76 Logo após abordar o espaço, pp. 163-164, More, CS, An Appendix to the foregoing Antidote against Atheism, ch. VII, § 2, 164: "Now there is the same reason for Time (by Time I mean Duration) as for Space. For we cannot imagine but that there has been such a continued Duration as could have no beginning nor interruption. And any one will say, it is non-sense that there should be such a necessary duration, when there is no reall Essence that must of it self thus be always, and for ever so endure. What, or who is it then that this eternal, uninterrupted and never-fading duration must belong to? No Philosopher can answer more appositely than the holy Psalmist, From everlasting to everlasting thou art God. Wherefore I say that those unavoidable imaginations of the necessity of an infinite Space, as they call it, and Eternal duration, are no proofs of a Self-existent Matter, but rather obscure subindications of the necessary Existence of God." 77 More, DD, 1st. dial, XV, 30-34. 78 Henry More, Enchiridion Metaphysicum, Pars Prima, Londini, Guilielmum Morden, 1671, P. I, Cap. 27, p. 351, embora o que esteja em causa seja a alma, a mesma questão se põe para Deus em relação ao

97

Newton e Clarke,79 muito embora, presumivelmente como o próprio More em tempos,80 Newton mantenha alguma conceção desse tipo, tendo em conta a vaga associação feita entre Deus e o instante que está em toda a parte.81 A verdade é que todos parecem concluir que Deus está tridimensionalmente em toda a parte porque essa tridimensionalidade é considerada condição necessária de toda a existência. Se assim não fosse, seria de esperar outra resposta de Clarke à segunda parte da crítica de Leibniz. 3. Relação de Deus com o espaço e o tempo: a "indiscerpibilidade" Na primeira objeção já citada de Leibniz relativa à relação de Deus com o Espaço, há uma última menção decisiva para este debate: "Mas como o espaço tem partes, não pode convir a Deus." 82 Ora, quer como atributo, quer como propriedade, quer como consequência, quer como afeção, quer como modo, se o espaço é associado a Deus, não pode ter partes. E é isso que Clarke diz, não apenas por estar ligado a Deus, mas em função da consideração da sua própria realidade: "Este espaço não tem partes porque o espaço infinito é uno e absoluta e essencialmente indivisível. Supô-lo partido é uma contradição nos termos, porque tem que existir espaço na própria partição, o que leva a supô-lo partido e, no entanto, não partido ao mesmo tempo... A imensidade e a omnipresença de Deus é tão-pouco uma divisão da sua substância em partes quanto a sua duração e continuação na existência é uma divisão da sua existência em partes. Não há aqui nenhuma dificuldade que não resulte do abuso figurativo do termo partes."83 A explicação da segunda frase havia sido dada nos Principia, onde Newton havia salientado que moverem-se partes do espaço para fora dos seus lugares, seria movê-los para fora de si mesmos.84 Mas quanto ao uso abusivo do termo "partes", dificilmente alguém poderia ser mais acusado disso que Newton, em muitos textos, mas nomeadamente no Escólio agora referido às definições iniciais dos Principia, para não espaço absoluto. A questão da alma será tratada noutra secção. 79 Vailati, DA, "Introduction", p. xvii. 80 Henry, John, "Henry More", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2012 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = . 81 Isaac Newton, "Scholium Generale", Ms. Add. 3965, fols, 361-362, US, 355: "Hic omnia regit non ut anima mundi (nam corpus non habet) sed ut... dici solet. Æternus est et infinitus id est. Semper durat & ubique adest: nam quod nunquam nusquam est nihil est. An Deus erit nusquam cum momentum temporis sit ubique? Certe." De forma bem mais vaga, surge no próprio Escólio Geral dos Principia: Newton, Philosophiæ naturalis..., Liber tertius, Scholium generale, OO, III, 172: "Cùm unaquæque spatii particula sit semper, & unumquodque durationis indivisible momentum ubique, certè rerum omnium Fabricator ac Dominus non erit nunquam, nusquam." 82 Leibniz, Streitschriften..., 3º escrito, § 3, G, VII, 363: "Mais comme il a des parties, ce n'est pas une chose qui puisse convenir à Dieu." E, tal como na outra citação (nota 44 desta parte), encontramos nos Novos Ensaios, exatamente no mesmo sítio, a correspondente: Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XIII, § 17, G, V, 136: "S'il a des parties, il ne sauroit estre Dieu." 83 Clarke, Streitschriften..., 3ª réplica, § 3, G, VII, 368: "Nor is there any Difficulty in what is here alledged about Space having Parts. For Infinite Space is One, absolutely and essentially indivisible: And to suppose it parted, is a contradiction in Terms; because there must be Space in the Partition it self; which is to suppose it parted, and yet not parted at the same time. The Immensity or Omnipresence of God, is no more a dividing of his Substance into Parts; than his Duration, or continuance of existing, is a dividing of his existence into Parts. There is no difficulty here, but what arises from the figurative Abuse of the Word Parts." O argumento já havia sido apresentado, brevemente, por Clarke na 2ª réplica, Clarke, op. cit., 2ª réplica, § 4, G, VII, 360: "Space, finite or infinite, is absolutely indivisible, even so much as in Thought; (To imagine its Parts moved from each other, is to imagine them moved out of themselves;)". Porém, apesar de já o conhecer, certamente, através de Newton, foi completamente ignorado por Leibniz na 3ª missiva. 84 Newton, Philosophiæ naturalis..., Def, VIII, Scholium, OO, II, 8: "Moveantur hæ de locis suis, & movebuntur (ut ita dicam) de seipsis."

98

falar da divisão ao infinito do final da Ótica.85 Isso não o impede de declarar, talvez desde a sua juventude, que os próprios espaços não são de facto divisíveis,86 para lá de dar o seu aval às palavras de Clarke. Como explicar tão manifesta contradição? O próprio Leibniz localiza a contradição no próprio Clarke,87 mas, ao fazê-lo, também fornece a sua solução. Na primeira referência de Leibniz, Clarke havia declarado: "As partes do próprio Espaço ou Expansão podem ser provadas ser absolutamente inseparáveis (Indiscerpible)"88; o que é ainda um pouco equívoco, visto se poder pensar que, como átomos, as partes do espaço embora separáveis entre si, não o seriam em si. Mas, na segunda referência, Clarke adianta: "O espaço é [...] uma extensão cujas partes (assim chamadas impropriamente) dependem umas das outras para a sua existência, não apenas por causa da sua infinitude, mas por causa da contradição que a separação delas manifestamente implicaria."89 A estas duas referências, poder-seia adicionar uma terceira, cuja novidade é também se referir ao tempo: as partes do tempo têm uma conexão essencial porque "cada momento, coexistindo com todas as partes do espaço, é ainda quer indivisível em si mesmo, quer inseparável das outras partes da duração."90 É o próprio Clarke que usa o termo de Henry More, indiscerpible, mas que havia sido adotado por outros, como, por exemplo, Cudworth 91 e Anne Conway (embora, neste caso, de forma discordante do seu antigo mestre),92 tendo-se tornado relativamente conhecido. Porém, Newton, como noutros casos relativos à influência de More, não parece gostar de o usar e daí parece nascer a referida contradição. O próprio Clarke pouco o usa na polémica, apesar da relativa boa propensão de Leibniz em relação a More, provavelmente por estar sob a tutela de Newton. O termo é aplicado ao espaço, enquanto atributo, propriedade ou modo divino, às substâncias imateriais (almas, espíritos) e às partículas mais elementares, os átomos. Deixando os dois restantes casos para mais tarde, o que indiscerpible quer dizer é que as partes, podendo ser matematicamente divididas, não podem ser fisicamente separadas.93 85

Newton, Optics, Qu. 31, OO, IV, 263: "Space is divisible in infinitum." Newton, "De Gravitatione…", US, 103: "sciendum est ipsissima spatia non esse actu divisibilia". 87 Leibniz, Streitschriften...,4º escrito, § 12, G, VII, 373. 88 Clarke, LD, "A Defence of an Argument...", 102: "The parts of Space or Expansion it self, can demontrably be proved to be absolutely Indiscerpible." 89 Clarke, LD, "A Second Defence of an Argument...", 175-6: "Space (which you [Collins] unphilosophically call the mere Absence of Bodies, and yet confess it to be positively infinite,) is without difficulty confessed by you to be an Instance of such an Extension; An extension whose Parts (improperly so called) depend on each other for they Existence, not only because of its Infinity, but because of the Contradiction which a Separation of them manifestly would imply." 90 Clarke, LD, "A Fourth Defence of an Argument...", 399: As partes da matéria "having no essential Connexion one with another, nor any Dependence one upon another for their Existence; as the Parts of Space evidently have, even separate from the Consideration of its being absolutely Infinite; and as the Parts of Time have, (forasmuch as every Moment, co-existing with all the Parts of Space, is yet both indivisible in it self, and inseparable from the other Parts of Duration;)". 91 E. g., Ralph Cudworth, op. cit., p. 81. 92 Anne Conway, Principia Philosophiæ antiquissimae et recentissimae de Deo, Christo & Creatura, Amsterdam, M. Brown, 1690; tr. ingl. J. C., The Principles of the most Ancient and Modern Philosophy, London, 1692 [http://digital.library.upenn.edu/women/conway/principles/principles.html] – tem múltiplas menções, normalmente aplicadas à questão em que quer More, quer Clarke, mais utilizaram a palavra, a distinção entre corpo e espírito. 93 More, CS, The immortality of the Soul, B. I, Ch. VI, Axiome 15, 27: "For every Quantity is intellectually divisible; but something Indiscerpible was afore demonstrated to be Quantity, and consequently divisible, otherwise Magnitude would consist of Mathematical points." Ironicamente, este ensaio, onde mais usa a noção, é dedicado a Eduard Conway. Para um uso do termo mais relacionado com o espaço absoluto, ver More, DD, 1st. dial., XXVII, 56. Na pág. 64 (XXX), também apresenta a distinção acima referida, de forma até talvez mais clara: "It is intellectually divisible, but Physically indiscerpible. Therefore this is the fallacy your Phancy puts upon you, that you make Indivisibility and 86

99

Daí a tradução apresentada: inseparável. Acontece que Leibniz, identificando o teor da distinção, enuncia uma objeção dificilmente superável, sobretudo no que diz respeito a Deus: "Como eu objetei que o espaço tem partes, busca-se uma escapatória, afastando-se do sentido recebido dos termos e sustentando que o espaço não tem quaisquer partes; porque essas partes não são de todo separáveis e não poderiam ser afastadas uma das outras por discerpção [mantida, neologisticamente, para que se perceba a referência]. Mas é suficiente que o espaço tenha partes, sejam essas partes separáveis ou não; e podemos atribuí-las no espaço, seja pelos corpos que aí estiverem, seja pelas linhas ou superfícies que aí podemos traçar."94 Leibniz não tem razão quando se refere às respostas de Clarke como uma escapatória, visto serem as conceções deste e de Newton mais fundamentais acerca da natureza do espaço.95 Porém, tem toda a razão quando salienta que o facto de serem inseparáveis não faz com que deixem de existir partes. Já Anthony Collins havia salientado que a inseparabilidade de uma extensão (no caso, a da alma), não alterava o facto de um lado ser diferente do outro, do lado esquerdo ser uma parte e o direito outra.96 Embora a organização argumentativa da resposta de Leibniz deixe a desejar, visto supor sistematicamente que o espaço tem partes, após Clarke ter afirmado que, em sentido rigoroso, não as tinha, mesmo à luz deste argumento, compreendem-se as objeções de Leibniz, todas elas decorrentes da incompatibilidade entre um Deus que, pela sua simplicidade, não pode ter partes e um espaço que as tem, como é atestado pelo facto de os corpos (e até os espíritos, na conceção de Clarke e Newton) se localizarem nele.97 Frente à maior e mais pertinente objeção de Leibniz a este propósito, Clarke prefere uma evasiva, dizendo que Leibniz está apenas a jogar (quibbling) com as palavras.98 De qualquer forma, Clarke, para lá desta acusação, ainda reenvia para uma resposta anterior: "Os infinitos são compostos de finitos em nenhum outro sentido senão o de que os finitos são compostos de infinitesimais. [...] As partes, no sentido corpóreo da palavra, são separáveis, compostas, não unidas, independentes de e movíveis umas das outras; mas o espaço infinito, embora possa parcialmente ser apreendido por Nós, quer dizer, possa, na Nossa imaginação, ser concebido como composto de partes, porém, visto essas partes (assim impropriamente chamadas) serem essencialmente inseparáveis [indiscerpibles] e amovíveis umas das outras, e não poderem ser partidas sem uma expressa contradição nos termos, o espaço é, consequentemente, em si próprio,

Indiscerpibility all one. What is intellectually divisible may be Physically indivisible or indiscerpible: as it is manifest in the nature of God, whose very Idea implies Indiscerpibility, the contrary being so plain an Imperfection." 94 Leibniz, op. cit., 5º escrito, § 51, G, VII, 403: "Comme j'avois objecté, que l'Espace ne sauroit etre en Dieu, parce que l'Espace a des parties, on cherche un autre échappatoire, en s'éloignant du sens receu des termes, et soûtenant que l'espace n'a point de parties : parce que ses parties ne sont point separables, et ne sauroient etre eloignées les unes des autres par discerption. Mais il suffit que l'espace ait des parties, soit que ces parties soyent separables ou non ; et on les peut assigner dans l'espace, soit par les corps qui y sont, soit par les lignes ou surfaces qu'on y peut mener." 95 O mesmo se poderá dizer da forma como Leibniz trata a tese do espaço como propriedade de Deus, como se fora apenas uma manha para iludir a dificuldade de uma coisa eterna independente de Deus, quando se trata da tese fundamental de Clarke acerca do espaço. Ver Leibniz, op. cit., 5º escrito, § 36, G, VII, 398. 96 Collins, LD, "A Reply to Mr. Clarke's Defence of his Letter to Mr. Dodwell", 134: "Nor can there be any difference as to their Divisibility by the Power of God, for all finite extended Beings must so far consist of Parts, that the Part of one side is not the Part of the other side." 97 Leibniz, op. cit., §§ 36-44, G, VII, 398-9; §50, G, VII, 403. 98 Clarke, Streitschriften..., 5ª réplica, § 51, G, VII, 427.

100

essencialmente um e absolutamente indivisível."99 Trata-se, no fundamental, da mesma distinção de More, ignorando o facto de que, para que haja partes, não é necessário que se seja "partível". Além disso, embora Leibniz certamente não considerasse os finitos compostos de infinitesimais, não veria qualquer problema em considerar os corpos finitos infinitamente divisíveis, sendo a sua composição de infinitas entidades necessária para a continuidade do fenómeno da extensão. Porém, o ambiente de reserva intelectual em que decorre esta polémica impediu explicações mais demoradas desta questão. Uma última objeção de Leibniz parece atingir um aspeto relevante e ser respondida de forma insuficiente por Clarke. A ubiquidade divina exige que Deus esteja no espaço (de facto, tradicionalmente, que Deus esteja inteiro em cada lugar). Se assim é, como pode o espaço estar em Deus, dele decorrer ou ser sua propriedade? "Já ouvimos muitas vezes dizer que a propriedade está no sujeito; mas nunca ouvimos dizer que o sujeito esteja na propriedade."100 E, naturalmente, como é habitual, o mesmo se aplica ao tempo. Ora, Clarke responde à objeção, como se Leibniz estivesse a dizer que Deus existia no espaço e no tempo, ao passo que Leibniz se estava referir à ubiquidade decorrente da conceção tradicional de imensidade.101 Como noutras passagens, Clarke finge ou diz não compreender ou declara sem sentido o que está ser dito e isto é uma forma mais suave do dogmatismo newtoniano que se recusa a discutir as noções não empíricas que, porém, continuamente utiliza. Faz lembrar o recurso de certos pensadores bem mais recentes que se livram de eventuais objeções, declarando-as ou à linguagem que utilizam, mesmo que seja a mais recorrente do mundo, sem sentido, como uma espécie de exorcismo que faria desaparecer a entidade assustadora. Neste caso, Clarke primeiro finge que não existe outra noção de imensidade que não aquela que utiliza, mas, face à insistência de Leibniz102, acaba por declarar, implicitamente, a ausência de sentido da conceção de Leibniz: "Dizer que a imensidade não significa espaço ilimitado e que eternidade não significa duração ou tempo sem começo nem fim, é afirmar que as palavras não têm significado." 103 Este é, aliás, um dos passos que 99

Clarke, op. cit., 4ª réplica, §§ 11-12, G, VII, 383-4: "Infinites are composed of Finites, in no other sense, than as Finites are composed of infinitesimals. [...] Parts, in the corporeal sense of the word, are separable, compounded, ununited, independent on and moveable from, each other; But infinite Space, though it may by Us be partially apprehended, that is, may in Our imagination be conceived as composed of Parts; yet Those Parts (improperly so called) being essentialy indiscerpible and immoveable from each other, and not partable without an express contradiction in Terms [...]; Space consequently is in it self essentially One, and absolutely indivisible." Na versão de Ariew, assim como na de Robinet (Clarke, CLC, 110), contrariamente à versão aqui usada para as citações, a de Gerhard, e à do próprio Clarke (Clarke, CP, 131), é usado o termo "indiscernible". Indiscernível não é o mesmo que indiscerpível, nem faz sentido no contexto referido, na sequência da referência leibniziana à polémica com Collins a propósito da tese de Dodwell e tendo como resposta de Leibniz, já citada, a utilização do termo "discerption". Pode-se discernir os dois lados de uma folha e não se pode separá-los. Existirá algum manuscrito que contenha tal erro, entendido aqui como tal visto a própria edição de Clarke (ou seja, do autor) conter a palavra "indiscerpible"? 100 Leibniz, op. cit., § 45, G, VII, 399: "L'immensité de Dieu fait que Dieu est dans tout les espaces. Mais si Dieu est dans l'espace, comment peut on dire que l'espace est en Dieu, ou qu'il est sa proprieté ? On a oui dire que la proprieté soit dans le sujet, mais on n'a jamais oui dire que le sujet soit dans sa proprieté. De même, Dieu existe en chaque temps, comment donc le temps est il dans Dieu ; et comment peut il estre une proprieté de Dieu ?" 101 Clarke, Streitschriften..., 5ª réplica, § 45, G, VII, 427, ver IV. 2, nota 51. 102 Leibniz, op. cit., § 106, G, VII, 415: "Je soûtiens que sans les Creatures, l'immensité et l'Etemité de Dieu ne laisseroient pas de subsister, mais sans aucune dependance ny des temps ny des lieux. S'il n'y avoit point de creatures, il n'y auroit ny temps ny lieu ; et par consequent point d'espace actuel. L'immensité de Dieu est independante de l'espace, comme l'éternité de Dieu est independante du Temps." 103 Clarke, op. cit., § 106, G, VII, 427: "To say that Immensity does not signify Boundless Space, and that Eternity does not signify Duration or Time without Beginning and End, is (I think) affirming that Words

101

poderia ilustrar o confronto de dogmatismos a que se assiste na polémica, porque, a este propósito, Leibniz recorre à tradição teológica e filosófica, afirmando a heterogeneidade entre duração e extensão das criaturas, e imensidade e eternidade de Deus,104 ao passo que Clarke a rejeita, afirmando a nova ortodoxia que procura instalar como se fosse indiscutível, o que, apesar de tudo, é uma versão mais suave da atitude do próprio Newton. Mas qual a noção leibniziana de ubiquidade divina? Ao definir os tipos de ubiedade, o existir em alguma parte, distinguindo Deus dos corpos e das almas, considera que a ubiedade de Deus é repletiva (ou seja, a ubiquidade) porque "preenche todo o universo ainda mais eminentemente que os espíritos, os corpos, pois opera imediatamente sobre todas as criaturas, produzindo-as continuamente."105 Isto significa que Leibniz tem um entendimento dinâmico da própria presença de Deus no Universo, não através de uma ocupação, mas da ação. Já houve nesta dissertação a oportunidade de ligar esta noção de produção contínua à contingência. Essa ligação surge aqui reforçada, muito embora nunca surja referida desta forma na polémica, mas sim em relação ao conhecimento divino.106 A inconcebilidade desta noção da imensidade divina só pode resultar, segundo Leibniz, de querer imaginar o que é exclusivamente inteligível, como se se quisesse ver sons ou ouvir cores, o que provoca a incapacidade de conceber a existência de seja o que for que não seja extenso. Mas Deus, como ato puro, não pode estar sujeito à passividade da extensão.107 Leibniz volta a afirmar a impossibilidade de Deus ser extenso, por isso implicar ter partes, noutra passagem. Mas admite partes, nas suas operações, dadas pela duração. E acrescenta: "No que se refere ao espaço, é preciso atribuir-lhe a imensidão que confere também partes e ordem às operações imediatas de Deus. Ele é a fonte das possibilidades bem como das existências, de umas pela sua essência, das outras pela sua vontade. Assim, tanto o espaço como o tempo só têm a realidade que dele recebem e ele pode preencher o vazio, quando bem lhe apraz. É assim, a este respeito, que ele está em toda a parte."108 Como pode Leibniz pretender refutar outras posições por implicarem que Deus tenha partes e depois conceda partes às suas operações, ainda por cima fornecidas pela duração e pela imensidade que é, por sua vez, adicionalmente, atribuída ao espaço? De facto, se a imensidade é atributo de Deus, como pode ser atributo do espaço, visto espaço e Deus não serem a mesma coisa e tão-pouco aquele pode ser atributo deste? A resposta a esta segunda questão surge na própria polémica aqui examinada: "Parece que se confunde a imensidade ou extensão das coisas, com o espaço segundo o qual esta extensão é tomada. O espaço infinito não é a imensidade divina; o have no meaning." 104 Leibniz, op. cit., § 106, G, VII, 415-6: "L'immensité et l'éternité de Dieu sont quelque chose de plus eminent que la durée et l'étendue des creatures, non seulement par rapport à la grandeur, mais encore par rapport à la nature de la chose. Ces attributs Divins n'ont point besoin de choses hors de Dieu, comme sont les lieux et temps actuels. Ces verités ont eté assés reconnues par les Theologiens et par les Philosophes." 105 Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XXIII, § 21, G, V, 206: "La troisième Ubieté est la repletive, qu'on attribue à Dieu, qui remplit tout l'Univers encor plus eminement que les esprits ne sont dans les corps, car il opere immediatement sur toutes les creatures en les produisant continuellement." 106 Leibniz, Streitschriften..., 2º escrito, § 5, G, VII, 357; 4º escrito, § 30, G, VII, 375; 5º escrito, § 85, G, VII, 410. 107 Leibniz, Nouveaux essais..., L. IV, Ch. III, §§ 1-6, G, V, 362. 108 Leibniz, NE, 104; cf. Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XV, § 4, G, V, 141: "Si Dieu estoit étendu, il auroit des parties. Mais la durée n'en donne qu'à ses operations. Cependant par rapport a l'espace il faut luy attribuer l'immensité qui donne aussi des parties et de l'ordre aux operations immediates de Dieu. Il est la source des possibilités comme des existances, des unes par son essence, des autres par sa volonté. Ainsi l'espace comme le lemps n'ont leur realité que de luy, et il peut remplir le Vuide, quand bon luy semble. C'est ainsi qu'il est par tout à cet egard."

102

espaço finito não é a extensão dos corpos, como o tempo não é de todo a duração. As coisas mantêm a sua extensão, mas elas não mantêm de forma alguma sempre o seu espaço. Cada coisa tem a sua própria extensão, a sua própria duração; mas de forma alguma tem o seu próprio tempo e de forma alguma mantém o seu próprio espaço."109 Há, como se pode ler, mais do que uma imensidade. A imensidade de Deus não é a imensidade da extensão das coisas que, tomada relativamente, corresponde ao espaço. Esta segunda imensidade é, porém, uma conceção abstrata do universo como se fosse um todo – que não é. Dá mesmo alguma razão a Descartes por ter preferido o termo indefinido a infinito.110 Se se toma, erradamente, o espaço mundano como absoluto, é inevitável tomá-lo como sendo a imensidade divina, pois todo e qualquer absoluto é atributo de Deus.111 Mas a próxima secção explicitará um pouco melhor a questão. Sem ainda apreciar qual a realidade, afinal, do espaço e do tempo, e deixando para mais tarde a questão do vazio, também aflorada no intrigante passo dos Novos Ensaios, resta perceber como pode a operação divina ter partes. A única explicação que parece admissível é a de essas partes serem vistas do ponto de vista do efeito e não da causa. Deus opera em toda a parte e, nesse sentido, a sua operação tem partes que resultam da sua ação sumamente simples na fonte, embora sumamente prolífera nos efeitos. 4. Os próprios espaço e tempo: concretos ou abstratos Mas, para Leibniz, o que são o espaço e o tempo em si mesmos? Na polémica, Leibniz está constantemente a referir-se à relatividade do espaço e tempo mundanos que será tratada na secção seguinte, mas essa conceção surge como antítese do espaço e tempo absolutos de Newton. De resto, independentemente dos corpos e eventos que ordenam, parece quase desvalorizá-los como uma ilusão: apenas a possibilidade de colocar os corpos; 112 a ordem que torna os corpos situáveis; sem criaturas, não existiriam senão nas ideias de Deus;113 em si mesmos, apenas alguma coisa ideal;114 simples possibilidade ideal;115 existindo Deus sozinho, só existiriam nas ideias, como 109

Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 46, G, VII, 399: "Il paroist qu'on confond l'immensité ou l'etendue des choses, avec l'espace selon lequel cette etendue est prise. L'espace infini n'est pas l'immensité de Dieu, l'espace fini n'est pas l'etendue des corps, comme le Temps n'est point la durée. Les choses gardent leur étendue, mais elles ne gardent point tousjous leur espace. Chaque chose a sa propre etendue, sa propre durée ; mais elle n'a point son propre temps, et elle ne garde point son propre espace." 110 Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XIII, § 21, G, V, 137-8: "M. des Cartes et ses sectateurs [...] ont changé le terme d'infini en indefini avec quelque raison ; car il n'y a jamais un tout infini dans le monde, quoyqu'il y ait tousjours des touts plus grands les uns que les autres à l'infini, et l'univers mème ne sauroit passer par un tout." 111 Leibniz op. cit., Ch. XVII, § 3, G, V, 145: "L'idée de l'absolu est en nous interieurement comme celle de l'Estre : ces absolus ne sont autre chose que les attributs de Dieu, et on peut dire qu'ils ne sont pas moins la source des idées, que Dieu est luy même le principe des Estres. L'idée de l'absolu par rapport a l'espace n'est autre que celle de l'immensité de Dieu, et ainsi des autres. Mais on se trompe en voulant s'imaginer un espace absolu qui soit un tout infini composé de parties, il n'y a rien de tel, c'est une notion qui implique contradiction." 112 Leibniz, Streitschriften..., 3º escrito, § 5, G, VII, 364: "n'est rien du tout sans les corps, que la possibilité d'en mettre." 113 Leibniz, op. cit., 4º escrito, § 41, G, VII, 376-7: "Il [o espaço] est cet ordre qui fait que les corps sont situables, et par lequel ils ont une situation entre eux en existant ensemble, comme le temps est cet ordre par rapport a leur position successive. Mais s'il n'y avoit point de creatures, l'espace et le temps ne seroient que dans les idées de Dieu." 114 Leibniz, op. cit., 5º escrito, § 27, G, VII, 395: "Les parties du temps ou du lieu, prises en elles mêmes, sont des choses ideales ; ainsi elles se ressemblent parfaitement, comme deux unités abstraites"; § 33, G, VII, 396: "l'espace en soy est une chose ideale comme le temps." 115 Leibniz, op. cit., § 55, G, VII, 404: "j'ay démontré que le temps sans les choses n'est autre chose qu'une simple possibilité ideale."

103

simples possibilidades.116 O adjetivo “simples” e o advérbio “apenas” marcam a clara desvalorização dos termos. Numa das mais famosas passagens da polémica que irá também ser tratada na próxima secção, Leibniz tenta mostrar como, a partir da ordem de coexistência, os homens formam a noção de espaço, tentando criar um referencial idêntico para as mudanças que não esteja sujeito à diferente situação em relação a tudo o resto que tenha um corpo relativamente a um outro que tivesse estado "no mesmo lugar", por um processo de abstração idêntico ao que ocorreria se considerássemos uma árvore genealógica sem considerar os parentescos concretos que a ordenam ou a relação entre duas linhas desiguais sem considerar qual a maior.117 Porém, neste passo, Leibniz não diz simplesmente que se trata de uma coisa puramente ideal, mas também que a sua consideração não deixa de ser útil. E, nas referências anteriores, como admitir que se trate de uma mera conceção humana, uma ficção mesmo que útil, se se admite a sua existência entre as ideias de Deus? Em geral, o concreto é apresentado por Leibniz como anterior ao abstrato. E dá ideia que essa anterioridade resulta de uma produção dos abstratos a partir dos concretos. 118 Essa anterioridade parece reforçada pela maior facilidade, como se a abstração tivesse algo de artificioso. 119 Na divisão das ideias proposta por Leibniz, o espaço e o tempo parecem ter o seu lugar entre as ideias abstratas relativas, muito embora não pareça ter posto entraves à sua colocação, por Locke, entre os modos simples.120 Porém, Leibniz considera que as ideias abstratas, ao menos as absolutas, essências, géneros e espécies, são possibilidades independentes do nosso pensamento.121 Visto o espaço e o tempo serem relativos, serão apenas uma produção do nosso pensamento, como sugere a explicação já referida da formação da noção do espaço? De facto, "o lugar o tempo, muito longe de se determinarem por si próprios, precisam de ser determinados pelas coisas que contêm".122 Porém, a ordem dos tempos e dos lugares é a ligação necessária a qualquer criado, necessária para os próprios espíritos. 123 Talvez se possa começar a entender o estatuto do tempo e do espaço no pensamento de Leibniz, se se verificar em que outras noções os integra: os seres da matemática pura.124 Como já foi referido no 116

Leibniz, op. cit., § 106, G, VII, 415: "à mon avis, ils ne seroient que dans les idées, comme les simples possibilités." 117 Leibniz, op. cit., § 55, G, VII, 400-1. 118 Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XII, § 6, G, V, 133: "La connoissance des concrets est tousjours anterieure à celle des abstraits ; on connoist plus le chaud que la chaleur." E num caso diretamente ligado à questão atual: Leibniz, op. cit., Ch. XIII, § 15, G, V, 136: "Je crois que la nature de l'espace est expliquée. L'Etendue est l'abstraction de l'Etendu. Or l'Etendu est un continu dont les parties sont coëxistantes ou existent à la fois." 119 Não é claro se nesta passagem se está a referir à anterioridade, à clareza ou à facilidade (ou tudo ao mesmo tempo): Leibniz, op. cit., Ch. XIII, § 19, G, V, 137: "les substances ou les concrets sont conçus plustost que les accidens ou les abstraits"; mas esta passagem é clara: Leibniz, op. cit., Ch. XXIII, § 1, G, V, 202. Ver citação no final da secção, onde é comparada com Clarke e Newton. 120 Leibniz, op. cit., Ch. XXII, § 1, G, V, 198: "On pourroit peutestre diviser les Termes ou les Objets des idées en Abstraits et Concrets : les abstraits en absolus et en ceux qui expriment les Relations, les absolus en attributs et en modifications, les uns et les autres en simples et composés. Les concrets en substances et en choses substantielles, composées ou résultantes des substances vrayes et simples." 121 Leibniz, op. cit., L. III, Ch. III, § 14, G, V, 272: "Au reste, que les hommes joignent telles ou telles idées ou non, et même que la nature les joigne actuellement ou non, cela ne fait rien pour les essences, genres ou especes, puisqu'il ne s'y agit que des possibilités, qui sont independantes de nostre pensée." 122 Leibniz, NE, 198; cf. Leibniz, Nouveaux essais..., L. III, Ch. III, § 6, G, V, 141: "le lieu ou le temps, bien loin de determiner d'eux mêmes, ont besoin eux-mêmes d'estre determinés par les choses qu'ils contiennent." 123 Leibniz, Essais de Théodicée, 2ª parte, § 120, G, VI, 172: "S'il n'y avoit que des esprits, ils seroient sans la liaison necessaire, sans l'ordre des temps et des lieux." Cf. ibidem, §·200, G, VI, 235. 124 Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. I, § 2, G, V, 100: "Les choses uniformes et qui ne renferment aucune varieté, ne sont jamais que des abstractions, comme le temps, l'espace et les autres Estres des

104

final da secção II. 2., espaço e tempo são uma relação não só entre os existentes, como entre os possíveis.125 Pertencem ao domínio das verdades eternas e, por isso, embora se fundando no entendimento divino, são independentes da vontade divina.126 Aliás, assim são tratadas em geral as relações e as ordens, mesmo se tiverem o seu fundamento nas coisas, visto provirem da razão suprema.127 Na verdade, isso significa que a ordenação permitida pelo espaço e o tempo, como a de toda a lógica e matemática, é comum a todos os mundos possíveis, parecendo, assim, até mais absoluta que a de Newton. Naturalmente, isso só acontece por Newton não costumar falar de mundos possíveis (apesar do estranho exemplo apresentado no início dos Principia128) porque se, para ele, espaço e tempo são inerentes à existência de Deus, sendo esta necessária, aqueles são igualmente necessários, mas não apenas enquanto ideias na mente divina. O facto de, em Leibniz, o espaço e o tempo serem do domínio das verdades de razão, não significa, porém, que não tenham implicações na própria realidade física, visto ela ser ordenada segundo o espaço e o tempo ideais. O primado gnosiológico e, até certo ponto, ontológico do concreto, não deixa de se subordinar aos princípios ordenadores e são ordens, exatamente, o que é estabelecido pelo espaço e pelo tempo. Embora possa haver dúvidas quanto à interpretação do passo, talvez seja o que Leibniz quer dizer quando afirma que o concreto não é concreto senão pelo abstrato.129 Também no ponto II. 2. se salientou que, para Leibniz, os fenómenos se ligam exatamente como as verdades inteligíveis exigem. 130 E a propósito da continuidade, Leibniz reconhece que se trata de uma coisa ideal e que nunca há na natureza nada cujas partes sejam perfeitamente uniformes, mas, em compensação, "o real não deixa de se governar perfeitamente pelo ideal e pelo abstrato" porque "tudo se governa pela razão" e, de outra forma, "não haveria de todo nem ciência, nem regra".131 Porém, as ideias positivas da Mathématiques purs." 125 Leibniz, op. cit., L. II, Ch. XIV, § 24, G, V, 140: "Ce Vuide qu'on peut concevoir dans le temps, marque comme celuy de l'espace, que le temps et l'espace vont aussi bien aux possibles, qu'aux existans." 126 Leibniz, op. cit., Ch. XIII, § 17, G, V, 136; juntamente com o tempo, op. cit., Ch, XIV, § 26, G, V, 140; e, em geral, acerca do infinito, op. cit., Ch, XVII, § 3, G, VII, 145, e § 16, G, V, 146. 127 Leibniz, op. cit., Ch. XXV, § 1, G, V, 211: "Les relations et les ordres ont quelque chose de l'estre de raison, quoyqu'ils ayent leur fondement dans les choses ; car on peut dire que leur realité, comme celle des verités eternelles et des possibilités vient de la supreme raison"; Ch. XXX, § 4, G, V, 246: "Les Relations ont une realité dependante de l'Esprit comme les Verités ; mais non pas de l'Esprit des hommes, puisqu'il y a une supreme intelligence qui les determine toutes de tout temps." 128 Isaac Newton, Philosophiæ naturalis..., Liber tertius, Def. VIII, Scholium, OO, II, 11-12. 129 A dúvida é relativa à questão de se essa última observação (apesar de separada por ponto e vírgula) não estará incluída na negação inicial da frase, como um comentário às duas extensões: Leibniz, op. cit., L. II, Ch. IV, § 5, G, V, 115: "Quoyqu'il soit vray, qu'en concevant le corps, on conçoit quelque chose de plus que l'espace, il ne s'en suit point qu'il y a deux étendues, celle de l'espace et celle du corps ; car c'est comme lorsqu'en concevant plusieurs choses à la fois, on conçoit quelque chose de plus que le nombre, savoir res numeratas, et cependant il n'y a point deux multitudes, l'une abstraite, savoir celle du nombre, l'autre concrete, savoir celle des choses nombrées. On peut dire de même qu'il ne faut point s'imaginer deux étendues, l'une abstraite, de l'espace, l'autre concrete, du corps ; le concret n'estant tel que par l'abstrait. Et comme les corps passent d'un endroit de l'espace à l'autre, c'est à dire qu'ils changent l'ordre entr'eux, les choses aussi passent d'un endroit de l'ordre ou d'un nombre à l'autre, lorsque par exemple le premier devient le second et le second devient le troisième etc. En effect le temps et le lieu ne sont que des espèces d'ordre, et dans ces ordres la place vacante (qui s'appelle vuide à l'egard de l'espace) s'il y en avoit, marqueroit la possibilité seulement de ce qui manque avec son rapport à l'actuel." 130 Leibniz, op. cit., L. IV, Ch. IV, §§ 1-5, G, V, 373. 131 Gottfried Wilhelm Leibniz, ed. C. I. Gerhard, Leibnizens mathematische Schriften, 5º vol., Halle, H. W. Schmidt, 1859 [GM], Carta para Varignon de 2/2/1702, pp. 93-94: "On peut dire en general que doute [sic – não é claro se é "toute", se é "sans doute"] la continuité est une chose ideale et qu'il n'y a jamais rien dans la nature, qui ait des parties parfaitement uniformes, mais en recompense le reel ne laisse pas de se gouverner parfaitement par l'ideal et l'abstrait [...] : c'est par ce que tout se gouverne par raison, et

105

imensidade ou da duração infinita não podem ser entendidas como todos infinitos132 porque esses todos seriam os conjuntos dos elementos constituintes, ou seja, das partes, e "um infinito não poderia ser um verdadeiro todo". 133 A ideia positiva de infinito corresponde ao absoluto, aos atributos sem limites que decorrem da necessidade da existência de Deus. É preciso que se diga que muito do que acabou de ser referido em relação a Leibniz, poderia ser subscrito quer por Clarke, quer até por Newton. Habitualmente, os comentadores destas polémicas gostam de as tratar como se alinhassem oposições extremas porque a exposição se torna, assim, mais viva, mais expressiva e mais incisiva, e isso torna mais popular a leitura porque o leitor a entende melhor – entende melhor, entenda-se, enunciações que, muitas vezes, não correspondem à verdade. Também no ensino, a explanação antitética de certos conteúdos problemáticos é considerada, com razão, didaticamente eficaz, mas sob pena de uma simplificação deformadora desses conteúdos ou, no mínimo, de uma redução da explicação ou a aspetos relativamente superficiais, ou a algumas poucas reais oposições que são tomadas como o todo. Muitas vezes, as diferenças entre posições que são apresentadas, simplificadamente, como opostas, são bem mais subtis e é maior o que há de comum entre as posições do que aquilo que as distingue. Muitas vezes, aliás, é a sua proximidade que provoca o debate, visto criar um terreno que torna possível a esperança da persuasão. Assim, sob pena de se diminuir a espetacularidade, aqui privilegia-se a apreciação das posições reais dos autores e não caricaturas que exagerem certas posições para tornar mais fácil a comparação – a não ser que os próprios autores as façam. Em primeiro lugar, Clarke seria o primeiro a associar a infinitude com a existência necessária. Porém, quer em Clarke, quer em Newton, ser infinito é ser dimensional, de tal forma que o termo infinito até surge, em ambos, como sinédoque da imensidão espacial. Algo que não pode deixar de existir, ou seja, que existe necessariamente, cuja não existência implicaria contradição, tem de existir em todo o lado porque se não é necessário que exista em algum sítio, então também não é necessário que exista em qualquer outro.134 Por isso, não é na imensidão que está a discordância, mas, como já foi antes visto, na possibilidade de conceber partes nessa imensidão, mesmo que inseparáveis ou "indiscerpíveis". Em segundo lugar, o que existe é o concreto, mesmo do ponto de vista das qualidades dos sujeitos. Os termos utilizados por Clarke na longa nota que acrescentou, na sua edição da correspondência, a propósito da natureza do espaço, mas que é introduzida, exatamente, por uma distinção entre o qu'autrement il n'y auroit point de science ny regle, ce qui ne seroit point conforme avec la nature du souverain principe." 132 Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XVII, § 16, G, V, 146: "Nous avons l'idée positive de l'une et de l'autre [eternidade e imensidade] et cette idée sera vraye, pourveu qu'on n'y concoive point comme un tout infini, mais comme un absolu ou attribut sans bornes qui se trouve à l'egard de l'Eternité, dans la necessité de l'existence de Dieu, sans y dépendre les parties et sans qu'on en forme la notion par une addition du temps. On voit encor par là, comme j'ay dit déja, que l'origine de la notion de l'infini vient de la même source que celle des verités necessaires." 133 Leibniz, op. cit., L. II, Ch. XVII, § 8, G, V, 146: "PH. Nous n'avons pas l'idée d'un espace infini, et rien n'est plus sensible que l'absurdité d'une idée actuelle d'un nombre infini. TH. Je suis du même avis. Mais ce n'est pas parcequ'on ne sauroit avoir l'idée de l'infini, mais parcequ'un infini ne sauroit estre un vrai tout." 134 Clarke, DB, IV, 88: "Whatever therefore Exists by an Absolute Necessity in its own Nature, must needs be Infinite as well as Eternal. To suppose a Finite Beings Self-Existent; is to say that it is a Contradiction for that Being not to Exist, the Absence of which may yet be conceived without a Contradiction: which is the greatest Absurdity in the World: For if a Being can without a Contradiction be absent from One Place, it may without a Contradiction be absent likewise from another Place, and from all Places."

106

abstrato e o concreto, 135 inspira-se, naturalmente, numa das mais centrais conceções teológicas que Newton fez questão de deixar grafada numa das suas duas obras científicas fundamentais,136 mas poderia ser subscrita, sem hesitação por Leibniz137 (o que mostra que não é aí, ao contrário do que parece ter julgado Clarke, que estaria o pomo da discórdia). Finalmente, em terceiro lugar, Clarke, Newton e Leibniz, só admitem absolutos, em sentido estrito, em relação a Deus. Naturalmente, enquanto a eternidade e a imensidade divinas são pensadas por Leibniz como transcendentes, absolutas porque não locais, nem sucessivas, Clarke e Newton não concebem como a eternidade pode não ser temporal e concebem a imensidade espacial de forma imanente (embora reivindiquem, ao contrário, a transcendência divina, razão pela qual negam que seja a Alma do mundo; assim, o espaço surge como uma consequência imanente de uma existência transcendente). Leibniz nega esta última possibilidade porque implicaria partes que, porém, Clarke e Newton negam que existam, verdadeiramente, no espaço e no tempo. Esta discrepância parece ser a mais notória porque até na definição leibniziana de ambos como ordens, não parece haver discrepância em Newton, 138 havendo apenas na sua imutabilidade (decorrente de serem propriedades ou modos da existência de Deus). Em última análise, é a conceção da relação de Deus com o mundo que parece estar na raiz das principais divergências dos autores e, na raiz dessas diferentes conceções, está um diferente entendimento da liberdade, em geral, e da divina, em particular, como já se viu, mas ver-se-á melhor quando for tratada a temática da Providência. Entre o abstrato e o concreto, responsável, aliás, por certas confusões entre os dois, nomeadamente a de tomar algo abstrato como entidade concreta, encontra-se, para Leibniz, o imaginário. A imaginação parece responsável pelo estabelecimento das noções incompletas, desde o nível do senso comum, 139 ao nível da filosofia. 140 Na apostilha com que se encerra a quarta carta, Leibniz, paternalisticamente, atribui as conceções adversárias a uma imaturidade que também tinha tido quando era rapaz e qualifica essa imaginação como risível. 141 Para falar verdade, atribui quase todas as 135

Clarke, CP, 303-7: "The principal Occasion or Reason of the Confusion and Inconsistencies, which appear in what most Writers have advanced concerning the Nature of Space, seems to be This: that (unless they attend carefully,) men are very apt to neglect That Necessary Distinction, (without which there can be no clear Reasoning,) which ought always to be made between Abstracts and Concretes, such as are Immensitas & Immensum; & also between Ideas and Things, such as are The Notion (which is Within our own Mind) of Immensity, and the real Immensity actually existing Without us." (pp. 303-5) 136 Newton, op. cit., Liber tertius, Scholium generale, OO, III, 172. Tr. em IV. 2, nota 56. 137 Leibniz, op. cit., Ch. XXIII, § 1, G, V, 202: "Au contraire c'est plustost le concretum comme scavant, chaud, luisant, qui nous vient dans l'esprit, que les abstractions ou qualités (car ce sont elles, qui sont dans l'objet substantiel et non pas les idées) comme scavoir, chaleur, lumiere etc. qui sont bien plus difficiles à comprendre. On peut même douter, si ces Accidens sont des Estres veritables, comme en effect ce ne sont bien souvent que des rapports. L'on sçait aussi que ce sont les abstractions, qui font naistre le plus de difficultés, quand on les veut éplucher, comme scavent ceux qui sont informés des subtilités des Scolastiques, dont ce qu'il y a de plus epineux tombe tout d'un coup si l'on veut bannir les Estres abstraites et se resout a ne parler ordinairement que par concrets et de n'admettre d'autres termes dans les demonstrations des sciences, que ceux qui representent des sujets substantiels." 138 Newton, op. cit., Def. VIII, Scholium, OO, II, 8: "In tempore quoad ordinem successionis, in spatio quoad ordinem sitûs, locantur universa." 139 Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 21, G, VII, 394: "Le vulgaire s'imagine de telles choses, parce qu'il se contente de notions incompletes." 140 Leibniz, op. cit., § 29, G, VII, 396: "Ce sont des imaginations des Philosophes à notions incompletes, qui se font de l'espace une realité absolue." 141 Leibniz, op. cit., 4º escrito, P.S., G, VII, 377: "Tous ceux qui sont pour le Vuide, se laissent plus mener par l'imagination que par la raison. Quand j'étois jeune garçon, je donnay aussi dans le Vuide et dans les Atomes ; mais la raison me ramena. L'imagination étoit riante. On borne lá ses recherches ; on fixe la meditation comme avec un clou ; on croit avoir trouvé les premiers Elemens, un non plus ultra. Nous

107

conceções rivais à imaginação: o espaço absoluto, os átomos, o vazio, a liberdade de indiferença, sobretudo em completo equilíbrio, os indiscerníveis, a união entre a alma e o corpo, o espaço como propriedade divina, a extensão das almas, a diminuição das forças ativas, a possibilidade de as almas trazerem nova força para o mundo, etc. Diversas discussões ao longo da polémica têm que ver com esta qualificação: por exemplo, a do espaço imaginário, introduzida na polémica por Clarke,142 mas por ser, alegadamente, referida por Leibniz na carta à princesa que acompanhou a terceira carta. 143 Clarke protesta que os Antigos se referiam dessa forma ao espaço extramundano e não a qualquer espaço vazio, mas Leibniz riposta que a única diferença é entre o pequeno e o grande, sendo a natureza do que é afirmado a mesma, ou seja, imaginária.144 Mas talvez o mais interessante para a abordagem atual seja a associação entre a imaginação e a matemática: "Os simples matemáticos que não se ocupam senão do jogo da imaginação são capazes de forjar tais noções, mas são destruídas por razões superiores." 145 Está longe de ser caso único, em que o célebre matemático Leibniz desvaloriza os simples matemáticos e por razões análogas: numa passagem referida na secção anterior, acaba por contrapor a imaginação matemática do espaço à realidade.146 De qualquer forma, a redução à imaginação não pode deixar de ser insultuosa, tendo em conta que, exatamente, as bestas estão reduzidas à associação de imagens. 147 Mas a quem se refere Leibniz? E já agora em quem estará a pensar quando se refere às fanfarronices de certos homens neste domínio que apesar de excelentes, seriam ou um pouco demasiado precipitados, ou demasiado ambiciosos?148 Mesmo que Leibniz não esteja a pensar em Newton nesta última referência, é óbvio que está quando se refere aos simples matemáticos, o que, aliás, faz pensar se não existirá alguma contradição com a rejeição de que sejam os princípios matemáticos que decidem a filosofia de Newton que foi examinada em II. 1. Há que reconhecer que a compreensão de Newton como matemático, com dificuldades de tratar as questões metafísicas (as razões superiores), mas também a realidade concreta, tem alguma voudrions que la Nature n'allât pas plus loin, qu'elle fût finie, comme notre esprit." 142 Clarke, Streitschriften..., 3ª réplica, § 2, G, VII, 368. Ver citação em IV. 6, nota 193. 143 É o próprio Clarke que o declara, em nota, na sua edição da polémica: Clarke, CP, 75. Ariew declara que tal carta não foi encontrada (Roger Ariew, ed., intr., G. W. Leibniz and Samuel Clarke Correspondence, Indianapolis/Cambridge, Hackett Publishing Company, Inc., 2000, p. 18). Mas, de facto, Leibniz enuncia de tal forma o argumento a Rémond, relatando-lhe a polémica, em 27 de Março, que a resposta de Clarke de meados de Abril parece ser uma réplica direta: cf. G, III, 674: "les Anciens ont eu raison d'appeler l'Espace hors du monde, c'est à dire l'Espace sans le corps, imaginaire." 144 Leibniz, Streitschriften..., 4º escrito, § 7, G, VII, 372: "La même raison qui fait que l'espace hors du monde est imaginaire, prouve que tout espace vuide est une chose imaginaire, car ils ne different que du grand au petit." Terá ainda réplicas em Leibniz, op. cit., § 14, G, VII, 373; 5º escrito, § 33, G, VII, 396; § 38, G, VII, 398. Clarke apenas riposta, afirmando a realidade desses espaços, em Clarke, Streitschriften..., 4ª réplica, § 7, G, VII, 382. O argumento apresentado será apreciado na secção sobre o vazio. 145 Leibniz, op. cit., 5º escrito, § 29, G, VII, 396, ver II. 1, nota 29. 146 Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XVII, § 3, G, V, 146: "On se trompe en voulant s'imaginer un espace absolu qui soit un tout infini composé de parties, il n'y a rien de tel, c'est une notion qui implique contradiction, et ces touts infinis, et leur opposés infinement petits, ne sont de mise que dans le calcul des Geometres, tout comme les racines imaginaires de l'Algèbre." 147 Leibniz, op. cit., Ch. XI, § 11, G, V, 130: "Les bestes passent d'une imagination à une autre par la liaison, qu'elles y ont sentie autres fois ; par exemple quand le maistre prend un baston, le chien apprehende d'estre frappé. Et en quantité d'occasions les enfans de même que les autres hommes n'ont point d'autre procedure dans leurs passages de pensée à pensée." 148 Leibniz, op. cit., L. IV, Ch. II, §§ 2-7, G, V, 349: "Il arrive aussi que l'induction nous presente des verités dans les nombres et dans les figures dont on n'a pas encor découvert la raison generale. Car il s'en faut beaucoup, qu'on soit parvenu à la perfection de l'Analyse en Geometrie et en nombres, comme plusieurs se sont imaginés sur les Gasconnades de quelques hommes excellens d'ailleurs, mais un peu trop prompts ou trop ambitieux."

108

sedução. Como Burtt salienta bastante bem,149 Newton pressupôs sem qualquer crítica, muito embora não o tenha reconhecido (provavelmente, exatamente pela falta de crítica que pressupôs, como natural, o que, afinal, devia examinar), a visão da matéria herdada de Descartes, uma matéria reduzida às características matemáticas e despojada de tudo quanto a torna concreta. O próprio Newton afirma que, em investigações filosóficas, devemos abstrair ou afastar-nos dos nossos sentidos.150 A sua redução às qualidades primárias da sua noção de matéria, composta por partículas duras qualitativamente idênticas e apenas minimamente diferenciáveis pelas características geométricas da grandeza e da figura, é a visão da realidade física de um "simples matemático", mesmo que a suportar essa visão matemática estivesse um criativo espírito experimental. As próprias características dinâmicas da natureza são apenas tratadas do ponto de vista matemático, tornadas acessíveis pelo cálculo das fluxões (ou diferencial). O resto é remetido para uma teologia antimetafísica, fideísta, num certo sentido, visto a racionalidade empírica se restringir aí à interpretação, alegadamente o mais literal possível, das Escrituras, deixando toda a inquirição que a excede para a insondabilidade divina. Se se retirar este domínio religioso, podemos ver que a genialidade de Newton consiste sobretudo numa poderosa imaginação matemática, não apenas nas soluções matemáticas que encontra para a descrição dos processos físicos, mas na construção de modelos mecânicos experimentais, na argumentação hipotético-dedutiva e nas hipóteses relativas à constituição da própria matéria e relativas a certos fenómenos dinâmicos. O génio de Newton é, de facto, o da imaginação produtiva, a imaginação esquemática que determina os limites da experiência possível. 151 Leibniz, porventura, terá sido quem melhor caracterizou na época este génio newtoniano, embora julgando estar a depreciálo: uma sistemática consideração abstrata da realidade física posta ao serviço da imaginação matemática. Nem o facto concreto, na sua diversidade qualitativa, nem as supremas sínteses metafísicas lhe diziam respeito. Restringido à sua filosofia matemática e experimental, acaba por estabelecer os alicerces da ciência do futuro. A imaginação de simples matemático, como Leibniz pejorativamente qualifica o pensamento newtoniano, constitui a sua maior grandeza. 149

Burtt, MF, 231. Discorda-se aqui, porém, da visão utilitária de Burtt das razões da redução a estas características matemáticas: Burtt, MF, 305: "in the interest of clearing the field for exact mathematical analysis, men sweep out of the temporal and spatial realm all non-mathematical characteristics." A redução às caracteríscas matemáticas proveio da desconfiança galilaica e cartesiana em relação aos dados sensíveis em que a ciência aristotélica tanta confiança depositou e, por isso, tão redondamente falhou. O culminar desse processo ocorreu na formulação do problema da natureza do conhecimento por Descartes, o que, tendo originado o problema idealista, também motivou uma abordagem muito mais crítica da realidade por parte do realismo, nomeadamente tentando encontrar os critérios que permitissem reerguer o conhecimento do mundo físico desde a raiz, reduzindo o corpo ao que lhe era essencial, sem o qual não era possível pensar um corpo, a sua extensão, que era objeto da geometria, tornando-se esta a linguagem na qual todos os processos corporais reais deveriam ser expressos porque, fosse o que fosse que ocorresse com os corpos, se fosse real, não poderia ser contrário à sua essência. 150 Newton, op. cit., OO; II, 8: "in philosophicis autem abstrahendum est à sensibus." A incomodidade da declaração talvez explique a longa paráfrase da tradução de Motte: Isaac Newton, trad. ingl. Andrew Motte, The Mathematical Principles of Natural Philosophy; New York, Daniel Adee, 1846, p. 79: "in philosophical disquisitions, we ought to abstract from our senses, and consider things themselves, distinct from what are only sensible measures of them." De certa forma, acaba por ser ainda mais reveladora da nova conceção da ciência moderna: as próprias coisas estão para lá dos sentidos; então, como são conhecidas? Matematicamente, claro. 151 A inspiração para este passo é, naturalmente, a da muito newtoniana, até na pretensão de alcançar conhecimentos apodíticos no domínio da física, Crítica kantiana: Immanuel Kant, Kritik der Reinen Vernunft, Riga, Hartknoch, 1781, 2ª ed., 1787; trad. port. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão, Crítica da Razão Pura, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1985 8 [KV], I, 2ª parte, Livro Segundo, Cap. I, pp. 181-187, particularmente as pp. 183-184.

109

Curiosamente, também Clarke atribui à imaginação a conceção do rival, nomeadamente a composição por partes do infinito,152 como já foi referido na secção anterior. Também o faz, considerando a extensão leibniziana aos corpos humanos do que Descartes imaginava só para as bestas, ou seja, que funcionassem como máquinas,153 mas em geral a acusação está longe de ter o papel estruturador da crítica que tem em Leibniz. 5. Os próprios espaço e tempo: absolutos ou relativos Quase no início da terceira carta, Leibniz considera que alguns ingleses modernos fizeram do espaço real absoluto um ídolo, não em sentido teológico, mas no sentido filosófico de Bacon.154 Esta noção de ídolo é tirada do Novum Organum: entre as suas quatro noções de ídolo, as duas aqui referidas são relativamente diferentes uma da outra. Os idola tribus são relativos a antecipações da natureza comuns a todos os homens.155 Os idola specus são os criados no próprio indivíduo quer por disposições próprias, quer como efeito da educação. 156 É difícil saber em que Leibniz estaria a pensar para lá da intenção insultuosa. Eventualmente, pode estar a dizer que a conceção newtoniana resultaria da conjunção entre preconceitos de senso comum e a formação resultante do seu meio, nomeadamente de Inglaterra e de Cambridge (afinal, aí se desenvolveram as conceções neoplatónicas de More e Cudworth). Leibniz volta, aliás, a mencionar estes ídolos mais duas vezes, mas só referindo os primeiros. É possível que esta acusação esteja associada à anteriormente examinada, a da imaginação, visto Bacon associar os primeiros ídolos à satisfação da imaginação. 157 O tema aqui em causa é também referido entre os ídolos gerais (infinitude do mundo, infinitude da eternidade, infinita divisibilidade de uma linha)158 e pode ser nisso que Leibniz estaria a pensar, tendo em conta, como foi visto, que considera as noções de espaço absoluto, vazio, 152

Clarke, Streitschriften..., 4ª réplica, §§ 11-12, G, VII, 383-4. Clarke, op. cit., 4ª réplica, § 92, G, VII, 432. 154 Leibniz, Streitschriften..., 3º escrito, § 2, G, VII, 363: "l'Espace reel absolu, idole de quelques Anglois modernes. Je dis idole, non pas dans un sens theologique, mais Philosophique, comme le Chancelier Bacon disoit autresfois, qu'il y a idola tribus, idola specus." 155 Bacon, NO, L. I, Aph. XLI, 52-3: "Idola tribus sunt fundata in ipsa natura humana, atque in ipsa tribu seu gente hominum. Falso enim asseritur, sensum humanum esse mensuram rerum; quin contra, omnes perceptiones, tam sensus quam mentis, sunt ex analogia hominis, non ex analogia universi. Estque intellectus humanus instar speculi inaequalis ad radios rerum, qui suam naturam naturae rerum immiscet, eamque distorquet et inficit." 156 Bacon, NO, Aph. XLII, 53: "Idola specus sunt idola hominis individui. Habet enim unusquisque (praeter aberrationes naturae humanae in genere) specum sive cavernam quandam individuam, quae lumen naturae frangit et corrumpit: vel propter naturam cujusque propriam et singularem; vel propter educationem et conversationem cum aliis; vel propter lectionem librorum, et authoritates eorum quos quisque colit et miratur". 157 Bacon, NO, Aph. XLVII, 55-6: "Intellectus humanus illis, quae simul et subito mentem ferire et subire possunt, maxime movetur; a quibus phantasia impleri et inflari consuevit". Mas já antes, em relação às antecipações em geral: Bacon, NO, Aph. XXVIII, 50: "Quin longe validiores sunt ad subeundum assensum anticipationes, quam interpretationes; quia ex paucis collectae, iisque maxime quae familiariter occurrunt, intellectum statim perstringunt, et phantasiam implent". 158 Bacon, NO, Aph. XLVIII, 56: "Gliscit intellectus humanus, neque consistere aut acquiescere potis est, sed ulterius petit; at frustra. Itaque incogitabile est ut sit aliquid extremum aut extimum mundi, sed semper quasi necessario occurrit ut sit aliquid ulterius. Neque rursus cogitari potest quomodo aeternitas defluxerit ad hunc diem; cum distinctio illa, quae recipi consuevit, quod sit infinitum a parte ante, et a parte post, nullo modo constare possit; quia inde sequeretur, quod sit unum infinitum alio infinito majus, atque ut consumatur infinitum, et vergat ad finitum. Similis est subtilitas de lineis semper divisibilibus, ex impotentia cogitationis. At majore cum pernicie intervenit haec impotentia mentis in inventione causarum: nam cum maxime universalia in natura positiva esse debeant, quemadmodum inveniuntur, neque sunt revera causabilia; tamen intellectus humanus, nescius acquiescere, adhuc appetit notiora." 153

110

átomos, imaturas imaginações que tentam encontrar respostas últimas e fáceis para problemas bem mais complexos e até paradoxais (como na questão do contínuo). Mas a verdade é que Leibniz poderia ser com igual facilidade alvo do insulto, sem sequer ir buscar o último tipo de ídolos, porque a sua teoria da harmonia pré-estabelecida podia ser considerada uma antecipação sobre a natureza, baseada numa crença generalizada, a de supor, prontamente, uma maior ordem e conformidade nas coisas do que aquela que se encontra159, apesar dos exageros desmesurados em Leibniz e no seu otimismo, o que, por sua vez, parece corresponder à razão porque junta os ídolos de cada homem e da sua vivência (idola specus) aos aqui mais abordados (idola tribus), no caso da conceção newtoniana de espaço, insuscetível de ser explicada apenas pelos ídolos comuns a todos os homens. Os aspetos mais estritamente metafísicos, sem implicações físicas diretas, das conceções de espaço e tempo, já foram examinadas. As conceções mais estritamente cosmológicas só se começam a desenhar na terceira vaga da polémica quando Leibniz apresenta as suas definições de espaço e tempo. “Considero o espaço como alguma coisa puramente relativa, tal como o tempo; como uma ordem de coexistências, tal como o tempo é uma ordem de sucessões. Pois o espaço marca, em termos de possibilidade, uma ordem das coisas que existem ao mesmo tempo, enquanto existem juntas, sem entrar na sua forma de existir. E, quando vemos muitas coisas juntas, apercebemo-nos dessa ordem das coisas entre elas.” 160 Quando Clarke riposta que o espaço não depende nem da ordem, nem da situação, nem da existência dos corpos,161 Leibniz reconhece apenas que, de facto, não depende da situação, visto ser a ordem, seguida previamente por Deus, que faz com que os corpos sejam situáveis. Mas sem criaturas, embora não fossem nada, só existiriam como ideias de Deus.162 Deve-se dizer que, talvez devido ao facto de Leibniz ignorar aquele que será o argumento fundamental de Clarke e Newton nesta secção, Clarke adota uma atitude que só se pode entender como sendo de má-fé, equiparando os termos ordem e situação como se fossem sinónimos e a formulação leibniziana como se fosse circular. 163 Sobre esta questão relativa à definição de tempo e espaço, Leibniz apenas reiterará, protestando contra a ridicularização clarkiana, a definição já dada, concluindo que o espaço abstrato, entendido como ideal, é a ordem de situações concebidas como possíveis. 164 A ordenação das possibilidades de situações não é apenas relativa às possibilidades de mundos, mas também das possibilidades no mundo. Mas já antes desta última menção, 159

Bacon, NO, Aph. XLV, 54: "Intellectus humanus ex proprietate sua facile supponit majorem ordinem et aequalitatem in rebus, quam invenit: et cum multa sint in natura monodica, et plena imparitatis, tamen affingit parallela, et correspondentia, et relativa, quae non sunt." 160 Leibniz, op. cit., 3º escrito, § 4, G, VII, 363: "je tenois l'Espace pour quelque chose de purement relatif, comme le Temps ; pour un ordre des Coexistences, comme le temps est un ordre de successions. Car l'espace marque en termes de possibilité un ordre des choses qui existent en même temps, en tant qu'elles existent ensemble, sans entrer dans leur manieres d'exister particulieres : et lors qu'on voit plusieurs choses ensemble, on s'apperçoit de cet ordre des choses entre elles." 161 Clarke, op. cit., 3ª réplica, § 16, G, VII, 371: "Space, does not at all depend on the Existence or Order or Situation of Bodies." 162 Leibniz, op. cit., 4º escrito, § 41, G, VII, 376-7: "On dit que l'Espace ne depend point de la situation des corps. Je reponds qu'il est vray qu'il ne depend point d'une telle ou telle situation des corps ; mais il est cet ordre qui fait que les corps sont situables, et par lequel ils ont une situation entre eux en existant ensemble, comme le temps est cet ordre par rapport a leur position successive. Mais s'il n'y avoit point de creatures, l'espace et le temps ne seroient que dans les idées de Dieu." 163 Clarke, op. cit., 4ª réplica, § 41, G, VII, 387: "What the meaning of these words is; An Order (or Situation) which makes Bodies to be Situable; I understand not. It seems to me to amount to This, that Situation is the cause of Situation." 164 Leibniz, op. cit., 5º escrito, § 104, G, VII, 415: "l'espace abstrait est cet ordre de situations, conçues comme possibles. Ainsi c'est quelque chose d'ideal".

111

Leibniz havia adicionado uma nova abordagem, a da formação, nos homens, desse idola tribus do espaço absoluto. Segundo Leibniz, os homens partem da específica ordem de coexistência que observam, na qual verificam a situação dos corpos pela distância entre eles. Quando algum altera a sua posição e um outro a toma, chama-se a essa posição, tomada em relação aos outros, o lugar e a alteração, um movimento. Se muitos ou todos levarem a cabo tais movimentos, pode-se seguir as mudanças de situação entre eles. Se se supuser ou fingir que alguns corpos permaneceram fixos, as mudanças dos outros, assumindo a posição relativamente aos fixos antes assumida por outros, permitem a determinação de lugares que supostamente permanecem por relação aos supostos fixos. O espaço é o que resulta de todos os lugares tomados em conjunto. É importante distinguir aqui entre o lugar e a situação. A situação ou a relação de situação é um predicado acidental do corpo e os acidentes podem suceder-se nos corpos, em função das mudanças, mas não podem ser transferidos de corpo para corpo. Aliás, a situação, entre dois corpos que sucessivamente ocupam a mesma posição em relação a corpos fixos, não poderia ser a mesma porque, pelo menos entre os dois, seria diferente. Assim, a ideia de lugar é já uma abstração matemática, ideal na linguagem de Leibniz, esquemática dir-se-ia, correspondente a esse "mesmo" que na realidade não pode existir porque seria uma espécie de atributo sem sujeito.165 Embora apresente o tempo, analogicamente, como tão ideal como o espaço, a verdade é que a sua conceção da ordem sucessiva, embora não seja apenas corporal e até seja mais radicalmente ligado com a verdadeira substância (monádica), visto estar associado à lei da série que regula a natureza de cada entidade, acaba por ser ainda mais abstraída da verdadeira realidade devido à sua natureza evanescente: "Não se pode dizer que uma certa duração é eterna; mas pode-se dizer que as coisas que duram sempre são eternas, ganhando sempre uma duração nova. Tudo o que existe no tempo e na duração, sendo sucessivo, perece continuamente: e como poderia uma coisa existir eternamente, quando, para falar exatamente, nunca chega a existir? Pois como poderia existir uma coisa de que nunca, seja que parte for, existe? Do tempo, não existem jamais senão instantes e o instante nem sequer é uma parte do tempo. Seja quem for que considerar estas observações, compreenderá bem que o tempo não poderia ser senão uma coisa ideal; e a analogia do tempo e do espaço permitirá concluir que um é tão ideal como o outro."166 Há que relacionar com esta passagem, não só a tese da produção contínua, na 165

Leibniz, op. cit., § 47, G, VII, 400-2. A passagem é muito grande e basta apresentar alguns excertos: "pour avoir l'idée de la place, et par consequent de l'espace, il suffit de considerer ces rapports et les regles de leur changemens, sans avoir besoin de se figurer icy aucune realité absolue hors des choses dont on considere la situation. [...] Place est ce qui est le même en momens differens à des existens quoyque differens, quand leur rapports de coexistence avec certains existens, qui depuis un de ces momens à l'autre sont supposés fixes, conviennent entierement. Et existens fixes sont ceux, dans lesquels il n'y a point eu cause du changement de l'ordre de coexistence avec d'autres, ou (ce qui est le même) dans lesquels il n'y a point eu de mouvement. Enfin Espace est ce qui resulte des places prises ensemble. Et il est bon icy de considerer la difference qu'il y a entre la place et entre le rapport de situation du corps qui occupe la place. [...] Car deux sujets differens [...] ne sauroient avoir precisement la même affection individuelle, un même accident individuel ne se pouvant point trouver en deux sujets, ny passer de sujet en sujet. Mais l'esprit non content de la convenance, cherche une identité, une chose qui soit veritablement la même, et la conçoit comme hors de ces sujets ; et c'est ce qu'on appelle icy place et espace. Cependant cela ne sauroit etre qu'ideal". 166 Leibniz, op. cit., § 49, G, VII, 402-3: "On ne peut point dire qu'une certaine durée est etemelle ; mais on peut dire que les choses qui durent tousjours, sont etemelles, en gagnant tousjours une durée nouvelle. Tout ce qui existe du temps et de la duration, étant successif, perit continuellement. Et comment une chose pourroit elle exister eternellement, qui à parler exactemenl n'existe jamais? Car comment pourroit exister une chose, dont jamais aucune partie n'existe? Du temps n'existent jamais que des instans, et l'instant n'est pas même une partie du temps. Quiconque considerera ces observations, comprendra bien

112

versão peculiar de Leibniz já abordada em II. 5, mas também o seu entendimento do instante, tal qual o ponto, como extremidades.167 Curiosamente, ao menos de um ponto de vista inteligível, como se verá mais tarde quando se considerar o movimento, o tempo é considerado de forma similar a Newton, como um contínuo simples e uniforme."168 Embora muitas vezes, eventualmente por questões estratégicas, Leibniz recorra a Descartes ou aos cartesianos para defender posições suas, a verdade é que, em geral, não deixa de ter sempre a preocupação de se distinguir deles. Neste caso, importa-lhe distinguir entre matéria e espaço, estabelecendo mais uma das suas muitas analogias, desta vez, com a relação entre o tempo e o movimento. O tempo e o espaço não existiriam se não ocorresse qualquer movimento ou não existisse qualquer matéria, mas isso não significa que sejam a mesma coisa. 169 Tempo e espaço são relativos a movimento e matéria, sendo estes derivados, manifestações fenoménicas das substâncias, entendidas como forças primitivas. Mas isso será tratado adiante. O grande argumento que Clarke utiliza para sustentar o espaço e tempo absolutos, no âmbito estrito da sua definição, é o de que estes constituiriam quantidades. Existe um menosprezo evidente por parte de vários comentadores deste argumento, havendo mesmo quem defenda que Newton não teria ficado muito contente com esta abordagem do tema. 170 Mas que espaço e tempo decorriam necessariamente da existência de Deus e que eram quantidades reais, não redutíveis às mensuráveis e relativas,171 era a posição reiterada nas sucessivas edições dos Principia, pelo que se Newton não estivesse contente era, em primeiro lugar, contra si que se deveria virar. Quanto à questão se seriam atributos ou propriedades, já foi visto que não era nada claro que isso estivesse inequivocamente definido na própria mente de Newton, razão pela qual a precisão só surgirá uns anos mais tarde. O argumento surge na terceira réplica para negar que o espaço e o tempo fossem situação e ordem, visto estas não serem quantidades.172 Frente à omissão de resposta ao argumento por parte de Leibniz, volta a insistir por três vezes, na quarta réplica, acrescentando na última menção que "a quantidade do tempo pode ser maior ou menor e, porém, a ordem continuar a mesma. A que le temps ne sauroit etre qu'une chose ideale. Et l'Analogie du temps et de l'espace fera bien juger, que l'un est aussi ideal que l'autre." 167 Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XIV, § 10, G, V, 138: "le point et l'instant ne sont point de parties du temps ou de l'espace, et n'ont point de parties non plus. Ce sont des extremités seulement." 168 Leibniz, op. cit., § 16, G, V, 139: "Nos perceptions n'ont jamais une suite assés constante et regulière pour repondre à celle du temps qui est un continu uniforme et simple, comme une ligne droite." 169 Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 62, G, VII, 406: "Je ne dis point que la matiere et l'espace est la même chose ; je dis seulement qu'il n'y a point d'espace, où il n'y a point de matiere ; et que l'espace en luy même n'est point une realité absolue. L'espace et la matiere different comme le temps et le mouvement. Cependant ces choses, quoyque differentes, se trouvent inseparables." 170 Vailati, LC, ch. 1, 36: "For one thing, since Clarke insisted that space and time are quantities, making them divine attributes leads to the subsumption of God under the category of quantity, a view Newton opposed." 171 Newton, Philosophiæ naturalis..., Def. VIII, Scholium, OO, II, 11: "Quantitates relativæ non sunt igitur eæ ipsæ quantitates, quarum nomina præ se serunt, sed sunt earum mensuræ illæ sensibiles (veræ an errantes) quibus vulgus, loco quantitatum mensuratarum, utitur. At si ex usu definiendæ sunt verborum significationes; per nomina illa Temporis, Spatii, Loci & Motûs proprié intelligendæ erunt hæ mensuræ sensibiles; & sermo erit insolens & purè mathematicus, si quantitates mensurate hic intelligantur. Proinde vim inferunt sacris literis, qui voces hasce de quantitatibus mensuratis ibi interpretatur. Neque minùs contaminant Mathesin & Philosophiam, qui quantitates veras cum ipsarum relationibus & vulgaribus mensuris confundunt." Também já supunha espaço, tempo e movimento como quantidades em Isaac Newton, op. cit., p. 6, no início do Escólio. 172 Clarke, Streitschriften..., 3ª réplica, § 4, G, VII, 369: "Space and Time are Quantities; which Situation and Order are not."

113

ordem das coisas que se sucedem umas às outras no tempo não é o próprio tempo porque podem suceder-se umas às outras mais depressa ou mais devagar, na mesma ordem de sucessão, mas não ao mesmo tempo." 173 Seria de esperar que Leibniz argumentasse que tais quantidades resultavam de uma consideração abstrata das relações que, depois de abstraídas das coisas que predicavam, poderiam ser consideradas isoladamente como se fossem quantidades puras. Mas não foi isso que Leibniz disse. De facto, permitiu que a discussão fosse posta nos termos enunciados por Newton e replicados por Clarke: "a ordem também tem a sua quantidade; tem aquilo que precede e aquilo que se segue; há distância ou intervalo. As coisas relativas têm a sua quantidade, tanto quanto as absolutas. Por exemplo, as razões ou proporções matemáticas têm a sua quantidade e medem-se por logaritmos; e, no entanto, são relações. Assim, mesmo que o tempo e o espaço consistam em relações, não deixam de ter a sua quantidade."174 Mais ainda, nega que a ordem da sucessão possa ser a mesma, aumentando ou diminuindo a quantidade de tempo, afirmando implicitamente o contínuo, sem qualquer espécie de vazio possível: "se o tempo for maior, haverá mais estados sucessivos interpostos; e se for menor, haverá menos, visto não haver qualquer vazio nem de condensação, nem de penetração, por assim dizer, tanto no tempo, quanto nos lugares."175 A primeira rejeição da argumentação leibniziana diz respeito à distância e ao intervalo: "a distância, o intervalo ou a quantidade do tempo ou do espaço, na qual uma coisa se segue à outra, é uma coisa inteiramente distinta da situação ou da ordem e não constitui qualquer quantidade da situação ou da ordem; a situação ou a ordem pode ser a mesma quando a quantidade do tempo ou do espaço intervenientes for muito diferente." 176 Aqui, nota-se a falta de explanação da perspetiva leibniziana. Por exemplo, se Alexandre tem Teresa 4 metros à sua esquerda, pode-se dizer que tem como predicado relativo a Teresa estar 4 metros à sua esquerda, sendo a quantidade já uma determinação adicional da relação. Imagine-se que o predicado de Teresa, por sua vez, é o de ter Alexandre à sua frente, também a 4 metros. Segundo Clarke, apenas os predicados "à sua esquerda" e "à sua frente" seriam relativos, indicadores de ordem ou de situação, sendo os quatro metros quantidades absolutas – de facto, para ele, a ordem e a situação seria a mesma se tivessem a distância de 20 metros ou 30 quilómetros entre eles. Como é que a situação poderia ser a mesma se a relação, embora estabelecida com a mesma direção, é estabelecida a 2 metros e não à distância de uma estrela? E como poderia a ordem não mudar, se se passasse a ter milhares de corpos mais próximos, no segundo caso em relação ao primeiro? E mesmo que todos os corpos se distanciassem proporcionalmente, a diferença na situação seria dada, quanto mais não seja, pela 173

Clarke, op. cit., 4ª réplica, § 41, G, VII, 387-8: "the Quantity of Time may be greater or less, and yet That Order continue the same. The Order of things succeeding each other in Time, is not Time itself: For they may succeed each other faster or slower in the same Order of Succession, but not in the same Time." As anteriores menções são: ibidem, § 14, G, VII, 384; §§ 16-17, G, VII, 385. 174 Leibniz, op. cit., 5º escrito, § 54, G, VII, 404: "l'ordre a aussi sa quantité ; il y a ce qui precede et ce qui suit, il y a distance ou intervalle. Les choses Relatives ont leur quantité, aussi bien que les Absolues : par exemple, les Raisons ou proportions dans les Mathematiques ont leur quantité, et se mesurent par les Logarithmes ; et cependant ce sont des Relations. Ainsi quoyque le Temps et l'Espace consistent en rapports, ils ne laissent pas d'avoir leur quantité." 175 Leibniz, op. cit., § 105, G, VII, 415: "si le temps est plus grand, il y aura plus d'états successifs pareils interposés, et s'il est plus petit, il y en aura moins, puisqu'il n'y a point de vuide, ny de condensation ou penetration, pour ainsi dire, dans les temps, non plus que dans les lieux." 176 Clarke, op. cit., 5ª réplica, § 54, G, VII, 387-8: "But the Distance, Interval, or Quantity of Time or Space, wherein one Thing follows another, is entirely a distinct Thing from the Situation or Order, and does not constitute any Quantity of Situation or Order: The Situation or Order may be the same, when the Quantity of Time or Space intervening is very different."

114

relação ao próprio corpo. Se Alexandre tem 2 metros de altura e Teresa está a 4, a situação não é mesma, por relação com a medida do corpo de Alexandre, do que a que tiver se ela estiver a 20 metros. Leibniz nunca teve a oportunidade de responder, mas seria natural recorrer à resposta já dada no § 47: para ele, Clarke partia sempre do suposto que o espaço seria um pressuposto primitivo de que se partia para a apreciação das coisas espaciais, quando, pelo contrário, o que se fazia era medir as relações concretas por meios concretos (por exemplo, uma vara de um metro) e, depois, abstrair, no exemplo dado, dos predicados de Alexandre e Teresa, apenas considerando a medida da relação, assim parecendo que se tratava de uma quantidade pura.177 Broad critica a noção de Leibniz de relação,178 com base na redução de Leibniz da relação a qualidades. Deve-se considerar que tal noção de qualidade é muito vasta, incluindo todas as modificações da substância.179 Entre essas modificações existem predicados relativos, como Broad acaba por frisar. Além disso, as relações, mesmo quando consideradas como ligações entre entidades, não são estritamente mentais, no sentido da mente humana, correspondendo à ordenação divina. 180 Os próprios fenómenos bem fundados baseiam-se na perceção confusa de entidades reais.181 Isto significa que, mesmo que toda a relação seja um ser de razão (embora com fundamento na realidade),182 pode ser atribuída adequadamente aos sujeitos ou ainda mais abstraída da realidade. Ora, o que um predicado correspondente à realidade tem de ser é inerente a uma e só uma substância primeira. É isso que o § 47 procura mostrar. O que não faz sentido é dizer que existem acidentes de coisa nenhuma e é isso que, abstraído das coisas relativamente às quais ocorreram, só tem existência mental, sem fundamento real, como acontece, em geral, com toda a matemática.183 Que é possível fazer enunciados relativos em que as relações se atribuem a várias coisas é óbvio. O que Leibniz diz é que isso é uma abstração das relações concretas entre várias coisas, consideradas em conjunto (como, aliás, ocorre com os lugares). Neste caso, não só a relação seria tomada independentemente dos sujeitos, como nem seria considerada como tal, sendo vista como uma quantidade pura por, de facto, a quantidade ter sido aplicada à relação. A argumentação subsequente de Clarke incide, longamente sobre os rácios e proporções, defendendo que estes não são quantidades, visto serem proporções de 177

Embora não se estivesse aqui a seguir a formulação de Sklar, poder-se-á verificar que a mesma é razoavelmente concordante com esta, muito embora se centre apenas nos instrumentos de medição: Lawrence Sklar, Space, Time, and Spacetime, Berkeley, University of California Press, 1977, reimpr. 1984 [SS], Ch. III, B. 2, p. 169. A distinção entre um espaço imaginário porque abstrato e a distância concreta e, logo, real é também dada neste passo: Leibniz, Carta para Des Bosses de 29 de Maio de 1716, G, II, 515: "spatium absolutum aliquid imaginarium est, et nihil ei reale inest, quam distantia corporum". 178 Broad, LA, 36-9. Reparar-se-á que o primeiro exemplo dado da correspondência com Des Bosses é perfeitamente idêntico aos três dados no § 47 do 5º escrito desta correspondência. O que está em causa não é tanto não poderem existir acidentes qualitativos relativos (como a paternidade de David), mas pensá-los como sendo relativos a duas entidades ao mesmo tempo. 179 Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XII, § 3, G, V, 132: "Je crois que les qualités ne sont que des modifications des substances et l'entendement y ajoute les relations." 180 Leibniz, op. cit., Ch. XXX, § 4, G, V, 246. Ver IV. 4, nota 127. 181 Leibniz, op. cit., Ch. XII, § 3, G, V, 132: "Cependant quoyque les relations soyent de l'entendement, elles ne sont pas sans fondement et realité. Car le premier entendement est l'origine des choses ; et même la realité de toutes choses, excepté les substances simples, ne consiste que dans le fondement des perceptions des phénomenes des substances simples." 182 Leibniz, op. cit., L. II, Ch. XXV, § 1, G, V, 210. 183 Não é possível ignorar a semelhança com a abordagem aristotélica do procedimento matemático, e. g., Aristóteles, ed. trilingüe de Valentín García Yebra, Tά Mετά τά Φυσικά, 1ª ed., Madrid, Ed. Gredos, 197011; 2ª ed, 198211; 1ª reimpr. 19879, pp. 545-6, K, 1061ª28-1061b3, especialmente tendo em conta a depreciação da simples matemática referida na secção anterior.

115

quantidades 184 (de facto, relações de quantidade 185), muito embora acabe por admitir duplicar e triplicar a proporção, o que admite, sem o dizer, quantidades de proporções – o que vai dar ao que Leibniz dizia, ou seja, que as relações também podem ter as suas quantidades. Mas o que Clarke quer é distinguir relações das quantidades absolutas e, no caso das proporções, cingi-las àquelas: "o tempo e o espaço não são de todo da natureza das proporções, mas da natureza das quantidades absolutas às quais as proporções pertencem."186 É evidente que, mesmo não o dizendo, pressupõe sempre um carácter substancial a estas quantidades absolutas às quais se predica relações, mas que não podem medir relações. "O espaço de um dia suporta uma muito maior proporção para uma hora do que para meio dia, e, porém, permanece, não obstante ambas as proporções, a mesma quantidade invariável de tempo. Por isso, o tempo (e o espaço, da mesma forma, pelo mesmo argumento) não é da natureza de uma proporção, mas uma quantidade absoluta e invariável à qual diferentes proporções pertencem."187 É caso para perguntar se um dia também não pode medir uma relação da terra com o sol (visto só se saber que foi dada uma volta pela referência dada pelo sol)? Finalmente, considera uma contradição o último argumento referido de Leibniz: "Aquilo que aduz a respeito do tempo chega claramente à seguinte absurdidade: que o tempo é apenas a ordem das coisas sucessivas e, porém, é uma verdadeira quantidade; porque é, não apenas a ordem das coisas sucessivas, mas também a quantidade da duração interveniente entre cada um dos particulares que se sucedem nessa ordem."188 O que Leibniz diz é que a quantidade do tempo corresponde à quantidade de estados sucessivos, havendo sempre infindos estados sucessivos porque nunca há vazio de espécie alguma. Como é que disso se chega ao que Clarke disse? A questão é que, quer no espaço, quer no tempo, Clarke nunca admite sequer a possibilidade de o seu pressuposto poder ser alvo de uma interpretação diferente, supõe sempre as quantidades absolutas de um espaço e de um tempo absolutos, pelo que todos os argumentos inevitavelmente concluem o que sempre pressupõe. 6. O próprio espaço: vazio ou pleno Entre os problemas a considerar para compreender as conceções respetivas do espaço, um dos mais importantes é o do vazio ou do pleno, visto não só ser pressuposto fundamental da física newtoniana o vazio, mas também, como foi visto em II. 3, ser uma das fundamentais aplicações leibnizianas do princípio da razão suficiente, o pleno. Parte da argumentação, a que envolve a conceção atómica ou o movimento, será considerada mais adiante. Aqui só se tratará a questão da própria possibilidade de vazio ou vácuo perfeito que nada mais deixasse que não o espaço. A questão está implícita, desde a primeira réplica de Clarke, numa passagem já citada a propósito do primeiro assunto abordado em II. 1., na qual se afirmava que a matéria era a menor e mais 184

Clarke, op. cit., 5ª réplica, § 54, G, VII, 429: "Proportions are not Quantities, but the Proportions of Quantities. If they were Quantities, they would be the Quantities of Quantities; which is absurd." 185 ibidem: "Proportion is not the comparative Magnitude it self, but the Comparison or Relation of the Magnitude to Another." 186 Clarke, op. cit., § 54, G, VII, 430: "Time and Space are not of the Nature of Proportions at all, but of the Nature of absolute Quantities to which Proportions belong." 187 ibidem: "the Space of a Day, bears a much greater Proportion to an Hour, than it does to half a Day; and yet it remains, notwith standing Both the Proportions, the same unvaried Quantity of Time. Time therefore (and Space likewise by the same Argument) is not of the Nature of a Proportion, but of an absolute and unvaried Quantity, to which different Proportions belong." 188 Clarke, op.cit., §§ 104-106, G, VII, 435: "What he alledges concerning Time likewise, amounts plainly to the following Absurdity: that Time is only the Order of Things successive, and yet is truly a Quantity; because it is, not only the Order of Things successive, but also the Quantity of Duration intervening between each of the Particulars succeeding in That Order. Which is an express Contradiction."

116

desprezível parte do Universo.189 Leibniz interpreta, corretamente, a tese pela implícita afirmação de um espaço que ocuparia a maior parte do Universo, o que considera uma tese ainda pior do que a do materialismo atomista antigo, visto que, ao reduzir a matéria, se reduz o número de coisas onde Deus teria a ocasião de exercer a sua sabedoria e o seu poder. 190 Clarke relativiza, em resposta, a associação ao materialismo atomista antigo, supondo uma grande variedade de filósofos que afirmavam a existência de vácuo, ao passo que responde ao argumento teológico com a afirmação da existência de muitas outras coisas que não as materiais, suscetíveis de ser objeto do poder e sabedoria de Deus.191 Na sequência desta passagem, avança com o argumento já abordado em II. 3, de, seguindo o argumento leibniziano, terem que existir infinitos homens ou elementos de qualquer outra espécie. Aí se poderá ver a fraca réplica dada por Leibniz a este último argumento. De resto, considera que o argumento de que possam existir outras coisas (no vazio, acrescenta, o que não tinha sido dito, ainda, por Clarke), em nada desmente que pudessem existir mais corpos, caso existisse vazio. Porém, não deixa de acrescentar que nenhuma substância criada pode existir sem matéria, o que será tratado noutra parte desta dissertação.192 Nesta altura, como já foi visto em IV. 4, intervém uma passagem perdida exterior aos textos da polémica, onde Leibniz assimilava o espaço vazio newtoniano ao espaço imaginário dos Antigos, à qual Clarke responde que tal expressão apenas se aplicava ao espaço extramundano e não a qualquer espaço sem corpos. Pretende que isso, porém, não significaria que esse espaço não fosse real, mas que apenas se ignoraria o que aí existiria. No entanto, mesmo que se pretenda que esse espaço não seria real, isso não significa que se tenha provado a sua não existência. 193 Estranhamente, não explica porque não seria um nada, acabando por fazê-lo apenas numa nota à sua edição da correspondência, onde afirma que "de nada, não há dimensões, nem magnitude, nem quantidade, nem propriedades."194 Já se viu que Leibniz não se deixaria persuadir por este argumento porque as meras relações e as entidades ideais, como as matemáticas, podem ser quantificadas, mas não deixa de ser curioso o facto de, apesar de considerar a 189

Clarke, op. cit., 1ª réplica, § 1, G, VII, 353. Leibniz, Streitschriften..., 2º escrito, § 2, G, VII, 356. Ver II. 3, nota 66. 191 Clarke, op. cit., 2ª réplica, § 2, G, VII, 360. 192 Leibniz, op. cit., 3º escrito, § 9, G, VII, 365: "J'avois remarqué, qu'en diminuant la quantité de la matiere, on diminue la quantité des objects, où Dieu peut exercer sa bonté. On me répond, qu'au lieu de la matiere, il y a d'autres choses dans le vuide, où il ne laisse pas de l'exercer. Soit. Quoyque je n'en demeure point d'accord, car je tiens que toute substance creée est accompagnée de Matiere. Mais soit, dis-je ; je réponds, que plus de matiere etoit compatible avec ces mêmes choses, et par consequent, c'est tousjours diminuer le dit objet." 193 Clarke, op. cit., 3ª réplica, § 2, G, VII, 368: "The Ancients did not call All Space which is void of Bodies, but only extramundane Space, by the Name of Imaginary Space. The meaning of which, is not, that such Space is not real; but only that We are wholly ignorant what kinds of Things are in that Space. Those Writers, who by the word, imaginary, meant at any time to affirm that Space was not real, did not thereby prove that it was not real." Quanto à atribuição aos Antigos, parece nascer da crítica aristotélica feita na Física (Aristotle, Jonathen Barnes, ed., The Complete Works of Aristotle, Princeton, Princeton University Press, 1984. 4th. pr. 1991, Vol. I, trad. ingl. R. P. Hardie and R. K. Gaye, Physics, p. 41, Livro 3, § 4, 203b.22-29) às conceções infinitistas e vacuistas com base na aparente inexaurível natureza, nos pensamentos, de certas sucessões como o número ou o espaço (incluindo, explicitamente, o espaço para lá do [último] céu, 203b.26). Dos pensamentos, passou-se para a imaginação pelo menos numa das traduções latinas do próprio Aristóteles e, sobretudo, nos comentários de Averróis, mantendo claramente a inspiração peripatética pois tratava-se de considerar tal conceção uma produção mental abstrata sem fundamento real. Cf. Edward Grant, Much Ado about Nothing, Cambridge & other pl., Cambridge University Press, 1981; dig version, 2008, p. 117. Significa isso que, muito embora se possam estar a referir a conceções Antigas (pitagóricas, atomistas, estoicas, etc.), o qualificativo "imaginário" é medieval, muito embora sob inspiração aristotélica. 194 Clarke, CP, 77: "Of Nothing, there are no Dimensions, no Magnitude, no Quantity, no Properties." 190

117

extensão dos corpos meramente fenoménica, fazer questão de atribuir as três dimensões à matéria e não ao espaço, isto apesar de as reduzir a verdades de razão.195 Frente à objeção de que o espaço fora do mundo é idêntico ao que se supõe entre os corpos, diferenciando-se apenas pelo tamanho, sendo, pois, tão imaginário um como o outro,196 Clarke resolve-se, finalmente, a concretizar a argumentação, recorrendo àquela que os círculos científicos britânicos consideravam, na altura, a prova cabal da existência do vazio, as bombas de vácuo. Antecipando, porém, as objeções de Leibniz, reconhece a possibilidade dos recipientes conterem alguma matéria, mas tão restrita que não é identificável qualquer resistência, não podendo ser a subtileza e fineza da matéria a causa dessa falta de resistência.197 Aliás, a resistência torna-se, como em Newton, um argumento autónomo sustentador do vazio, visto, alegadamente, só ele explicar, as diferenças de resistência como nos igualmente subtis, finos e fluidos mercúrio e água. Naturalmente, Leibniz, recorrendo mais uma vez à autoridade, neste caso conjunta, de cartesianos e de aristotélicos, nega que as experiências de Guéricke e Torricelli provem a existência de vazio,198 devido aos mesmos raios de luz (aos quais acrescenta os magnéticos) e outras matérias subtis que Clarke já havia referido. A diferença estaria apenas entre graus de espessura, entre uma matéria mais fina e outra mais grosseira, assim como a água seria mais fina que as matérias sólidas. Ora, frente ao exemplo de Clarke que pretendia mostrar que a subtileza e a fineza não podiam ser a causa da falta de resistência, Leibniz replica que não é a quantidade de matéria, mas sim a dificuldade em ceder, como na madeira em comparação com a água, que explica a resistência. 199 Em seguida, algo insolitamente, Leibniz emenda Clarke com Newton 195

Leibniz, Essais de Théodicée, 3ª parte, § 351, G, VI, 323: "Mais il n'est pas ainsi des dimensions de la matiere : le nombre ternaire y est determiné, non pas par la raison du meilleur, mais par une necessité Geometrique : c'est parce que les Geometres ont pu demontrer qu'il n'y a que trois lignes droites perpendiculaires entre elles, qui se puissent couper dans un même point." 196 Leibniz, Streitschriften..., 4º escrito, § 7, G, VII, 372, ver IV. 4, nota 144. Clarke ainda voltará a referir a questão do espaço vazio extramundano na 5ª réplica (§§ 26-32), mas já no contexto da temática dos limites do universo. 197 Clarke, Streitschriften..., 4ª réplica, § 7, G, VII, 382-3: "Extra-mundane Space, (if the material World be Finite in its Dimensions,) is not imaginary, but real. Nor are void Spaces in the World, merely imaginary. In an exhausted Receiver, thoug Rays of Light, and perhaps some Other Matter, be there in an exceeding small Quantity; yet the want of Resistence plainly shows, that the greatest part of That Space is void of Matter. For Subtleness or Fineness of Matter, cannot be the cause of want of Resistence. Quicksilver is as subtle, and consists of as fine parts and as fluid, as Water; and yet makes more than ten times the Resistence: Which resistence arises therefore from the Quantity, and not from the Grossness of the Matter." 198 Leibniz, op. cit., 5º escrito, § 34, G, VII, 396-7: "Les Aristoteliciens et les Cartesiens, qui n'admettent point le veritable vuide, ont repondu à cette experience de M. Guerike, aussi bien qu'à celle de M. Torricelli de Florence (qui vuidoit l'air d'un tuyau de verre par le moyen du Mercure) qu'il n'y a point de vuide du tout dans le tuyau ou dans le recipient, puisque le verre a des pores subtils, à travers desquels les rayons de la lumiere, ceux de l'aimant, et autres matieres tres minces peuvent passer." São muitos os passos em que Leibniz nega que tais experiências provem a existência de vazio. A título de exemplo: Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. IV, § 4, G, V, 114; mas é muito mais explícito este passo, após a referência a Torricelli: Leibniz, Antibarbarus Physicus pro Philosophia Reali contra renovationes qualitatum scholasticarum et intelligentiarum chimaericarum, G, VII, 341: "Nec erat cur Naturae attribuerent qualitatem quandam abhorrendi a Vacuo, sufficit omnia semel esse plena et materiam locum exacte implentem in minus spatium comprimi non posse, ut Vacuum nulla vi induci posse agnoscamus. Vacuum sensibile quod Machinis facimus et quod horrere ac respuere diu credita est natura, corpora subtiliora non excludit. Saepe ergo viri docti vel commenti sunt quae non erant, et quae in quibusdam observarunt nimis longe produxerunt". 199 Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 34, G, VII, 397: "l'eau quoyqu'elle soit fluide et plus obeissante que ces corps grossiers, est pourtant aussi pesante et aussi massive, ou même d'avantage, au lieu que la matiere qui entre dans le recipient à la place de l'air, est bien plus mince. Les nouveaux partisans du vuide repondent à cette instance, que ce n'est pas la grossiereté de la matiere, mais simplement sa quantité, qui

118

(embora não o dizendo), ao afirmar que o rácio entre o mercúrio e a água era de quase 14 para 1 e não 10 para 1.200 De facto, é o próprio Newton que, desde a 1ª ed. dos Principia, apresenta esses dados como um dos seus exemplos favoritos. 201 E aí a proporção é tanto de resistência, de densidade como de peso, o que leva Leibniz a distinguir entre matéria pesada e toda a matéria, defendendo que a água teria tanta matéria como o mercúrio, só que com uma muito maior proporção, entre os seus poros, de matéria não pesada.202 No final do passo, é notório que Leibniz se está a referir à sua própria explicação da gravidade, à qual não haverá resposta nesta polémica devido ao próprio Newton nunca se ter decidido quanto à causa da gravidade (chegando a conjeturar, nos anos 70, hipóteses etéreas bem próximas daquela a que Leibniz aqui alude).203 Ora, na resposta de Clarke, este dissocia a gravidade, o facto de uma matéria ter peso, da resistência, considerando que esta deveria ser proporcional à quantidade de matéria, quer tenha peso ou não.204 Mas a correlação entre a densidade e o peso é feita, no exemplo da água e do mercúrio, quer nos Principia,205 quer na Ótica.206 A menor fait de la resistance, et par consequent qu'il y a necessairement plus de vuide, où il y a moins de resistance. On adjoute que la subtilité n'y fait rien, et que les parties du vif argent sont aussi subtiles et fines que celles de l'eau, et que neantmoins le vif argent resiste plus de dix fois d'avantage. A cela je replique, que ce n'est pas tant la quantité de la matiere, que la difficulté qu'elle fait de ceder, qui fait la resistance. Par exemple, le bois flottant contient moins de matiere pesante que l'eau de pareil volume et neantmoins il resiste plus au bateau que l'eau." 200 Leibniz, op. cit., § 35, G, VII, 397. 201 Is. Newton, Philosophiæ naturalis Principia Mathematica, Londini, Iosephi Streater, 1687 [PN], L. II, S. VII, Scholium generale, p. 350: "prodiit resistentia argenti vivi ad resistentiam aquæ ut 13 vel 14 ad 1 circiter: id est ut densitas argenti vivi ad densitatem aquæ." Ainda mais precisamente no Livro III, Proposição 10, p. 417, onde se considera a água mais leve que o mercúrio 13 3/2 vezes e o ar 800 vezes mais leve do que a água. O segundo número é corrigido para 850 na 2ª ed. (Isaaco Newton, Philosophiæ naturalis Principia Mathematica, Editio Ultima, Amstælodami, Sumptibus Societatis, 1714, p. 373), ao passo que ambos são corrigidos na 3ª ed., o primeiro para 13 e 3/5, o segundo para 860 (Newton, Philosophiæ naturalis..., Liber tertius, OO, III, 26). Também na Ótica, quer na quæstio 20 da ed. latina (Newton, OP, 311), quer na query 28 da 2ª ed. inglesa (Newton, OK, 340-1), ressurge a primeira versão da comparação, entre 13 e 14. 202 Leibniz, op. cit., § 35, G, VII, 397: "Et quant au vif argent, il contient à la verité environ quatorze fois plus de matiere pesante que l'eau, dans un pareil volume ; mais il ne s'ensuit point qu'il contienne 14 fois plus de matiere absolument. Au contraire, l'eau en contient autant, mais prenant ensemble tant sa propre matiere qui est pesante qu'une matiere etrangere non pesante, qui passe à travers de ses pores. Car tant le vif argent que l'eau, sont des masses de matiere pesante, percées à jour, à travers desquelles passe beaucoup de matiere non pesante, et qui ne resiste point sensiblement, comme est apparemment celle des rayons de lumiere, et d'autres fluides insensibles ; tels que celuy sur tout, qui cause luy même la pesanteur des corps grossiers, en s'ecartant du centre où il les fait aller." 203 Veja-se quer a hipótese circulatória de 75 (I. Bernard Cohen, Richard S. Westfall, sel. e ed., Newton – Texts, Backgrounds, Commentaries, New York/London, W. W. Norton & Co., 1995 [NW], pp. 12-34, sobretudo 15 e 16), dirigida à Royal Society, quer a hipótese de 79, em resposta a solicitação de Boyle (Newton, Primeira carta para Bentley, OO, IV, 385-94, sobretudo a última página). 204 Clarke, op. cit., 5ª répl., §§ 33-35, G, VII, 425-6: "To the Argument drawn against a Plenum of Matter, from the Want of Resistence in certain Spaces; this Learned Author answers, that those Spaces are filled with a Matter which has no Gravity. But the Argument was not drawn from Gravity, but from Resistence; which must be proportionable to the Quantity of Matter, whether the Matter had any Gravity, or no." 205 Newton, Philosophiæ naturalis..., L. III, OO, III, 26: "Verùm cùm resistencia Mediorum minuatur in ratione ponderis ac densitatis, sic ut Aqua, quæ partibus 13 3/5 levior est quàm Argentum Vivum, minùs resistat in eâdem ratione; & aer, qui partibus 860 levior est quàm Aqua, minùs resistat in eâdem ratione: si ascendatur in cœlos, ubi pondus Medii, in quo Planetæ moventur, diminuitur in immensum, resistentia propè cessabit." Da mesma forma, são comparados, nas mesmas proporções, os pesos da água da chuva, do mercúrio e do ar: Newton, op. cit., L. II, S. VIII, Prop. L, Scholium, OO, II, 445. 206 Newton, Optics, Qu.28, OO, IV, 235: "Water is thirteen or fourteen times lighter than quick-silver, and by consequence thirteen or fouteen times rarer; and its resistance is less than that of quick-silver in the same proportion, or thereabouts, as I have found by experiments with pendulums. The open air, in which

119

densidade é aí afirmada, explicitamente, como uma consequência da maior leveza. Se Clarke tem razão em seguida, ao salientar que os exemplos do mercúrio e da água (e do ar) foram utilizados por Newton exatamente devido à sua reduzida tenacidade, expressão análoga à dificuldade de dar lugar em Leibniz, 207 já não parece tê-la na dissociação. Começando pela questão da tenacidade e densidade, na questão 28 da Ótica (argumento já presente na questão 20 da edição latina), Newton chama a atenção para o facto de o calor reduzir a tenacidade de muitos materiais, mas não causar diferença assinalável na água devido a já ter uma tenacidade muito reduzida, o que mostraria que, neste como noutros fluidos, a resistência proviria, fundamentalmente, da densidade da matéria.208 Progredindo do mercúrio para a água, da água para o ar e do ar para os espaços siderais, existiriam apenas diferenças de densidade até à quase nula que Newton tenta mostrar pela falta de resistência aos movimentos celestes. Grande parte do segundo livro dos Principia tenta estabelecer as leis do movimento nos fluidos de forma a preparar a rejeição dos vórtices cartesianos, com a qual, aliás, inicia a conclusão, o Escólio Geral. Nos céus, verifica-se a mesma ausência de resistência que faz com que, num tubo de vácuo, "uma ténue pena e ouro sólido caiam com igual velocidade".209 Mas o argumento mais decisivo contra qualquer teoria de vórtices (incluindo a leibniziana) provém do movimento dos cometas,210 incluindo as suas caudas, visto nem os vapores translúcidos, que permitem ver as estrelas, serem impedidos ou retardados no seu movimento.211 Quanto ao argumento de Leibniz que compara a água e um pedaço de madeira, parece eficazmente respondido por Clarke, chamando a atenção que se a água fosse sólida, como no gelo, resistiria mais do que o mesmo volume de madeira, visto estar a resistir com todo o seu volume.212 Regressando à questão da dissociação, qual a razão que Clarke alega para a fazer? Afinal, Newton é claro na associação: "A gravidade existe em todos os corpos universalmente e é proporcional à quantidade de matéria em cada um."213 Será pouco we breathe, is eight or nine hundred times lighter than water, and by consequence eight or nine hundred times rarer; and accordingly its resistance is less than that of water in the same proportion, or thereabouts; as I have also found by experiments made with pendulums." 207 Clarke, op. cit., §§ 33-35, G, VII, 426: "To obviate this Reply, he alleges that Resistence does not arise so much from the Quantity of Matter, as from its Difficulty of giving Place. But this Allegation is wholly wide of the Purpose; because the Question related only to such Fluid Bodies which have little or no Tenacity, as Water and Quicksilver, whose Parts have no other Difficulty of giving Place, but what arises from the Quantity of the Matter they contain." 208 Newton, OP, 312-3; Newton, Optics, Qu. 28, OO, IV, 236: "Heat promotes fluidity very much, by diminishing the tenacity of bodies. It makes many bodies fluid, which are not fluid in cold; and increases the fluidity of tenacious liquors, as of oil, balsam and honey, and thereby decreases their resistance. But it decreases not the resistance of water considerably; as it would do, if any considerable part of the resistance of water arose from the attrition, or tenacity, of its parts. And therefore the resistance of water arises principally, and most entirely, from the vis inertiæ of its matter; and by consequence, if the heavens were as dense as water, they would not have much less resistance than water; if as dense as quick-silver, they would not have much less resistance than quick-silver; if absolutely dense, or full of matter without any vacuum, let the matter be never so subtile and fluid, they would have a greater resistance than quick-silver." 209 Newton, Philosophiæ naturalis..., Liber tertius, Scholium generale, OO, III, 170-1: "Projectilia, in Aere nostro, solam aeris resistentiam sentiunt. Sublato Aere, ut fit in Vacuo Boyliano, resistentia cessat; siquidem pluma tenuis & aurum solidum æquali cum velocitate in hoc Vacuo cadunt. Et par est ratio spatiorum cœlestium, quæ sunt supra Atmosphæram Terræ." 210 Newton, op. cit., L. III, Lemma IV, Corol. 3, OO, III, 127. 211 Newton, op. cit., Prop. 41, p. 156. 212 Clarke, op. cit., 5ª réplica, §§ 33-35, G, VII, 426. 213 Newton, op. cit., Prop. 7, OO, III, 20: "Gravitatem in corpora universa fieri, eamque proportionalem esse quantitati materiæ in singulis."

120

compreensível a dissociação de Clarke em termos newtonianos, mas parece ter o mesmo sentido condicional da abordagem feita por Newton das hipóteses, sejam aristotélicas, cartesianas ou outras, de um éter ou outra matéria desprovida de gravidade. Pensando porventura na abordagem cartesiana, Newton salienta que, se a única diferença está na forma, então tais possíveis corpos poderão ser transmutados, gradualmente, num corpo que gravite e vice-versa. 214 Embora Newton negue que o peso se possa anular pela forma, o que faz é uma espécie de redução ao absurdo da hipótese, baseado na homogeneidade cartesiana de toda a matéria. Além disso, está aqui implícita uma das crenças alquímicas mais enraizadas em Newton que chegou a ver a luz da impressão na 1ª edição dos Principia: "Qualquer corpo pode ser transformado num corpo de qualquer outro tipo e sucessivamente tomar todos os graus qualitativos intermédios." 215 A supressão desta hipótese nas edições seguintes poderia sugerir uma mudança de pensamento, mas a única mudança que parece ter ocorrido é a relativa à perceção da aceitação consensual da tese, razão por que surge na Ótica sobre a forma de uma query, relativa exatamente à diferença entre matérias defendida por Leibniz: "Não são os corpos grosseiros e a luz convertíveis uns nos outros; e não podem os corpos receber muita da sua atividade das partículas de luz que entram na sua composição? Porque todos os corpos fixos, sendo aquecidos, emitem luz tanto tempo quanto continuam suficientemente quentes; e a luz também para nos corpos, tantas vezes quanto os seus raios atingem as suas partes [...]. A mudança dos corpos em luz e da luz em corpos é muito adequada ao curso da Natureza, que parece deliciada com transmutações." 216 Mas, para que sejam possíveis tais transmutações, a matéria tem de ser, na sua base, toda igual. Aliás, o argumento leibniziano da "fineza" de uma matéria não pesada já havia sido rebatido por Clarke nas conferências de 1704, onde se salienta que a maior fineza apenas poderia significar maior número de partes. Se existe uma plenitude de matéria, numa zona em que a matéria fosse mais fina, seriam necessárias mais partes para não dar lugar a qualquer vazio, pelo que a resistência acabaria por ser exatamente igual à de um fluido mais grosseiro. 217 Naturalmente, existe um pressuposto quer em Newton, 214

Newton, op. cit., Prop. 6, Corol. 2, OO, III, 19: "Si Æther, aut corpus aliud quodcunque, vel gravitate omnimo destitueretur, vel pro quantitate materiæ suæ minùs gravitaret: quoniam id (ex mente Aristotelis, Cartesii & aliorum) non differt ab aliis corporibus nisi in Formâ materiæ, posset idem per mutationem Formæ gradatim transmutari in corpus ejusdem conditionis cum iis, quæ pro quantitate materiæ quam maximè gravitant; & vicissim corpora maxime gravia, formam illius gradatim induendo, possent gravitatem suam gradatim amittere." 215 Newton, PN, L.III, Hyp.III, 402: "Corpus omne in alterius cujuscunque generis corpus transformari posse, & qualitatum gradus omnes intermedios sucessivè induere." 216 Newton, Optics, Qu. 30, OO., IV, 241: "Are not gross bodies and light convertible into one another; and may not bodies receive much of their activity from the particles of light which enter their composition? For all Fixed bodies, being heated, emit light so long as they continue sufficiently hot; and light mutually stops in bodies, as often as its rays strike upon their parts [...]. The changing of bodies in light, and light into bodies, is very conformable to the course of nature, which seems delighted with transmutations." A similitude é atestada pela semelhança entre a atração e as reflexões, refrações e difrações da luz: Newton, Philosophiæ naturalis..., Liber primus, Prop. XCVI, Scholium, OO, II, 258-9. 217 Clarke, DA, III, 19-20: "Tangibility or resistance (which is what mathematiciens very properly call vis inertiae) is essential to matter, otherwise the word matter will have no determinate signification. Tangibility therefore, or resistance, belonging to all matter, it follows evidently that if all space were filled with matter, the resistance of all fluids (for the resistance of the parts of hard bodies arises from another cause) would necessarily be equal. For greater or lesser degrees of fineness or subtility can in this case make no difference, because the smaller or finer parts of the fluid are, wherewith any particular space is filled, the greater in proportion is the number of the parts, and consequently the resistance still always equal. But experience shows, on the contrary, that the resistance of all fluids is not equal, there being large spaces in which no sensible resistance at all is made to the swiftest and most lasting motion of

121

quer em Clarke, que é exatamente o que está em causa em Leibniz: o particularismo de uma matéria homogénea herdada de Descartes – e adaptado ao atomismo. Ora, exatamente esse atomismo de blocos idênticos na base da matéria é que seria preciso "provar" para demonstrar, com base nos argumentos da densidade, a existência de vazio. Pelo contrário, Leibniz, para lá de considerar toda a extensão fenoménica, muito embora bem fundada nas substâncias, como continuidade ou difusão da força reativa da substância, 218 concebe essa extensão como um contínuo suscetível de divisão ao infinito, mas insuscetível de se reduzir a partículas últimas descontínuas: "um contínuo não pode ser composto de pontos".219 Porém, se a conceção de Leibniz não parte dos pressupostos newtonianos, Clarke tem razão na dissociação que faz em relação a Leibniz porque, se este não aceita que toda a matéria seja pesada, considera, como Newton, a resistência inerente à matéria e até à matéria-prima ou força passiva primitiva.220 De facto, como é visível nos passos referidos quer sobre a extensão, quer sobre a resistência, a própria extensão deriva desse poder de resistência. Ora, se toda a matéria é inerentemente resistente à mudança, como explicar que a matéria não pesada afirmada por Leibniz resista menos ou até mesmo não resista de forma sensível, se está a preencher todo o espaço, num pleno de matéria, no lugar do ar retirado na bomba de vácuo ou no espaço sideral? Eis um dos aspetos que ficou por esclarecer com a morte de Leibniz, especialmente quando ele tanto insistiu que as questões físicas fossem tratadas sem recurso, a não ser genérico, distanciado, aos princípios metafísicos. Porém, é possível, de uma forma genérica, gizar uma resposta. Numa passagem dos Novos Ensaios, Leibniz junta, como exemplos das ficções contrárias à natureza originadas nas noções incompletas dos filósofos, o espaço sem corpo e o corpo sem movimento.221 Parecem exemplos aleatórios mas não são. Embora a matéria-prima seja the most solid of bodies. Therefore, all space is not filled with matter but, of necessary consequence, there must be a vacuum." 218 Leibniz, Specimen Dynamicum..., GM, VI, 235: "extensioque nil aliud quam jam praesuppositae nitentis renitentis que id est resistentis substantiae continuationem sive diffusionem dicit, tantum abest, ut ipsammet substantiam facere possit." Ver também op. cit., GM, VI, 247, onde a extensão surge como difusão e repetição contínua da substância. 219 Leibniz, De ipsa natura..., § 11, G, IV, 511: "cum ex punctis continuum no componatur". 220 Nesta passagem, a força primitiva de resistência constitui, segundo a conceção leibniziana, a matériaprima: Leibniz, Specimen Dynamicum..., GM, VI, 236-237; ao passo que aqui essa força passiva de resistência é proporcional ao tamanho, para além de se afirmar uma constância natural de todas as substâncias: Leibniz, De ipsa natura..., § 11, G, IV, 510-1: "Unde in hac ipsa vi passiva resistendi (et impenetrabilitatem et aliquid amplius involvente) ipsam materiae primae sive molis, quae in corpore ubique eadem magnitude ejus proportionalis est, notionem colloco, et ostendo hinc alias longe, quam si sola in corpore ipsaque materia inesset cum extensione impenetrabilitas, motuum leges consequi; et uti in materia inertiam naturalem oppositam motui, ita in ipso corpore, imo in omni substantia inesse constantiam naturalem oppositam mutationi." Não é possível, porém, ignorar que nos Novos Ensaios é atribuído exatamente o contrário à matéria-prima, a fluidez perfeita: Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XXIII, § 23, G, V, 206: "Mais, pour dire la verité, je crois que la fluidité parfaite ne convient qu'à la matière premiere, c'est à dire en abstraction, et comme une qualité originale, de même que le repos". Talvez se pudesse pensar numa evolução do conceito, mas a carta para De Volder de 20 de Junho de 1703, exatamente da mesma época dos Novos Ensaios, trata a matéria-prima como potência passiva primitiva (G, II, 252). Por isso, é possível que a noção fundamental a ter em conta nessa passagem seja a de abstração, de tipo matemático, em vez da matéria-prima que entra na constituição da própria mónada concreta como força passiva primitiva. Repare-se que num dos textos referidos, o Specimen Dynamicum.., Leibniz salienta a diferença que existiria entre leis puramente geométricas e aquelas que supõem noções metafísicas, seja a de força ativa, seja a da força passiva, pelo que naquelas não existiria resistência, mas indiferença: Leibniz, Specimen Dynamicum..., GM, VI, 240-1. 221 Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. I, § 12, G, V, 104: "une de ces fictions contraires à la nature des choses qui viennent des notions incompletes des Philosophes, comme l'espace sans corps et le corps sans mouvement".

122

passiva, a matéria geométrica, inerte, cartesiana e newtoniana, os corpos concretos são manifestações fenoménicas da força ativa substancial que subjaz a todo o existente. Esses corpos estão pulsantes de atividade e uma das teses mais recorrentes de Leibniz é que nada está em repouso – tal como, no plano fenoménico, tudo está em movimento. É um pressuposto da física de Newton a de que tudo é composto de partículas duras e indivisíveis, não sendo os fluidos mais do que conjuntos de partículas duras mais ou menos separadas entre si. O pressuposto de Leibniz é exatamente o inverso, tudo é fluído, havendo apenas diversos graus de fluidez, nunca havendo nem suprema dureza, nem suprema fluidez, segundo o princípio da continuidade: o espaço está "cheio de uma matéria originariamente fluida, suscetível de todas as divisões e, inclusive, submetida atualmente a divisões e subdivisões ao infinito, mas com esta diferença, porém, que é divisível e se encontra dividida desigualmente em diferentes lugares, por causa dos movimentos que aí já estão mais ou menos conspirantes." 222 Assim, todas as resistências, impulsões e tenacidades se explicam por estes movimentos conspirantes, supostamente explicando todos os fenómenos determinados por Newton, desde a tenacidade do mel à fluidez da água, da rigidez do ferro aos vórtices etéreos, muito embora seja difícil ver como poderiam explicar as órbitas extraordinárias (em relação à regularidade dos planetas) dos cometas. O mais forte argumento leibniziano nesta temática é, porém, estritamente metafísico, se é que os anteriores não o são, exatamente porque Leibniz nunca admitiu a possibilidade de uma resolução experimental da questão, ao contrário das pretensões de Newton.223 Já foi examinado em II. 3, em correlação com o princípio da plenitude: não 222

Leibniz, NE, prefácio, 33; Leibniz, Nouveaux essais..., Préface, G, V, 52: "Il faut concevoir plustost l'espace comme plein d'une matiere originairement fluide, susceptible de toutes les divisions et assujettie même actuellement à des divisions et soubsdivisions a l'infini, mais avec cette difference pourtant, qu'elle est divisible et divisée inegalement en differens endroits à cause des mouvemens qui y sont déja plus ou moins conspirans." Ver também Leibniz, op. cit., L. II, Ch. XXIII, § 23, G, V, 206-7. 223 Nesta passagem, Leibniz confronta-se com a pretensão newtoniana de demonstrar o vácuo com experimentos e rejeita tal possibilidade, considerando que tal questão está estritamente dependente do raciocínio: Leibniz, Carta para Des Bosses de 21 de Julho de 1707, G, II, 336: "Newtonus (quantum nunc judicare possum, dum librum percurrere non vacat) videtur demonstrationem vacui suam non tam absolutam exhibuisse, quam insinuasse p. 346 Principiorum Naturae Mathematicorum, ubi experimenta exhibet, ex quibus putat pendere demonstrationem vacui. Ego vero non video, quomodo possibile sit experimenta excogitari, unde haec controversia accurate definiatur, quam a rationibus unice pendere censeo." Na edição de Look e Rutherford, referem-se aos 14 experimentos apresentados por Newton sobre a resistência em variados meios (G. W. Leibniz, Translated, Edited, and with an Introduction by Brandon C. Look and Donald Rutherford, The Leibniz – Des Bosses Correspondence, New Haven and London, Yale University Press, 2007, Rascunho de carta para Des Bosses de Janeiro de 1710, p. 415, referindo-se, aliás, à paginação da tradução de Cohen e Whitman), o que parece, de facto, corresponder à referência leibniziana, especialmente tendo em conta que Newton parece concluir a exposição dos experimentos com a ausência de qualquer fluido corporal nos espaços celestes, isto apesar de umas exceções que se presume que chegariam para as objeções de Leibniz: Newton, op. cit., Liber secundus, Prop. XL, Problema IX, Scholium, OO, II, 430: "spacia cœlestia, per quæ globi Planetarum & Cometarum in partes omnes liberrimè, & sine omni motûs diminutione sensibili, perpetuò moventur, Fluido omni corporeo destituuntur, si fortè vapores longè tenuissimos, & trajectos lucis radios excipias." Acontece que esta passagem, assim como os 14 experimentos separadamente referenciados, só surge em edições posteriores. Em 1707, Leibniz só poderia ter como referência a 1ª edição e, se, de facto, Leibniz se está a referir ao Escólio que surge após a Proposição XL, este não é o mesmo que surge nas edições posteriores, surgindo aí, com alterações, como Escólio Geral da Secção VI, tendo sido, aliás, a Secção VII profundamente alterada. Por que razão Leibniz se refere só a uma página e não ao conjunto do Escólio Geral ou até a um segmento maior dos Principia? Não porque seja nessa página que Newton apresenta uma demonstração, mas por ser nessa página que ele afirma que a demonstração do vácuo depende desses experimentos que, aliás, admite que deveriam ser mais rigorosos (e continuará a admitir em edições subsequentes). Leibniz, muito embora se refira à descrição de experimentos, indica a página, não porque a ela se cinjam os referidos experimentos, mas porque, no texto entre parêntesis da frase que em seguida se

123

há qualquer razão para limitar a quantidade de matéria; se estivesse limitada, poder-se-ia acrescentar alguma coisa sem pôr em causa as perfeições divinas; logo, seria acrescentada como efeito moralmente necessário das perfeições divinas; assim, não há limites para a quantidade de matéria, tudo é pleno. 224 Ora, Clarke responde a este argumento com a já múltiplas vezes referida acusação de fatalismo e necessitarismo, ou seja, que a conceção de Leibniz põe em causa a liberdade de Deus: "Este argumento (se fosse bom) provaria que seja o que fosse que Deus possa fazer, teria de o fazer [...]. O que seria fazer dele não um Governador, mas um mero agente necessário, quer dizer, de facto, agente algum, mas mera fatalidade e natureza e necessidade."225 A resposta a esta objeção já foi vista em II. 4, a alegada confusão entre necessidade lógica e necessidade moral, ou como Leibniz também diz, a confusão entre o que Deus não quer e o que não pode: "Deus pode fazer tudo o que é possível; mas não quer fazer senão o melhor."226 Apesar de, como foi visto em II. 4, esse ser um princípio que regula a própria metafísica de Clarke, nesta polémica, Clarke insistirá que Leibniz considera que a limitação da matéria é impossível, por muito que o interlocutor diga o contrário, visto que a mera possibilidade de limitação implicaria o reconhecimento da realidade do espaço absoluto e vazio. 227 Claro que, em alternativa, visto não admitir a compatibilidade entre a negação do vazio e a possibilidade de vazio, também acusa Leibniz de inconsistência.228 Ora, a questão é que, de facto, Leibniz admite a possibilidade do vazio. Por exemplo, nos Novos Ensaios, Leibniz reconhece que, se uma esfera estivesse verdadeiramente vazia no seu interior, os seus polos não se tocariam,229 e, mais adiante, reconhece que, se existisse um vazio no espaço, poder-se-ia determinar a sua grandeza. Poder-se-ia refutar geometricamente quem pretendesse que dois corpos se tocariam se apenas o vazio estivesse entre eles. Porém, já não se poderia fazer o mesmo em relação à sucessão de dois mundos sem nada entre eles, visto esse intervalo ser indeterminável. 230 A determinação das distâncias entre corpos depende do quadro de transcreve, é nela que Newton afirma a pretensão de demonstração experimental do vácuo: Newton, PN, 346-7: "Optarim itaque (cum demonstratio vacui ex his dependeat) ut experimenta cum Globis & pluribus & majoribus & magis accuratis tentarentur." 224 Leibniz, Streitschriften..., 4º escrito, §§ 21-23, G, VII, 374; Leibniz, op. cit., 4º escrito, P. S., G, VII, 378. As transcrições já foram feitas a propósito de II. 3, notas 67 e 68. 225 Clarke, Streitschriften..., 4ª réplica, §§ 21-23, G, VII, 385-6: "That God cannot limit the Quantity of Matter, is an Assertion of too great consequence, to be admitted without Proof. If he cannot limit the Duration of it neither, then the material World is both infinite and eternal necessarily and independently upon God. This Argument, (if it were good,) would prove that whatever God can do, he cannot but do; and consequently that he cannot but make every thing infinite, and every thing eternal. Which is making him no Governor at all, but a mere necessary Agent, that is, indeed no Agent at all, but mere Fate and Nature and Necessity." 226 Leibniz, op. cit., 5º escrito, § 73, G, VII, 408: "On confond souvent dans les objections qu'on me fait, ce que Dieu ne veut point, avec ce qu'il ne peut point. [...] Par exemple, Dieu peut faire tout ce qui est possible, mais il ne veut faire que le Meilleur." Ver também o § 76, G, VII, 409. 227 Clarke, op. cit., 5ª réplica, §§ 73-75, G, VII, 431. 228 Clarke, op. cit., §§ 26-32, G, VII, 425: "For sometimes he argues against a Vacuum (or Space void of Matter) as if it was absolutely impossible in the Nature of Things; space and Matter being inseparable: And yet frequently he allows the Quantity of Matter in the Universe, to depend upon the Will Of God." 229 Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XIII, § 21, G, V, 138: "quoyque je n'admette point de vuide, je distingue la matiere de l'etendue et j'avoue que s'il y avoit du Vuide dans une Sphere, les poles opposés dans la concavité ne se toucheroient pas pour cela. Mais je crois que ce n'est pas un cas, que la perfection divine admette." Isto, aliás, mostra como Leibniz não é um puro plenista no mesmo sentido de Aristóteles, a maioria da Escolástica e o próprio Descartes: cf. Descartes, OL, 621: "en cas que Dieu ôtât tout le corps qui est dans un vase, sans qu'il permît qu'il en rentrât d'autre, nous répondreons que les côtés de ce vase se trouveraient si proches qu'ils se toucheraient immédiatement." 230 Leibniz, op. cit., Ch. XV, § 11, G, V, 142: "s'il y avoit un vuide dans l'espace (comme par exemple si une sphere estoit vuide au dedans), on en pourroit determiner la grandeur ; mais s'il y avoit dans le temps

124

referências que se perderia no tempo. Mas o que seria esse vazio, se existisse? Não seria algo de real, como afirma Clarke? Do ponto de vista leibniziano, para lá da extensão ser fenoménica, qualquer relação espacial é, na verdade, um predicado qualitativo que determina um certo tipo de situação da substância.231 Cada coisa expressa o seu lugar, ou seja, a relação com o ambiente como predicados seus e não como uma denominação extrínseca.232 A distância a que algo estaria manter-se-ia mesmo que nada existisse no intervalo, como expressão das próprias substâncias envolvidas, muito embora todas as extensões envolvidas fossem meramente fenoménicas. Mas como esta abordagem não chega a surgir na polémica, Clarke podia supor que a aplicação do princípio da plenitude não admitia a possibilidade de limitação. Pelo contrário, parece ligar, indissociavelmente e sem explicitação da questão do vazio, espaço e matéria, ainda mais reforçando a associação ao afirmar que a matéria só é eterna e necessária se se supuser, como Clarke e Newton, que o espaço é eterno e necessário.233 Quanto às questões leibnizianas relativas à possibilidade do espaço vazio de corpos estar repleto de outras coisas, espíritos extensos como em More, 234 será abordado numa outra parte. Porém, não deixa de ser curioso o silêncio de Clarke acerca deste passo, como se o § 48 nada dissesse de diferente do § 47, quando são bem diferentes, seja pelo tom sarcástico de Leibniz naquele parágrafo, seja pelo teor das crenças envolvidas, seja pela menção de Henry More, sempre omitido nas publicações de Newton e Clarke.235 De qualquer forma, Manuel, interpretando um manuscrito bem expressivo, talvez desvende a verdadeira posição newtoniana, denunciada pelas breves menções clarkianas 236 : "O seu universo é um pleno de seres espirituais, e isto pode ajudar a perceber a sua oposição à ideia de um pleno material."237 un vuide, c'est à dire une durée sans changemens, il seroit impossible d'en determiner la longueur. D'où vient, qu'on peut refuter celuy qui diroit que deux corps, entre lesquels il y a du vuide, se touchent ; car deux Poles opposés d'une sphere vuide ne se sauroient toucher, la Geometrie le defend : mais on ne pourroit point refuter celuy qui diroit que deux mondes dont l'un est apres l'autre se touchent quant à la durée, en sorte que l'un commence necessairement quand l'autre finit, sans qu'il y puisse avoir d'intervalle. On ne pourroit point le refuter, dis-je, parceque cet intervalle est indeterminable. Si l'espace n'estoit qu'une ligne, et si le Corps estoit immobile, il ne seroit point possible non plus de determiner la longueur du vuide entre deux corps." 231 Leibniz, Carta para de Volder de 20 de Junho de 1703, G, II, 253: "Monades enim etsi extensae non sint, tamen in extensione quoddam situs genus, id est quandam ad alia coexistentiae relationem habent ordinatam, per Machinam scilicet cui praesunt. Neque ullas substantias finitas a corpore omni separatas existere, aut adeo situ vel ordine ad res caeteras coexistentes universi carere puto. Extensa involvunt in se plura situ praedita, sed quae simplicia sunt, etsi extensionem non habeant, situm tamen in extensione habere debent, quanquam illum punctatim ut in incompletis phaenomenis designare possibile non sit." 232 Leibniz, op. cit., G, II, 250: "Etiam quae loco differunt, oportet locum suum, id est ambientia exprimere, atque adeo non tantum loco seu sola extrinseca denominatione distingui, ut vulgo talia concipiunt." 233 Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, §§ 62-63, G, VII, 406: "Je ne dis point que la matiere et l'espace est la même chose ; je dis seulement qu'il n'y a point d'espace, où il n'y a point de matiere ; et que l'espace en luy même n'est point une realité absolue. L'espace et la matiere different comme le temps et le mouvement. Cependant ces choses, quoyque differentes, se trouvent inseparables. Mais il ne s'ensuit nullement que la matiere soit eternelle et necessaire, si non en supposant que l'espace est eternel et necessaire". 234 Leibniz, op. cit., § 48, G, VII, 402. 235 A não ser que se refira a menção da recenção anónima (mas feita por Newton) do Commercium Epistolicum, aliás apenas citando uma "acusação" dos editores dos Acta Eruditorum: Newton, Recencio Libri, OO, IV, 494. 236 Clarke, op. cit., 2ª réplica, § 2, G, VII, 360; 4ª réplica, § 9, G, VII, 383: "In all void Space, God is certainly present, and possibly many other Substances which are not Matter; being neither Tangible, nor Objects of Any of Our Senses." 237 Manuel, RI, 102: "His universe is a plenum of spiritual beings, and this may help to account for his opposition to the idea of a material plenum."

125

7. Os próprios espaço e tempo: a indiscernibilidade Não é visível uma clara separação na argumentação leibniziana entre a utilização do princípio da razão suficiente e a do princípio da identidade dos indiscerníveis na refutação do espaço absoluto. 238 Toda a questão das características do espaço e do tempo (para lá da diatribe do sensorium) é suscitada pela abordagem do princípio da razão suficiente e, em sequência, da questão da escolha divina, ou seja, pela temática central desta dissertação. Clarke introduz toda a discussão para defender que a razão suficiente poderia ser a mera vontade de Deus. Ao defender tal tese, ainda sem menção a quaisquer razões, Clarke afirma que, sendo os lugares absolutamente indiferentes a toda a matéria, Deus poderia ter na sua vontade uma razão suficiente para criar num dado lugar um sistema de matéria e noutro um outro, apesar de ser indiferente criar tudo ao contrário. 239 Ao refutar o espaço absoluto, Leibniz concorda com a premissa de Clarke: Num espaço absoluto e vazio, anterior a quaisquer coisas, todos os lugares (ou todos os pontos) são absolutamente indiferentes. É exatamente por isso que Deus, nesse caso, não poderia ter uma razão para dispor as coisas do ocidente para o oriente e não vice-versa (supondo que seria possível – e não é – fazer tais distinções num espaço absoluto totalmente vazio). Ora, no mesmo parágrafo, como conclusão do argumento, Leibniz salienta que a questão não se poria num espaço relativo porque, neste caso, os dois estados (a ordenação da esquerda para a direita ou vice-versa) seriam indiscerníveis. 240 Trata-se de um só argumento que utiliza simultaneamente os dois princípios. Exatamente a mesma forma de argumento é, em seguida, aplicada ao tempo.241 Ao longo da polémica, a estrutura do argumento manter-se-á implícita, apenas existindo passagens em que a indiscernibilidade é atribuída não só às coisas num espaço ou tempo relativos, mas também à indiferença dos pontos no espaço ou dos instantes no tempo absolutos. A própria questão da observabilidade, tratada na próxima secção, surge como um caso específico da indiscernibilidade, mantendo a estrutura da argumentação (não haveria razão para Deus fazê-lo – mais precisamente, finalidade; os

238

Essa distinção é feita na análise de Sklar, SS, sobretudo pp. 173-81, muito embora ocupe toda a secção III. B. 2. Tem-se aqui em conta a sua análise por causa do seu caráter analítico, devido a estar em questão se os argumentos leibnizianos pretendem ser necessários, como Clarke acusa, ou são da ordem contingente, ou em parte de uma ordem, em parte de outra. Já se viu quanto esta questão é decisiva para o tema da liberdade em Leibniz. Porém, é necessário sublinhar que o próprio Sklar não tem preocupações de rigor histórico-filosófico em relação ao que chama metafísica "mais profunda" de Leibniz (Sklar, SS, 169-70), apenas utilizando os elementos histórico-filosóficos como componentes da sua própria e muito meritória argumentação que excede, em muito, os objetivos desta dissertação. Mas existem argumentos metafísicos que são expressos na polémica e que não são considerados na sua análise, apesar de explicitamente considerar os princípios em questão metafísicos. Para alertar para os perigos de uma abordagem demasiado analítica, é importante recordar que toda a discussão foi introduzida a propósito da distinção entre a ordem lógica e matemática (verdades de razão), e a ordem metafísica e física (verdades de facto), razão pela qual é evocado o princípio da razão suficiente (Leibniz, op. cit., 2º escrito, § 1, G, VII, 355-6). 239 Clarke, op. cit., 2ª réplica, § 1, G, VII, 359. Já citado e transcrito na introdução de III, nota 1. 240 Leibniz, op. cit., 3º escrito, § 5, G, VII, 364. Ver II. 3, nota 73. 241 Leibniz, op. cit., 3º escrito, § 6, G, VII, 364: "Il en est de même du temps. Supposé que quelqu'un demande pourquoy Dieu n'a pas tout creé un an plustost ; et que ce même personnage veuille inferer de là, que Dieu a fait quelque chose dont il n'est pas possible qu'il y ait une raison, pourquoy il l'a fait ainsi plustost qu'autrement, on luy répondroit, que son illation seroit vraye, si le temps étoit quelque chose hors des choses temporelles, car il seroit impossible qu'il y eût des raisons pourquoy les choses eussent eté appliquées plustost à de tels instans qu'à d'autres, leur succession demeurant la même. Mais cela même prouve que les instans hors des choses ne sont rien, et qu'ils ne constistent que dans leur ordre successif, lequel demeurant le même, l'un des deux etats, comme celuy de l'anticipation imaginée, ne differeroit en rien, et ne sauroit étre discerné de l'autre qui est maintenant."

126

dois estados seriam indiscerníveis).242 Na forma básica tratada nesta secção, está sempre em causa a criação, ou seja, a decisão original de Deus. Qualquer forma causal que tenha a forma básica desta argumentação é sempre relativa à causa primeira, ou seja, ao ato de criação. De forma que não é adequado, no âmbito da abordagem leibniziana, que se conteste qualquer parte desta argumentação em termos da razão suficiente de um fenómeno atual determinada pela sequência causal imediatamente anterior. 243 Isso seria uma argumentação talvez até mais sustentada por Leibniz244 do que por Clarke e Newton que requerem, como se verá adiante, a intervenção divina atual na máquina do universo. Nunca é isso que está em questão, por muito que desagrade a fundamentação metafísico-teológica, mas o mundo como um todo, seja na ordem espacial, seja temporal, e, nesta sua versão básica, na decisão original, na própria criação. Na verdade, é também o que está em questão para Clarke e para Newton. Por outro lado, uma abordagem estritamente analítica e/ou empírica do princípio da identidade dos indiscerníveis, mesmo que possa ser feita e mesmo que tenha a noção do caráter metafísico do princípio, tende a menosprezar a fundamentação metafísica do mesmo. Finalmente, não é também adequado opor, em Leibniz, propriedades puramente qualitativas a propriedades quantitativas. Já se viu nesta dissertação que "estar à esquerda de" ou "estar a 20 metros de" são propriedades, embora fenoménicas, que têm origem nas propriedades inerentes às substâncias porque estas, mesmo não sendo extensas, não deixam de ter um certo tipo de situação.245 Neste sentido, no mundo atual, a mera situação seria um reflexo fenoménico de predicados que distinguiriam uma substância de outra. Mas a ideia de que existe um posicionamento absoluto quantitativo de um ponto num vazio tridimensional infinito anterior à criação é estranha até para Clarke, que considera que a posição de uma matéria na criação seria absolutamente indiferente. Ou seja, para Leibniz, também não existiria qualquer razão quantitativa (seja lá o que isso for) para pôr a primeira coisa do mundo no ponto A em vez de no ponto B. Apesar disso, pode-se reconhecer, tal como Leibniz, esta indiferença ou 242

Leibniz, op. cit., 4º escrito, § 13, G, VII, 373; 5º escrito, § 29, G, VII, 395-6; § 52, G, VII, 403-4. Sklar, SS, 180: "There is a sufficient reason for the present place of the material world in substantival space – its previous position and the forces that have acted in the meantime. After all, why is Jupiter where it is today relative to the Earth? Answer: Because of the positions and velocities they had yesterday and the forces acting upon them in the intermediate period." 244 Leibniz, op. cit., § 18, G, VII, 393: "la nature des choses porte, que tout evenement ait prealablement ses conditions, requisits, dispositions convenables, dont l'existence en fait la raison suffisante." 245 Entenda-se, não se trata da localização no espaço e no tempo, mas da situação que expressa, na própria substância, todo o universo, da mónada que é inerentemente ponto de vista do universo: e.g., Leibniz, La Monadologie, § 57, G, VI, 616: "Et comme une même ville regardée de differens cotés paroist toute autre et est comme multiplée perspectivement, il arrive de même, que par la multitude infinie des substances simples, il y a comme autant de differens univers, qui ne sont pourtant que les perspectives d'un seul selon les differens points de veue de chaque Monade." A situação da mónada no universo é determinada pelos seus próprios predicados e pelas perceções que são inerentes à sua noção completa. Daí que a própria situação da mónada seja determinada por um princípio interno de distinção e não pelas determinações extrínsecas do tempo e do espaço. Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XXVII, § 1, G, V, 213: "Il faut tousjours qu'outre la difference du temps et du lieu, il y ait un principe interne de distinction, et quoyqu'il y ait plusieurs choses de même espece, il est pourtant vray qu'il n'y en a jamais de parfaitement semblables : ainsi quoyque le temps et le lieu (c'est à dire le rapport au dehors) nous servent à distinguer les choses, que nous ne distinguons pas bien par elles mêmes, les choses ne laissent pas d'estre distinguables en soy. Le precis de l'identité et de la diversité ne consiste donc pas dans le temps et dans le lieu, quoyqu'il soit vray, que la diversité des choses est accompagnée de celle du temps ou du lieu, parce qu'ils amenent avec eux des impressions differentes sur la chose. Pour ne point dire que c'est plustost par les choses qu'il faut discerner un lieu ou un temps de l'autre, car d'eux mêmes ils sont parfaitement semblables, mais aussi ce ne sont pas des Substances ou des realités completes." 243

127

indiscernibilidade246 e até a sua diferença de uma abordagem estritamente geométrica, mas não considerar a fundamentação metafísica, no caso de Leibniz, desta ordem geométrica que não precisa, como afirma Sklar, de um espaço equivalente no mundo físico247 porque se baseia nas ideias de Deus, como todas as verdades de razão. Mas haverá algum fundamento para uma abordagem estritamente analítica destes argumentos metafísicos leibnizianos baseados nos dois princípios referidos? São bem conhecidas as interpretações analíticas de Leibniz, 248 esta própria dissertação coloca algumas dúvidas nesse domínio e o próprio Clarke ataca parte destes argumentos como defensores de uma necessidade absoluta. De facto, pressionado pelo facto de Clarke ter sublinhado a absoluta indiferença, no ato de criação, de uma ordenação de partículas em relação à inversa, mesmo que o espaço fosse relativo,249 Leibniz sente-se forçado a sublinhar o princípio dos indiscerníveis, afirmando, de novo, que, nesse caso, as duas ordens seriam a mesma ordem, duas coisas, a mesma coisa, chegando ao ponto de afirmar que seria dar dois nomes à mesma coisa.250 Da mesma forma, referindo-se à possibilidade que será examinada na próxima secção, de Deus fazer avançar o mundo em linha reta, afirma que dois estados indiscerníveis seriam o mesmo estado.251 Ambas as hipóteses são consideradas ficções e quimeras, assim como é considerada ficção semelhante Deus ter criado o mundo antes, embora neste caso apenas se refira o princípio da razão suficiente, o que mostra que os dois princípios estão sempre implícitos na estruturação destes argumentos. Aliás, o encerramento do parágrafo supõe claramente a identidade dos indiscerníveis num tempo relativo.252 Mais ainda, os dois 246

Sklar, SS, 171: "In a totally empty world, however, there are no actual reference points and hence no possible specifications of individual points. One can't, even in thought, view the empty space as a set of locations waiting to be filled, for nothing "individuates" one location from another." 247 Sklar, SS, parte final da p. 172. 248 Bertrand Russell, A Critical Exposition of The Philosophy of Leibniz, 1900; Nottingham, Spokesman, 2008 [CE]; Louis Couturat, La logique de Leibniz d’aprés des documens inédits, Paris, PUF, 1901; Hildesheim, Georg Olms Verlagsbuchhandlung, 1969 [LL]. A principal razão reside na tese de que todo predicado real é inerente à noção completa do sujeito e, como tal, toda a verdade é, em princípio, analítica. Porém, há uma diferença abismal entre a análise infinita (e, como tal, interminável) requerida para as verdades de facto e a análise finita das verdades de razão. Naturalmente, também existe a questão de Leibniz utilizar certos sentidos da palavra Lógica que se identificam com a Metafísica porque é entendida como arte de inventar em geral, o que irá, certamente, para lá do sentido em que hoje se usa a palavra lógica ou Leibniz fala das estritas verdades de razão: vide, e. g., Leibniz, Carta para a duquesa Sofia de Hannover, G, IV, 292: "je viens à la Metaphysique, et je puis dire que c'est pour amour d'elle que j'ay passé par tous ces degrés ; car j'ay reconnu que la vraye Metaphysique n'est guères differente de la vraye Logique, c'est à dire de l'art d'inventer en general ; car en effet la Metaphysique est la theologie naturelle, et le même Dieu qui est la source de tous les biens, est aussi le principe de toutes les connoissances." Pela sequência, é provável que esteja a falar da Característica, projeto que incluiria todas as formas de raciocínio, desde as demonstrativas a diversos títulos às meramente prováveis, e que acabou por nunca ser realizado. 249 Clarke, op. cit., 3ª réplica, § 2, G, VII, 367: "the Case is the same, even though Space were nothing real, but only the mere Order of Bodies. For still it would be absolutely indifferent, and there could be do other reason but mere Will, why 3 equal Particles should be placed or ranged in the order 1, 2, 3, rather than in the contrary Order." 250 Leibniz, Streitschriften..., 4º escrito, § 6, G, VII, 372. Ver II.3, nota 81. 251 Leibniz, op. cit., 4º escrito, § 13, G, VII, 373. 252 Leibniz, op. cit., 4º escrito, § 15, G, VII, 373-4: "C'est une fiction semblable, c'est à dire impossible, de supposer que Dieu ait creé le monde quelques millions d'années plustost. Ceux qui donnent dans ces sortes de fictions, ne sauroient répondre à ceux qui argumenteroient pour l'eternité du monde. Car Dieu ne faisant rien sans raison, et point de raison n'etant assignable, pourquoy il n'ait point creé le monde plustost, il s'ensuivra, ou qu'il n'ait rien creé du tout, ou qu'il ail produit le monde avant tout temps assignable, c'est à dire que le monde soit eternel. Mais quand on montre que le commencement, quel qu'il soit, est tousjours la même chose, la question pourquoy il n'en a pas eté autrement, cesse." Que está sempre envolvido nesta argumentação, explícita ou implicitamente, o princípio da identidade dos

128

princípios são colocados em conjunto em relação à hipotética escolha de Deus perante um espaço absoluto, visto não existir razão para discernir as partes, tratar-se-ia de discernir o indiscernível e escolher sem discernir.253 Em todos estes casos da quarta missiva, em que está em causa a totalidade do mundo (assim como a conceção, em geral, do tempo e do espaço absolutos), Leibniz utiliza uma noção modal inequívoca: o impossível. Da mesma forma, ao considerar que uma vontade sem motivo seria contraditória254, remete todo o domínio da escolha do indiferente, nomeadamente a proposta clarkiana da ordenação de três corpos iguais,255 para o âmbito do impossível.256 Desta forma se regressa ao cerne desta dissertação, ao problema da liberdade. Será esta impossibilidade de escolha uma impossibilidade hipotética, subordinada à condição da escolha do melhor que, ela própria, não seria necessária? Numa das passagens, chega a fornecer uma possibilidade para a vontade sem razão, o acaso epicurista.257 Será o acaso impossível? Será que a escolha do mundo não é necessária, mas ter, em geral, um motivo de escolha já é? Mas a escolha não é feita segundo dois atributos essenciais de Deus, a bondade e a sabedoria? E a existência de Deus, conjuntamente com a sua vontade e o seu desígnio, não são necessárias? Já em II estas questões foram colocadas e não haverá, porventura, melhor resposta agora, mas, mesmo concordando com Clarke na acusação de fatalismo e necessitarismo, continua a não parecer adequado, de acordo com as afirmações leibnizianas, considerar estes argumentos sem a sua fundamentação metafísica distinta das verdades de razão. Porém, ao se chegar à derradeira missiva, repentinamente Leibniz reconhece que não seria absolutamente impossível existirem duas gotas iguais ou dois corpos indiscerníveis e que, se duas coisas perfeitamente indiscerníveis existissem, elas seriam, indiscerníveis, torna-se evidente na abordagem desta apresentação do mesmo argumento, apresentado exatamente na mesma altura, onde se defende a indiscernibilidade até mesmo para um ser omnisciente: Leibniz, Carta para Des Bosses de 13 de Janeiro de 1716, G, II, 510: "Ego fateor nullam esse, sed respondeo etiam nullum esse reale discrimen, nunc an mille ante annis creatus fingatur, cum tempus non sit nisi ordo rerum, non aliquid absolutum. Atque idem de spatio censeo. Eadem sunt, quorum discrimen a nemine, ne ab omniscio quidem, assignari potest." 253 Leibniz, Streitschriften..., 4º escrito, § 18, G, VII, 374: "L'uniformité de l'espace fait qu'il n'y a internal ny external reason, pour en discerner les parties, et pour y choisir. Car cette raison externe de discerner, ne sauroit etre fondée que dans l'interne ; autrement c'est discerner l'indiscernable, ou c'est choisir sans discerner." 254 Leibniz, op. cit., § 2, G, VII, 371-2: "Une simple volonté sans aucun motif (a mere will) est une fiction non seulement contraire à la perfection de Dieu, mais encor chimerique et contradictoire, incompatible avec la definition de la volonté". 255 Leibniz, op. cit., § 1, G, VII, 371: "Dans les choses indifferentes absolument, il n'y a point de choix, et par consequent point d'election ny volonté, puisque le choix doit avoir quelque raison ou principe"; § 3, G, VII, 372: "Il est indifferent de ranger trois corps egaux et en tout semblables, en quel ordre qu'on voudra, et par consequent ils ne seront jamais rangés par celuy qui ne fait rien qu'avec sagesse. Mais aussi étant l'auteur des choses, il n'en produira point, et par consequent il n'y en a point dans la nature."; Leibniz, op. cit., § 19, G, VII, 374: "Lorsque deux choses incompatibles sont egalement bonnes, et que tant en elles que par leur combinaison avec d'autres, l'une n'a point d'avantage sur l'autre ; Dieu n'en produira aucune." Ainda, a nível de princípio geral, vide Leibniz, Essais de Théodicée, 1ª parte, § 8, G, VI, 107: "on peut dire de même en matiere de parfaite sagesse, qui n'est pas moins reglée que les Mathematiques, que s'il n'y avoit pas le meilleur (optimum) parmy tous les mondes possibles, Dieu n'en auroit produit aucun." Chama-se a atenção para o facto de não ser menos regulada a escolha divina que as verdades matemáticas. 256 E, para, aparentemente, dar a mais completa razão às abordagens de Sklar da por ele denominada P2 (Sklar, SS, 175-6), cuja abordagem central se expressa na questão: "Does the principle seem a logical truth?"; até mesmo uma abordagem empírica se encontra nestas passagens, embora a hipótese desta abordagem seja colocada a um nível residual: "Of course it still may be an empirical truth about the actual world – who can tell?" Cf. Leibniz, Streitschriften..., 4º escrito, § 4, G, VII, 372. 257 Leibniz, op. cit., § 18, G, VII, 374.

129

de facto, duas. Todavia, considera essa suposição contrária à sabedoria divina e ao princípio da razão suficiente. 258 Significa isso que a necessidade de as coisas serem discerníveis é meramente hipotética. Por que razão então afirmou Leibniz que pôr duas coisas indiscerníveis é pôr a mesma coisa sob dois nomes? Trata-se de uma pura e simples contradição, como afirmará Clarke259? Apesar da falta de clareza de Leibniz, supondo que a contradição é aparente, é possível que a solução se encontre no § 28 da quinta missiva 260 que, por sua vez, já se referia ao § 17 da quarta. 261 A aparente contradição está entre duas coisas iguais que atualmente existissem e duas possibilidades de coisas iguais ou estados ou posições ou instantes ou mundos inteiros antes da própria criação. Aliás, tendo em conta que a própria situação da mónada já a diferencia, poder-se-ia perguntar se seria possível existir duas coisas iguais atualmente. Mas, como Leibniz está longe de esclarecer suficientemente a sua conceção da noção completa da substância, por eventual reserva resultante da estratégia litigiosa, dificilmente poderia afirmar essa impossibilidade, tendo de acabar por recorrer à evocação da sabedoria divina, eventualmente pensando no princípio já abordado em II. 3. da maior variedade possível262, e ao princípio da razão suficiente que volta a remeter a questão para a criação. Porém, chega a salientar que a igualdade que pode existir no domínio ideal, ou seja, matemático, não poderia ocorrer em "dois uns concretos ou dois tempos efetivos ou dois espaços ocupados, quer dizer, verdadeiramente atuais."263 Ora bem, é exatamente perante a possibilidade de tipo matemático de um espaço uniforme antes da criação que Leibniz mais sublinha a impossibilidade de duas entidades iguais para que uma fosse decidida. E é isso que ele está a dizer no § 28: a posição de algo finito num espaço e tempo vazios e infinitos seria indeterminável, mesmo para Deus; poder-se-ia admitir a hipótese de duas entidades ou ordens iguais apenas para demonstrar que elas só poderiam ser uma porque o que elas eram em si mesmas era idêntico; mesmo partindo do espaço absoluto, a indiscernibilidade poderia ser colocada como forma de impossibilitar uma razão suficiente para uma posição em vez da outra. Claro que a partir do momento em que a posição fosse determinada pela coisa, tudo mudava porque o lugar era relativo à coisa e não uma posição num espaço 258

Leibniz, op. cit., 5º escrito, §§ 25-26, G, VII, 394-5: "Quand je nie qu'il y ait deux gouttes d'eau entierement semblables, ou deux autres corps indiscernables, je ne dis point qu'il soit impossible absolument d'en poser ; mais que c'est une chose contraire à la sagesse divine, et qui par consequent n'existe point. J'avoue que si deux choses parfaitement indiscernables existoient, elles seroient deux. Mais la supposition est fausse, et contraire au grand Principe de la raison. Les philosophes vulgaires se sont trompés, lors qu'ils ont crú, qu'il y avoit des choses differentes solo numero, ou seulement parce qu'elles sont deux ; et c'est de cette erreur que sont venues leur perplexités sur ce qu'ils appelloient le principe d'individuation." 259 Clarke, op. cit., 5ª réplica, §§ 26-32, G, VII, 424. Ver II.3, nota 80. 260 Leibniz, op. cit., § 28, G, VII, 395: "Je ne dis pas que deux points de l'Espace sont un même point, ny que deux Instans du temps sont un même instant, comme il semble qu'on m'impute : mais on peut s'imaginer, faute de connoissance, qu'il y a deux instans differens, où il n'y en a qu'un [...], que souvent en Geometrie on suppose deux, pour representer l'erreur d'un contredisant, et on n'en trouve qu'un. Si quelcun supposoit qu'une ligne droite coupe l'autre en deux points, il se trouvera au bout du compte, que ces deux points pretendus doivent coincider, et n'en sauroient faire qu'un. Cela arrive aussi quand une droite qui coupe la courbe en tout autre cas, devient Tangente." 261 Leibniz, op. cit., 4º escrito, § 17, G, VII, 374: "Et c'est comme dans la Geometrie, où l'on prouve quelque fois par la supposition même, qu'une figure soit plus grande, qu'en effect, elle n'est point plus grande. C'est une contradiction, mais elle est dans l'hypothese, laquelle pour cela même se trouve fausse." 262 Enunciado em muitas passagens. A título de exemplo, Leibniz, La Monadologie, § 58, G, VI, 616: "C'est le moyen d'obtenir autant de varieté qu'il est possible, mais avec le plus grand ordre qui se puisse, c'est à dire c'est le moyen d'obtenir autant de perfection qu'il se peut." 263 Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 27, G, VII, 395: "Mais il n'en est pas de même de deux Uns concrets, ou de deux temps effectifs, ou de deux espaces remplis, c'est à dire, veritablement actuels."

130

absoluto. Essa própria indeterminação do espaço e do tempo é, para Leibniz, o sinal de que se trata de um contínuo ideal matemático e não de qualquer coisa concreta no mundo. Os enunciados que se possam fazer acerca do espaço e do tempo, em si mesmos, enquanto possibilidades ideais de todos os mundos possíveis são, de facto, do âmbito das verdades de razão. 264 Nada na realidade pode ser indeterminado e, se o fosse, nunca poderia ter-se tornado real, não só devido à regulação da criação divina pelo critério do melhor, mas por causa dessa própria indeterminação, como no exemplo da Teodiceia de uma esfera cujas dimensões fossem indeterminadas. 265 O que estes argumentos de Leibniz procuravam mostrar é a inadequabilidade dessas entidades abstratas para pensar as realidades concretas. É a essa indeterminação do tempo e do espaço abstratos, ideais e absolutos, do domínio das verdades de razão, que, finalmente, Leibniz se está a referir ao afirmar que "todos os tempos e todos os espaços, neles próprios, sendo perfeitamente uniformes e indiscerníveis, não poderiam agradar mais um que outro." 266 Longe de ser uma contradição, todo o desenvolvimento da questão se Deus poderia ter criado o mundo mais cedo, tenta mostrar que, seja qual fosse a hipótese consistente da possibilidade de criar o mundo mais cedo, dependeria das coisas que nesse mundo criaria, incluindo, por exemplo, anjos que tivesse criado antes das estrelas e dos planetas e dos animais e plantas. 267 Finalmente, poder-se-ia pensar que a perentória rejeição de qualquer incerteza na questão da diversidade empírica corresponderia a uma pretensão de prova 264

Uma boa síntese deste confronto entre as indiferenciadas ideias abstratas ideais e as infinitamente variadas realidades concretas é dada na carta para a Eleitora Sofia de 31/10/1705, G, VII, 562-3: "C'est que la matiere, que le decours des choses, qu'enfin tout composé actuel est une quantité discrete, mais que l'espace, le temps, le mouvement mathematique, l'intension ou l'accroissement continuel qu'on conçoit dans la vistesse, et dans d'autres qualités, enfin tout ce qui donne une estime qui va jusqu'aux possibilités, est une quantité continuée et indeterminée en elle-même, ou indifferente aux parties qu'on y peut prendre, et qui s'y prennent actuellement dans la nature. La Masse des corps est divisée actuellement d'une maniere determinée, et rien n'y est exactement continué ; mais l'espace ou la continuité parfaite qui est dans l'idée, ne marque qu'une possibilité indeterminée de diviser comme l'on voudra. Dans la matiere et dans les realités actuelles le tout est un resultat des parties : mais dans les idées ou dans les possibles (qui comprennent non seulement cet univers, mais encor tout autre qui peut estre conçu, et que l'entendement divin se represente effectivement), le tout indeterminé est anterieur aux divisions, comme la notion de l'entier est plus simple que celle des fractions, et la precede. [...] Pour mieux concevoir la division actuelle de la matiere a l'infini, et l'exclusion qu'il y a de toute continuité exacte et indeterminée, il faut considerer que Dieu y a déja produit autant d'ordre et de varieté qu'il estoit possible d'y introduire jusqu'icy, et qu'ainsi rien n'y est resté d'indeterminé, au lieu que l'indeterminé est de l'essence de la coutinuité." 265 Leibniz, Essais de Théodicée, 2ª parte, § 196, G, VI, 232: "C'est comme si l'on imaginoit que Dieu eût decerné de faire une sphere materielle, sans qu'il y eût aucune raison de la faire d'une telle ou telle grandeur. Ce decret seroit inutile, il porteroit avec soy ce qui en empêcheroit l'effect." Veja-se como o que está em questão é a indeterminação da grandeza, uma característica quantitativa, e não nenhuma característica "puramente qualitativa". Da mesma forma, a rejeição de P3 porque, supostamente, rejeitaria a posição no espaço absoluto por não ser uma característica "puramente qualitativa", não corresponde de todo ao que Leibniz afirma (cf. Sklar, SS, 179). Num contínuo vazio uniforme infinito, qualquer posição seria quantitativamente indeterminada e, para que algo exista, tem que existir determinadamente. Por Deus ser o princípio das existências é que as suas decisões têm que ser totalmente determinadas e não meramente abstratas: Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 66, G, VII, 407: "Les resolutions de Dieu ne sont jamais abstraites et imparfaites, comme si Dieu decernoit premierement à creer les deux cubes, et puis decernoit à part où les mettre. Les hommes, bornés comme ils sont, sont capables de proceder ainsi ; ils resoudront quelque chose, et puis ils se trouveront embarrassés sur les moyens, sur les voyes, sur les places, sur les circonstances. Dieu ne prend jamais une resolution sur les fins, sans en prendre en même temps sur les moyens, et sur toutes les circonstances." 266 Leibniz, op. cit., § 60, G,VII, 406: "On ne doit donc point dire, comme l'on fait icy, que Dieu a creé les choses dans un espace, ou dans un temps particulier, qui luy a plû, car tous les temps, et tous les espaces, en eux mêmes, estant parfaitement uniformes et indiscernables, l'un ne sauroit plaire plus que l'autre." 267 Leibniz, op. cit., §§ 55-59, G, VII, 404-6.

131

empírica do princípio da identidade dos indiscerníveis.268 Nada poderia permitir uma comprovação empírica dessas.269 Leibniz pretende apenas que a experiência confirme aquilo que já foi concluído de forma metafísica.270 Se a contra-argumentação de Clarke neste tópico fosse especialmente fraca ou até omissa (o que não é bem o caso), tal não se deveria certamente ao facto de Newton julgar que o mais forte argumento de Leibniz seria aquele que será tratado na próxima secção. Pelo contrário, a julgar pela linha de argumentação proveniente dos Principia, Newton estaria convencido, como Sklar sublinha, que a maior força da sua posição advinha de argumentos científicos suportados por alegados experimentos cruciais.271 Se a argumentação fosse aqui mais fraca, isso seria, naturalmente, atribuível ao menor à vontade de Newton em questões metafísicas, muito embora Clarke pudesse colmatar esse facto. Porém, é preciso não esquecer que Clarke se comporta sempre (e ainda mais nesta polémica) como um escolástico newtoniano, sempre preocupado em não extravasar o quadro doutrinário proposto pelo seu mentor. Só isso justifica que se submeta a correções newtonianas, afirmadas como se fossem de Clarke, como aconteceu na questão dos atributos ou modos tratada em IV. 2. De qualquer forma, não é verdade que Clarke nada tenha argumentado de relevante a este propósito. De facto, até apresentou aqui uma das teses mais relevantes para esta dissertação, no domínio do problema da liberdade. Trata-se das razões de conjunto, em contraposição ao que chama motivos ou razões externas272 tratadas nas secções entre III. 1 e III. 3, com as quais Clarke compatibiliza a necessidade moral com a aparente indiferença da criação num espaço vazio infinito uniforme. No primeiro passo em que são evocadas, a única razão que permite a Clarke apresentar o argumento leibniziano como uma contradição é o facto de fundir a abordagem do espaço como absoluto (onde não há razão para pôr algo num lugar em vez do outro) com a do espaço como relativo (onde os dois possíveis 268

Leibniz, op. cit., § 23, G. VII, 394: "J'avois allegué, que dans les choses sensibles on n'en trouve jamais deux indiscernables, et que (par exemple) on ne trouvera point deux feuilles dans un jardin, ny deux gouttes d'eau parfaitement semblables. On l'admet à l'egard des feuilles, el peutetre (perhaps) à l'egard des gouttes d'eau. Mais on pouvoit l'admettre sans balancer, ou sans perhaps (senza forse, diroit un Italien) encore dans les gouttes d'eau." 269 Naturalmente, poder-se-ia interpretrar indutivamente a passagem subsequente, Leibniz, op. cit., § 24, G, VII, 394: "c'est tout comme icy". Mas parece mais consistente tratar-se da sustentação de uma analogia generalizada com base no próprio princípio metafísico. É, aliás, uma frase que repete várias vezes, e. g., a propósito da rejeição dos átomos na correspondência com Hartsoeker, G, III, 497, 500, etc. 270 Veja-se a conclusão da passagem já transcrita da carta para a Eleitora Sofia, G, VII, 563: "C'est ce que la perfection divine apprend à nostre Esprit et que l'experience même confirme par dos sens." 271 Sklar, SS, 165: "a scientific argument resting upon allegedly crucial observational facts." 272 Clarke, op. cit., 3ª réplica, § 5, G, VII, 369: "The Argument in This Paragraph, is; That because Space is Uniform or Alike, and One Part does not differ from Another; therefore the Bodies created in One place, if they had been created in Another Place (supposing them to keep the same Situation with regard to each other) would still have been created in the Same Place as before: Which is a manifest Contradiction. The Uniformity of Space, does indeed prove that there could be no External Reason, why God should create things in One place rather than in another: But does That hinder his Own Will, from being to it self a sufficient reason of Acting in Any place, when All Places are Indifferent or Alike, and there be good reason to act in Some place?"; Clarke, op. cit., 4ª réplica, § 18, G, VII, 385: "The Uniformity of all the parts of Space, is no Argument against God's acting in Any Part, after what manner he pleases. God may have good reasons to create finite Beings, and Finite Beings can be but in particular Places. And, all places being originally alike; even though Place were nothing else but the Situation of Bodies; God's placing one cube of matter behind another equal cube of matter, rather than the other behind That; is a choice in no wise unworthy of the Perfections of God, though Both these Situations be perfectly equal: Because there may be very good reasons why Both the Cubes should exist, and they cannot exist but in one or other of equally reasonable Situations." Cf. para a posição geral, já antes examinada, a pretexto do exemplo da balança, Clarke, op. cit., §§ 1-2, G, VII, 381, transcrita em III. 1, nota 16. Vide Clarke, op. cit., § 15, G, VII, 384-5; 5ª réplica, §§ 1-20, G, VII, 422-3.

132

lugares seriam o mesmo porque seriam formados pela criação de algo). Mais adiante, apresenta-se o argumento dos cubos de matéria para reiterar a tese de que o facto do problema da ordenação ser indiferente, seria idêntico num espaço relativo. O encerramento da questão por Clarke, já tratado em III. 1, toma como ponto de partida exatamente a questão da possibilidade ou não de indiscerníveis, após Leibniz ter admitido que se, de facto, existissem duas coisas iguais, atualmente, elas seriam, de facto duas.273 Não parece notar, porém, que existe uma diferença enorme entre afirmar que elas poderiam ser criadas idênticas numa ordem indiferente, num espaço vazio absoluto, e afirmar que, se existissem, seriam, de facto, duas. No primeiro caso, não seria possível porque, para algo existir, teria de ser determinado. No segundo caso, trata-se de uma proposição condicional que, por isso mesmo, é respondida com a condição geral da existência segundo Leibniz, os critérios da sabedoria divina, que põe em causa a possibilidade do antecedente. Porém, são esses mesmos critérios que, em seguida, Clarke questiona. Mesmo que Leibniz apresentasse uma argumentação mais completa para lá da exigência de uma razão suficiente para que uma coisa fosse colocada numa situação em vez da outra, como a da afirmação de que só o melhor mundo possível poderia corresponder à perfeição e sabedoria de Deus e de que esse melhor mundo teria de ser o que continha maior variedade, Clarke poderia sempre questionar tais juízos de valor. Não é tradicional considerar mais perfeito o mais imutável, o mais geral, o mais uniforme, etc.? Não é o próprio Deus mais perfeito exatamente por isso? Porque não considerar que seria mais perfeito que a partir de blocos de uma mesma matéria, homogénea, se criasse toda a profusão de diversidade que vemos no mundo físico? Também não seria isso conseguir o máximo de efeitos com a maior economia de meios? Não poderia ser isso considerado o mundo mais perfeito possível? Naturalmente, a resposta leibniziana tenta resolver outros problemas como o problema idealista da comunicação entre a mente e o corpo, a explicação da atividade na natureza, a sustentação de uma extensão infinitamente divisível, a compatibilização entre a divisão e a continuidade, etc., aliás como também a de Newton. Mas, no quadro da argumentação apresentada, é difícil perceber por que a sabedoria divina não poderia ter criado partículas iguais ou, pelo menos, homogéneas. Ao contrário, é muito importante, para Newton, não pretender determinar rigorosamente os critérios divinos, não apenas para defender o espaço absoluto, mas também para defender o seu entendimento de liberdade divina. Já anteriormente se viu que todas estas (e outras) passagens estão pejadas de acusações de fatalismo e necessitarismo em Leibniz. Para lá da negação que duas coisas iguais fossem uma, que os seus lugares fossem um, que dois pontos ou dois instantes iguais fossem um, que dois estados iguais ou indiferentes fossem o mesmo estado, que dois mundos fossem o mesmo em diferentes partes do espaço, Clarke preocupa-se sempre em fazer depender das razões certamente sábias, mas desconhecidas, de Deus, a possibilidade de o mundo ter começado mais cedo ou mais tarde, ter feito o mundo, se 273

Clarke, op. cit., 5ª réplica, §§ 21-25, G, VII, 423-4: "If it is possible for God to make or to have made two Pieces of Matter exactly alike, so that the transposing them in Situation would be perfectly indifferent; this learned Author's Notion of a sufficient Reason, falls to the Ground. To this he answers; not, (as his Argument requires,); that 'tis impossible for God to make two Pieces exactly alike; but, that 'tis not Wise for him to do so. But how does he know, it would not be Wise for God to do so? Can he prove that it is not possible God may have Wise Reasons for creating Many Parts of Matter exactly alike in different Parts of the Universe? The only Argument he alledges, is, that then there would not be a sufficient Reason to determine the Will of God, which Piece should be placed in which Situation. But if, for ought that any otherwise appears to the contrary, God may possibly have many wise Reasons for creating many Pieces exactly alike; will the Indifference alone of the Situation of such Pieces, make it impossible that he should create, or impossible that it should be Wise in him to create them?"

133

finito, noutro lugar ou movê-lo para lá, ter-lhe dado uma outra ordem, ter determinado o movimento original num sentido ou no outro, etc. 274 O desconhecimento do entendimento, da substância e do desígnio de Deus parece ser um elemento fundamental da filosofia newtoniana,275 quase parecendo protegê-lo contra quaisquer pretensões de esclarecer os desígnios divinos.276 E isto não porque defenda, como já foi visto, uma completa arbitrariedade, visto, tal como Leibniz e Malebranche, supor a sua vontade guiada pelas suas ideias,277 mas porque quer reservar para as eternamente insondáveis razões divinas a determinação das suas escolhas. Por isso, tal como ataca as pretensões leibnizianas de penetrar nas razões divinas, considerando que se está a sujeitar Deus à necessidade lógica ou física, não pretende sequer que as leis divinas que descobriu não possam ser alteradas no espaço e no tempo.278 8. O próprio espaço: o movimento e a força; a observabilidade Como já foi referido na secção anterior, este segmento da discussão é apenas um dos exemplos utilizados na discussão sobre a alegada indiscernibilidade de dois pontos, lugares, coisas, instantes, estados ou mundos, no espaço absoluto vazio. A novidade foi a de introduzir o movimento e as correspondentes forças na discussão. Clarke introduziu o tema da seguinte forma: "Se o espaço nada fosse que não a ordem das coisas a coexistirem, seguir-se-ia que se Deus movesse, numa linha reta, todo o mundo material inteiro, a seja que velocidade fosse, ele continuaria a estar no mesmo lugar e nada receberia qualquer choque na mais súbita paragem desse movimento."279 A resposta de Leibniz não parece dar conta do elemento novo introduzido neste argumento: o choque resultante de uma súbita paragem. Pelo contrário, continuou a afirmar que avançar o mundo em linha reta no meio de um espaço vazio infinito, seria uma suposição quimérica, pois daria origem a um estado exatamente idêntico ao primeiro e, como tal, nada mudaria.280 Para despertar Leibniz do torpor da indiscernibilidade, Clarke recorre a um exemplo que deveria ser mais familiar, o do navio dos Principia,281 acrescenta-lhe a súbita paragem do exemplo anterior e, para o caso de o seu interlocutor ter dificuldades de entendimento, ainda remete para a Definição VIII dos Principia, nomeadamente para a distinção feita no Escólio entre movimento real e movimento relativo.282 274

Clarke, op. cit., 4ª réplica, §§ 3-6, G, VII, 382; § 13, G, VII, 384. Newton, Philosophiæ naturalis..., Liber tertius, Scholium generale, OO, III, 172-3. 276 Koyré, EN, 131: "notre monde a été créé par la seule volonté de Dieu ; nous ne devons pas, par conséquent, lui prescrire son action mais seulement découvrir ce qu'il a fait."[tr. fr. Georgette P. Vignaux] 277 Newton, ibidem, OO, III, 173, ver II. 4, nota 145. Quase poderia ser subscrito por Leibniz: Toda a diversidade das coisas criadas, cada qual no seu lugar e tempo, só poderia ter surgido a partir das ideias e da vontade de um ser necessariamente existente. Só a referência ao lugar e ao tempo poderia levantar dúvidas. 278 Isaac Newton, Optics, Query 31, OO, IV, 263; quanto ao tempo, nem é preciso sair da polémica, Clarke, op. cit., 2ª réplica, § 8, G, VII, 361; 5ª réplica, § 103, G, VII, 434-5. 279 Clarke, op. cit., 3ª réplica, § 4, G, VII, 368: "If Space was nothing but the Order of Things co-existing; it would follow, that if God should remove in a streight line the whole Material World Entire, with any swiftness whatsoever; yet it would still always continue in the same Place: And that nothing would receive any Shock upon the most sudden stopping of that Motion." 280 Leibniz, op. cit., 4º escrito, § 13, G, VII, 373: "De dire que Dieu fasse avancer tout l'univers, en ligne droite ou autre, sans y rien changer autrement, c'est encor une supposition chimerique. Car deux etats indiscernables sont le même etat, et par consequent c'est un changement qui ne change rien. De plus, il n'y a ny rime ny raison. Or Dieu ne fait rien sans raison ; et il est impossible qu'il y en ait icy. Outre que ce seroit agendo nihil agere, comme je viens de dire, à cause de l'indiscernabilité." 281 Newton, op. cit., Philosophiæ naturalis..., Def. VIII, Scholium, IV, OO, II, 7. 282 Clarke, op. cit., 4ª réplica, § 13, G, VII, 384: "If the World be Finite in Dimensions, it is moveable by the Power of God; and therefore my Argument drawn from that moveableness, is conclusive. Two Places, though exactly alike, are not the same Place. Nor is the Motion or Rest of the Universe, the same State; 275

134

Que os efeitos de uma súbita paragem num barco sejam referidos ao espaço absoluto, parece discutível. O mesmo acontece com a célebre experiência do balde relatada nos Principia.283 Como Sklar comenta, tais forças que produzem a concavidade na água, podem ser o resultado do movimento em relação ao laboratório ou à Terra, mas ilustram fenómenos astronómicos que seriam dificilmente explicáveis da mesma forma.284 Porém, se na época a tangente inercial que explica, conjuntamente com a força centrípeta, a elipse planetária se poderia referir ao espaço absoluto, hoje sabe-se que o próprio sistema solar orbita a galáxia285 e, na altura, as retas dessas tangentes da órbita, por exemplo, lunar também se referiam à elipse que ia se movendo no espaço e que, portanto, não tinha referencial fixo. Ora, é exatamente a busca de um referencial fixo que Newton não julga ser seguro encontrar num corpo celeste que justifica a sustentação astronómica do espaço absoluto.286 Quanto ao exemplo das duas bolas ligadas por uma corda, girando em torno de um centro comum de gravidade, no meio de um imenso vácuo, sem nada de externo e sensível que servisse de referência, não é apenas um salto que ultrapassa a generalização indutiva mais arrojada,287 parece entrar em contradição com a passagem já referida em que Newton reserva à liberdade divina a possibilidade de ter feito, no infinito espacial, outros mundos com outras leis. 288 Como é muito improvável uma distração em tão vistos e revistos textos quer por Newton, quer pelos any more than the Motion or Rest of a Ship, is the same State, because a man shut up in the Cabbin cannot perceive whether the Ship sails or not, so long as it moves uniformly. The Motion of the Ship, though the man perceives it not, is a real different State, and has real different Effects, and upon a sudden stop would have other real Effects; and so likewise would a indiscernable Motion of the Universe. To This Argument, no Answer has ever been given. It is largely insisted on by Sr Isaac Newton in his Mathematical Principles (Definit. 8) where, from the Consideration of the Properties, Causes, and Effects of Motion, he shows the difference between real Motion, or a Bodie's being carried from one part of Space to another; and relative Motion, which is merely a change of the Order or Situation of Bodies with respect to each other. This Argument is a Mathematical one; showing, from real Effects, that there may be real Motion, where is none relative; and relative Motion, where there is none real". 283 Newton, op. cit., OO, II, 10. 284 Sklar, SS, 183: "Now one might think that such forces are the result of the relative motion of water and the laboratory, or perhaps the relative motion of water to the earth. But when one realizes the pervasiveness of such centrifugal forces throughout the observable astronomical universe (it is the same force that "keeps the planets from falling into the sun"), despite the widely variant material surroundings of these objects, one quickly sees that the motion responsible for the forces cannot be taken as motion relative to any ordinary material object." Sklar apresenta este exemplo como um "thought experiment", mas Newton apresenta-o como uma experiência efetivamente realizada: "ut ipse expertus sum". 285 É, porventura, por causa de, enfim, encontrar a referência ao espaço absoluto que Newton apenas admite ou que o sistema solar esteja em repouso, ou que esteja num movimento retilíneo uniforme: Newton, US, 256: "Caeterum totum coeli Planetarii Spatium vel quiescit (ut vulgo creditur) vel uniformiter movetur in directum et perinde Planetarum commune centrum gravitatis (per legem 4) vel quiescit vel una movetur." Da mesma forma, também Clarke diz o mesmo, claramente por só admitir a inércia de movimento ou de repouso da totalidade do sistema, numa das notas à obra de Rohault: Jacobi Rohaulti, trad. lat. e notas Samuel Clarke, Physica, Editio Quarta, Londini, Jacobi Knapton, 1718, Pars Prima, Caput X, 2, p. 36, nota: "ipsum etiam totius Systematis centrum, quo universa corporum ad nos spectantium natura continetur, quiescatne an moveatur uniformiter in directum, sciri omnino non possit." Esta passagem tem a vantagem de se referir inequivocamente ao movimento absoluto que tem como referência o espaço absoluto. Cf. Newton, Philosophiæ naturalis..., Liber tertius, Hyp. I, Prop. XI, Prop. XII & Corol., OO, III, 27-29. 286 Newton, op. cit., Def. VIII, Scholium, IV, OO, II, 8. Naturalmente, existiriam motivos, porventura bem mais fortes, de ordem metafísica e teológica. 287 Sklar, SS, 186: "a leap that cannot be assimilated to the inductive generalization of (1)" que já era considerada um "enormous inductive leap" (p. 185). 288 Newton, Optics, Query 31, OO, IV, 263: "And since space is divisible in infinitum, and matter is not necessary in all places, it may be also allowed, that God is able to create particles of matter of several sizes and figures, and in several proportions to space, and perhaps of different densities and forces, and thereby to vary the laws of Nature, and make worlds of several sorts in several parts of the universe."

135

seus colaboradores, é possível que Newton considerasse a força inercial tão essencial à matéria que não se poderia alterar em qualquer mundo ou circunstância possível, ao passo que a força gravítica e outros princípios ativos que não se podiam atribuir à passividade da matéria, poderiam ser alterados pela vontade divina.289 Leibniz responderá através do esclarecimento da resposta anterior, distinguindo dois critérios nessa resposta anterior: a mudança que nada muda é convertida no critério da observabilidade; a ausência de razão no da finalidade. "Um tal movimento não produziria nenhuma mudança observável e seria sem finalidade." Alertado pelo exemplo de alguém fechado numa cabina de um navio que se moveria uniformemente, reconhece que "o movimento é independente da observação; mas [...] não é de todo independente da observabilidade. Não há qualquer movimento quando não há qualquer mudança observável. E mesmo quando não há qualquer mudança observável, não há qualquer mudança de todo."290 Para que algo finito se mova, é necessário que possa mudar de situação em relação a qualquer outra coisa.291 Este critério da observabilidade, 289

Newton nunca defendeu que a gravidade fosse uma propriedade essencial da matéria: Newton, Segunda carta para Bentley, 17 de Janeiro de 1692/3, OO, IV, 437: "You sometimes speak of gravity as essential and inherent to matter. Pray do not ascribe that notion to me; for the cause of gravity is what I do not pretend to know, and therefore would take more time to consider of it." Existem imensos textos onde Newton faz, pelo menos, esta suspensão de juízo, mas o prefácio de Cotes da 2ª edição dos Principia lança a dúvida acerca da verdadeira posição de Newton. Percebe-se pela resposta de Cotes a Clarke que a versão original ainda era mais perentória e terá sido alterada devido à advertência de Clarke (cf. Cotes, CC, carta para Clarke de 25 de Junho de 1713, 158). Porém, ao equiparar a gravidade, como qualidade primária de todos os corpos, à extensão, mobilidade e impenetrabilidade (cf. Cotes, Cotesii Præfatio in editionem secundam, OO, II, xix), Cotes acaba por dizer o mesmo, visto estas últimas serem, indubitavelmente, para Newton, qualidades essenciais (Newton, Philosophiæ naturalis..., Liber tertius, Regula III, OO, III, 3). É perfeitamente compreensível a preocupação de Clarke, visto a sua metafísica newtoniana depender muito do caráter estritamente passivo da matéria, dependendo os princípios ativos (os princípios da liberdade, como foi visto) de Deus e dos espíritos. Além disso, já foi visto nesta dissertação que a arbitrariedade das leis da gravitação era utilizada como um sinal de um desígnio livre, em vez de uma determinação necessária. Uma carta de Newton de 31 de Março declara que, eventualmente por causa das polémicas com Leibniz, não deveria ver o futuro prefácio de Cotes (cf. Newton, CC, carta para Cotes de 31 de Março de 1713, 157). Se, de facto, não o viu e não o sancionou, é o que aqui não se pode afirmar. Porém, Newton sentiu necessidade de reafirmar, na advertência de 1717 da edição de 1718 da Ótica, que não considerava a gravidade uma propriedade essencial dos corpos (cf. Newton, Optics, Advertisement II, OO, IV, 4). Da mesma forma, à Regra III, introduzida exatamente na 2ª ed. dos Principia, Newton acrescenta, na 3ª ed., um argumento para negar que a gravidade, ao contrário da inércia, fosse essencial aos corpos, devido a diminuir à medida que os corpos estavam mais afastados da Terra: Newton, Philosophiæ naturalis..., Liber tertius, Regula III, OO, III, 4: "Attamen Gravitatem corporibus essentialem esse minimè affirmo. Per vim insitam intelligo solam vim inertiæ. Hæc immutabilis est. Gravitas, recedendo à Terra, diminuitur." 290 Leibniz, op. cit., 5º escrito, § 52, G, VII, 403-4: "il ne paroist point raisonnable que l'univers materiel soit fini ; et quand on le supposeroit, il est deraisonnable qu'il ait du mouvement, autrement qu'en tant que ses parties changent de situation entre elles : parce qu'un tel mouvement ne produiroit aucun changement observable, et seroit sans but. Autre chose est quand ses parties changent de situation entr'elles, car alors on y reconnoist un mouvement dans l'espace, mais qui consiste dans l'ordre des rapports, qui sont changés. On replique maintenant, que la verité du mouvement est independante de l'observation, et qu'un vaisseau peut avancer sans que celuy qui est dedans s'en apperçoive. Je reponds que le mouvement est independant de l'observation, mais qu'il n'est point independant de l'observabilité. Il n'y a point de mouvement, quand il n'y a point de changement observable. Et même quand il n'y a point de changement observable, il n'y a point de changement du tout." Já anteriormente, na quinta missiva, de forma menos desenvolvida, Leibniz havia explicado os dois critérios referidos: § 29, G, VII, 395-6. 291 Leibniz, op. cit., § 31, G, VII, 396: "Je n'accorde point que tout fini est mobile. Et selon l'hypothese même des adversaires, une partie de l'espace, quoyque finie, n'est point mobile. Il faut que ce qui est mobile, puisse changer de situation par rapport à quelque autre chose, et qu'il puisse arriver un état nouveau discernable du premier : autrement le changement est une fiction. Ainsi il faut qu'un fini mobile fasse partie d'un autre, à fin qu'il puisse arriver un changemeut observable."

136

apesar de epistémico, 292 não é apenas epistémico, porque está em causa a indiscernibilidade ou a indeterminação até para Deus,293 como foi já foi sublinhado na secção anterior – é assim também mais um critério metafísico. Aliás, Leibniz admite um estatuto ontologicamente superior de observabilidade não apenas quando fala de fenómenos verdadeiros, reais ou bem fundados, mas sobretudo quando fala de fenómenos de Deus.294 Se o critério da observabilidade faz sentido, também o faz o da indiscernibilidade. A indiscernibilidade é a inobservabilidade. Porém, a pressão suscitada pelo recurso aos Principia acaba por levar a que Leibniz introduza uma tese que, ao menos na polémica, constitui uma novidade: há de facto uma diferença entre movimento relativo e absoluto, mas essa diferença não reside numa nova relação, nesse caso, ao espaço absoluto como se fosse uma coisa fixa; essa diferença reside na causa do movimento estar no corpo que se move e não num outro corpo.295 Que essa distinção possa ser empiricamente feita na conceção leibniziana, não é, porém, claro. Aliás, com os seus objetivos de tudo compatibilizar, Leibniz tentou defender que geocentrismo ou heliocentrismo só dependiam da interpretação do movimento e que, sendo o movimento relativo, nem mesmo um anjo poderia determinar quais os corpos em movimento e quais os corpos que constituíam o centro do 292

Sklar, SS., 173-4. Embora se esteja a referir à inobservabilidade do movimento no pleno cartesiano de matéria reduzida à passividade da extensão, é claro quanto ao facto dessa inobservabilidade incluir até mesmo um observador omnisciente: Leibniz, De ipsa natura..., § 13, G, IV, 513: "cum omnia, quae prioribus substituuntur, perfecte aequipolleant, nullum vel minimum mutationis indicium a quocunque observatore, etiam omniscio, deprehendetur". Aliás, se assim não fosse, Leibniz poderia ser acusado de contradição, visto explicar as propriedades da matéria, incluindo as partes mais coesas e paradas, por movimentos, muitos dos quais seriam tão diminutos que seriam inobserváveis para as capacidades humanas. Curiosamente, ao referir-se e ao resumir toda a passagem numa das primeiras cartas para Des Bosses, deixa cair a menção ao observador omnisciente, só utilizando a menção posterior a um anjo, eventualmente para não ferir suscetibilidades do interlocutor: Leibniz, Carta para Des Bosses de 2 de Fevereiro de 1706, G, II, 295: "In mea responsione aliqua Sturmio data Actis Lipsiensibus inserta, reperies demonstrationem (ut mihi videtur) Geometricis parem, quae ostendit, posita (quam statuunt Cartesiani) plenitude rerum et uniformitate materiae, motuque solo accedente, semper aequivalentia sibi substitui, perinde ac si tantum rota perfecte uniformis circa suum axem ageretur, aut orbes concentrici ex materia perfecte similari volverentur, atque ita statum unius momenti a statu alterius momenti distingui non posse, ne ab Angelo quidem". Quanto à pretensão de a demonstração ser igual à dos geómetras, independentemente do seu valor, sublinha o caráter alegadamente a priori da conclusão. 294 Leibniz, Anotação integrada na correspondência com Des Bosses, G, II, 439: "Si corpora sunt phaenomena et ex nostris apparentiis aestimantur, non erunt realia, quia aliter aliis appareant. Itaque realitas corporum, spatii, motus, temporis videtur consistere in eo ut sint phaenomena Dei, seu objectum scientiae visionis. Et inter corporum apparitionem erga nos et apparitionem erga Deum discrimen est quodammodo, quod inter scenographiam et ichnographiam. Sunt enim scenographiae diversae pro spectatoris situ, ichnographia seu geometrica repraesentatio unica est; nempe Deus exacte res videt quales sunt secundum Geometricam veritatem, quanquam idem etiam scit, quomodo quaeque res cuique alteri appareat, et ita omnes alias apparentias in se continet eminenter." Esta é aliás a razão que faz com que a marca da realidade dos fenómenos seja dada pelas verdades eternas: Leibniz, Carta para de Volder de 19 de Janeiro de 1706, G, II, 283: "Neque aliam in phaenomenis habemus aut optare debemus notam realitatis, quam quod inter se pariter et veritabus aeternis respondent." Aliás, a própria concordância entre os fenómenos é sempre concordante com as mesmas verdades eternas. Isto mostra, aliás, que existe algum suporte para falar de um quase realismo físico em Leibniz, mesmo sem se falar de corpos orgânicos e de vínculos substanciais. 295 Leibniz, op. cit., 5º escrito, § 53, G, VII, 404: "Je ne trouve rien dans la definition huitieme des principes Mathematiques de la Nature, ny dans le Scholie de cette definition, qui prouve ou puisse prouver la realité de l'espace en soy. Cependant j'accorde qu'il y a de la difference entre un mouvement absolu veritable d'un corps, et un simple changement relatif de la situation par rapport à un autre corps. Car lorsque la cause immediate du changement est dans le corps, il est veritablement en mouvement ; et alors la situation des autres par rapport à luy, sera changée par consequence, quoyque la cause de ce changement ne soit point en eux." 293

137

movimento.296 O mesmo afirma num texto com pretensões mais gerais que defende a completa relatividade do movimento, em contraste com a força.297 Mesmo supondo uma causa, a mesma parece dissolver-se na complexidade dos movimentos, sobretudo do ponto de vista da observação até mesmo de um anjo. 298 Talvez assim se perceba a afirmação seguinte que restringe essa distinção entre movimento absoluto e relativo ao âmbito matemático e se escuda na afirmação de que todos os corpos estão em movimento.299 O facto de se terem passado 20 anos sobre o mais recente dos outros textos referidos, não parece ter significado uma alteração da sua conceção. Ao se referir à causa do movimento, está a referir-se à força, só que essa está em toda a parte. Mas isso não significa que Leibniz ignorou, efetivamente, os argumentos inerciais de Clarke? Num dos textos referidos a propósito da relatividade do movimento, Leibniz afirma, como um corolário da sua conceção de movimento, que "tudo o que se move por um percurso curvo tenta sempre prosseguir por uma linha reta tangente a ele".300 Não lhe chama inércia porque ainda se mantém agarrado ao conceito kepleriano, mas afirma o mesmo que Newton. Ora, como pode Leibniz afirmar as mesmas forças inerciais que Newton e não tirar as mesmas conclusões em relação ao espaço absoluto? Isso mesmo é que acontece, embora de forma bem pouco explicada, ao considerar, na carta a Huygens já referida, as pretensões newtonianas de provar o movimento absoluto pelas forças inerciais no movimento circular.301 A ordenação das situações de todas as coisas pode 296

Leibniz, OF, 590: "Cum Geometricis demonstrationibus æquipollentiam omnium Hypothesium, in motibus quorumcunque et quotcunque corporum, quæ solis impressionibus corporeis moventur; consequens est ne Angelum quidem discernere posse, in rigore Mathematico, quodnam ex pluribus hujusmodi corporibus quiescat, ac centrum sit motus cæterorum." 297 Leibniz, GM, VI, 247-8 (p. 248 para a relatividade do geocentrismo e heliocentrismo). Mesmo a experiência nada acrescentaria: a dor é a mesma quer a mão bata na pedra, quer a pedra na mão, à mesma velocidade. 298 Leibniz, carta para Hugens de 12/22 de Junho de 1694, GM, II, 184: "Quant à la difference entre le mouvement absolu et relatif, je croy que si le mouvement, ou plustost la force mouvante des corps, est quelque chose de reel, comme il semble qu'on doit reconnoistre, il faudra bien qu'elle ait un subjectum. Car a et b allant l'un contre l'autre, j'avoue que tous les phenomenes arriveront tout de meme, quelque soit celuy dans lequel on posera le mouvement ou le repos ; et quant il y auroit 1000 corps, je demeure d'accord que les phenomenes ne nous sçauroient fournir (ny même aux anges) une raison infallible por determiner le sujet du mouvement ou de son degré ; et que chacun pourroit estre conçu à part comme estant en repos, et c'est aussi tout ce que je crois que vous demandés. Mais vous ne nierés pas (je crois) que veritablement chacun a un certain degré de mouvement, ou, si vous voulés, de la force ; non-obstant l'equivalence des hypotheses." É difícil perceber em que sentido utiliza o termo subjectum. Parece ser a simples causa do movimento, a força cuja origem é a substância, caso em que se identifica com o sujeito lógico, aquele a que são inerentes todos os predicados. 299 Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 53, G, VII, 404: "Il est vray qu'à parler exactement, il n'y a point de corps qui soit parfaitement et entierement en repos ; mais c'est de quoy on fait abstraction, en considerant la chose mathematiquement." 300 Leibniz, GM, VI, 252: "Hinc jam non tantum sequitur, quae in linea curva moventur, conari semper procedere in recta eam tangente". 301 Leibniz, carta para Hugens de 12/22 de Junho de 1694, GM, II, 184-185: "Mr. Newton reconnoist l'equivalence des hypotheses en cas des mouvements rectilineaires ; mais à l'égard des circulaires, il croit que l'effort, que font les corps circulans de s'eloigner du centre ou de l'axe de la circulation, fait connoistre leur mouvement absolu. Mais j'ay des raisons qui me font croire que rien ne rompt la loy generale de l'equivalence." Afirma o mesmo, recordando os tempos em Paris com Huygens, em Leibniz, carta para Hugens 4/14 de Setembro de 1694, GM, II, 199; e num segmento não publicado mesmo na edição Gerhard do Specimen Dynamicum..., Gottfried Wilhelm Leibniz, Specimen Dynamicum, Hamburg, Felix Meiner Verlag, 1982, pp. 22-24: "Motus quoque naturam vidi. Adeo prehendi etiam spatium non esse absolutum quiddam aut reale, adeoque nec mutationem pati nec motum absolutum posse concipi, sed omnem motus naturam ita esse respectivam, ut ex phaenominis mathematico rigore non debeat determinare posse, quid nam quiescat, aut quanto motu quodnam corpus moveatur, ne circulari quidem motu excepto, quanquam aliter visum sic Isaaco Newtono, insigni viro (quo nescio an majus ornamentum

138

ser objeto da geometria e as retas podem ser aí concebidas independentemente de qualquer espaço real absoluto. Já se viu nesta dissertação, em II. 2., que Leibniz considera que os fenómenos se ligam exatamente como as verdades inteligíveis exigem.302 A única diferença em relação a Newton está, neste caso, na metafísica, no facto de se considerar o espaço real ou ideal. Porém, como mesmo em Leibniz, o real não deixa de se ligar como idealmente, ou seja, matematicamente, é deduzido, ele pode explicar os mesmos fenómenos que Newton, exatamente com a mesma geometria euclidiana. 303 A diferença que se verá adiante, a da força não ser algo estranho à matéria, visto a matéria ser considerada uma mera manifestação fenoménica quer da força passiva, quer da ativa, nem é muito relevante neste caso, visto, em Newton, a inércia ser essencial à matéria. Tem razão Clarke nas queixas com que encerra este segmento da polémica? Sinceramente, parece ter. Antes de dizer que não existiam corpos que estivessem verdadeiramente em repouso, Leibniz rejeitou que algo finito tenha de ser movível visto uma parte do espaço não ser, segundo os próprios newtonianos, movível, quando do ponto de vista desses mesmos newtonianos esse espaço é infinito.304 Embora Leibniz diga, por duas vezes, ter respondido a todas as objeções, a verdade é que não considerou o argumento do impacto de uma paragem súbita num mundo finito movido de um lado para o outro.305 Negará Leibniz que se observassem os efeitos inerciais? Se não negasse, como poderia dizer que era inobservável um movimento cujos efeitos se sentiam? Aliás, regressando ao exemplo do balde, se hoje não parece assim tão crucial, a verdade é que parece ter incomodado os partidários do espaço relativo, Huygens, Berkeley e Leibniz.

habuerit Anglia eruditi), qui cum multa praeclara circa motum dixerit, hujus ope ex ipsa vi centrifuga discerni posse putavit, in quo subjecto sit motus, in quo non potui assentiri." Um pouco adiante, afirma que, não havendo ponto fixo no universo, só resta estudar os movimentos relativos. 302 Leibniz, Nouveaux essais..., L. IV, Ch. IV, §§ 1-5, G, V, 373. 303 Na desastrada teoria de 1689, Leibniz, apesar de também poder estar em causa a utilização do cálculo diferencial e, tal como já havia visto Gregory no final da sua crítica (cf. Davide Gregorio, Astronomiæ Physicæ & Geometricæ Elementa, Oxoniæ, Theatrum Sheldonianum, 1702, pp. 103-104), apesar dos diversos pressupostos físicos, chega a conclusões análogas, pois, tal como dizem Hall e Tilling numa nota da edição da correspondência newtoniana (Newton, A. Rupert Hall e Laura Tilling, ed., The Correspondence of Isaac Newton [CN], Vol. VI, Cambridge, Cambridge University Press, 1976, reimpr. 2008, p. 119, nota 1), as teorias eram matematicamente congruentes: "Considering Leibniz's 'Tentamen' as offering a dynamical theory of the motion of a body in an orbit about some centre (not as an account of the solar system) and setting aside all the defects of his 1689 paper, it may be said that (though neither Newton nor Leibniz realized the fact) this theory is congruent mathematically with that of Newton in the Principia. The difference between the two treatments lies in the difference between the physical interpretations of Newton and Leibniz." Que estas interpretações físicas radicam nos pressupostos metafísicos aqui já tratados, o vazio e o pleno, é referido um pouco adiante: "the difference is that between the physics of free space and the physics of the plenum." É, porém, discutível que Leibniz não tivesse consciência dessa congruência. Pelo contrário, a sua consciência da existência de uma "pluralidade de representações matemáticas dos fenómenos", assim como das forças envolvidas, "reforçou a sua crença que a matemática não" poderia "ditar a física e a metafísica." Cf. Domenico Bertoloni Meli, Equivalence and Priority: Newton versus Leibniz, Oxford, Oxford University Press, 1993; Clarendon Press, repr. 2002 [EP], p. 169. Adicione-se, ainda, que a geometria euclidiana não parece ter sido nunca o suporte para a sustentação de qualquer espaço real vazio infinito: cf. Grant, op. cit., pp. 16, 107-8; muito embora o próprio Newton se possa nela basear, ibidem, pp. 232-3. 304 Clarke, op. cit., 5ª réplica, §§ 26-32, G, VII, 425: "My Argument, that the material World must be moveable, if the Whole be Finite; is denied, because the Parts of Space are immoveable, of which the Whole is Infinite and necessarily existing." 305 Clarke, ibidem, G, VII, 424-5: "'Tis affirmed, that the Motion of the material Universe would produce no Change at all; and yet no Answer is given to the Argument I alledged, that a sudden Increase or Stoppage of the Motion of the Whole, would give a sensible Shock to all the Parts: And 'tis as evident, that a circular Motion of the Whole, would produce a vis centrifuga in all the Parts."

139

Huygens, segundo Koyré, não verifica os mesmos resultados,306 Berkeley nega que a água tenha verdadeiramente algum movimento 307 e Leibniz, recorrendo surpreendentemente a argumentos empíricos, tenta pôr em causa o experimento que julga inevitavelmente errado de Newton. 308 O facto de não ter conseguido encontrar argumentos convincentes para contraditar Newton não o impediu de manter as suas conclusões. Além disso, também no caso do exemplo dos Principia das duas bolas a girar no vazio, não era possível observar a tensão da corda? E, se a corda se rompesse e as bolas fossem projetadas na tangente à órbita, exatamente como o próprio Leibniz afirmava que todo o corpo faria se não fosse impedido por outro, como seria possível que se afastassem uma da outra, se nenhum movimento observável tinham anteriormente? A este argumento, Clarke ainda acrescenta um outro, a de se um corpo em órbita em torno do sol, se toda a matéria à sua volta fosse aniquilada, perderia a sua força centrífuga.309 Naturalmente, Leibniz poderia dizer o que não chegou a dizer na polémica, mas dela se extrai: que todo o movimento é fenoménico e, por isso, não existe, se não for observável, visto ser apenas isso, uma aparência; que, na verdade, não existe, como o tempo, porque nunca existe o seu todo como partes coexistentes; que, de facto, a única coisa que existe é o momentâneo esforço para a mudança;310 que a única realidade é a força e que, em qualquer caso, continuaria a existir e a produzir efeitos fenoménicos enquanto alguma coisa existisse. O facto de se refugiar no princípio da plenitude para rejeitar um universo finito, de facto não chega, visto estar em questão se as forças inerciais mostrariam os seus efeitos ou não num mundo apenas possível e segundo um movimento possível segundo o poder de Deus.311 A questão é que Leibniz fazia questão 306

Koyré, EN, "Newton et Descartes", nota 138, p. 152. Cf. Christiaan Huygens, Traité de la Lumiere avec un Discours de la Cause de la Pesanteur, Leide, Pierre Vander Aa, 1690, Discours de la Cause de la Pesanteur, pp. 132-133. 307 George Berkeley, The Works of George Berkeley, D.D., Oxford, Clarendon Press, 1871, Vol. I, A Treatise concerning the Principles of Human Knowledge, 1st. ed., 1710, §§ 114-115, pp. 215-216. 308 Meli, EP, 99-100. Após descrever o experimento newtoniano e os seus objetivos, tomando como referência as notas leibnizianas aos Principia, Bertoloni Meli declara: "According to Leibniz, it is unlikely that at the beginning the motion of the bucket relative to the water is considerable, because the bucket initially does not move much; moreover, it ought to be tested whether the water at the beginning does not follow the motion of the bucket. It is extremely unusual for Leibniz to have recourse to experience rather than to laws of nature to counter an argument. But in one way or the other Newton's experiment has to be wrong, otherwise Leibniz's philosophical system would collapse." 309 Clarke, ibidem, G, VII, 425: "And yet no way is shown to avoid this absurd Consequence, that then the Mobility of one Body depends on the Existence of other Bodies; and that any single Body existing Alone, would be incapable of Motion; or that the Parts of a circulating Body, (suppose the Sun) would lose the vis centrifuga arising from their circular Motion, if all the extrinsick Matter around them where annihilated." Pressupõe-se que se trata de um corpo à volta do sol e não do próprio sol, caso em que só se estaria a falar da rotação do sol e não de uma força centífuga. Aliás, Leibniz utiliza um exemplo similar para o movimento em geral, imaginando a supressão de todos os corpos circundantes, e, ao rejeitar o argumento aristotélico de que, no vazio, a velocidade de um corpo seria instantânea, apesar de admitir a existência de alguma proporcionalidade entre a velocidade e o meio, acaba por defender, implicitamente, o mesmo princípio da inércia: Leibniz, Carta para Des Bosses de 20 de Setembro de 1706, G, II, 318: "Argumentum Aristotelis contra vacuum, quod in vacuo motus futurus esset instantaneus, non satis firmum est, absolute loquendo: nam finge, dum corpus in motu est, circumsita a Deo annihilari, non utique inde notus ipsious augeretur." 310 Leibniz, Specimen Dynamicum..., GM, VI, 235: "Nam motus (perinde ac tempus) nunquam existit, [...] quia nunquam totus existit, quando partes coexistentes non habet. Nihilque adeo in ipso reale est, quam momentaneum illud quod in vi ad mutationem nitente constitui debet." 311 Clarke, op. cit., 5ª réplica, §§ 52-53, G, VII, 427-8: "My Argument here, for the Notion of Space being really independent upon Body, is founded on the Possibility of the material Universe being finite and moveable: 'Tis not enough therefore for this Learned Writer to reply, that he thinks it would not have been wise and reasonable for God to have made the material Universe finite and moveable. He must

140

de defender que só se poderiam e deveriam estabelecer as leis da física a nível fenoménico, tudo devendo ser explicado mecanicamente pelas forças derivativas, pelo que se havia um efeito fenoménico, devia ser possível identificar a causa a nível fenoménico, como no choque entre corpos. 312 É verdade que se trata de uma possibilidade quimérica, mas possível para Deus. Se Leibniz nem a considera, é como se não levasse a sério a sua própria tese de que Deus é livre porque escolheu uma possibilidade de mundo, podendo ter escolhido outra (alegadamente, infinitas outras). Se nem considera uma possibilidade alternativa, está implicitamente a considerar que este mundo é necessário e que Deus não é livre. Por fim, o regozijo de Clarke perante o reconhecimento leibniziano da diferença entre movimento real e movimento absoluto que, alegadamente, implicaria a realidade do espaço diversa da ordem dos corpos,313 é injustificado por duas razões: primeiro, porque Clarke não leu bem – Leibniz defendeu que, estando todos os corpos em movimento, a distinção só era possível porque se fazia matematicamente abstração disso; segundo, porque o movimento era absoluto não por causa da sua relação com o espaço mas por a sua causa estar no próprio corpo, mais precisamente na força que dá origem ao movimento. 9. Átomos e mónadas Tendo em conta a importância do tema no pensamento dos autores envolvidos, é surpreendente a sua menor importância na polémica. Grande parte da sua abordagem decorre no âmbito da questão já tratada da alegada (por Leibniz) indiscernibilidade de duas partículas iguais, assim como da possibilidade clarkiana de razões de conjunto que pudessem satisfazer o princípio da razão suficiente. Como essa discussão já foi amplamente tratada, pouco mais será, agora, do que aflorada. Porém, é sinal da reserva intelectual em que decorreu este combate o facto de Clarke só utilizar a palavra átomo uma vez, mesmo no final da polémica, não para ilustrar a posição newtoniana, mas por causa de uma tese de Epicuro que foi comparada, por Leibniz, com a gravitação,314 e Leibniz só utilizar a palavra mónada duas vezes, uma das quais não se está a referir aos átomos formais do mundo físico, 315 mas ao problema da comunicação entre alma e corpo316 tratado mais adiante. Isso significa que o único passo em que são diretamente

either affirm, that 'twas impossible for God to make the material World finite and moveable; or else he must of necessity allow the Strength of my Argument, drawn from the Possibility of the World's being finite and moveable. Neither is it sufficient barely to repeat his Assertion, that the Motion of a finite material Universe would be nothing, and (for want of other Bodies to compare it with would) produce no discoverable Change: Unless he could disprove the Instance which I gave of a very great Change that would happen; viz. that the Parts would be sensibly shocked by a sudden Acceleration, or stopping of the Motion of the Whole". 312 Leibniz, Specimen Dynamicum..., GM, VI, 236: "Et primitiva quidem [...] animae vel formae substantiali respondet, sed vel ideo non nisi ad generales causas pertinet, quae phaenomenis explicandis sufficere non possunt. Itaque illis assentimur, qui formas in rerum sensibilium causis propriis specialibusque tradendis adhibendas negant"; Leibniz, Carta para de Volder de 20 de Junho de 1703, G, II, 250: "At in phaenomenis seu aggregato resultante omnia jam mechanice explicantur, massaeque se mutuo impellere intellinguntur: neque opus est in his phaenomenis nisi consideratione virium derivativarum, ubi semel constat unde hae resultent, nempe phaenomena aggregatorum ex realitate Monadum." 313 Clarke, op. cit., 5ª réplica, § 53, G, VII, 428. 314 Clarke, op. cit., 5ª réplica, §§ 124-130, G, VII, 440. O que não é de estranhar, visto o próprio Newton preferir o termo partícula e rarissimamente usar o termo átomo. Mas, face às objeções de Leibniz, já parece mais estranho Clarke tanto evitar o termo. 315 Leibniz, Système nouveau de la Nature, § 3, G, IV, 479, nota. 316 Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 91, G, VII, 412.

141

opostas e comparadas as duas conceções é a primeira menção de Leibniz às mónadas.317 Leibniz tenta atacar, desde muito cedo, a conceção atomista, associando-a, através de Demócrito e Epicuro, ao materialismo e à afirmação do vazio espacial, apesar de entrar em contradição, ao admitir que os newtonianos também admitem substâncias imateriais.318 A referência a Hobbes (devida ao materialismo) é deixada cair por negar o vazio, mas a associação com os atomistas antigos é reforçada, apenas considerando Newton pior por admitir ainda mais vazio.319 A resposta de Clarke, longe de negar a associação ao atomismo, considera apenas Epicuro uma corrupção da conceção da matéria e do vácuo, defendida por muitos filósofos gregos antigos que, alegadamente, teriam recebido essa filosofia dos fenícios.320 Trata-se, como é óbvio, de uma referência à prisca sapientia que Newton considerava já ter, na Antiguidade, conhecimento dos átomos, do vazio, do espaço absoluto, da gravidade e dos princípios da gravitação que ele apenas teria redescoberto.321 No início do Sistema do Mundo, alarga a referência a grande parte dos pré-socráticos, a Numa Pompilius, aos egípcios e, mais adiante, aos caldeus, muito embora se esteja a referir especialmente aos movimentos astronómicos. 322 Muitas outras referências mais explícitas chegaram a estar previstas para as suas principais obras. Outras existem associadas às suas interpretações históricas de um monoteísmo primitivo fundido com a ciência, no Egipto, na Babilónia, na Índia e na Caldeia. 323 Porém, não é claro que Newton subscrevesse o juízo depreciativo de Clarke acerca de Epicuro visto, de acordo com Gregory, considerar que a filosofia de Epicuro e Lucrécio teria sido mal interpretada pelos antigos como ateísmo.324 Mas como se haviam passado mais de 20 anos sobre o testemunho referido, poderia acontecer que Newton tivesse retido Demócrito, apenas, como seu antecessor espiritual no âmbito do atomismo antigo, porque é evidente que Clarke não inclui este último na corrupção atribuída a Epicuro, o que significará, certamente, a sua inteira aceitação. Já foi visto em III. 3, como Clarke rejeita todas as restantes tentativas de associação com Epicuro. Quem volta a trazer os átomos para a polémica é Leibniz, com um estranho argumento empírico-metafísico. De facto, o argumento parece empírico pelo facto de se referir a não se encontrar duas folhas ou, pelo microscópio, duas gotas de água ou de 317

Leibniz, op. cit., 5º escrito, § 24, G. VII, 394. Leibniz, op. cit., 2º escrito, § 1, G, VII, 355: "je ne crois pas qu'on aye sujet d'adjouter que les Principes Mathematiques de la Philosophie sont opposés à ceux des Materialistes. Au contraire, ils sont les mêmes, excepté que les materialistes à l'exemple de Democrite, d'Epicure et de Hobbes, se bornent aux seuls Principes Mathematiques, et n'admettent que des corps ; et que les Mathematiciens Chrestiens admettent encor des substances immaterielles." 319 Leibniz, op. cit., § 2, G, VII, 356: "Selon la philosophie de M. Newton (car les Principes Mathematiques n'y decident rien) la matiere est la partie la moins considerable de l'Univers. C'est qu'il admet, outre la matiere, un espace vuide, et que selon luy la matiere n'occupe qu'une tres petite partie de l'Espace. Mais Democrite et Epicure ont soutenu la même chose, excepté qu'ils differoient en cela de M. Newton du plus au moins ; et que peutetre selon eux, il y avoit plus de matiere dans le Monde, que selon M. Newton. En quoy je crois qu'ils étoient preferables". 320 Clarke, op. cit., 2ª réplica, § 2, G, VII, 360: "Many Ancient Greeks, who had their Philosophy from the Phoenicians, and whose Philosophy was corrupted by Epicurus, held indeed in general Matter and Vacuum, but they knew not how to apply those Principles by Mathematiks, to the Explication of the Phaenomena of Nature." 321 Newton, Optics, Q. 28, OO, IV, 237: "And for rejecting such a medium, we have the authority of those the oldest and most celebrated philosophers of Greece and Phœnicia, who made a vacuum and atoms, and the gravity of atoms, the first principles of their philosophy; tacitly attributing gravity to some other cause than dense matter." Cf. Edward Dolnick, The Clockwork Universe - Isaac Newton, the Royal Society, and the Birth of the Modern World, New York, HarperCollins Publishers Inc., 2011, ch. 7, p. 36 [CU]. 322 Newton, De mundi sistemate libri, § 1, OO, III, 179-180. 323 Manuel, RI, 43. 324 McGuire e Rattansi, PP, 110. 318

142

leite iguais. Porém, associa este argumento aos "princípios da verdadeira metafísica".325 Até aí, embora Clarke se tivesse referido à possibilidade de Deus criar duas partículas iguais 326 ou de as ordenar de diversas formas, 327 nunca se havia posto a questão da indivisibilidade. É claro que se poderá questionar se este argumento leibniziano é uma forma séria de pôr esta questão. Clarke, aliás, não terá qualquer dificuldade em superá-la, referindo-se, pela primeira vez, aos átomos como "partes de matéria sólida simples" ou "perfeitamente sólida".328 Mas o argumento leibniziano deve ser visto no âmbito da sua conceção da confirmação empírica das conclusões metafísicas, à luz da qual já faz sentido a referência aos princípios. Mas que conclusões? As que são enunciadas no post-scriptum normalmente associado à quarta resposta, mas que, na verdade, seria um post-scriptum de uma carta anterior.329 Paternalisticamente, Leibniz atribuía à imaturidade pela qual também passara, a imaginação de que se poderia parar o processo de divisão, impondo um limite que permitiria encontrar os primeiros elementos. O argumento apresentado em seguida é uma versão infinitesimal do argumento da plenitude, correspondente à majestade do criador. O mundo de novas criaturas que se pode encontrar no mínimo corpúsculo faltaria se esse corpúsculo fosse um átomo. Estabelecendo o princípio da plenitude, tal como no argumento contra o vazio, se Deus tem a possibilidade de pôr algo aí que torna o mundo maior, não teria razão para não o fazer – logo, fê-lo.330 No argumento clarkiano referido, há um aspeto decisivo para a oposição de posições: implicitamente, Clarke afirma que, se as partes de matéria perfeitamente sólida tiverem a mesma figura e dimensões, serão exatamente iguais. Isso significa que a matéria é reduzida, tal como em Descartes, à sua extensão e, como tal, como bem critica Leibniz, às propriedades geométricas, sem quaisquer determinações intrínsecas, apenas se podendo distinguir por denominações exteriores. 331 A essas propriedades, 325

Leibniz, op. cit.,4º escrito, § 4, G, VII, 372. Ver II. 3, nota 72. Clarke, op. cit., 2ª réplica, § 1, G, VII, 359. Ver III, nota 1. 327 Clarke, op. cit., 3ª réplica, § 2, G, VII, 367. Ver IV. 7, nota 249. 328 Clarke, op. cit., 4ª réplica, §§ 3-4, G, VII, 382: "For the perfectly solid parts of all Matter, if you thake them of equal figure and dimensions (which is always possible in Supposition) are exactly alike". Já transcrita a primeira referência em II. 3, nota 122. 329 Robinet, CLC, 76. 330 Leibniz, op. cit., 4º escrito, P. S., G, VII, 377-8, já transcrita a parte inicial em IV. 4, nota 141. "Nous voudrions que la Nature n'allât pas plus loin, qu'elle fût finie, comme notre esprit : mais ce n'est point connoitre la grandeur et la Majesté de l'Auteur des choses. Le moindre corpuscule est actuellement subdivisé à l'infini, et contient un monde de nouvelles creatures, dont l'Univers manqueroit, si ce corpuscule étoit un Atome, c'est à dire un corps tout d'une piece sans subdivision. [...] Or figurons nous un Espace entierement vuide, Dieu y pouvoit mettre quelque matiere sans deroger en rien a toutes les autres choses : donc il l'y a mise : donc il n'y a point d'Espace entierement vuide : donc tout est plein. Le même raisonnement prouve qu'il n'y a point de corpuscule, qui ne soit subdivisé. [...] Il en est de même des Atomes. Quelle raison peut on assigner de borner la nature dans le progrès de la subdivision ? Fictions purement arbitraires, et indignes de la vraye Philosophie." 331 Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XXVII, § 3, G, V, 214: "Le Principe d'individuation revient dans les individus au principe de distinction dont je viens de parler. Si deux individus estoient parfaitement semblables et égaux et (en un mot) indistinguables par eux mêmes, il n'y auroit point de principe d'individuation ; et même j'ose dire, qu'il n'y auroit point de distinction individuelle ou de differens individus à cette condition. C'est pourquoy la notion des Atomes est chimerique, et ne vient que des conceptions incompletes des hommes. Car s'il y avoit des Atomes, c'est à dire des corps parfaitement durs et parfaitement inalterables ou incapables de changement interne et ne pouvant differer entr'eux que de grandeur et de figure, il est manifeste qu'estant possible qu'ils soyent de même figure et grandeur, il y en auroit alors d'instinguables en soy, et qui ne pourroient estre discernés que par des denominations exterieures sans fondement interne, ce qui est contre les plus grands principes de la raison. Mais la verité est, que tout corps est alterable et même altéré tousjours actuellement, en sorte qu'il differe en luy même de tout autre." 326

143

pelo poder de Deus, foi adicionada a indivisibilidade.332 Já Leibniz havia considerado esta a ficção básica do atomismo, depois de terem purificado a física de todas as outras qualidades misteriosas: a dureza insuperável. 333 Esta teria levado às outras alegadas ficções: o vácuo, a gravidade e, no caso de Epicuro, a declinação dos átomos. Num certo sentido, a redução, em Leibniz, da matéria às propriedades matemáticas é até maior, visto nem incluir esta alegada ficção.334 Mas a matéria é vista por Leibniz como o efeito fenoménico de uma ordem bem diversa. É essa ordem que é incompatível com a abstração matemática levada a cabo pelo mecanicismo, de Descartes a Newton. E é nessa ordem que Leibniz encontra a resposta à questão do que faz cada coisa ser ela própria, distinta de todas as outras, o princípio de individuação, como é também referido na polémica.335 Porém, antes de aí ir, talvez seja útil ver qual a resposta leibniziana à hipótese clarkiana da perfeita simplicidade e solidez: "Não admito na matéria porções perfeitamente sólidas ou que sejam todas de uma peça, sem qualquer variedade ou movimento particular nas suas partes, como se concebem os pretendidos átomos. [...] Cada porção de matéria está atualmente subdividida em partes diversamente movidas e nem uma se assemelha inteiramente a outra." 336 Antecipando um pouco o assunto, Leibniz explica a solidez de forma análoga à gravidade, devido aos tais movimentos conspirantes. A solidez é composta de partículas que se movem tentando escapar, mas sendo repelidas pelos corpos que as rodeiam.337 Todos os corpos têm alguma coesão, 332

Newton, Optics, Query 31, OO, IV, 260: "God in the beginning formed matter in solid massy, hard, impenetrable, [consta também "inertes" na versão latina] moveable particles; of such sizes and figures, and with such properties, and in such proportion to space, as most conduced to the end for which he formed them; and that these primitive particles being solids, are incomparably harder than any Porous bodies compounded of them; even so very hard, as never to wear or break in pieces; no ordinary power being able to divide what God himself made One, in the first creation." 333 Leibniz, Antibarbarus Physicus…, G, VII, 343: "Primus Democritus quod constet, cum Leucippo purgare Physicam conatus est a qualitatibus ἀρρήτοις, dixitque ποιότητας νόμῳ εἴναι, qualitates esse ex opinione, quasi in speciem, non veras res. Unam tamen qualitatem ἄρρητον reliquit duritiem insuperabilem in Atomis suis, utique fictitiam, qua etiam ad vacuum tuendum coactus est, ut sunt errores pariendis erroribus foecundi. Epicurus duo figmenta adjecit, gravitationem Atomorum et declinationem sine causa, quam eleganter irrisit Cicero." 334 Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XXIII, § 12, G, V, 204: "S'il y avoit des Atomes, comme l'Auteur [Locke] le paroissoit croire dans un autre endroit, la connoissance parfaite des corps ne pourroit estre au dessus de tout Estre fini. Au reste si quelques couleurs ou qualités disparoitroient à nos yeux mieux armés ou devenus plus penetrans, il en naistroit apparemment d'autres : et il faudroit un accroissement nouveau de nostre perspicacité pour les faire disparoistre aussi, ce qui pourroit aller a l'infini comme la division actuelle de la matiere y va effectivement." 335 Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 26, G, VII, 395: "Les philosophes vulgaires se sont trompés, lors qu'ils ont crú, qu'il y avoit des choses differentes solo numero, ou seulement parce qu'elles sont deux ; et c'est de cette erreur que sont venues leur perplexités sur ce qu'ils appelloient le principe d'individuation." 336 Leibniz, § 22, G, VII, 394: "Outre que je n'admets point dans la matiere des portions parfaitement solides, ou qui soyent tout d'une piece, sans aucune varieté ou mouvement parliculier dans leur parties, comme l'on conçoit les pretendus Atomes. Poser de tels corps, est encore une opinion populaire mal fondée. Selon mes demonstrations, chaque portion de matiere est actuellement sousdivisée en parties differement mues, et pas une ne ressemble entierement à l'autre." 337 Leibniz, Specimen Dynamicum..., GM, VI, 252: "Hinc jam non tantum sequitur, quae in linea curva moventur, conari semper procedere in recta eam tangente, sed etiam, quod minime aliquis expectet, oritur hinc vera notio firmitatis. Nam si ponamus aliquod ex iis quae firma dicimus (quanquam revera nihil sit absolute firmum fluidumve, sed certum habeát firmitatis fluidibilitatisque gradem, a nobis autem ex praedominio respectu nostrorum sensuum denominetur) circulari circa suum centrum, partes per tangentem conabuntur avolare, imo avolare incipient re ipsa, sed quoniam hic ipsorum a se invicem discessus turbat motum ambientis, hinc repelluntur seu rursus contruduntur ad se invicem, quasi centro inesset vis attrahendi magnetica, aut quasi ipsis partibus inesset vis centripeta, et proinde circulatio ex

144

mas nenhuma inultrapassável. Não existe completa dureza, nem a matéria subtil perfeitamente fluida dos cartesianos.338 Existe uma infinita gradação de coesões, assim como existe uma infinita gradação de movimentos, uma infinita gradação de diferenças, numa matéria dividida ao infinito. Newton parece estar a refutar esta conceção quando, na Ótica, se refere aos que defendem que a coesão dos corpos duros homogéneos provém de movimentos conspirantes, ficando em repouso relativo entre eles. 339 O grande argumento aí apresentado para que os corpos sejam compostos de partículas duras é a congelação,340 o que é provavelmente também o que tinha em mente no comentário da Regra III dos Principia. 341 Num argumento adicional para a constituição atómica da luz, retira da refração a conclusão que, se a luz não fosse constituída de partículas, os seus diferentes lados não poderiam ter propriedades diferentes. 342 Assim, toda a matéria seria constituída de átomos, quer dizer, partículas insuperavelmente duras e, como tal, indivisíveis. Como já se viu na contraposição à tese leibniziana, tais partículas para lá das suas propriedades essenciais passivas são movidas por certos princípios ativos, entre os quais está a atração que lhes dá coesão.343 A partir daí, a matéria organizar-se-ia por nisu rectilineo recendendi per tangentem et conatu centripeto inter se compositis orietur. Manetque adeo omnem motum curvilineum ex nisibus rectilineis inter se compositis oriri, simulque intelligitur hanc contrusionem ab ambiente esse causam omnis firmitatis. Alioqui fieri non posset, ut omnis motus curvilineus ex meris rectilineis componeretur." Cf. Leibniz, Nouveaux essais..., Préface, G, VII, 52, aprovando a conceção de Locke antes da influência de Newton. 338 Leibniz, op. cit., L. II, Ch. IV, § 4, G, V, 114: "Je suis aussi d'opinion que tous les corps ont un degré de cohesion, comme je crois de même, qu'il n'y en a point qui n'ayent quelque fluidité et dont la cohesion ne soit surmontable : de sorte qu'à mon avis les Atomes d'Epicure dont la dureté est supposée invincible, ne sauroient avoir lieu non plus que la matiere subtile parfaitement fluide des Cartesiens"; ibidem, Ch. XIII, § 23, G, V, 138: "Il est vray, que si le monde estoit plein de corpuscules durs qui ne pourroient ny se flechir ny se diviser, comme l'on depeint les Atomes, il seroit impossible qu'il y eût du mouvement. Mais dans la verité il n'y a point de dureté originale : au contraire la fluidité est originale, et les corps se divisent selon le besoin, puisqu'il n'y a rien qui l'empeche."; Leibniz, op. cit., Préface, G, V, 52: "Il faut concevoir plustost l'espace comme plein d'une matiere originairement fluide, susceptible de toutes les divisions et assujettie même actuellement à des divisions et soubsdivisions à l'infini, mais avec cette difference pourtant, qu'elle est divisible et divisée inegalement en differens endroits à cause des mouvemens qui y ont déja plus ou moins conspirans. Ce qui fait qu'elle a partout un degré de roideur aussi bien que de fluidité et qu'il n'y a aucun corps qui soit dur ou fluide au supreme degré, c'est à dire qu'on n'y trouve aucun atome d'une dureté insurmontable ni aucune masse entierement indifferente à la division."; Leibniz, De ipsa natura..., § 13, G, IV, 514: "cujus rei consequens etiam est, nec corpuscula extremae duritiei, nec fluidum summae tenuitatis, materiamve subtilem universaliter diffusam, aut ultima elementa, quae primi secundive quibusdam nomine veniunt, in natura reperiri." 339 Newton, Optics, Query 31, OO, IV, 251: "The parts of all homogeneal hard bodies, which fully touch one another, stick together very strongly. And for explaining how this may be, some have invented hooked atoms, which is begging the question; and others tell us, that bodies are glued together by Rest; that is, by an occult quality, or rather by nothing: and others, that they stick together by conspiring motions, that is, by relative Rest amongst themselves. I had rather infer from their cohesion, that their particles attract one another by some force, which in immediate contact is exceeding strong". Não é explicado porque átomos em gancho seria uma petição de princípio, mas presume-se que seria por não conseguirem dar conta das operações químicas já referidas e/ou das mudanças de estado. Também não deixa de ser interessante acusar, presumivelmente autores cartesianos, de recorrerem a qualidades ocultas, visto ser a acusação que lhe é habitualmente dirigida. 340 Newton, ibidem, OO, IV, 251: "All bodies seem to be composed of hard particles: for otherwise fluids would not congeal". 341 Newton, Philosophiæ naturalis..., Liber tertius, regula III, OO, III, 3: "Corpora plura dura esse experimur. Oritur autem durities totius à duritie partium; & inde non horum tantùm corporum quæ sentiuntur, sed aliorum etiam omnium particulas indivisas esse duras meritò concludimus." 342 Newton, Optics, Query 31, OO, IV, 251: "Even the rays of light seem to be hard bodies; for otherwise they would not retain different properties in their different sides." 343 Newton, op. cit., OO, IV, 260: "these particles have not only a vis inertiæ, accompanied with such

145

sucessivas camadas de coesão crescentemente menor, dando origem a toda a variedade não só de fluidez e de densidade, mas também de cores e outras propriedades sensíveis. 344 Desta forma, independentemente das expetativas newtonianas quanto às magnitudes estimadas, criou-se o programa, ainda hoje prosseguido, da busca da partícula última. Estranhamente, na quinta réplica, Clarke não responde senão aos aspetos ligados com a indiscernibilidade de iguais, nunca se referindo sequer à simplicidade das partículas perfeitamente duras. Talvez isso pudesse refletir alguma incerteza quanto ao assunto, visto ele também se referir, na conferência de 1704, ao desconhecimento quanto às causas da coesão dos corpos infinitamente divisíveis.345 Porventura, quereria referir-se aos poderes divinos envolvidos em ambos os casos. Isso é claro no seu segundo texto da polémica acerca da imaterialidade e imortalidade natural da alma, onde as partículas perfeitamente sólidas da matéria não são consideradas absolutamente, em si próprias, indiscerpíveis, mas, apesar de tudo, tornadas tais, por Deus, para os poderes naturais. 346 Apesar da estranheza desta ausência de resposta, na edição da polémica feita por Clarke, surge uma nota no final da quarta réplica, a única réplica onde verdadeiramente se pronunciou acerca dos átomos, que dá a resposta que faltou na polémica, ou seja, trata-se, na verdade, da resposta tardia à quinta missiva. Começa por distinguir entre átomos físicos e matemáticos, o que é perfeitamente consistente com as suas posições anteriores, pois não existia limitação matemática à divisibilidade. Isto significa que a indivisibilidade física não é uma verdadeira necessidade, não é do domínio das verdades de razão. Porém, o argumento seguinte quase equipara a indivisibilidade a uma verdade de razão, defendendo que quanto mais longe se leva a divisão, maior é a proporção dos poros para a matéria e, por isso, se não se encontrar uma matéria perfeitamente sólida, isso significaria que a matéria mais não seria do que poros. 347 Independentemente do valor do argumento, existe uma intencionalidade idêntica à preocupação de Leibniz, a necessidade de uma base para o mundo material. Sem ela, não há matéria. Presume-se que não se trata de uma verdade de razão visto Passive laws of motion as naturally result from that force; but also that they are moved by certain Active principles, such as it that of gravity, and that which causes fermentation, and the cohesion od bodies." 344 Newton, op. cit., OO, IV, 256: "Now the small particles of matter may cohere and compose bigger particles of weaker virtue; and many of these may cohere and compose bigger particles, whose virtue is still weaker; and so on for divers sucessions, until the progression end in the biggest particles, on which the operations in chemistry, and the colours of Natural bodies depend; and which, by adhering, compose bodies of a sensible magnitude." Talvez a sugestão cúbica de Clarke (Clarke, op. cit., 4ª réplica, § 18, G, VII, 385) não fosse arbitrária por deixar menor espaço para poros na coesão de partículas homogéneas. 345 Clarke, DB, 171: "We know altogether as much of That [a união entre a alma e o corpo], as we do of the Nature of the Union or Cohesion of the infinitely divisible parts of Body to Body". 346 Clarke, LD, "A Defence of an Argument...", 100: "The original and perfectly solid Particles of Matter, which are, (not indeed absolutely in themselves, but) to any Power of Nature, indiscerpible; are utterly incapable of having not only their Substance, but even any of their Qualities or Properties altered in any measure by any Power of Nature: As is evident from the Form or Species of those we vulgarly call simple or elementary Bodies, remaining always unalterably the same, and indued continually with the same Powers and Qualities." 347 Clarke, CP, 151 e 153, nota: "his Notion concerning the Impossibility of Physical Atomes, (for the Question is not about Mathematical Atomes,) is a manifest Absurdity. For either there are, or there are not any perfectly solid particles of Matter. If there are any such; then the parts of such perfectly solid particles, taken of equal Figure and Dimensions, (which is always possible in Supposition,) are Physical Atoms perfectly alike. But if there be No such perfectly solid particles, then there is no Matter at all in the Universe. For, the further the Division and Subdivision of the parts of any Body it carried, before you arrive at parts perfectly solid and without pores; the greater is the Proportion of Pores to solid matter in That Body. If therefore, carrying on the Division in infinitum, you never arrive at parts perfectly solid and without Pores; it will follow that All Bodies consist of Pores only, without any Matter at all: Which is a manifest Absurdity."

146

estar dependente do poder de Deus, capaz, a qualquer momento, de aniquilar toda a matéria. Verdadeiramente, Leibniz, como sinal da reserva intelectual reinante na polémica, só apresenta a sua posição acerca do assunto numa única passagem que ocupa pouco mais de uma linha: "Nada há de simples, segundo o que penso, senão as verdadeiras mónadas que não têm partes nem extensão."348 Boa parte da frase é, além disso, tautológica, visto ser simples e não ter partes ser o mesmo, e mónada designar a unidade. Pode-se dizer, porém, que há uma diferença em relação aos átomos newtonianos, é a que resulta do facto de ser essencialmente indivisível e não indivisível por um poder adicional introduzido por Deus. Isso, naturalmente, só é possível devido à mais importante declaração da proposição, a ausência de extensão. Aliás, a inspiração matemática e até geométrica da conceção é inequívoca, mesmo que seja expressa de forma analógica: um corpo é um agregado e, como tal, não é uma substância que tem de ser simples; mas a substância não pode ser parte do agregado, visto a parte ter a mesma natureza do todo; e, no entanto, os corpos são agregados de substâncias; como? Da mesma forma que a linha agrega infinitos pontos que não são, porém, partes da linha, visto cada parte da linha conter infinitos pontos e o próprio ponto ser inextenso.349 Mas, supondo que qualquer corpo é um agregado de infinitos pontos, em que se sustenta Leibniz para rejeitar a existência de entidades iguais segundo o princípio da identidade dos indiscerníveis? Não são todos os pontos iguais? Como todos os grandes sistemas metafísicos, cada tese fundamental articula-se numa economia explicativa capaz de elucidar múltiplos diferentes aspetos e problemas. Neste caso e restringindo a questão aos assuntos que agora mais interessam, Leibniz procurou fornecer, ao mesmo tempo, o fundamento da matéria, o simples que fornece a base ao composto,350 o fundamento da atividade e do movimento, a força que ainda só será aflorada agora, e o princípio de individuação que satisfaz o princípio da identidade dos indiscerníveis. Tanto Leibniz, como Newton, como muitos outros autores da época, são herdeiros da geometrização total da realidade física levada a cabo por Descartes. Essa geometrização reduzia a matéria à absoluta passividade e homogeneidade, deixando como únicos princípios de atividade o próprio Deus e as almas, ainda por cima reduzidas, entre os animais, às humanas. Tanto Leibniz, como Newton, como outros em menor grau, ao mesmo tempo que elogiavam a superação das qualidades ocultas escolásticas ou dos poderes fantásticos renascentistas, tentavam explicar toda a 348

Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 24, G. VII, 394: "Il n'y a rien de simple selon moy, que les Veritables Monades, qui n'ont point de parties ny d'etendue." 349 Leibniz, ed. Foucher de Careil, Nouvelles Lettres et Opuscules Inédits, Paris, Auguste Durand, 1857, Epistolæ ad Fardellam, Março de 1690, p. 322: "Ergô aut nulla datur substantia, adeoque nec substantiae, aut datur aliquid aliud quàm corpus, non tamen constituunt per modum partis, quia pars semper toti homogenea est, eodem modo ut puncta non sunt partes linearum. Interim corpora organica substantiarum in aliquà materiæ massâ inclusarum sunt partes hujus massæ. Ità in piscinâ insunt multi pisces; et humor cujusque piscis rursùs est qualis piscina quaedam, in quâ velut alii pisces aut sui generis animalia stabulantur, et ità porrò in infinitum. Ubique igitur in materià sunt substantiæ, ut in lineà puncta. Et ut nulla datur portio lineæ, in quâ non sint infinita puncta, ità nulla datur portio materiae, in quâ non sint infinitæ substantiæ. Sed quemadmodùm non punctum est pars lineæ, sed linea, in quâ est punctum ità quoque anima non est pars materiæ, sed corpus cui inest." Acerca da natureza da linha e do ponto, aqui sem qualquer analogia, é especialmente elucidativo: Leibniz, Essais de Théodicée, Discours..., § 70, G, VI, 90. 350 Leibniz, La Monadologie, §§ 1-3, G, VI, 612-3: "La Monade, dont nous parlerons icy, n'est autre chose, qu'une substance simple, qui entre dans les composés ; simple, c'est à dire, sans parties. Et il faut qu'il y ait des substances simples, puisqu'il y a des composés ; car le composé n'est autre chose, qu'un amas, ou aggregatum des simples. Or lá, où il n'y a point des parties, il n'y a ny étendue, ny figure, ny divisibilité possible. Et ces Monades sont les veritables Atomes de la Nature, et en un mot les Elemens des choses."

147

atividade observável na Natureza, incompatível com uma total passividade da matéria ou com uma conceção mecânica sem quaisquer princípios ativos. Em comum, mantinham a conceção de que uma matéria meramente extensa não podia ser senão passiva, pelo que teriam de encontrar a origem da atividade em algo animado. Newton encontra essa origem em Deus, mesmo que, secundariamente, outros princípios ativos dependentes possam ser as causas diretas dos fenómenos observados (causas, porém, ignoradas). Leibniz radica essa atividade no próprio fundamento de todo o existente, reduzindo a extensão a um mero efeito fenoménico da força. É tese desta dissertação que uma das principais razões para esta diferença e para ela se ter tornado uma incompatibilidade reside no diferente entendimento da divindade, nomeadamente da liberdade e do poder de Deus. O ponto de que, analogicamente, falava Leibniz é, simultaneamente, algo análogo a um ponto, visto ser fundamento da extensão, e algo análogo à alma, visto ser atividade. 351 Além disso, tal como uma alma, deve conter um princípio interno de diferenciação que dê a razão por que não é outro ponto. Leibniz começara por lhes chamar átomos de substância, visto entender a substância como fonte da ação, e pontos metafísicos, visto possuírem vitalidade e uma espécie de perceção, como uma alma. Porém, visto estarem na base da extensão, uma sua modalidade é o ponto matemático, na medida em que é necessário como ponto de vista para expressar o universo.352 Os aspetos mais psíquicos desta conceção serão tratados na parte seguinte e os aspetos mais cósmicos na derradeira. Porém, nesta primeira abordagem, há que reconhecer que a noção de mónada está longe da limpidez exótica ou mística que parece ter nas apresentações mais simplificadas da filosofia leibniziana, acabando, sobretudo ao se considerarem as suas diversas versões, por se afigurar bem obscura. Na primeira versão publicada, acima citada, a mónada surge como a junção, por si una, de uma alma ou forma substancial e da matéria, sem a qual não restaria qualquer entidade real nos corpos 353 e na qual existe algo análogo à perceção e ao apetite. 354 Depreende-se da formulação uma ligação deixada um pouco indeterminada entre as mónadas e os fenómenos físicos, através do nisus ou força ativa primitiva impressa na forma 351

Leibniz, Essais de Théodicée, Préface, G, VI, 45: "s'il n'y avoit rien que de passif dans les corps, leur differens etats seroient indiscernables." Isto foi, aliás, visto na secção anterior. 352 Leibniz, Système..., § 11, G, IV, 482-3: "Il n'y a que les Atomes de substance, c'est à dire, les unités reelles et absolument destituées de parties, qui soyent les sources des actions, et les premiers principes absolus de la composition des choses, et comme les derniers elemens de l'analyse des choses substantielles. On les pourroit appeller points metaphysiques : ils ont quelque chose de vital et une espece de perception, et les points mathematiques sont leur points de veue, pour exprimer l'univers. Mais quand les substances corporelles sont resserrés, tous leur organes ensemble ne font qu'un point physique à nostre égard. Ainsi les points physiques ne sont indivisibles qu'en apparence : les points mathematiques sont exacts, mais ce ne sont que des modalités : il n'y a que les points metaphysiques ou de substance (constitués par les formes ou ames) qui soyent exacts et reels, et sans eux il n'y auroit rien de reel, puisque sans les veritables unités il n'y auroit point de multitude."; Leibniz, De ipsa natura..., § 11, G, IV, 511: "Etsi enim dentur atomi substantiae, nostrae scilicet Monades partibus carentes, nullae tamen dantur atomi molis, seu minimae extensionis, vel ultima elementa, cum ex punctis continuum non componatur". 353 Leibniz, De ipsa natura..., § 11, G, IV, 511: "Atque hoc ipsum substantiale principium est, quod in viventibus anima, in aliis forma substantialis appellatur, et quatenus cum materia substantiam vere unam, seu unum per se constituit, id facit quod ego Monadem appello, cum sublatis his veris et realibus unitatibus, non nisi entia per aggregationem, imo quod hinc sequitur, nulla vera entia in corporibus sint superfutura." 354 Antecipando a equivocidade posterior, logo após ter denominado mónada a junção de forma e matéria, restringe a mónada à alma ou forma: Leibniz, De ipsa natura..., § 12, G, IV, 512: "modo sumatur spiritus non pro re intelligente (ut alias solet) sed pro anima vel forma animae analoga, nec pro simplici modificatione, sed pro constitutivo substantiali perseverante, quod Monadis nomine appellare soleo, in quo est velut perceptio et appetitus."

148

substancial.355 Porventura em concordância com esta abordagem (ou não), numa carta do mesmo ano, Leibniz afirmava que a mónada não era tanto a alma como o próprio animal ou qualquer coisa análoga dotada de uma alma ou forma e um corpo orgânico.356 Numa famosa passagem da sua correspondência com De Volder, onde Leibniz parecia querer precisar a sua terminologia, a mónada surge como a junção entre a enteléquia ou alma e a matéria-prima, sublinhando a distinção quer da matéria segunda ou máquina orgânica, quer da substância corporal que a mónada tornava uma, ao dominar a máquina orgânica.357 Ora, exatamente na mesma altura, nos Novos Ensaios, Leibniz considerava que a alma era por si só uma mónada. 358 Também aí admite que a Enteléquia, habitualmente associada, por si, à alma, à forma substancial ou à mónada, possa ser, não só primitiva, mas também derivativa, especialmente associada aos processos físicos.359 Na Teodiceia, Leibniz ainda é mais parco na utilização do termo mónada do que na polémica, apenas o utilizando numa lista de termos associados (alma, enteléquia, força primitiva, forma substancial e substância simples). 360 Porém, a sua teoria é reafirmada como uma teoria atomista alternativa.361 Nos Princípios da Natureza e da Graça, a mónada é restringida, nos animais, à alma362 e, na Monadologia, é identificada com a Enteléquia. 363 Por fim, no esquema apresentado na correspondência com Des 355

Leibniz, De ipsa natura..., § 12, G, IV, 512: "materiam [...] primam esse mere passivam, sed non esse completam substantiam; accedequere adeo debere animam, vel formam animae analogam, sive ἐντελέχειαν τὴν πρώτην, id est nisum quendam seu vim agendi primitivam, quae ipsa est lex insita, decreto divino impressa." 356 Leibniz, Carta para Joh. Bernoulli de 20/30 de Setembro de 1698, GM, III, 542: "Monadem completam seu substantiam singularem voco non tam animam, quam ipsum animal aut analogum, anima vel forma et corpore organico praeditum." 357 Leibniz, Carta para de Volder de 20 de Junho de 1703, G, II, 252: "Distinguo ergo (1) Entelechiam primitivam seu Animam, (2) Materiam nempe primam seu potentiam passivam primitivam, (3) Monada his duabas completam, (4) Massam seu materiam secundam, sive Machinam organicam, ad quam innumerae concurrunt Monades subordinatae, (5) Animal seu substantiam corpoream, quam Unam facit Monas dominans in Machinam." Esta mesma conceção surge, aliás, numa fase inicial da correspondência com Des Bosses: Leibniz, Carta para Des Bosses de 11 de Março de 1706, G, II, 306: "Secus est si intelligas materiam primam seu τὸ δυναμικὸν πρῶτον παθητικὸν, πρῶτον ὑποκείμενον, id est potentiam primitivam passivam seu principium resistentiae, quod non in extensione, sed extensione exigentia consistit, entelechiamque seu potentiae activam primitivam complet, ut perfecta substantia seu Monas prodeat, in qua modificationes virtute continentur." E ainda, bem mais tarde: Leibniz, Carta para Des Bosses de 16 de Março de 1709, G, II, 368: "materia prima propria, id est potentia passiva primitiva, ab activa inseparabilis, ipsi Entelechiae (quam complet, ut Monada seu substantiam completam constituat) concreatur." Mas apenas uns meses depois, ao equacionar a hipótese de Deus, através de um milagre, estabelecer uma alma sem corpo, parece identificar este corpo com a matéria-prima: Leibniz, Carta para Des Bosses de 31 de Julho de 1709, G, II, 378: "Equidem per miraculum a Deo anima constitui potest extra corpus, sed hoc non convenit ordini rerum. A primo passivo separata non faciet rem completam seu Monada." 358 Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XII, G, V, 132: "l'ame, qui est une substance simple ou Monade". 359 Leibniz, op. cit., Ch. XXII, § 11, G, V, 200: "Si la puissance est prise pour la source de l'action, elle dit quelque chose de plus qu'une aptitude ou facilité, par laquelle on a expliqué la puissance dans le chapitre precedent ; car elle renferme encor la tendance, comme j'ay déja remarqué plus d'une fois. C'est pourquoy dans ce sens, j'ay coustume de luy affecter le terme d'Entelechie, qui est ou primitive et repond a l'ame prise pour quelque chose d'abstrait, ou derivative, telle qu'on conçoit dans le conatus et dans la vigueur et impetuosité." 360 Leibniz, Essais de Théodicée, 3ª parte, § 396, G, VI, 352. 361 Leibniz, Essais de Théodicée, 1ª parte, § 89, G, VI, 152: exatamente em contraposição aos átomos de Epicuro e Gassendi, "toutes les substances veritablement simples et indivisibles, qui sont les seuls et vrais Atomes de la nature." 362 Leibniz, Principes..., § 4, G, VI, 599: "un tel vivant est appellé Animal, comme sa Monade est appellée une Ame." 363 Leibniz, La Monadologie, § 18, G, VI, 609: "On pourroit donner le nom d'Entelechies à toutes les

149

Bosses, parece reduzir as mónadas às mentes e almas, atribuindo as potências primitivas, assim como a forma substancial e a matéria-prima, à substância composta, o que parece ter como efeito uma maior distanciação dos processos físicos em relação ao fundamento metafísico.364 Sem pretender ser exaustivo, as variações do significado do termo vão desde o todo do animal até uma alma que precisa de um intermediário para ter uma ligação aos processos físicos. Mas mesmo considerando a mónada do ponto de vista do fundamento físico e ignorando, por agora, a última formulação referida (a da carta a Des Bosses), é preciso ter em consideração quatro outros aspetos. Em primeiro lugar, cada mónada não é apenas um poder ativo, mas a sua limitação, inevitável para todo o existente com exceção de Deus, dá origem à resistência originada pelo poder passivo primitivo. 365 Só nesse sentido de um poder passivo se pode falar de uma matéria-prima. Pelo contrário, em segundo lugar, toda a matéria concreta ou segunda não passa de um agregado absolutamente dependente das entidades imateriais que são as mónadas.366 É nesse sentido que a extensão não passa de um fenómeno bem fundado. Em terceiro lugar, cada mónada tem um corpo orgânico que é um aglomerado de mónadas que também têm corpos orgânicos e assim ao infinitamente pequeno. 367 A questão da substância composta e do vínculo substancial poderá dar um estatuto diverso do de um agregado ao corpo orgânico e até atribuir-lhe forma substancial e matériaprima, mas não altera a sua subordinação a uma mónada dominante, assim como a constituição através de mónadas, ao menos como requisitos não permanentes daquele corpo. 368 Assim, contrapostas às camadas newtonianas de matéria inerte, apesar dos substances simples ou Monades creées". 364 Será tratada na última parte a questão de se esta abordagem não dará origem a uma fundamentação metafísica diversa: cf. Leibniz, Carta para Des Bosses de 19 de Agosto de 1715, G, II, 506. 365 Leibniz, Carta para de Volder de 20 de Junho de 1703, G, II, 248-249: "Ac primum ad priores Tuas literas venio, in quibus desideras inter materiam (seu resistentiam) et inter vim activam nexum necessarium, ne gratis conjungantur. Sed causa nexus est quod omnis substantia est activa, et omnis substantia finita est passiva, passioni autem connexa resistentia est." ibidem, G, II, 250: "Proprie et rigorose loquendo forte non dicetur Entelechiam primitivam impellere massam sui corporis, sed tantum conjungitur cum passiva potentia primitiva quam complet, seu cum qua Monadem constituit, non vero inflere potest in alias Entelechias, substantiasque adeo in eadem massa existentes." 366 Leibniz, Nouveaux essais..., L. IV, Ch. III, §§ 1-6, G, V, 359-60: "Il faut considerer que la matiere, prise pour un Estre complet (c'est à dire la matiere seconde opposée à la premiere, qui est quelque chose de purement passif, et par consequent incomplet) n'est qu'un amas, ou ce qui en resulte, et que tout amas reel suppose des Substances simples ou des Unités reelles, et quand on considere encor ce qui est de la nature de ces unités reelles, c'est à dire la perception et ses suites, on est transferé pour ainsi dire dans un autre monde, c'est à dire dans le Monde intelligible des Substances, au lieu qu'auparavant on n'a esté que parmy les phenomenes des sens." 367 Leibniz, La Monadologie, § 62, G, VI, 617: "Ainsi quoyque chaque Monade creée represente tout l'univers, elle represente plus distinctement le corps qui luy est affecté particulierement et dont elle fait l'Entelechie : et comme ce corps exprime tout l'univers par la connexion de toute la matiere dans le plein, l'ame represente aussi tout l'univers en representant ce corps, qui luy appartient d'une maniere particuliere"; Leibniz, Nouveaux essais..., L. I, Ch. I, G, V, 65: "Je vois toutes choses reglées et ornées au delá de tout ce qu'on a conçû jusqu'icy, la matiere organique par tout, rieu de vuide, stérile, negligé, rien de trop uniforme, tout varié, mais avec ordre." Vide transcrições de Leibniz, La Monadologie, §§ 64-70, G, VI, 618-9, em II. 3, nota 108. 368 Novamente, está aqui em causa a correspondência com Des Bosses que será, mais detalhadamente abordada na parte final. A título de exemplo, o trecho que se segue é extraído da carta onde se fixam, pela primeira vez, os traços finais mais importantes da conceção do vínculo substancial: Leibniz, Carta para Des Bosses de 23 de Agosto de 1713, G, II, 481-2: "revera nullam substantiam corpoream admittendam puto, nisi ubi est corpus organicum cum Monade dominante, seu vivum, animal scilicet, vel animali analogum, caeteraque esse aggregata pura, seu unum per accidens, non unum per se. Cum ergo, ut scis, non tantum animam, sed etiam animal interire negem, dicam igitur nec vinculum substantiale, seu substantiam corporis animati naturaliter oriri et occidere, sed cum aliquid absolutum sit, tantum variari secundum mutationes animalis. Hinc substantia corporea vel vinculum substantiale Monadum, etsi

150

princípios ativos que, de fora, as pudessem animar, temos camadas de matéria organizada, no sentido do menor, organicamente, ou seja, vitalmente, mas sem qualquer matéria ínfima. Em quarto lugar, cada mónada tem um princípio de diferenciação que é dado pelo próprio princípio interno de mudança,369 pelo qual espelha, do seu ponto de vista, todo o universo. 370 Esta multiplicidade de coexistência e de sucessão na unidade,371 é exatamente o que corresponde à noção completa já referida no início desta parte. Ela determina não só as decisões dos espíritos, os impulsos dos seres vivos, mas também as próprias forças físicas. Todos os infinitos seres que subjazem aos corpos são dotados de perceção, pela qual espelham o universo,372 e apetição, pela qual mudam.373 Longe dos átomos formais de Leibniz serem caracterizados, como os de Newton, pela imutabilidade e homogeneidade, são determinados por uma sequência infinita de mudança e de variedade. Em comum, o facto de serem imperecíveis desde a sua criação por Deus.374

naturaliter seu physice exigat Monades, quia tamen non est in illis tanquam in subjecto, non requiret eas metaphysice, adeoque salvis Monadibus tolli vel mutari potest, et monadibus naturaliter non suis accomodari ut vinculum earum fiat. Nec ulla Monas praeter dominatem etiam naturaliter vinculo substantiali affixa est, cum Monades caeterae sint in perpetuo fluxu." 369 Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. I, § 12, G, V, 104: "L'avenir dans chaque substance a une parfaite liaison avec le passé, c'est ce qui fait l'identité de l'Individu." Leibniz, op. cit., Ch. XXVII, § 14, G, V, 222. Ver transcrição na introdução de IV, nota 9. É verdade que aqui parece serem referidos apenas os espíritos, mas isso apenas porque está em causa também a aperceção e a identidade moral. Um pouco adiante, é afirmado que mesmo o corpo, inclusive passando pelo processo que conhecemos como morte, mantém marcas dos anteriores. Leibniz, La Monadologie, §§ 10-11, G, VI, 608: "Tout être creé est sujet au changement, et par consequent la Monade crée aussi, et même que se changement est continuel dans chacune. Il s'ensuit de ce que nous venons de dire, que les changements naturels des Monades viennent d'un principe interne, puisqu'une cause externe ne sauroit influer dans son interieur."; Leibniz, ibidem, § 22, G, VI, 610: "tout present état d'une substance simple est naturellement une suite de son état precedant, tellement que le present y est gros de l'avenir". 370 Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XXV, § 10, G, V, 211: "il n'y a point de terme si absolu ou si detaché, qu'il n'enferme des relations et dont la parfaite analyse ne mene à d'autres choses et même à toutes les autres, de sorte qu'on peut dire, que les termes relatifs marquent expressement le rapport qu'ils contiennent"; L. III, Ch. III, § 6, G, V, 268: "l'individualité enveloppe l'infini, et il n'y a que celuy qui est capable de le comprendre qui puisse avoir la connoissance du principe d'individuation d'une telle ou telle chose ; ce qui vient de l'influence (à l'entendre sainement) de toutes les choses de l'univers les unes sur les autres"; La Monadologie, § 60, G, VI, 617: "Ce n'est pas dans l'objet, mas dans la modification de la connoissance de l'objet, que les Monades sont bornées. Elles vont toutes confusement à l'infini, au tout, mais elles sont limitées et distinguées par les degrés des perceptions distintes."; Principes..., § 12, G, VI, 603-4: "chaque miroir vivant representant l'univers suivant son point de veue, c'est à dire, que chaque Monade, chaque centre substantiel, doit avoir ses perceptions et ses appetits les mieux reglés qu'il est compatible avec tout le reste." 371 Leibniz, La Monadologie, § 16, G, VI, 609: "Nous experimentons nous mêmes une multitude dans la substance simple, lorsque nous trouvons que la moindre pensée dont nous nous appercevons enveloppe une varieté dans l'objet. Ainsi tous ceux, qui reconnoissent que l'Ame est une substance simple, doivent reconnoitre cette multitude dans la Monade". 372 Leibniz, Nouveaux essais..., L. IV, Ch. X, § 9, G, V, 421: "on ne la [a matéria] doit point prendre pour une chose unique en nombre, ou (comme j'ay coustume de parler) pour une vraye parfaite Monade ou Unité, puisqu'elle n'est qu'un Amas d'un nombre infini d'Estres. [...] je donne de la perception à tous ces Estres infinis, dont chacun est comme un animal, doué d'Ame (ou de quelque principe actif Analogique, qui en fait la vraye Unité) avec ce qu'il faut à cet Estre pour estre passif et doué d'un corps organique." 373 Leibniz, La Monadologie, §§ 14-15, G, VI, 608-9. 374 Leibniz, Nouveaux essais..., L. III, Ch. VI, §§ 41-42, G, V, 309: "ces Entelechies ont de l'analogie avec les ames, et sont aussi indivisibles et imperissables qu'elles"; Leibniz, Essais de Théodicée, 1ª parte, § 89, G, VI, 151-2: "je ne voy point pourquoy il y auroit moins d'inconvenient à faire durer les atomes d'Epicure ou de Gassendi, que de faire subsister toutes les substances veritablement simples et indivisibles, qui sont les seuls et vrais Atomes de la nature."

151

Para Leibniz, ser é agir375 e só os indivíduos agem.376 Esta é, aliás, a condição de possibilidade da liberdade ou, pelo menos, da espontaneidade que, por sua vez, seria a condição de possibilidade da liberdade. Reconhece no atomismo um princípio de diversificação na explicação da matéria. 377 Mas este é francamente insuficiente e abstrato. Porém, o concreto de Leibniz é também uma afirmação genérica e indeterminada, visto reconhecer que não se pode conhecer, de facto, os indivíduos na sua individualidade. 378 Apesar disso, a consciência dessa limitação do nosso conhecimento permite ter uma consciência do valor limitado das nossas generalizações, permitindo uma compreensão mais rica da realidade concreta, não confundindo as espécies a que podemos chegar com as espécies reais e concretas. 379 Como noutros casos, apesar de todas as acusações de abstração à matemática, o modelo de compreensão desta realidade cambiante dificilmente objetivável é dado pela matemática.380 Na realidade física, é importante ter consciência que todas as diversas formas de determinar as espécies são limitadas e requerem experiência e comparação,381 para obter a aproximação maior possível à realidade individual sempre incognoscível. Porém, isso não significa que, devido às nossas limitações, as essências não sejam reais e não as possamos conhecer.382 375

Leibniz, Nouveaux essais..., Préface, G, V, 46: "je soutiens que naturellement une substance ne sauroit estre sans action"; ibidem, G, V, 58: "Je soutiens aussi que les substances (materielles ou immaterielles) ne sauroient estre conçues dans leur essence nue sans aucune activité, que l'activité est de l'essence de la substance en general". Leibniz, Specimen Dynamicum..., GM, VI, 235: "agere est character substantiarum". 376 Leibniz, De ipsa natura..., § 9, G, IV, 509: "idque adeo esse verum deprehendo, ut etiam sit reciprocum, ita ut non tantum omne quod agit sit substantia singularis, sed etiam ut omnis singularis substantia agat sine intermissione, corpore ipso non excepto, in quo nulla unquam quies absoluta reperitur." Mais: só os indivíduos, verdadeiramente, são. É bem conhecida esta passagem da correspondência com Arnauld: Leibniz, Carta para Arnauld de 30/4/1687, G, II, 97: "je tiens pour un axiome cette proposition identique qui n'est diversifiée que par l'accent, sçavoir que ce qui n'est pas veritablement un estre, n'est pas non plus veritablement un estre. On a toujours crû que l'un et l'estre sont des choses reciproques. Autres chose est l'estre, autre chose est des estres; mais le pluriel suppose le singulier, et lá où il n'y a pas un estre, il y aura encor moins plusieurs estres." 377 Leibniz, De ipsa natura..., § 11, G, IV, 514: "Sane qui atoms et vacuum habent, nonnihil saltem diversificant materiam, dum alibi faciunt partibilem, alibi impartibilem, et uno loco plenam, alio hiantem." 378 Leibniz, Nouveaux essais..., L. III, Ch. III, § 6, G, V, 268: "il est impossible a nous d'avoir la connoissance des individus et de trouver le moyen de determiner exactement l'individualité d'aucune chose, à moins que de la garder elle même ; car toutes les circonstances peuvent revenir ; les plus petites differences nous sont insensibles". 379 Leibniz, op. cit., Ch. VI, § 8, G, V, 284: "En un mot, on ne trouvera jamais les dernieres especes logiques, [...] et jamais deux individus reels ou complets d'une même espece sont parfaitement semblables." 380 Leibniz, op. cit., § 14, G, V, 287-8: "On peut prendre l'Espece mathematiquement et physiquement. Dans la rigueur mathematique la moindre difference qui fait que deux choses ne sont point semblables en tout, fait qu'elles different d'Espece. [...] De cette façon deux individus physiques ne seront jamais parfaitement semblables, et qui plus est, le même individu passera d'espece en espece, car il n'est jamais semblable en tout à soy même au delá d'un moment. Mais les hommes établissant des especes physiques ne s'attachent point à cette rigueur". 381 Leibniz, op. cit., G, V, 289: "Aussi faudrat-il encor beaucoup de soin et d'expérience pour assigner les genres et les especes d'une maniere assés approchante de la nature. [...] chaque fondement de comparaison meritant des Tables à part ; sans quoy on laissera echapper bien des genres subalternes, et bien des comparaisons, distinctions et observations utiles. Mais plus on approfondira la generation des especes, et plus on suivra dans les arrangemens les conditions qui y sont requises, plus on approchera de l'ordre naturel." 382 Leibniz, op. cit., § 27, G, V, 300: "quand il s'agit des fictions et de la possibilité des choses, les passages d'espece en espece peuvent estre insensibles, et pour les discerner ce seroit quelquesfois à peu prés comme on ne sçauroit decider combien il faut laisser de poils à un homme pour qu'il ne soit point

152

10. Limitação do Universo Boa parte desta temática já foi tratada em II. 3. e em IV. 6. O sentido geral da argumentação de Clarke começa a desenhar-se logo na primeira réplica, como conclusão tirada da conceção leibniziana de providência, visto, se, alegadamente, o mundo puder prescindir da intervenção de Deus, também poderia prescindir de uma criação e, assim, ser eterno.383 Pelo contrário, a argumentação leibniziana vai assentar no princípio da razão suficiente e nos seus dois corolários, o princípio da plenitude e o princípio da identidade dos indiscerníveis. Em primeiro lugar, não há nenhuma razão para limitar a matéria quer na direção do infinitamente pequeno, como foi visto na secção anterior, quer na do infinitamente grande, sendo pelo contrário ocasião para o exercício infinito da sabedoria, bondade e poder de Deus. Logo, o universo é infinitamente pleno.384 Em segundo lugar, como a rejeição da limitação espacial ou de coexistência já foi assegurada pela exigência da plenitude, a utilização do princípio da identidade dos indiscerníveis neste domínio, mais implícita que explícita, já supondo o tempo relativo ou como possibilidade ideal, é feita na questão da possibilidade da criação ser antes ou depois do que foi.385 Em qualquer destes casos, Clarke tenta reduzir à primeira acusação por si proferida, as objeções aos argumentos de Leibniz, ou seja, a de Leibniz reduzir Deus à necessidade e fatalidade, tornando a matéria infinita e eterna.386 chauve. Cette indetermination seroit vraye quand même nous connoistrions parfaitement l'interieur des creatures dont il s'agit. Mais je ne vois point qu'elle puisse empecher les choses d'avoir des essences réelles independamment de l'entendement, et nous de les connoistre". 383 Clarke, Streitschriften..., 1ª réplica, § 4, G, VII, 354: "And by the same Reason that a Philosopher can represent all Things going on from the beginning of the Creation, without any Government or Interposition of Providence; a Sceptick will easily Argue still farther Backwards, and suppose that Things have from Eternity gone on (as they now do) without any true Creation or Original Author at all, but only what such Arguers call All-Wise and Eternal Nature". 384 Leibniz, Streitschriften..., 2º escrito, § 2, G, VII, 356; 3º escrito, § 9, G, VII, 365; 4º escrito, §§ 21-23, G, VII, 374; 5º escrito, § 32, G, VII, 396 (embora recorrendo à autoridade problemática de Descartes). 385 Leibniz, op. cit., 4º escrito, § 15, G, VII, 373-4; 5º escrito, § 55, G, VII, 404-5: "Pour ce qui est de la Question, si Dieu a pû creer le Monde plustost, il faut se bien entendre. Comme j'ay démontré que le temps sans les choses n'est autre chose qu'une simple possibilité ideale, il est manifeste que si quelcun disoit que ce même monde qui a eté creé effectivement, ait sans aucun autre changement pû ètre creé plustost, il ne dira rien d'intelligible ; car il n'y a aucune marque ou difference, par laquelle il seroit possible de connoistre qu'il eût eté creé plustost. Ainsi, comme si je l'ay déja dit, supposer que Dieu ait creé le même monde plustost, est supposer quelque chose de chimerique. C'est faire du temps une chose absolue independante de Dieu, au lieu que le temps doit coëxister aux creatures, et ne se conçoit que par l'ordre et la quantité de leur changemens." 386 Clarke, op. cit., 4ª réplica, §§ 5-6, G, VII, 382: "Had God created the World but This Moment, it would not have been created at the Time it was created. And if God has made (or can make) Matter Finite in Dimensions, the material Universe must consequently be its Nature Moveable; For nothing that is Finite, is immoveable. To say therefore that God could not have altered the Time or Place of the existence of Matter, is making to be necessarily infinite and eternal, and reducing all things to Necessity and Fate."; § 15, G, VII, 384-5: "It was no Impossibility for God to make the world sooner or later than he did: Nor is at all impossible for him to destroy it sooner or later than it shall actually be destroyed. As to the Notion of the World's Eternity; They who suppose Matter and Space to be the same, must indeed suppose the World to be not only infinite and eternal, but necessarily so; even as necessarily as Space and Duration, which depend not on the Will, but on the Existence of God. But they who believe that God created Matter in what Quantity, and at what particular Time, and in what particular Spaces he pleased, are here under no difficulty. For the Wisdom of God may have very good reasons for creating This World at That particular Time he did; and may have made other kinds of things before this material World began, and may make other kinds of things after This world is destroyed."; § 21-23, G, VII, 385-6, ver IV. 6, nota 225; § 40, G, VII, 387; 5ª réplica, §§ 73-75, G, VII, 431: "In the consideration whether Space be independent upon Matter, and whether the material Universe Can be Finite and Moveable the question is not concerning the Wisdom or Will of God, but concerning the absolute and necessary Nature of Things. If the Material

153

A fusão da infinitude espacial com a temporal feita por Clarke advém de este considerar que só se poderia defender a infinitude da matéria se fosse contraditório pensar a sua limitação. Ora, se bem que Leibniz admita, por fim, que Deus possa fazer o universo material finito em extensão,387 associa, logo de seguida, a sua posição à de Descartes. Como muito bem Clarke riposta, 388 trata-se de uma explícita contradição, visto Descartes defender, exatamente, a impossibilidade da finitude do mundo: “Considero como contraditório que o mundo seja finito ou que tenha um limite porque eu não posso não conceber um espaço para lá de todos os limites do mundo que queiramos; Ora, um tal espaço é para mim um verdadeiro corpo."389 Pior ainda, essa associação a Descartes reforçava a negada, por Leibniz, identidade entre espaço e corpo. Por outro lado, aceitando-se a possibilidade de um mundo espacialmente finito, aceitava-se, segundo Clarke, a possibilidade da realidade do espaço chamado imaginário.390 Naturalmente, Leibniz negava a identidade entre espaço e corpo visto o primeiro ser relativo, se considerado em termos materiais, ou ideal, se considerado como absoluto, o que, em qualquer caso, tornava um espaço fora do mundo imaginário. 391 Porém, quanto a má vontade para compreender o interlocutor, Leibniz não se poderia queixar do adversário, visto também pretender devolver-lhe a acusação Universe CAN possibly, by the Will of God, be Finite and Moveable (which this learned Author here finds himself necessitated to grant, though he perpetually treats it as an impossible supposition;) then Space (in which That Motion is perfonned) is manifestly independent upon Matter. But if, on the contrary, the material Universe Cannot be finite and moveable, and Space cannot be independent upon Matter; then (I say) it follows evidently, that God neither Can nor ever Could set Bounds to Matter; and consequently the material Universe must be not only boundless, but eternal also, both a parte ante and a parte post, necessarily and independently on the Will of God."; § 103, G, VII, 435: "Whether my inference from this Learned Author's affirming that the Universe cannot diminish in Perfection, that there is no possible Reason which can limit the Quantity of Matter, that God's Perfections oblige him to produce always as much Matter as he can, and that a Finite Material Universe is an Impracticable Fiction; whether (I say) my Inferring, that (according to these Notions) the World must needs have been both Infinite and Eternal, be a just Inference or no, I am willing to leave to the Learned, who shall compare the Papers, to judge." 387 Leibniz, op. cit., 5º escrito, § 30, G, VII, 396. Ver II. 3, nota 69. 388 Clarke, op. cit., 5ª réplica, §§ 26-32, G, VII, 424-5: "Lastly, 'tis affirmed that the Infinity of Matter is an Effect of the Will of God; And yet Cartesius's Notion is approved as irrefragable; the only Foundation of which, all Men know to have been this Supposition, that Matter was infinite necessarily in the Nature of Things, it being a Contradiction to suppose it Finite: His Words are, Puto implicare contradictionem, ut Mundus sit finitus. Which if it be true, it never was in the Power of God to determine the Quantity of Matter; and consequently he neither was the Creator of it, nor can destroy it." O que apenas confirma a contradição antes referida: "'Tis affirmed, that Space is nothing but the Order of Things co-existing; and yet is confessed that the material Universe may possibly be Finite; in which Case there must necessarily be an empty extra-mundane Space. 'Tis allowed, that God could make the material Universe Finite: And yet the supposing it to be possibly Finite, is stiled not only a Supposition unreasonable and void of Design, but also an impracticable Fiction; and 'tis affirmed, there can be no possible Reason which can limit the Quantity of Matter." 389 Descartes, OL, 1336. Cf. More, CS, Epistolæ quatuor ad Renatum DesCartes, Responsum R. Cartesii ad Epistolam secundam H. Mori, Maio de 1649, 83: "Repugnat conceptui meo, sive, quod idem est, puto implicare contradictionem, ut mundus sit finitus vel terminatus, quia non possum non concipere spatium ultra quoslibet præsuppositos mundi fines; tale autem spatium apud me est verum corpus". Não deixa de ser curioso que a única citação filosófica extra-newtoniana de Clarke seja de Descartes mas... na sua correspondência com o sempre não referido, por si e por Newton, Henry More. 390 Clarke, op. cit., 4ª réplica, § 7, G, VII, 382. Ver IV. 6, nota 197. Clarke, CP, 305 e 307, nota: "Also because, if the material Universe is, or can possibly be, Finite; there cannot but be, actual or possible, Extramundane Space. That Space is not Body, is also most clear. For then Body would be necessarily infinite; and No Space could be void of Resistence to Motion. Which is contrary to Experience." 391 Leibniz, op. cit., 5º escrito, § 29, G, VII, 395: "il n'y a point d'espace reel hors de l'univers materiel"; § 33, G, VII, 396: "Puisque l'espace en soy est une chose ideale comme le temps, il faut bien que l'espace hors du monde soit imaginaire, comme les Scholastiques mêmes l'ont bien reconnu."

154

de tornar a matéria eterna e necessária por supor o espaço eterno e necessário,392 o que só fazia sentido se o espaço absoluto fosse relativo à matéria, o que seria uma contradição nos termos (assim, seria a matéria que seria absoluta) e não é a tese de Clarke que até o considera imaterial. Para falar verdade, Leibniz nem considera categoricamente infinito o mundo, seguindo nisso Descartes e dando-lhe razão por preferir o termo indefinido, visto nunca haver um todo infinito, por muito que sempre haja todos maiores que os outros ao infinito (assim como menores).393 Toda a composição de partes nunca poderá formar um infinito, pelo que o verdadeiro infinito reside no absoluto anterior a qualquer composição: Deus.394 De qualquer forma, a ausência de limites na extensão não implica a mesma ausência na sucessão, sobretudo no sentido do passado. Isso deduz-se da conceção relativa às séries infinitas que acabou de ser referida, mas não é assim explicitamente apresentada por Leibniz. Se uma série de finitos nunca poderia atingir o infinito (que é o que significa não poder haver um todo infinito), um finito também não poderia ser atingido por uma série proveniente do infinito. Pode ser concebível que a sucessão nunca acabe, mas não se percebe como é que uma sucessão que nunca começou chegou aqui, agora. Porém, as razões apresentadas explicitamente são as do crescimento da perfeição e a de conservar o caráter de um autor infinito.395 Deixando, por enquanto, a primeira de lado, a segunda poderia ser objetável da mesma forma que Leibniz objeta à implicação clarkiana da independência do mundo em relação a Deus, caso o mundo fosse eterno: o mundo poderia ser eternamente dependente de Deus;396 da 392

Leibniz, op. cit., § 63, G, VII, 406: "Mais il ne s'ensuit nullement que la matiere soit eternelle et necessaire, si non en supposant que l'espace est eternel et necessaire : supposition mal fondée en toutes manieres." 393 Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XIII, § 21, G, V, 137-8: "M. des Cartes et ses sectateurs ont dit pourtant que la matiere n'a point de bornes, en faisant le monde indefini, ensorte qu'il ne nous soit point possible d'y concevoir des extremités. Et ils ont changé le terme d'infini en indefini avec quelque raison ; car il n'y a jamais un tout infini dans le monde, quoyqu'il y ait tousjours des touts plus grands les uns que les autres à l'infini, et l'univers mème ne sauroit passer par un tout"; Ch. XVII, § 8, G, V, 146: "PH. Nous n'avons pas l'idée d'un espace infini, et rien n'est plus sensible que l'absurdité d'une idée actuelle d'un nombre infini. TH. Je suis du même avis. Mais ce n'est pas parcequ'on ne sauroit avoir l'idée de l'infini, mais parcequ'un infini ne sauroit estre un vrai tout." O mesmo se aplica à eternidade: Leibniz, op. cit., Ch. XXIX, § 15, G, V, 244: "Nous avons une idée complete ou juste de l'eternité, puisque nous en avons la definition, quoyque nous n'en ayions aucune image ; mais on ne forme point l'idée des infinis par la composition des parties, et les erreurs qu'on commet en raisonnant sur l'infini ne viennent point du defaut de l'image." 394 Leibniz, op. cit., Ch. XVII, § 1, G, V, 144: "il est vray qu'il y a une infinité de choses, c'est à dire qu'il y en a tousjours plus qu'on n'en puisse assigner. Mais il n'y a point de nombre infini ny de ligne ou autre quantité infinie, si on les prend pour des veritables Touts, comme il est aisé de demonstrer. Les écoles ont voulu ou dû dire cela, en admettant un infini syncategorematique, comme elles parlent, et non pas l'infini categorematique. Le vray infini à la rigueur n'est que dans l'absolu qui est anterieur à toute composition, et n'est point formé par l'addition des parties."; ibidem, § 2, G, V, 144: "l'infini veritable n'est pas une modification, c'est l'absolu ; au contraire, dès qu'on modifie, on se borne ou forme un fini." 395 Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 74, G, VII, 408: "De l'étendue à la durée, non valet consequentia. Quand l'étendue de la matiere n'auroit point de bornes, il ne s'ensuit point que sa durée n'en ait pas non plus, pas même en arriere, c'est à dire, qu'elle n'ait point eu de commencement. Si la nature des choses dans le total, est de croitre uniformement en perfection, l'univers des creatures doit avoir commencé. Ainsi il y aura des raisons pour limiter la durée des choses, quand même il n'y en auroit point pour en limiter l'étendue. De plus, le commencement du monde ne deroge point à l'infinité de sa durée a parte post, ou dans la suite; mais les bornes de l'univers derogeroient à l'infinité de son étendue. Ainsi il est plus raisonnable d'en poser un commencement que d'en admettre des bornes, à fin de conserver dans l'un et dans l'autre le caractere d'un Auteur infini." 396 Leibniz, op. cit., § 75, G, VII, 409: "Cependant ceux qui ont admis l'eternité du monde, ou du moins (comme ont fait des Theologiens celebres) la possibilité de l'eternité du monde, n'ont point nié pour cela sa dependance de Dieu, comme on le leur impute icy sans fondement."

155

mesma forma, também se poderia entender que fosse eternamente criado por Deus. Porém, se assim fosse, o mundo emanaria de Deus por essência e, de facto, necessariamente, e não seria o resultado de uma escolha divina, uma escolha que não só escolheu entre vários mundos possíveis, mas também entre existir um mundo e não existir – e só uma tal escolha merece uma identificação de autoria, tal como um homem não é considerado autor daquilo que inevitavelmente faz, como transpirar ou respirar. A outra razão tem relação com a questão da providência e raramente é afirmada de uma forma categórica, mas, porventura, é um dos aspetos que mais claramente opõe Leibniz a Newton. Se se retirar a forma, muitas vezes, condicional, a tese tem a forma que assume explicitamente no trecho acabado de referir: "a natureza das coisas, no total, é de crescer uniformemente em perfeição". Visto a perfeição divina ser absoluta e a das criaturas sempre limitada, se a sua natureza for a de crescer a perfeição, encontra-se aí a razão para ir mais longe, donde se poderia inferir a eternidade.397 Vários indícios desta conceção são dados esparsamente pela obra de Leibniz, incluindo uma passagem, poucos meses anterior à polémica, que parece esclarecer a passagem do crescimento uniforme em perfeição, com a particularidade de o exigir no caso de o mundo ter um começo e de o admitir, embora não uniformemente e com menor verosimilhança, até mesmo no caso de não haver um começo. 398 A felicidade das criaturas está num progresso contínuo e não interrompido para maiores bens, 399 as atuais perceções insensíveis podem se desenvolver, pois nada existe de inútil e a eternidade dá grandes possibilidades de mudança,400 o género humano pode com o tempo chegar a uma maior perfeição,401 se não chegar a essa maior perfeição cair-se-á na absurdidade da eterna repetição da enunciação das mesmas proposições,402 a evolução das culturas espelha o 397

Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XIV, § 27, G, V, 141: "Mais pour en tirer la notion de l'eternité, il faut concevoir de plus que la même raison subsiste tousjours pour aller plus loin." Claro que sem as restantes referências que aqui se farão, esta seria uma interpretação muito forçada do trecho que apenas se refere a não haver razão para parar a progressão. 398 Leibniz, Carta para Bourguet de 5 de Agosto de 1715, G, III, 582-3: "On peut former deux hypotheses, l'une que la nature est tousjours egalement parfaite, l'autre qu'elle croit tousjours en perfection. Si elle est tousjours egalement parfait, mais variablement, il est plus vraisemblable qu'il n'y ait point de commencement. Mais si elle croissoit tousjours en perfection (supposé qu'il ne soit point possible de luy donner toute la perfection tout à la fois) la chose se pourroit encor expliquer de deux façons, savoir par les ordonées del'Hyperbole B ou par celle du triangle C. Suivant l'hypothese de l'Hyperbole, il n'y auroit point de commencement, et les instans ou etats du Monde seroient crûs en perfection depuis toute l'eternité ; mais suivant l'hypothese du Triangle, il y auroit eu un commencement. L'Hypothese de la perfection egale seroit celle d'un Rectangle A. Je ne vois pas encor le moyen de faire voir demonstrativement ce qu'on doit choisir par la pure raison. Cependant quoyque suivant l'hypothese de l'accroissement, l'etat du Monde ne pourroit jamais etre parfait absolument, etant pris dans quelque instant que ce soit ; neanmoins toute la suite actuelle ne laisseroit pas d'etre la plus parfaite de toutes les suites possibles, par la raison que Dieu choisit tousjours le meilleur possible." Ao só admitir o começo sob condição do progresso uniforme, Leibniz está, porém, já a concluir que a conceção porventura mais ortodoxa é inconsistente, visto não ser compatível o começo com a igualdade perene da perfeição universal. De facto, está a tentar forçar que os criacionistas admitam a evolução do universo. 399 Leibniz, Nouveaux essais..., Ch. XXI, § 36, G, V, 174-5. Ver III. 4, nota 106. 400 Leibniz, op. cit., Ch. XXVII, § 18, G, V, 224-5: "les perceptions insensibles pour le present se peuvent developper un jour, car il n'y a rien d'inutile, et l'eternité donne un grand champ aux changemens." 401 Leibniz, Essais de Théodicée, 3ª parte, § 341, G, VI, 317: "Il se peut même que le genre humain parvienne avec le temps à une plus grande perfection, que celle que nous pouvons imaginer presentement." 402 Leibniz, HD, 74: "Caeterum vel ex his judicari potest genus humanum semper in hoc statu non est mansurum; quia divinae Harmoniae consentaneum non est eadem semper chorda oberrare. Credendumque est vel ex naturalibus congruentiae rationibus res vel paulatim, vel etiam aliquando per saltus in melius proficere debere." Não está nesta passagem referida a absurdidade da repetição dos

156

progresso do próprio universo403 e, finalmente, a própria realização do melhor mundo possível poderá ser alcançada, através da predestinação divina, no tempo, podendo o universo progredir, sem fim, sempre para o melhor.404 Serão apenas possibilidades mas razoavelmente presentes na obra de Leibniz e muito consonantes com todo o seu esforço, ao longo de toda a sua vida, no progresso das instituições científicas e no diálogo entre as culturas e os povos. Talvez a esta luz não seja estranho, muito embora possa rejeitar, em geral, uma clara evolução quanto às espécies dos corpos, 405 o pedacinho de evolucionismo que presenteia com o exemplo dos gatos.406 Isso é possível porque a sua compreensão da realidade, apesar das limitações teológicas, tendia para aí. Ora, essa não é claramente a perspetiva de Clarke ou, pelo menos, de Newton. Por diversas vezes, na polémica, Clarke fornece indícios do milenarismo newtoniano407 e não está apenas em questão o desarranjo presumivelmente longínquo do sistema solar.408 De qualquer forma, o trecho em questão da Ótica, apesar da linguagem velada, enunciados, mas esse é o contexto demonstrativo: Caso a natureza humana seja sempre igual e perene, o conjunto dos enunciados proferíveis será finito e acabará por se repetir, de forma absurda porque não teria qualquer desígnio a atingir. 403 Leibniz, "De rerum originatione radicali", G, VII, 308: "In cumulum etiam pulchritudinis perfectionisque universalis operum divinorum, progressus quidam perpetuus liberrimusque totius Universi est agnoscendus, ita ut ad majorem semper cultum procedat. Quemadmodum nunc magna pars terrae nostrae culturam recepit et recipiet magis magisque. Et licet verum sit, interdum quaedam rursus silvescere aut rursus destrui deprimique, hoc tamen ita accipiendum est, ut pauIo ante afflictionem interpretati sumus, nempe hanc ipsam destructionem depressionemque prodesse ad consequendum aliquid majus, ita ut ipso quodammodo damno lucremur. Et quod objici posset: ita oportere ut Mundus dudum factus fuerit Paradisus, responsio praesto est: etsi multae jam substantiae ad magnam perfectionem pervenerint, ob divisibilitatem tamen continui in infinitum, semper in abysso rerum superesse partes sopitas adhuc excitandas et ad majus meliusque et ut verbo dicam, ad meliorem cultum provehendas. Nec proinde unquam ad Terminum progressus perveniri." Trad. port. Viriato Soromenho-Marques, Razão e Progresso na filosofia de Kant, Lisboa, Edições Colibri, 199812, pp. 142-143. 404 Leibniz, Essais de Théodicée, 2ª parte, § 202, G, VI, 237: "toute la suite des choses à l'infini peut être la meilleure qui soit possible, quoyque ce qui existe par tout l'univers dans chaque partie du temps ne soit pas le meilleur. Il se pourroit donc que l'univers allât tousjours de mieux em mieux, si telle étoit la nature des choses, qu'il ne fût point permis d'atteindre au meilleur d'un seul coup. Mais ce sont des problemes dont il nous est difficile de juger." Leibniz, HD, 72: "Et ob hanc rationem fieri posset, ut res paulatim etsi imperceptibiliter in melius proficerent post revolutiones." 405 Cf. Fichant, HD, 170 e 202, muito embora tome como referência textos dos anos 70. A rejeição não é tão absoluta nas passagens referidas na nota seguinte. 406 Leibniz, Nouveaux essais..., L. III, Ch. VI, § 23, G, V, 296: "plusieurs animaux qui ont quelque chose du chat, comme le lion, le tigre et le lynx pourroient avoir esté d'une même race et pourront estre maintenant comme des sousdivisions nouvelles de l'ancienne espece des chats." Na verdade, chega a expor a possibilidade explicitamente, até referindo uma possível evolução dos animais aquáticos para os anfíbios e destes para os terrestres, mas rejeita-a por ser contrária à Escritura: Leibniz, Protogaea, § VI, OM, II, 205: "Equidem haut ignoro, esse quosdam, qui eo usque licentia conjectandi procedant, ut tegente omnia oceano animalia, quæ nunc terram habitant, aliquando aquatica fuisse arbitrentur, paulatimque, destituente elemento, amphibia, postremò in posteritate sua prima sedes dedidicisse. Sed præterquàm quòd ista cum sacris scriptoribus, a quibus discedere religio est, pugnent, hypothesis ipsa in se spectata immensis difficultatibus laborat." Apesar disso, admite transformações nas espécies animais provocadas pelas alterações ambientais: ibidem, § XXVI, OM, II, 220: "& credibile est per magnas illas conversiones etiam animalium species plurimum immutatas"? 407 Clarke, op. cit., 2ª réplica, § 8, G, VII, 361. Ver II. 4, nota 147. Clarke, ibidem, 4ª réplica, § 15, G, VII, 384-5. Parte final da transcrição: nota 386. Clarke, op. cit., 5ª réplica, § 103, G, VII, 435: "For why was not God at Liberty to make a World, that should continue in its present Form as long or as short a time as he thought fit, and should then be altered (by such Changes as may be very wise and Fit, and yet Impossible perhaps to be performed by Mechanism), into whatever other Form be himself pleased?" 408 Newton, Optics, Qu. 31, OO, IV, 261-2: "it is unphilosophical to seek for any other origin of the world, or to pretend that it might arise out of a chaos by the mere laws of Nature; though being once formed, it may continue by those laws for many ages. For while comets move in very excentrick orbs in all manner of positions, blind Fate could never make all planets move one and the same way in orbs

157

é muito elucidativo: primeiro, o tom dogmático com que se rejeita qualquer outra investigação acerca das origens; segundo, o caráter temporal das leis, mesmo que possam (may) durar muito tempo; terceiro, a afirmação de que o sistema necessitará de reforma; e quarto, o facto implícito dessa reforma, assim como a ordem, serem resultado de um desígnio e, por isso, resultado de uma escolha. A crença de que esta ordem do mundo iria acabar, mas que uma nova se sucederia, estava muito enraizada em Newton desde a juventude,409 mas manteve-se ao longo do tempo e até se desenvolvia ao mesmo tempo que os Principia eram elaborados. 410 Conjuntamente com estas convicções, estava também presente a crença de que se vivia, não numa época de progresso para longe da escuridão do passado,411 mas numa época de domínio do Anticristo.412 O fim do mundo e a sua renovação, e não a sua determinação, de uma vez por todas, na criação, eram os maiores sinais da providência de Deus.413 É provável que as conceções fundamentais de Newton e de Leibniz acerca dos limites do Universo não fossem muito diversas, mas enquanto o primeiro admitia descontinuidades quer no espaço, quer no tempo, tudo era pensado por Leibniz ao abrigo do princípio da continuidade. O que mais importava, para Newton, era salvaguardar a liberdade e o poder divinos, como é evidente na insistência de Clarke na possibilidade de Deus fazer um Universo finito. É verdade que Newton também o concebia infinito, mas não por qualquer razão que obrigasse Deus, antes porque decorria do que era visível na obra de Deus, pensando o que era observável segundo a sua teoria da gravitação. Embora diminuindo a atração gravítica com a distância, nunca é anulada, pelo que, se o universo fosse finito, todas as estrelas confluiriam umas para as outras produzindo uma gigantesca massa única. O facto de se manterem a tão grandes distâncias umas das outras era um indício da sua distribuição mais ou menos equilibrada pelo espaço infinito, de forma a que o equilíbrio das atrações não as fazia tender para lado algum. 414 Assim, Newton julgava ter uma base empírica até para esta tão inequívoca conceção metafísica. Regressando à questão de se a origem do mundo poderia ser anterior ou posterior, Leibniz, embora, como já foi salientado, procure sempre mostrar o tempo como relativo à sucessão das coisas e, por isso, só existente a partir do momento em que existem coisas com uma ordem de sucessão, ou seja, coisas criadas, tem mais algumas concentrick, some inconsiderable irregularities excepted, which may have risen from the mutual actions of comets and planets upon one another, and which will be apt to increase, till this system wants a reformation. Such a wonderful uniformity in the planetary system must be allowed the effect of choice." 409 Manuel, RI, 41-2. 410 Manuel, RI, 99-102. 411 Não seria propriamente uma crença muito rara na época, antes pelo contrário; a de Leibniz é que era pouco habitual: Dolnick, CU, ch. 3, 13: "The question was not whether the world would end but how soon the end would come. The answer, it seemed, was very soon. Almost no one believed in the idea of progress. (The very scientists whose discoveries would create the modern world did not believe in it.)"; e 16: "The greatest scientists of the age, Isaac Newton chief among them, believed as fervently as everyone else that they lived in the shadow of the apocalypse." 412 Por exemplo, Manuel, RI, 99. 413 Manuel, RI, 78. 414 Newton, Primeira carta para Bentley, OO, IV, 429-430: "it seems to me, that if the matter of our sun and planets, and all matter of the universe, were evenly scattered throughout all the heavens, and every particle had an innate gravity towards all the rest, and the whole space, throughout which this matter was scattered, was but finite; the matter on the outside of this space would by its gravity tend towards all the matter on the inside, and by consequence fall down into the middle of the whole space, and there compose one great spherical mass. But if the matter was evenly disposed throughout an infinite space, it could never convene into one mass; but some of it would convene into one mass and some in another, so as to make an infinite number of great masses, scattered at great distances from one to another throughout all that infinite space."

158

considerações que devem ser tidas em conta. Em primeiro lugar, admite a possibilidade de poderem existir criaturas imateriais antes das criaturas materiais, 415 muito embora depois saliente que defendia que todas as criaturas teriam um corpo. 416 De qualquer forma, parece admitir que possam existir criaturas criadas antes de outras, o que entra em contradição com a tese do único decreto divino 417 que teria criado todas as substâncias, de uma só vez, naturalmente imperecíveis. Pior ainda para esta eventual contradição é a passagem anterior onde admite que a criação fosse anterior se houvesse mais coisas em sucessão, como se o número de substâncias se alterasse ao longo do tempo e mais tempo significasse, por isso, maior número de coisas.418 Resta supor que tais hipóteses fossem indulgências argumentativas para com as conceções do interlocutor, partindo do suposto que não iria expor todas as suas teses numa polémica que decorreu no ambiente de reserva intelectual já antes referido.

415

Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 59, G, VII, 406: "Quand je parle de ce monde, j'entends tout l'univers des creatures materielles et immaterielles prises ensemble, depuis le commencement des choses ; mais si l'on n'entendoit que le commencement du monde materiel, et supposoit avant luy des creatures immaterielles, on se mettroit un peu plus à la raison en cela. Car le temps alors estant marqué par des choses qui existeroient déja, ne seroit plus indifferent ; et il y pourroit avoir du choix. Il est vray qu'on ne feroit que differer la difficulté, car supposant que l'univers entier des creatures immaterielles et materielles ensemble a commencé, il n'y a plus de choix sur le temps où Dieu le voudroit mettre." 416 Leibniz, op. cit., § 62, G, VII, 406. 417 Leibniz, op. cit., § 66, G, VII, 407. 418 Leibniz, op. cit., § 56, G, VII, 405: "Mais absolument parlant, on peut concevoir qu'un Univers ait commencé plustost qu'il n'a commencé effectivement. Supposons que notre Univers, ou quelque autre, soit representé par la figure AF, que l'ordonnée AB represente son premier Etat, et que les ordonnées CD, EF representent des Etats suivans ; je dis qu'on peut concevoir qu'il ait commencé plustost, en concevant la figure prolongée en arriere, et en y adjoutant SRABS. Car ainsi, les choses estant augmentées, le temps sera augmenté aussi. Mais si une telle augmentation est raisonnable et conforme à la sagesse de Dieu, c'est une autre question ; et il faut dire que non, autrement Dieu l'auroit faite. [...] Il en est de même de la duration. Comme on pourroit concevoir quelque chose d'adjouté au commencement, on pourroit concevoir de même quelque chose de retranché vers la fin. Mais ce retranchement encore seroit déraisonnable."

159

160

V. A comunicação entre o corpo e a alma Este é um segmento habitualmente menosprezado da polémica. A maioria das abordagens centra-se em demasia na polémica do espaço e do tempo, quanto muito na relação de Deus com os mesmos espaço e tempo, com o universo e, eventualmente, na questão da providência divina. Porém, se o tema estruturador for o da liberdade, imediatamente se evidencia a importância do tema, mesmo que o seu tratamento, na polémica, não seja dos mais extensos. Embora a liberdade que, fundamentalmente, está em questão na polémica seja a de Deus, tributariamente, como é habitual, reflete-se sempre na do homem, como, aliás já foi visto em III. Já se viu, aliás, nesta dissertação, que Clarke concebe a liberdade como a possibilidade de um princípio ativo ter eficiência física, quer seja da parte de Deus, quer do homem. Ora, a conceção monadológica de Leibniz, já tratada, em termos físicos, em IV, não poderia deixar de entrar em conflito com tal conceção. O âmbito em que esse conflito vai ocorrer é o do chamado problema idealista da comunicação entre a alma e o corpo. Ambas as posições tiveram a sua origem no cartesianismo, a newtoniana no seu realismo, talvez perdendo alguma coisa do caráter crítico que tinha em Descartes; a leibniziana, nos novos cartesianos, ou seja, nos ocasionalistas que levaram a formulação crítica bem mais longe que Descartes. Ambos tiveram os seus intermediários. Newton recebe a adaptação do cartesianismo levada a cabo por Henry More, muito embora nunca o reconheça explicitamente. Leibniz é extremamente influenciado por Malebranche, muito embora, exatamente por isso, parta da crítica à sua conceção para expor a própria. 1. Da possibilidade da materialidade à extensão da alma Logo na primeira carta da polémica, a alma é já referida, muito embora seja referenciada, inicialmente, às teses de ingleses em geral e, em seguida, seja especificada na referência direta a Locke e a seus seguidores. Como já foi referido, está em causa a tese, alegadamente perfilhada por muitos ingleses, da corporalidade da alma. 1 Relativamente ao próprio Locke, não estaria em causa tanto uma afirmação de materialidade da alma, mas mais uma dúvida acerca de como se ligavam substancialmente espírito e corpo, visto não ter qualquer dúvida da distinção das suas ideias. Tal dúvida prende-se à própria incognoscibilidade da substância entendida apenas como mero suporte suposto das ações, dos modos e dos atributos. Ora, do ponto de vista de Locke, seria tão possível a Deus conceder a faculdade de pensar a um sistema de matéria como unir à matéria uma substância imaterial que tivesse essa faculdade de pensar. 2 Há, porém, já uma certa contradição entre conceber uma amálgama (como traduz Leibniz – systems por amas) de matéria e supô-la suporte de faculdades que Leibniz, ao seu modo, não deixa de explorar.3 Essa dúvida, no entanto, 1

Leibniz, op. cit., 1º escrito, §§ 1-2, G, VII, 352. Locke, EU, Book IV, Chap. III, § 6, 323: "We have the Ideas of Matter and Thinking, but possibly shall never be able to know, whether any mere material Being thinks, or no; it being impossible for us, by the contemplation of our own Ideas, without revelation, to discover, whether Omnipotency has not given to some Systems of Matter fitly disposed, a power to perceive and think, or else joined and fixed to Matter so disposed, a thinking immaterial Substance: It being, in respect of our Notions, not much more remote from our Comprehension to conceive, that GOD can, if he pleases, superadd to Matter a Faculty of Thinking, than that he should superadd to it another Substance, with a Faculty of Thinking; since we know not wherein Thinking consists, nor to what sort of Substances the Almighty has been pleased to give that Power, which cannot be in any created Being, but merely by the good pleasure and Bounty of the Creator. For I see no contradidion in it, that the first eternal thinking Being or omnipotent Spirit should, if he pleased, give to certain Systems of created sensless matter, put together as he thinks fit, some degrees of sense, perception and thought". 3 Leibniz, Nouveaux essais..., Livre IV, Chap. III, G, V, 358-9. Ver transcrição parcial em IV. 9, nota 366. 2

161

estaria na base da polémica entre Locke e Eduard Stillingfleet, bispo de Worcester, referida por Leibniz no Prefácio dos Novos Ensaios, 4 onde Locke reduz à probabilidade a imaterialidade da alma, como já havia implicitamente afirmado um pouco adiante do passo referido, 5 por estar em causa a certeza demonstrativa. 6 Não sendo possível o conhecimento demonstrativo da imaterialidade da alma, Locke afirma, porém, a sua probabilidade ao mais alto grau, afirmando, porém, que a afirmação da imortalidade da alma não depende da sua imaterialidade. É possível que Leibniz, ao referir-se aos seguidores de Locke e à natural perecibilidade da alma, estivesse a pensar também no mesmo Anthony Collins7 com que Samuel Clarke havia entrado em polémica na sequência da sua tomada de posição a propósito do livro de Henry Dodwell em que este afirmava a mortalidade natural da alma.8 Como já foi referido, Clarke, na sua primeira réplica, tenta defender Locke dos excessos materialistas de seguidores seus, como é o caso de Collins e Toland, que, alegadamente, só tinham seguido Locke nos seus erros. Clarke tenta mostrar que está do mesmo lado de Leibniz nestas primeiras acusações contra o materialismo, evocando, implicitamente, a sua polémica com Collins e a suposta oposição deste aos princípios matemáticos da filosofia. Ora, nem Collins, nem Toland se pronunciaram, explicitamente, contra a física newtoniana estritamente dita. O que está em causa são os pressupostos e as implicações metafísicas e teológicas da mesma que o próprio Newton defendeu e que Clarke, como escolástico newtoniano, desenvolve, nomeadamente quanto à natureza da alma e quanto à conceção da liberdade, ambas desenvolvidas ao longo da polémica com Leibniz. No caso de Toland, visto Newton julgar provar, como foi visto, empiricamente, a existência do espaço absoluto e do vazio, é possível que os newtonianos julgassem a negação de tais teses 9 uma oposição aos "princípios 4

Leibniz, op. cit., Préface, G, V, 65-8. Locke, EU, Book IV, Chap. X, § 16, 377. 6 John Locke, Works, London, John Churchill, 1714, Vol. I, A Letter to the Right Reverend Edward Lord Bishop of Worcester, p. 357: "Tho I presume, from what I have said about the supposition of a System of Matter, Thinking (which there demonstrates that God is immaterial) will prove it in the highest degree probable, that the thinking Substance in us is immaterial." 7 Sobretudo devido à tese diretamente evocada porque até terá sido maior o conhecimento, nomeadamente através do contacto direto, do pensamento de John Toland que, aliás, lhe dirige o elogio final das Cartas a Serena: cf. Toland, Letters to Serena, London, Bernard Lintot, 1704 [LS], Letter V, § 31, pp. 238-239. A 2ª carta rejeita, aliás, a possibilidade de demonstração racional da imortalidade da alma, não só através da alegada fraqueza dos argumentos dos Antigos e de uma suposta incredulidade oculta por detrás do discurso exotérico, mas através da sua dispensabilidade após a revelação cristã, remetendo para uma fé irracional: Toland, LS, Letter II, § 13, 55-6: "On these Subjects there have bin written many subtil and ingenious Conjectures, but more that were ridiculous, extravagant, and impossible. Nor have the modern Philosophers succeeded any better than the Antients, and among both of them scarce any two were of a mind; whereas in my opinion the Moderns have not the same right to examine this matter as the Antients, but ought humbly to acquiesce in the Authority of our Savior Jesus Christ, who brought Life and Immortality to Light." Cf. Toland, LS, Letter II, § 16, 66. Aliás, Clarke também o toma como adversário logo na primeira versão da conferência de 1704, editada em 1705, mas por atribuir atividade à matéria: Clarke, DB, III, p. 46. É natural, portanto, que Leibniz e, na sequência, Clarke estivessem a pensar, pelo menos, em ambos, Toland e Collins, visto utilizarem o plural. 8 Henry Dodwell, An Epistolary Discourse proving, from the Scriptures and the first fathers that the Soul is a principle naturally mortal, 2ª ed., London, R. Smith, 1706. 9 Toland, LS, toda a Letter V, mas, em especial, e. g., para o espaço, atacado, ao modo leibniziano, como abstração, chegando mesmo a citar Newton, §§ 12-13, 180-3; no mesmo sentido, espaço e vazio, § 25, 215-8; também é interessante o § 27, 221-7. Nem o elogio a Newton o livra da ofensa pela desconsideração. Veja-se como um "opositor" já sentia a necessidade, logo no início do séc. XVIII, de se referir a Newton como "the greatest Man in the world", § 13, 182. Nunca, aliás, põe Toland em causa qualquer das formulações matemáticas de Newton e até tenta interpretá-lo de forma a ser o mais compatível possível com as suas teses. 5

162

matemáticos da filosofia". 10 Também Collins se pronuncia, por exemplo, contrariamente à afirmação de que a matéria não poderia ter, por si, dada desde o começo, peso ou gravidade e necessitaria, por isso, da ação constante de Deus11, questão que está longe de ser estritamente física. Naturalmente, Newton podia julgar a matéria absolutamente passiva e incapaz até de cumprir quaisquer leis, como Clarke afirma na sua segunda conferência de Boyle,12 mas, se julgasse de outra forma, as leis estritamente físicas não teriam de ser alteradas, por muito que ficasse por questionar que força seria essa que age mesmo sem a presença de um agente. É verdade que Clarke, na sequência de Newton, julga poder demonstrar que a gravidade não resulta da impulsão dada pelos corpos circum-ambientes13 (como nos vórtices ou nas teorias circulatórias), devido a ser proporcional à totalidade da massa e não à mera superfície,14 mas isso, quanto muito, poderia ser considerado um equívoco de Collins resultante da forma como concebia a gravitação, e não uma pretensão de contestar os princípios matemáticos da filosofia newtoniana. Evidentemente, poderiam ser referidos muitos outros pressupostos ou muitas outras implicações metafísicas que Collins pôs em dúvida como a indivisibilidade do espaço, sobretudo, quando aplicada à alma, ou a forma como um ser imaterial pode mover a matéria, 15 nenhuma delas propriamente rejeitando as leis matemáticas. Naturalmente, Clarke não traça qualquer fronteira entre as formulações matemáticas e as interpretações ou implicações metafísicas, considerando-as como decorrentes e estabelecidas pelos princípios matemáticos da filosofia: “se se seguem demonstrativamente consequências metafísicas dos princípios matemáticos, então estes poder-se-ão chamar princípios metafísicos“.16 Não se julgue que este remoque aos materialistas lockianos nada tem que ver com a questão da comunicação do corpo e da alma, muito embora nestas referências a Locke e aos lockianos, quer de Leibniz, quer de Clarke, isso não seja claro. De facto, um dos argumentos do ataque de Collins a Clarke residia nas dificuldades de explicação da interação entre uma mente imaterial e um corpo material, dificuldades que pensava resolver melhor com uma conceção materialista da alma. De facto, Clarke, ao negar a possibilidade de uma substância imaterial ser alterada por uma material, sujeita-se à pergunta de Collins: se a alma que, por experiência, está submetida à ação de várias poderes naturais, dos quais sente a influência, não será então um ser material? 17 E quanto à impossibilidade de a matéria alterar os modos da substância imaterial, aproveitando a afirmação clarkiana da sua extensão, Collins mostra como a matéria pode alterar o estado da alma (extensa) do movimento para o repouso. Por outro lado, 10

Clarke, Streitschriften..., 1ª réplica, § 2, G, VII, 353. Ver I. 1, nota 3. Collins, LD, "A Reply to Mr. Clarke's Defence of his Letter to Mr. Dodwell", 123: "Matter gravitates by virtue of Powers originally placed in it by God, and is now left to it self to act by those Original Powers." 12 Clarke, DC, 13-4: "seeing Matter is utterly uncapable of obeying any Laws, the very original Laws of Motion themselves cannot continue to take Place, but by something Superior to Matter, continually exerting on it a certain Force or Power according to such certain and determinate Laws". 13 Collins, LD, "Reflections on Mr. Clarke's Second Defence of his Letter to Mr. Dodwell", 218: "it seems Matter of Fact to me, that the external Figure and internal Configuration of the Parts of Matter, are those Powers in Matter by which it receives that peculiar Mode of Motion called Gravitation, from the circumambient impelling Bodies." 14 Clarke, LD, "A Third Defence of an Argument...", 295: "Gravitation cannot arise from the Configuration and Texture of the Parts of Matter, and from the circumambient impelling Bodies; because, if it did, it would not be proportionable to the Quantity of Matter, or the Solid Content of all Bodies, without any regard to their Superficial Proportion; as we find by Experience it is". 15 Collins, LD, ibidem, 219. 16 Clarke, Streitschriften..., 2ª réplica, § 1, G, VII, 359. Ver II. 1, nota 25. 17 Collins, LD, "A Reply to Mr. Clarke's Defence...", 128. 11

163

embora não aceite a alteração, Clarke reconhece que a matéria e os órgãos corporais agem sobre a alma, o que parece contraditório visto o material só agir sobre algo tocando-lhe e não poder tocar no imaterial. 18 Também a já referida objeção à forma como o imaterial pode mover o material, pode ser trazida para aqui. 19 Apesar do tendencial idealismo leibniziano, também Leibniz encontrará na questão da comunicação entre o corpo e a alma um calcanhar de Aquiles da conceção de Clarke/Newton, embora, naturalmente, para sustentar outra conceção. Igualmente, a reação clarkiana à conceção materialista de Collins leva a um ataque também repetido contra Leibniz, o de que aquela conceção leva ao determinismo 20 (muito confirmado pela obra que o próprio Collins publicou logo a seguir à polémica entre Clarke e Leibniz, em 171721). Como é óbvio, isto não significa de todo que a conceção de Leibniz seja minimamente semelhante à de Collins – o que aqui interessa é o denominador comum, ou seja, as conceções do próprio Clarke, provavelmente seguindo Newton. Aliás, a conceção materialista de Collins, admitindo a gradual substituição de todas as partes de matéria ao longo da vida, é suscetível de uma crítica adicional, no âmbito da liberdade, que seria mais difícil dirigir a Leibniz,22 a da falta de fundamento para a punição,23 muito embora a pudesse igualmente fazer, se bem que de forma mais problemática, com base unicamente na determinação da alma pelos motivos. Explicitamente, o tema da comunicação entre a alma e o corpo é colocado, pela primeira vez, não por Leibniz, mas sim por Clarke, por analogia com a questão de o espaço ser o sensorium de Deus, questão, essa sim, que foi uma das que deram início à polémica. Ao fazer a analogia, Clarke apresenta a presumível teoria do conhecimento de Newton que, desde muito novo, pelo menos desde 1665, ou seja, antes do nascimento 18

Collins, LD, "An Aswer on Mr. Clarke's Third Defence of his Letter to Mr. Dodwell", 341: "That Mr. Clarke allows Matter, or the Bodily Organs, to act us on the Soul. Now Matter cannot act upon an Immaterial Being by Motion, because there can be no Contact between a material and immaterial Being". 19 Aliás, é mencionada logo em seguida, ibidem, LD, 341-2. Collins considera que essas dificuldades desapareceriam se o próprio pensamento fosse considerado um modo de movimento no quadro de uma conceção materialista da alma: "It is by many thought a Difficulty to conceive, how by a mere Preference of the Mind, we can cause our left Hand, which was in motion, to be at rest; and our right Hand, which was at rest to be in motion; and by a new Will, Choice or Preference (call it as you please) to put the left Hand in motion, and the right Hand at rest, and so on, let our Wills vary and change ever so often. But that Difficulty is entirely at an end, if Thinking in Man be nothing but a Mode of Motion, or Matter in motion: and it is then as conceivable, that Thinking should produce those Motions, as that a Spring or Weight in a Clock should make a Clock strike or point to the Hour of the Day." 20 Clarke, LD, "A Third Defence of an Argument...", 307: "If Thinking, in a Man, be nothing but a Mode of Motion, or of any other Quality of Matter; it will be but too natural a Consequence, to conceive that it may be only the same thing in all Other Rational Beings likewise; and even in God himself. And what a Notion of God This would give us, is not difficult to imagine. A Friend of yours has given us a very broad Hint, whither This tends; when he tells us that the greatest Freedom or Liberty we can conceive to belong to ANY BEING, is such as he there largely explains to be No Liberty at all, but absolute Necessity, such as the Motion of a Watch or Clock is determined by." O amigo referido é nem mais nem menos que o próprio Collins, visto ter publicado anonimamente o seu Essay concerning the use of Reason... em 1707. Ver também a discussão mais desenvolvida feita adiante, Clarke, LD, "A Fourth Defence of an Argument...", 431-5, que termina com a distinção já feita nas conferências de Boyle entre a necessidade absoluta e a necessidade moral, supostamente assim garantindo a autodeterminação que o distinguia do determinismo de Collins. 21 Anthony Collins, Philosophical inquiry concerning Human Liberty, London, R. Robinson, 1717. 22 Leibniz, Essais de Théodicée, 1ª parte, § 89, G, VI, 151: "en disant que l'ame de l'homme est immortelle, on fait subsister, ce qui fait que c'est la même personne, laquelle garde ses qualités morales, en conservant la conscience ou le sentiment reflexif interne de ce qu'elle est : ce qui la rend capable de chatiment et de recompense." 23 Clarke, LD, 290-2. Não deixa de ser curioso (e tradicional) só se referir à punição.

164

de Clarke, tentara levar a cabo “experimentos” com a visão e a luz solar que lhe permitissem perceber como se formavam as imagens. Aliás, é possível que o seu interesse pela luz, que deu origem às suas primeiras descobertas cientificamente significativas, tenha começado por este interesse gnosiológico, parte, aliás, de um interesse mais vasto e mais antigo ainda, acerca da forma como a alma comunica com o corpo. 24 Ora, na sua primeira réplica, Clarke afirma que Newton considera o cérebro e os órgãos da sensação como os meios pelos quais as imagens se formam, embora não os meios pelos quais a mente vê ou percebe essas imagens quando elas são assim formadas. Clarke defende que a mente está imediatamente presente a essas imagens formadas no seu cérebro, como Deus está presente às coisas (através do espaço).25 Recorrendo à autoridade cartesiana, nomeadamente de Malebranche, muito embora o próprio Leibniz esteja longe de se considerar cartesiano, Leibniz defende que a presença da alma não chega para ela se aperceber do que se passa no cérebro. Para que uma coisa represente o que se passa numa outra, é necessária uma comunicação explicável, alguma forma de influência. Se a presença (espacial) imediata chega, visto a alma ser indivisível, estaria reduzida a um ponto – como se aperceberia do que ocorresse fora desse ponto? Pelo contrário, Leibniz pretende ter sido o primeiro que mostrou como a alma se apercebe do que se passa no corpo (através de uma teoria que, afinal, rejeita qualquer possibilidade de influência mútua). Aliás, logo no parágrafo seguinte, em aparente contradição, rejeita a possibilidade de as almas e os corpos terem qualquer influência imediata entre si, pelo que, conclui, a sua correspondência mútua não poderia, de qualquer forma, ser explicada pela presença. 26 Leibniz tenta, aliás, reduzir ao absurdo a conceção gnosiológica clarkiana/newtoniana utilizando a analogia antes feita por Clarke, perguntando se o espaço, intimamente presente ao corpo, se apercebe do que se passa nele e se lembra dele quando o corpo sai dele, assim como a alma percebe e se lembra das imagens alegadamente por apenas estar no espaço em que elas se apresentam.27 Clarke, na sua segunda réplica, parece concordar com a insuficiência da presença da alma, mas apenas porque algo pode estar presente sem ser um ser vivo. Desde que se seja vivo, estar presente, como a alma do homem no seu sensório (análogo ao sensorium de Deus, ele próprio tratado, por Clarke, como se fosse uma analogia), basta para perceber as imagens das coisas. De resto, Clarke limita-se a sublinhar a necessidade da presença para a perceção, salientando que “nada pode mais agir ou ser objeto de ação onde não está presente do que pode existir onde não está”,28 o que não 24

Iliffe, NV, 32-5. Clarke, Streitschriften..., 1ª réplica, § 3, G, VII, 353: "Sir Isaac Newton considers the Brain and Organs of Sensation, as the Means by which those Pictures are formed; but not as the Means by which the Mind sees or perceives those Pictures, when they are so formed." O resto foi transcrito em IV. 1, nota 17. 26 Leibniz, Streitschriften..., 2º escrito, §§ 4 e 5, G, VII, 356-7: "On suppose que la presence de l'Ame suffit pour qu'elle s'apperçoive de ce qui se passe dans le cerveau. Mais c'est justement ce que le Pere Mallebranche et toute l'Ecole Cartesienne nie, et a raison de nier. Il faut toute autre chose que la seule presence, pour qu'une chose represente ce qui se passe dans l'autre. Il faut pour cela quelque communication explicable, quelque maniere d'influence ou des choses entre elles, ou d'une cause commune. [...] L'Ame estant indivisible, sa presence immediate qu'on pourroit s'imaginer dans le corps, ne seroit que dans un point, comment donc s'appercevroit elle de ce qui se fait hors de ce point ? Je pretends d'etre le premier qui ait montré, comment l'ame s'apperçoit de ce qui se passe dans le corps. [...] Les ames n'ayant point d'influence immediate sur les corps, ny les corps sur les ames, leur correspondance mutuelle ne sauroit estre expliquée par la presence." 27 Leibniz, ibidem, G, VII, 357: "L'Espace, selon M. Newton, est intimement present au corps qu'il contient, et qui est commensuré avec luy. S'ensuit il pour cela que l'espace s'apperçoive de ce qui se passe dans le corps, et qu'il s'en souvienne apres que le corps en sera sorti ?" 28 Clarke, op. cit., 2ª réplica, § 4, G, VII, 360: "It was never supposed, that the Presence of the Soul was 25

165

deixa de ser uma afirmação interessante tendo em conta a teoria da gravitação universal. Porém, Clarke acaba por fazer uma declaração com muito maiores implicações: “o facto de a alma ser indivisível não prova que esteja presente só num mero ponto”. 29 Esta declaração deve ser vista na sua inserção no texto, em que esta questão foi trazida no contexto de uma analogia com a relação entre Deus e o espaço, abordando a já tratada (III. 3) indiscerpibilidade do espaço. Ora, a alma está presente no seu sensório, presumivelmente o espaço do cérebro ou parte dele, como Deus está presente no espaço, na medida em que este é considerado um atributo ou propriedade de Deus (seguindo More). Sensório significa, para Newton/Clarke, o lugar da sensação – parece supor que a alma se relaciona com o corpo, como Deus com o Universo; assim como Deus perceciona as coisas no espaço infinito, assim a alma perceciona as sensações no espaço finito, o espaço onde está o cérebro (mais do que os órgãos dos sentidos, porque as imagens físicas são, como se verá, transportadas destes àquele). Da mesma forma, na Ótica, pensando a alma à imagem e semelhança de Deus, também a alma move o corpo como Deus move as criaturas, através do seu sensório.30 Desta forma, pode-se perceber melhor o que Clarke quer dizer com a alma ser indivisível e, ao mesmo tempo, não se reduzir a um ponto. Ela é extensa e, ao mesmo tempo, indiscerpível, como o espaço que, declara nesta réplica, seja “finito ou infinito, é absolutamente indivisível, mesmo que pelo pensamento (imaginar as suas partes a moverem-se para longe umas das outras é imaginá-las a moverem-se para fora de si mesmas), e, no entanto, não é um mero ponto.” 31 Clarke refere-se, naturalmente, ao espaço absoluto, imaterial, sem partes, uniforme e... infinito. É difícil perceber como, na forma como se concebe o espaço em Newton, se admite um espaço análogo, mas finito, para a alma, mas é isso que se está a defender. Trata-se de uma versão bem original da “imagem e semelhança de Deus”, pela qual a alma imaterial tem como atributo um pequeno espaço imaterial pelo qual percebe as imagens físicas transportadas ao cérebro. O cérebro não é, naturalmente, o sensório ou o espaço finito da alma porque é material e, como tal, divisível. É o lugar do cérebro, o espaço onde está o cérebro, que constitui o sensório da alma. Claro que fica em aberto a questão de como esse espaço finito se relaciona com o espaço infinito, assim como a questão de como um espaço que não admite partes, admite espaços finitos tão imateriais como ele. Reparar-se-á que o grande argumento para a indivisibilidade do espaço, o de não se poder separar espaço de espaço visto apenas poder ficar o mesmo espaço no meio, desaparece aqui: um espaço finito estará no e será rodeado do espaço infinito e, se fosse separado, haveria entre os dois espaços o espaço absoluto de Deus, tal como entre dois corpos. Já Collins, na polémica antes referida, se tinha insurgido contra esta transposição: “A sua indivisibilidade [do espaço absoluto] não pode provar a possibilidade de uma substância extensa finita ser indivisível, mas o contrário, visto que o espaço só é indivisível por ter essas duas antes mencionadas qualidades que o fazem diferir do ser imaterial em questão [a alma como ser extenso finito]”.32 Uma dessas sufficient, but only that it is necessary in order to Perception. Without being present to the Images of the Things perceived, it could not possibly perceive them: But being present is not sufficient, whithout it be also a Living Substance. Any inanimate Substance, tho' present, perceives nothing: And a Living Substance can only there perceive, where it is present either to the Things themselves (as the Omnipresent God is to the whole Universe;) or the Images of Things (as the Soul of Man is in its proper Sensory.) Nothing can any more Act, or be Acted upon, where it is not present; than it can Be, where it is not." 29 Clarke, ibidem: "The Soul's being Indivisible, does not prove it to be present only in a mere Point." 30 Newton, Optics, qu. 31, OO, IV, 262. Toda esta questão já foi tratada, a propósito de Deus, em III. 1. 31 Clarke, op. cit., 2ª réplica, § 4, G, VII, 360. Ver IV. 3, nota 83. 32 Collins, LD, "Reflections on Mr. Clarke's Second Defence...", 224: "As to his urging again his Instance

166

qualidades é exatamente a infinitude (sendo a outra a impossibilidade de interação). Aparentemente, Clarke julga poder deduzir do facto de a substância imaterial infinita ser extensa, o facto de todas as substâncias imateriais serem extensas (o que também equivale a dizer que a extensão seria um atributo essencial da substância, como afirmava More33), mas, mais do que isso, do facto de a extensão divina ser indivisível, o facto de as extensões de todos os espíritos serem indivisíveis, o que significava que, para ele, a prova da indivisibilidade da extensão divina era prova suficiente da indivisibilidade de todos os espíritos que nem Deus poderia dividir, ao contrário do que poderia fazer com os átomos.34 Aliás, a tendência de Clarke a julgar que a prova de algo em Deus servia como prova de algo análogo em relação à alma é notória na utilização da argumentação de Locke35 em relação a Deus36 para a aplicar à alma.37 Porém, o facto de as objeções de Collins o terem incomodado pode ser verificado pela sua diligência em separar a questão de se a alma é ou não extensa da restante argumentação a favor da imaterialidade da alma.38 Reconhece, aliás, que a simultânea extensão e indivisibilidade da alma se trata de uma suposição sujeita a dificuldades que não se podem resolver inteiramente, tentando mostrar, porém, que isso é diferente de supor que Deus não pudesse dividir qualquer matéria, o que seria, segundo Clarke, uma absurdidade e contradição manifesta. Esta distinção bizarra entre uma indivisibilidade da extensão of Space, which I readily own to be indiscerpible, to show the Possibility of immaterial Substance's being indiscerpible, though extended, I tell him again, that Space (which Mr. Clarke says is only an abstract Idea of Immensity) will by no means reach his purpose: for Space is infinite, and not only infinite, but being incapable of being considered, either as acting or being acted on, is no Being or Substance at all, and therefore its Indivisibility cannot prove the Possibility of a finite extended Substance's being indivisible, but the contrary: for Space is only indivisible by having those two before-mentioned Qualities that make it differ from the immaterial Being in question." 33 More, CS, Carta Descartes de 13 de Dezembro de 1648, 62. Transcrita em IV. 1, nota 30. 34 Clarke, de facto, parece distinguir a possibilidade de divisão da mais ínfima partícula de matéria pelos poderes de Deus (Clarke, LD, "A Defence of an Argument...", 98: "So that it is absolutely impossible and contradictory, to suppose any Particle of Matter so truly an Individual, but that by the Power of God (for the Powers of Nature here are nothing to the purpose) it may be divided into two or more Particles, which shall each of them separately be as Perfect and Compleat Matter, and continue to have all the very same Properties, as the whole Particle had before it was divided."), da impossibilidade de divisão da alma, ao menos pelo facto de nunca ser discerpível, ao contrário da discerpibilidade observável da matéria (ibidem, LD, 101). Inversamente, Deus não poderia ter adicionado pensamento a um sistema de matéria por a sua divisibilidade ser contraditória com esse pensamento e atribuir isso ao Poder de Deus é destruir a própria noção de Deus, concebendo-o capaz de absurdos (Clarke, LD, "A Third Defence of an Argument...", 282: "the Argument drawn from the Divisibility of Matter, proves that Matter is not a Subject capable of such a Superaddition: And if it be not; then recurring to the Divine Omnipotence for the making out an Impossibility, is not magnifying but destroying the Power of God; as indeed all contradictory Apprehensions concerning any of his Perfections, are really and in event destructive of our whole Notion of God"). De facto, a questão parece estar em que, embora Deus pudesse dividir a alma, ao contrário de um átomo que daria lugar a partículas iguais, embora menores, isso seria idêntico à sua aniquilação: Clarke, LD, "A Second Defence of an Argument...", 176: "be a Substance perfectly and essentially One, so that to suppose any Division of it, shall necessarily infer a Destruction of the Essence of that Substance." Daí que Clarke conclua que a alma seja indiscerpível, até pelo poder de Deus: ibidem, LD, 174: "For though I believe it is not discerpible, even by the Power of God; yet he is undoubtedly able to destroy it, either by annihilating it, or perhaps by otherwise depriving it of all its Faculties". 35 Clarke, LD, "A Third Defence of an Argument...", 277-8. 36 Locke, EU, Book IV, Chap. X, § 17, 378. 37 Collins, LD, "An answer to mr. Clarke's third Defence...", 350-1. A argumentação de Collins incide sobre a possibilidade dos pensamentos humanos poderem ser acidentais e limitados como os de Deus não podem ser, mas a verdade é que não é só isso que é atribuído a tal possibilidade: Locke considera que fazer do pensamento um modo do movimento seria privá-lo de toda a liberdade, todo o poder de escolha e de toda a sensatez. 38 Clarke, LD, "A Second Defence of an Argument...", 174-6.

167

irresolúvel, insolúvel (e, apesar disso, afirmada), e outra absurda, não deixará, como é óbvio, de ser explorada por Collins.39 No que se refere à segunda réplica, para a nossa questão, Clarke apenas acrescenta que uma alma é parte de um composto de que o corpo é a outra parte, e que eles se afetam mutuamente como partes do mesmo todo, fazendo esta afirmação para limitar a comparação com Deus, visto Deus não poder ser afetado pelo criado.40 Ora, o que seria necessário era explicar como ocorre esta comunicação, sem ceder às objeções materialistas de Collins. Na sua terceira intervenção, relativamente a este assunto, para lá da diatribe em torno do significado do termo sensorium, Leibniz começa por afirmar uma tese bem conhecida da sua filosofia, a de que toda a substância criada está acompanhada de matéria.41 Porém, continua a mostrar-se muito reservado na expressão das suas ideias sobre este assunto. Apenas objeta a Clarke que a simples presença de uma substância, mesmo que animada, não chega para a perceção. De facto, um cego ou mesmo um distraído não vê nada. Volta a exigir que Clarke explique como a alma se apercebe do que está fora dela. 42 Distingue, por fim, a presença da alma da presença de Deus, presente por essência e não por situação, através da sua operação imediata. Ao fazê-lo, procura reduzir ao absurdo qualquer conceção extensa da alma: “Dizer que está difusa pelo corpo, é fazê-la extensa e divisível; dizer que está toda inteira em cada parte de algum corpo, é fazê-la divisível por si. Ligá-la a um ponto, espalhá-la por vários pontos, tudo isto são expressões abusivas.”43 Considera estas conceções como ídolos, segundo a terminologia de Bacon, já antes utilizada, a propósito da conceção do espaço real absoluto.44 Já em IV. 5 se viu que os ídolos aqui referidos a propósito da conceção da alma, idola tribus, são relativos a antecipações da natureza comuns a todos os homens.45 Também aí se salientou como era curioso avançar com uma acusação destas que muito mais facilmente (e com base na obra de Bacon) poderia ser lançada à sua teoria da harmonia pré-estabelecida, verdadeira antecipação sobre a natureza, baseada numa crença generalizada, 46 mas que atinge exageros desmesurados em Leibniz e no seu otimismo. Relativamente à diatribe em torno do termo sensorium, para lá do referido em IV. 1, Clarke utiliza, de forma muito pouco fiel, uma referência bibliográfica, afirmando a este propósito o sensório como domicílio, o lugar onde a mente reside.47 Mais adiante, rejeita as objeções de Leibniz porque a alma de um cego não vê, visto nenhumas imagens serem levadas ao sensório onde a alma está presente (por causa de alguma obstrução). Porém, acaba por reconhecer que “Não sabemos como a alma de um homem que vê, vê as imagens às quais está presente, mas temos a certeza que não pode conscientemente perceber aquilo perante o qual não está presente, visto nada poder agir 39

Collins, LD, "An answer to mr. Clarke's third Defence...", 317-8. Clarke, Streitschriften..., 2ª réplica, § 12, G, VII, 362. 41 Leibniz, op. cit., 3º escrito, § 9, G, VII, 365: "toute substance creée est accompagnée de Matiere." Cf., e. g., Leibniz, Nouveaux essais..., Livre II, Chap. XXIII, § 19, G, V, 205; Livre III, Chap. XI, § 23, G, V, 334. 42 Leibniz, Streitschriften..., 3º escrito, § 11, G, VII, 365. 43 Leibniz, op. cit., § 12, G, VII, 365-6. Segmento anterior em IV. 1, nota 37. "La presence de l'ame est tout d'une autre nature. Dire qu'elle est diffuse par le corps, c'est la rendre etendue et divisible ; dire qu'elle est toute entiere en chaque partie de quelque corps, c'est la rendre divisible d'elle même. L'attacher à un point, la repandre par plusieurs points, tout cela ne sont qu'expressions abusives, Idola Tribus." 44 Leibniz, op. cit., § 2, p.742, G, VII, 363. Ver IV. 5, nota 154. 45 Bacon, NO, L. I, Aph. XLI, pp. 52-53. Ver IV. 5, nota 155. 46 Bacon, NO, Aph. XLV, 54. Ver IV. 5, nota 159. 47 Clarke, op. cit, 3ª réplica, § 10, G, VII, 369-70. 40

168

ou sofrer ação onde não estiver.” 48 Tendo em conta o estilo newtoniano, não é naturalmente possível saber se se trata de uma verdadeira suspensão de juízo ou de reserva pública ou circunscrita à polémica, por não estar seguro de a poder defender perante o seu opositor. Finalmente, acaba por fornecer um panorama mais completo da ligação da alma ao corpo: “A alma não está omnipresente em cada parte do corpo e, por isso, não pode operar em cada parte do corpo, mas apenas no cérebro ou em certos nervos ou espíritos que, pelas leis e comunicações estabelecidas por Deus, influenciam todo o corpo.” 49 Assim, a alma apenas está presente naquilo a que hoje se chama sistema nervoso, que surge como intermediário entre a alma e o resto do corpo. Leibniz reinicia a abordagem desta questão, na sua quarta carta, com a diatribe sobre o termo sensorium, tentando reduzir o sentido utilizado por Clarke ao órgão da sensação interna, correspondente à glândula pineal de Descartes.50 Ainda a propósito da conceção de Clarke, Leibniz reitera as suas objeções à pouco explícita conceção espacial da alma de Newton e Clarke (eventualmente tributária de More). “É tão inexplicável que a alma esteja difusa pelo cérebro, como fazer com que ela o esteja por todo o corpo. A única diferença é entre o mais e o menos.”51 Porém, esta parte final da polémica acerca deste assunto será dominada não tanto pelas conceções de Clarke, mas mais pelas de Leibniz, o que será tratado na secção seguinte. É verdade que Clarke, em resposta, parece, ainda dizer, que a mente do homem pode ser chamada alma das imagens das coisas que percebe,52 o que corresponderia a um empirismo radical como viria a ser o de Hume, mas, na quinta réplica, Clarke esclarece que estava simplesmente a reduzir ao ridículo as suspeitas leibnizianas de a conceção newtoniana de Deus o reduzir a uma alma do mundo. Apesar disso, parece haver bastante empirismo em Clarke, como se pode constatar na forma como rejeita que o espaço seja uma ideia, visto a ideia não poder ser infinita, presumivelmente por não podermos ter experiência do infinito, sendo a sua infinitude encontrada por demonstração. 53 Isto parece ser uma variação da forma como Locke descreve a formação da ideia de espaço infinito,54 assim como o seu caráter negativo, imperfeito e incompleto, correspondente a uma confusão indeterminada, 55 mas apesar de tudo 48

Clarke, op. cit, § 11, G, VII, 370: "The Soul of a Blind man does for This reason not see, because no Images are conveyed (there being some Obstruction in the way) to the Sensorium where the Soul is present. How the Soul of a Seeing man sees the Images to which it is present, we know not. But we are sure it cannot perceive what it is not present to; because nothing can act, or be acted upon, where it is not." 49 Clarke, op. cit, § 12, G, VII, 370: "The Soul is not Omnipresent to every part of the Body, and therefore does not and cannot it self actually operate upon every part of the Body, but only upon the Brain, or certain Nerves and Spirits, which, by Laws and Communications of God's appointing, influence the whole Body." 50 Leibniz, op. cit., 4º escrito, § 26, G, VII, 375. 51 Leibniz, op. cit., § 37, G, VII, 376: "Il est aussi inexplicable de dire quo l'ame soit diffuse par le cerveau, que de faire qu'elle soit diffuse par le corps tout entier. La difference n'est que du plus au moins." 52 Clarke, op. cit, 4ª réplica, § 29, G, VII, 386. 53 Clarke, CP, 305, nota: "That it is not a mere Idea, is likewise most manifest. For no Idea of Space, can possibly be framed larger than Finite; and yet Reason demonstrates that 'tis a Contradiction for Space itself not to be actually Infinite." De qualquer forma, se se pudesse duvidar da posição de Newton, face à sua tendência a não se pronunciar sobre estas questões nas obras publicadas, o texto da projetada quinta regra da filosofia afastaria qualquer dúvida: Koyré, EN, 324: "Sentio utique quod Ego cogitem, id quod fieri nequiret nisi simul sentirem quod ego sim. Sed non sentio quod Idea aliqua sit innata. Et pro Phænomenis habeo, non solum quæ per sensus quinque externos nobis innotescunt sed etiam quæ in mentibus nostris intuemur cogitando; ut quod, Ego sum, ego credo, Ego intelligo, ego recordor, Ego cogito, volo, nolo, sitio,esurio, gaudeo, doleo, etc." 54 Locke, EU, Book II, Chap. XVII, § 3, 108-9. 55 Locke, EU, §§ 13-15, 112-4.

169

continuando a ser uma ideia. Uma ideia completa e positiva não pode, segundo Locke, ser infinita, mas que o espaço infinito nem sequer seja uma ideia é, no mínimo, insólito. Como poderíamos conceber assim o espaço como infinito? Esta noção de ideia restringe-a às ideias positivas e completas? E por que razão provará isso que o espaço tenha que ser a propriedade de uma substância e não o resultado da demonstração da razão? É verdade que Locke pretendeu concluir que o espaço era realmente infinito, mas não por não ser uma mera ideia e, sim, antes pelas implicações da sua ideia. Sem pretender responder à última questão, mas apenas às anteriores, Clarke parece estar a pensar na distinção feita por Locke entre a infinitude do espaço e a ideia de um espaço infinito: enquanto a primeira é a ideia de uma progressão sempre incompleta, a segunda é a ideia de um todo que contém em si uma contradição manifesta.56 A única ideia que se pode verdadeiramente ter do espaço infinito é a ideia imperfeita da infinitude do espaço. Aliás, já foi visto que Leibniz concordaria não só com a rejeição da ideia de espaço infinito como um todo, mas também com a mesma ideia relativa ao universo. Porém, rejeitaria também que só se pudesse ter uma ideia do infinito por composição ou por modificação, considerando o verdadeiro infinito o absoluto divino. 57 A dupla abordagem lockiana referida parece estar presente, na polémica com Collins, na forma como trata as dificuldades que não podem ser perfeitamente esclarecidas, incluindo a extensão da alma e a infinitude do espaço, onde se refere às ideias, restringidas à imaginação, como, neste caso, ou não existindo, ou sendo muito imperfeitas.58 Parece mesmo equiparar a falta ou imperfeição das ideias na imaginação, visto de ambas não poder expressar a ideia a não ser através de descrições negativas. 59 Quanto muito, comparando com Locke, poderá haver aqui apenas alguma imprecisão. Por outro lado, Clarke rejeita a acusação leibniziana de que a alma esteja difusa pelo cérebro: “A alma não está difusa através do cérebro, mas está presente nesse particular lugar que é o sensório.” 60 Repare-se como novamente se distingue, implicitamente, o cérebro do sensório, entendendo esse sensório como um lugar. A alma não está difusa pelo cérebro, assim como o seu atributo, o sensório, não o está. Tal como o sensório de Deus, o espaço absoluto não está difuso pelas matérias; ao invés, são as matérias que estão no espaço. O espaço é prévio e independente, acolhe as matérias mas não está dentro delas. Parece que, da mesma forma, na conceção newtoniana, é o cérebro ou parte do cérebro que está no sensório, no local onde a alma está presente e percebe as imagens que os nervos e o cérebro lhe trazem. Esta 56

Locke, EU, § 7, 110: "it is not an insignificant subtilty, if I say, that we are carefully to distinguish between the Idea of the Infinity of Space, and the Idea of a Space infinite: The first is nothing but a supposed endless Progression of the Mind, over what repeated Ideas of Space it pleases; but to have actually in the Mind the Idea of a Space infinite, is to suppose the Mind already passed over, and actually to have a view of all those repeated Ideas of Space, which an endless repetition can never totally represent to it, which carries in it a plain contradiction." 57 Leibniz, Nouveaux essais..., Livre II, Chap. XVII, §§ 1-3, G, V, 144-5. Já transcritos em IV. 3, nota 111, e IV. 10, nota 394. 58 Clarke, LD, "A Fourth Defence of an Argument...", 400: "the Difficulties I meant, did not arise from the Perception of any Disagreement of Ideas at all, but merely from our having in our Imagination either no Ideas, or such very imperfect ones as cannot well be compared together, of Things whose Existence or Certainty we can nevertheless demonstrably prove by Reason, and apprehend many of their Properties by the Understanding". 59 Clarke, LD, 401: "the Want or Defectiveness of Ideas in the Imagination"; e, mais adiante: "you desire me to give a Definition, that is, to express the Idea, of things whereof I contend we have no Ideas or very imperfect ones, (seeing we can only give Negative Descriptions of them ;) though we have certain Demonstrations of their Existence." 60 Clarke, Streitschriften..., 4ª réplica, § 37, G, VII, 387: "The Soul is not diffused through the Brain; but is present to That particular Place, which is the Sensorium."

170

interpretação está ancorada na analogia sempre feita por Newton entre o sensório divino e o animal. Após a passagem alterada da Ótica, já considerada em IV. 1, Newton distingue apenas o sensório divino do humano por aquele perceber as coisas, ao passo que este apenas percebe as suas imagens.61 Da mesma forma, o próprio Clarke, na sua polémica com Collins, não só, como já foi visto, parte da impossibilidade de indivisibilidade da imensidade divina e da impossibilidade de Deus ser material ou o seu pensamento consequência do movimento, para as mesmas conclusões em relação à alma, mas pretende explicar a própria comunicação, neste caso motora, entre a alma e o corpo pelo facto de Deus ter podido imprimir movimento à matéria sem ser por contacto. 62 Aliás, esse será o argumento utilizado contra a alegada, por Leibniz, impossibilidade de a alma agir sobre o corpo, impossibilidade que será examinada na secção seguinte.63 Na derradeira missiva, Leibniz, a propósito deste tema, começa por explorar as contradições da noção de espaço como propriedade ou atributo de uma substância imaterial. Clarke dirá, na sua quinta réplica, que estes parágrafos não parecem conter argumentos sérios, limitando-se a deformar as noções de imensidade e omnipresença,64 mas parte da argumentação leibniziana incide sobre a contradição que existe em Clarke entre a semelhança suposta entre todas substâncias imateriais e a sua noção de espaço indivisível, apenas sustentável se se tratar do mesmo único espaço vazio infinito. Quem admitiu a possibilidade de uma extensão finita imaterial análoga ao espaço infinito foi o próprio Clarke na sua conceção de alma, nunca a tendo abandonado, presumivelmente por ser a da autoridade newtoniana, apesar de ter reconhecido, na polémica com Collins, as dificuldades que trazia. Nesse sentido, a aparente ridicularização de Leibniz, que se pergunta se o espaço limitado de um recipiente esvaziado de ar será a propriedade de alguma substância imaterial,65 faz mais sentido do que parece, não só por causa da alma, mas também porque Clarke já havia admitido a possibilidade de o espaço vazio de matéria estar cheio de substâncias imateriais, desligadas de qualquer corpo. 66 Como Leibniz nem admite a possibilidade de um “espaço” finito móvel que, de facto, se movesse sobre o espaço infinito, apenas ridiculariza, consequentemente, a possibilidade de um espaço finito se ir tornando propriedade de corpos e espíritos diferentes, conforme estes se moviam. 67 De qualquer forma, Leibniz anda próximo da ridicularização da possibilidade de o “espaço” de cada espírito (no sentido de uma extensão indivisível) se mover com esse espírito, quando estabelece a comparação com as “divertidas imaginações” de Henry More relativas a “espíritos extensos ou substâncias imateriais, capazes de se estender e comprimir, que por aí se passeiam e que se penetram sem se incomodar, como as sombras de dois corpos se penetram na superfície de uma muralha”.68 Porém, concentrado como estava na questão do espaço 61

Newton, Optics, Qu. 28, OO, IV, 238: [Vide IV. 1, nota 25, para passagem anterior] "of which things the images only, carried through the organs of sense into our little sensoriums, are there seen and beheld by that which in us perceives and thinks." 62 Clarke, LD, "A Third Defence of an Argument...", 300-1: "I presume you will hardly deny, but God himself is an Immaterial Being; and that He can move Matter, though he does not impel it by Contact. Other Immaterial Beings therefore, though they do not impel Matter by Contact, yet it does not from thence follow that they cannot move it at all; Because from God's moving it, it is manifest that there are other ways of moving it, besides that of impelling by Contact." 63 Clarke, Streitschriften..., 5ª réplica, §§ 110 a 116, G, VII, 438. 64 Clarke, op. cit, §§ 36-48, G, VII, 426. 65 Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 38, G, VII, 398. 66 Clarke, op. cit, 4ª réplica, § 9, G, VII, 383. 67 Leibniz, op. cit, § 39, G, VII, 398. 68 Leibniz, op. cit, § 48, G, VII, 402: "Y a-til peutetre des esprits étendus, ou des substances immaterielles capables de s'etendre et de se resserrer, qui s'y promenent, et qui se penetrent sans s'incommoder, comme

171

absoluto, pode-se dizer que Leibniz até não levou muito longe a sua crítica à noção dos espíritos extensos e de uma extensão finita indivisível. Neste último escrito, ainda existe uma última referência à diatribe do sensorium: “Diz-se que a alma não está no cérebro, mas no sensorium, sem dizer o que é o sensorium. Supondo que o sensorium seja extenso, cai-se na mesma dificuldade e a questão volta a ser se a alma está difusa por toda essa extensão, por muito grande ou pequena que seja.”69 Tem toda a razão Leibniz ao acusar Clarke de não dizer claramente o que é esse sensorium na alma. Tal reserva percebe-se no contexto da polémica, tal como várias reservas do próprio Leibniz, porque cada qual vê o interlocutor não como um mero correspondente filosófico, mas como um adversário pouco recetivo, senão mesmo com má-fé. Porém, Clarke ou Newton não parecem ter esclarecido melhor esta conceção num outro contexto. Na interpretação aqui apresentada, de facto, o sensorium é extenso, ou melhor, é uma determinada extensão, no sentido de uma extensão finita que é atributo da alma, assim como o espaço infinito é atributo de Deus (ou um modo seu). A derradeira resposta de Clarke a esta questão não parece desmentir esta interpretação. “Se a alma é uma substância que preenche o sensorium ou lugar no qual percebe as imagens das coisas transportadas a ele, não se segue disto que deva consistir de parte corporais, pois as partes do corpo são substâncias distintas independentes umas das outras, mas toda a alma vê e toda a alma ouve e toda a alma pensa como sendo essencialmente um indivíduo.”70 Esta passagem permite, aliás, perceber melhor outras passagens da Ótica, onde poderia parecer que existiriam diversos lugares de sensação e outros meios para o exercício do poder da vontade.71 Por lugares de sensação não se deve entender qualquer órgão, mas a simples sensível e volitiva alma, visto toda ela sentir e toda ela querer. A única maneira de esta alma não ser divisível, visto ser extensa, é não estar simplesmente colocada no espaço infinito e imaterial como as matérias estão, mas ter um espaço finito próprio vazio que partilha as características de indivisibilidade do espaço divino. À imagem e semelhança de Deus, a alma terá uma extensão imaterial les ombres de deux corps se penetrent sur la surface d'une muraille ? Je voy revenir les plaisantes imaginations de feu M. Henry Horus (homme savant et bien intentionné d'ailleurs) et de quelques autres, qui ont crû que ces esprits se peuvent rendre impenetrables quand bon leur semble." A última conceção referida nesta passagem não será, pelo menos, a central de Henry More, visto que, mesmo quando More se refere à possibilidade de existirem substâncias intermédias (More, CS, The Immortality of Soul, Livro I, cap. III, § 3, 22), fá-lo para rejeitar essa possibilidade, considerando essencial aos espíritos a penetrabilidade e a indivisibilidade, exatamente ao contrário do corpo. 69 Leibniz, op. cit, § 98, G, VII, 413: "On me dit que l'Ame n'est pas dans le Cerveau, mais dans le Sensorium, sans dire ce que c'est que ce Sensorium. Mais supposé que ce Sensorium soit étendu, comme je crois qu'on l'entend, c'est tousjours la même difficulté, et la question revient, si l'Ame est diffuse par tout cet Etendu, quelque grand ou quelque petit qu'il soit. Car le plus ou moins de grandeur n'y fait rien." 70 Clarke, op. cit, 5ª réplica, § 98, G, VII, 433: "If the Soul be a Substance which fills the Sensorium, or Place wherein it perceives the Images of Things conveyed to it; yet is does not thence follow, that it must consist of corporeal Parts (for the Parts of Body are distinct Substances independent on each other) the Whole Soul sees, and the Whole hears, and the Whole thinks, as being essentially one Individual." 71 Newton, Optics, Qu. 23-24, OO, IV, 226: "Is not Vision performed chiefly by the vibrations of this medium, excited in the bottom of the eye by the the rays of light, and propagated through the solid, pellucid and uniform Capillamenta of the Optick nerves into the place of sensation? And is not Hearing performed by the vibrations either of this or some other medium, excited in the Auditory nerves by the tremors of the air, and propagated through the solid, pellucid and uniform Capillamenta of those nerves into the place of sensation? And so of the others nerves. Is not Animal motion performed by the vibrations of this medium, excited in the brain by the power of the will, and propagated from thence through the solid, pellucid and uniform Capillamenta of the nerves into the muscles, for contracting and dilating them?" Talvez seja um pouco mais complicada a interpretação do sensório na questão 15, onde, para lá de surgir como termo da confluência dos nervos, tem lados correspondentes aos lados materiais: Newton, op. cit., Qu. 15, OO, IV, 221.

172

própria, só que finita, partilhando ainda com Deus as capacidades sensórias e motoras que lhe permitem comunicar com o corpo quer pelas imagens, quer pelas decisões. Percebe-se que Clarke não queira desenvolver muito esta questão, porque perceber a indivisibilidade real e a imaterialidade de um espaço tridimensional vazio e infinito, ainda se percebe, mas como perceber a imaterialidade e indivisibilidade de um espaço finito, ou seja, já separado desse vazio tridimensional infinito? Ou será que a alma é apenas um modo da mesma substância infinita divina? Para lá dos seus ataques a Spinoza, toda a sua conceção de substância imaterial e de agente livre parece totalmente incompatível com tal hipótese. É verdade que Clarke rejeita que o espaço finito possa ser propriedade das substâncias finitas: “Os espaços finitos de modo algum são afeções das substâncias finitas, mas são apenas aquelas partes do espaço infinito nas quais as substâncias finitas existem.”72 Aliás, considera mesmo que o espaço finito é uma noção estritamente imaginária, a nada correspondendo na realidade. 73 Mas isto apenas acontece por ele reservar a palavra “espaço” para a propriedade divina, utilizando a palavra “extensão” para a propriedade da alma, mas mantendo o atributo da indivisibilidade (assim como da comunicabilidade com o corpo pela simples presença), que só pode ser defendido por uma analogia com o espaço divino, em detrimento da comparação com a extensão material. Clarke, na polémica com Collins, ainda procura dissociar a inseparabilidade das partes do espaço da sua infinidade, de forma a poder sustentar a possibilidade de uma extensão finita indivisível, ao contrário da extensão material, 74 mas é óbvio que as partes do espaço (e do tempo) não se podem separar porque no meio ficaria esse mesmo espaço (ou tempo), ao passo que, se a alma fosse dividida, no meio estaria, pelo menos, o espaço divino. Daí que admita sempre dificuldades na conceção, muito embora também saliente que serão porventura menores que a hipótese de ser inextensa. 75 Porquê? Porque esta é a forma newtoniana de resolver o problema cartesiano da dualidade entre a coisa extensa e a coisa pensante, permitindo a comunicação entre ambas através de um modo da substância imaterial que a põe em direta ligação, ponto por ponto, com a matéria. A imensidade de Deus e a extensão da alma não são meros vazios, mas têm propriedades sensoriomotoras que as tornam capazes de recetividade e espontaneidade em relação aos corpos, permitindo, aliás, a sustentação da liberdade como eficácia física determinada pela escolha eficientemente autodeterminada da alma. Daí que, desde o início, Clarke insista na mera presença porque não se trata de uma presença no vazio, mas nesse sensório espacial constantemente sensível e motor, pelo qual Deus age nos corpos e a alma interage com os nervos. 72

Clarke, op. cit, § 40, G, VII, 426-7: "Finite Spaces are not at all the Affections of Finite Substances; but they are only those Parts of Infinite Space, in which Finite Substances exist." 73 Clarke, op. cit, § 38, G, VII, 426: "There is no such Thing in reality, as bounded Space; but only we in our Imagination fix our Attention upon what Part or Quantity we please, of that which it self is always and necessarily unbounded." 74 Clarke, LD, "A Fourth Defence of an Argument...", 399: "God's having by his own Will and good Pleasure created it such a Substance [Matter], all whose solid Parts we find by Experience to be so many distinct Beings, loose, independent one from another, and unconnected; that is, having no essential Connexion one with another, nor any Dependence one upon another for their Existence; as the Parts of Space evidently have, even separate from the Consideration of its being absolutely Infinite; and as the Parts of Time have, (forasmuch as every Moment, co-existing with all the Parts of Space, is yet both indivisible in it self, and inseparable from the other Parts of Duration;) and as the Parts, improperly so called, of Immaterial Substances may have, for any thing that can ever be proved to the contrary, on Supposition of their being Extended." 75 Clarke, LD, "A Fourth Defence of an Argument...", 398: "the Difficulties arising from the Supposition of Immaterial Substance being Extended, were not greater, but rather less, than those which arise from the Supposition of its being Unextended."

173

2. Da mónada à harmonia pré-estabelecida Dificilmente se poderia evitar interpretar a reserva leibniziana no âmbito da comunicação entre a alma e o corpo como um resultado do tratamento recebido dos newtonianos no âmbito da polémica do cálculo diferencial. Essas reservas são um sinal que reforça o ambiente de querela judicial sublinhado por Fernando Gil, 76 tentando Leibniz restringir-se às acusações à conceção de Clarke/Newton de forma a estes ficarem com as despesas da defesa. Seria difícil manter tal posição confortável, mas a própria extensão do ataque newtoniano às questões metafísicas poderá ter pressionado a resposta. 77 Só na sua quarta carta, Leibniz expressa, finalmente, a propósito deste assunto, de forma breve, um conjunto de teses típicas do seu pensamento. Em primeiro lugar, afirma que “As almas conhecem as coisas porque Deus pôs nelas um princípio representativo daquilo que está fora delas.”78 Ou seja, as almas representam as coisas exteriores por causa de um dom divino. Literalmente, não comunicam com as coisas, muito embora as expressem representativamente. E como podem, então, as almas agir sobre as coisas? A representação cria um substituto do que está lá fora na mente, mas o mesmo princípio parece não se aplicar à ação da alma sobre as coisas. “As almas só operam sobre as coisas porque os corpos se acomodam aos seus desejos em virtude da harmonia que Deus pré-estabeleceu.” 79 Ou seja, as almas também não intervêm nas coisas exteriores. Estas apenas correspondem, por si mesmas, ao que a alma quer fazer, segundo a harmonia estabelecida por Deus. De forma muito breve ainda, Leibniz já está a expressar a sua noção de substância simples ou mónada, como é sabido, sem portas nem janelas. Rejeitando a conceção a que chama opinião vulgar, da influência da alma sobre o corpo, Leibniz parte do problema idealista: “As imagens pelas quais a alma é afetada imediatamente estão nela própria”; mas “ultrapassa-o” pela sua teoria da harmonia pré-estabelecida: “mas elas respondem às do corpo. A presença da alma é imperfeita e não pode ser explicada senão por esta correspondência.”80 Repare-se que, porém, tal como Newton, admite a existência de imagens físicas, pelo que, de certa forma, as representações da alma são já representações de representações. Leibniz, aliás, tenta aproximar esta correspondência o mais possível quer entre corpos e imagens físicas, quer entre estas últimas e as perceções das mónadas, sendo o mais realista que é possível a alguém que parece idealista e até menos crítico, aliás, no seu realismo, do que o próprio Clarke.81 76

Fernando Gil, "A suposição de Samuel Clarke" in Revista da Faculdade de Letras, Série de Filosofia, Porto, 1985, 2ª série, nº 2, pp. 88-91. Esta dissertação está, porém, longe de seguir o artigo noutros aspetos. 77 Antecipando a própria viragem ocorrida nesta polémica e que será adiante analisada, Newton, Carta de 26 de Fevereiro de 1715/16 para Conti, OO, IV, 598: "His Harmonia Præstabilita is miraculous, and contradicts the daily experience of all mankind; every man finding in himself a power of seeing with his eyes, and moving his body by his will." 78 Leibniz, op. cit., 4º escrito, § 30, G, VII, 375: "Les ames connoissent les choses, parce que Dieu a mis en elles un principe representatif de ce qui est hors d'elles." 79 Leibniz, op. cit., § 31, G, VII, 375: "Les ames n'operent sur les choses selon moy, que par ce que des corps s'accommodent à leur desirs en vertu de l'harmonie que Dieu y a preétablie." 80 Leibniz, op. cit, 4ª escrito, § 35, G, VII, 376: "Les images dont l'ame est affectée immediatement, sont en elle même ; mais elles repondent à celles du corps. La presence de l'ame est imparfaite, et ne peut etre expliquée que par cette correspondance." 81 Clarke, DA, X, 68: "The object, by communicating a pressure through the organ to the sensory, does indeed raise a phantasm or image, that is, make a certain impression on the brain. But wherein consists the power of perceiving this impression and of being sensible of it? Or what similitude has this impression to the sense itself, that is, to the thought excited in the mind? Why, exactly the very same that a square has to blueness, or a triangle to sound, or a needle to the sense of pain, or the reflecting of a tennis ball to the reason and understanding of a man."

174

Rejeita, aliás, a arbitrariedade ou caráter ilusório das qualidades segundas, afirmando “uma certa relação exata e natural”, “uma semelhança não completa”, idêntica à das qualidades primárias e análoga, pelo menos, às relações geométricas “entre o que é projetado e a projeção”.82 Tais teses, apesar de a extensão leibniziana ser fenoménica, acabam por estabelecer uma correspondência entre as representações e os corpos menos crítica que a de Clarke, ao menos no que se refere às qualidades secundárias. 83 Naturalmente, a confusão das pequenas ações e das pequenas perceções permite a Leibniz superar uma correspondência demasiado ingénua. 84 Além disso, na imagem 82

Leibniz, Nouveaux essais..., Livre II, Chap. VIII, § 13, G, V, 118: "Je dirois plustost qu'il y a une maniere de ressemblance, non pas entiere et pour ainsi dire in terminis, mais expressive, ou de rapport d'ordre, comme une Ellipse et même une Parabole ou Hyperbole ressemblent en quelque façon au cercle dont elles sont la projection sur le plan, puisqu'il y a un certain rapport exact et naturel entre ce qui est projetté et la projection, qui s'en fait, chaque point de l'un repondant suivant une certaine relation à chaque point de l'autre." Faz questão, aliás, de deixar claro que esta relação geométrica não se cinge às qualidades primárias, ibidem, § 15, G, V, 119: "il y a de la ressemblance ou du rapport exact à l'egard des secondes aussi bien qu'à l'egard des premieres qualités. Il est bien raisonnable que l'effect réponde à sa cause ; et comment asseurer le contraire ? puisqu'on connoist point distinctement ny la sensation du bleu (par exemple) ny les mouvemens qui la produisent. Il est vray que la douleur ne ressemble pas au mouvement d'une épingle, mais elle peut ressembler fort bien à des mouvemens que cette épingle cause dans nostre corps, et representer ces mouvemens dans l'ame, comme je ne doute nullement qu'elle ne fasse. C'est aussi pour cela que nous disons que la douleur est dans nostre corps et non pas qu'elle est dans l'épingle, mais nous disons que la lumiere est dans le feu, parce qu'il y a dans le feu des mouvemens qui ne sont point distinctement sensibles à part, mais dont la confusion ou conjonction devient sensible, et nous est representée par l'idée de la lumière." As mesmas ideias são expressas na Teodiceia, sendo a correspondência ponto por ponto posta em correlação com a Harmonia, Leibniz, Essais de Théodicée, 3ª parte, § 357, G, VI, 327: "Il est vray que la même chose peut être representée differemment ; Mais il doit tousjours y avoir un rapport exact entre la representation et la chose, et par consequent entre les differentes representations d'une même chose. Les projections de perspective, qui reviennent dans le cercle aux sections coniques, font voir qu'un même cercle peut être representé par une ellipse, par une parabole, et par une hyperbole, et même par une autre cercle et par une ligne droite, et par un point. Rien ne paroit si different, ny dissemblable, que ces figures ; et cependant il y a un rapport exact de chaque point à chaque point. Aussi faut il avouer que chaque ame se represente l'univers suivant son point de vue, et par un rapport que luy est propre ; mais une parfaite harmonie y subsiste tousjours." E, para aplicar a correlação às qualidades secundárias, ibidem, § 356, G, VI, 326-7: "La representation a un rapport naturel à ce qui doir être representé. Si Dieu faisoit representer la figure ronde d'un corps par l'idée d'un quarré, ce seroit une representation peu convenable ; car il y auroit des angles ou eminences dans la representation, pendant que tout seroit egal et uni dans l'original. La representation supprime souvent quelque chose dans les objets, quand elle est imparfaite ; mais elle ne sauroit rien adjouter : cela la rendroit, non pas plus que parfaite, mais fausse. Outre que la suppression n'est jamais entiere dans nos perceptions, et qu'il y a dans la representation, entant que confuse, plus que nous n'y voyons. Ainsi il y a lieu de juger que les idées de la chaleur, du froid, des couleurs etc. ne font aussi que representer les petits mouvements exercés dans les organes, lors qu'on sent ces qualités, quoyque la multitude et la petitesse de ces mouvements en empêche la representation distincte. A peu pres comme il arrive que nous ne discernons pas le bleu et le jaune qui entrent dans la representation, aussi bien que dans la composition du verd, lorsque le microscope fait voir que ce qui paroit verd est composé de parties jaunes et bleues." 83 Clarke, DA, VIII, 41: "that colors, tastes, and the like, are by no means effects arising from mere figure and motion (there being nothing in the bodies themselves, the objects of the senses, that has any manner of similitude to any of the qualities), but they are plainly thoughts or modifications of the mind itself, which is an intelligent being, and are not properly caused but only occasioned by the impressions of figure and motion. [...] And [...] it still come to the same thing, that colors, sounds, and the like, which are not qualities of unintelligent bodies but perceptions of mind, can no more be caused by or arise from mere unintelligent figure and motion, than color can be a triangle, or sound a square, or something be caused by nothing." 84 Leibniz, Nouveaux essais..., Livre IV, Chap. VI, § 7, G, V, 383-4: "ces idées sensitives dependent du detail des figures et mouvemens et les expriment exactement, quoyque nous ne puissions pas y demeler ce detail dans la confusion d'une trop grande multitude et petitesse des actions mecaniques, qui frappent nos sens. Cependant si nous estions parvenus à la constitution interne de quelques corps, nous verrions aussi quand ils devroient avoir ces qualités, qui seroient reduites elles mêmes à leur raisons intelligibles ; quand

175

lockiana do quarto escuro,85 a que acrescenta a tela dos conhecimentos inatos, contrapõe o que se passa no cérebro, e a forma ativa e elástica como se recebe e se formam as imagens, com o que se passa na alma, onde se representam essas mesmas imagens, com a diferença de não terem extensão.86 Aliás, é útil tentar perceber como se articulam o inato e o empírico em Leibniz. É bem famoso o texto em que Leibniz afirma que nada está no entendimento que não tenha estado nos sentidos, exceto o próprio entendimento, chamando a atenção para o facto de isso implicar uma série de noções genéricas primitivas que não poderiam ser dadas pelos sentidos.87 Mas mais, Leibniz distingue entre as ideias e os pensamentos, sendo as primeiras os objetos dos segundos 88 e considerando que as ideias distintas (as intelectuais) não têm origem nos sentidos,89 muito embora os pensamentos sejam sempre solicitados pelo sensível.90 A ligação ao même il ne seroit jamais dans nostre pouvoir de les reconnoistre sensiblement dans ces idées sensitives, qui sont un resultat confus des actions des corps sur nous, comme maintenant que nous avons la parfaite analyse du verd en bleu et jaune, et n'avons presque plus rien à demander à son egard que par rapport à ces ingrediens, nous ne sommes pourtant point capables de demeler les idées du bleu et du jaune dans nostre idée sensitive du verd, pour cela même, que c'est une idée confuse." Usa em seguida o exemplo da rotação rápida de uma roda dentada para dar origem a uma aparência de transparência contínua, para sustentar que, pelo menos, algumas qualidades secundárias possam ser meros fantasmas sensitivos do mesmo género. 85 Em Locke, a imagem não está no capítulo referido por Leibniz: Locke, EU, Bk. II, Ch. XI, § 17, 78. 86 Leibniz, op. cit, Livre II, Chap. XII, G, V, 131-2: "Pour rendre la ressemblance plus grande, il faudroit supposer que dans la chambre obscure il y eut une toile pour recevoir les especes, qui ne fut pas unie, mais diversifiée par des plis, représentant les connoissances innées ; que de plus cette toile ou membrane estant tendue, eût une manière de ressort ou force d'agir, et même une action ou réaction accommodée tant aux plis passés qu'aux nouveaux venus des impressions des especes. Et cette action consisteroit en certaines vibrations ou oscillations, telles qu'on voit dans une corde tendue quand on la touche, de sorte qu'elle rendroit une manière de son musical. Car non seulement nous recevons des images ou traces dans le cerveau, mais nous en formons encor des nouvelles, quand nous envisageons des idées complexes. Ainsi il faut que la toile qui represente nostre cerveau soit active et elastique. Cette comparaison expliqueroit tolerablement ce qui se passe dans le cerveau ; mais quant à l'ame, qui est une substance simple ou Monade, elle represente sans étendue ces mêmes varietés des masses étendues et en a la perception." 87 Leibniz, op. cit, Chap. I, § 2, G, V, 100-1: "On m'opposera cet axiome receu parmy les Philosophes ; que rien n'est dans l'ame qui ne vienne des sens. Mais il faut excepter l'ame même et ses affections. Nihil est in intellectu, quod non fuerit in sensu, excipe : nisi ipse intellectus. Or l'ame renferme l'estre, la substance, l'un, le même, la cause, la perception, la raisonnement, et quantité d'autres notions, que les sens ne sauroient donner." O mesmo havia dito no prefácio, Leibniz, op. cit, Préface, G, V, 45. 88 Leibniz, op. cit, § 1, G, V, 99: A ideia "c'est un objet immediat interne, et que cet objet est une expression de la nature ou des qualités des choses. Si l'idée estoit la forme de la pensée, elle naistroit et cesseroit avec les pensées actuelles qui y repondent ; mais en estant l'objet, elle pourra estre anterieure et posterieure aux pensées. Les objets externes sensibles ne sont que mediats parcequ'ils ne sauroient agir immediatement sur l'ame. Dieu seul est l'objet externe immediat. On pourroit dire, que l'ame même est son objet immediat interne ; mais c'est en tant qu'elle contient les idées, ou ce qui repond aux choses." 89 Leibniz, op. cit, Livre I, Chap. I, § 11, G, V, 77: "Les idées intellectuelles qui sont la source des verités necessaires, ne viennent point des sens : et vous reconnoissez qu'il y a des idées qui sont dues à la reflexion de l'esprit lorsqu'il réflechit sur soy même. Au reste il est vray que la connoissance expresse des verités est posterieure (tempore vel natura) à la connoissance expresse des idées ; comme la nature des verités depend de la nature des idées, avant qu'on forme expressement les unes et les autres, et les verités où entrent les idées, qui viennent des sens, dependent des sens, au moins en partie. Mais les idées qui viennent des sens sont confuses, et les verités qui en dependent, le sont aussi, au moins en partie ; au lieu que les idées intellectuelles et les verités qui en dependent, sont distinctes, et ny les unes ny les autres n'ont point leur origine des sens, quoyqu'il soit vray que nous n'y penserions jamais sans les sens." 90 Leibniz, op. cit, § 5, G, V, 74: "c'est par une admirable Oeconomie de la nature, que nous ne saurions avoir des pensées abstraites, qui n'ayent point besoin de quelque chose de sensible, quand ce ne seroit que des caracteres tels que sont les figures des lettres et les sons ; quoyqu'il n'y ait aucune connexion necessaire entre tels caracteres arbitraires et telles pensées. Et si les traces sensibles n'estoient point requises, l'harmonie preétablie entre l'ame et le corps, dont j'aurai occasion de vous entretenir plus

176

sensível permite, aliás, a expressão que torna possível a harmonia pré-estabelecida, muito embora, no que se refere às verdades inatas, o sensível sirva apenas de ocasião para a sua descoberta na própria razão.91 "Apenas" talvez tenha um sentido demasiado diminuidor do papel do sensível, visto as ideias inatas não serem mais que disposições que nunca se poderiam tornar conscientes sem tais ocasiões. 92 Aliás, a natureza das almas é, em parte, representar os corpos, até porque estes parecem essenciais às ligações do sistema. 93 De qualquer forma, ambas as ideias, as sensíveis e as intelectuais, são representações provenientes da alma, expressando ou, confusamente, o universo, ou, distintamente, Deus.94 Do ponto de vista motor, Leibniz rejeita a possibilidade de dar força nova aos corpos, seja por Deus, seja pelas almas, por duas ordens de razões: em primeiro lugar, porque não há influência direta da alma sobre o corpo – naturalmente, Deus poderia ter harmonizado o corpo de forma a receber uma nova força quando a alma o desejasse; mas, em segundo lugar, seria inferiorizador da perfeição de Deus a necessidade de dar novas forças, ao longo do tempo, à sua criação95 – a sua criação nasceu logo tão perfeita quanto possível, com toda a força que necessitar e, feita de tal forma, que é insuscetível de perder ou mesmo diminuir essa força. Naturalmente, a conceção vulgar da eficácia física da alma, que Leibniz critica ainda mais para Deus, é exatamente aquela que Clarke requer para poder sustentar a sua conceção de liberdade. A espontaneidade, que é a condição de possibilidade da liberdade em Leibniz, não se expressa, como em Clarke, numa eficácia física, mas na sucessão dos estados sensórios e motores, as ações e as paixões,96 inteiramente provenientes da própria alma,97 muito embora num sentido amplement, n'auroit point de lieu."; Leibniz, op. cit, Livre II, Chap. I, § 23, G, V, 108: "nous ne sommes jamais sans pensées, et aussi jamais sans sensation. Je distingue seulement entre les idées et les pensées ; car nous avons tousjours toutes les idées pures ou distinctes indépendemment des sens ; mais les pensées repondent tousjours à quelque sensation." 91 Leibniz, op. cit, Préface, G, V, 43: "Il est vray qu'il ne faut point s'imaginer qu'on peut lire dans l'ame ces eternelles loix de la raison à livre ouvert, comme l'edit du preteur se lit sur son album sans peine et sans recherche ; mais c'est assez qu'on les peut decouvrir en nous à force d'attention, à quoy les occasions sont fournies par les sens, et le succes des experiences sert encor de confirmation à la raison, à peu prés comme les epreuves servent dans l'arithmetique pour mieux eviter l'erreur du calcul quand le raisonnement est long." 92 Leibniz, op. cit, G, V, 45: "Je me suis servi aussi de la comparaison d'une pierre de marbre qui a des veines, plustost que d'une pierre de marbre toute unie, ou des Tablettes vuides, c'est à dire de ce qui s'appelle Tabula rasa chez les Philosophes. Car si l'ame ressembloit à ces Tablettes vuides, les verités seroient en nous comme la figure d'Hercule est dans un marbre, quand ce marbre est tout a fait indifferent à recevoir ou cette figure ou quelque autre. Mais s'il y avoit des veines dans la pierre qui marquassent la figure d'Hercule preferablement à d'autres figures, cette pierre y seroit plus determinée, et Hercule y seroit comme inné en quelque facon, quoyqu'il faudroit du travail pour decouvrir ces veines, et pour les nettoyer par la politure, en retranchant ce qui les empeche de paroistre. Et c'est ainsi que les idées et les verités nous sont innées, comme des inclinations, des dispositions, des habitudes ou des virtualités naturelles, et non pas comme des actions, quoyque ces virtualités soyent tousjours accompagnées de quelques actions souvent insensibles qui y repondent." 93 Leibniz, Essais de Théodicée, 2ª parte, § 130, G, VI, 183: "Dieu ne sauroit etablir un systeme mal lié et plein de dissonances. La nature des ames est en partie de representer les corps." 94 Leibniz, Nouveaux essais..., Livre II, Chap. I, § 1, G, V, 99: "l'ame est un petit monde, où les idées distinctes sont une representation de Dieu et où les confuses sont une representation de l'univers." 95 Leibniz, Streitschriften..., 4ª escrito, §§ 32-33, G, VII, 375-6: "Mais ceux qui s'imaginent que les ames peuvent donner une force nouvelle au corps et que Dieu en fait autant dans le monde pour redresser les defauts de sa machine, approchent trop Dieu de l'Ame, en donnant trop à l'ame et trop peu à Dieu. Car il n'y a que Dieu qui puisse donner à la nature des nouvelles forces, mais il ne le fait que surnaturellement. S'il avoit besoin de le faire dans le cours naturel, il auroit fait un ouvrage tres imparfait. Il ressembleroit dans le monde à ce que le vulgaire attribue a l'ame dans le Corps." 96 Leibniz, Essais de Théodicée, 1ª parte, § 65, G, VI, 138: "pour conclure ce point de la spontaneité, il faut dire que prenant les choses à la riguer, l'ame a en elle le principe de toutes ses actions, et même de

177

metafísico,98 dependente do decreto divino original, se possa dizer que a alma age sobre o corpo e o corpo sobre a alma.99 Agora que Leibniz expôs, se bem que brevemente, as suas conceções, é a vez de Clarke, na quarta réplica, passar ao ataque neste assunto. Em primeiro lugar, contrapõe ao estranho “realismo” leibniziano do princípio representativo, que diz não entender, a sua conceção aparentemente mais ingénua: “A alma discerne as coisas por ter as imagens das coisas, transportadas a ela pelos órgãos dos sentidos.” 100 Em segundo lugar, Clarke tem a oportunidade de devolver com juros a acusação que, desde o início da polémica, Leibniz dirigia a Newton: a de recorrer a milagres para explicar a ordem natural. “Se a alma não opera sobre o corpo e, no entanto, o corpo, por mero impulso mecânico da matéria, se conforma, por si próprio, à vontade da alma, em toda a variedade infinita de movimentos animais espontâneos, trata-se de um milagre perpétuo.”101 Que cada movimento do corpo animal, com toda a sua intencionalidade, se explique por mera determinação mecânica, ou seja, pelas meras leis mecânicas da Natureza, ainda por cima se conformando perfeitamente às causas finais de um agente livre, por muito que fosse estabelecido por Deus, surge, indubitavelmente, como uma harmonia milagrosa. Que leis exatamente poderia ter a Natureza para que mecanicamente os corpos se correspondessem a cada capricho de um agente livre? Daí que se perceba que Clarke, de forma pouco polida, afirme que a harmonia pré-estabelecida não passa de uma expressão que não explica nada e muito menos a causa de tão miraculoso efeito. Por fim, o facto de o movimento espontâneo do corpo ser explicado como estritamente produzido pela impulsão mecânica da matéria permite a Clarke mais uma acusação a Leibniz de tudo reduzir à fatalidade e à necessidade. Reunindo os dois ataques, conclui que, se dar uma nova força é sobrenatural, então “cada ação do homem ou é sobrenatural, ou (...) o homem é uma mera máquina como toutes ses passions ; et que le même est vray dans toutes les substances simples, repandues par toute la nature, quoyqu'il n'y ait de liberté que dans celles qui sont intelligentes." 97 Leibniz, op. cit, § 64, G, VI, 137: "D'ailleurs tout ce qui se passe dans l'ame ne dependant que d'elle, selon ce systeme, et son état suivant ne venant que d'elle et de son état present, comment luy peut on donner une plus grande independance ?" 98 Leibniz, op. cit, § 59, G, VI, 135: Há "dans le fond des choses une spontaneité merveilleuse en nous, laquelle dans un certain sens rend l'ame dans ses resolutions independante de l'influence physique de toutes autres creatures. Cette spontaneité peu connue jusqu'icy, qui eleve nostre empire sur nos actions autant qu'il est possible, est une suite du Systeme de l'Harmonie preétablie, dont il est necessaire de donner quelque explication icy. Les Philosophes de l'Ecole croyoient qu'il y avoit une influence physique reciproque entre les corps et l'ame : mais depuis qu'on a bien consideré que la pensée et la masse étendue n'ont aucune liaison ensemble, et que ce sont des creatures qui différent toto genere, plusieurs modernes ont reconnu qu'il n'y a aucune communication physique entre l'ame et le corps, quoyque la communication metaphysique subsiste tousjours, qui fait, que l'ame et le corps composent un même suppôt, ou ce qu'on appelle une personne."; Leibniz, op. cit, Discours..., § 55, G, VI, 81: "quoyque je ne tienne point, que l'ame change les loix du corps, ny que le corps change les loix de l'ame, et que j'aye introduit l'Harmonie préetablie pour eviter ce derangement, je ne laisse pas d'admettre une vraye union entre l'ame et le corps, qui en fait un suppôt. Cette union va au metaphysique, au lieu qu'une union d'influence iroit au physique." 99 Leibniz, op. cit, Préface, G, VI, 45: "en niant l'influence physique de l'ame sur le corps ou du corps sur l'ame, c'est à dire une influence qui fasse que l'un trouble les loix de l'autre, je ne nie point l'union de l'un avec l'autre qui en fait un suppôt : mais cette union est quelque chose de metaphysique, qui ne change rien dans les phenomenes. [...] Et par cette raison on peut dire aussi dans un sens metaphysique, que l'ame agit sur le corps, et le corps sur l'ame." 100 Clarke, Streitschriften..., 4ª réplica, § 30, G, VII, 386: "The Soul discerns things, by having the Images of things conveyed to it through the Organs of Sense". 101 Clarke, op. cit, § 31, G, VII, 386: "That the Soul should not operate upon the Body; and yet the Body, by mere mechanical impulse of Matter, conform itself to the Will of the Soul in all the infinite variety of spontaneous animal-motion; is a perpetual Miracle."

178

um relógio”.102 Ainda antes de abordar estas objeções, Leibniz regressa à questão da indissociabilidade do espírito e da matéria, para defender que os próprios anjos terão de possuir corpos subtis, provavelmente, para negar a possibilidade avançada por Clarke de Deus ter criado seres antes de este mundo ter sido criado, entendendo, porventura, este mundo como o mundo material. Por que razão considera que admitir a possibilidade de espíritos “desencarnados” seja uma ficção sinal de uma filosofia vulgar, contrariamente à sua filosofia mais severa, 103 é algo que Leibniz em toda esta correspondência não esclarece, muito embora já algo tenha sido aqui dito a esse propósito. Sabe-se que Leibniz considera, como primeira correspondência da harmonia pré-estabelecida, muito embora a mónada já expresse todo o universo indistintamente, o corpo como um intermediário necessário à alma para representar de forma mais distinta o universo, através de uma representação mais distinta do próprio corpo, visto esse corpo, enquanto orgânico, também espelhar o universo inteiro.104 Da mesma forma, também é referida antes, sem qualquer explicação, a metempsicose como uma ficção,105 exatamente como parte da mesma tese, ou seja, da alma não poder deixar de ter um corpo e, portanto, não poder deixar um e passar para outro. O corpo organizado da alma, embora esteja num constante fluxo, e se transforme, se desenvolva e se restrinja, embora nunca seja o mesmo e possa ser sujeito a grandes mudanças, nunca pode ser completamente aniquilado.106 Trata-se do modelo infinitesimal, infinitamente gradativo, cambiante, que Leibniz aplica a toda a realidade criada, incluindo as sequências monádicas percetivas: “a natureza nunca dá saltos”.107 Claro que isto deixa em aberto se a alma não poderá assumir vários corpos grosseiros, intercalados por corpos subtis, ao longo da sua existência e, como tal, passar por uma aparente transmigração. Quanto às críticas relativas ao princípio representativo e à harmonia pré-estabelecida, e à contraposição realista de Clarke, Leibniz decidiu-se, finalmente, a ser totalmente claro: “Não concordo com as noções vulgares, como se as imagens das coisas fossem transportadas pelos órgãos até a alma. Não é de todo concebível por qual abertura ou por qual viatura esse transporte de imagens desde o órgão até a alma se pode 102

Clarke, op. cit, § 33, G, VII, 387: "If therefore the Giving a new Force be supernatural; then [...] every action of Man, is either supernatural, or else Man is as mere Machine as a Clock." 103 Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 61, G, VII, 406: "il n'y a point de substances creées entierement destituées de matiere. Car je tiens avec les Anciens et avec la raison, que les Anges ou les Intelligences, et les Ames separées du corps grossier, ont tousjours des corps Subtils, quoyqu'elles mêmes soyent incorporelles. La philosophie vulgaire admet aisement toute sorte de fictions ; la mienne est plus severe." 104 E. g., Leibniz, La Monadologie, §§ 61-63, pp. 716-717, G, VI, 617-8. As almas exprimem originariamente os corpos a que estão sequencialmente unidas: Leibniz, Nouveaux essais..., Livre II, Chap. XXVII, § 14, G, V, 223: "Les ames selon mes hypotheses ne sont point indifferentes à l'egard de quelque portion de matiere que ce soit, comme il Vous semble ; au contraire elles expriment originairement celles à qui elles sont et doivent estre unies par ordre. Ainsi si elles passoient dans un nouveau corps grossier ou sensible, elles garderoient tousjours l'expression de tout ce dont elles ont eu perception dans les vieux, et même il faudroit que le nouveau corps s'en ressentit, de sorte que la continuation individuelle aura tousjours ses marques reelles. Mais quelqu'ait esté notre estat passé, l'effect qu'il laisse ne sauroit nous estre tousjours appercevable." 105 Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 47, G, VII, 401. 106 Leibniz, Nouveaux essais..., Livre II, Chap. XXVII, § 6, G, V, 216: "Elle garde tousjours, même dans la mort, un corps organisé, partie du precedent, quoyque ce qu'elle garde soit tousjours sujet à se dissiper insensiblement et à se reparer et même à souffrir en certain temps un grand changement. Ainsi au lieu d'une transmigration de l'ame il y a transformation, enveloppement ou developpement, et enfin fluxion du corps de cette ame." 107 Leibniz, op. cit., Préface, G, V, 49: "Rien ne se fait tout d'un coup, et c'est une de mes grandes maximes et des plus verifiées que la nature ne fait jamais des sauts : ce que j'appellois la Loy de la Continuité, lorsque j'en parlois dans les premières Nouvelles de la Republique des lettres".

179

fazer.”108 Trata-se de um ataque direto ao realismo ingénuo, independentemente de essa ser ou não a posição de Clarke, a que chama filosofia vulgar, com uma formulação do problema idealista que ele começa por radicar nos novos cartesianos. Adivinha-se a referência às mónadas. Na mesma sequência, Leibniz afirma ainda: “Não saberiam explicar como a substância imaterial é afetada pela material, e sustentar uma coisa ininteligível neste assunto é recorrer à noção escolástica quimérica de não sei que espécies intencionais inexplicáveis que passam dos órgãos para dentro da alma.” Este ataque continua através da crítica à ideia de que a alma sente o que se passa no corpo, especialmente porque aplicada analogicamente a Deus, para explicar a relação com as coisas, em vez de se defender essa relação através da dependência e da produção contínua. Qualifica, aliás, de quimérica esta conceção da sensação, afirmando que não tem lugar nas almas, 109 porventura por uma ausência ou deficiência na aplicação do princípio da razão suficiente, causa, segundo Leibniz, da conceção, entre muitas outras, da influência física entre a alma e o corpo. 110 Leibniz não concebe que uma mera máquina possa sequer fazer nascer a sensação ou a perceção, não concebe que a matéria possa produzir prazer ou dor.111 Finalmente, volta a atacar a ideia de que “a simples presença ou a proximidade da coexistência” chegue “para entender como o que se passa num ser deve responder ao que se passa num outro ser”.112 Como já foi referido, é o próprio Leibniz que coloca aquilo que aqui se chamou o problema idealista, no âmbito do cartesianismo. A recuperação do isolamento do cogito em Descartes através das garantias divinas, ao reduzir o mundo físico às suas propriedades geométricas, as únicas concebíveis clara e distintamente, deixava por esclarecer a forma como a alma se ligava ao corpo. A mera referência a uma glândula, aqui já referida, estava longe de ser convincente. Os novos cartesianos a que Leibniz se refere são, provavelmente, os ocasionalistas, muito embora outros cartesianos, nomeadamente o próprio Spinoza, não deixassem de colocar o problema. É mesmo possível que esteja a pensar especialmente em Malebranche, já antes referido, logo na segunda carta, apesar de outros, como Clauberg, La Forge, Cordemoy e Geulincx,113 terem defendido, antes de Malebranche, o ocasionalismo. Presume-se, aqui, aliás, que o adjetivo “novos” se aplica por relação ao próprio Descartes e não se refira aos cartesianos da época (apesar de Malebranche ter morrido apenas um mês antes do desencadear desta polémica), muito embora o cartesianismo continuasse florescente em 108

Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 84, G, VII, 410: "Je ne demeure point d'accord des notions vulgaires, comme si les images des choses étoient transportées (conveyed) par les organes jusqu'à I'ame. Car il n'est point concevable, par quelle ouverture, ou par quelle voiture, ce transport des images depuis l'organe jusques dans l'ame se peut faire. Cette notion de la philosophie vulgaire n'est point intelligible, comme les nouveaux Cartesiens l'ont assés montré. L'on ne sauroit expliquer comment la substance immaterielle est affectée par la matiere : et soutenir une chose non intelligible là dessus, c'est recourir à la notion Scholastique chimerique de je ne say quelles especes intentionelles inexplicables, qui passent des organes dans l'ame." 109 Leibniz, op. cit, §§ 86-87, G, VII, 410-1. 110 Leibniz, op. cit, § 127, G, VII, 420. 111 Leibniz, Nouveaux essais..., Livre IV, Chap. III, §§ 1-6, G, V, 362: "il n'est pas dans le pouvoir d'une Machine toute nue de faire naistre la perception, sensation, raison. Il faut donc qu'elles naissent de quelque autre chose substantielle." ibidem, G, V, 362: "la matiere ne sauroit produire du plaisir, de la douleur, ou du sentiment en nous. C'est l'ame qui se les produit elle même conformement à ce qui se passe dans la matiere." 112 Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 85, G, VII, 410: "La simple presence, ou la proximité de coexistence ne suffit point pour entendre comment ce qui se passe dans un étre, doit répondre à ce qui se passe dans un autre étre." 113 Clauberg merece, aliás, o elogio de Leibniz, por comparação com Descartes: cf. Belaval, EL, 19. La Forge e Cordemoy são referidos, juntamente com Malebranche, exatamente a este propósito em Leibniz, De ipsa natura..., § 10, G, IV, 509. Mesmo aí, é evidente o destaque dado a Malebranche.

180

França, mesmo em termos científicos. O reinado de Newton já se havia iniciado mas, fundamentalmente, do lado de lá do canal. O que leva a julgar que Leibniz deverá estar a pensar nos ocasionalistas é a crítica contida na passagem referida: “eles recorreram a um concurso de Deus muito particular que seria, de facto, miraculoso.”114 A questão do que é milagre é um dos tópicos mais importantes desta correspondência e uma das primitivas acusações de Leibniz a Newton. Desta vez, porém, Leibniz desvia a acusação para outro alvo. Porquê? Como forma de preparar a defesa para a acusação, que Clarke lhe havia dirigido, de recorrer a um milagre perpétuo para explicar a ligação entre a alma e o corpo. Visivelmente, Leibniz acusou o toque e tentará mostrar que a sua teoria não recorre a milagres ocasionais, como a de Newton, distinguindo a sua teoria da de Malebranche (e outros ocasionalistas), que poderia ser alvo da acusação. Claro que a questão é se, neste aspeto, a teoria de Leibniz é assim tão diferente da de Malebranche. De facto, a ordem das causas ocasionais, em Malebranche, que tem em Deus a sua origem, não é arbitrária, seguindo leis gerais, após terem sido, igualmente, criadas. Por outro lado, também em Leibniz, as criaturas estão numa constante dependência do criador. A própria razão dada por Malebranche para a criação do mundo não é muito diferente do melhor dos mundos possíveis de Leibniz. A diferença residiria, sobretudo, numa diversa ênfase dada à origem e às ocorrências atuais. Para Malebranche, as ocorrências são ocasiões para Deus executar os seus decretos (razão da acusação leibniziana do recurso a milagres já referida e criticada no artigo de Bayle115), ao passo que, em Leibniz, todas as ocorrências estão predeterminadas, desde a criação, por Deus, fazendo parte da série que se sucederá temporalmente para cada mónada. Porém, os decretos divinos de Malebranche também não são arbitrários, mas seguem a ordem fixada na criação; por outro lado, até nestas passagens, é Leibniz que fala em dependência e produção contínua das criaturas. A título de exemplo, bastaria referir algumas, entre tantas, passagens de Malebranche em que se subordina a ação divina à Ordem, sem milagres e sempre segundo as suas próprias leis,116 ou em que os aparentes milagres provêm ou de leis desconhecidas ou de considerações de outra Ordem (por 114

Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 84, G, VII, 410: "Ces Cartesiens ont vû la difficulté, mais ils ne l'ont point resolue ; ils ont eu recours à un certain concours de Dieu tout particulier qui seroit miraculeux en effect." 115 Pierre Bayle, Dictionnaire historique et critique, Rotterdam, Reinier Leers, 1697, Tome second, Second Partie, artigo Rorarius, Nota H, pp. 966-967: "la raison pourquoi cet habile homme ne goûte point le systême Cartesien, me paroît être une fausse suposition ; car on ne peut pas dire que le systême des causes occasionelles, fasse intervenir l'action de Dieu par miracle, Deum ex machina, dans la dependance reciproque du corps & de l'ame ; car comme Dieu n'y intervient que suivant des loix generales, il n'agit point là extraordinairement." Aliás, a ser verdadeira a acusação, Bayle ainda veria maior razão para fazê-la à explicação leibniziana. Se se ler versões posteriores, e. g., Pierre Bayle, Dictionnaire historique et critique, 6ª ed., Basle, Jean Louis Brandmuller, 1741, Tome quatrieme, artigo Rorarius, Nota L, p. 85, apesar da consideração das respostas de Leibniz, incluindo uma admissão de que exclui de forma mais segura a intervenção por milagre, Bayle continua a afirmar que o sistema de causas ocasionais, ao contrário do afirmado por Leibniz, não faz intervir Deus por milagre: "Je souhaite qu'on prene garde qu'en avouant que cette voie éloigne toute notion de conduite miraculeuse, je ne me retracte point de ce que j'ai dit autrefois, que le Systême des causes occasionnelles ne fait point intervenir l'action de Dieu par miracle. Je suis persuadé autant que jamais, qu'afin qu'une action soit miraculeuse il faut que Dieu la produise comme une exception aux loix générales : & que toutes les choses, dont il est immédiatement l'auteur selon ces loix-là, sont distinctes d'un miracle proprement dit : mais comme je veux retrancher de cette dispute le plus de points que je pourrai, je consens qu'on dise que le moien le plus sûr d'écarter toutes les idées de miracle, est de suposer que les substances créées sont activement les causes immédiates des effets de la nature." A discussão com Clarke acerca dos milagres, como se verá, parece quase replicar esta. 116 Malebranche, op. cit., IV, p. 95 (128): "il suit constamment les loix qu'il a établies pour conserver dans sa conduite une parfaite uniformité. Dieu ne fait jamais de miracles, il n'agit jamais par des volontez particulieres contre ses propres loix, que l'Ordre ne le demande ou ne le permette."

181

exemplo, a Justiça em vez da Sabedoria), de qualquer forma previstas desde toda a eternidade.117 Não é de admirar que, em seguida, Leibniz faça uma exposição da sua teoria, para que se veja como ela se distingue da dos novos cartesianos, os ocasionalistas, e não possa ser alvo da acusação de recorrer a milagres para explicar a ordem natural: As almas “sentem o que se passa fora delas, por aquilo que se passa nelas e que responde às coisas de fora, em virtude da harmonia que Deus pré-estabeleceu pela mais bela e mais admirável de todas as suas produções que faz com que cada substância simples, em virtude da sua natureza, seja, por assim dizer, uma concentração e um espelho vivo de todo o universo segundo o seu ponto de vista. E esta é ainda uma das mais belas e incontestáveis provas da existência de Deus, visto não haver senão Deus, quer dizer, a causa comum, que possa fazer esta harmonia das coisas. [...] Ele fá-las sentirem-se umas às outras e fá-las sentirem mutuamente pela sequência das naturezas que ele lhes deu de uma vez por todas, nada fazendo senão conservar as leis de cada uma para o seu lado, as quais, se bem que diferentes, chegam a uma correspondência exata dos resultados.”118 Sem portas ou janelas, as almas, desde a criação, contêm, em si, tudo o que lhes irá acontecer, mas que apenas se desdobrará no tempo, na sequência referida no texto e correspondente às suas naturezas que, numa harmonia estabelecida por Deus, espelham o universo inteiro e se correspondem perfeitamente a tudo o que ocorra nesse universo. É isso que Leibniz pretendia significar, antes, com a expressão “princípio representativo”: cada alma representa todo o universo, incluindo, mais distintamente, o seu próprio corpo, seguindo uma lei que lhe é própria e que Deus apenas conserva, sem necessidade de qualquer intervenção extraordinária desde a criação. A própria individualidade (e espontaneidade) é assegurada por essa sequência, diferenciada segundo o ponto de vista.119 A essa sequência anímica correspondem, perfeitamente, outras sequências, sobretudo, em primeiro lugar, as do seu próprio corpo, devendo haver, inclusive, sequências percetivas que se correspondam aos processos orgânicos, como a circulação sanguínea ou os processos digestivos. 120 As perceções ínfimas e 117

Malebranche, op. cit, VIII, pp. 177-178 (292-294): "lorsque Dieu fait un miracle, & qu'il n'agit point en consequence des loix générales qui nous sont connües, je pretens, ou que Dieu agit en consequence d'autres loix générales qui nous sont inconnües, ou que ce qu'il fait alors, il y est déterminé par de certaines circonstances qu'il a eu en vûë de toute éternité, en formant cet acte simple, éternel, invariable, qui renferme & les loix générales de sa providence ordinaire, & encore les exceptions de ces mêmes loix. [...] Je veux dire, que si ce qu'il doit alors à sa justice est de plus grande consideration que ce qu'il doit à sa sagesse, ou à tous ses autres attributs, il suivra dans cette exception le mouvement de sa justice." 118 Leibniz, op. cit., § 87, G, VII, 411: "Elles sentent ce qui se passe hors d'elles par ce qui passe en elles, repondant aux choses de dehors, en vertu de l'harmonie que Dieu a preétablie, par la plus belle et la plus admirable de toutes ses productions, qui fait que chaque substance simple en vertu de sa nature est, pour dire ainsi, une concentration et un miroir vivant de tout l'univers suivant son point de veue. Ce qui est encore une des plus belles et des plus incontestables preuves de l'existence de Dieu, puisqu'il n'y a que Dieu, c'est à dire la cause commune, qui puisse faire cette harmonie des choses. [...] Ce qui paroist d'autant plus, parce qu'il les fait sentir les unes aux autres ; et qu'il les fait se sentir mutuellement par la suite des natures, qu'il leur a données une fois pour toutes, et qu'il ne fait qu'entretenir suivant les loix de chacune à part, lesquelles, bien que differentes, aboutissent à une correspondance exacte des resultats." 119 Leibniz, Essais de Théodicée, 3ª parte, § 291, G, VI, 289-90: "naturellement chaque substance simple a de la perception, et [...] son individualité consiste dans la loy perpetuelle qui fait la suite des perceptions qui luy sont affectées, et qui naissent naturellement les unes des autres, pour representer le corps qui luy est assigné, et par son moyen l'univers entier, suivant le point de vue propre à cette substance simple, sans qu'elle ait besoin de recevoir aucune influence physique du corps : comme le corps aussi de son coté s'accomode aux volontés de l'ame par ses propres loix, et par consequent ne luy obeit, qu'autant que ces loix le portent. D'où il s'ensuit, que l'ame a donc en elle même une parfaite spontaneité, en sorte qu'elle ne depend que de Dieu et d'elle même dans ses actions." 120 Leibniz, Nouveaux essais..., Livre II, Chap. I, § 15, G, V, 106: "il y a tousjours une exacte correspondance entre le corps et l'ame, et [...] je me sers des impressions du corps dont on ne s'apperçoit

182

confusas refletem não só o universo mas os mais ínfimos processos do próprio corpo, não fazendo sentido julgar que algo teria de ser suficientemente notório no corpo para poder ser notado pela alma, como se a relação entre os dois pudesse ser uma relação proporcional como aconteceria com duas entidades do mesmo género. Além disso, o corpo é o intermediário necessário à alma para a perceção do próprio mundo, tendo, por isso, de haver uma correspondência total da alma à constituição do seu corpo.121 Mas toda esta estreita interdependência, volta-se a lembrar, é apenas metafísica, dependente das considerações de Deus no momento da criação.122 Os corpos, uma vez postos em movimento, continuam por si mesmos, exatamente como a sequência anímica o exige. 123 Apesar de não terem influência nenhuma um sobre o outro, exprimem-se mutuamente, perfeitamente ajustados, a alma numa unidade sequencial perfeita e o corpo numa dispersão na multidão das suas infinitas partes (sem contar com a infinitude do universo que também expressa).124 Porém, como pode o corpo orgânico expressar seja o que for se não possui qualquer unidade, para lá da unidade alegadamente metafísica concedida por Deus entre a alma e o corpo e que não permite qualquer comunicação entre ambos? Já desde, pelo menos, os anos 80, Leibniz falava de substâncias corporais, 125 tal como mais tarde pas soit en veillant ou en dormant, pour prouver que l'ame en a de semblables. Je tiens même qu'il se passe quelque chose dans l'ame qui repond à la circulation du sang et à tous les mouvemens internes des viscères, dont on ne s'apperçoit pourtant point, tout comme ceux qui habitent aupres d'un moulin à eau ne s'apperçoivent point du bruit qu'il fait. En effect, s'il y avoit des impressions dans le corps pendant le sommeil ou pendant qu'on veille dont l'ame ne fut point touchée ou affectée du tout, il faudroit donner les limites à l'union de l'ame et du corps, comme si les impressions corporelles avoient besoin d'une certaine figure et grandeur pour que l'ame s'en puisse ressentir ; ce qui n'est point soutenable si l'ame est incorporelle, car il n'y a point de proportion entre une substance incorporelle et une telle ou telle modification de la matiere. En un mot, c'est une grande source d'erreurs de croire qu'il n'y a aucune perception dans l'ame que celles dont elle s'apperçoit." 121 Leibniz, op. cit., § 17, G, V, 106-7: "Les perceptions de l'ame repondent tousjours naturellement à la constitution du corps, et lorsqu'il y a quantité des mouvemens confus et peu distingués dans le cerveau, comme il arrive à ceux qui ont peu d'expérience, les pensées de l'ame (suivant l'ordre des choses) ne sauroient estre non plus distinctes. Cependant l'ame n'est jamais privée du secours de la sensation, parce qu'elle exprime tousjours son corps, et ce corps est tousjours frappé par les ambians d'une infinité de manières, mais qui souvent ne donnent qu'une impression confuse." 122 Leibniz, op. cit., Chap. XXI, § 12, G, V, 162-3: "Il y a de l'ordre et de la liaison dans les pensées, comme il y en a dans les mouvemens, car l'un repond parfaitement à l'autre, quoyque la determination dans les mouvemens soit brute et libre ou avec choix dans l'estre qui pense, que les biens et maux ne font qu'incliner sans le forcer. Car l'ame en representant les corps garde ses perfections et quoyqu'elle depende du corps (a le bien prendre) dans les actions involontaires, elle est independante et fait dependre le corps d'elle dans les autres. Mais cette dependance n'est que metaphysique et consiste dans les egards que Dieu a pour l'un en reglant l'autre, ou plus pour l'un que pour l'autre à mesure des perfections originales d'un chacun, au lieu que la dependance physique consisteroit dans une influence immediate que l'un recevroit de l'autre dont il dépend." 123 Leibniz, op. cit., Chap. XXIII, § 15, G, V, 204-5: "suivant mon Systeme de l'Harmonie préétablie, les corps sont faits en sorte, qu'estant une fois mis en mouvement, ils continuent d'eux mêmes, selon que l'exigent les actions de l'esprit." 124 Leibniz, op. cit., Livre III, Chap. VI, § 24, G, V, 297: "les corps animés aussi bien que les contextures sans vie, seront specifiés par la structure interieure, puisque dans ceux-lá même qui sont animés, l'ame et la machine, chacune à part, suffisent à la determination ; car elles s'accordent parfaitement, et quoyqu'elles n'ayent point d'influence immediate l'une sur l'autre, elles s'expriment mutuellement, l'une ayant concentré dans une parfaite unité tout ce que l'autre a dispersé dans la multitude." 125 Assim o faz na correspondência com Arnauld, cf. Leibniz, G, II, 11-138. Da mesma forma, juntamente com a tese da imperecibilidade, em Leibniz, OF, 523: "Substantia corporea neque oriri neque interire potest nisi per creationem aut annihilationem. cum enim semel duret, semper durabit neque enim ulla ratio est differentiæ, neque dissolutiones partium corporis quicquam cum ipsius destructione commune habent. ideo Animata non oriuntur aut intereunt, tantum transformantur." Naturalmente, existem inúmeras referências ao longo dos anos posteriores.

183

falava de substâncias organizadas, 126 completas, 127 vivas 128 ou compostas, 129 mas, exatamente, a unidade era dada ao corpo pela alma ou pela forma substancial ou, ainda, a partir do final dos anos 90, pelo termo mais abrangente de mónada e, mais precisamente, de mónada dominante. Em todos estes casos, está-se a falar de entidades sem portas ou janelas. Que a mónada possa expressar os fenómenos que, afinal, são as suas perceções, não causa grande perplexidade. Mas a única forma de o corpo se corresponder perfeitamente a essa expressão seria não ser mais do que essa expressão subjetiva, hipótese subjetivamente fenoménica que Leibniz diversas vezes coloca. 130 Porém, como poderia ser assim o intermediário requerido para a expressão do universo? Como poderia ser o meio pela qual se estabelece a ordem do universo? Não é ainda altura de aprofundar a temática do vínculo substancial, mas, independentemente da consistência da noção, nessa noção, Leibniz intenta encontrar uma solução menos solipsista para a unidade do corpo orgânico capaz de explicar a correspondência eterna, após a criação, entre a alma e o corpo, um corpo tão imperecível como a alma, mantendo uma unidade apesar do fluxo e dispersão das suas infinitas partes. Sendo verdade que Leibniz utiliza o termo eco para expressar a ligação entre o vínculo e as 126

Leibniz, Système..., § 6, G, IV, 480: "l'animal et toute autre substance organisée ne commence point, lorsque nous le croyons, et [...] sa generation apparente n'est qu'un developpement, et une espece d'augmentation." 127 Por exemplo, já após ter usado a expressão "substância corporal", afirma que a matéria segunda é uma substância completa: Leibniz, De ipsa natura..., § 11, G, IV, 512: "materiam [...] secundam esse quidem substantiam completam, sed non mere passivam". Há que ter em atenção que, muitas vezes, a maioria aliás, o termo substância completa é aplicado à simples mónada, ao contrário do que acontece neste caso. 128 Leibniz, Principes..., § 4, G, VI, 599: "Chaque Monade, avec un corps particulier, fait une substance vivante." 129 Entre muitos exemplos, parece adequado este segmento mais didático, cuja integração no momento da correspondência em que foi integrado pela edição Gerhard é duvidosa: Leibniz, Anotação integrada na correspondência com Des Bosses, G, II, 439: "Substantiae compositae sunt quae unum per se constituunt ex anima et corpore organico, quod est Machina naturae ex Monadibus resultans." Neste mesmo estudo, Leibniz utiliza, ainda, especialmente referido ao vínculo metafísico entre corpo e alma, o termo de suppositum. Além disso, não parece admitir que o vínculo seja "unum per se substantiatum" (e. g., Leibniz, carta para Des Bosses de 20 de Setembro de 1712, G, II, 459), o que está especialmente ligado com a conceção do vínculo como transitório defendida entre Fevereiro de 12 e Julho de 13. Cf. G, II, 459, citado na nota 246 de VI. 7. Presumivelmente antes da referência anterior e certamente fora desta correspondência: Leibniz, Carta para Bierling de 12 de Agosto de 1711, G, VII, 501: "Substantiam corpoream voco, quae in substantia simplice seu monade (id est anima vel Animae analogo) et unito ei corpore organico consistit." 130 Num preâmbulo quase totalmente riscado do Discurso de Metafísica, Leibniz expressa a indecisão a este propósito que haveria de percorrer toda a sua vida, como o atesta a correspondência com Des Bosses, como se verá na última parte, onde, por diversas vezes, recoloca a hipótese fenoménica, apesar de parecer estar a defender uma tese realista. Cf. Leibniz, éd. Henri Lestienne, Discours de Métaphysique, Paris, Libr. Phil. J. Vrin, 1e. éd. 1907, 1929 [DM], XXXIV, p. 87, nota e: "C'est une chose que je n'entreprends pas encor de determiner si les corps sont des substances, à parler dans le rigueur metaphysique, ou si ce sont que des phenomenes veritables comme est l'arc en ciel, ny [...] par consequent s'il y a des substances, âmes ou formes substantielles qui ne soyent pas intelligentes." Posteriormente, tornar-se-ia claro para Leibniz tratar-se de dois problemas diversos e tornar-se-á uma afirmação categórica a tese das formas não inteligentes; mas a junção dos dois problemas manter-se-á parcialmente se se pensar que Leibniz procurará, no final da vida, encontrar uma forma substancial para o corpo orgânico. Da mesma forma, na posterior correspondência com Arnauld, a incerteza mantém-se: Leibniz, Projeto de carta para Arnauld de 1686, G, II, 71: "il faudroit estre asseuré que les corps sont des substances et non pas seulement des phenomenes veritables comme l'arc en ciel." Porém, posteriormente, a indecisão parecia já só se restringir aos corpos inanimados, sendo a forma substancial dada pela alma: Leibniz, Carta para Arnauld de 28/11-6/12/1686, G, II, 76-7: "Je ne sçaurois dire precisement s'il y a d'autres substances corporelles veritables que celles qui sont animées". Mas acaba por admitir a possibilidade idealista: Leibniz, ibidem, G, II, 77: "s'il n'y a aucunes substances corporelles, telles que je veux, il s'ensuit que les corps ne seront que des phenomenes veritables, comme l'arc em ciel".

184

mónadas "corporais" ou, eventualmente, sobrenaturalmente, o próprio Deus, 131 tal deve-se, em especial, à temática da transubstanciação e à própria explicação das mudanças naturais do corpo, porque o vínculo subordina-se à mónada dominante,132 o eco e o vínculo são princípio de ação da substância composta133 e o termo eco já havia antes sido utilizado para expressar a harmonia pré-estabelecida, 134 sendo, aliás, uma metáfora que substitui o termo expressão, como a dos dois coros simboliza a entreexpressão.135 O eco não se pode identificar completamente à expressão porque, no eco, Leibniz parece estar a pensar numa correspondência de um lado qualquer a outro, enquanto a expressão, apesar da sua definição, onde apenas se exige a correspondência ponto por ponto, como entre as imagens anímicas e as físicas, e entre estas e os corpos 136 , é restringida, de facto, em 87, aos atos anímicos ou análogos. 137 Essa restrição já não seria sentida mais tarde, no final da correspondência com Des Bosses, e o eco que é o vínculo substancial deve expressar, primariamente, o governo da mónada dominante, através da sua específica enteléquia, o princípio do impetus, que acompanha naturalmente essa mónada mas que com ela parece não se identificar,138 sendo a sua realização dos fenómenos como que o reflexo corporal (ou eco) da expressão da própria alma, permitindo a sua unidade imperecível apesar da dispersão e fluxo dos requisitos corporais. Apesar deste reforço possível da correspondência entre a alma e o corpo orgânico, a verdade é que continua a não existir qualquer comunicação ou influência 131

Leibniz, Carta para Des Bosses de 29 de Abril de 1715, G, II, 495: "Monades influent in hoc realisans, ipsum tamen in ipsarum Legibus nil mutabit, cum quicquid modificationum habet ab ipsis habeat quasi Echo, naturaliter scilicet, non tamen formaliter seu essentialiter, cum Deus ei tribuere possit quae Monades non dant, aut auferre quae dant. [...] Sane si quid in corpore est substantiale praeter Monades, suarum propriarum modificationum capax esse debet, easque habedit naturaliter pendentes a monadibus quas unit, supernaturaliter a Deo, qui ab ipsis disjungere potest." 132 Leibniz, Carta para Des Bosses de 23 de Agosto de 1713, G, II, 482: "Nec ulla Monas praeter dominatem etiam naturaliter vinculo substantiali affixa est, cum Monades caeterae sint in perpetuo fluxu." 133 Leibniz, Carta para Des Bosses de 19 de Agosto de 1715, G, II, 503: "corpus Echo reddens est principium actionis. Hoc vinculum erit principium actionum substantiae compositae". 134 Embora no contexto mais complicado da metáfora dos dois coros: Leibniz, Carta para Arnauld de 30/4/1687, G, II, 95: "ne prit le sien que pour un echo de l'autre [choeur] n'attribuant à celuy où il est que certains intermedes, dans lesquels quelque regle de symphonie, par les quelles il juge de l'autre, ne paroissent point". 135 Leibniz, ibidem, G, II, 95-6: "il y a une connexion reelle en vertu de cette notion generale des substances, qui porte qu'elles s'entrexpriment parfaitement toutes". Embora sustente a entre-expressão presumivelmente nas substâncias simples, pretende explicar, com esta referência à entre-expressão, a harmonia entre os espíritos e os corpos. 136 Leibniz, Streitschriften..., 4ª escrito, § 35, G, VII, 376. Para o caráter geométrico, análogo a uma projeção, desta correspondência, ver Leibniz, Nouveaux essais..., Livre II, Chap. VIII, § 13, G, V, 118; ibidem, § 15, G, V, 119; Leibniz, Essais de Théodicée, 3ª parte, § 357, G, VI, 327. 137 Leibniz, Carta para Arnauld de Setembro ou Outubro de 1687, G, II, 112: "Une chose exprime une autre (dans mon langage) lorsqu'il y a un rapport constant et reglé entre ce qui se peut dire de l'une et de l'autre. C'est ainsi qu'une projection de perspective exprime son geometral. L'expression est commune à toutes les formes, et c'est un genre dont la perception naturelle, le sentiment animal, et la connoissance intelectuelle sont des especes." 138 Leibniz, Carta para Des Bosses de 29 de Maio de 1716, G, II, 519: "Quaeris tandem, per quod mea substantia composita differat ab Entelechia. Dico ab ea non differre, nisi ut totum a parte, seu Entelechiam primam compositi esse partem constitutivam substantiae compositae, nempe vim activam primitivam. Sed differt a Monade, quia est realizans phaenomena; Monades vero existere possunt, etsi corpora non essent, nisi Phaenomena. Caeterum Entelechia compositae substantiae semper monadem suam dominatem naturaliter comitatur: et ita, si Monas sumatur cum Entelechia, continebit formam substantialem animalis." Parece, no entanto e no final do trecho, haver uma distinção adicional entre a Enteléquia da substância composta e a forma substancial do animal que ainda cria uma perplexidade adicional. Mas pode-se entender que esta enteléquia "física" exatamente por nada ser senão o reflexo da mónada dominante, só com esta constitui a forma substancial do animal.

185

direta, havendo apenas uma entre-expressão entre duas entidades aparentemente distintas e, em certos aspetos, até opostas. De certa forma, a hipótese fenoménica até diminuía a disparidade. Ora, regressando à polémica, não será isto também explicar as ocorrências naturais através de milagres, como ele acusou de fazer não só Newton, mas também os novos cartesianos? “A harmonia ou correspondência entre a alma e o corpo não é um milagre perpétuo, mas o efeito ou a sequência de um milagre primigénio, feito na criação das coisas, como o são todas as coisas naturais. É verdadeiro que é uma maravilha perpétua como o são muitas coisas naturais.” 139 Leibniz defende-se do remoque de Clarke, distinguindo a intervenção de Deus na origem das coisas, pela criação, da intervenção extraordinária que parece apenas admitir para a graça e não para explicar a ordem natural das coisas. Porém, existe aqui uma inversão curiosa da discussão acerca dos milagres: ao passo que inicialmente Leibniz chamava milagre a qualquer intervenção sobrenatural e Clarke apenas utilizava o termo para as ocorrências extraordinárias, admitindo que poderiam existir ocorrências naturais (e, como tal, não milagrosas) com causa sobrenatural (é o caso da conceção newtoniana de gravitação), agora Clarke admite milagres “regulares”, constantes e, como tal, naturais, aplicando a noção inicial de Leibniz à sua harmonia pré-estabelecida, para, no fundo, mostrar que se trata do mesmo de que Leibniz acusava Newton, e Leibniz tenta mostrar que não se trata de uma intervenção sobrenatural atual, fora da ordem natural estabelecida na criação. O facto é que se trata de uma ocorrência natural e constante que Leibniz explica com uma causa sobrenatural, por muito que a causa esteja no início dos tempos, tal como Newton explicava uma ocorrência natural e constante com uma causa sobrenatural. “Como a natureza de cada substância simples, alma ou verdadeira mónada, é tal que o seu estado seguinte é uma consequência do seu estado precedente; eis a causa da harmonia completamente encontrada. Pois Deus não tem senão que fazer que a substância simples seja, uma vez e de início, uma representação do universo segundo o seu ponto de vista: visto que só disso se segue que ela o será perpetuamente e que todas as substâncias simples terão para sempre uma harmonia entre elas, porque elas representam sempre o mesmo universo.”140 Visto esta ser a segunda e última menção às mónadas em toda a correspondência, 141 pode-se ver aqui o sinal de alguma reserva em expor completamente o seu pensamento perante interlocutores tão recalcitrantes e pouco recetivos. Porém, nessa determinação na origem da sequência monádica, em que cada estado é consequência do precedente numa sequência fixada no momento da criação, que lugar se reserva para a liberdade? Como se diz na bela expressão dos Novos Ensaios, “o presente está grávido do futuro e carregado do passado, (...) tudo é conspirante (...) e, na menor das substâncias, olhos tão penetrantes como os de Deus poderiam ler toda a sequência das coisas do universo.”142 No entanto, Leibniz insiste inúmeras vezes na sua oposição ao que se chama, hoje, determinismo, muito embora 139

Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 89, G, VII, 412: "L'harmonie ou correspondance entre l'Ame et le corps n'est pas un miracle perpetuel, mais l'effect ou suite d'un miracle primigene fait dans la creation des choses, comme sont toutes les choses naturelles. Il est vray que c'est une merveille perpetuelle, comme sont beaucoup de choses naturelles." 140 Leibniz, op. cit., § 91, G, VII, 412: "Comme la nature de chaque substance simple, Ame ou veritable Monade, est telle que son état suivant est une consequence de son état precedent, voilà la cause de l'Harmonie toute trouvée. Car Dieu n'a qu'à faire que la substance simple soit une fois et d'abord une representation de l'univers, selon son point de veue : puisque de cela seul il suit qu'elle le sera perpetuellement, et que toutes les substances simples auront tousjours une Harmonie entre elles, parce qu'elles representent tousjours le même univers." 141 Leibniz, op. cit., § 24, G. VII, 394, ver IV. 9, nota 348. 142 Leibniz, Nouveaux essais..., Préface, G, V, 48. Ver II. 6, nota 191.

186

defenda a determinação causal da ação, porque entende que o que se opõe à liberdade é a necessidade lógica e absoluta, e não a determinação ou a necessidade moral.143 Como já foi visto nesta dissertação, Leibniz considera, neste aspeto como Clarke, que o que impediria a liberdade seria uma determinação por causas eficientes, supondo que tudo quanto age segundo causas finais seria livre, tendo Deus, a partir da sua previsão do que as almas fariam, regulado toda a máquina natural para esta se harmonizar com aquelas. 144 Dir-se-ia que não se trata simplesmente de prever, visto que Deus deu origem a toda a sequência monádica. Percebe-se que Deus não estivesse absolutamente determinado, seguindo a distinção leibniziana entre necessidade absoluta e as necessidades hipotética e moral. De facto, Deus ao seguir a necessidade moral do melhor possível tinha alternativas piores (muito embora a sua natureza não permitisse a sua escolha). Por outro lado, ao impor a necessidade hipotética aos futuros contingentes, também Deus poderia ter feito outra coisa. Mas, do ponto de vista da criatura, esta só tem escolha do ponto de vista subjetivo problemático, nascido da ignorância que Deus não tem, escolhendo, segundo as causas finais, aquilo que, do ponto de vista divino, infalivelmente escolherá. Assim concilia Leibniz a predeterminação e presciência divina com o livre-arbítrio humano. A este propósito, o tema presente é relacionado, nesta derradeira carta, com outra das teses que foram alvo de discussão, a da conservação da força. Sem entrar em detalhes, visto se tratar o tema na próxima parte, a conceção da máquina natural, em Leibniz, depende muito da sua dinâmica e da sua tese da conservação das forças ativas 145 que permite sustentar que o universo funciona como um relógio sem necessidade de intervenções adicionais após a criação.146 Esta noção de uma máquina que se mantém a funcionar por si própria, sem alteração da força ativa total, entraria em contradição com a noção de uma comunicação de força da alma ao corpo, visto deste modo se somar força à soma total das forças no mundo físico. 147 A alegada insustentabilidade desta doação de força depende, totalmente, da sua conceção de mundo físico e da natureza divina, nomeadamente quanto à sua omnipotência e sabedoria, compatibilizando-se com a harmonia pré-estabelecida entre alma e corpo, assim como com a conceção monádica – a esta luz, qualquer adição de força perturbaria o equilíbrio concebido por Leibniz. Disto resulta uma conceção de alma totalmente impotente, por si própria, no mundo físico, a não ser pela ação de Deus originalmente determinada – razão pela qual já no escrito anterior Leibniz considerava que quem concebesse que a alma dava forças aos corpos estava a dar demasiado à alma (ao mesmo tempo que menorizava Deus). 148 Esta separação total no criado permite que Leibniz rejeite o dilema proposto por Clarke entre um homem sobrenatural e um homem maquinal, pois a alma não age sobre o corpo e só o corpo é maquinal, 149 143

Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, §§ 4-10, G, VII, 389-391. Leibniz abre e fecha esta passagem com a referência à Teodiceia e com toda a razão – as referências que aqui se poderiam fazer à Teodiceia são inúmeras, mas as distinções fundamentais são logo estabelecidas no primeiro ensaio: Leibniz, Essais de Théodicée, G, VI, 30-47. A este propósito, é muito esclarecedora a passagem bem mais breve de Leibniz, Nouveaux essais..., Livre II, Chap. XXI, G, V, 164. 144 Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 92, G, VII, 412. Vide ibidem, § 124, G, VII, 419. Já transcritas ambas as passagens em II. 4, notas 133 e 134. 145 Leibniz, op. cit, § 99, G, VII, 413-4. 146 Leibniz, op. cit, 3º escrito, § 13, G, VII, 366; 4º escrito, § 38, G, VII, 376. 147 Leibniz, op. cit, 5º escrito, § 94, G, VII, 413: "C'est pourquoy je dis aussi, qu'il est insoutenable que l'ame donne de la force au corps ; car alors tout l'univers des corps recevroit une nouvelle force." 148 Leibniz, op. cit, 4º escrito, § 32, G, VII, 375. Ver III. 2 e nesta secção. 149 Afirmado de forma ainda mais geral, para todo o corpo animal, em Leibniz, op. cit, 5º escrito, § 116, G, VII, 418: "Tout ce qui se fait dans le corps de l'homme, et de tout animal, est aussi mechanique que ce qui se fait dans une montre : la difference est seulement telle qu'elle doit étre entre une machine d'une

187

preservando assim a alma como causa livre, na sua estrita esfera monádica.150 Em resposta, Clarke começa por adotar uma atitude inamovível na sua incompreensão e rejeição destas teorias, assim como na afirmação das suas e na impossibilidade de conciliação entre ambas. Afirma que não compreende nada das teorias de Leibniz (princípio representativo, substância espelho do universo, ponto de vista do universo, harmonia entre as substâncias por representarem o mesmo universo) e acusa Leibniz de não ter provado que a sua conceção era ininteligível151 – muito embora tenha acabado de fazer o mesmo com a sua alegada incompreensão. Porém, apesar da alegada incompreensão, verdadeira, resultado de uma razão preguiçosa ou simulada, de forma a não dar crédito às teorias e dar a entender que seriam desvarios alucinados, não deixa de fixar o alvo na teoria da harmonia pré-estabelecida, com dois propósitos, pelo menos no que diz respeito a este tema: provar que a teoria leibniziana leva à necessidade e fatalidade (como o fez em tantos outros assuntos); e provar que a teoria leibniziana é mais miraculosa porque mais infundada que a teoria da gravitação universal, dessa forma atacada, desde o início, por Leibniz. Para provar a primeira tese, Clarke declara: “Supor que todos os movimentos dos nossos corpos são necessária e inteiramente causados por meros impulsos mecânicos da matéria, totalmente independentes da alma, é o que tende a introduzir a necessidade e a fatalidade. Tende a fazer dos homens meras máquinas, como Descartes imaginou que seriam as bestas, retirando todos os argumentos tirados dos fenómenos, para as ações dos homens, para provar que existe alguma alma ou, de todo, qualquer coisa mais que a mera matéria no homem.”152 Sem fundamento nos factos para deduzir a existência de seres livres e inteligentes, visto que tudo aquilo que é observável é explicado de forma estritamente mecânica, quanto muito estaríamos, de facto, reduzidos a afirmar a existência da nossa própria alma, numa espécie de cogito solipsista, pelo menos no que ao mundo das almas diz respeito. Isto do lado físico. Mas do lado da alma, o solipsismo pode ainda ser mais completo: “Se a harmonia pré-estabelecida é verdadeira, um homem, de facto, não vê, não ouve, não sente nada e não move o seu corpo, mas só sonha que vê e ouve e sente e move o seu corpo.”153 Naturalmente, o argumento pode ser invertido: se o homem só sonha com tudo isso, o que pode garantir que existe tudo isso com que, supostamente, está harmonizado e, em geral, toda a harmonia pré-estabelecida? Deus, claro, com o seu princípio da razão suficiente que Clarke, finalmente, manifesta estar farto de ver ser evocado, como se fosse magia, para nada, segundo Clarke, se justificar. 154 Ancorado no critério factual, Clarke prefere encerrar a questão desta forma: se se “pode ser persuadido que o corpo de um homem é uma mera máquina e que todos estes movimentos voluntários são realizados pelas meras leis necessárias do mecanismo corporal, sem qualquer influência ou operação ou ação da alma no corpo, rapidamente concluirão que esta máquina é todo o homem e que a alma harmónica, na hipótese da harmonia pré-estabelecida, é meramente uma ficção e

invention divine, et entre la production d'un ouvrier aussi borné que l'homme." 150 Leibniz, op. cit, § 95, G, VII, 413: "Ce dilemme qu'on fait icy, est mal fondé, que selon moy il faut ou que l'homme agisse surnaturellement, ou que l'homme soit une pure Machine comme une montre. Car l'homme n'agit point surnaturellement, et son corps est veritablement une machine, et n'agit que machinalement ; mais son ame ne laisse pas d'étre une cause libre." 151 Clarke, Streitschriften..., 5ª réplica, §§ 83-91, G, VII, 432. 152 Clarke, op. cit, § 92, G, VII, 432. Ver III. 2, nota 77. 153 Clarke, op. cit, §§ 110 a 116, G, VII, 437: "For, if the Harmonia praestabilita be true, a Man does not indeed see, nor hear, nor feel any thing, nor moves his Body; but only dreams that he sees, and hears, and feels, and moves his Body." 154 Clarke, op. cit, §§ 124 a 130, G, VII, 440.

188

um sonho.”155 Ao negar uma comunicação direta entre a alma e o corpo, e ao pretender explicar os movimentos corporais por determinação necessária das leis naturais, Leibniz leva a que se dispense a própria alma e tende a reduzir tudo à fatalidade de uma conceção materialista. Ora, juntamente com este ataque, Clarke pretende mostrar que a harmonia pré-estabelecida é uma hipótese senão milagrosa, pelo menos bem mais mirabolante que a teoria newtoniana: “ É muito pouco razoável chamar à atração um milagre e um termo não filosófico, depois de ter sido tantas vezes distintamente declarado que por esse termo não queríamos expressar a causa dos corpos tenderem uns para os outros, mas quanto muito o efeito ou o próprio fenómeno e as leis da proporção dessa tendência descoberta pela experiência, seja qual for ou deixe de ser a sua causa. E parece ainda menos razoável não admitir a gravitação ou a atração no sentido em que é manifestamente um fenómeno atual da natureza e, no entanto, ao mesmo tempo, esperar que seja admitida uma hipótese tão estranha como a da harmonia pré-estabelecida que afirma que a alma e o corpo de um homem não têm mais influência nos movimentos e afeções do outro que dois relógios que, a grande distância um do outro, funcionam harmonicamente sem se afetar de todo um ao outro.” 156 Sem transcrever toda a argumentação destinada a reduzir ao absurdo a teoria da harmonia pré-estabelecida, a conclusão mostra a principal razão da sua inaceitabilidade do ponto de vista newtoniano: “De acordo com esta hipótese, todos os argumentos em filosofia, tirados dos fenómenos e experimentos, são anulados.” De facto, se os factos se conformam exatamente às deliberações humanas, a qualquer capricho humano, não por serem feitos pelos seres humanos, mas por uma determinação natural inevitável desde a criação, então nada é o que parece porque o que parece resultar da deliberação humana (Will and Mind) é o resultado de leis naturais que não concluímos dos fenómenos e o que parece resultar das leis naturais indiferentes às almas é feito apenas para se harmonizar com as perceções das almas.157 Com todas estas estranhas consequências, para que serve, afinal, tal teoria: “Que dificuldade é aqui evitada com esta tão estranha hipótese? Apenas esta:

155

Clarke, op. cit, §§ 110 a 116, G, VII, 437-8: "And if the World can once be perswaded, that a Man's Body is a mere Machine; and that all his seemingly voluntary Motions are performed by the mere necessary Laws of corporal Mechanism, without any Influence, or Operation, or Action at all of the Soul upon the Body; they will soon conclude, that this Machine is the whole Man; and that the harmonical Soul, in the Hypothesis of an harmonia praestabilita, is merely a Fiction and a Dream." 156 Clarke, op. cit, §§ 110 a 116, G, VII, 437: "It is very unreasonable to call Attraction a Miracle, and an unphilosophical Term; after it has been so often distinctly declared, that by That Term we do not mean to express the Cause of Bodies tending towards each other, but barely the Effect, or the Phaenomenon it self, and the Laws or Proportions of that Tendency discovered by Experience; whatever be or be not the Cause of it. And it seems still more unreasonable, not to admit Gravitation or Attraction in This sense, in which it is manifestly an actual Phaenomenon of nature; and yet at the same time to expect that there should be admitted so strange an Hypothesis, as the harmonia praestabilita; which is, that the Soul and Body of a Man have no more Influence upon each others Motions and Affections, than two Clocks, which, at the greatest distance from each other, go alike, without at all affecting each other." 157 Clarke, op. cit, §§ 110 a 116, G, VII, 437: "It is alleged indeed, that God, foreseeing the Inclinations of every Man's Soul, so contrived at first the great Machine of the material Universe, as that, by the mere necessary Laws of Mechanism, suitable Motions should be excited in Human Bodies, as Parts of that great Machine. But is it possible, that such Kinds of Motion, and of such variety, as those in Human Bodies are; should be performed by mere Mechanism, without any Influence of Will and Mind upon them? Or is it credible, that when a Man has it in his Power to resolve and know a Month before-hand, what he will do upon such a particular Day or Hour to come; is it credible, I say, that his Body shall by the mere Power of Mechanism, impressed originally upon the material Universe at its Creation, punctually conform it self to the Resolutions of the Man's Mind at the Time appointed? According to This Hypothesis, All Arguments in Philosophy, taken from Phaenomena and Experiments, are at an end."

189

que não se consegue conceber como a substância imaterial poderia agir na matéria.”158 O tal problema que os novos cartesianos teriam identificado, se bem que aqui referido apenas num dos sentidos. Mas, aqui, Clarke avança com dois argumentos algo inusitados: “Mas não é Deus uma substância imaterial? E será que ele não age na matéria? E que maior dificuldade existe em conceber como uma substância imaterial pode agir na matéria, do que conceber como a matéria age na matéria? Não é assim tão fácil conceber como certas partes da matéria podem ser obrigadas a seguir os movimentos e afeções da alma sem contacto corporal, quanto que certas porções de matéria devam ser obrigadas a seguir os movimentos de outras pela adesão das partes, sem nenhum mecanismo que o explique, ou que os raios de luz devam ser refletidos regularmente por uma superfície que nunca tocam?”159 O primeiro argumento desconcerta pela sua simplicidade. Se se afirma a existência de Deus e a sua imaterialidade, e se se considera que foi o criador das coisas materiais e estas dependem dele, por que se julga, em seguida, difícil explicar como uma substância imaterial pode agir na material? Claro que um materialista poderia inverter o argumento para negar a imaterialidade de Deus ou a sua existência. De resto, segue-se aqui a linha argumentativa já antes verificada, de analogia entre Deus e a alma, e de aplicação, seguindo a revelada imagem e semelhança entre Deus e o homem, das características divinas à alma humana, pesem embora algumas limitações inerentes ao criado. Este mesmo argumento já foi referido na anterior secção, extraído da polémica com Collins.160 Não deixa de ser estranho, porém, que considere que a criação é muito fácil de conceber, assim como a ação da alma sobre o corpo – semelhante comparação havia sido feita por Locke, mas para afirmar a inconcebilidade de ambas. 161 Nesse mesmo sentido, aliás, mas inversamente ao que aqui faz, Clarke havia pretendido defender a possibilidade racional da Encarnação divina por não ser mais misteriosa ou incognoscível do que a união da alma e do corpo,162 sendo clara a aplicação a todos estes casos da forma newtoniana da razão preguiçosa, atestar factos como certos e afirmar a incapacidade de conhecer as suas causas ou a maneira como foram feitos ("não podemos descobrir a Maneira"), ao menos de forma não "hipotética", equiparando, pelo menos, todas essas questões à inexplicabilidade dos mistérios divinos. O segundo argumento remete para os diversos fenómenos estudados por Newton que não pareciam implicar contacto corporal, o segundo dos quais é sustentado, diretamente, no Livro II da Ótica,163 mas também se poderia referir a outro fenómeno 158

Clarke, ibidem, G, VII, 438: "What Difficulty is there avoided, by so Strange an Hypothesis? This only; that it cannot be conceived (it seems) how immaterial Substance should act upon Matter." 159 Clarke, op. cit, §§ 110 a 116, G, VII, 438: "But is not God an immaterial Substance? And does not He act upon Matter? And what greater Difficulty is there in conceiving how an immaterial Substance should act upon Matter, than in conceiving how Matter acts upon Matter? Is it not as easy to conceive, how certain Parts of Matter may be obliged to follow the Motions and Affections of the Soul, without corporeal Contact; as that certain Portions of Matter should be obliged to follow each others Motions by the adhaesion of Parts, which no Mechanism can account for? or that Rays of Light should reflect regularly from a Surface which they never touch?" 160 Clarke, LD, "A Third Defence of an Argument...", 300-1. 161 Locke, EU, Book IV, chap. X, § 19, 379. 162 Clarke, DC, 196-7: "For, as to the Possibility of the Incarnation of the Son of God, whatever Mysteriousness there confessedly was in the Manner of it, yet, as to the Thing itself, there is evidently no more Unreasonableness in believing the Possibility of it, than in believing the Union of the Soul and Body, or any other certain Truth which we plainly see implies no Contradiction in the Thing itself, at the same Time that we are sensible we cannot discover the Manner how it is effected." 163 Newton, Optics, Livro II, Prop. VIII, OO, IV, 168: "the reflexion of a ray is effected, not by a single point of the reflecting body, but by some Power of the body which is evenly diffused all over its surface,

190

cuja investigação, muito embora desenvolvida por Newton, não só não resultou de uma descoberta newtoniana, como ele próprio referiu o facto no início do Livro III da Ótica: a difração descoberta por Grimaldi,164 fenómeno, aliás, que se tornou muito importante para estabelecer a teoria ondulatória e não a corpuscular. Mas o que importa frisar aqui, para o atual tema, é a notória falta de sensibilidade gnosiológica estribada numa igualmente notória predileção pelos problemas factuais. Aliás, não deixa de ser curioso que não se refira a dificuldade de explicar como a alma recebe as imagens dos corpos físicos, porventura considerada ainda mais acessível. De qualquer forma, o problema idealista é reduzido a um problema factual eventualmente do mesmo ou até menor grau de dificuldade que os problemas empíricos com que se defrontava a ciência do tempo. Esta minimização do problema representado pela ligação entre a alma e o corpo não se circunscreve nem a esta polémica, nem ao problema da ausência de contacto, sendo, por exemplo, também comparado com a questão atómica. 165 Sem menosprezar esses problemas empíricos e físicos que sabemos como foram difíceis de resolver (e alguns, como a gravidade, o átomo ou a natureza da luz, ainda levantarão questões), os problemas gerais do conhecimento, nomeadamente o problema da natureza do conhecimento aqui envolvido, situam-se a um nível diverso porque prévio e fundante de qualquer conhecimento que se possa vir a ter sobre seja o que for. O facto de Clarke, para não falar em Newton, não conseguir compreender a diferença ajuda a entender as dificuldades de diálogo com a metafísica leibniziana e, através dela, com toda a metafísica, dificuldades que estão na origem do futuro divórcio entre filosofia e ciência. Mais ainda, ao se diminuir a importância deste problema pela equiparação aos outros, está-se também a minimizar os outros problemas e a insinuar a dispensabilidade da sua questionação para a investigação empírica.

and by which it acts upon the ray without immediate contact." 164 O seu nome é, aliás, a primeira palavra do Livro III: Newton, Optics, OO, IV, 202. 165 Clarke, DA, X, p. 61: "as to the difficulty of conceiving the nature and the manner of the union between soul and body, we know altogether as much of that as we do of the nature of the union or cohesion of the infinitely divisible parts of body, which yet no man doubts of. And therefore, our ignorance can be no more an argument against the truth of the one than it is a bar to our belief of the other." Para lá de supor um consenso onde não existe, aproveita-se de uma crença para sustentar outra e da crença em geral para minimizar as questões.

191

192

VI. Liberdade e Providência Encarada do ponto de vista do mundo criado no seu todo, a harmonia pré-estabelecida manifesta-se, para Leibniz, como Providência, assegurando, a cada momento, o funcionamento da máquina do mundo com vista à realização sucessiva do desígnio divino. Como seria de esperar num cristão, a noção de Providência, entendida da forma referida, não é menos importante em Clarke. Porém, será exatamente aqui que se evidenciará a maior diferença entre as conceções de liberdade dos dois autores, apesar da proximidade inicial das noções respetivas. Nessa diferente noção de Providência, entendida em cada caso como exercício da liberdade divina, radicarão as diferentes noções de governo do mundo, de desígnio do mesmo, da conceção da relação de Deus com a Natureza, da definição de milagre e, finalmente, de acordo com esta dissertação, de força, noção crucial em Leibniz e Newton, constantemente presente em todas as temáticas nesta parte abordadas e cuja diferença está intimamente ligada não só com a diferente conceção de liberdade divina, mas com a possibilidade de liberdade na criação e no criado. Na polémica, todos estes assuntos serão desencadeados por aquela que seria, porventura, a conceção mais distintiva e generalizada da vanguarda intelectual da época: a do mundo como uma máquina, o mecanicismo. 1 Ainda sem dispensar por completo Deus, a forma como era concebida a maior ou menor autonomia dessa máquina surgia quase como um critério da maior ou menor racionalidade da física proposta, na medida em que dispensava quer as desacreditadas qualidades ocultas escolásticas, quer quaisquer animismos renascentistas. Curiosamente, apesar de quer Newton, quer Leibniz, quererem superar a completa passividade inerte da mecânica cartesiana, o modelo que na polémica menos se conforma à autonomia mecanicisticamente exigida é exatamente o daquele que figurará, para a posteridade, como o autor que, de acordo com a metáfora já na época inúmeras vezes reiterada,2 reduziu o universo a um relógio, Newton. E muito embora seja Leibniz a figura isolada que, na época, concebe todo o existente como, essencialmente, ativo, incluindo o próprio mundo físico, contra o mecanicismo cartesiano, é também Leibniz que, nesta polémica, mais defende a conceção mecanicista da natureza, dispensando qualquer intervenção divina ou espiritual após a criação, como parte fundamental da sua harmonia pré-estabelecida. Tendo em conta que boa parte das acusações clarkianas de fatalismo e necessitarismo incidem sobre estes argumentos de Leibniz, é fácil estabelecer a correlação com a questão da liberdade. Ora, é sobre as distinções, por vezes algo paradoxais, acima referidas que incide esta última parte de desenvolvimento 1

Westfall, por exemplo, tem toda a razão em considerar que o que mais caracterizava, para os filósofos naturais da época, a revolução científica do séc. XVII de que esta polémica é, em boa parte, um balanço final, era o mecanicismo e não tanto o "matematismo", até porque este último estava longe de estar acessível a todas as figuras desta revolução: Westfall, NR, 14: "Although seventeenth-century natural philosophers were as convinced as we are that a revolution was taking place in the study of nature, it was not the mathematical description of a handful of phenomena or the ultimate implications that might lie behind the possibility of such descriptions which they considered to be the revolution. They thought instead of the new philosophy of nature that had overthrown the Aristotelian categories that had dominated natural philosophy in the West for two thousand years. As far as men active in the study of nature were concerned, the word "overthrown" is not too strong. For them, Aristotelian philosophy was dead beyond resurrection. In its place stood a new philosophy for which the machine, not the organism, was the dominant analogy." Outra questão bem diferente é o que teria sido, de facto, mais decisivo para a revolução científica. 2 Já Kepler, em 1605, havia aderido a ela: Steven Shapin, The Scientific Revolution, Chicago, The University of Chicago Press, 1996, p. 33: "In 1605 the German astronomer Johannes Kepler (1571-1630) announced his conversion from his belief that «the motor cause» of planetary motion «was a soul»: «I'm much occupied with the investigation of the physycal causes. My aim in this is to show that the machine of the universe is not similar to a divine animated being, but similar to a clock.»"

193

da dissertação. Naturalmente, todos estes temas têm nas obras de ambos os autores implicações bem mais vastas, mas, sob ameaça de este se tornar um trabalho interminável, é preciso que se cinja a análise aos temas da polémica, pelo que, por exemplo, a destinação da danação ou da eleição, as conceções da moral, a teologia unitária ou trinitária, a formulação matemática dos processos físicos ou a polémica do cálculo, excedem claramente o âmbito desta análise, visto nunca serem tratados explicitamente na polémica, por muitas ligações que se possam estabelecer com esses temas. Assim, qualquer menção a qualquer destes últimos temas será passageira e não implicará qualquer tratamento detalhado. 1. O relógio de Deus As hostilidades são abertas a este propósito logo na declaração inaugural da polémica e, na verdade, a temática constitui dois terços da argumentação leibniziana nesse primeiro escrito: "O Senhor Newton e seus seguidores têm [...] uma bem divertida opinião da obra de Deus. Segundo eles, Deus precisa de reparar, de tempos a tempos, o seu Relógio. De outra forma, ele deixaria de funcionar. Não teve visão suficiente para nele fazer um movimento perpétuo. Esta Máquina de Deus é mesmo, segundo eles, tão imperfeita que é obrigado a limpá-la, de tempos a tempos, por um concurso extraordinário e mesmo a concertá-la, como um relojoeiro que seria tanto pior mestre quanto fosse mais frequentemente obrigado a retocar e a corrigir a sua obra." 3 Sem penetrar ainda no eventual milenarismo que Leibniz poderia também estar a criticar, o que será brevemente examinado mais adiante, a julgar pela própria referência de Clarke,4 Leibniz poderia estar a pensar numa passagem da Ótica já antes aqui tratada.5 A reação de Clarke é vigorosa, antecipando, no essencial, tal como Leibniz, a sua conceção de Providência e de força, assim como se distancia da posição leibniziana relativa à transcendência divina (adiante tratada), lançando a primeira acusação de fatalismo e, um pouco estranhamente, de materialismo, embora compreensível pela sua assimilação, já referida em II. 5., de Leibniz à mais extrema forma de deísmo e da redução deste a um simples ateísmo6, por sua vez concebido implicitamente como um materialismo, visto Clarke só admitir, em alternativa à ação divina, a passividade material.7 Exatamente por isso, nesta reação, atribui já a Deus a autoria constante de toda a dinâmica do Universo, interpretando tal ligação como Governo e Inspeção permanente, presença no mundo contraposta à distância deísta que acaba por levar a que se dispense Deus.8 Aliás, a distinção que faz em relação aos artífices humanos é também elucidativa porque, ao contrário da relação entre Deus e o mundo, o relojoeiro está separado da sua obra que continua a existir sem si, o que está longe de ser a forma como Clarke (e Newton) pensa não só a existência do mundo, como o seu funcionamento. A metáfora do relógio, por vezes reduzida à mais genérica da máquina, prolongar-se-á até o final da polémica e é uma marca de unidade entre todos os temas 3

Leibniz, Streitschriften..., 1º escrito, § 4, G, VII, 352. Citado logo em I. 1, nota 2. Samuel Clarke, A Collection of Papers..., London, James Knapton, 1717, p. 5, nota. 5 Newton, Optics, Qu. 31, OO, IV, 261-262. Citada em II, nota 7, e em IV. 10, nota 408. 6 Clarke, DC, Introduction, p.13, nota. 7 Clarke, DC., 13-4. 8 Clarke, Streitschriften..., 1ª réplica, § 4, G, VII, 354: "But with regard to God, the Case is quite different; because He not only composes or puts Things together, but is himself the Author and continual Preserver of their Original Forces or moving Powers: And consequently tis not a diminution, but the true Glory of his Workmanship, that nothing is done without his continual Government and Inspection. The Notion of the World's being a great Machine, going on without the Interposition of God, as a Clock continues to go without the Assistance of a Clockmaker; is the Notion of Materialism and Fate, and tends (under pretense of making God a Supra-Mundane Intelligence) to exclude Providence and God's Government in reality out of the World." 4

194

desta parte. Naturalmente, a grande questão reside não tanto na máquina, mas no artífice, não tanto no relógio, mas no relojoeiro. Sem extravasar o âmbito da metáfora nesta secção, mas centrando a discussão, convém recordar que as críticas, nesta época e na vanguarda filosófica e científica, a qualquer conceção da máquina do universo que introduzisse elementos estranhos à mera disposição das partes e ao seu movimento, para além da dependência geral de Deus, eram recorrentes e consideradas um sinal de uma compreensão deficiente da natureza e uma desvalorização do poder ou da sabedoria de Deus que teria que recorrer a instrumentos intermédios, em vez de ser omnipotente, e teria que recorrer a ajudantes no funcionamento ordinário da máquina, em vez de criar a máquina perfeita que decorreria da sua omnisciência. Por exemplo, Leibniz criticara o recurso peripatético a Inteligências para explicar o curso dos astros, como indigno da admirável obra de Deus,9 e já se viu, nesta dissertação, em IV. 1., que uma das razões que terá levado Newton a rejeitar a formulação de More terá sido a postulação, por este, de um espírito intermediário entre Deus e a natureza. 10 Embora Newton acabe por mostrar uma certa incerteza quanto à possibilidade de agentes intermédios na sua dinâmica, Clarke reduz, inequivocamente, na passagem já referida e em muitos outros textos, à estrita dependência de Deus o funcionamento da máquina natural, pelo que toda a discussão se centrará na relação entre Deus e a máquina por ele criada, o mundo. Ora, embora Leibniz reconheça a dependência constante do criado em relação a Deus, concebida de forma ativa como operação de criação contínua, como já foi examinado anteriormente,11 não admite a possibilidade de correção da obra divina, o que implicaria que Deus, mesmo tendo a potência para fazer o que quisesse, não teria tido a sabedoria suficiente para fazer uma obra irrepreensível e insuscetível de qualquer estrago que requeresse reparação ou revisão, pelo que a sua omnipotência seria cega, agindo de acordo com as ocasiões.12 Para lá de aproveitar para devolver a acusação de levar ao 9

Trad. ingl. do Tentamen de Motuum Coelestium Causis de Leibniz feita por Meli, EP, 128. A mesma crítica surge em Leibniz, Antibarbarus Physicus…, G, VII, 337-8: "sed illi nihil satis divinum credunt nisi quod sit a ratione alienum, et quae in ...... corporibus fiunt tum ardua putant, ut ne divina quidem arte tales machinae effici possint. Parum periti divinorum operum opus habere putant aestimatores. Itaque Deum ubique vicariis quibusdam Deunculis (ne miraculose semper agere ipse debeat) uti, qui olim astrorum motus intelligentiis propriis tribuebant."; e G, VII, 344. 10 Estas duas críticas chegam, aliás, a surgir em conjunto em Leibniz, Specimen dynamicum..., Pars I, GM, VI, 242: "Interim etsi principium activum materialibus notionibus superius et ut sic dicam vitale ubique in corporibus admittam, non ideo tamen Henrico Moro aliisque viris pietate et ingenio insignibus hic assentior, qui Archaeo nescio quo aut hylarchico principio etiam ad phaenomena procuranda sic utuntur, quasi scilicet non omnia mechanice explicari possint in natura, et quasi qui hoc conentur, incorporea tollere videantur, non sine suspicione impietatis; aut quasi cum Aristotele Intelligentias orbibus rotandis affigere necesse sit; aut elementa dicendum sit sursum vel deorsum a forma sua agi, compendiosa sed inutili docendi ratione" 11 II. 5. e IV. 3. Cf., e. g., Leibniz, Streitschriften..., 2º escrito, § 5, G, VII, 357. 12 Leibniz, op. cit, §§ 6-8, G, VII, 357-8: "La veritable Raison qui fait louer principalement une Machine, est plustost prise de l'Effect de la Machine que de sa cause. On ne s'informe pas tant de la puissance du Machiniste, que de son artifice. Ainsi la raison qu'on allegue pour louer la Machine de Dieu, de ce qu'il la faite tout entiere, sans avoir emprunté de la matiere de dehors, n'est point suffisante. C'est un petit detour, où l'on a eté forcé de recourir. Et la raison qui rend Dieu preferable à un autre Machiniste, n'est pas seulement parce qu'il fait le tout, au lieu que l'artisan a besoin de chercher sa matiere. Cette preference viendroit seulement de la puissance. Mais il y a une autre raison de l'excellence de Dieu, qui vient encor de la sagesse. C'est que sa machine dure aussi plus longtemps, et va plus juste, que celle de quelque autre Machiniste que ce soit. Celuy qui achete la montre, ne se soucie point si l'ouvrier l'a faite tout entiere, ou s'il en a fait faire les pieces par d'autres ouvriers, et les a seulement adjustées, pourveu qu'elle aille comme il faut. Et si l'ouvrier avoit receu de Dieu le don jusqu'à créer la matiere des roues, on n'en seroit point content, s'il n'avoit receu aussi le don de les bien adjuster. Et de même, celuy qui voudra etre content de l'ouvrage de Dieu, ne le sera point par la seule raison qu'on nous allegue. Ainsi il faut que l'artifice de Dieu ne soit point inferieur à celuy d'un ouvrier ; il faut même qu'il aille infiniment au delà. La simple

195

materialismo, Leibniz utiliza esta necessidade de correção para lançar mais duas acusações, embora alternativas, que serão objeto de secções posteriores: ou Deus corrige sobrenaturalmente o mundo, recorrendo, então, a milagres; ou o faz naturalmente como Alma do Mundo.13 Este ataque à possibilidade de correção divina não é novo, sendo, aliás, relacionado com toda e qualquer conceção que admita a possibilidade de a obra divina não ser a melhor possível.14 Na resposta de Clarke, evidencia-se a diferença fundamental da conceção newtoniana de natureza em relação à leibniziana. A natureza material não pode ter poderes próprios, independentes de Deus, nem mesmo se atribuídos originalmente pela divindade, sendo inteiramente passiva. A sabedoria de Deus não pode, pois, revelar-se numa natureza que funciona por si, autonomamente, mas na conceção de uma ideia completa e perfeita de uma obra que começa, continua e se realiza de acordo com essa ideia original, de acordo com o desígnio da criação, mas pelo exercício contínuo e ininterrupto do seu governo.15 A correção ou emenda, criticada por Leibniz, só ocorre do nosso ponto de vista16 porque, do ponto de vista divino, nunca há desordem, tudo ocorrendo de acordo com o seu projeto e de acordo com a sua presciência, sendo o projeto continuamente executado por Deus. 17 Clarke insiste particularmente na afirmação de que não há poderes da Natureza porque a necessidade de introduzir novas impressões divinas advém da diminuição das forças ativas inerente ao caráter totalmente dependente e passivo da matéria. 18 Que esta matéria seja totalmente inerte, sem production de tout marqueroit bien la puissance de Dieu ; mais elle ne marqueroit point assés sa sagesse. Ceux qui soutiendront le contraire, tomberont justement dans le defaut des Materialistes et de Spinoza, dont ils protestent de s'eloigner. Ils reconnoitroient de la puissance, mais non pas assés de sagesse dans le principe des choses. Je ne dis point que le Monde corporel est une Machine ou Montre qui va sans l'interposition de Dieu, et je presse assés que les Creatures ont besoin de son influence continuelle : mais je soutiens que c'est une montre qui va sans avoir besoin de sa correction : autrement il faudroit dire que Dieu se ravise. Dieu a tout prevû, il a remedié à tout par avance. Il y a dans ses ouvrages une harmonie, une beauté déja preétablie." 13 Leibniz, op. cit, § 12, G, VII, 358-9: "si Dieu est obligé de corriger les choses naturelles de temps en temps ; il faut que cela se fasse ou surnaturellement ou naturellement. Si cela se fait surnaturellement, il faut recourir au miracle pour expliquer les choses naturelles ; ce qui est en effect une reduction d'une hypothese ad absurdum. Car avec les miracles, on peut rendre raison de tout sans peine. Mais si cela se fait naturellement, Dieu ne sera point Intelligentia supramundana, il sera compris sous la nature des choses, c'est à dire, il sera l'Ame du Monde." 14 Leibniz, Essais de Théodicée, 3ª parte, § 339, G, VI, 316: Bayle "a cru defendre par là la cause de Dieu, et l'exemter d'une necessité imaginaire, en luy laissant la liberté de choisir entre plusieurs biens le moindre. [...] Ceux qui la soutiennent [cette etrange opinion] ne remarquent pas que c'est vouloir conserver, ou plustost donner à Dieu une fausse liberté, qui est la liberté d'agir deraisonnablement. C'est rendre ses ouvrages sujets à la corretion". Aliás, considera, em seguida, que tal conceção impede que se possa explicar a permissão do mal. 15 Clarke, op. cit, 2ª réplica, §§ 6-7, G, VII, 361: "this Wisdom of God appears, not in making Nature (as an Artificer makes a Clock) capable of going on Without him: (For that's impossible; there being no Powers of Nature independent upon God, as the Powers of Weights and Springs are independent upon Men:) But the Wisdom of God consists, in framing Originally the perfect and complete Idea of a Work, which begun and continues, according to that Original perfect Idea, by the Continual Uninterrupted Exercise of his Power and Government." 16 Clarke, op. cit, § 8, G, VII, 361: "The Word Correction, or Amendment, is to be understood, not with regard to God, but to Us only." 17 Clarke, op. cit, § 9, G, VII, 361: "The Wisdom and Foresight of God, do not consist in providing originally Remedies, which shall of themselves cure the Disorders of Nature. For in Truth and Strictness, with regard to God, there are No Disorders, and consequently no Remedies, and indeed no Powers of Nature at all, that can do any Thing of themselves (as Weights and Springs Work of themselves with regard to Men:) But the Wisdom and Foresight of God, consist (as has been said) in contriving at once, what his Power and Government is Continually putting in actual Execution." 18 Clarke, op. cit, 3ª réplica, §§ 13-14, G, VII, 370: "The Active Forces, which are in the Universe,

196

qualquer atividade própria, não é visto por Clarke, Newton ou os cartesianos, como uma imperfeição ou defeito,19 nem como algo que Deus poderia ter feito melhor. A perda das forças ativas afirmada nestas passagens será tratada mais adiante, mas importa desde já fixar a negação da possibilidade de qualquer verdadeira força nos corpos: "toda a mera comunicação mecânica de movimento não é propriamente ação mas mera passividade, tanto nos corpos que impelem como nos que são impelidos. A ação é o começo de um movimento onde nenhum existia antes, a partir de um princípio de vida ou de atividade". 20 Apenas os espíritos e almas são capazes de imprimir novas forças nos corpos e só Deus é capaz de as imprimir a um nível que tenha relevância cósmica. Leibniz começa por negar que uma perda da força ativa pudesse significar uma desordem apenas para nós, visto afetar a totalidade da máquina cósmica, implicando uma desordem para Deus como criador e constante fundamento necessário dessa máquina. 21 Porém, a natureza de Deus impede que pudesse fazer uma obra onde pudessem surgir tais desordens. 22 Em resposta a uma formulação de Clarke que até parece conceder poderes próprios à Natureza,23 Leibniz concede, com facilidade, que a conservação da Natureza por Deus é uma preservação não só dos seres, mas também de poderes, ordens, disposições e moções. 24 Porém, como já foi visto em V.2., Leibniz rejeita que as almas possam dar novas forças aos corpos e que Deus o faça no curso natural.25 O próprio arbítrio do criador está regulado pelas naturezas das coisas, nada nelas produzindo ou conservando que não o que pode ser explicado pelas suas naturezas. 26 Além disso, longe do defeito das máquinas decorrer da sua natureza dependente, provém de não estar suficientemente dependente. Se estivesse mais dependente, correria menor risco de avaria e, ainda mais assim seria, se o operário, em vez de humano e limitado, fosse divino e perfeito, o que levaria a que o universo fosse tão perfeito que não poderia diminuir a sua perfeição.27 Até o fim, Leibniz insistirá que diminishing themselves so as to stand in need of new impressions; is no Inconvenience, no disorder, no imperfection in the Workmanship of the Universe; but is the consequence of the nature of dependent things. Which Dependency of Things, is not a matter that wants to be rectified." 19 Clarke, op. cit, 4ª réplica, § 39, G, VII, 387: "This is no Defect, as is here supposed; but 'tis the just and proper Nature of inert Matter"; 5ª réplica, §§ 100-102, G, VII, 434: "That this is no Defect, is evident; because 'tis only a Consequence of Matter being lifeless, void of Motivity, unactive and inert." 20 Clarke, op. cit, §§ 93-95, G, VII, 433: "all mere mechanical Communications of Motion, are not properly Action, but mere Passiveness, both in the Bodies that impell, and that are impelled. Action, is the beginning of a Motion where there was none before, from a Principle of Life or Activity". 21 Leibniz, Streitschriften..., 3º escrito, § 13, G, VII, 366: "Si la force active se perdoit dans l'univers, par les loix naturelles que Dieu y a etablies, en sorte qu'il eût besoin d'une nouvelle impression pour restituer cette force, comme un ouvrier qui remedie à l'imperfection de sa machine, le desordre n'auroit pas seulement lieu à l'egard de nous, mais à l'egard de Dieu luy même." 22 Leibniz, op. cit, § 14, G, VII, 366; 5º escrito, § 103, G, VII, 414. 23 Clarke, op. cit, 2ª réplica, § 11, G, VII, 362. Na verdade, reconhece poderes autónomos, mas apenas nos espíritos e almas. Por outro lado, visto se estar a referir à dependência de Deus, também se pode estar a referir à matéria. 24 Leibniz, op. cit, 3º escrito, § 16, G, VII, 366: "Je n'ay jamais donné sujet de douter, si la conservation de Dieu est une preservation et continuation actuelle des Etres, pouvoirs, ordres, dispositions et motions [notions na ed. Janet] ; et je crois l'avoir peutetre mieux expliqué que beaucoup d'autres." 25 Leibniz, op. cit, 4º escrito, §§ 32-33, G, VII, 375-6. Ver V. 2, nota 95. 26 Leibniz, Nouveaux essais..., Livre IV, Chap. III, G, V, 362-3: "quant au bon plaisir du Createur, il faut dire qu'il est reglé selon les natures des choses, en sorte qu'il n'y produit et conserve que ce qui leur convient et qui se peut expliquer par leur natures au moins en general". 27 Leibniz, Streitschriften..., 4º escrito, § 40, G, VII, 376: "Ce defaut de nos machines, qui fait qu'elles ont besoin d'etre redressées, vient de cela même, qu'elles ne sont pas assez dependantes de l'ouvrier. Ainsi leur dependance de Dieu bien loin d'etre cause de ce defaut, est plustost cause que ce defaut n'y est point, parce que la nature est si dependante d'un ouvrier trop parfait pour faire un ouvrage qui ait besoin d'etre redressé. Il est vray que chaque machine particuliere de la nature, est en quelque façon sujette à etre

197

tal decréscimo natural da força no universo corporal seria um defeito e que teriam de provar que tal defeito seria uma consequência da dependência das coisas. 28 Pelo contrário, a resposta leibniziana supõe sempre a harmonia pré-estabelecida não só no funcionamento da máquina do mundo, do relógio de Deus, mas também na articulação, como já foi visto, com os autómatos espirituais que são as almas.29 O funcionamento maquinal do mundo desdobra-se no funcionamento mecânico dos corpos orgânicos, eles próprios comparados com relógios menores.30 Mesmo restringindo a atenção à conceção da máquina da Natureza, é sintomático que Leibniz procure não só rejeitar qualquer intervenção "espiritualizante" como em More, mas também ser ainda mais mecanicista que Descartes e os cartesianos, não permitindo qualquer influência física do espírito.31 Mas a diferença mais fundamental em relação à conceção newtoniana reside numa conceção da natureza material baseada na força, mas numa força que explica o próprio funcionamento mecânico e que não extravasa os limites do mecanismo, distinguindo-se, por isso, da força da substância infinita por uma distância infinita e intransponível.32 Através desta atribuição de força autónoma à Natureza, mas restringindo-a a funções estritamente mecânicas, afasta-se quer a possibilidade de uma Alma do Mundo imanente, quer a necessidade de intervenções milagrosas do transcendente.33 Leibniz procura expressar uma Natureza que se corresponda à plenitude de uma criação divina, restringida a uma economia de causas adequada à simplicidade divina, simultaneamente poupada nos recursos originais e pródiga nos seus efeitos. 34 O facto de se referir à própria natureza como um caseiro, um gestor da casa, em vez de conceder atributos análogos a Deus, apesar da dependência daquela relativamente a este, antecipa a diferença entre os autores que será abordada na secção seguinte. detraquée ; mais non pas l'univers tout entier, qui ne sauroit diminuer en perfection." 28 Leibniz, op. cit, 5º escrito, §§ 100-101, G, VII, 414: "On m'avoit soutenu que la force décroissoit naturellement dans l'univers corporel, et que cela venoit de la dependance des choses [...]. J'avois demandé dans ma 3me reponse qu'on prouvât que ce defaut est une suite de la dependance des choses. On esquive de satisfaire à ma demande, en se jettant sur un incident, et en niant que ce soit un defaut. Mais que ce soit un defaut ou non, il falloit prouver que c'est une suite de la dependance des choses. Cependant il faut bien, que ce qui rendroit la Machine du Monde aussi imparfaite que celle d'un mauvais Horloger, soit un defaut." 29 Leibniz, op. cit, § 92, G, VII, 412; § 124, G, VII, 419. Transcritos em II. 4, notas 133 e 134. 30 Leibniz, op. cit, § 116, G, VII, 418. Ver V. 2, nota 149. 31 Leibniz, Nouveaux essais..., Livre I, Chap. I, G, V, 64: "Comment les loix de la nature [...] ont leur origine des principes superieurs à la matiere, et que pourtant tout se fait mecaniquement dans la matiere, en quoy les auteurs spiritualisans que je viens de nommer [entre os quais, Henry More], avoient manqué avec leur Archées et même les Cartesiens, en croyant que les substances immaterielles changeoient si non la force, au moins la direction ou determination des mouvemens des corps, au lieu que l'ame et le corps gardent parfaitement leur loix, chacun les siennes, selon le nouveau Systeme, et que neantmoins l'un obeit à l'autre autant qu'il le faut." 32 Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 112, G, VII, 417: "En bonne philosophie, et en saine Theologie, il faut distinguer entre ce qui est explicable par les natures et forces des creatures, et ce qui n'est explicable que par les forces de la substance infinie. Il faut mettre une distance infinie entre l'operation de Dieu qui va au delà des forces des natures, et entre les Operations des choses qui suivent les loix que Dieu leur a données, et qu'il les a rendues capables de suivre par leur natures, quoyqu'avec son assistance." 33 Leibniz, op. cit, § 113, G, VII, 417. 34 Leibniz, Nouveaux essais..., Livre III, Chap. VI, § 32, G, V, 303: "on ne sçauroit se figurer la nature trop liberale ; elle l'est au delà de tout ce que nous pouvons inventer et toutes les possibilités compatibles en prevalence se trouvent realistes sur le grand Theatre de ses representations. Il y avoit autresfois deux axiomes chez les Philosophes : celuy des Realistes sembloit faire la nature prodigue, et celuy des Nominaux la sembloit declarer chiche. L'un dit que la nature ne souffre point de vuide, et l'autre qu'elle ne fait rien en vain. Ces deux axiomes sont bons, pourveu qu'on les entende ; car la nature est comme un bon menager, qui epargne là où il le faut, pour estre magnifique en temps et lieu. Elle est magnifique dans les effects, et menagere dans les causes qu'elle y employe."

198

Já foi tratada em V. 2. a reação incrédula de Clarke a esta harmonia pré-estabelecida que eliminava qualquer influência causal e fazia com que cada alma ou força se acordasse mecanicamente com qualquer outra através de uma sincronia perfeita análoga a dois relógios que, sem qualquer interação entre si, funcionassem em perfeita sintonia, mesmo estando a grande distância um do outro. 35 Leibniz não terá a oportunidade de responder a este ataque, mas tem suficientes respostas à, apesar de tudo, bem mais compreensiva reação de Bayle, também caracterizada pela incredulidade, para que não seja impossível adivinhar a resposta. Não só os próprios homens, com uma arte tão limitada, conseguem fazer autómatos que imitam reações racionais, como mesmo um Espírito superior a nós (um anjo, por exemplo), poderia executar aquilo que Bayle (e Clarke) julga impossível à divindade.36 A diferença, no que se refere a Deus, está na sequência universal, pela qual cada organização nova é uma sequência mecânica de uma constituição orgânica precedente, 37 tal como cada perceção presente de uma mónada é resultado de toda a sequência precedente de perceções e está grávida de toda a sequência futura. De novo, o que parece difícil entender nesta conceção é o espaço para a liberdade porque, se Leibniz explica os processos mecânicos com argumentos teleológicos que talvez se pudessem considerar anímicos, o mais vulgar é o inverso: entender a decisão da vontade como uma confluência de determinações semelhante à determinação de um movimento por múltiplas tendências concorrentes.38 O facto de este exemplo mecânico, a lei geral da composição dos movimentos, ser utilizado numa analogia com a determinação da vontade divina, apenas poderia reforçar as críticas clarkianas a uma conceção mecânica até da divindade, onde não havia lugar para a liberdade. 2. O governo do mundo A primeira reação de Clarke à crítica inicial de Leibniz a propósito da Máquina do Mundo, já vista na secção anterior, já continha a oposição crucial a uma conceção que os newtonianos consideravam deísta, através da noção de um Deus que fosse não apenas um conservador genérico da existência e das forças inicialmente atribuídas, mas um contínuo governante e inspetor.39 Uma nova metáfora é elaborada para sublinhar a diferença em relação à posição considerada deísta: a do rei, considerando que se este tivesse um reino onde tudo se passasse sem a sua interposição, seria um reino apenas 35

Clarke, op. cit, 5ª réplica, §§ 110-116, G, VII, 437. Ver V. 2, nota 156. Leibniz, Essais de Théodicée, Préface, G, VI, 41: "Je fus surpris de voir qu'on mit des bornes à la puissance de Dieu, sans en alleguer aucune preuve, et sans marquer qu'il y eût aucune contradiction à craindre du côté de l'object, ny aucune imperfection du côté de Dieu, quoyque j'eusse montré auparavant dans ma Duplique, que même les hommes font souvent par des automates quelque chose de semblable aux mouvemens qui viennent de la raison ; et qu'un esprit fini (mais fort au dessus du nostre) pourroit même executer ce que M. Bayle croit impossible à la Divinité : outre que Dieu reglant par avance toutes les choses à la fois, la justesse du chemin de ce vaisseau ne seroit pas plus étrange, que celle d'une fusée qui iroit le long d'une corde dans un feu d'artifice, tous les reglemens de toutes choses ayant une parfaite harmonie entre eux, et se determinant mutuellement." 37 Leibniz, op. cit, G, VI, 41: "les organisations nouvelles ne soyent qu'une suite mechanique d'une constitution organique precedente". 38 Leibniz, op. cit, 1ª parte, § 22, G, VI, 116: "cette volonté consequente, finale et decisive, resulte du conflit de toutes les volontés antecedentes, tant de celles qui tendent vers le bien, que de celles qui repoussent le mal : et c'est du concours de toutes ces volontés particulieres, que vient la volonté totale : comme dans la mechanique le mouvement composé resulte de toutes tendences qui concourent dans un même mobile, et satisfait egalement à chacune, autant qu'il est possible de faire tout à la fois. Et c'est, comme si le mobile se partageoit entre ces tendences, suivant ce que j'ay montré autrefois [...] en donnant la loy generale des compositions du mouvement." 39 Clarke, op. cit, 1ª réplica, § 4, G, VII, 354. Quanto à acusação de deísmo, muito embora na própria polémica ela seja insinuada, a nota já referida em Clarke, DC, 13, não deixa dúvidas. 36

199

nominal que poderia facilmente prescindir desse mesmo rei.40 Seria curioso saber o que Clarke pensaria da atual monarquia britânica, onde, exatamente, o rei nem governador é, isto apesar do envolvimento newtoniano na nova ordem instaurada pela Revolução Gloriosa que, exatamente, limitou parlamentarmente os poderes do rei. É sabido que o episódio que trouxe o destaque político a Newton era mais de ordem religiosa que política (o que, na altura, era uma distinção bem menos clara que atualmente). 41 De qualquer forma, quanto a Deus como monarca, se ninguém duvidaria que o Universo deveria ser uma monarquia absoluta, ainda menos isso poderia estar em causa entre newtonianos, cujo antitrinitarismo ou, pelo menos, subordinacionismo é, hoje, evidente. Será que também era evidente para Leibniz que, certamente, teria conhecimento das polémicas envolvendo Whiston e Clarke? 42 É muito improvável que qualquer referência dos autores nesta polémica, sobretudo tendo em conta os antecedentes e o 40

Clarke, Streitschriften..., 1ª réplica, § 4, G, VII, 354-5: "If a King had a Kingdom, wherein all Things would continually go on without his Government or Interposition, or without his Attending to and Ordering what is done therein; It would be to him, merely a Nominal Kingdom; nor would he in reality deserve at all the Title of King or Governor. And as those Men, who pretend that in an Earthly Government Things may go on perfectly well without the King himself ordering or disposing of any Thing, may reasonably be suspected that they would like very well to set the King aside: So whosoever contends, that the Course of the World can go on without the Continual direction of God, the Supreme Governor; his Doctrine does in Effect tend to Exclude God out of the World." Esta exigência de presença interventiva de Deus no Mundo e na História é, aqui, o que mais demonstra a oposição a uma posição deísta, contrariamente ao defendido por Westfall, muito embora a posição de Westfall não deixe de ter reticências: Westfall, "Newton and Christianity", NW, 360: "Although it differed in its attitude from the deists' open hostility toward Christianity, its content [do Origenes] was remarkably similar to their works, and it must be seen as the first of the deist tracts". Mas a exigência de racionalidade não desmente a atenção newtoniana dada às revelações proféticas, o milenarismo, a preferência pelos textos escriturais e a oposição a qualquer elaboração metafísica, tudo características estranhas ao deísmo. Que Newton subscreve a posição aqui defendida por Clarke, não há grande dúvida, como se pode ver nas notas newtonianas ao ensaio de Leibniz sobre o movimento dos corpos celestes, onde a primeira crítica que se lembra, antes de qualquer crítica matemática ou física, incide sobre o implícito deísmo de Leibniz: Newton, CN, VI, 116: "Absurd. 1. Ergo corpus non movetur nisi ab agente corporeo, non a mente humano nisi corpereo, non a Deo nisi corporeo. Absurd. 2. Deus non regit mundum proindeque non est Dominus Deus." Repare-se como, na primeira crítica, está implícita a defesa da eficácia física dos espíritos, como se viu, condição de possibilidade da liberdade para os newtonianos. Em geral, esta dissertação subscreve a crítica feita à posição de Westfall por James Force (cf. James E. Force, Richard H. Popkin, Essays on the context, nature, and influence of Isaac Newton's Theology, Dordrecht/Boston/London, Kluwer Academic Publishers, 1990 [EC], sobretudo pp. 53-62). A explicitação mais clara da posição newtoniana será, porém, feita adiante, na secção sobre religião. 41 Westfall, NR, 474-9. Também estava em questão a autonomia da Universidade e, novamente, esta questão também não se distinguia, na época, claramente das anteriores. Na tentativa de legitimar a revolução, Newton parece defender a doutrina da obediência passiva, embora fazendo depender os juramentos da "lei da terra", parecendo haver um ataque a uma fé que vá para lá do que essa lei requer. Mas poderá estar, simplesmente, a reproduzir os argumentos da época, onde a salvaguarda da religião protestante era sistematicamente utilizada como sustentação da Revolução. Cf. Newton, Carta para Covel de 21 de Fevereiro de 1688/9, CN, III, 12-13. 42 Whiston e Clarke tiveram que defrontar a Convocação da Igreja Anglicana, com sortes diferentes: em 1710, Whiston é expulso da Universidade, ao passo que em 1714 Clarke é apenas forçado a prometer não falar mais sobre o assunto, o que, aliás, nem respeitou. O estilo muito mais frontal de Whiston e os fortes apoios que Clarke tinha no alto clero e na corte, poderão estar na origem do diferente desfecho. No caso de Clarke, a polémica foi desencadeada por uma obra publicada em 1712: Samuel Clarke, The Scripture-Doctrine of the Trinity, London, James Knapton, 1712. As subsequentes controvérsias estenderam-se até o fim da vida, muitas vezes levadas a cabo anonimamente, por aliados ou por meros empréstimos de nome, bem descritos em Ferguson, EH. Ainda antes da proibição, envolveu-se, porém, abertamente nas polémicas, como se pode ver em Samuel Clarke, A Reply to the Objections of Robert Nelson and of an Anonymous Author, against Dr. Clarke Scripture-Doctrine of the Trinity, London, James Knapton, 1714. O processo está documentado em A full Account of the Late Proceedings in Convocation relating to Dr. Clarke’s Writings about the Trinity, 2nd. ed, London, John Baker, 1714 [FL].

200

fundo político e religioso sobre que decorre, seja inocente ou inadvertida. A comparação da posição de Clarke com a posição sociniana, muito embora seja recorrente em Leibniz como parte da sua defesa da predeterminação e imutabilidade divinas,43 não pode ser ocasional, sem segundas intenções. Fá-lo-á, de novo, no final da polémica, novamente no quadro da temática da Providência.44 Não há qualquer menção à questão trinitária, mas a associação a uma posição considerada herética por todas as confissões cristãs dominantes na Europa de então (e de agora) não pode deixar de ser propositada. Mas, restringindo a análise ao que é declarado, Leibniz considera que o pré-estabelecimento da harmonia na obra de Deus, longe de excluir a Providência ou o Governo, tornam-no perfeito. A verdadeira Providência de Deus consiste na perfeita previsão e na preordenação da total provisão dos remédios de tudo quanto possa ocorrer. Reconhece que os newtonianos não negam, como os socinianos, a previsão, mas não admitem a provisão, razão pela qual requerem a correção. Como se viu na secção anterior, Leibniz começa por acusar Clarke de não reconhecer a Sabedoria divina, mas, neste caso, acaba por acusar os newtonianos de limitarem o poder divino.45 E para confirmar a sua tese ao nível da metáfora, salienta que um reino em que os súbditos fossem criados e mantidos pelo rei, sem necessidade de os reorientar, não só não seria apenas nominal, como provaria um bom governo que não negligenciou as vicissitudes futuras e se preparou para todas as dificuldades antecipadamente.46 43

Seria bem cansativo enumerar todas as referências leibnizianas com este teor. Para se verificar a sua persistência, mencione-se, a título de exemplo, muito embora um pouco mais cortês, uma passagem de uma correspondência anterior em três décadas: Leibniz, Carta de Leibniz para o Landgrave de 12/4/1686, G, II, 23: "Il [Arnauld] s'imagine donc Dieu comme un homme qui prend des resolutions selon les ocurrences, au lieu que Dieu prevoyant et reglant toutes choses de toute eternité, a choisi du primabord toute la suite et connexion de l'Univers, et par consequent non pas un Adam tout simple, mais un tel Adam, dont il prevoyoit qu'il feroit de telles choses et qu'il auroit de tels enfants, sans que cette providence de Dieu reglée de tout temps soit contraire à sa liberté. De quoy tous les Theologiens (à la reserve de quelques Sociniens qui conçoivent Dieu d'une maniere humaine) demeurent d'accord. Et je m'étonne que l'envie de trouver je ne sçay quoy de chocquant dans mes pensées, dont la prevention avoit fait naistre en son esprit une idée confuse et mal digerée, a porté ce sçavant homme à parler contre ses propres lumieres et sentiments. Car je ne suis pas assez peu equitable pour l'imiter et pour luy imputer le dogme dangereux de ces Sociniens, qui detruit la souverain perfection de Dieu, quoyqu'il semble d'y incliner presque dans la chaleur de la dispute." Disputa, porém, que ainda quase não existia. A primeira resposta desabrida de Arnauld é dificilmente compreensível tendo em conta os seus contactos anteriores, em Paris, embora uma década tivesse passado, e a forma extremamente favorável como Arnauld apresentou Leibniz: cf. E. J. Aiton, Leibniz – A Biography, Bristol and Boston, Adam Hilger Ltd, 1985 [LB], pp. 72-73: "His generous treatment [do Duque Johann Friedrich de Hannover] of Leibniz, especially in allowing him ample freedom to pursue his own studies, may have been to some extent the result of a communication from Antoine Arnauld to one of the Franciscans at the Court, in which Arnauld remarked that Leibniz lacked only the true religion (that is, Catholicism) in order to be one of the greatest men of the century." É verdade que também na primeira reação de Arnauld, em 86, o principal problema parecia ser o de Leibniz ainda não se ter convertido ao Catolicismo, cf. Arnauld, Carta para o Landgrave de 13/3/1686, G, II, 16. 44 Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 5, G, VII, 389-90. 45 Leibniz, op. cit., 2º escrito, § 9, G, VII, 358: "Ce sentiment n'exclut point la providence ou le Gouvernement de Dieu : au contraire cela le rend parfait. Une veritable providence de Dieu demande une parfaite prevoyance : mais de plus elle demande aussi non seulement qu'il ait tout preveu, mais aussi qu'il ait pourveu à tout par des remedes convenables préordonnés : autrement il manquera ou de sagesse pour le prevoir, ou de puissance pour y pourvoir. Il ressemblera à un Dieu Socinien, qui vit du jour à la journée [...]. Il est vray que Dieu, selon les Sociniens, manque même de prevoir les inconveniens, au lieu que, selon ces Messieurs qui l'obligent à se corriger, il manque d'y pourvoir. Mais il me semble que c'est encor un manquement bien grand ; il faudroit qu'il manquât de pouvoir ou de bonne volonté." 46 Leibniz, op. cit, § 11, G, VII, 358: "La comparaison d'un Roy, chez qui tout iroit sans qu'il s'en melât, ne vient point à propos, puisque Dieu conserve tousjours les choses, et qu'elles ne sauroient subsister sans luy : ainsi son Royaume n'est point nominal. C'est justement comme si l'on disoit, qu'un Roy qui auroit si

201

Clarke procurará clarificar a posição leibniziana: Se a conservação significar a operação e governo atuais das coisas, a posição não seria diversa da sua; mas se isso significar simplesmente manter o originalmente criado, sem mais interferir, a sua governação seria apenas nominal. 47 Porém, o facto de Leibniz considerar toda a intervenção miraculosa, esclarece Clarke quanto à intenção leibniziana de excluir Deus da governação e ordenação do mundo natural, não admitindo a sua constante ação sobre todas as coisas,48 mas defendendo a ação das coisas por si próprias, de acordo com a sua própria natureza. A noção do Deus governador continuará a ser explorada por Clarke e evitada por Leibniz. O objetivo é sempre o mesmo, mostrar que a conceção de Leibniz, ao dispensar a gestão "corrente" de Deus, por exigir que Deus fizesse o máximo que pudesse fazer,49 ou que todo o movimento animal espontâneo seja realizado por impulso mecânico da matéria, 50 ou que Deus não pudesse escolher entre duas ordenações indiferentes das partículas, 51 acaba por reduzir Deus e todas as coisas à fatalidade e necessidade. Na segunda destas passagens, Clarke resume o seu entendimento da suprema liberdade divina: "agir no mundo sobre cada coisa, da maneira que mais lhe agradar, [...] sem nada agir sobre ele". Assim, também se deve entender a famosa passagem do Domínio no Escólio Geral dos Principia, 52 tal como a rejeição da importância dos qualificativos metafísicos em prol da governação concreta em vários manuscritos.53 bien fait élever ses sujets, et les maintiendroit si bien dans leur capacité et bonne volonté par le soin qu'il auroit pris de leur subsistance, qu'il n'auroit point besoin de les redresser, seroit seulement un Roy de nom." 47 Clarke, Streitschriften..., 2ª réplica, § 11, G, VII, 362: "If God's conserving all Things, means his Actual Operation and Government in preserving and continuing the Beings, Powers, Orders, Dispositions and Motions of all things; this is all that is contended for. But if his conserving things, means no more than a King's creating such Subjects, as shall be able to act well enough without his intermeddling or ordering any thing amongst them ever after: This is making him indeed a real Creator, but a Governor only Nominal." 48 Clarke, op. cit, § 12, G, VII, 362: "The Argument in this Paragraph supposes, that whatsoever God does, is supernatural or miraculous; and consequently it tends to exclude all Operation of God, in the governing and ordering of the Natural World. [...] God is present of the World, not as a Part, but as a Governor; acting upon All things, himself acted upon by Nothing. He is not far from every one of us, for in Him we [and All things] live and move and have our Beings." 49 Clarke, op. cit, 4ª réplica, §§ 22-23, G, VII, 385-6. Ver ÍV. 6, nota 225. 50 Clarke, op. cit, § 32, G, VII, 386: "God's acting in the world upon every thing, after what manner he pleases, without any Union, and without being acted upon by any thing; shows plainly the difference between an Omnipresent Governor, and an imaginary Soul of the World." Nesta passagem, Clarke resume muito bem o seu entendimento da distinção entre um Governador e uma Alma do Mundo. 51 Clarke, op. cit, 5ª réplica, §§ 1-20, G, VII, 422: "To affirm therefore, that, supposing two different ways of placing certain particles of Matter were equally good and reasonable, God could neither wisely nor possibly place them in either of those ways, for want of a sufficient Weight to determine him which way he should chuse; is making God not an Active, but a Passive Being: Which is, not to be a God, or Governor, at all." 52 Newton, Philosophiæ naturalis..., L. III, Scholium Generale, OO, III, 171-2: "Nam Deus est vox relativa, & ad servos refertur: & deitas est dominatio Dei, non in corpus proprium, uti sentiunt quibus Deus est Anima mundi, sed in servos. [Parte transcrita em IV. 2, nota 55] Vox Deus passim significat Dominum: sed omnis Dominus non est Deus. Dominatio Entis spiritualis Deum constituit, vera verum, summa summum, ficta fictum." Já antes foi referida a subsequente importância dos qualificativos concretos e não abstratos. 53 Newton, "Yahuda MS. 21, fol. 1r.", RI, 21-2: "To celebrate God for his eternity, immensity, omnisciency, and omnipotence is indeed very pious and the duty of every creature to do it according to capacity, but yet this part of God's glory as it almost transcends the comprehension of man so it springs not from the freedom of God's will but the necessity of his nature ... the wisest of beings required of us to be celebrated not so much for his essence as for his actions, the creating, preserving, and governing of all things according to his good will and pleasure. The wisdom, power, goodness, and justice which he

202

Já foi visto que Leibniz considera a fatalidade de que é acusado por Clarke, a boa fatalidade, como sinónimo de Providência determinada pela maior Sabedoria, e que a fatalidade que se teria de evitar seria a fatalidade ou necessidade bruta, spinozista, sem sabedoria nem escolha. 54 Assim, insiste particularmente, como fez na Teodiceia, que Deus pode produzir tudo o que não implica contradição, mas quer apenas produzir o melhor.55 Mas, de facto, é difícil ignorar que, por exemplo, a exigência da criação do máximo de matéria parece determinada por um cálculo matemático, o que leva Gueroult, entre outros, a considerar que a decisão de Deus não passa do "resultado matematicamente necessário do cálculo de minimis et maximis." Conservar a distinção entre necessidade moral e bruta quando qualquer alternativa seria contraditória com a definição de Deus, "é uma argúcia que não tira nada à força da resposta dada por Bayle: «Deus não pôde fazer senão o que fez»."56 É, aliás, Leibniz que múltiplas vezes fornece exemplos matemáticos da completa determinação da decisão de Deus. No exemplo da Teodiceia da esfera indeterminada, já referido em IV. 7., na sequência, a criação do melhor dos mundos possíveis é equiparada a uma solução matemática completamente determinada.57 Aliás, as regras da sabedoria serão estranhas à matemática? E é Leibniz que considera que a vontade divina não é independente delas.58 Pode parecer um pouco estranho que Leibniz evite a imagem reiterada de Clarke do governador porque recorre quer na polémica, quer fora dela, à noção de governo e à imagem do rei ou do monarca. 59 A ideia de governo é, aliás, reforçada pela de um always exerts in his actions are his glory which he stands so much upon, and is so jealous of ... even to the least tittle." 54 Leibniz, op. cit, 3º escrito, § 8, G, VII, 365. Ver II. 4, nota 125. 55 Leibniz, op. cit, 5º escrito, § 76, G, VII, 409. Ver II. 4, nota 130. 56 Martial Gueroult, Leibniz, Dynamique et Métaphysique, Paris, Aubier – Montaigne, 1967 [LM], p. 183, nota: "La décision de Dieu n'exprime en effet que l'inéluctable préponderance de la plus grande quantité d'essence, et le monde crée, le résultat mathématiquement nécessaire du calcul de minimis et maximis. Conserver la distinction entre la necessité morale et la necessité brute sous prétexte que les possibles non réalisés ne sont pas rendus impossibles du fait de n'avoir pas été choisis, et que les possibles choisis continuent à apparaître comme n'étant pas les seuls possibles, c'est là une argutie qui n'ôte rien à la force de la réponse faite par Bayle : « Dieu n'a pu faire que ce qu'il a fait ». Sans doute Leibniz a répliqué que Bayle confond la possibilité d'une chose avec les causes qui doivent faire ou empêcher son existence, c'est-à-dire qu'il confond possible et actuel [...]. Mais Bayle aurait pu répondre qu'en qualifiant de choix la détermination inéluctable de la volonté divine, par égard à des possibles que cette volonté ne pouvait pas réaliser, Leibniz a commis une confusion encore plus grande : celle d'ériger en possible un choix non seulement inactuel, mais impossible. Un tel choix est en effet logiquement impossible, parce qu'il serait, médiatement ou immédiatement, contraditoire avec la définition de Dieu. A supposer, comme le dit Leibniz, qu'on n'ait point le droit d'altérer la notion des possibles par égard à l'impuissance de la volonté divine à les realiser, on n'a pas le droit non plus d'altérer la notion de la volonté de Dieu par égard à des possibles qui sont lettres morte pour elle. Leibniz n'a donc pu, d'aucune façon, briser le «fatum spinozanum»." 57 Leibniz, Essais de Théodicée, 2ª parte, § 196, G, VI, 232-3: "Ce seroit autre chose, si Dieu decernoit de tirer d'un point donné une ligne droite jusqu'à une autre ligne droite donnée, sans qu'il y eût aucune determination de l'angle, ny dans le decret, ny dans ses circonstances ; car en ce cas, la determination viendroit de la nature de la chose, la ligne seroit perpendiculaire, et l'angle seroit droit, puisqu'il n'y a que cela qui soit determiné, et qui se distingue. C'est ainsi qu'il faut concevoir la Creature du meilleur de tous les univers possibles, d'autant plus que Dieu ne decerne pas seulement de créer un univers, mais qu'il decerne encor de créer le meilleur de tous ; car il ne decerne point sans connoitre, et il ne fait point de decrets detachés, qui ne seroient que des volontés antecedentes, que nous avons assés expliquées et distinguées des veritables decrets." 58 Leibniz, op. cit, § 193, G, VI, 231: "la volonté de Dieu n'est point independante des regles de Sagesse"; o que advém das razões que precisa para se decidir: Leibniz, op. cit, § 189, G, VI, 229: "il faut qu'il y ait une raison qui ait fait preferer l'ordre et le regulier, et cette raison ne peut être trouvée que dans l'entendement." 59 Leibniz, Nouveaux essais..., Livre II, Chap. XXVII, G, V, 223: "rien ne se neglige dans le monde, par

203

Estado a que pertencem todos os espíritos.60 Será fácil lembrar, por exemplo, o final da Monadologia onde o governo perfeito de Deus garante a justiça moral final no Estado dos que se fiaram na Providência e constituíram, assim, a cidade divina.61 Aí Deus é designado Monarca, Legislador, Mestre, mas estas designações e o seu governo são referidas à ordem das causas finais, à ordem da justiça moral, à ordem do Estado dos espíritos. Quando se refere à máquina do universo, Leibniz prefere o termo Arquiteto.62 É verdade que Leibniz procura não conceder prioridade a qualquer uma das ordens, como acontece quando se questiona, na Teodiceia, se Deus terá criado o mundo para manifestar os seus atributos em toda a sua glória através do "grande projeto da criação e da providência", ou para julgar o mérito ou demérito dos "movimentos voluntários das substâncias inteligentes". Acaba por considerar que um arquiteto ou um sábio "não poderia separar o fim dos meios" nos seus projetos, o que, apesar de tentar evitar maior clareza, parece acabar por inclinar Leibniz mais para o fim metafísico (a glória divina) do que para o moral (o juízo final),63 mas isto porque o fim metafísico parece incluir quer a natureza, quer a graça. Como um Criador perfeito pode ter uma adição da sua glória através de criaturas imperfeitas, mesmo que no todo possam atingir uma maior perfeição, é algo dificilmente compreensível. 64 Mas, deixando essa questão em suspenso, apesar do acordo, da harmonia das duas ordens, Leibniz, até na polémica, insiste em que não se deve confundir a ordem da graça com a ordem da natureza.65 O termo Governador, sobretudo porque aplicado à regulação dos processos naturais, devia parecer a Leibniz demasiado próximo da figura do caseiro ou gestor (menager) que, apesar do rebaixamento social em relação ao governador, para que não haja confusões, atribui, como já se referiu, à Natureza.66 A conceção de Leibniz da Providência é a da predeterminação em que tudo está

rapport même à la morale, parceque Dieu en est le Monarque dont le gouvernement est parfait." 60 Leibniz, op. cit., Livre IV, Chap. III, G, V, 223: "les Esprits forment tous ensemble une espece d'Estat sous Dieu, dont le gouvernement est parfait". 61 Leibniz, La Monadologie, §§ 86-90, G, VI, 621-3. 62 Leibniz, op. cit., § 87, G, VI, 622: "nous devons remarquer icy encor une autre harmonie entre le regne physique de la Nature et le Regne Moral de la Grace, c'est à dire entre Dieu, consideré comme Architecte de la Machine de l'univers, et Dieu consideré comme Monarque de la Cité divine des Esprits." A mesma distinção em Leibniz, op. cit., Principes..., § 15, G, VI, 605. 63 Leibniz, Essais de Théodicée, 1ª parte, § 78, G, VI, 144: "quel a été le but principal de Dieu en faisant ses decrets par rapport à l'homme ? S'il les a fait uniquement pour etablir sa gloire, en manifestant ses attributs, et en formant, pour y parvenir, le grand projet de la creation et de la providence ; ou s'il a eu egard plustost aux mouvemens volontaires des substances intelligentes, qu'il avoit dessein de créer, en considerant ce qu'elles voudroient et feroient dans les differentes circonstances et situations, où il les pourroit mettre, afin de prendre une resolution convenable là dessus. [...] Dieu formant le dessein de créer le monde, s'est proposé uniquement de manifester et de communiquer ses perfections de la maniere la plus efficace et la plus digne de sa grandeur, de sa sagesse et de sa bonté. Mais cela même l'a engagé à considerer toutes les actions des creatures encor dans l'état de pure possibilité, pour former le projet plus convenable. Il est comme un grand Architecte, qui se propose pour but la satisfaction ou la gloire d'avoir bâti un beau palais, et qui considere tout ce qui doit entrer dans ce batiment : la forme et les materiaux, la place, la situation, les moyens, les ouvriers, la depense, avant qu'il prenne une entiere resolution. Car un Sage en formant ses projets ne sauroit detacher la fin des moyens ; il ne se propose point de fin, sans savoir s'il y a des moyens d'y parvenir." Aliás, Leibniz faz questão de sublinhar que, como tudo está ligado no grande desígnio divino, não faz sentido pensar que um homem seja mais importante que toda uma ordem natural: Leibniz, op. cit, 2ª parte, § 118, G, VI, 168-9. 64 Leibniz, op. cit, § 165, G, VI, 144: "l'imperfection dans les creatures detachées luy tourne en perfection par rapport au tout, et qu'elle est un surcroit de gloire pour le Createur." 65 Faz parte, aliás, da acusação inicial aqui analisada: Leibniz, Streitschriften..., 1º escrito, § 4, G, VII, 352. 66 Leibniz, Nouveaux essais..., Livre III, Chap. VI, § 32, G, V, 303.

204

ligado segundo regras,67 num universo todo de uma peça como um oceano, em que nada pode ser mudado.68 A própria harmonia pré-estabelecida faz com que, por muito que decidam livremente, o resultado das ações dos seres conscientes seja equiparável ao das de um autómato.69 A variedade existente no mundo, como já foi visto em II. 3., decorre também da sabedoria divina. 70 Nisso, aliás, Clarke mostra-se perfeitamente concordante,71 tal como já se viu que concorda com o princípio do melhor.72 Aliás, a julgar por esta secção, nomeadamente pela crítica leibniziana, poder-se-ia pensar que os newtonianos defenderiam um Deus que nada predeterminou, como que navegando à vista das vicissitudes da história. Quer em Clarke, quer em Newton, são constantes os argumentos de ordenação e de desígnio divinos.73 Assim, também Leibniz vê o desígnio divino mais perfeito nos corpos orgânicos, visto não ser possível uma visão completa do todo universal.74 Vendo estas semelhanças, poder-se-á pensar que, neste como noutros casos, as diferenças são menores e mais aparentes do que reais. Ora, não é de todo 67

Leibniz, op. cit., Livre IV, Chap. III, §§ 1-6, G, V, 303: "en attribuer l'origine au bon plaisir de Dieu, c'est ce qui ne paroist pas trop convenable à celuy qui est la supreme raison, chez qui tout est reglé, tout est lié. Ce bon plaisir ne seroit pas même bon, ny plaisir, s'il n'y avoit un parallelisme perpetuel entre la puissance et la sagesse de Dieu." 68 Leibniz, Essais de Théodicée, 1ª parte, § 9, G, VI, 107-8. Ver II.5, nota 168. 69 Após se ter referido à harmonia entre os corpos e as almas, e referindo favoravelmente um exemplo de Jacquelot, Leibniz, op. cit, § 63, G, VI, 137: "c'est comme si celuy qui sait tout ce que j'ordonneray à un valet le lendemain tout le long du jour, faisoit un automate qui rassemblât parfaitement à ce valet, et qui executât demain à point nommé tout ce que j'ordonnerois ; ce qui ne m'empêcheroit pas d'ordonner librement tout ce qui me plairoit, quoyque l'action de l'automate qui me serviroit, ne tiendroit rien du libre." 70 Leibniz, op. cit., 2ª parte, § 124, G, VI, 179. Ver II. 3, nota 115. 71 Clarke, DA, 78-9: "it being necessary to the order and beauty of the whole and for displaying the infinite wisdom of the creator that there should be different and various degrees of creatures whereof consequently some must be less perfect than others, hence there arises a possibility of evil, notwithstanding that the creator is infinitely good." A explicação do mal através do princípio do melhor ainda o aproxima mais de Leibniz, apesar de já constar da ed. de 1705: "And this arises wholly from the abuse of liberty which God gave to his cretures for other purposes, and which it was reasonable and fit to give them for the perfection and order of the whole creation." 72 Clarke, DA, 87. Ver II. 3. a partir da ed. original, nota 98. 73 Veja-se, a título de exemplo, toda a sequência de questões que encerra a Query 28 que abrange, sob a tutela do desígnio divino, desde a ordem cósmica à composição orgânica, desde a organização sensível à determinação motora: Newton, Optics, Qu. 28, OO, IV, 237-8. Parcialmente transcrito em IV. 1, nota 25. 74 Leibniz, op. cit., § 134, G, VI, 188: "Il est vrai que nous en avons déja des preuves et des essais devant nos yeux, lorsque nous voyons quelque chose d'entier, quelque Tout accompli en soy, et isolé, pour ainsi dire, parmy les ouvrages de Dieu. Un tel Tout, formé, pour ainsi dire, de la main de Dieu, est une plante, un animal, un homme. Nous ne saurions assés admirer la beauté et l'artifice de sa struture. Mais lorsque nous voyons quelque os cassé, quelque morceau de chair des animaux, quelque brin d'une plante, il n'y paroit que du desordre, à moins qu'un excellent Anatomiste ne le regarde : et celuy là même n'y reconnoitroit rien, s'il n'avoit vu auparavant des morceaux semblables attachés à leur tout. Il en est de même du gouvernement de Dieu : ce que nous en pouvons voir jusqu'icy, n'est pas un assés gros morceau, pour y reconnoitre la beauté et l'ordre du tout." O mesmo tipo de argumentação pode-se ver, aqui e ali, em Clarke. E. g., numa argumentação muito semelhante à leibniziana, chama a atenção para o facto de, perante um mecanismo humano, qualquer "olhadela" numa das suas peças chegaria para o identificar como tal, mas isso não nos permitiria perceber o que tal mecanismo faria, ou seja, qual a sua finalidade: Clarke, DC, 112: "For as in a great Machine, contrived by the Skill of a consummate Artificer, fitted up and adjusted with all conceivable Accuracy for some very difficult and deep-projected Design, and polished and fine-wrought in every Part of it with admirable Niceness and Dexterity; any Man, who saw and examined one or two Wheels thereof, could not fail to observe, in those single Parts of it, the admirable Art and exact Skill of the Work-man; and yet the Excellency of the End or Use for which the Whole was contrived he would not at all be able, even though he was himself also a skilful Artificer, to discover and comprehend, without seeing the Whole fitted up and put together". Da mesma forma, pode-se perceber que a Natureza foi feita pelo Criador e não compreender o fim moral para o qual foi feita.

205

assim. Em primeiro lugar, não é assim, segundo Leibniz, devido à ligação inextricável, espácio-temporal, entre o criado, sem a qual não haveria sequer ligação entre os espíritos.75 A ordem física é assim requerida como uma ordem de entre-expressão dos espíritos 76 e, em geral, das mónadas que só é possível por tudo estar ligado inextricavelmente "dentro" de cada mónada, tornando impossível qualquer variação ao plano original. Em cada das infinitas mónadas, está presente toda a harmonia, entendida como o que une os tempos, os lugares, as almas com os corpos e as substâncias com os fenómenos materiais que permitem a ligação entre as próprias substâncias.77 Como seria possível a mínima alteração ao decreto original, mesmo que fizesse sentido Deus fazer correções ou alterações na sua obra? Em segundo lugar, pelo lado de Clarke, não é assim porque apesar de toda a previsão e providência divina, toda a série de mudanças que ocorre no mundo não é pensada como sendo inerente às entidades que pertencem a este mundo, quer por serem passivas no caso dos corpos, quer por serem muito limitadas no seu poder no caso das almas, sendo sempre dependente da intervenção divina. No final da polémica com Collins a propósito da imaterialidade e imortalidade da alma, Clarke, ao caracterizar o Deus de Collins como um Deus sem Poder para querer ou fazer seja o que for, por antítese, acaba por fornecer a sua caracterização de Deus e da sua atuação no mundo: Deus pensa de forma sucessiva, ou seja, temporal, e diversificada; o que significa que varia a sua vontade, diversifica as suas obras, age sucessivamente, assim governando o Mundo.78 É preciso não esquecer que Clarke e, em geral, os newtonianos, incluindo o próprio Newton, não são apenas homens de fé, mas também defensores de uma interpretação o mais literal possível das Escrituras, sem o que entendem ser distorções metafísicas, escolásticas, entusiásticas ou idólatras, assim como adições ao longo da história.79 Mesmo que, seguindo as tendências do tempo, evoquem a religião natural, 75

Como já foi visto em II. 4: Leibniz, op. cit., § 120, G, VI, 172-3: À ordem dos tempos e dos lugares, acrescenta Leibniz: "Cet ordre demande la matiere, le mouvement et ses loix ; en les reglant avec les esprits le mieux qu'il est possible, on reviendra à nostre monde." 76 Leibniz, op. cit., § 124, G, VI, 179: "Que feroit une Creature intelligente, s'il n'y avoit point de choses non intelligentes ? à quoy penseroit elle, s'il n'y avoit ny mouvement, ny matiere, ny sens ? [...] Aussitost qu'il y a un melange de pensées confuses, voilá les sens, voilá la matiere. Car ses pensées confuses viennent du rapport de toutes les choses entre elles suivant la durée et l'etendue. C'est ce qui fait que dans ma Philosophie il n'y a point de Creature raisonnable sans quelque corps organique, et qu'il n'y a point d'esprit creé qui soit entierement detaché de la matiere. Mais ces corps organiques ne different pas moins en perfection, que les esprits à qui ils appartiennent. Donc puisqu'il faut à la sagesse de Dieu un monde de corps, un monde de substances capables de perception et incapables de raison ; enfin puisqu'il falloit choisir de toutes les choses possibles, ce qui faisoit le meilleur effect ensemble, et que le vice y est entré par cette porte : Dieu n'auroit pas eté parfaitement bon, parfaitement sage, s'il l'avoit exclu." 77 Leibniz, op. cit., Préface, G, VI, 44: "c'est cette Harmonie qui fait encor la liaison, tant de l'avenir avec le passé, que du present avec ce qui est absent. La premiere espece de liaison unit les temps, et l'autre les lieux. Cette seconde liaison se montre dans l'union de l'ame avec le corps, et generalement dans le commerce des veritables substances entr'elles et avec les phenomènes materiels. Mais la premiere a lieu dans la preformation des corps organiques, ou plutôt de tous les corps, puisqu'il y a de l'organisme partout, quoyque toutes les masses ne composent point des corps organiques." 78 Clarke, LD, "A Fourth Defence of an Argument...", 411: "Nor is it a less wonderful Expression, when you affirm that Thinking, in God, cannot be sucessive, nor have any Modes or distinct Acts of Thinking; but that it is one numerical individual Act, fixt, and permanent, and unvariable, and without Succession, &c. That is to say; that God cannot vary his will, nor diversify his Works, nor act successively, nor govern the World, nor indeed have any Power to will or do any thing at all. I do not charge you with Consequences; but I affirm they are too plain Consequences of what you profess." 79 Estas aversões newtonianas são longamente expostas em Manuel, RI; as mesmas aversões e a mesma religião "escritural" surgem em diversos newtonianos, nomeadamente Clarke, como se pode ver em J. P. Ferguson, op. cit.; a sua defesa de uma abordagem o mais literal possível das Escrituras está exposta na

206

mesmo que defendam a racionalidade da religião revelada, parecendo, assim, defender o mesmo que Leibniz, 80 é muito mais notória a ligação dos newtonianos ao Deus da revelação, da fé e da história.81 Este último aspeto deve ser tido em consideração numa das mais estranhas respostas da polémica, relativa à tese leibniziana, tratada em II. 5., da criação contínua das perfeições das criaturas,82 variante da tese cartesiana que rejeita a descontinuidade, mantendo, continuamente, as substâncias e suas naturezas na existência. Ora, Clarke evoca o dia de descanso (da criação divina) para rejeitar a tese da criação, conservação ou produção contínuas.83 Na verdade, este remoque faz Leibniz esclarecer melhor esta produção, como o havia feito na Teodiceia, distinguindo a sua posição de mera conservação contínua das substâncias, da posição cartesiana.84 Mas mesmo esta precisão não altera a rejeição clarkiana que, na derradeira missiva, considera que a tese é uma mera ficção escolástica sem qualquer prova. 85 Que se pode considerar que a tese da criação contínua tem antecedentes tomistas,86 não há grande dúvida. Que seja, por isso, tratada como uma ficção, tendo em conta a já referida aversão à escolástica e ao tratamento metafísico de assuntos teológicos, também não surpreende. Mas é difícil não questionar que tipo de prova Clarke exige porque, tendo sido evocada a Sagrada Escritura, à luz do seu primado sobre qualquer argumentação metafísica, é possível que esteja a pensar no equivalente à prova empírica em termos teológicos, ou seja, os factos registados no outro livro dado ao homem por Deus que não a Natureza, a Bíblia. Independentemente de qual seja a prova exigida, até podendo estar a pensar numa prova dedutiva como a da sua conferência de 1704, é importante reter a imagem que se extrai desta rejeição, considerada em conjunto com as teses afirmadas. Assim, seguindo a afirmação bíblica do descanso divino da criação, toda a criação terá ficado encerrada na origem. Porém, longe disso significar o fim dos trabalhos divinos, Clarke considera a sua intervenção constante e variada, não apenas no domínio da graça, mas também no da natureza. A ideia de governação é constantemente reafirmada, dependendo da intervenção de Deus no tempo a boa gestão da criação. Seguindo Newton, os homens devem ser vistos como servos que se devem orientar pelas ordens de Deus. O mundo criado é visto, de facto, como a casa de Deus que ele gere segundo desígnios que nos são desconhecidos mas que, como servos, temos de respeitar sem questionar. É possível, de acordo com a inspiração newtoniana, que a principal razão da rejeição da criação contínua se devesse a exatamente trocar a presença variável e histórica de Deus introdução de Clarke, ST, i-xxxi. 80 Veja-se todo o "Discurso" na Leibniz, op. cit., Discours..., G, VI, 49-101; a título de exemplo, no § 39, G, VII, 73, Leibniz admite que, se as objeções racionais contra um suposto artigo de fé forem insuperáveis, se deverá considerar tal artigo como falso e não revelado, não por causa do teor das Escrituras, mas apenas do outro dom de Deus que é a razão. 81 Estas questões são desenvolvidas na secção VI. 9. 82 Leibniz, Streitschriften..., 2º escrito, § 5, G, VII, 357; 4º escrito, § 30, G, VII, 375; 5º escrito, §§ 85-86, G, VII, 410-1; § 88, G, VII, 411. Transcrições em II. 5, nota 171. 83 Clarke, Streitschriften..., 4ª réplica, § 30, G, VII, 386: "God discerns things, by being present to and in the Substances of the Things themselves. Not by producing them continually; (For he rests now from his work of Creation;) but by being continually omnipresent to every thing which he created at the Beginning." 84 Leibniz, op. cit., 5º escrito, § 88, G, VII, 411; cf. Leibniz, Essais de Théodicée, 3ª parte, §§ 383-391, VI, 342-7. 85 Clarke, op. cit, 5ª réplica, § 83-91, G, VII, 432: "That God perceives and knows all Things, not by being Present to them, but by continually producing them anew; is a mere Fiction of the Schoolmen, without any Proof." 86 Thomas Aquinas, trad. ingl. Fathers of the English Dominican Province, The Summa Theologica, New York, Benziger Bros., 1947; Repub. Catholic Way Publishing, 2014, 1st. part, Qu. 104, art. 1, Reply obj. 4, p. 2133.

207

como Senhor, por uma estrita dependência modal sempre igual de todo o existente conforme à imutabilidade metafísica de Deus. Mais do que por palavras explícitas, isto mostra o primado newtoniano do Deus da fé sobre o Deus da razão, muito embora se possa dizer, como em grande parte das tradições dogmáticas, que esse Deus da fé é o verdadeiro Deus da razão. 3. Milenarismo e progresso A temática desta secção já foi suficientemente abordada no final da 4ª parte, mais precisamente no final de IV. 10. Aí se viu que Leibniz parece admitir, na própria polémica, a possibilidade de um progresso indeterminado das criaturas,87 assim como a possibilidade do melhor mundo possível se realizar no tempo, progredindo o universo sempre de melhor para melhor. 88 Para lá das passagens aí referidas, existem muitas outras que assim podem ser interpretadas.89 Pelo contrário, Clarke admite, por diversas vezes, na polémica,90 a possibilidade de um desígnio desconhecido de Deus que leve a que o quadro atual do mundo caia em confusão e requeira ou emenda e alteração, talvez irrealizável por mecanismo, ou que lhe seja dada uma forma completamente nova, incluindo outros tipos de coisas. Compara o quadro do mundo com o quadro do corpo humano, ambos destinados não a serem eternos, mas a cumprirem o desígnio divino. Chega mesmo, aliás, a referir-se à destruição do mundo. 91 Embora se tenha tomado como referência da discussão a passagem da Ótica em que Newton afirma a possibilidade de reforma do sistema solar,92 o diferendo mais profundo advém da tese da diminuição das forças ativas,93 entretanto discutida em VI. 1., considerada resultante do caráter passivo, inerte e dependente da matéria, o que remete para a discussão geral acerca do conceito de força. Porém, a forma como se viu Clarke a descrever a atuação de Deus no mundo, na secção anterior, reforçou consideravelmente a divergência em relação a Leibniz no que se refere à noção de Providência. O próprio entendimento de Newton da Divina Providência estava inextricavelmente ligado às suas manifestações históricas e proféticas, ia revelando o seu desígnio através das Revelações, muito embora só compreensíveis post facto (talvez com exceção dos "fim dos tempos"),94 e não através de qualquer abstração metafísica. 95 Até que ponto a sua conceção era 87

Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 74, G, VII, 408. Leibniz, Essais de Théodicée, 2ª parte, § 202, G, VI, 237. 89 E. g., Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. IX, § 14, G, V, 127: "rien n'est inutile dans la nature, toute confusion se doit developper, [...] il ne faut point juger de l'eternité par quelques années." 90 Clarke, op. cit., 2ª réplica, § 8, G, VII, 361; 4ª réplica, § 15, G, VII, 384-5; 5ª réplica, § 103, G, VII, 435. 91 Clarke, op. cit., 4ª réplica, § 15, G, VII, 385. 92 Newton, op. cit., OO, IV, 261-2. 93 Clarke, op. cit, 3ª réplica, §§ 13-14, G, VII, 370; 4ª réplica, § 39, G, VII, 387; 5ª réplica, §§ 99-102, G, VII, 433-4. 94 É bem conhecida a passagem das Observações: Newton, Observations upon the Prophecies of Holy Writ; particularly the Prophecies of Daniel and the Apocalypse of St. John, OO, V, 449: "The folly of interpreters hath been, to foretell times and things by this prophecy, as if God designed to make them prophets. By this rashness they have not only exposed themselves, but brought the prophecy also into contempt. The design of God was much otherwise. He gave this, and the prophecies of the Old Testament, not to gratify mens' curiosities by enabling them to foreknow things; but that, after they were fulfilled, they might be interpreted by the event, and his own Providence, not the interpreters, be then manifested thereby to the world. For the event of things, predicted many ages before, will then be a convincing argument that the world is governed by Providence." Porém, parece admitir, logo a seguir, uma função bem mais efetiva da profecia no caso da segunda vinda de Cristo. 95 Manuel, RI, 78: "While Leibniz and his cohorts were plaguing Newton for having posited a universe that was not perfect in itself and required God's intervention from time to time, Newton glorified those very interventions as the supreme acts of God's providential will. God had constantly intervened in the 88

208

tributária do Deus volúvel do povo e da religião institucional 96 ou supunha uma imutabilidade que apenas diversificava os seus efeitos ao longo da história, é difícil de dizer. É evidente que as suas crenças o distanciaram das crenças oficiais desde o início dos anos 70, mas, se bem que se considerem os seus motivos racionais,97 a verdade é que as suas conclusões parecem ter resultado, sobretudo, da exegese bíblica e de outros estudos históricos (por muito que lhes tenha aplicado métodos que pretendia análogos aos científicos), e não de uma especulação estritamente filosófica ou teológica. Como já foi referido, a crença de Newton num Fim do Mundo mais ou menos próximo estava nele fixada desde a juventude, apenas tendendo a ficar mais indeterminada quanto a uma datação à medida que amadurecia. A esta crença no Fim deste Mundo estava associada a crença de que se vivia no reino do Anticristo.98 Nada disto era pouco habitual na época, dedicando-se grande parte dos círculos com que Newton contactou à interpretação de profecias e dos sinais apocalípticos, seja entre os intelectuais da geração de Boyle, seja entre os da geração de Newton, seja entre os da geração de Whiston ou Bentley, seja entre os da geração de Clarke. O próprio Clarke rejeita como irracional que o único desígnio da criação de seres racionais seja uma sucessão eterna de gerações. Pior ainda é tal ser o único desígnio, no estado corrupto, confuso e degenerado em que o presente mundo se encontra. Considera, pois, necessário que acabe por haver "uma Revolução e Renovação das coisas" que corrija as injustiças e forneça, enfim, o sentido global do "Esquema da Providência". 99 Mesmo não history of the physical world: in creating it through a subordinate spiritual agent who was probably Jesus in one of His many manifestations, and in creating it in one way rather than in another; in preserving and sustaining the world and in directing comets one way rather than another. And He would possibly do other things to the physical world, perhaps burn it and start life over again on some other planet, perhaps leave a remnant and renew life on the same planet. God had also intervened continually in the history of mankind, restoring true religion after successive lapses among both Jews and Christians. The whole creation and all of history were interventions. For Newton intervention did not imply physical or historical chaos. There were underlying operational designs in the world that could be defined as the history of the motions of the planets, which displayed a marvellous orderliness, and the history of the revolutions of empires and churches, which had a similarly simple pattern". 96 A título de exemplo arbitrário, até mesmo as autoridades universitárias anunciaram a peste de 65 como algo que tinha agradado a Deus trazer a Cambridge: Westfall, NR, 141. Da mesma forma, o irmão de Leibniz interpretava a peste que atingiu Leipzig em 1680 como punição divina: cf. Antognazza, IB, 28, referindo-se a uma carta de 7 de Setembro de 1680. 97 Westfall, NW, 360: "Newton questioned orthodox theology and rejected some of its teachings that he found contrary to reason." 98 Manuel, RI, 99-100. 99 Clarke, DC, 110: "'Tis therefore absolutely impossible, that the whole View and Intention, the Original, and the final Design of God's creating such rational Beings as Men are, indued with such noble Faculties, and so necessarily conscious of the eternal and unchangeable Differences of Good and Evil: 'Tis absolutely impossible (I say) that the whole Design of an infinitely Wise, and Just, and Good God, in all this, should be nothing more than to keep up eternally a Succession of new Generations of Men, and those in such a corrupt, confused, and disorderly State of Things, as we see the present World is in, without any due and regular Observation of the eternal Rules of Good and Evil, without any clear and remarkable Effect of the great and most necessary Differences oſ Things, without any sufficient Discrimination of Virtue and Vice by their proper and respective Fruits, and without any final Vindication of the Honour and Laws of God, in the proportionable Reward of the Best, or Punishment of the Worst of Men. And consequently 'tis certain and necessary, (even as certain as the moral Attributes of God before demonstrated) that, instead of the continuing an eternal Succession of new Generations in the present Form and State of Things, there must at some Time or other be such a Revolution and Renovation of Things, such a Future State of Existence of the same Persons, as that, by an exact Distribution of Rewards and Punishments therein, all the present Disorders and Inequalities may be set right, and that the whole Scheme of Providence, which to Us who judge of it by only one small Portion of it, seems now so inexplicable and much confused, may appear at its Consummation, to be a Design worthy of infinite Wisdom, Justice and Goodness. Without this, All comes to Nothing."

209

considerando os atributos morais de Deus, considera que seria absurdo ter criado seres racionais para viver na "maior confusão e desordem durante muito poucos anos e, então, perecer eternamente no nada."100 Esta crença no fim desta ordem do mundo ou mesmo deste mundo cruza-se com a crença num papel muito especial da revolução newtoniana, como anúncio e preparação da revelação final, pelo menos através do paralelo traçado entre as duas. 101 Como é evidente na importância dada por Newton aos estudos proféticos, não é de excluir que o círculo newtoniano julgasse poder desempenhar um papel decisivo também nesta segunda revelação, quer pela sua filosofia natural,102 quer pela sua interpretação profética.103 Mesmo que Clarke não partilhasse a crença apocalíptica de que já se estaria a viver no reino do Anticristo, não parece haver dúvida que partilhava com Newton uma visão extremamente negativa da sua época. 104 Esta corrupção e degeneração era claramente atribuída à maior parte da Humanidade e reconhecia-se que os virtuosos eram, muitas vezes, perseguidos exatamente por ser reconhecida a sua bondade. 105 100

Clarke, DC, 111: "it would [...] appear infinitely improbable, that God should have created such Beings as Men are, and indued them with such excellent Faculties, and placed them on this Globe of Earth, as the only Inhabitants for whose Sake this Part at least of the Creation is manifestly fitted up and accommodated; and all this without any further Design, than only for the Maintaining a perpetual Succession of such shortlived Generations of Mortals as we at present are; to live in the utmost Confusion and Disorder for a very few Years, and then Perish eternally into Nothing. What can be imagined more vain and empty? what more absurd? what more void of all Marks of Wisdom, than the Fabric of the World, and the Creation of Mankind upon this Supposition?" 101 Clarke, DC, 113: "But 'tis exceedingly reasonable to believe, that as the Great Discoveries, which, by the Diligence and Sagacity of later Ages, have been made in Astronomy and Natural Philosophy, have opened surprising Scenes of the Power and Wisdom of the Creator, beyond what Men could possibly have conceived or imagined in Former Times: So, at the Unfolding of the Whole Scheme of Providence in the Conclusion of this present State, Men will be surprised with the amazing Manifestations of Justice and Goodness, which will then appear to have run through the whole Series of God's Government of the Moral World." 102 James Force, por exemplo, evidencia como a filosofia natural newtoniana é equiparada, pelo menos, à Escritura na determinação da verdade da tradição, como se fora algo análogo a um derradeiro testamento: Force, EC, 50: "both Newtonian natural philosophy and Christian scripture together become the criterion by which to judge of the truth and validity of "Ancient Tradition"." De facto, tendo em conta as corrupções possíveis ou verificadas da Bíblia, a filosofia natural torna-se, para os newtonianos, o derradeiro critério, visto tutelar a própria aferição das Escrituras (não das originais, mas sim das eventualmente corrompidas). 103 Tomando como referência o Final dos tempos em que "o conhecimento aumentará" (Daniel, 12, 4), as próprias descobertas newtonianas surgiam como um sinal desse Final dos tempos. Mas Newton adicionava a essas descobertas as descobertas da interpretação profética, que assim surgiam como um sinal provável que o Dia do Juízo se aproximava: Newton, OO, V, 448: "if the last age, the age of opening these things, be now aproaching, as by the great successes of late interpreters it seems to be, we have more encouragement than ever to look into these things." 104 Clarke, DC, 102: "through some great and general Corruption and Depravation, (whencesoever That may have arisen) the Condition of Men in this present State is such, that the natural Order of Things in this World is in Event manifestly perverted, and Virtue and Goodness are visibly prevented in great Measure from obtaining their proper and due Effects in establishing Mens Happiness proportionable to their Behaviour and Practice". ibidem, p. 104: "Neglect of God and Insensibleness of our Relation and Duty towards him; Abuse and unnatural Misapplication of the Powers and Faculties of our Minds; Inordinate Appetites and unbridled and furious Passions; necessarily fill the Mind with Confusion, Trouble, and Vexation. And Intemperance naturally brings Weakness, Pains, and Sicknesses, into the Body. And mutual Injustice and Iniquity; Fraud, Violence, and Oppression; Wars and Desolations; Murders, Rapine, and all kinds of Cruelty; are sufficiently plain Causes of the Miseries and Calamities of Men in Society." 105 Clarke, DC, 106: "the Vices of a great Part of Mankind do so far prevail against Nature and Reason, as frequently to oppress the Virtue of the Best, and not only hinder them from enjoying those public Benefits, which would naturally and regularly be the Consequences of their Virtue, but oft-times bring

210

Porém, tenta mostrar a necessidade da Revelação pela incapacidade mostrada pelos filósofos pagãos de promover uma reforma da Humanidade, 106 apesar de 1700 anos após Cristo continuar a dar o retrato de degradação da Humanidade que acaba por justificar um Juízo Final e uma Revolução da própria ordem do mundo. Apercebendo--se, porventura, da contradição, acaba por defender, sem que se perceba com que fundamento empírico, que, apesar de toda a corrupção atual, haveria muitos mais homens virtuosos então do que no tempo dos filósofos pagãos.107 Em geral, tal não afasta a caracterização da época, pelo menos por comparação com os tempos primitivos do Cristianismo. Naturalmente, Leibniz, como cristão assumido, tinha que conformar as crenças cristãs (ao menos, as luteranas, muito embora os seus esforços irénicos tentassem uma constante conciliação das diversas confissões) com as suas teses filosóficas, incluindo as crenças num Juízo Final e no fim do mundo conhecido. Porém, já foi analisada em IV. 10. a tendência leibniziana favorável à ideia de um progresso indeterminado do mundo e da própria humanidade. Todos os seus esforços políticos, ao longo de boa parte da sua vida, de superação da intolerância religiosa, de promoção de academias por toda a parte, de garantir a paz pelo menos na Europa e, em especial, na Alemanha, mostram um mesmo empenho no seu tempo que expressam a esperança de que as coisas possam melhorar de forma sustentada. Nota-se, aliás, em contraposição aos newtonianos, mais preocupados em salvaguardar a sua fé e preparar-se para o fim deste mundo, uma nítida inclinação para uma filosofia da história. Mesmo quando projeta o temor de uma grande revolução na Europa, promovida pelos libertinos, "libertos do importuno temor de uma providência vigilante e de um futuro ameaçador", dando "rédea solta às suas paixões brutais", dispostos "a lançar o fogo aos quatro cantos da terra", sintomaticamente contrastados com os sentimentos generosos dos antigos Gregos e Romanos, considerados positivamente em conjunto e não por referência a alguns filósofos isolados,108 acaba por confiar que tudo acabará por ir para o melhor, quanto upon them the greatest temporal Calamities, even for the Sake of that very Virtue. For 'tis but too well known, that Good Men are very often afflicted and impoverished, and made a Prey to the Covetousness and Ambition of the Wicked, and sometimes most cruelly and maliciously persecuted, even upon Account of their Goodness itself." 106 Clarke, DC, 177-8: "The wisest of the Philosophers were so far sensible of the great Corruption and Depravity of Human Nature in its present State; they were sensible that such was the Carelessness, Stupidity, and Want of Attention, of the greater Part of Mankind; so many the early Prejudices and false Notions taken in by evil Education; so strong and violent the unreasonable Lusts, Appetites and Desires of Sense; and so great the Blindness, introduced by superstitious Opinions, vicious Customs, and debauched Practices through the World; that (as has been before shewn) they themselves openly confessed, they had very little Hope of ever being able to reform Mankind with any considerable great and universal Success, by the bare Force of Philosophy and right Reason; but that, to produce so great a Change, and inable Men effectally to conquer all their corrupt Affections, there was Need of some supernatural and divine Assistance, or the immediate Interposition of God himself." 107 Clarke, DC, 178: "even at this Day, notwithstanding all the Corruptions introduced among Christians, I think it can hardly be denied by any Unbelievers of Revelation, but that there are among us many more Persons of all Conditions, who worship God in Sincerity, and Simplicity of Heart, and live in the constant Practice of all Righteousness, Holiness, and true Virtue, than ever were found in any of the most civilized Nations, and most improved by Philosophy in the heathen World." 108 Leibniz, NE, 330-1; Leibniz, Nouveaux essais..., Livre IV, Chap. XVI, § 4, G, V, 444: Aqueles "qui se croyant dechargés de l'importune crainte d'une providence surveillante et d'un avenir menaçant, lachent la bride à leur passions brutales, et tournent leur esprit à seduire et a corrompre les autres ; et s'ils sont ambitieux et d'un naturel un peu dur, ils seront capables pour leur plaisir ou avancement de mettre le feu aux quatre coins de la terre, comme j'en ay connu de cette trempe que la mort a enlevés. Je trouve même que des opinions approchantes s'insinuant peu à peu dans l'esprit des hommes du grand monde, qui reglent les autres, et dont dependent les affaires, et se glissant dans les livres à la mode, disposent toutes choses à la revolution generale dont l'Europe est menacée, et achèvent de detruire ce qui reste encor dans

211

mais não seja através da própria revolução que acabará por devorar os seus promotores.109 Sobretudo, o que é notório, e bem diferente dos newtonianos, é que esta expetativa de melhoria é pensada no âmbito da história humana e não como resultado de qualquer intervenção divina extraordinária, qualquer alteração radical da ordem natural do mundo. Mesmo quando passa para um domínio mais cósmico, muito embora relativo aos espíritos humanos, o da suposição da repetição nos anos platónicos, 110 Leibniz procura sempre integrar numa configuração geral de progresso, seja a de uma espiral ascendente, seja a do cicloide primário, os períodos platónicos, parecendo integrar a própria conceção milenarista da ressurreição dos corpos como um momento transitório desses períodos.111 De facto, o milenarismo integra-se, em Leibniz, numa conceção de aperfeiçoamento infinito que nunca terá qualquer momento ou estado final. Mas, se se procurar um domínio comum de consideração da destinação humana, a soteriologia, muito embora este seja um assunto que excede claramente o âmbito da polémica, também são apreciáveis as diferenças e, além disso, concordantes com as diferenças anteriores, nomeadamente em relação à liberdade. Contrariamente à predeterminação, Leibniz tem dificuldade em falar da predestinação, sobretudo para a danação.112 Cada ato está predeterminado, mas importa a Leibniz que a condição geral se mantenha em aberto, de forma a existir sempre a possibilidade contrária. Ora, o le monde des sentimens generaux des anciens Grecs et Romains, qui preferoient l'amour de la patrie et du bien public et le soin de la posterité à la fortune et même à la vie. Ces publiks spirits, comme des Anglois les appellent, diminuent extremement, et ne sont plus à la mode ; et ils cesseront d'avantage quand ils cesseront à estre soutenus par la bonne Morale et par la vraye Religion, que la raison naturelle même nous enseigne." Não deixa de ser curioso que a referência à verdadeira religião tenha que ser suportada pela razão natural (e, ao menos aqui, só por ela). 109 Leibniz, op. cit, G, V, 444-5: "il pourra arriver à ces personnes, d'eprouver eux mêmes les maux qu'ils croyent reservés à d'autres. Si l'on se corrige encor de cette maladie d'esprit epidemique dont les mauvais effects commencent à estre visibles, ces maux peutestre seront prevenus ; mais si elle va croissant, la providence corrigera les hommes par la revolution même, qui en doit naistre : car quoyqu'il puisse arriver, tout tournera tousjours pour le mieux en general au bout du compte, quoyque cela ne doive et ne puisse pas arriver sans le chatiment de ceux qui ont contribué même au bien, par leur actions mauvaises." Não é possível deixar de pensar na evolução histórica promovida pela sociabilidade insociável em Kant. Cf. Immanuel Kant, Zum Ewigen Frieden, Ein Philosophischer Entururf, etc.; trad. port. Artur Morão, A Paz Perpétua e outros opúsculos, Lisboa, Edições 70, 19924, "Ideia de uma História Universal com um propósito cosmopolita", 4ª prop., pp. 25-27. 110 Leibniz, em HD, 56-58, parece referir-se, inicialmente, ao grande ano do Timeu, 39 d, em que os astros regressavam à mesma posição, mas, depois, na passagem transcrita na nota seguinte, refere-se aos anos porque as almas passariam, presumivelmente segundo o mito do cocheiro e dos cavalos alados do Fedro, onde as almas passam, porém, por vários ciclos, conforme a sua situação (246 a – 257 a), numa ligação que, porém, parece estabelecida na República, onde se, por um lado, também se fala de um ciclo de mil anos para as penas das almas (615 a-c), também se liga esta ordem transcendente à ordem cósmica dos astros (616 d – 617 b). Cf. Platon, Oeuvres Complètes, Tome X, trad. fr. Albert Rivaud, Timée – Critias, 3ème éd., Paris, Soc. « Les Belles Lettres », 1956, pp. 153-154; Platon, Oeuvres Complètes, Tome IV, 3e Partie, trad. fr. Léon Robin, Phèdre, 4ème éd., Paris, Soc. « Les Belles Lettres », 1954, pp. 35-55; Platão, ed. J. Burnet, Platonis Opera, T. IV, Oxonii e typographeo Clarendoniano, 1949; tr. port. Maria Helena da Rocha Pereira, A República, 11ª ed., Lisboa, Fund. Calouste Gulbenkian, 200810, pp. 486 e 488-489. 111 Leibniz, HD, 58: "quia dignitati naturae consentaneum non est, ut priora tantum repetantur, consequens est, ut eatur ad intelligentias factas perfectiores, quae alias habeant notiones profundiores, et quae capaces sint majorum et magis compositarum veritatum; ita sciendo profici poterit in infinitum. Itaque conveniens foret, si durarent humanae mentes, et platonicos quosdam annos haberent, eundem hominem reverti, non ut simpliciter in orbem redeat, sed ut velut spiraliter aut tortuose, inde progrediatur in aliquod majus. Est regredi ad prosiliendum magis, ut ad fossam. Fieri tamen etiam potest, ut progressus sit non spiralis aut aliter regressivus; qualis cycloidum secundarium; sed directus, qualis in cycloide primaria. Et fortasse quaedam creaturae platonicas habent periodos, aliae secus. In periodicis foret non tantum animae immortalitas, sed et aliquid corporis resurrectioni aequipollens, si non ipsa sit." 112 Leibniz, Essais de Théodicée, 1ª parte, § 82, G, VI, 147, em que chega a corrigir Agostinho.

212

termo predestinação ou destinação é reservado para as questões soteriológicas, ligadas, pois, à condição geral. Para Leibniz, a liberdade, entendida sempre como a possibilidade de escolher outra coisa, mesmo que seja garantido que não se escolherá senão o que está predeterminado, continua a existir mesmo após o Julgamento divino, mesmo para os danados, não havendo assim diferença significativa entre o perverso ou vicioso nesta vida e o danado ou réprobo na outra.113 De facto, a infalibilidade da determinação da nossa liberdade acaba até por se adaptar melhor à crença na danação e na bem-aventurança porque, afinal, só é requerida uma condição idêntica à atual. Porém, notoriamente, incomoda Leibniz a desproporção entre a pena e o crime, assim como entre o prémio e a virtude. Por isso, em numerosas passagens, Leibniz explica a danação não como uma pena (pois seria injusto uma pena infinita para crimes que, por enormes que fossem, seriam finitos), mas como uma consequência do pecado. A persistência no pecado de que não se tem vontade para escapar é o que explica a persistência eterna da danação. O mesmo se aplica, ao contrário, à bem-aventurança.114 Aliás, a própria tese do pecado original que, para lá do mesmo problema de desproporção, tem a injustiça adicional de punir os que nada, à partida, fizeram, é também reduzido, por Leibniz, a uma consequência natural em vez de um castigo divino. 115 Mesmo assim, Leibniz, aproveitando algumas referências que admitiam a possibilidade da libertação da danação ou, pelo menos, a diminuição das penas, acaba por defender a possibilidade de uma diminuição ao infinito, tendo em conta a eternidade.116 Já antes se referiu a forma como promoveu a teoria da restituição universal de Petersen, 117 mas ainda mais interessante é a forma como lhe propôs o projeto de obra poética, interpretando a restituição universal como aumento e exaltação graduais das almas, o que é evidentemente a sua tese e não a da restituição final origenista proposta por Petersen.118 É, de qualquer forma, notória a preocupação de Leibniz com a possibilidade de injustiça na tradicional irreversibilidade da danação, mesmo tendo em conta que atribui a danação à continuação do pecado e não a uma pena, por si, eterna, pese embora a presciência divina. O imperativo da racionalidade está sempre presente. 113

Leibniz, op. cit, 3ª parte, § 269, G, VI, 277: "apres cette vie, quoyqu'on suppose que se secours cesse, il y a tousjours dans l'homme qui peche, lors même qu'il est damné, une liberté que le rend coupable, et une puissance, mais eloignée, de se reveler, quoyqu'elle ne vienne jamais à l'acte. Et rien n'empêche qu'on ne puisse dire que ce degré de liberté, exempt de la necessité, mais non exempt de la certitude, reste dans les damnés aussi bien que dans les bienheureux." Equiparação entre o livre arbítrio e o servo arbítrio na dominação do pecado: Leibniz, op. cit, § 277, G, VI, 282; § 279, G, VI, 282-3. 114 Leibniz, op. cit, 1ª parte, § 74, G, VI, 142: "On peut dire cependant que les damnés s'attirent tousjours de nouvelles douleurs par de nouveaux pechés, et que les bienheureux s'attirent tousjours de nouvelles joyes par de nouveaux progrès dans le bien"; Leibniz, op. cit, 2ª parte, § 133, G, VI, 186: "il faut considerer que la damnation est une suite du peché, et je repondi autresfois à un ami, qui m'objecta la disproportion qu'il y a entre une peine eternelle et un crime borné, qu'il n'y a point d'injustice, quand la continuation de la peine n'est qu'une suite de la continuation du peché". Leibniz, op. cit, 3ª parte, § 266, G, VI, 275; § 268, G, VI, 277. 115 Leibniz, op. cit, 2ª parte, § 112, G, VI, 164: "Il y a sujet de juger que l'action defendue entraina par elle même ces mauvaises suites en vertu d'une consequence naturelle, et que ce fut pour cela même et non pas par un decret purement arbitraire, que Dieu l'avoit defendue : c'etoit à peu pres comme on defend les couteaux aux enfants. [...] Mais ce chatiment arrive naturellement aux mechans, sans aucune ordonnance d'un legislateur, et ils prennent goût au mal. Si les yvrognes engendroient des enfants inclinés au même vice par une suite naturelle de ce qui se passe dans les corps, ce seroit une punition de leur progeniteurs, mais ce ne seroit pas une peine de la loy. Il y a quelque chose d'approchant dans les suites du peché du premier homme." 116 Leibniz, op. cit, 3ª parte, § 272, G, VI, 278-9. 117 Ver notas 178 e 179 de III. 7. 118 Leibniz, HD, 25: "sed altera pars operis de futuris, sive ad corpora sive ad animas pertineant et ad hunc vel alium, ubi de purificatione animarum et restitutione rerum, vel potius amplificatione et exaltatione per gradus."

213

No caso de Clarke, parte do princípio que não há qualquer disputa quanto à eternidade da bem-aventurança, como se a questão da punição eterna para um crime finito fosse diferente da do prémio eterno para um mérito limitado. 119 Fará muita questão em frisar mais adiante a necessária justiça, mesmo que não evidente, da punição de Deus, mas não vê qualquer problema em que alguém seja premiado (muitíssimo) para além do seu mérito, apenas porque agrada a Deus. Por outro lado, considera óbvio que quem não obedece deva ser excluído, mas considera que a mera privação da felicidade não seria razão suficiente para os perversos temerem a punição.120 Acontece que, neste caso, já não estaria em causa a justiça, mas a prevenção, o que é uma questão bem diversa. Finalmente, considerando que muitas pessoas foram vítimas de desastres, quando nem sequer Deus com elas estava zangado,121 e que lançou o dilúvio, destruiu Sodoma e Gomorra, permitiu a destruição de Jerusalém, etc., quando existiriam pessoas boas em muitas dessas calamidades, o castigo sobre os perversos incorrigíveis terá de ter uma grandeza muito superior.122 Acaba esta argumentação por resultar em que uma eventual injustiça (uma pena eterna para um crime finito) é justificada por se ter cometido outras injustiças. Por fim, é assegurado que, para lá da rejeição, a punição será proporcional ao que cada perverso merecer porque o que Deus faz é sempre justo, muito embora o castigo eterno acabe por ser sempre justificado como exemplo para que outros obedeçam.123 Em última análise, defende-se a racionalidade unicamente por não termos meios para conhecer as razões, o que, apesar de ser também um recurso leibniziano, não é usado sem ter estabelecido uma racionalidade genérica. Em geral, o próprio teor da argumentação clarkiana (a raiva e a ira de Deus) reserva uma larga margem para a arbitrariedade. 4. Transcendência ou imanência divina Esta secção procura, antes de mais, resumir os resultados dispersos das análises anteriores, trazendo muito pouco de novo. Os assuntos a que se refere, inteligência supramundana, alma do mundo, criação contínua, já foram tratados, de forma explícita, em II, II. 5., IV. 1., IV. 2., IV. 4, VI. 1. e VI. 2. Porém, é requerida pela alternativa 119

Clarke, DC, 207: "Concerning the everlasting Happiness of the Righteous, there is no Dispute; it being evident that God in his infinite Bounty may Reward the sincere Obedience of his Creatures, as much beyond the Merit of their own weak and imperfect Works, as he himself pleases." 120 Clarke, DC, 208: "if bare Deprivation of Happiness was all the Punishment they had Reason to fear, they would be well content to sit still in their Wickedness." 121 Clarke, DC, 208: "But is it at all agreeable to Reason to believe, that the Punishment, to be inflicted by the final Wrath of a provoked God upon his most obstinate and incorrigible Enemies, should be merely such a Thing as is in its own Nature less dreadful and terrible, than even those Afflictions which by certain Experience we see in this present Life fall, sometimes upon such Persons with whom God is not angry at all?" 122 Clarke, DC, 208-9: "whoever seriously considers the dreadful Effects of God's Anger in this present World, in the Instance of the general Deluge, the Overthrow of Sodom and Gomorrha, the amazing Calamities which befell the whole Jewish Nation at the Destruction of Jerusalem, and other such-like Examples; in some of which Cases, the Judgments have fallen upon mixed Multitudes of good Men and bad together; (not to mention the Calamities which sometimes befall even good Men by themselves:) Whosoever, I say, seriously considers all this, can not but frame to himself very terrible Apprehensions of the Greatness of that Punishment, which the despised Patience of God shall finally inflict on the impenitently Wicked and Incorrigible, when they shall be separated and be by themselves." Nesta exigência de algo pior que a morte, não parece haver fundamento para a interpretação mortalista de Wigelsworth, muito embora a aniquilação literal dos danados no Juízo Final também fosse um castigo eterno, apenas se negando, dessa forma, realidade ao Inferno: cf. Jeffrey R. Wigelsworth, "Samuel Clarke's Newtonian Soul" in Journal of the History of Ideas, University of Pennsylvania Press, 2009 1, Vol. 70, Nº. 1, p. 62. 123 Clarke, DC, 210.

214

proposta por Leibniz para a necessidade de correção da criação: ou Deus é a Alma do Mundo; ou governa o mundo com milagres. 124 Apesar disso, porventura por antecipação, tendo em conta os antecedentes já abordados em II, foi Clarke que iniciou a discussão, acusando Leibniz de excluir Deus do mundo com a sua conceção de inteligência supramundana.125 Leibniz rejeita esta exclusão através da tese da criação, produção ou conservação contínuas.126 O único conceito adicional que Leibniz usa para expressar esta ligação com o mundo é o de operação. 127 Mas a única operação que Leibniz concebe é a operação constante de conservar as coisas através da sua produção contínua. 128 Mesmo quando parece fazer depender de Deus algo mais, a harmonia, acaba por sublinhar que Deus mais não faz que conservar a lei de cada substância para o seu lado, o que equivale a conservar a sua essência na existência.129 Apesar de parecer aceitar a negação de Leibniz130 de que a expressão intelligentia supramundana negue que Deus esteja no mundo,131 Clarke nunca deixa, por outras vias, nomeadamente a dos milagres,132 de acusar Leibniz de excluir Deus do mundo e acaba por relacionar de novo essa intelligentia supramundana com essa exclusão, um Deus remoto e grandemente separado das coisas.133 Provavelmente, para sustentar o caráter herético desta posição, faz a única citação bíblica de toda a polémica. 134 Adiciona-lhe, pouco adiante, uma referência a São Paulo, indicando, na sua edição da polémica, exatamente a mesma passagem, desta vez para sustentar que se trata da sua posição.135 A conceção de Deus como Inteligência Supramundana está intimamente relacionada, em Leibniz, com a rejeição da Alma do Mundo que atribui a Platão,136 assim como a alma (intelecto) universal de Aristóteles ou dos aristotélicos, 137 de 124

Leibniz, Streitschriften..., 2º escrito, § 12, G, VII, 358-9. Clarke, Streitschriften..., 1ª réplica, § 4, G, VII, 354. Ver VI. 1, nota 8. 126 Leibniz, op. cit., 2º escrito, § 5, G, VII, 357; § 11, G, VII, 358; 3º escrito, § 16, G, VII, 366; 4º escrito, § 30, G, VII, 375; 5º escrito, §§ 85-86, G, VII, 410-1; § 88, G, VII, 411. Transcritos em II. 5. (nota 171), VI. 1 (nota 24) e VI. 2 (nota 46). 127 Leibniz, op. cit., 3º escrito, § 12, G, VII, 365 (Ver IV. 1, nota 37); 4º escrito, § 35, G, VII, 376: A presença "de Dieu est parfaite, et se manifeste par son operation." 128 Leibniz, op. cit., 2º escrito, § 5, G, VII, 357. 129 Leibniz, op. cit., 5º escrito, § 87, G, VII, 411. Ver V. 2, nota 118. 130 Leibniz, op. cit., 3º escrito, § 15, G, VII, 366: "On s'applique inutilement à critiquer mon expression, que Dieu est Intelligentia Supramundana : disant qu'il est au dessus du monde, ce n'est pas nier qu'il est dans le monde." 131 Clarke, op. cit, 3ª réplica, § 15, G, VII, 370. Na verdade, não há nenhuma explicação de Leibniz. 132 Clarke, op. cit, 2ª réplica, § 12, G, VII, 362. 133 Clarke, op. cit, 5ª réplica, §§ 36-48, G, VII, 426: "These Paragraphs [...] only represent in an ill Light the Notion of the Immensity or Omnipresence of God; who is not a mere Intelligentia supramundana, [Semota a nostris rebus sejunctaque longe] is not far from every one of us; for in him we (and all Things) live and move and have our Being." 134 Actos dos Apóstolos, cap. 17, vers. 27-28. 135 Clarke, op. cit, 5ª réplica, §§ 36-48, G, VII, 427. 136 Leibniz, Nouveaux essais..., Livre III, Chap. X, § 14, G, V, 324: "il n'y a point d'ame du monde de Platon, car Dieu est au dessus du monde, extramundana intelligentia, ou plustost, supramundana." Também em Leibniz, Essais de Théodicée, Discours..., § 9, G, VI, 55. 137 Leibniz, op. cit, §§ 7-8, G, VI, 54: Começa por rejeitar a impossibilidade de infinito atual, sem grandes esclarecimentos, mas, porventura, com as mesmas razões apresentadas contra Locke. Depois, avança para a tese mais próxima da Alma do Mundo: "d'autres moins attachés à Aristote alloient jusqu'à une ame universelle qui fût l'Ocean de toutes les ames particulieres, et croyoient cette Ame Universelle seule capable de subsister, pendant que les ames particulieres naissent et périssent. Suivant ce sentiment les ames des animaux naissent en se détachant commes des goutes de leur Ocean, lors qu'elles trouvent un corps qu'elles peuvent animer ; et elles périssent en se rejoignant à l'Ocean des Ames quand le corps est defait, comme les ruisseaux se perdent dans la mer. Et plusieurs alloient à croire que Dieu est cette Ame universelle, quoyque d'autres ayent cru qu'elle étoit subordonée et creée." Resta saber se é assim tão diferente a conceção das criaturas como pensamentos de Deus que este escolheu trazer à existência 125

215

Spinoza,138 do budismo chinês139 ou a mais habitual versão estoica.140 Uma das razões para a contraposição entre Deus e o mundo reside na sua rejeição, já vista em IV. 10, de um infinito atual que resulte de uma amálgama, só podendo ser infinito o absoluto anterior a toda a composição. Ora, sendo o mundo composto e sem limites, não pode ser um animal ou uma substância. 141 Em contraposição, toda a conceção newtoniana da presença de Deus através do espaço e do tempo, entendendo o primeiro como um seu sensoriomotor, a conceção de liberdade através da eficiência física, mas sobretudo uma conceção de providência como governo interventivo e variável na história, faziam tender a compreensão de Deus para uma Alma do Mundo: "Ele governa todas as coisas, não como alma do mundo, mas como senhor de tudo. E por causa do seu domínio é chamado Senhor Deus Todo-Poderoso (Pantokrátor)." 142 Bem poderia Newton defender-se das acusações de tipo leibniziano declarando o inverso, como o fez na 2ª edição dos Principia. Após ter caracterizado, na Ótica, Deus como um Agente sempre vivo mais capaz de mover os corpos no seu sensório e formar e reformar partes do universo do que as almas de moverem o seu corpo,143 era muito difícil não reconhecer razão a Leibniz. E a verdade é que o seu ataque à conceção newtoniana de Deus por ser uma Alma do Mundo é ainda mais consistente do que o ataque clarkiano insinuando um deísmo: vai fazê-lo por colocar Deus dentro do mundo,144 por corrigir as coisas como se fosse parte da Natureza, 145 por concebê-lo como um ser sensível, 146 por conceber a ligação de Deus ao mundo como se costuma conceber a união da alma e do corpo147 e por torná-lo composto de partes. 148 Clarke tenta reduzir a conceção a uma simples omnipresença e encontra o grande contra-argumento no facto de, apesar de gozar de liberdade total para fazer o que lhe agrada, nada agir sobre ele, 149 mas é difícil expressa, por exemplo, no Discurso de Metafísica: cf. Leibniz, DM, XIV, 47, cf. G, IV, 439. 138 Leibniz, Essais de Théodicée, Discours..., § 9, G, VI, 55. 139 Embora aqui interprete o Nirvana como nada: Leibniz, op. cit, § 10, G, VI, 55-6. 140 Leibniz, op. cit, § 9, G, VI, 55; 2ª parte, § 217, G, VI, 248. 141 Leibniz, op. cit, § 195, G, VI, 232: "l'infini, c'est à dire l'amas d'un nombre infini de substances, à proprement parler, n'est pas un tout non plus que le nombre infini luy même, duquel on ne sauroit dire s'il est pair ou impair. C'est cela même qui sert à refuter ceux qui font du monde un Dieu, ou qui conçoivent Dieu comme l'Ame du monde, le monde ou l'Univers ne pouvant pas être consideré comme un animal, ou comme une substance." 142 Newton, Philosophiæ naturalis..., Liber tertius, Scholium generale, OO, III, 171: "Hic omnia regit, non ut Anima mundi, sed ut universorum Dominus. Et propter dominium suum, Dominus Deus Παντοκράτωρ (Id est Imperator universalis) dici solet." 143 Newton, Optics, Qu. 31, OO, IV, 262. Ver IV. 1, nota 27. 144 Leibniz, Streitschriften..., 2º escrito, § 10, G, VII, 358. 145 Leibniz, op. cit, § 12, G, VII, 358-9. Ver VI.1, nota 13. Ibidem, 5º escrito, § 111, G, VII, 417: "Cela n'irat-il pas encore à faire de Dieu l'ame du Monde, si toutes ses operations sont naturelles, comme celles que l'Ame exerce dans le corps ? Ainsi Dieu sera une partie de la Nature." 146 Leibniz, op. cit, 4º escrito, § 27, G, VII, 375: "Il n'a gueres d'expression moins convenable sur ce sujet, que celle qui donne à Dieu un Sensorium.Il semble qu'elle le fait l'ame du monde."; 5º escrito, § 82, G, VII, 410; § 86, G, VII, 410-1. Ver IV. 1, nota 39. Referido de novo no § 96, G, VII, 413. 147 Leibniz, op. cit, 4º escrito, § 29, G, VII, 375; §§ 32-34, G, VII, 375-6. Ver IV. 1 (nota 39) e V. 2 (nota 95), com exceção do § 34: "En voulant soutenir cette opinion vulgaire de l'influence de l'ame sur le Corps, par l'exemple de Dieu operant hors de luy, on fait encor que Dieu ressembleroit trop à l'Ame du Monde." 148 Leibniz, op. cit, 5º escrito, § 43, G, VII, 399: "Ce Dieu à parties, ressemblera fort au Dieu Stoicien, qui estoit l'univers tout entier, consideré comme un Animal divin." 149 Clarke, op. cit, 2ª réplica, § 12, G, VII, 362 (VI. 2, nota 48); 4ª réplica, § 29, G, VII, 386: "Space is the Place of All Things, and of All Ideas: Just as Duration is the Duration of All Things, and of All Ideas. [...] This has no Tendency to make God the Soul of the world [...]. There is no Union between God and the World. The Mind of Man might with greater propriety be stiled The Soul of the Images of things which it perceives, than God can be stiled the Soul of the World, to which he is present throughout, and acts upon it as he pleases, without being acted upon by it."; ibidem, § 32, G, VII, 386: "God's acting in the world

216

compatibilizar até mesmo esta declaração (aliás, insuficiente para negar uma alma do mundo) com a afirmação do espaço como um sensório divino, noção que, mesmo sob a forma de analogia, Newton não só criou livremente, como sempre manteve. A única questão que permanece, como se viu em IV. 1., é se alguma entidade subordinada a Deus assume o papel que tem em More o Espírito da Natureza, nomeadamente Cristo, como é afirmado por Dobbs. 150 Afinal, não só é através de Cristo que Deus cria o mundo, como também ocorrem todas as manifestações divinas ao homem. 151 De qualquer forma, numa passagem em que, mais uma vez, sustenta a arbitrariedade das leis naturais e a possibilidade de elas serem alteradas quando for desígnio de Deus, parece inclinar-se para as fazer depender de Inteligências criadas (porventura, anjos, aliás, também com eventuais poderes milenários). 152 Se estas se subordinarão a uma pessoa divina subordinada, é algo que fica em aberto. 5. A definição de milagre e a gravitação Porventura, não haveria atualmente discussão mais insólita para ter, até num clube de Filosofia. Seria mais natural debater por que há pessoas que acreditam em milagres. Claro que já seria bem diferente numa conferência de Teologia. Mas que esta seja uma discussão séria que se tenha a propósito dos fundamentos da Física ou, pelo menos, das causas dos fenómenos estabelecidos pela Física, levaria hoje a duvidar da sanidade mental do proponente. No entanto, é exatamente isso que acontece nesta polémica. Apesar disso, já germina a nossa época neste debate porque o objetivo é o de depurar a discussão física e metafísica de todo e qualquer recurso a milagres. Foi já upon every thing, after what manner he pleases, without any Union, and without being acted upon by any thing; shows plainly the difference between an Omnipresent Governor, and an imaginary Soul of the World." 150 Dobbs, NM, 527-8. Bem expressa a indecisão aqui: Clarke, DC, 14: "Which Preserving and Governing Power, whether it be immediately the Power and Action of the same Supreme Cause that created the World, of Him without whom not a Sparrow falls to the Ground, and with whom the very Hairs of our Head are all numbered; or whether it be the Action of some subordinate Instruments appointed by Him to direct and preside respectively over certain Parts thereof; does either Way equally give us a very noble Idea of Providence." 151 Clarke, DC, 193: "That Divine Person by whom (as has been before shewn) he created the World, and by whom he made all former particular Manifestations of himself unto Men". Será a Natureza uma dessas manifestações? A extensão dos papéis de Cristo, apesar do primado do Deus invisível, é bem expressa neste fragmento: Newton, Yahuda MS 15, Ch. 2, ff. 96-7, EC, 61: "the description which John in the beginning of his Gospel gives of Christ in calling him the Word & saying In the beginning was the Word & the Word was with God & the Word was God: The same was in the beginning with God: All things were made by him & without him was nothing made that was made: This description I say has a manifest relation to what is said of him in the books of Moses, & signifies that Christ was with God before his incarnation, even in the beginning when God made the heavens & earth. For Christ himself declared as much when he said to his Father: Glorify me with the glory which 1 had with thee before the world began. It signifies that he being then with God, it was he to whom God said Let us make man, & That it was he who appeared to Adam in paradise by the name of God & to the Patriarchs & to Moses by the same name: For the father is the invisible God whom no eye hath seen nor can see. It signifies that he was one of the three Angels who appeared to Abraham & of whom it is said Jehova rained upon Sodom & upon Gomorrah brimstone & fire from Jehova out of heaven: For the name Jehova is given to none but the God of Israel." Várias outras associações se seguem, mas o que importa agora é reter o seu papel de intermediário constante em relação a toda a criação. 152 Clarke, DC, 222: "The Course of Nature, truly and properly speaking, is nothing else but the Will of God producing certain Effects in a continued, regular, constant and uniform Manner: Which Course or Manner of Acting, being in every Moment perfectly Arbitrary, is as easy to be altered at any Time, as to be preserved. And if (as seems most probable) this continual Acting upon Matter be performed by the Subserviency of created Intelligences appointed to that Purpose by the Supreme Creator; then 'tis as easy for any of Them, and as much within their natural Power (by the Permission of God) to alter the Course of Nature at any Time, or in any Respect, as to preserve or continue it."

217

necessário ter em conta esta temática em V. 2. Mas a temática, como se verá, excede, em muito, o mero âmbito da discussão acerca da comunicação entre a alma e o corpo. Em jogo, está a própria conceção da liberdade divina, suscetível ou não de uma contínua intervenção na realidade física, alterando as suas condições naturais. As teses de ambos os autores, a este propósito, têm, como a generalidade das outras, muitos antecedentes que esclarecem o sentido da sua posição. No caso de Leibniz, seria um projeto académico curioso fazer um levantamento de quantos autores, a propósito de quantos temas e teses, foram alvo da acusação de recurso a milagres, nomeadamente a mais vulgar de recurso a milagres perpétuos. Logo na correspondência com Arnauld, Leibniz considera milagre obter um perfeito repouso de um corpo e mover um corpo pela vontade. 153 Até o seu mestre matemático e físico, Christian Huygens, a propósito da infrangibilidade dos átomos e da explicação da coesão, foi alvo da acusação.154 A mesma razão esteve na origem de idêntica acusação a Hartsoeker, desta vez começando por uma mais diplomática falta de razão,155 avançando depois para a acusação de milagre perpétuo156 e de ficção.157 A tese que opõe ao atomismo é, como 153

E um outro, caso Deus fizesse o milagre do repouso perfeito de um corpo, pô-lo de novo em movimento: Leibniz, Carta para Arnauld de Setembro ou Outubro de 1687, G, II, 115-6: "je croy maintenant, que vous verrés, Monsieur, comme je l'entends, quand je dis qu'une substance corporelle se donne son mouvement elle même ou plustost ce qu'il y a de reel dans le mouvement à chaque moment, c'est à dire la force derivative, dont il est une suite ; puisque tout estat precedent d'une substance est une suite de son estat precedent. Il est vray qu'un corps qui n'a point de mouvement ne s'en peut pas donner ; mais je tiens qu'il n'y a point de tel corps. Vous me dirés que Dieu peu reduire un corps à l'estat d'un parfait repos, mais je reponds que Dieu le peut aussi reduire à rien, et que ce corps destitué d'action et de passion n'a garde de renfermer une substance, ou au moins il suffit que je declare, que si jamais Dieu reduit quelque corps à un parfait repos, ce qui ne se sçauroit faire que par miracle, il faudra un nouveau miracle pour luy rendre quelque mouvement." E quanto ao movimento voluntário: "Au reste ma main se remue non pas à cause que je le veux, car j'ay beau vouloir qu'une montagne se remue, si je n'ay une foy miraculeuse, il ne s'en fera rien ; mais parce que je ne le pourrois vouloir avec succés, si ce n'estoit justement dans le moment que les ressorts de la main se vont debander comme il faut pour cet effect ; ce qui se fait d'autant plus que mes passions s'accordent avec les mouvemens de mon corps. L'un accompagne toujours l'autre en vertu de la correspondance establie cy dessus, mais chacun a sa cause immediate chez soi." 154 Leibniz, carta para Huygens de 1/11 de Abril de 1692, GM, II, 136: "Relisant dernierement vostre explication de la pesanteur, j'ay remarqué que vous estes pour le Vuide et pour les Atomes. J'avoue que j'ay de la peine à comprendre la raison d'une telle infrangibilité, et je croy que pour cette effect, il faudroit avoir recours à une espece de miracle perpetuel. Je ne voy pas aussi de necessité qui nous oblige à recourir à des choses si extraordinaires. Cependant puisque vous avés du penchant à les approuver, il faut bien que vous en voyiés quelque raison considerable." Na carta seguinte (16/26 de Setembro de 1692), atribui o milagre perpétuo à ligação por toque (GM, II, 145-6): "On ne voit rien qui attache deux masses ensemble, et je ne voy pas comment vous concevés, Monsieur, que le seul attouchement fait l'office d'un gluten. Or puisqu'il n'y a aucune connexion naturelle entre l'attouchement et l'attachement, il faudra bien que, si l'attouchement suit l'adhesion, cela arrive par un miracle perpetuel." Aliás, na carta subsequente (10/20 de Março de 1693), é certo, já sem falar em milagres, equipara a coesão primitiva ao peso de Aristóteles, à atração de Newton e às simpatias e antipatias: GM, II, 158. 155 Leibniz, Carta para Hartsoeker de 10 de Junho de 1710, G, III, 497: "Je n'accorde point qu'il y ait des Atomes, c'est à dire des corps dont la dureté soit naturellement insurmontable, puisqu'on n'en sauroit rendre une raison physique et qu'on n'en a point besoin non plus." 156 Leibniz, Carta para Hartsoeker talvez de 9 de Agosto de 1710, G, III, 501: "On n'a point besoin de rendre une raison de la divisibilité de la matiere, si rien ne l'empeche, une partie, distincte de l'autre, en peut etre separée ; il faut donc chercher une raison de l'empechement ; mais l'etablir comme originaire ou primitive dans certaines parties de la matiere, c'est recourir ou au miracle, ou à une qualité occulte imaginaire." A segunda parte do argumento dirigido a Huygens surge na carta seguinte, 30 de Outubro de 1710, in G, III, 504-5: "lorsque deux masses étendues A et B se touchent par leur superficies, on ne voit pourquoy elles ayent en elles un principe de continuer leur attouchement, et de resister à la separation ; et il faut recourir à une operation particuliere de Dieu, peu digne de luy, ou à une qualité occulte peu digne d'un philosophe, pour rendre raison de cette cohesion, quand on n'a point recours avec moy au

218

já se viu em IV. 6. e 9., a dos movimentos conspirantes, cuja vantagem é a de explicar quer a maior ou menor resistência, quer a própria gravidade, exclusivamente de forma mecânica através do movimento. Já Huygens havia respondido que lhe era completamente ininteligível o que Leibniz afirmara sobre os movimentos conspirantes, 158 mas Hartsoeker, ainda menos diplomático, devolve, simplesmente, todas as qualificações dadas por Leibniz aos átomos, começando por defender que há muitas coisas que se têm de admitir sem conseguir dar disso uma razão física.159 A discussão continua e azeda, antecipando, em certos aspetos, a que irá ocorrer com Clarke, tal como a já tratada em V. 2., a propósito de Malebranche, apesar de mais pacífica, com Bayle. Porém, não deixa de ser curiosa a aplicação da acusação a outros dois temas: a possível mortalidade da alma 160 e a atração gravítica. 161 Para lá da amplificação dos alvos, a última acusação, para lá de antecipar diretamente um dos temas da polémica, tem o interesse de apresentar uma definição de milagre162 e uma mouvement qui s'oppose à la separation." 157 Leibniz, Carta para Hartsoeker talvez de 30 de Outubro de 1710, G, III, 506: "Dieu ne peut point creer des Atomes Naturels, ou des corps indivisibles par un je ne say quoi inexplicable, c'est à dire des choses absurdes et sans raison. S'il veut que deux masses ou parties de la matiere soyent attachées inseparablement l'une à l'autre, sans qu'il y ait en elles ou dans les ambians une raison de leur inseparabilité, il faut qu'il empeche leur separation par un miracle perpetuel. Et alors ce ne seront pas des Atomes naturels ou bien des corps qui soyent indivisibles par une certaine qualité occulte, logée en eux. Il est aisé de faire des fictions, mais il est difficile de les rendre raisonnables, c'est à dire de montrer qu'il y en peut avoir une raison. Les Atomes sont une telle fiction ; un premier Element qui soit parfaitement fluide, en est une autre. La parfaite fluidité est aussi deraisonnable que la parfaite dureté." Este final menciona, assim, uma outra tese alvo da acusação de milagre: a de um elemento perfeitamente fluido. 158 Huygens, Carta para Leibniz de 12 de Janeiro de 1693, GM, II, 152. 159 Hartsoeker, Carta para Leibniz de 8 de Julho de 1710, G, III, 499: "Si l'on n'en peut rendre une raison physique, il n'y aura pas moins de dificulté d'en rendre une de vôtre matiere parfaitement fluide [naturalmente, trata-se de um erro de compreensão] par elle même. Il y a bien de choses dont on ne peut rendre des raisons physiques et qu'il faut pourtant admettre par une suite necessaire."; Hartsoeker, Carta para Leibniz de 22 de Agosto de 1710, G, III, 502: "vous étes obligé de recourir à un mouvement conspirant qui me paroit être un miracle bien plus grand et un miracle continuel."; Hartsoeker, Carta para Leibniz de 30 de Dezembro de 1710, G, III, 511-2: "les mouvemens conspirans, Monsieur, ne sont ce pas pour le moins des fictions aussi grandes, puisqu'il semble qu'il n'y en a point d'autres que ceux par lesquels les corps vont actuellement de lieu en lieu avec des vitesses differentes, et ne feroit on par consequent pas mieux de prendre pour une seule bonne fois un fondement solide et inebranlable, et de soutenir qu'il y a des atomes, c'est à dire de petites masses solides, simples, homogenes, parfaitement dures et sans parties, et que ces masses sont ainsi de tout temps par la volonté éternelle de Dieu, que d'avoir recours à des mouvemens incomprehensibles et imaginaires." 160 Leibniz, Carta para Hartsoeker talvez de 30 de Outubro de 1710, G, III, 508: "Les intelligences particulieres doivent aussi subsister tousjours en particulieres, et elles ne doivent jamais retourner dans l'intelligence universelle ; il faut qu'elles continuent leur role sans interruption. Il y a des raisons qui le prouvent ; elles ne peuvent perir que par miracle." 161 Leibniz, Carta para Hartsoeker talvez de 6 de Fevereiro de 1711, G, III, 518: "si quelcun disoit que c'est une volonté de Dieu qu'une planete aille circulairement dans son orbe, sans que rien ne l'y aide ou conserve son mouvement, je dis que ce sera un miracle perpetuel, car par la nature des choses, la planete, en circulant, tend à s'eloigner de son orbe par la tangente, si rien ne l'empeche, et il faut que Dieu l'empeche perpetuellement, par un miracle, si quelque cause naturelle ne le fait." 162 Leibniz, Carta para Hartsoeker talvez de 6 de Fevereiro de 1711, G, III, 517-8: "la volonté de Dieu opere par miracle, toutes les fois qu'on ne sauroit rendre raison de cette volonté et de son effect par la nature des objets." Esta definição não é, porém, nova. Não só surge já na correspondência com Arnauld, como também aí surgia o mesmo exemplo, antes da publicação da teoria newtoniana, o que mostra que a rejeição posterior de Leibniz já estava assegurada ainda antes (por pouco mais de um mês) da edição dos Principia: Leibniz, Carta para Arnauld de 30 de Abril de 1687, G, II, 93: "à proprement parler Dieu fait un miracle, lorqu'il fait une chose qui surpasse les forces qu'il a données aux creatures et qu'il y conserve. Par exemple si Dieu faisoit qu'un corps estant mis en mouvement circulaire, par le moyen d'une fronde, continuât d'aller librement en ligne circulaire, quand il seroit delivré de la fronde, sans estre poussé ou retenu par quoyque ce soit, ce seroit un miracle, car selon les loix de la nature il devroit continuer en ligne

219

comparação entre uma explicação milagrosa e uma natural para o mesmo fenómeno.163 Mas, ainda antes de examinar com maior atenção este último caso, o primeiro caso tem relação com um outro alvo leibniziano da acusação de milagre, o da atribuição de pensamento à matéria, também abordado em V. 1. a propósito da polémica entre Clarke e Collins. A relação referida tem que ver com o facto de que Leibniz ataca a possibilidade de a matéria pensar exatamente para sustentar a imortalidade natural da alma, 164 o que era exatamente o objetivo de Clarke na polémica referida. Finalmente, só para mencionar mais dois alvos a que Leibniz aplica a designação de milagre, ambos com alguma relação com as temáticas desta polémica, ao se colocar perante as hipóteses lockianas de dissociar as pessoas e as consciências das substâncias, Leibniz considera que seriam milagres o divórcio entre o insensível e o sensível e, completamente a despropósito do que se estava a discutir, a produção do vazio por Deus.165 Na polémica, é adicionado outro alvo. Não se trata de um milagre perpétuo, ou seja, contínuo, mas de intervenções sobrenaturais na Natureza, nomeadamente, embora não só, da correção das desordens astrais acumuladas ao longo do tempo, sobretudo devido aos cometas, através da recuperação das forças ativas.166 Se a estes alvos se acrescentar a teoria das causas ocasionais, sobretudo a propósito da comunicação entre a alma e o corpo, já tratada em V. 2., ficar-se-á com uma panorâmica mais precisa da diversidade abrangida. Neste emaranhado de acusações, que quer dizer, afinal, milagre, para Leibniz? Milagroso é tudo o que não seja explicável pela natureza das coisas envolvidas.167 É droite par la tangente ; et si Dieu decernoit que cela devroit toujours arriver, il feroit des miracles naturels, ce mouvement ne pouvant point estre expliqué par quelque chose de plus simple." Antes, aliás, já havia rejeitado, em contraposição aos ocasionalistas, a definição de milagre pela raridade, o que antecipa a discussão da presente polémica. 163 Leibniz, Carta para Hartsoeker talvez de 6 de Fevereiro de 1711, G, III, 518: "il me semble que l'exemple de la planete, qui en circulant se conserve dans son orbe sans autre aide que celle de Dieu, comparée avec la planete retenue dans son orbe par la matiere qui la pousse tousjours vers le soleil, fait bien sentir la difference qu'il y a entre les miracles naturels raisonnables, et entre les miracles proprement dits ou surnaturels, ou plustost (quand ils n'ont point de lieu) entre une explication raisonnable, et entre les fictions où l'on a recours pour soutenir des opinions mal fondées." 164 Leibniz, Nouveaux essais..., Préface, G, V, 60: "si quelcun disoit que Dieu au moins peut adjouter la faculté de penser à la machine preparée, je repondrois que si cela se faisoit et si Dieu adjoutoit cette faculté à la matiere sans y verser en même temps une substance qui fut le sujet d'inhesion de cette même faculté (comme je le conçois), c'est à dire sans y adjouter une ame immaterielle, il faudroit que la matiere eût esté exaltée miraculeusement pour recevoir une puissance dont elle n'est pas capable naturellement : comme quelques Scholastiques pretendent que Dieu exalte le feu jusqu'à luy donner la force de bruler immediatement des esprits separés de la matiere, ce qui seroit miracle tout pur. Et c'est assez qu'on ne peut soutenir que la matiere pense sans y mettre une ame imperissable ou bien un miracle, et qu'ainsi l'immortalité de nos ames suit de ce qui est naturel : puisqu'on ne sauroit soutenir leur extinction que par un miracle, soit en exaltant la matiere soit en aneantissant l'ame. Car nous savons bien que la puissance de Dieu pourroit rendre nos ames mortelles, toutes immaterielles (ou immortelles par la nature seule) qu'elles peuvent estre, puisqu'il les peut aneantir." No mesmo sentido, ibidem, L. IV, C. III, §§ 1-6, G, V, 360. 165 Leibniz, op. cit, L. II, C. XXVII, § 23, G, V, 227: "le divorce entre le monde insensible et sensible, c'est à dire entre les perceptions insensibles qui demeureront aux mêmes Substances et les apperceptions qui seroient echangées, seroit un miracle, comme lorsqu'on suppose que Dieu fait du vuide ; car j'ay dit cy dessus, pourquoy cela n'est point conforme à l'ordre naturel." Os argumentos trazidos para a rejeição do vazio relacionam-se com a aplicação prévia do princípio da razão suficiente na criação divina, nomeadamente através do princípio da plenitude, e não é muito compreensível como se encaixam no mesmo tipo dos outros argumentos relativos ao que é natural e milagroso. 166 Leibniz, Streitschriften..., 1º escrito, § 4, G, VII, 352; 2º escrito, § 12, G, VII, 358-9; 4º escrito, § 33, G, VII, 375-6; 5º escrito, § 94, G, VII, 413; § 107, G, VII, 416. 167 Leibniz, Nouveaux essais..., Préface, G, V, 54: "il peut y avoir des mysteres inconcevables dans les articles de la foy : mais je ne voudrois pas qu'on fut obligé de recourir au miracle dans le cours ordinaire de la nature et d'admettre des puissances et operations absolument inexplicables. Autrement on donnera trop de licence aux mauvais Philosophes, à la faveur de ce que Dieu peut faire, et en admettant ces vertus

220

sintomático, aliás, que o exemplo por excelência do recurso a milagres, nos Novos Ensaios, seja a força centrípeta e a atração associada. Recorrer a milagres no curso ordinário da natureza é considerado ainda pior que recorrer a qualidades ocultas ou, no caso da comunicação entre o corpo e a alma, a espécies intencionais. 168 Leibniz considera estas outras tantas versões da razão preguiçosa, visto se poder dar pretensas razões de tudo quando se recorre a milagres. 169 Aquilo que se poderia considerar ter uma definição e uma distinção (entre milagroso/inexplicável e natural/explicável) bem sustentadas acaba por levantar questões, sobretudo quando, para defender a fé, Leibniz admite que certas verdades naturais são incompreensíveis e, porém, credíveis, com base no simples testemunho dos sentidos.170 Admitindo que incompreensível e inexplicável não é o mesmo, outras questões se levantam quando Leibniz defende que os mistérios são explicáveis, embora de forma imperfeita, aliás comparando-os com as referidas verdades naturais, não pela simples omnipotência, mas por alguma "inteligência analógica" com o que existe naturalmente.171 Se esta equiparação aos mistérios é válida, centripetes ou ces attractions immediates de loin sans qu'il soit possible de les rendre intelligibles, je ne vois rien qui empecheroit nos Scholastiques de dire que tout se fait simplement par leur facultés et de soutenir leur especes intentionnelles qui vont des objets jusqu'à nous et trouvent moyen d'entrer jusques dans nos ames."; G, V, 59: "dans l'ordre de la nature (les miracles mis à part) il n'est pas arbitraire à Dieu de donner indifferemment aux substances telles ou telles qualités, et il ne leur en donnera jamais que celles qui leur seront naturelles, c'est à dire qui pourront estre derivées de leur nature comme des modifications explicables. Ainsi on peut juger que la matiere n'aura pas naturellement l'attraction mentionnée cy-dessus, et n'ira pas d'elle même en ligne courbe, parce qu'il n'est pas possible de concevoir comment cela s'y fait, c'est à dire de l'expliquer mechaniquement, au lieu que ce qui est naturel, doit pouvoir devenir concevable distinctement si l'on estoit admis dans les secrets des choses. Cette distinction entre ce qui est naturel et explicable et qui est inexplicable et miraculeux, leve toutes les difficultés : et en la rejettant, on soutiendroit quelque chose de pis que les qualités occultes et on renonceroit en cela à la philosophie et à la raison, en ouvrant des asyles de l'ignorance et de la paresse, par un systeme sourd qui admet non seulement qu'il y a des qualités que nous n'entendons pas dont il n'y en a que trop, mais aussi qu'il y en a que le plus grand esprit, si Dieu luy donnoit toute l'ouverture possible, ne pourroit point comprendre, c'est à dire qui seroiont ou miraculeuses ou sans rime et sans raison ; et cela même seroit sans rime et sans raison que Dieu fist des miracles ordinairement, de sorte que cette Hypothese faineante detruiroit egalement nostre Philosophie qui cherche des raisons, et la divine sagesse qui les fournit.". Na própria polémica, surge a definição e a distinção, Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 112, G, VII, 417: "il faut distinguer entre ce qui est explicable par les natures et forces des creatures, et ce qui n'est explicable que par les forces de la substance infinie. Il faut mettre une distance infinie entre l'operation de Dieu qui va au delà des forces des natures, et entre les operations des choses qui suivent les loix que Dieu leur a données, et qu'il les a rendues capables de suivre par leur natures, quoyqu'avec son assistance." Já antes, ibidem, 3º escrito, § 17, G, VII, 366: "Le surnaturel surpasse toutes les forces des creatures." 168 A noção teve muitos desenvolvimentos na Escolástica, pelo menos até o séc. XVII, mas inspira-se nas conceções tomistas, e. g., Thomas Aquinas, op. cit, 1st. part, Qu. 76, art. 2, Reply obj. 4, p. 1563. 169 Leibniz, op. cit, 2º escrito, § 12, G, VII, 359. Ver VI. 1, nota 13. 170 Leibniz, Essais de Théodicée, Discours..., § 41, G, VI, 74: "L'incomprehensibilité ne nous empêche pas de croire même des verités naturelles ; par exemple [...] nous ne comprenons pas la nature des odeurs et des saveurs, et cependant nous sommes persuadés par une espece de foy, que nous devons aux temoignages des sens, que ces qualités sensibles sont fondées dans la nature des choses, et que ce ne sont pas des illusions." Já antes havia equiparado qualidades sensíveis a mistérios, ibidem, § 5, G, VI, 52: "Les Mysteres se peuvent expliquer autant qu'il faut pour les croire ; mais on ne les sauroit comprendre, ny faire entendre comment ils arrivent ; c'est ainsi que même en physique nous expliquons jusqu'à un certain point plusieurs qualités sensibles, mais d'une maniere imparfaite, car nous ne les comprenons pas." 171 Leibniz, op. cit, §§ 54-55, G, VI, 80-1: "il ne faut pas demander tousjours ce que j'appelle des notions adequates, et qui n'enveloppent rien qui ne soit expliqué, puisque même les qualités sensibles, comme la chaleur, la lumiere, la douceur, ne nous sauroient donner de telles notions. Ainsi nous convenons que les mysteres reçoivent une explication, mais cette explication est imparfaite. Il suffit que nous ayons quelque intelligence analogique d'un mystere, tel que la Trinité et que l'Incarnation, afin qu'en recevant nous ne prononcions pas de paroles entierement destituées de sens : mais il n'est point necessaire que l'explication aille aussi loin qu'il seroit à souhaiter, c'est à dire, qu'elle aille jusqu'à la comprehension et au comment.

221

Leibniz admite que existam verdades naturais só parcialmente explicáveis, pelo que é difícil perceber a razão por que a atração gravítica também não o poderia ser. Porém, há que reconhecer que, habitualmente, Leibniz estabelece uma clara distinção entre a ordem dos milagres e dos mistérios e a da natureza. No caso citado por Fernando Gil para sublinhar uma certa má-fé de Leibniz na polémica,172 a distinção parece clara. Em primeiro lugar, na Teodiceia pelo menos, Leibniz não está a sustentar a transubstanciação ou a consubstanciação, mas sim uma concomitância que corresponderia à tese luterana, 173 e mesmo quando tenta mostrar a possibilidade da transubstanciação, nunca a afirma, pelo que a referência negativa aos transubstanciadores 174 não implica qualquer má-fé, visto nem se estar a falar de um mistério ou qualquer ordem miraculosa. Em segundo lugar, a passagem não está a defender a atração newtoniana, dizendo antecipadamente o contrário no domínio natural; está a dizer que, se até há quem aceite tal possibilidade no domínio natural, por que não poderia ser aceitável no domínio sobrenatural, tendo em conta que embora ultrapasse as forças naturais, não ultrapassa o poder do autor da natureza.175 Em terceiro lugar, pouco antes do desencadear desta polémica (mas com as anteriores já bem desenvolvidas), no contexto da reserva inglesa em relação à casa de Hannover que fez redobrar os esforços de distinção teológica entre a Igreja Anglicana e a Confissão luterana, já Leibniz procurava convencer a princesa de Gales a que se questionasse os newtonianos, para os embaraçar, acerca de como aceitavam que os corpos se atraíssem a distâncias enormes sem qualquer meio, quando negavam que pudesse existir uma participação do corpo e sangue de Cristo sem qualquer impedimento de distâncias. E [...] Mais quand nous parlons de l'union du Verbe de Dieu avec la nature humaine, nous devons nous contenter d'une connaissance analogique, telle que la comparaison de l'union de l'Ame avec le corps est capable de nous donner ; et nous devons au reste nous contenter de dire que l'incarnation est l'union la plus etroite qui puisse exister entre le Createur et la creature, sans qu'il soit besoin d'aller plus avant." O mesmo já era enunciado, sem bem que de forma mais vaga, na resposta a Tournemine, Leibniz, Remarque de l'Auteur du Systeme de l'Harmonie préetablie sur un endroit des Memoires de Trevoux du Mars 1704, G, VI, 596: "C'est comme dans les Mysteres où nous tachons aussi d'elever ce que nous concevons dans le cours ordinaire des Creatures, à quelque chose de plus sublime qui y puisse repondre par rapport à la Nature, et à la Puissance Divine, sans y pouvoir concevoir rien d'assez distinct et d'assez propre à former une Definition intelligible en tout. C'est aussi pour cela qu'on ne sauroit rendre raison parfaitement de tels Mysteres, ny les entendre entierement icy bas. Il y a quelque chose de plus, que des simples Mots, cependant il n'y a pas de quoy venir à une explication exacte des Termes." 172 Fernando Gil, op. cit, p. 101, nota. 173 Leibniz, Essais de Théodicée, Discours..., § 18, G, VI, 60-1. 174 Leibniz, CLC, 100. Aliás, embora o argumento acabe por surgir na última resposta (Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 39, G, VII, 398; ver IV. 2, nota 73), a referência aos transubstanciadores, não. 175 Leibniz, Essais de Théodicée, Discours..., § 19, G, VI, 61-2: "Il est vray que, depuis quelque temps, les philosophes modernes ont rejetté l'operation naturelle immediate d'un corps sur un autre corps éloigné, et j'avoue que je suis de leur sentiment [negrito acrescentado]. Cependant l'operation en distance vient d'être rehabilité en Angleterre par l'excellent M. Newton, qui soutient qu'il est de la nature des corps de s'attirer et de peser les uns sur les autres, à proportion de la masse d'un chacun et des rayons d'attraction qu'il reçoit : sur quoy le celebre M. Lock a declaré [...] qu'aprés avoir vû le livre de M. Newton, il retracte ce qu'il avoit dit luy même, suivant l'opinion des modernes, dans son Essai sur l'entendement, savoir qu'un corps ne peut operer immediatement sur un autre qu'en le touchant par sa superficie, et en le poussant par son mouvement : et il reconnoit que Dieu peut mettre des proprietés dans la matiere, qui la fassent operer dans l'éloignement. C'est ainsi que les Theologiens de la Confession d'Augsburg soutiennent qu'il depend de Dieu, non seulement qu'un corps opere immediatement sur plusieurs autres éloignés entr'eux, mais qu'il existe même auprès d'eux, et en soit reçu d'une maniere dans laquelle les intervalles des lieux et des dimensions des espaces n'ayent point de part. Et quoyque cet effect surpasse les forces de la nature, ils ne croyent point qu'on puisse faire voir qu'il surpasse la puissance de l'Auteur de la nature, à qui il est aisé d'abroger les loix qu'il a données, ou d'en dispenser comme bon luy semble, de la même maniere qu'il a pû faire nager le fer sur l'eau, et suspendre l'operation du feu sur le corps humain."

222

tirava a conclusão que, exatamente ao contrário, se deveria reservar o extraordinário e miraculoso para os Mistérios divinos e não para a explicação da Natureza. 176 Concluindo, embora haja algumas regiões nebulosas entre os mistérios e as verdades naturais, Leibniz distingue, apesar de tudo, entre o que é explicado apenas por recurso à ação divina (milagre) e o que é explicado apenas por recurso a processos naturais compatíveis com as naturezas envolvidas, mesmo que essas naturezas tenham aspetos incompreensíveis. Além destes milagres, sejam contínuos ou perpétuos (que, por princípio, rejeita), sejam intervenções extraordinárias, Leibniz admite outros dois tipos de milagres, os primigénios e os angélicos, estes últimos de forma relativa. Os milagres primigénios são os ocorridos na criação, excedendo todas as forças naturais, mas dando origem à Natureza, como a formação original dos animais e a harmonia pré-estabelecida. 177 Quanto aos milagres angélicos, só o são do nosso ponto de vista, tal como as ações humanas podem parecer miraculosas a outros animais.178 A este propósito, a reação de Clarke poderia parecer de discordância, mas, na verdade, está apenas a dar um remoque ao dogmatismo manifestado por Leibniz, exigindo consistência, até porque Clarke já tinha avançado com uma referência vaga aos anjos.179 A conceção de Clarke apenas 176

Leibniz, SP, carta para a Princesa de Gales de 10 de Maio de 1715, 529: "Il est vray que des amis me pressent d'examiner par moy-même la philosophie de M. Newton, qui est un peu extraordinaire. Il prétend qu'un corps attire l'autre à quelque distance que ce soit, et qu'un grain de sable chez nous exerce une force attractive jusques sur le soleil, sans aucun milieu ni moyen. Après cela, comment ses sectateurs voudront-ils nier que par la toute-puissance de Dieu nous pouvons avoir participation du corps et du sang de Jésus-Christ, sans aucun empêchement des distances ? C'est un bon moyen de les embarrasser, — des gens, qui par un esprit d'animosité contre la Maison d'Hanover, s'émancipent maintenant plusque jamais de parler contre nostre Religion de la Confession d'Augsbourg, comme si notre Réalité Eucharistique étoit absurde. Pour moy, je crois qu'il faut réserver une opération extraordinaire et miraculeuse en effect pour les Mystères divins, et ne les point faire entrer dans l'explication des choses naturelles." 177 Leibniz, Essais de Théodicée, Préface, G, VI, 42: "je n'admets le surnaturel icy que dans le commencement des choses, à l'égard de la premiere formation des animaux, ou à l'egard de la constitution originaire de l'harmonie préétablie entre l'ame et le corps ; apres quoy je tiens que la formation des animaux et le rapport entre l'ame et le corps sont quelque chose d'aussi naturel à present, que les autres operations les plus ordinaires de la nature. C'est à peu près comme on raisonne communement sur l'instinct et sur les operations merveilleuses des bêtes. On y reconnoit de la Raison, non pas dans les bêtes, mais dans celuy qui les a formées."; Leibniz, Streitschriften..., 4º escrito, § 46, G, VII, 377: "le commencement des animaux est aussi inexplicable par leur moyen [les forces naturelles], que le commencement du monde"; ibidem, 5º escrito, § 89, G, VII, 412: Ver V.2, nota 139. 178 Leibniz, Essais de Théodicée, 3ª parte, § 249, G, VI, 265: "Quant aux miracles [...], ils ne sont pas tout peutêtre d'une même sorte : il y en a beaucoup apparemment que Dieu procure par le ministere de quelques substances invisibles, telles que les Anges, comme le R. P. de Mallebranche le tient aussi ; et ces Anges ou ces substances agissent selon les loix ordinaires de leur nature, étant jointes à des corps plus subtils et plus vigoureux que ceux que nous pouvons manier. Et de tels miracles ne le sont que comparativement, et par rapport à nous ; comme nos ouvrages passeroient pour miraculeux auprès des animaux, s'ils étoient capables de faire leur remarques là dessus. Le changement de l'eau en vin pourroit être un miracle de cette espece. Mais la creation, l'incarnation, et quelque autres actions de Dieu passent toute la force des creatures, et sont veritablement des miracles, ou même des mysteres."; Leibniz, Streitschriften..., 4º escrito, § 44, G, VII, 377: "Il y a des miracles d'une sorte inferieure, qu'un ange peut produire ; car il peut, par exemple, faire qu'un homme aille sur l'eau sans enfoncer. Mais il y a des miracles reserves à Dieu et qui surpassent toutes les forces naturelles, tel est celuy de créer ou d'annihiler."; ibidem, 5º escrito, § 117, G, VII, 418: "Il n'y a point de difficulté chez les Theologiens sur les miracles des Anges. Il ne s'agit que de l'usage du mot. On pourra dire que les Anges font des miracles, mais moins proprement dits, ou d'un ordre inferieur. Disputer là dessus, seroit une question de nom. On pourra dire que cet Ange qui transportoit Habacuc par les airs, qui remuoit le lac de Bethesda, faisoit un miracle. Mais ce n'estoit pas un miracle du premier rang, car il est explicable par les forces naturelles des Anges, superieures aux notres." 179 Clarke, Streitschriften..., 3ª réplica, § 17, G, VII, 371: "whether it be effected immediately by God himself, or mediately by any invisible Created Power"; 4ª réplica, § 44, G, VII, 388: "This is a

223

parece divergir da de Leibniz num pequeno detalhe (que talvez não seja assim tão pequeno): enquanto Leibniz remetia, exclusivamente, para Deus os poderes de criação e de aniquilação, Clarke só reconhece a exclusividade aos de criação.180 Porém, uma outra crítica atinge muito mais a conceção leibniziana: ao admitir milagres realizados por poderes naturais, milagres que podem ser apenas relativos ao homem, mas que, ainda assim, o homem não consegue explicar naturalmente, a não ser por referência a supostos seres naturais com poderes superiores, Leibniz está a contradizer diretamente todo o teor das suas críticas, sobretudo as relacionadas com a gravitação.181 Que impediria a ordem celeste de ser regulada por potências angélicas ao serviço de Deus? Leibniz, já se viu em VI. 1., criticava o modelo aristotélico-tomístico das inteligências, mas qual o fundamento, se aceitava os milagres angélicos? Aliás, viu-se, em VI. 4., como Clarke se inclinava para fazer depender o funcionamento do universo de Inteligências criadas.182 Assim, esta análise das definições de milagre leva a um colapso parcial das críticas leibnizianas – parcial porque a recuperação das forças ativas pode ser, do ponto de vista leibniziano, de uma outra ordem, um verdadeiro poder criativo, visto toda a substância ser força e todas as forças derivarem das forças primitivas das substâncias. Mas a definição está longe de encerrar a abordagem de Leibniz. Já foi aflorada, aliás, uma questão tão importante quanto a formal, a relativa à finalidade. Leibniz opõe-se ao recurso aos milagres para explicar a ordem natural porque os milagres só se justificam pelas razões superiores da graça.183 Percebe-se que entende, muito embora não se perceba como o pode garantir, que os próprios anjos só agem em prol da ordem da graça.184 No entanto, a possibilidade de milagres em nada aumenta a arbitrariedade divina porque, contrapondo-se ao entusiasmo, Leibniz defende que, se não existisse fundamento racional para a graça, se destruiria a motivação para a busca da verdade.185 Concession of what I alleged. And yet it is contrary to the common opinion of Divines, to suppose that an Angel can work a Miracle." 180 Clarke, DC, 220: "What Degrees of Power God may reasonably be supposed to have communicated to Created Beings, to subordinate Intelligences, to good or evil Angels, is by no Means possible for us to determine. Some Things absolutely impossible for Men to effect, 'tis evident, may easily be within the natural Powers of Angels; and some Things beyond the Power of inferior Angels may as easily be supposed to be within the natural Power of others that are superior to Them; and so on. So that, excepting the original Power of Creating, which we cannot indeed conceive communicable to Things which were themselves created, we can hardly affirm with any Certainty, that any particular Effect, how great or miraculous soever it may seem to us, is beyond the Power of all Created Beings in the Universe to have produced." 181 Clarke, Streitschriften..., 5ª réplica, § 117, G, VII, 439: "This learned Author's allowing in this Place, that there is greater and less in true Miracles, and that Angels are capable of working some true Miracles; is perfectly contradictory to that Notion of the Nature of a Miracle, which he has all along pleaded for in these Papers." 182 Clarke, DC, 222. Ver VI. 4, nota 152. 183 Leibniz, Nouveaux essais..., L. IV, C. XVII, § 23, G, V, 478: "l'ordre de la nature même, n'estant d'aucune necessité metaphysique, n'est fondé que dans le bon plaisir de Dieu, de sorte qu'il s'en peut eloigner par des raisons superieures de la grace, quoyqu'il n'y faille point aller que sur des bonnes preuves, qui ne peuvent venir que du temoignage de Dieu luy même, où l'on doit deferer absolument lorsqu'il est duement verifié."; Leibniz, Essais de Théodicée, Discours..., §§ 2-3, G, VI, 50: "ce n'est pas sans raison que Dieu les a données [as leis da Natureza], car il ne choisit rien par caprice, et comme au sort, ou par une indifference toute pure : mais les raisons generales du bien et de l'ordre, qui l'y ont porté, peuvent être vaincues dans quelques cas par des raisons plus grandes d'un ordre superieur. Cela fait voir que Dieu peut dispenser les creatures des loix, qu'il leur a prescrites, et y produire ce que leur nature ne porte pas, en faisant un Miracle". Na polémica, di-lo logo na primeira carta: Leibniz, Streitschriften..., 1º escrito, § 4, G, VII, 352. Ver III.5, nota 138. 184 Leibniz, Essais de Théodicée, 3ª parte, § 355, G, VI, 326. Transcrição adiante, nota 190. 185 Leibniz, Nouveaux essais..., L. IV, C. XVIII, §§ 1-9, G, V, 480: "la grace interne du S. Esprit y supplée immediatement d'une maniere surnaturelle, et c'est ce qui fait ce que les Theologiens appellent

224

Além disso, os milagres estão tão predeterminados quanto os processos naturais ou anímicos.186 Ora, deixando para as próximas secções os outros assuntos que são sujeitos à questão dos milagres, a rejeição da atração gravítica prende-se, sobretudo, com o não ter qualquer relação com a ordem da graça 187 e o de ser algo que, não podendo ser explicado de forma natural, era considerado porém como uma lei constante dessa Natureza. Leibniz, o defensor da dinâmica, resiste, como mecanicista, a qualquer explicação de uma Natureza de fabricação divina que necessite, para o seu funcionamento, de algo mais do que o movimento e a disposição das peças. Na própria polémica, faz uma declaração inequívoca de fé mecanicista: "Um corpo nunca é movido naturalmente senão por um outro corpo que o empurre ao tocá-lo."188 Em contraposição a Locke, lamenta que este tenha tanta dificuldade em admitir o que não é sensível, para acabar a admitir o que não é inteligível.189 É o escândalo do mecanicista que o leva a rejeitar as explicações associadas a leis que, matematicamente, não pode negar. 190 E proprement une foy divine. Il est vray que Dieu ne la donne jamais que lorsque ce qu'il fait croire est fondé en raison ; autrement il detruiroit les moyens de connoistre la verité, et ouvriroit la porte à l'Enthousiasme". Veja-se a crítica à preferência a ser favorito do que ser capaz em Leibniz, Essais de Théodicée, 3ª parte, § 317, G, VI, 304-5: "si on trouve bien d'avoir preferé un instinct tumultueux qui s'étoit elevé tout d'un coup, à des raisons meurement examinées, on en conçoit une joye extraordinaire ; car on s'imagine, ou que Dieu, ou que nostre Ange gardien, ou qu'un je ne say quoy, qu'on se represente sous le nom vague de fortune, nous a possé à cela. [... Vários exemplos históricos] On s'applaudit d'être favori du ciel ; on s'estime davantage d'être heureux, que d'être habile. Il n'y a point de gens qui se croyent plus heureux, que les mystiques, qui s'imaginent se tenir en repos, et que Dieu agit en eux." Curiosamente, a mesma dissociação entre os milagres e o entusiasmo, usando a própria figura de Jesus para se contrapor ao entusiasmo, surge em Clarke, e. g., Clarke, DC, 217. 186 Leibniz, op. cit, 1ª parte, § 54, G, VI, 132: "On dira aussi, que si tout est reglé, Dieu ne sauroit donc faire des miracles. Mais il faut savoir que les miracles qui arrivent dans le monde, étoient aussi enveloppés et representés comme possibles dans ce même monde, consideré dans l'état de pure possibilité ; et Dieu qui les a fait depuis, a decerné dès lors de les faire, quand il a choisi ce monde." 187 Nos milagres, não se desrespeita uma lei (a da natureza) senão para aplicar uma outra (a da graça). Leibniz, op. cit, 2ª parte, § 207, G, VI, 241: "il ne deroge à une loy que par une autre loy plus aplicable [...]. Le caractere des miracles [...] est, qu'on ne les sauroit expliquer par les natures des choses creées. C'est pourquoy, si Dieu faisoit une loy generale, qui portât que les corps s'attirassent les uns les autres, il n'en sauroit obtenir l'éxecution que par des miracles perpetuels." Foram eliminadas as referências a Malebranche, a quem a passagem era especialmente dirigida. 188 Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 35, G, VII, 398: "Un corps n'est jamais mû naturellement, que par un autre corps qui le pousse en le touchant ; et apres cela il continue jusqu'à ce qu'il soit empeché par un autre corps qui le touche. Toute autre operation sur les corps, est ou miraculeuse ou imaginaire." Aliás, neste mesmo parágrafo, tinha tentado explicar a gravidade mecanicamente, ibidem, G, VII, 397-8: "Car c'est une étrange fiction que de faire toute la matiere pesante ; et même vers toute autre matiere, comme si tout corps attiroit egalement tout autre corps selon les masses et les distances ; et cela par une attraction proprement dite, qui ne soit point derivée d'une impulsion occulte des corps : au lieu que la pesanteur des corps sensibles vers le centre de la terre, doit étre produite par le mouvement de quelque fluide. Et il en sera de même d'autres pesanteurs, comme celle des planetes vers le soleil, ou entre elles." 189 Leibniz, Nouveaux essais..., Préface, G, V, 54: "Il fait le difficile sur les operations des ames quand il s'agit seulement d'admettre ce qui n'est point sensible, et le voilà qui donne aux corps ce qui n'est pas même intelligible, leur accordant des puissances et des actions qui passent tout ce qu'a mon avis un esprit creé sauroit faire et entendre, puisqu'il leur accorde l'attraction, et même à des grandes distances sans se borner à aucune sphère d'activité, et cela pour soutenir un sentiment qui ne paroist pas moins inexplicable, savoir la possibilité de la pensée de la matiere dans l'ordre naturel." 190 Leibniz, Essais de Théodicée, 3ª parte, § 355, G, VI, 326: "L'on voit que Monsieur Bayle croit que tout ce qui se fait par des loix generales, se fait sans miracle. Mais j'ay assés montré, qui si la loy n'est point fondée en raisons, et ne sert pas à expliquer l'evenement par la nature des choses, elle ne peut être executée que par miracle. Comme, par exemple, si Dieu avoit ordonné que les corps dussent se mouvoir en ligne circulaire, il auroit eu besoin de miracles perpetuels, ou du ministere des Anges, pour executer cet ordre ; car il est contraire à la nature du mouvement, où le corps quitte naturellement la ligne circulaire, pour continuer dans la droite tangente, si rien ne le retient." Esta insistência em que é preciso uma razão natural para o movimento curvo, também se repete na polémica: Leibniz, Streitschriften..., 3º

225

sem uma explicação mecânica explícita, não deixará de as rejeitar. Quanto a Clarke, também as posições assumidas na polémica já tinham antecedentes. É bem possível que toda a crítica de Malebranche à presunção de clareza e distinção nos movimentos e contactos mecânicos, tentando mostrar que todas as ocorrências banais nos eram tão desconhecidas e misteriosas quanto os milagres, incluindo não só o pensamento e a comunicação entre corpo e alma, mas também os próprios fenómenos de choque e de aparente transferência de movimento, 191 tenha preparado a aceitação de fenómenos menos sustentáveis mecanicamente. Como afirma Koyré, 192 "o pensamento do século XVIII reconcilia-se [depressa] com o incompreensível", tornando uma pura questão de facto o que era ainda para o próprio Newton um problema. Porém, esse processo começa no círculo newtoniano, mas não imediatamente. O próprio Newton terá caracterizado a gravitação da mesma forma que Leibniz193 e Whiston, na fase em que ainda era o sucessor em Cambridge de Newton e um dos seus discípulos mais próximos, procurava, assim, mostrar exatamente, pela positiva, a Providência divina, 194 relativizando mesmo a distinção entre ordinário e escrito, § 17, G, VII, 366-7: "Si Dieu vouloit faire en sorte qu'un corps libre se promenât dans l'Ether en rond à l'entour d'un certain centre fixe, sans que quelque autre creature agist sur luy ; je dis que cela ne se peut que par miracle, n'estant pas expliquable par les natures des corps. Car un corps libre s'ecarte naturellement de la ligne courbe par la tangente. C'est ainsi que je soutiens que l'attraction proprement dite des corps est une chose miraculeuse, ne pouvant pas estre espliquée par leur nature."; 4º escrito, § 45, G, VII, 377: "Il est surnaturel aussi, que les corps s'attirent de loin sans aucun moyen, et qu'un corps aille en rond, sans s'ecarter par la tangente, quoyque rien ne l'empechât de s'ecarter ainsi. Car ces effects ne sont point explicables par les natures des choses."; 5º escrito, § 123, G, VII, 419: "Il seroit comme le cas d'un corps allant en rond sans s'ecarter par la tangente, quoyque rien d'explicable ne l'empechât de le faire. Exemple que j'ay deja allegué, auquel on n'a pas trouvé à propos de répondre, parce qu'il montre trop clairement la difference entre le veritable naturel d'un coté, et entre la quantité occulte chimerique des ecoles de l'autre coté." 191 Malebranche, MC, V. Med., IV-XVII, 74-92. Aliás, é o que o próprio Clarke questiona na polémica: Cf. Clarke, Streitschriften..., §§ 110 a 116, G, VII, 438: "what greater Difficulty is there in conceiving how an immaterial Substance should act upon Matter, than in conceiving how Matter acts upon Matter?" 192 Koyré, EN, 202: "la gravité ou attraction est devenue pour Maupertuis – et de même pour Voltaire – une question de fait. Elle a cessé d'être un problème comme elle l'était pour Newton lui-même. La pensée du XVIIIe siècle se réconcilia ainsi avec l'incompréhensible". Antes, Koyré havia transcrito um texto de Maupertuis que aludia às teses de Malebranche: "La manière dont les proprietés résident dans un sujet est toujours inconcevable pour nous. Le peuple n'est point étonné lorsqu'il voit un corps en mouvement communiquer ce mouvement à d'autres ; l'habitude qu'il a de voir ce phénomène l'empêche d'en apercevoir le merveilleux". Da mesma forma, Cotes já trata a gravidade como propriedade primária do corpo que necessita tão pouco de explicação causal adicional quanto a extensão, a mobilidade ou a impenetrabilidade: cf. Cotes, Philosophiæ naturalis..., præfatio in Editionem secundam, OO, II, xix. 193 Newton, Memoranda by David Gregory, 5, 6, 7 May 1694, CN, III, 334: "Continuo opus esse miraculo ne Sol et fixæ per gravitatem coeant. Magnam in Cometis excentricitatem et ad diversas et contrarias partes cum planetis divinam denotarum manum, ac Cometas ad alium (a planetis) usum destinatos arguunt. Possunt satellites Jovis et Saturni in locum succedere ♁, ♀, ♂ destructorum, et ad novam Creationem reservari." A transcrição do segmento deste apontamento das próprias palavras de Newton é um pouco mais extensa do que seria necessário para a questão dos milagres, visto ser relevante para a questão da Providência e do milenarismo. A segunda frase atribui aos cometas um desígnio divino diverso dos planetas e a terceira admite a possibilidade dos sistemas de Júpiter e Saturno poderem estar de reserva para uma nova criação, caso os planetas interiores sejam destruídos. 194 Embora esta seja a versão nas vésperas da sua queda em desgraça, a 1ª ed. data de 1696. William Whiston, A new Theory of the Earth, 2nd ed., Cambridge, University Press, 1708 [NT], p. 284: "'Tis not very easy, I confess, in such mighty Turns and Changes of the World, exactly to determine how far, and in what particulars, a supernatural or miraculous Interposition of the Divine Power is cocern'd; and how far the Laws of Nature, or Mechanical Powers ought to be extended. Nay, indeed, 'tis difficult enough, in several instances to determine what is the effect of a natural and ordinary, and what of a supernatural and extraordinary Providence. 'Tis now evident, That Gravity, the most mechanical Affection of Bodies, and which seems most natural, depends entirely on the constant and efficacious, and, if you will, the

226

extraordinário. Até que ponto a crítica leibniziana, tornada notória certamente após 1710, terá contribuído para uma prevenção newtoniana, é difícil dizer, visto, já antes, o processo de familiarização com o incompreensível se ter manifestado, claramente, na conceção relativista de milagre em Clarke. Clarke bem havia sublinhado que aquilo a que se chama natural não é mais fácil de fazer do que o miraculoso. Como resultado da nova inércia, afirmava ser tão difícil fazer mover o Sol ou um planeta, como pará-los. Por isso, se a respeito do poder de Deus, nada é miraculoso, a respeito do nosso entendimento quase tudo o é. Não havendo, assim, nenhum critério inerente à natureza das ocorrências, o único critério que resta para distinguir o milagroso do natural é a distinção entre o habitual e o raro.195 O que se chama milagre respeita às intervenções supernatural and miraculous Influence of Almighty God. And I do not know whether the falling of a Stone to the Earth ought not more truly to be esteem'd a Supernatural Effect, or a Miracle, than what we with the greatest surprize should so stile, its remaining pendulous in the open Air; since the former requires an active Influence in the first Cause, while the latter supposes Non-annihilation only." Nesta fase, o objetivo era o de evidenciar as próprias leis newtonianas como intervenções divinas de acordo com os objetivos religiosos do newtonianismo, diversos, aliás, da conceção, por exemplo, de Boyle: Force, EC, 148: "Newton and such Newtonian disciples as Whiston tend generally to discount the traditional conception of miracles held by Boyle, Wilkins, and the other leading founders of the Royal Society. A miracle is not necessarily always a transgression of natural law. Rather, the sustained operation of natural law is itself a miracle and illustrates God's specially provident dominion." Repare-se que é, exatamente, desta conceção, embora encarada, por Leibniz, negativamente, que Clarke se procura defender na polémica. 195 Clarke, DC, 219-20: "'Tis not therefore a right Distinction to define or distinguish a Miracle by any absolute Difficulty in the Nature of the Thing itselt to be done, as if the Things we call Natural were absolutely and in their own Nature easier to be effected, than those that we look upon as Miraculous. On the contrary, 'tis evident and undeniable, that tis at least as great an Act of Power to cause the Sun or a Planet to Move at all, as to cause it to stand still at any Time. Yet this latter we call a Miracle; the former, not. And, to restore the Dead to Life, which is an Instance of an extraordinary Miracle, is in itself plainly altogether as easy, as to dispose Matter at first into such Order, as to form a human Body in that which we commonly call a natural Way. So that, absolutely speaking, in This strict and philosophical Sense, either nothing is Miraculous, namely, if we have Respect to the Power of God; or, if we regard our own Power and Understanding, then almost every Thing, as well what we call natural, as what we call supernatural, is in this Sense really Miraculous; and 'tis only Usualness or Unusualness that makes the Distinction." Só foi possível verificar este trecho recuando até à 3ª edição, já de 1711 (Samuel Clarke, A Discourse Concerning the Being and Attributes of God, the Obligations of Natural Religion, and the Truth and Certainty of the Christian Revelation, London, James Knapton, 1711, pp. 301-302). Mas esta tese não é, aliás, diversa da de Whiston. Apenas começa, logo, por relativizar a noção de milagre de forma a não se poder chamar explicação miraculosa à teoria da gravitação, ao passo que Whiston pretendia sublinhar o caráter sobrenatural da atração para evidenciar a Providência divina na sua própria tutela natural. Clarke, Streitschriften..., 2ª réplica, § 12, G, VII, 362: "Natural and Supernatural are nothing at all different with regard to God, but distinctions merely in Our Conceptions of things. To cause the Sun [or Earth] to move regularly, is a thing we call Natural; To stop its Motion for a Day, we call Supernatural: But the One is the Effect of no greater Power than the Other; nor is the One, with respect to God, more or less Natural or Supernatural than the other." E chama a atenção que se o critério fosse o de Leibniz, não sendo necessário poder infinito para a maior parte dos milagres e não ultrapassando o poder de todas as criaturas, quase nada seria milagre: Clarke, op. cit, 3ª réplica, § 17, G, VII, 371: "If a Miracle be That only, which surpasses the Power of all created Beings; then for a Man to walk on the Water, or for the Motion of the Sun or the Earth to be stopped, is no Miracle; since none of these things require infinite Power to effect them. For a Body to move in a Circle round a Center in Vacuo; if it be Usual (as the Planets moving about the Sun) 'tis no Miracle, whether it be effected immediately by God himself, or mediately by any Created Power: But if it be unusual (as, for a heavy Body to be suspended, and move so in the Air) tis equally a Miracle, whether it be effected immediately by God himself, or mediately by any invisible Created Power." Diga-se, aliás, que a concordância newtoniana, como é habitual, é total: Henry Guerlac and M. C. Jacob, "Bentley, Newton, and Providence: The Boyle Lectures Once More" in Journal of the History of Ideas, University of Pennsylvania Press, 19697/9, Vol. 30, Nº. 3, p. 309: "For Miracles are so called not because they are the works of God but because they happen seldom & for that reason create wonder. If they should happen constantly according to certaine laws imprest upon the nature of things, they would be

227

ocasionais, distinguindo-se do natural por este ser regular. 196 Frente à objeção leibniziana de que, se o critério fosse a raridade, então os monstros seriam milagres,197 Clarke revê um pouco a definição, admitindo que podem existir ocorrências raras que não são milagres porque são efeitos raros de causas usuais, como acontece com os eclipses.198 Naturalmente, resta saber como se pode ter a certeza que certo milagre não será um efeito raro de causas comuns, até porque prodígio é apenas, habitualmente, um sinónimo de milagre e, para as culturas que não tivessem explicação para os eclipses, estes poderiam ser vistos como milagres. Neste caso, seguir-se-ia poder não haver quaisquer milagres. A alternativa seria supor, afinal, uma diferença na natureza das próprias realidades, o que Clarke não pode aceitar visto conceber a natureza física como inerentemente passiva e, constantemente, dependente de Deus, direta ou indiretamente, em todas as ações. Por isso, não admite que exista um curso próprio da Natureza ou poderes próprios da Natureza, considerando estas expressões vazias,199 tal como a força

no longer wonders or miracles, but might be considered in Philosophy as a part of the Phenomena of Nature notwithstanding that the cause of their causes might be unknown to us." (Nota de Newton sem data, guardada, à data, na Biblioteca da Universidade de Lehigh.) 196 Clarke, DC, 224: "Those Effects which are produced in the World regularly and constantly, which we call the Works of Nature, prove to us in general, the Being, the Power, and the other Attributes of God. Those Effects, which, upon any rare and extraordinary Occasion, are produced in such Manner, that 'tis manifest they could neither have been done by any Power or Art of Man, nor by what we call Chance, that is, by any Composition or Result of those Laws which are God's constant and uniform Actings upon Matter; these undeniably prove to us the immediate and occasional Interposition either of God himself, or at least of some intelligent Agent Superior to Men, at That particular Time, and on That particular Account. For Instance, The regular and continual Effects of the Power of Gravitation, and of the Laws of Motion; of the Mechanic, and of the Animal Powers; All these prove to us in general, the Being, the Power, the Presence, and the constant Operation, either immediate or mediate, of God in the World. But if, upon any particular Occasion, we should see a Stone suspended in the Air, or a Man walking upon the Water, without any visible Support; a chronical Disease cured by a Word speaking, or a dead and corrupted Body restored to Life in a Moment; we could not then doubt, but there was an extraordinary Interposition either of God himself, in order to signify his Pleasure upon that particular Occasion; or at least of some lntelligent Agent far superior to Man, in order to bring about some particular Design." 197 Leibniz, op. cit, 4º escrito, § 43, G, VII, 377: "J'ay peur qu'en voulant changer le sens receu du miracle, on ne tombe dans un sentiment incommode. La nature du miracle ne consiste nullement dans l'usualité et inusualité ; autrement les monstres seroient des miracles." 198 Clarke, Streitschriften..., 4ª réplica, § 43, G, VII, 388: "Unusualness is necessarily included in the Notion of a Miracle. For otherwise there is nothing more wonderful, nor that requires greater Power to effect, than some of those things we call natural. Such as, the Motions of the Heavenly-Bodies, the generation and formation of Plants and Animals etc. Yet these are for This only reason not Miracles, because they are common. Nevertheless, it does not follow, that every thing which is unusual, is therefore a Miracle. For it may be only the irregular and more rare effect of usual Causes: Of which kind are Eclipses, Monstrous Births, Madness in Men, and innumerable things which the Vulgar call Prodigies." 199 Clarke, op. cit, 5ª réplica, §§ 107-109, G, VII, 435-6: "with regard to God, no one Possible thing is more miraculous than other; and that therefore a Miracle does not consist in any Difficulty in the Nature of the Thing to be done, but merely in the Unusualness of God's doing it. The Terms, Nature, and Powers of Nature, and Course of Nature, and the like, are nothing but empty Words; and signify merely, that a thing usually or frequently comes to pass. The Raising a Human Body out of the Dust of the Earth, we call a Miracle; the Generation of a Human Body in the ordinary way, we call Natural; for no other Reason, but because the Power of God effects one usually, the other unusually. The sudden stopping of the Sun (or Earth) we call a Miracle; the continual Motion of the Sun (or Earth) we call Natural; for the very same Reason only, of the one's being usual, the other unusual. Did Men usually arise out of the Grave, as Corn grows out of Seed sown, we should certainly call That also natural: And did the Sun (or Earth) constantly stand still, we should then think That to be natural, and its Motion at any time would be miraculous." Como já foi visto em V. 1, a matéria nem é capaz de seguir quaisquer Leis: Clarke, DC, 13-4. Por isso, também Newton considerava não filosófico que o mundo pudesse provir do caos por meras leis da natureza: Isaac Newton, op. cit., OO, IV, 261.

228

da Natureza, ou, ainda, uma diferença interna real.200 Outra possibilidade seria restringir os milagres ao domínio da graça, como faz o próprio Leibniz, mesmo na polémica, subordinando-os a considerações morais 201 e doutrinárias, 202 mas, por alguma razão, Clarke não prossegue, na polémica, esse caminho que permitiria, como já havia pretendido fazer, distinguir os milagres de outras ocorrências extraordinárias. Relativamente à gravitação e ao contrário da posterior ciência newtoniana, Clarke reconhece, prontamente, a absurdidade de um corpo atrair outro sem qualquer meio: um corpo agir onde não está seria não um milagre, mas uma contradição; porém, é possível que esse meio seja não só invisível e intangível, como de uma natureza diferente do mecanismo.203 Na polémica com Collins, Clarke já havia reconhecido a necessidade de uma causa que não poderia ser a mera lei, afinal apenas um dos nomes abstratos a que Clarke não reconhece verdadeira realidade, 204 até porque, como já foi 200

Embora, neste último caso, se aproveite da admissão leibniziana dos milagres angélicos, apesar de ignorar a distinção entre milagres de Leibniz, em que os angélicos eram apenas relativos e poderiam ser considerados milagres ou não. Cf. Clarke, Streitschriften..., 5ª réplica, §§ 110-116, G, VII, 436: "What does this Learned Writer mean by a real Internal Difference between what is miraculous, and not miraculous; or between Operations natural, and not natural; absolutely, and with regard to God? Does he think there are in God two different and really distinct Principles or Powers of Acting, and that one thing is more difficult to God than another? If not: then either a natural and supernatural Action of God, are Terms whose Signification is only relative to us; we calling an usual Effect of God's Power, natural; and an unusal one, supernatural; the force of Nature being, in truth, nothing but an empty word: Or else, by the One must be meant That which God does immediately Himself; and by the Other, that which he does mediately by the instrumentality of second Causes. The former of these Distinctions, is what this Learned Author is here professedly opposing: The latter is what he expresly disclaims, § 117, where he allows that Angels may work True Miracles. And yet besides these Two, I think no other Distinction can possibly be imagined." 201 Clarke, DC, 126: "when at the Will of a Person who teaches some new Doctrine as coming from God, and in Testimony to the Truth of that Doctrine, there is plainly and manifestly an Interposition of some Superior Power, producing such miraculous Effects as have been before mentioned: The only possible Ways, by which a Spectator may certainly and infallibly distinguish, whether those Miracles be indeed the Works either immediately of God himself, or (which is the very same Thing) of some good Angel employed by him; and consequently the Doctrine witnessed by the Miracles be infallibly true and divinely attested; Or whether, on the contrary, the Miracles be the Works of Evil Spirits, and consequently the Doctrine a Fraud and Imposition upon Men: The only possible Ways (I say) of distinguishing this Matter certainly and infallibly are these: If the Doctrine attested by Miracles be in itself impious, or manifestly tending to promote Vice, then without all Question the Miracles, how great soever they may appear to Us, are neither worked by God himself, nor by his Commission; because our natural Knowledge of the Attributes of God, and of the necessary Difference between Good and Evil, is greatly of more Force to prove any such Doctrine to be false, than any Miracles in the World can be to prove it true." 202 Ao menos, como condição de possibilidade dos milagres. Cf. Clarke, DC, 230: "From hence it appears how little Reason there is to object, as some have done, that we prove in a Circle the Doctrine by the Miracles, and the Miracles by the Doctrine. For the Miracles, in this Way of reasoning, are not at all proved by the Doctrine; but only the Possibility and the good Tendency, or at least the lndifferency of the Doctrine, are a necessary Condition or Circumstance, without which the Doctrine is not capable of being proved by any Miracles." 203 Clarke, Streitschriften..., 4ª réplica, § 45, G, VII, 388: "That One Body should attract another sans aucun moyen, is indeed not a Miracle, but a Contradiction: For 'tis supposing something to act where it is not. But the moyen by which Two Bodies attract each other, may be invisible and intangible, and of a different nature from Mechanism; and yet, acting regularly and constantly, may well be called natural". Ao contrário de interpretações que julgam ver um regresso à posição ortodoxa de Newton na 5ª réplica, por reafirmar a suspensão de juízo, não há nada de original nesta passagem em relação a Newton: Isaac Newton, op. cit., Tomus quartus, "Carta para Bentley de 25 de Fevereiro de 1693", p. 438: "That gravity should be innate, inherent and essential to matter, so that one body may act upon another at a distance through a vacuum, without the mediation of any thing else, by and through which their action and force may be conveyed from one to another, is to me so great an absurdity, that I believe no man who has in philosophical matters a competent faculty of thinking, can ever fall into it." 204 Clarke, LD, "A Second Defence of an Argument...", 169: "you [Collins] think, it does not appear but

229

visto (V. 1.), nada existe na matéria que lhe permita cumprir leis.205 Também já havia reconhecido que as atrações não passavam de nomes igualmente abstratos e que a própria gravidade não poderia ser uma qualidade inerente à matéria, seguindo a posição newtoniana (vista numa nota em IV. 8) que rejeitava a gravidade como propriedade essencial dos corpos. 206 Porém, acrescentava que se trataria do efeito da operação contínua e regular de outro Ser nela. 207 Para não haver dúvidas acerca da sua natureza não material, explicita essa força como estranha à matéria.208 Além disso, seguindo o argumento newtoniano da força da gravidade não agir proporcionalmente à quantidade das superfícies mas da matéria sólida,209 Clarke concluía que a causa não poderia ser mecânica mas resultante da ação de um ser imaterial.210 Após um ataque tradicional à inexplicabilidade, miraculosidade, absurdidade e recurso às famigeradas qualidades ocultas, incluindo um ataque ao uso newtoniano do termo força, uma acusação de obscurantismo e espírito retrógrado e quimérico, assim como mais um argumento de autoridade, referindo Boyle, 211 Leibniz solicita o que muitos solicitaram a Newton, a explicitação da causa direta da gravidade. Será Deus o meio? Será uma outra substância imaterial, raios espirituais, um acidente sem substância, uma espécie intencional?212 É óbvio que Leibniz exige, como critério básico that Matter gravitates by virtue of Powers originally placed in it by God, and is now left to it self to act by those Original Powers. This Opinion of yours, I cannot but think, Sir, to be a great Mistake in your Philosophy. For when a Stone that was at Rest, does of it self, upon its Support being removed, begin to fall downward; what is it that causes the Stone to begin to move? Is it possible to be an Effect produced without a Cause? Is it impelled without any Impeller? Or can a Law or Power, that is to say, a mere abstract Name or complex Notion, and not any real Being, impel a Stone and cause it to begin to move?" 205 Clarke, DC, 13-4. 206 Newton, Letters to Dr. Bentley, Letter II, OO, IV 437; Newton, Optics, Advertisement II, OO, IV, 4; Newton, Philosophiæ naturalis..., Liber tertius, Regula III, OO, III, 4. 207 Clarke, LD, "A Defence of an Argument...", 94: "Other Powers, such as Magnetism, and Electrical Attractions, are not real Qualities at all, residing in any Subject, but merely abstract Names to express the Effects of some determinate Motions of certain Streams of Matter: And Gravitation it self, is not a Quality inhering in Matter, or that can possibly result from any Texture or Composition of it; but only an Effect of the continual and regular Operation of some other Being upon it; by which the Parts are all made, to tend one towards another". 208 Clarke, LD, "A Second Defence of an Argument...", 183-4: "Gravity, is not a Quality of Matter, arising from its Texture or any other Powers in it; but merely an Endeavour to Motion, excited by some foreign Force or Power." 209 Newton, op. cit., Scholium Generale, OO, III, 173: "Oritur utique hæc vis à causâ aliquâ, quæ penetrat as usque centra Solis & Planetarum, sine virtutis diminutione; quæque agit non pro quantitate superficierum particularum, in quas agit (ut solent causæ Mechanicæ) sed pro quantitate materiæ solidæ; & cujus actio in immensas distantias undique extenditur, decrescendo semper in duplicatâ ratione distantiarum." 210 Clarke, LD, "A Third Defence of an Argument...", 295. Ver V. 1, nota 14. Vide Clarke, DA, X, 58: "We have, I say, great and strong arguments both from experience and reason that there are such things as immaterial substances, though we have no idea of their simple essence. Even the first and most universal principle of gravitation itself in all matter, since it is ever proportional not at all to the surfaces of bodies or of their particles, in any possible supposition, but exactly to the solid content of bodies, it is evident it cannot be caused by matter acting upon the surfaces of matter, which is all it can do, but must either immediately or mediately be caused by something which continually penetrates its solid substance." Noutra passagem, une este argumento com o utilizado no final da polémica e referido nesta secção, de não haver maior dificuldade na comunicação entre a alma e o corpo, do que na ação de um corpo noutro corpo: Clarke, LD, "A Fourth Defence of an Argument...", 412-3: "when Matter acts, by the Cause of Gravitation, upon other Matter, in proportion, not to the Bigness of the Superficies, but to the Quantity of the solid Matter it self; that is, acts upon the very Centers of the original solid Parts of Matter; (of which, Mathematicians know there are Demonstrations extant;) Tell me how, in these Cases, Matter acts upon Matter, without Contact; and I will undertake to tell you, how Matter acts upon Immaterial Substance." 211 Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, §§ 113-114, G, VII, 417. 212 Leibniz, op. cit, §§ 118-119, G, VII, 418: "une Attraction proprement dite, ou à la Scholastique, seroit

230

de aceitação da tese da atração, que a realidade em causa seja concebível.213 Sem ser concebível, o facto de ser constante, não a torna natural, pois não é explicável pelas naturezas das criaturas, mas sim por um milagre perpétuo.214 Já se viu em V. 2. como Clarke reage a este ataque, aproveitando para atacar a tese da harmonia pré-estabelecida, ao confrontar um fenómeno atual da natureza com o que considera uma ficção e um sonho, mas sublinhando o facto de múltiplas vezes Newton ter declarado que não pretendia identificar a causa do fenómeno. 215 Mas, mais que este contra-ataque meramente negativo, Clarke afirma no final a validade autónoma das conclusões matemáticas acerca dos fenómenos, independentemente da questão se se conseguirá ou não descobrir a causa, descoberta para a qual, aliás, Clarke até convida Leibniz. 216 O sarcasmo é especialmente notório após Clarke ter confrontado Leibniz com a exigência de que dissesse por quais leis do mecanismo, precisamente, explicava ele que, depois da criação, toda a máquina do mundo, incluindo o funcionamento dos corpos orgânicos, funcionasse como um relógio,217 já que com tanta facilidade rejeitava une Operation en distance, sans moyen. On repond icy qu'une Attraction sans moyen seroit une contradiction. Fort bien : mais comment l'entend on donc, quand on veut que le Soleil à travers d'un espace vuide attire le globe de la terre ? Est ce Dieu qui sert de moyen ? Et ce seroit un miracle ; s'il y en a jamais eu, cela surpasseroit les forces des creatures. Ou sont-ce peutetre quelques substances immaterielles, ou quelques rayons spirituels, ou quelque accident sans substance, quelque espece comme intentionnelle, ou quelque autre je ne say quoy qui doit faire ce moyen pretendu ?" 213 Leibniz, op. cit, § 120, G, VII, 418: "Ce moyen de communication est (dit-on) invisible, intangible, non mechanique. On pouvoit adjouter avec le même droit, inexplicable, non intelligible, precaire, sans fondement, sans exemple." Visto não ser, certamente, o facto de não ser sensível que torna o meio ininteligível e sem fundamento, presume-se que seja o não ser mecânico. 214 Leibniz, op. cit, §§ 121-122, G, VII, 418-9: "Mais il est regulier (dit-on), il est constant, et par consequent naturel. Je reponds, qu'il ne sauroit étre regulier sans étre raisonnable, et qu'il ne sauroit étre naturel, sans étre explicable par les natures des creatures. Si ce moyen qui fait une veritable attraction, est constant et en même temps inexplicable par les forces des creatures, et s'il est veritable avec cela, c'est un miracle perpetuel. Et s'il n'est pas miraculeux, il est faux. C'est une chose chimerique, une qualité occulte scholastique." 215 Clarke, Streitschriften..., 5ª réplica, § 115, G, VII, 437. Clarke cita, aliás, na sua edição, as passagens já aqui consideradas da Ótica e dos Principia, onde Newton o declara: Clarke, CP, 355-7. 216 Clarke, op. cit, 5ª réplica, §§ 118-130, G, VII, 439-40: "That the Sun attracts the Earth, through the intermediate void Space; that is, that the Earth and Sun gravitate towards each other, or tend (whatever be the Cause of that Tendency) towards each other, with a Force which is in a direct proportion of their Masses, or Magnitudes and Densities together, and in an inverse duplicate proportion of their Distances; and that the Space betwixt them is void, that is, hath nothing in it which sensibly resists the Motion of Bodies passing transversly through: All This, is nothing but a Phaenomenon, or actual Matter of Fact, found by Experience. That this Phaenomenon is not produced sans moyen, that is, without some Cause capable of producing such an Effect; is undoubtedly true. Philosophers therefore may search after and discover That Cause, if they can; be it mechanical, or not mechanical. But if they cannot discover the Cause; is therefore the Effect it self, the Phaenomenon, or the Matter of Fact discovered by Experience (which is all that is meant by the Words Attraction and Gravitation) ever the less True? Or is a manifest Quality to be called occult, because the immediate efficient Cause of it (perhaps) is occult, nor not yet discovered? When a Body moves in a Circle, without flying off in the Tangent; 'tis certain there is something that hinders it: But if in some Cases it be not mechanically explicable, or be not yet discovered, what that something is; does it therefore follow, that the Phaenomenon it self is false? This is very singular Argument indeed. The Phaenomenon it self, the Attraction, Gravitation, or Tendency of Bodies towards each other (or whatever other Name you please to call it by) and the Laws, or Proportions, of that Tendency, are now sufficiently known by Observations and Experiments. If This or any other learned Author can by the Laws of Mechanism explain these Phaenomena, he will not only not ben contradicted, but will moreover have the abundant Thanks of the Learned World." 217 Clarke, op. cit, §§ 115-116, G, VII, 438: "Nor is it less surprizing, to find this Assertion again repeated in express Words, that, after the first Creation of Things, the continuation of the Motions of the heavenly Bodies, and the Formation of Plants and Animals, and every Motion of the Bodies both of Men and all other Animals, is as mechanical as the Motions of a Clock. Whoever entertains this Opinion, is (I think)

231

as teorias de quem tinha de facto descoberto leis do funcionamento do universo. Mas, mais interessante neste passo é a equiparação deste mecanicismo, incluindo o funcionamento orgânico, sem necessidade de supor qualquer alma ou espírito, com a criação de uma casa, de uma cidade ou do próprio Universo, supondo pois a máquina do Universo numa relação análoga à do corpo com a alma e à da casa e da cidade com os seus construtores. 6. O corpo orgânico: milagroso ou maquinal Como em muitas outras teorias científicas ou orientadoras da investigação científica, mesmo atuais, com base em algumas poucas constatações empíricas e algumas demonstrações matemáticas (ou de outro tipo) associadas, mas sobretudo numa numerosa série de pressupostos (sejam ou não metafísicos), o mecanicismo supunha que todo o mundo físico funcionava com uma máquina e só se distinguia do tradicional recurso da razão preguiçosa aos mistérios divinos tendo em conta que atribuía o desconhecimento de muitos dos processos pelos quais a máquina trabalhava à complexidade da obra divina, porque confiava, como na generalidade dos programas científicos, que se poderia vir a descobrir todos esses processos. 218 A rejeição das qualidades ocultas era feita em nome de um ideal mecanicista que, com restritas exceções, se realizava em romances físicos, onde se imaginavam processos, sem suporte empírico, unicamente sancionados porque explicavam os movimentos sem recorrer a obliged in reason to be able to explain particularly, by what Laws of Mechanism the Planets and Comets can continue to move in the Orbs they do, thro' unresisting Spaces; and by what mechanical Laws, both Plants and Animals are formed; and how the infinitely various spontaneous Motions of Animals and Men, are performed. Which, I am fully persuaded, is as impossible to make out, as it would be to show how a House or City could be built, or the World it self have been at first formed by mere Mechanism, without any Intelligent and Active Cause." O facto de ignorar, igualmente, as explicações leibnizianas para a gravitação, mostra, em geral, o desprezo newtoniano pela qualidade da teoria leibniziana apresentada em Leibniz, Tentamen de motuum coelestium causis, GM, VI, 144-161; que Newton já bem conhecia e criticara, e. g., nas notas diretas não só à 1ª ed. de 89, mas também à 2ª de 1706, que, certamente, já estariam escritas em 1714 (cf. Newton, CN, VI, 116-7), ou por resultarem da leitura de Newton já referida a Keill e que este refere (cf. Keill, Carta para Newton de 2 de Maio de 1714, CN, VI, 113-4), ou por responderem à solicitação do mesmo Keill, que depois as terá usado na resposta publicada no verão à Charta Volans (cf. Leibniz, "The Charta Volans de 18/7/2013", CN, VI, 15-7) e à defesa publicada no final de 1713 no Journal Literaire de la Haye (cf. Leibniz, CN, VI, 30-2). Ambos estes textos, publicados anonimamente, eram, de facto, de Leibniz. A precipitação desastrada de Leibniz no ensaio de 89 é, porventura, o maior pecado da sua vida, quer do ponto de vista ético, quer do ponto de vista filosófico e físico, e várias das críticas de Newton, apesar de algumas más compreensões muito estimuladas pela polémica do cálculo, atingem defeitos óbvios da teoria leibniziana que nem a revisão de 1706 resolveu. De qualquer forma, o conhecimento por parte do círculo newtoniano do ensaio de Leibniz é bem mais antigo e já é objecto de crítica, bem mais educada, por David Gregory, outro dos discípulos e protegidos de Newton, em 1702, incluíndo já as críticas que incidiam sobre os cometas: Davide Gregorio, op. cit., pp. 99-104, surgindo o argumento dos cometas no final da p. 101. Se a polémica não tivesse sido terminada pela morte de Leibniz, seria curioso ver se Leibniz evocaria a sua teoria tão generalizadamente criticada até por aliados seus como Huygens, ou se Meli terá razão ao afirmar que Leibniz teria desistido de apresentar uma teoria concorrente: Meli, EP, 216: "Leibniz himself had come to doubt his own theory of centrifugal force already in 1690. In the correspondence with Samuel Clarke in 1715-16, and indeed already in the Specimen Dynamicum of 1695, Leibniz had abandoned the project of presenting a theory capable of competing with Newton's. Despite his subtle philosophical and theological objections, in the eighteenth century Leibniz had left Newton master of celestial mechanics." 218 Essa expetativa tão presente em Boyle por ser confirmada por tantos experimentos, é criticada por Leibniz, não pelo seu teor, mas por considerá-la uma verdade a priori: Leibniz, Nouveaux essais..., L. IV, Ch. XII, § 13, G, V, 437: "M. Boyle [...] s'arreste un peu trop, pour dire la verité, à ne tirer d'une infinité de belles experiences d'autre conclusion, que celle qu'il pouvoit prendre pour principe, savoir que tout se fait mecaniquement dans la nature, principe, qu'on peut rendre certain par la seule raison, et jamais par les experiences, quelque nombre qu'on en fasse."

232

nada mais que a disposição das peças da máquina. O próprio Newton, apesar da precoce reserva contra as hipóteses sem suporte empírico (se bem que várias queries se justificam apenas na possibilidade de o vir a ter), formulou teorias circulatórias do éter suscetíveis de explicar por mero movimento das partes todos os processos naturais, desde a gravitação à fermentação, incluindo o movimento animal.219 Em todos os casos, a pretensão a tudo explicar mecanicamente poderia confrontar-se com a objeção de Clarke que exigia que se determinassem particularmente quais essas leis do mecanismo que determinavam não só o movimento dos astros, mas também a formação de plantas e animais, 220 e os movimentos espontâneos dos animais, 221 sob pena de a ausência de explicação conduzir afinal à noção de milagre de Leibniz. Mas, mais importante ainda para esta dissertação, é a acusação de que conceber mecanicamente todo o movimento animal conduz à fatalidade e necessidade, 222 a não ser que natural não signifique mecânico mas simplesmente regular223 (o que reenvia para a sua noção de milagre). Ora, Leibniz pretende, pelo contrário, que todo o funcionamento dos corpos orgânicos seja explicado mecanicamente,224 excetuando a sua pré-formação original na criação,225 juntamente com as suas almas, tão insuscetível de fim natural como estas.226 219

Isaac Newton, ed., arr. and notes H. S. Thayer, Newton's Philosophy of Nature – Selections from His Writings, New York, Hafner Pub. Co., 1953; Mineola, New York, Dover Pub., 2005 [NP], "Hypothesis touching on the Theory of Light and Colors", pp. 82-99, mas sobretudo a partir da p. 84, transmitida por uma carta para Oldenburg de 25 de Janeiro de 1675/6; veja-se as pp. 87-91 para o movimento animal; Mas, mesmo aí (p. 91), Newton remete para os processos divinos incompreensíveis: "God, who gave animals motion beyond our understanding, is, without doubt, able to implant other principles of motion in bodies which we may understand as little"; Na p. 86, expressa-se um pouco do conjunto da conceção envolvida: "For nature is a perpetual circulatory worker, generating fluids out of solids, and solids out of fluids; fixed things out of volatile, and volatile out of fixed; subtle out of gross, and gross out of subtle; some things to ascend and make the upper terrestrial juices, rivers and the atmosfere, and by consequence others to descend for a requital to the former." Newton, Carta para Boyle de 28 de Fevereiro 1678/9, OO, IV, 385-94. É preciso ter em consideração que, contrariamente a certas versões do mito dos anni mirabiles, Newton mantém a crença nos vórtices cartesianos, onde estas teorias se encaixavam, até 1680 ou mesmo mais tarde, como se pode ver pelas referências de Aiton, VT, 106. Veja-se, também, como na query 30 da Ótica se continua a incluir os processos orgânicos nas transmutações naturais: Newton, Optics, OO, IV, 242. 220 Clarke, op. cit, 4ª réplica, § 43, G, VII, 388. Ver VI. 5, nota 198. 221 Clarke, op. cit, 3ª réplica, § 17, G, VII, 371: "If whatever arises not from, and is not explicable by, the Natural Powers of Body, be a Miracle; then every animal-motion whatsoever, is a Miracle." 222 Clarke, op. cit, 4ª réplica, § 32, G, VII, 386. Ver III. 2, nota 74. 223 Clarke, op. cit, 4ª réplica, § 45-46, G, VII, 388: "the moyen by which Two Bodies attract each other, may be invisible and intangible, and of a different nature from Mechanism; and yet, acting regularly and constantly, may well be called natural; being much less wonderful than Animal-motion, which yet is never called a Miracle. If the Word, natural Forces, means here Mechanical; then all Animals, and even Men, are as mere Machines as a Clock. But if the Word does not mean, mechanical Forces; then Gravitation may be effected by regular and natural Powers, though they be not Mechanical." 224 Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 116, G, VII, 418. Ver V. 2, nota 149. E esse mecanismo é composto de mecanismos orgânicos ao infinito: Leibniz, Essais de Théodicée, Préface, G, VI, 40: "le Mechanisme suffit pour produire les corps organiques des animaux, sans qu'on ait besoin d'autres natures plastiques, pourveu qu'on y ajoute la preformation déja toute organique dans les semences des corps qui naissent, contenues dans celles des corps dont ils sont nés, jusqu'aux semences premieres ; ce qui ne pouvoit venir que de l'Auteur des choses, infiniment puissant et infiniment sage, lequel faisant tout d'abord avec ordre, y avoit préétabli tout ordre et tout artifice futur. Il n'y a point de chaos dans l'interieur des choses, et l'organisme est partout dans une matiere, dont la disposition vient de Dieu. Il s'y decouvriroit même d'autant plus, qu'on iroit plus loin dans l'anatomie des corps ; et on continueroit de la remarquer, quand même on pourroit aller à l'infini, comme la nature, et continuer la subdivision par nostre connoissance, comme elle l'a continuée en effect." Já em VI. 1, nota 9, foi referido, a outro propósito, Leibniz, Antibarbarus Physicus…, G, VII, 337-8. 225 Leibniz, Streitschriften..., 4º escrito, § 46, G, VII, 377 (ver VI. 5, nota 177); 5º escrito, § 116, G, VII, 417-8: "quant à la formation des plantes et des animaux, il n'y a rien qui tienne du miracle, excepté le

233

Não se deveria, porém, surpreender Leibniz com a declaração clarkiana,227 visto apenas afirmar aquilo de que o mesmo Leibniz havia acusado Bayle a este propósito: recorrer a um milagre perpétuo.228 Contudo, a conceção de Clarke relativamente a uma possível pré-formação orgânica, não só não está distante da de Leibniz, como se pode considerar que permite a de Leibniz, até utilizando os mesmos argumentos microscópicos que este.229 Porém, a incerteza é sempre deixada em aberto como um reduto onde se pode admitir a arbitrariedade divina, como na apreciação feita do desígnio presente na morfologia animal.230 A verdade é que quer Leibniz, quer Newton, quer Locke, quer Clarke, procuram superar aquele que era, porventura, o maior objeto de incredulidade no mecanicismo, a redução dos animais a mecanismos. Todos atribuem alma aos animais, mesmo, em Locke, aos bivalves, 231 ao que Leibniz acrescenta as plantas,232 rejeitadas por Locke 233 por alegada falta de perceção. 234 No entanto, Leibniz admite limitações na analogia das plantas com os animais, pois nunca é possível um pé de um animal tornar-se um animal inteiro. 235 Mas a atribuição só explica, diretamente, a commencement des ces choses. L'organisme des animaux est un mechanisme qui suppose une preformation divine : ce qui en suit, est purement naturel, et tout à fait mechanique."; Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. IX, § 11, G, V, 126: "je ne laisse pas d'attribuer au mechanisme tout ce qui se fait dans les corps des plantes et des animaux, excepté leur première formation. Ainsi je demeure d'accord que le mouvement de la plante qu'on appelle sensitive vient du mechanisme, et je n'approuve point qu'on ait recours à l'ame, lorsqu'il s'agit d'expliquer le detail des phenomenes des plantes et des animaux."; Leibniz, Essais de Théodicée, Préface, G, VI, 42. Ver VI. 5, nota 177. 226 Leibniz, op. cit, 1ª parte, § 90, G, VI, 152: "comme la formation des corps organiques animés ne paroit explicable dans l'ordre de la nature, que lorsqu'on suppose une preformation déja organique, j'en ay inferé que ce que nous appellons generation d'un animal, n'est qu'une transformation et augmentation : ainsi puisque le même corps étoit déja organisé, il est à croire, qu'il étoit déja animé, et qu'il avoit la même ame ; de même que je juge vice versa de la conservation de l'ame, lorsqu'elle est creée une fois, que l'animal est conservé aussi, et que la mort apparente n'est qu'un enveloppement ; n'y ayant point d'apparence que dans l'ordre de la nature, il y ait des ames entierement separées de tout corps, ny que ce qui ne commence point naturellement, puisse cesser par les forces de la nature." 227 Leibniz, Streitschriften..., 4º escrito, § 46, G, VII, 377: "Pourquoy la motion des animaux ne seroit elle point explicable par les forces naturelles?" 228 Leibniz, Essais de Théodicée, Préface, G, VI, 41-2: "à moins de dire que Dieu forme luy même les corps organiques par un miracle continuel, ou qu'il a donné ce soin à des intelligences dont la puissance et la science soyent presque divines, il faut juger que Dieu a preformé les choses, en sorte que les organisations nouvelles ne soyent qu'une suite mechanique d'une constitution organique precedente ; comme lors que les papillons viennent des vers à soye, où Monsieur Swammerdam a montré qu'il n'y a que du developpement." 229 Clarke, LD, "A Second Defence of an Argument...", 164: "if you must needs have an Hypothesis, that the immaterial Substance was not Added afterwards, but was in it from the Beginning, from the Time that the Seminal Principle it self of the Organized Body was framed: And who shall tell us When That was? The deeper Discoveries every Age makes in Anatomy by Microscopial Observations, the further all these things are found to be removed backwards from the Search and common Notions even of the most inquisitive Men." 230 Clarke, DA, IX, p. 50. 231 Locke, EU, Book II, chap. IX, §§ 13-14, 69. 232 Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. IX, § 14, G, V, 126-7. Na referência seguinte, com o recorrente recurso a um argumento de autoridade e o ainda mais recorrente argumento analógico: ibidem, L. III, Ch. X, § 14, G, V, 324: "je ne sçay si on est assés fondé de rejetter les ames vegetatives, puisque des personnes fort experimentées et judicieuses reconnoissent une grande analogie entre les plantes et les animaux, et que vous avés paru, Monsieur, admettre l'ame des bestes." 233 Locke, EU, § 11, 68-9: "it is all bare Mechanism". 234 Locke, EU, § 12, 69: "Perception [the first faculty of the Mind, § 1, p. 66], I believe, is, in some degree, in all sorts of Animals". 235 Leibniz, op. cit., Ch. VI, § 23, G, V, 296: "L'Analogie des plantes nous donnera peutestre des lumieres un jour, mais à present nous ne sommes gueres informés de la generation des plantes mêmes, le soupçon de la poussière, qui se fait remarquer, comme qui pourroit repondre à la semence masculine, n'est pas

234

animação corporal num modelo de eficácia física da alma como o defendido por Clarke. Novamente, ambos querem introduzir modificações na conceção básica do mecanicismo, mas sem sair do que entendem ser o fundamental do mecanicismo. Clarke atribui todo o dinamismo aos princípios ativos, a almas e a espíritos, incluindo o próprio Deus, de forma a manter a matéria completamente passiva. Leibniz introduz o dinamismo em toda a substância, mas tenta reduzir o funcionamento dos corpos às propriedades mecânicas, procurando justificar o funcionamento perpétuo do universo material pela conservação das forças ativas, possibilitada pelo dinamismo das substâncias e pela harmonia pré-estabelecida. Sob o pano de fundo, sempre a diversa conceção de liberdade dos dois autores. 7. O eco originário ou os fenómenos de Deus (Secção intercalar a respeito da Correspondência entre Leibniz e Des Bosses) Não haveria muito mais a dizer sobre as entidades orgânicas não se desse o caso de, exatamente ao mesmo tempo da polémica com Clarke, chegar ao seu amadurecimento final uma outra teoria de Leibniz, desenvolvida na correspondência com Des Bosses, a do tão controverso vínculo substancial. Ora, já foi mencionada a tese de Belaval que entendia que este vínculo seria para Leibniz um mistério,236 não apenas primigénio, mas dependente da ação contínua de Deus, um milagre perpétuo correspondente a diversas acusações leibnizianas a outros autores, o que, caso assim fosse, seria uma contradição explícita com o afirmado nesta polémica acerca dos corpos orgânicos e dos animais. Não é objetivo desta dissertação comentar os comentadores e certamente fazer isso neste caso estenderia esta abordagem lateral muito para lá do razoável, mas, de facto, não deve existir tese leibniziana que, apesar de não só não ter sido a mais tratada, como até ter sido pouco tratada, tenha sido objeto de comentários tão multiplamente díspares quanto esta: desde acusações de desonestidade intelectual, até mera cedência diplomática sem jamais afirmar a adesão, de identificações de contradições extremas até defesas da compatibilidade com outras conceções, de um exercício intelectual filosoficamente anómalo, apenas justificado por motivos teológicos, ao culminar do edifício monadológico, de concessão realista de um sistema idealista a simples prova final do caráter realista do sistema leibniziano, do já visto mistério divino à consagração de um panorganicismo. 237 Mesmo quando não se encor bien éclairci. D'ailleurs un brin de la plante est bien souvent capable de donner une plante nouvelle et entiere, à quoy l'on ne voit pas encor de l'analogie dans les animaux ; aussi ne peut on point dire que le pied de l'animal est un animal, comme il semble que chaque branche de l'arbre est une plante capable de fructifier à part." Também a produção de híbridos tem maior sucesso nas plantas. 236 Mencionada na nota 87 da parte III desta dissertação: Belaval, LI, 240-53: "le vinculum, lié aux existences, est un Mystère de la création" (250). Exposto assim, ainda parece compatível com as teses desta polémica, visto Leibniz afirmar, na formação dos animais, a existência de milagres primigénios. Porém, Belaval vai fazer depender este vínculo da ação imediata de Deus: "Le vinculum et l'union restent inconnaissables parce qu'ils résultent, non pas de la spontaneité des monades, source des perceptions, mais de l'action immédiate de Dieu, c'est-à-dire de son action sur les monades, telle qu'elle s'exerce non seulement dans les miracles, mais dans la création continuée" (251-2). 237 Sem pretender recensear as posições sobre o assunto, poder-se-á fornecer aqui um conjunto de referências suficientemente diversas a adicionar à de Belaval: Russell, CE, 151-4; Robert Merrihew Adams, Leibniz – Determinist, Theist, Idealist, New York/Oxford, Oxford University Press, 1994, reimpr. 1998, pp. 299-307 (aliás, partilhando, parcialmente, a tese de Belaval); Donald Rutherford, "Metaphysics: The late period" in Nicholas Jolley, ed., The Cambridge companion to Leibniz, Cambridge – New York – Melbourne, Cambridge University Press, 1995, pp. 124-175 (particularmente, as pp. 154-163); Brandon Look, "Leibniz and the Substance of the Vinculum Substantiale" in Journal of the History of Philosophy, Baltimore, The Johns Hopkins University Press, Vol. 38, nº 2, 2000 4, pp. 203-220; Adelino Cardoso, O Trabalho de mediação no pensamento leibniziano, Lisboa, Ed. Colibri, 20051, pp. 204-212; Sergio

235

considera a consistência e o significado no seio da obra leibniziana, não se consegue encontrar a mínima concordância sequer em relação ao que é, exatamente, esse tal vínculo substancial. Correndo o risco de apenas contribuir mais para esta selva caótica de interpretações, alguma coisa faltaria a esta análise se não verificasse a consistência do afirmado na polémica à luz desta noção desenvolvida na mesma época. Ora, na primeira versão do vínculo substancial, este surge como algo verdadeiramente miraculoso, absoluto mas transitório,238 superadicionado por Deus que produz uma matéria-prima e uma forma substancial, unindo os poderes passivos e ativos das mónadas. 239 Apesar de surgir como hipótese realista para explicar a transubstanciação, explicitamente preterida em relação à fenomenista,240 afirmada, aliás, como única possibilidade anteriormente,241 dela faz depender a possibilidade de o corpo Rodero, "El vínculo sustancial y las mónadas en Leibniz" in Adriana Veríssimo Serrão, ed., Philosophica, Lisboa, Ed. Colibri, 20114, nº 37, Leibniz, pp. 73-83; Daniel Garber, Leibniz: Body, Substance, Monad, New York, Oxford University Press, 2009, pp. 364-366 e 372-388; Maurice Blondel, Une énigme historique: Le « Vinculum Substantiale » d’après Leibniz et l’ébauche d’un réalisme supérieur, 2éme. éd, Paris, Gabriel Beauchesne, 1930; Antognazza, IB, 478-9; C. D. Broad, Leibniz – An Introduction, Cambridge, Cambridge University Press, 1975, reimps. com corr. 1979, pp. 124-129; Pauline Phemister, Leibniz and the Natural World, Dordrecht, Springer, 2005, embora não dispensando os caps. anteriores, ver pp. 169-182; Glenn A. Hartz, Leibniz’s Final System - Monads, Matter and Animals, New York, Routledge, 2007, e. g., pp. 107-108. 238 Leibniz, Carta para Des Bosses de 15 de Fevereiro de 1712, G, II, 435: "sed quae ita nasci et extingui possit, et cessante illa unione extinguetur, nisi a Deo miraculose conservetur"; "Et forma ista, proinde ac materia est in fluxu perpetuo"; "substantiam illam consistere in illa realitate unionali, quae absolutum aliquid (adeoque substantiale) etsi fluxum, uniendis addat." Na verdade, trata-se de um desenvolvimento da primeira resposta dada, dois anos antes, por Leibniz, de forma displicente, visto não subscrever a transubstanciação, apenas sugerida para responder a essa questão, onde Deus produz um substituto equivalente à união das mónadas: Leibniz, Carta para Des Bosses de Janeiro de 1710, G, II, 399: "Cum panis revera non sit substantia, sed ens per aggregationem seu substantiatum,resultans ex innumeris monadibus per superadditam quandam Unionem, ejus substantialitas in hac unione consistit; itaque non necesse est secundum Vos a Deo monades illas aboleri vel mutari, sed tantum subtrahi id per quod ens novum producunt, nempe Unionem, illam; ita cessabit substantialitas in ea consistens, etsi maneat phaenomenon quod jam ex monadibus illis non orietur, sed ex aliquo divinitus substituto unioni illarum monadum aequivalente. Ita nullum aderit revera subjectum substantiale." Segundo Look e Rutherford, esta carta nunca terá sido enviada, sendo algum do seu conteúdo recuperado numa carta de Maio, já sem esta noção de uma união superadicionada. Cf. G. W. Leibniz, Translated, Edited, and with an Introduction by Brandon C. Look and Donald Rutherford, The Leibniz – Des Bosses Correspondence, New Haven and London, Yale University Press, 2007[BC], p. 429, 1. De facto, as repetições não parecem fazer sentido se as duas cartas tivessem sido enviadas. O facto de ter eliminado a referência inovadora mostra a indecisão de Leibniz. 239 Leibniz, Carta para Des Bosses de 15 de Fevereiro de 1712, G, II, 435: "Si substantia corporea aliquid reale est praeter monades, uti linea aliquid esse statuitur praeter puncta, dicendum erit, substantiam corpoream consistere in unione quadam, aut potius uniente reali a Deo superaddito monadibus, et ex unione quidem potentiae passivae monadum oriri materiam primam, nempe extensionis et antitypiae, seu diffusionis et resistentiae exigentiam; ex unione autem Entelechiarum monadicarum oriri formam substantialem". 240 ibidem, G, II, 436: "Interim, ut verum dicam, mallem Accidentia Eucharistica explicari per phaenomena". 241 De facto, durante dois anos e meio, Leibniz apenas admitiu respostas fenomenistas, mesmo que confusas e inconsistentes como Des Bosses mostrou pelo menos no primeiro caso: Leibniz, Carta para Des Bosses de 8 de Setembro de 1709, G, II, 390-1: "An et quomodo transsubstantiatio vestra explicari possit, in Philosophia mea altior disquisitio foret. Si accidentia realia vultis restare sine subjecto, dicendum est, sublatis monadibus panem constituentibus, quoad vires primitivas activas et passivas, substitutaque praesentia Monadum corpus Christi constituentium, restare solum vires derivativas, quae in pane fuere, eadem phaenomena exhibentes quae monades panis exhibuissent." Visto as forças derivativas serem modificações das primitivas, não fazia sentido subsistirem sem estas. Cf. Des Bosses, Carta para Leibniz de 18 de Janeiro de 1710, G, II, 396: "Verum cum vires derivatae juxta Te nihil aliud sint quam virium primitivarum modificationes, quo pacto sublatis primitivis manere derivatae possint, non capio,

236

ser uma substância, 242 o que mostra que Leibniz pensaria, preferencialmente, nesta altura, que o corpo, incluindo o orgânico, não seria uma substância. Algo que é verdadeiramente surpreendente em muitos comentadores é que citem, para defender teses muito diversas, esta carta e as seguintes, juntamente com outras posteriores, sem mencionar que esta formulação é, ao contrário da sua alteração de posição acerca da pré-formação das almas humanas,243 explicitamente alterada e rejeitada posteriormente, após Leibniz aceitar os argumentos de Des Bosses,244 alterando completamente a forma de entender o vínculo substancial e chegando a argumentar contra teses da formulação inicial. 245 Na verdade, existem ao longo da correspondência diversas versões do vínculo que não são compatíveis entre si, como o próprio Leibniz se dá conta, e tratar tudo como se fosse uma teoria única, cujo único problema seria compatibilizá-la com as outras teorias de Leibniz, é ignorar o próprio texto. Numa versão intermédia entre as duas anteriormente referidas, Leibniz considera o vínculo como unidade substanciada, muito embora os agregados também sejam substanciados e o vínculo, originando um unum per se, só seja atribuível aos corpos orgânicos. 246 Porém, na última versão, já só os agregados são qualificados de substanciados, visto o vínculo ter uma substancialidade própria e independente.247 Como se viu, Leibniz manifesta inicialmente uma preferência nisi forte modos cum accidentibus quae vocamus absoluta confundis." 242 Leibniz, Carta para Des Bosses de 15 de Fevereiro de 1712, G, II, 435: "Si abesset illud monadum substantiale vinculum, corpora omnia cum omnibus suis qualitatibus nihil aliud forent quam phaenomena bene fundata, ut iris aut imago in speculo, verbo, somnia continuata perfecte congruentia sibi ipsis; et in hoc uno consisteret horum phaenomenorum realitas. Monades enim esse partes corporum, tangere sese, componere corpora, non magis dici debet, quam hoc de punctis et animabus dicere licet. Et Monas, ut anima, est velut mundus quidam proprius, nullum commercium dependentiae habens nisi cum Deo. Corpus ergo si substantia, est realisatio phaenomenorum ultra congruentiam procedens." 243 Neste caso, Leibniz defendeu que se trataria da sua posição já anteriormente preferida, muito embora nem tivesse sido antes referida. Ver nota 139 de III. 5. 244 Leibniz, Carta para Des Bosses de 23 de Agosto de 1713, G, II, 481-2: "Interim objectio Tua, Reverendissime Pater, mihi consideratione digna visa est, ex eo sumta, quod vincula substantialia generabilia et corruptibilia dixeram. Id vero Modalium proprium videtur, ex meis etiam principiis, nec convenire absolutis. Et ideo re expensa hactenus sententiam muto, ut putem jam nihil oriri absurdi, si etiam vinculum substantiale seu ipsa substantia compositi dicatur ingenerabilis et incorruptibilis; quoniam revera nullam substantiam corpoream admittendam puto, nisi ubi est corpus organicum cum Monade dominante, seu vivum; animal scilicet, vel animali analogum". Resto do trecho em IV. 9, nota 368. 245 Leibniz, Carta para Des Bosses de 29 de Maio de 1716, G, II, 515-6: "Sed iste modus est res durabilis, non modificatio quae nascitur et perit." Claro que Leibniz não está a defender que seja um modo, apenas está a considerar a hipótese do interlocutor, mas o que importa, para o caso atual, é que rejeita a transitoriedade e afirma a persistência. 246 Leibniz, Carta para Des Bosses de 20 de Setembro de 1712, G, II, 457: "Ego quoque sentio, admissis Substantialibus praeter monades, seu admissa Unione quadam reali, aliam longe esse Unionem, quae facit ut animal vel quodvis corpus naturae organicum sit Unum substantiale, habens unam Monada dominantem, quam Unionem, quae facit simplex aggregatum, quale est in acervo lapidum: haec consistit in mera unione praesentiae seu locali, illa in unione substantiatum novum constituente, quod Scholae vocant unum per se, cum prius vocent unum per accidens." Mais adiante, ainda afirmando a perecibilidade do vínculo, ibidem, G, II, 459: "Ego vero putem, id medium esse ipsum unum per se substantiatum, seu substantiam compositam; ea enim media est inter substantiam simplicem (quae praecipue nomen substantiae meretur) et modificationem. Substantia simplex est perpetua; substantiatum nasci et interire potest, et mutari; accidens est id quod nascitur aut desinit substantia mutata, sed manente." E, finalmente, referindo-se à transubstanciação, ibidem: "Cum dicitur hoc est corpus, tunc admissis substantiis compositis, non monades designantur, vel per hoc, vel per corpus (quotusquisque enim de illis cogitavit?), sed substantiatum per vincula substantialia ortum, seu compositum." 247 Aqui é afirmado que só os agregados e modificações de coisas substanciadas nascem e perecem, contrapondo-lhes a perenidade quer da alma, quer do animal: Leibniz, Carta para Des Bosses de 29 de Maio de 1716, G, II, 516: "Etiam verae substantiae compositae non gignuntur, nisi ad sensum; nam, ut saepe dixi, non tantum anima, sed et animal manet. Non oriuntur vel occidunt nisi modificationes et (ex substantiatis) aggregata, id est accidentia vel entia per accidens." Mais clara ainda, por opor o

237

fenomenista, admitindo, porém, que a fé pudesse levar à substância composta.248 Ainda em Junho de 1712, faz uma claríssima declaração idealista: nada é necessário supor fora das mónadas ou das almas.249 Numa fase em que ainda era favorável à transitoriedade do vínculo, parece tornar-se favorável ao vínculo substancial por razões religiosas, não tanto motivadas pela transubstanciação em que não acreditava, mas devido ao mistério, por excelência, do cristianismo, a Encarnação.250 Percebe-se, aliás, que a transitoriedade se adaptasse especialmente bem a milagres e mistérios. Na fase final, parece completamente inclinado para a alternativa realista, não como um recurso necessário para explicação de obscuridades religiosas dificilmente explicáveis, mas defendendo o vínculo substancial e a correspondente substância corporal como noções estruturantes da sua metafísica e até física,251 na medida em que sustenta um contínuo real252 e não apenas ideal. 253 Pelo contrário, a hipótese fenoménica é agora defendida como alternativa, presumivelmente, mais sustentável para defender a transubstanciação.254 Na verdade, estes são apenas alguns dos aspetos em que são evidentes as discrepâncias que o próprio Leibniz acaba por reconhecer, justificando-se com o alegado facto de não ter tratado antes, fora desta correspondência, da questão das substâncias compostas. 255 Como foi visto em V. 2, esta declaração parece nova substanciado à substancialidade do composto, é esta passagem: ibidem, G, II, 518: "Nescio quid te adigat, ut substantialitatem compositi facias monadum modum, id est, revera accidens. Non est opus ut statuamus substantias oriri interireque; imo si statuimus, evertemus substantiae naturam, recidemusque in aggregata seu Entia per accidens. Quod vulgo substantias dicunt, revera non sunt nisi substantiata." 248 Leibniz, Carta para Des Bosses de 15 de Fevereiro de 1712, G, II, 435: "si fides nos ad corporeas substantias adigit". 249 Leibniz, Carta para Des Bosses de 16 de Junho de 1712, G, II, 451: "Verum est, consentire debere, quae fiunt in anima, cum iis quae extra animam geruntur; sed ad hoc sufficit, ut quae geruntur in una anima respondeant tum inter se, tum iis quae geruntur in quavis alia anima; nec opus est poni aliquid extra omnes Animas vel Monades". 250 Leibniz, Carta para Des Bosses de 10 de Outubro de 1712, G, II, 461: "Sed vereor, ut mysterium Incarnationis aliaque explicare possimus, nisi vincula realia seu uniones accedant." Naturalmente, fica indeterminado que outras coisas seria necessário explicar com o vínculo, para lá da encarnação. 251 Esta passagem é referida por Adams para refutar a tese de Russell a este propósito, que Leibniz nunca teria dito que acreditava na existência do vínculo substancial: cf. Robert Merrihew Adams, op. cit., p. 301. Na verdade, Leibniz afirma que tem a mesma opinião dos escolásticos porque o que estes pensavam quanto à realidade do composto como coisa completa, corresponderia ao vínculo substancial: Leibniz, Carta para Des Bosses de 13 de Janeiro de 1716, G, II, 511: "Et in hoc me prorsus cum Scholasticis sentire arbitror; eorumque materiam primam, et formam substantialem, potentias nempe passivam et activam primitivas compositi, et completum ex iis resultans revera arbitror esse illud vinculum substantiale quod urgeo." Deve-se dizer que o pendor realista é óbvio, com ou sem esta passagem, e muito diferente das preferências manifestadas em 1712. 252 Leibniz, Carta para Des Bosses de 29 de Maio de 1716, G, II, 517: "Continuitas realis non nisi a vinculo substantiali oriri potest." Mais adiante, chega mesmo a explicar como se origina o verdadeiro contínuo: ibidem, G, II, 520: "At in materia prima (nam secunda aggregatum est) seu in passivo substantiae compositae involvitur continuitatis fundamentum, unde verum oritur continuum ex substantiis compositis juxta se positis, nisi a Deo supernaturaliter tollatur extensio, ordine inter coexistentia illa quae se penetrare censentur sublato." 253 Imensas são as vezes em que Leibniz explica o contínuo como ideal e não como real, e. g., Leibniz, Carta para De Volder de 19 de Janeiro de 1706, G, II, 282: "Sed continua Quantitas est aliquid ideale, quod ad possibilia et actualia, qua possibilia, pertinet. Continuum nempe involvit partes indeterminatas, cum tamen in actualibus nihil sit indefinitum, quippe in quibus quaecunque divisio fieri potest, facta est. Actualia componuntur ut numerus ex unitatibus, idealia ut numerus ex fractionibus: partes actu sunt in toto reali, non in ideali. Nos vero idealia cum substantiis realibus confundentes, dum in possibilium ordine partes actuales, et in actualium aggregato partes indeterminitas quaerimus, in labyrinthum continui contradictionesque inexplicabiles non ipsi induimus." 254 Leibniz, Carta para Des Bosses de 29 de Maio de 1716, G, II, 520-1. 255 Leibniz, Carta para Des Bosses de 30 de Junho de 1715, G, II, 499: "Vereor ne, quae diversis temporibus hac de re ad te scripsi, non satis bene cohaereant inter se, quoniam scilicet hoc argumentum

238

demonstração de falta de sinceridade. Porém, para lá de não ser claro se a noção de substância composta ainda é a mesma do passado, o que está aqui em causa é a forma como os fenómenos podem ser realizados, o que é, de facto, uma abordagem nova ou antes pouco aprofundada, sobretudo se se considerar que o vínculo é algo que fornece unidade ao corpo orgânico em si mesmo. De qualquer forma, tratar todas as versões do vínculo como se fosse uma única teoria parece especialmente desajustado, mesmo para um trabalho que não está especialmente interessado no estudo da evolução dos autores. O mesmo se pode dizer do tratamento em bloco da influência de Des Bosses na formação desta noção, quer negligenciando-a de forma generalizada, considerando que Leibniz não poderia estar a tentar agradar a Des Bosses, quer considerando que tudo se explica, do princípio ao fim, pela adulação de Leibniz dirigida a Des Bosses. Havia razões para essa adulação, umas antigas, outras recentes, como, por exemplo, o desejo de Leibniz estar de boas relações com os jesuítas, os esforços de que nunca desistiu de aproximação ou mesmo reunião das Igrejas,256 a possibilidade de contribuições para os seus projetos enciclopédicos, apesar de, nesta fase, Leibniz já ser bem mais parco nas suas expetativas,257 a compatibilização, sempre desejada por Leibniz, da sua filosofia com a peripatética, projeto pelo qual, logo no início, Des Bosses aliciou Leibniz para aceitar o aprofundamento desta correspondência, 258 e, finalmente, a realização da tradução latina da Teodiceia em que Des Bosses se empenhava.259 Mas não se percebe porque estas razões poderiam distorcer mais as conceções de Leibniz nesta correspondência do que noutras. Por exemplo, o desejo de ter uma tradução inglesa da mesma Teodiceia também poderia ter afetado Leibniz na correspondência que é objeto desta dissertação.260 Por outro lado, o desejo de ser aceite pelos católicos e a pretensão de Phaenomenis ad realitatem evehendis, seu de substantiis compositis non nisi per occasionem tuarum literarum tractavi." Aliás, as discrepâncias indicadas referem-se apenas às formulações do vínculo nos últimos quatro anos da correspondência. Se se tiver como referência o conjunto da correspondência, as divergências e até contradições serão em muito maior número e muito mais diversificadas. 256 Aliás, a tentativa de compreensão da transubstanciação não é uma novidade na vida de Leibniz, nascida, apenas, de uma tentativa de agradar Des Bosses, até porque logo se demarca da subscrição de tal crença. Desde 1669, pelo menos, segundo Mercer e Sleigh, os problemas teológicos, nomeadamente o da transubstanciação, quer fosse por motivos irénicos, quer fosse para abordar autonomamente o mistério da Eucaristia, contribuem para o desenvolvimento da sua conceção de substância. Cf. Christia Mercer and R. C. Sleigh, Jr., "Metaphysics: The early period to the Discourse on Metaphysics" in Nicholas Jolley, ed., The Cambridge companion to Leibniz, Cambridge – New York – Melbourne, Cambridge University Press, 1995, p. 76. Quanto aos esforços de reunião das Igrejas, uma amostragem bem considerável é dada em Leibniz, intr. e notas, A. Foucher de Careil, Œuvres, Paris, Libr. Firmin Didot [OV], Vols. I e II, 1859-1860. 257 Veja-se a título de exemplo como tenta utilizar toda a rede internacional da Companhia de Jesus para organizar um registo sistemático de dados magnéticos: Leibniz, Carta para Des Bosses de 15 de Fevereiro de 1712, G, II, 437-8. 258 Mais precisamente, tratava-se de acomodar as conceções de Leibniz às de Aristóteles e ambas aos dogmas católicos, ou seja, um projeto, por excelência, escolástico: Des Bosses, Carta para Leibniz de 25 de Janeiro de 1706, G, II, 293: "Atque ex hoc scrupulo meo consilium meum, quale sit, dispicis: nempe ut notiones tuas salva, quantum fieri potest, earum substantia phrasibus Aristotelicis, aut potius has illis, et utrasque dogmatibus Ecclesiasticis accommodem." 259 Havia razões para temer que tal projeto pudesse não se realizar, até por estarem ligadas com a observância religiosa e o dogmatismo diversas vezes manifestado por Des Bosses ao longo da correspondência. No que se refere estritamente à Teodiceia, veja-se esta passagem onde explicitamente Des Bosses chama a atenção para a necessidade de ortodoxia, sob pena de ser posto em causa no seio da Companhia de Jesus: Des Bosses, Carta para Leibniz de 30 de Julho de 1709, G, II, 374-5: "Insuper cum caveret, ne quid in edendo opere Ecclesiae Catholicae dogmatis contrarium contineretur, hoc eum metu fidenter exsolvi, nihil dubitans te fidem meam liberaturum, ne ob praestitam qualemcumque operam apud nostros vapulem, et alioqui cautelam istam instituto tuo necessariam esse pro tua sapientia intelligis." 260 Carolina (princesa de Gales), carta para Leibniz de 8/14 de Novembro de 1715, SP, 531-2: "J'ay parlais encore aujourdehuis avec L'Eveque de lincolme, pour la tratuction de votre Theodice ; il ny

239

de a sua filosofia poder resistir a qualquer exame de heterodoxia,261 podendo assim até constituir uma base para a conciliação das confissões, é algo que percorre toda a sua vida. Chega a afirmar, na correspondência, que escreve de modo a reduzir as divergências com os jesuítas,262 mas, para lá de se estar a referir à própria Teodiceia, numa versão ainda preliminar, esta franqueza apenas torna mais autêntico o afirmado a Des Bosses, visto que muitas vezes, em relação a muitos dos interlocutores eclesiásticos (e não só), terá feito o mesmo sem o dizer. É verdade que, ao contrário do afirmado por alguns, a preferência de Des Bosses pelo realismo263 influencia Leibniz que, assim, se apersone capable de sela, a ce quil m'assure, que le docteur clerque [Clarke], don je vous ayee anvoiyié des livres par onhausen. Ce même home et amié indimé du chevalié nuthon [Newton], et je ne crois pas la chose en fort bone mais." Clarke acabaria, aliás, logo no início da polémica, por ser abordado e recusar o empreendimento, mas Carolina não desistiu de procurar um tradutor e Leibniz de o desejar, pelo que também seria possível considerar que a polémica com a filosofia natural mais respeitada de Inglaterra, tão seguida na corte inglesa, poderia ter sido afetada por este objetivo. 261 Leibniz, Carta para o Landgrave de 12/4/1686, G, II, 21: "ce que M. Arnaud dit de l'Eglise n'a rien de commun avec ces meditations, et je n'espere pas qu'il veuille, n'y qu'il puisse asseurer, qu'il y a quoy que ce soit là dedans qui passeroit pour heretique en quelque Eglise que ce soit." Presume-se que se refira a qualquer Igreja cristã. Este desafio a que se encontrasse a mínima heterodoxia na sua obra ou, pelo contrário, esta reivindicação de ortodoxia está presente em toda a sua obra e, como já foi visto, também nesta polémica. 262 Leibniz, Carta para Des Bosses de 3 de Setembro de 1708, G, II, 356: "libenter enim etiam vestrorum fruor judicio, sed Tuo inprimis, cujus eruditio facit, ut possis, benevolentia erga me, ut velis, in meis examinandis rite versari. Etsi enim non dissimulem cujus sim partis, libenter tamen ita scribo quantum licet, ut vestros a sententiis meis circa res, quae controversias nostras non tangunt, abhorrere necesse non sit." 263 A primeira solicitação de realismo, apresentada com o cunho da autoridade da aceitação generalizada na Companhia de Jesus, aliás com muitas implicações no debate da transubstanciação e das substâncias corporais, é a de que Leibniz subscreva a tese de que a extensão seria um acidente real (Cf. Des Bosses, Carta para Leibniz de 28 de Janeiro de 1712, G, II, 433: "Hoc unum accidens reale ac materiae coaevum si mihi concesseris, reliqua ad modos relegare non verebor."). Aliás, não é por acaso que a primeira versão do vínculo substancial surge na carta seguinte. E, na verdade, Leibniz tenta satisfazer esta solicitação nessa carta (cf. Leibniz, Carta para Des Bosses de 15 de Fevereiro de 1712, G, II, 436). A segunda solicitação surge sob a forma de uma escolha, optando pela alternativa realista fornecida pela disjunção leibniziana: Des Bosses, Carta para Leibniz de 20 de Maio de 1712, G, II, 441: "Ais alterutrum dicendum, vel corpora mera esse phaenomena, atque ita extensio non nisi phaenomenon erit; vel monadibus superaddi realitatem quandam unionalem quae absolutum aliquid (adeoque substantiale) etsi fluxum uniendis (monadibus) addat. Hanc disjunctivam admitto quoad rem ipsam, sed subsumo atqui non prius, ergo posterius." Segue-se um parágrafo em que tenta sustentar o realismo com os princípios básicos de todos os filósofos (!) e os preconceitos dos ignorantes. Considerada superada esta dificuldade, volta, de novo, a defender o caráter acidental dessa realidade com o objetivo que se verá adiante. A terceira surge sob a forma de uma muito boa exposição do problema da natureza do conhecimento, com o objetivo de mostrar a necessidade do realismo para a própria possibilidade da verdade das proposições. Interessante é o facto de menorizar a questão para o problema da transubstanciação, antes de finalmente solicitar de Leibniz uma posição realista: Des Bosses, Carta para Leibniz de 12 de Junho de 1712, G, II, 448-9 (a citação, 449): "At cum multos semper fore philosophos arbitrer qui in corpore sic sumpto aliquid esse praeter phaenomena judicabunt, satis mihi erit, si in hac saltem via quantitatem dimensivam absolutum aliquid esse a substantia distinctum concedatur." Não deixa de ser curioso ter passado de "todos os filosófos" para "muitos filósofos". Ainda antes de tornar os seus objetivos claros e até admitir hipóteses idealistas, uma quarta solicitação surge, após chamar de hipótese ou ficção ("hypothesi vel fictione") os corpos serem reduzidos a fenómenos, associando, de forma até um pouco ingénua para quem deveria conhecer os argumentos leibnizianos, a extensão com a matéria: Des Bosses, Carta para Leibniz de 28 de Agosto de 1712, G, II, 456: "Si reali extensione opus non est ad explicanda phaenomena, cur opus erit materia sive πρώτῳ ὑποκειμένῳ, aut quare sola Entelechia monadem facere non poterit?" Muitas outras se sucederão, mesmo após já ser clara a mundança de inclinação de Leibniz, mas, apenas como exemplo, poderá ser mencionada mais uma sob a forma provocatória de uma identificação da hipótese fenoménica com a filosofia de Berkeley: Des Bosses, Carta para Leibniz de 20 de Setembro de 1714, G, II, 487: "Equidem, Illustrissime Domine, Hypothesin corpora ad sola phaenomena redigentem tanquam ingeniosum paradoxum suscipio, sed ut candide fatear, absolute admittere non posse videor; illam ab

240

propõe a fornecer alternativas realistas com as quais não parece, inicialmente, nada comprometido. É verdade que o exame da consistência realista das propostas conceptuais 264 leva Leibniz a melhorá-las e a sentir-se cada vez mais comprometido com elas. Porém, esta influência tem limites muito significativos e que não permitem sustentar que a formulação leibniziana é inteiramente dedicada a agradar Des Bosses com uma conceção em que o próprio Leibniz não acreditaria. De facto, provavelmente desde que propõe o problema da transubstanciação,265 mas certamente desde que começa a pressionar Leibniz, tentando que este defendesse a extensão como acidente real,266 Des Bosses tem um objetivo que julga ser satisfeito com o vínculo, mas apenas se este for modal ou acidental. Após ser formulado o vínculo por Leibniz, Des Bosses pretende que este corresponda, na transubstanciação, à realização dos fenómenos do pão, separados já da substância do pão, visto esta ter sido substituída pela substância do corpo de Cristo.267 Através de uma metáfora, torna-se ainda mais claro: tal como o ator [Cristo] não tem de ser príncipe para vestir a roupa do príncipe [pão], os acidentes não têm de estar na substância a que parecem corresponder.268 Até Anglo philosopho nuper acute propugnatam, a multis eruditis male exceptam intellexi." Talvez nem seja possível considerar um equívoco a nacionalidade, visto ser anglicano e a Irlanda estar sob domínio inglês. Mas, na resposta, Leibniz faz questão de o referir como irlandês. 264 Embora, porventura, o resultado não fosse o pretendido por Des Bosses, visto este querer dar ao vínculo um estatuto modal ou acidental. Se Leibniz propôs, inicialmente, o vínculo para agradar a tendência realista de Des Bosses, é óbvio que o confronto com a crítica conceptual de Des Bosses o leva a tornar mais consistente a noção e até a torná-la mais realista do que Des Bosses pretendia. O sentido da argumentação de Des Bosses era o de chamar a atenção para o facto de a transitoriedade defendida por Leibniz só poder ser modal ou acidental e de uma realidade substancial absoluta não poder surgir ou perecer naturalmente. Cf. Des Bosses, Carta para Leibniz de 12 de Dezembro de 1712, G, II, 464: "Extiterunt a mundi creatione omnes monades tam dominans quam subordinatae equinum compositum heri natum constituentes; extitit etiam a mundi creatione vinculum substantiale absolutum illarum, nihil enim absolutum nascitur aut interit." Frente à teimosia de Leibniz, insiste de novo: Des Bosses, Carta para Leibniz de 8 de Agosto de 1713, G, II, 479: "Censes vincula substantialia quae admissis substantiis corporeis statuenda sunt, quamvis absoluta sint, non tamen semper inde ab initio extitisse, sed generationi corruptionique subjacere. At ego naturae, imo principiis Tuis consentaneum magis esse putaveram si generatim quidquid absolutum est, ingenerabile incorruptibileque esse, atque adeo vel ab initio extitisse vel successu temporis a Deo creari debere poneretur. Nam si semel admittamus ens quodpiam absolutum generari corrumpique naturaliter, quid vetabit quominus Peripatetici recte statuere possint substantiales formas, quae quantumvis absolutae sint, naturaliter tamen oriantur et intereant." Chamando a atenção para as críticas de Leibniz aos peripatéticos, passa, em seguida, a citar a Teodiceia, evidenciando a completa contradição de Leibniz. Depois, fornece como solução para a contradição e a necessidade de recurso a milagres perpétuos (de novo, o recurso à argumentação leibniziana, tendo atingido, de novo, sucesso, embora não o que esperava), a despromoção do grau ontológico do vínculo: ibidem, G, II, 479-80: "nempe ad fluxa illa vincula substantialia absoluta producenda perpetuis opus erit miraculis, quae caveri possunt, si duntaxat modalia ponantur, quibus habitis non difficile, opinor, erit absolutum illud quod ad realizanda phaenomena aliunde requiritur a substantiae compositae constitutione secludere, atque adeo ad accidentium classem relegare, si per accidens intelligatur id quod nec est substantia simplex nec substantiae compositae constitutionem ingreditur, neque sine alterutra connaturaliter existere potest." Como já se viu, logo em seguida, Leibniz ressente-se da sua própria inconsistência evidenciada e fornece uma solução muito mais compatível com as suas próprias teses e obras, mas que não era a pretendida por Des Bosses. Ou seja, em vez de tornar o vínculo modal ou acidental, embora real, torna o vínculo perene de forma a mantê-lo não só real, mas absoluto. 265 Des Bosses, Carta para Leibniz de 6 de Setembro de 1709, G, II, 388: "Sed imprimis juverit nosse quodmodo realem corporis Christi in Eucharistia praesentiam juxta principia tua propugnes". 266 Já referido e citado acima: Des Bosses, Carta para Leibniz de 28 de Janeiro de 1712, G, II, 433. 267 Des Bosses, Carta para Leibniz de 12 de Dezembro de 1712, G, II, 466: "illud quod phaenomena panis realizat, manere destructis panis monadibus et applicari monadibus corporis Christi." 268 ibidem, G, II, 469: "Objicit sibi: hoc posito accidentia illa non erunt panis accidentia sed Christi, cui insunt. Respondet negando consequentiam, nam,ejus sunt et dicuntur esse, inquit, cujus sunt propria per naturam, vel ait esse accidentia Christi ut Eucharistice existentis, panis autem ut naturaliter existentis. Ita

241

admite que tal realidade fenoménica possa ser absoluta, mas apenas se se admitirem acidentes absolutos. 269 Nesta sequência, é, porém, necessário dissociar vínculo e substância composta, 270 de forma a tornar possível a ação miraculosa que mantém o vínculo sem a substância composta a que se refere, contrariamente à associação entre ambos que continuará a ser feita por Leibniz, quanto muito oscilando entre a identificação e o vínculo como condição de possibilidade corporal da substância composta. Frustrado pela constante rejeição leibniziana, apesar das mudanças, da possibilidade de acidentes ou modos reais, absolutos ou não, independentes das substâncias, Des Bosses até acaba por se inclinar para ou, pelo menos, admitir, no seio da filosofia leibniziana, a explicação fenoménica da transubstanciação. 271 Se, como Russell afirma, "o vinculum substanciale é mais a concessão de um diplomata do que o credo de um filósofo", 272 tratou-se de uma missão diplomática falhada porque o que Leibniz ofereceu não foi, certamente, o que Des Bosses desejava. É verdade que Des Bosses influencia o desenvolvimento do pensamento de Leibniz, mas o mesmo acontece com muitos outros interlocutores de Leibniz ao longo qui in scena paludamentum gestat a principe commodatum, nonne gestat quod principis est proprium, dicit tamen esse suum, ut in scena principem agit." 269 ibidem, G, II, 466: "Certum est in sententia astruente corpora (loquor de mathematicis) aliquid esse praeter phaenomena, non esse superfluum ens absolutum quod phaenomena illa realizet, id ergo tantum quaerendum superest, an realizatio illa sit accidens an substantia. Ego ajo esse accidens absolutum, absolutum quidem quia nulla modalitas rerum per se inextensarum et immobilium potest reddere res illas vere extensas et vere mobiles etc., accidens vero quia praesupponit substantiam compositam jam in esse suo constitutam per monadas earumque modos substantiales". 270 ibidem, G, II, 467: "Censeo non tantum inter substantiam simplicem, sed etiam inter substantiam compositam et modificationem medium dari posse, nempe ens realizans phaenomena superveniens substantiae compositae substantialiter completae, et monadibus ipsis coaevum, prorsus sicut vinculum tuum substantiale." 271 Começa por admitir a possibilidade ainda antes da alteração leibniziana de posição: Des Bosses, Carta para Leibniz de 12 de Junho de 1712, G, II, 449: "Sed tamen, uti nuper dixi, si verum esset, id totum per phaenomena sola explicari posse, hoc opinor non obstaret dogmati de transsubstantiatione." A alegada afirmação anterior não é tão clara como verdadeira alternativa aceitável: Des Bosses, Carta para Leibniz de 20 de Maio de 1712, G, II, 442: "De caetero si per phaenomena sola naturalis corporum constitutio explicari posset, fateor nullum philosophicum fore fundamentum recurrendi ad accidentia non modalia in explicandis Eucharistiae accidentibus." Em seguida, apresenta toda uma longa argumentação que mostra como até seria muito mais fácil explicar a transubstanciação fenomenicamente. A argumentação desenvolve-se em G, II, 453-455, mas o pequeno segmento, em seguida, citado provém de Des Bosses, Carta para Leibniz de 28 de Agosto de 1712, G, II, 453-4: "Aio si corpora quatenus sensibilia mera sint phaenomena, nihil ad veram transsubstantiationem in posito casu defore; ad hanc enim sufficit ut aliqua substantia desinat esse in rerum natura, alia incipiat esse sub remanente communi accidenti sive phaenomeno uno vel pluribus, sub quo vel sub quibus erat illa substantia quae desiit, atqui substantiae illae novae sive monades inciperent existere sub iisdem accidentibus sive phaenomenis, sub quibus erant priores quae destructae sunt, ergo etc." Embora a correspondência se desvie um pouco, aproximando-se até das da polémica objeto desta dissertação, com Des Bosses a defender conceções realistas do espaço algo próximas das de Clarke, a possibilidade de explicação fenoménica da transubstanciação é recuperada por Leibniz, aparentemente a título excecional e para se corresponder à menção de Des Bosses da opinião de um membro da sua ordem: Leibniz, Carta para Des Bosses de 29 de Maio de 1716, G, II, 520: "Cogitavi aliquando quid uni ex vestris dicendum foret, qui omnem substantiam compositam, seu omne realisans phaenomena, tanquam superfluum tollere vellet." Em seguida, avança com uma explicação que faz lembrar os negativos fotográficos. O que importa é que a aparente razão para o aparecimento do vínculo substancial havia desaparecido, visto quer uma, quer a outra parte já encontrarem mais fácil e adequada explicação da transubstanciação a nível fenoménico. Porém, Leibniz continuava, inclusive na mesma carta, a defender a existência de vínculos substanciais. 272 Russell, CE, 152: "the vinculum substantiale is rather the concession of a diplomatist than the creed of a philosopher." E refere em apoio a passagem acerca da falta de coerência da correspondência, como se Leibniz estivesse a afirmar uma falta de coerência com as suas outras teorias. Mesmo que exista (e, com algumas, existe mesmo), não é isso que ele afirma.

242

da sua vida, incluindo mesmo alguns que, como Locke, nem quiseram dialogar com ele. Leibniz tentou, imensas vezes, estabelecer pontes de diálogo com outros autores, julgando que, muitas vezes, as diferenças eram superficiais, mais ligadas à forma de expor do que ao conteúdo. Leibniz encarou sempre o debate filosófico como um exercício de adaptação intelectual que, inclusivamente, permitia novas descobertas ou novas conjeturas. Aquilo a que se assiste na correspondência com Des Bosses é aquilo que se assiste ao longo de toda a obra de Leibniz, um exercício conceptual intentando encontrar as respostas mais consistentes para os problemas postos. Normalmente, os leitores e comentadores de autores filosóficos procuram encontrar algo mais fácil, algo mais substantivo, um sistema de teorias bem definidas e inflexíveis que possa servir de referência. Em geral, admitem divisões por épocas, cada uma das quais, na vida de um filósofo, corresponderia a uma teoria rígida. É compreensível, é mais fácil. Mas, em muitos filósofos, até mesmo as obras são mais do domínio verbal do que substantivo, mostrando mais o pensar do que o definitivamente pensado. Se se lesse assim até mesmo clássicos como Platão e Aristóteles, talvez desaparecessem muitas perplexidades relativamente às suas diversas formulações, muito embora se tornasse mais difícil o comentário. Neste caso, estamos perante dois homens que honestamente tentam, partindo de pontos de vista e pressupostos diferentes e também com interesses e objetivos diferentes, dialogar, ou seja, refletir em conjunto sobre os problemas que são postos, sendo influenciados pelo interlocutor, mas não deixando de se manter firmes nas posições em que mais acreditam. Se não existissem razões do ponto de vista de Leibniz, na sua própria filosofia, para formular a noção de vínculo substancial, ele nem a haveria formulado, quanto mais mantido. Que razões serão essas, sobretudo para a conceção final que parece sustentar e até defender com muito maior seriedade, minimizando a própria alternativa fenoménica, é o que um trabalho histórico-filosófico deve, antes de mais, examinar, em vez de sustentar toda a sua interpretação em suspeições pouco fundadas, sobretudo para a totalidade da evolução de uma noção tão laboriosamente desenvolvida. Um esboço de resposta foi já dado em V. 2. É claro que a noção de vínculo substancial procura fundamentar a noção de substância composta ou corporal. Como já foi visto, desde muito cedo, Leibniz mostra-se indeciso entre o estabelecimento de substâncias corporais em geral, de substâncias corporais apenas nos seres animados e uma conceção totalmente fenomenista dos corpos. 273 A tendência geral, ao longo da obra de Leibniz, com alguns períodos ou textos de excecional fenomenismo, é a de defender que existem substâncias corporais nos corpos orgânicos, cuja substancialidade depende da alma, da forma substancial ou da mónada dominante. Nestes casos, a substância composta completa de alma e corpo só é possível pela dominação da alma que, porém, não comunica com o corpo, sendo a sua união garantida metafisicamente pela harmonia pré-estabelecida por Deus. O reconhecimento por Leibniz da falta de explicação desta união numa resposta a Tournemine tem sido, repetidamente, referida como um esboço da equação do problema a que o vínculo substancial pretendeu responder. Reconhecia Leibniz que apenas explicava a razão dos fenómenos, sem pretender explicar a união metafísica que transcendia esses fenómenos. 274 De facto, 273

Ver nota 130 de V. 2. Leibniz, Remarque de l'Auteur..., G, VI, 595: "Il faut avouer que j'aurois eu grand tort d'objecter aux Cartesiens, que l'accord que Dieu entretient immediatement, selon eux, entre l'Ame et le corps, ne fait pas une veritable Union, puisqu'asseurement mon Harmonie préetablie ne sauroit en faire d'avantage. Mon dessein a esté d'expliquer naturellement ce qu'ils expliquent par des perpetuels miracles : et je n'ay taché de rendre raison que des Phenomenes, c'est à dire du rapport dont on s'apperçoit entre l'Ame et le Corps. Mais comme l'Union Metaphysique qu'on y adjoute, n'est pas un Phenomene, et comme on n'en a pas même donné une Notion Intelligible, je n'ay pas pris sur moy d'en chercher la raison." Os cartesianos 274

243

acabava por equiparar essa união aos mistérios religiosos, estabelecendo-se a ligação de uma forma analógica insuficientemente determinada (noções obscuras).275 Se o vínculo surgiu, de facto, como resposta a este problema, este passo parece dar razão à interpretação de Belaval. Porém, não parece muito compatível com a primeira versão da noção, visto o vínculo ser um unificador dos poderes passivos e ativos das mónadas constituintes do corpo, e não um unificador da alma e do corpo, apesar de ser difícil ver como uma noção de vínculo precário se poderia prestar a outra coisa que não uma explicação miraculosa como a da transubstanciação. No entanto, pensar que mesmo esta primeira versão apareceu só por causa disso, deixa por explicar porque Leibniz pensa em algo semelhante à noção antes, bem antes, do problema da transubstanciação ser

referidos são, naturalmente, mais uma vez, os ocasionalistas. Leibniz deu tanta importância a esta singela resposta que a reproduz em diversa correspondência da altura, visto esta Remarque ser de 1706, nomeadamente na fase final da correspondência com De Volder, onde Leibniz considera, implicitamente, o problema como irresolúvel (cf., Leibniz, Carta para de Volder de 19 de Janeiro de 1706, G, II, 281: "Vulgo quaeruntur in scholis quae non tam ultramundana, quam Utopica sunt. Exemplum elegans mihi nuper suppeditavit Tourneminus Jesuita Gallus ingeniosus. Is cum nonnihil applausisset Harmoniae meae praestabilitae, quae consensus rationem reddere visa est, quem inter animam corpusque percipimus, unum a se adhuc desiderari dixit, rationem scilicet unionis quae utique differat a consensu. Respondi, illam nescio quam metaphysicam unionem quam Schola addit ultra consensum, non esse phaenomenon, neque ejus notionem dari aut notitiam. Ita nec potuisse me de reddenda ratione cogitare."), e na própria fase inicial da correspondência com Des Bosses [cf. Leibniz, Carta para Des Bosses de 2 de Fevereiro de 1706, G, II, 296: "Cum Gallus vestrae Societatis, vir doctus et ingeniosus, quaedam contra meam explicationem consensus inter animam et corpus objecerit, quod scilicet proprie non explicet ipsam unionem, respondi, consilium mihi fuisse tantum phaenomena explicare, unionem autem neque ex numero esse phaenomenorum, nec satis haberi descriptam, ut ejus interpretationem aggredi audeam." Posteriormente, Leibniz, Carta para Des Bosses de 3 de Setembro de 1708, G, II, 354-5: "Gaudeo esse Tibi cum adm. R. P. Turnemino commercium, ingenio, doctrina caeterisque etiam laudibus cumulato. Puto ad eum Tuo favore pervenisse schedam meam, qua ad Notationem ejus circa Unionem animae et corporis meae Hypothesi nonnihil oppositam respondi. Unde intelliget me per harmoniam praestabilitam explicare phaenomenorum consensum, sed non ideo negare metaphysicam unionem suppositi, quae altioris est indaginis et per phaenomena explicari nequit, sed et vicissim phaenomenorum rationem non reddit." O mesmo em Leibniz, Carta para Des Bosses de 4 de Abril de 1709, G, II, 371, onde o mais interessante é o facto de Leibniz distinguir o problema da unidade da mónada, com o seu princípio ativo, a enteléquia, e o seu poder passivo ou matéria-prima, do problema da união da alma ou mónada dominante com a massa, ou seja, com outras mónadas: "Vides autem me hic loqui hactenus non de unione Entelechiae seu principii activi cum materia prima seu potentia passiva, sed de unione Animae, seu ipsius Monadis (ex utroque principio resultantis) cum massa seu cum aliis Monadibus." A ligação entre este problema e o tema eucarístico é feita aqui: Leibniz, Carta para Des Bosses de 8 de Setembro de 1709, G, II, 390: "Et jam Turnemino respondi, praesentiam esse aliquid Metaphysicum, ut Unionem: quod non explicatur per phaenomena."]. Talvez, por isso, não seja de estranhar a menção da Teodiceia: Leibniz, Essais de Théodicée, Preface, G, VI, 45, menção integrada na sustentação de um suppôt, já citada em V. 2, nota 99, união metafísica de alma e corpo sem influência física entre ambos, conceito idêntico ao suppositum que surge na anotação associada, na edição Gerhard, à correspondência com Des Bosses (G, II, 432) por também se referir ao vinculum: "C'est ce que j'ay déja dit en répondant à ce que le R. P. de Tournemine, dont l'esprit et le savoir ne sont point ordinaires, m'avoit objecté dans les Memoires de Trevoux." 275 Leibniz, Remarque de l'Auteur..., G, VI, 595-6: "je ne nie pas, qu'il y ait quelque chose de cette nature : et il en seroit à peu pres comme la presence, dont jusqu'icy on n'a pas expliqué non plus la notion, lorsqu'on l'a appliquée aux choses incorporelles, et qu'on l'a distinguée des rapports harmoniques qui l'accompagnent, et qui sont aussi des phenomenes propres à marquer l'endroit de la chose incorporelle. Après avoir conçu une Union et une presence dans les choses materielles, nous jugeon qu'il y a je ne say quoy d'Analogique dans les immaterielles : mais tant que nous pouvons pas en concevoir d'avantage, nous n'en avons que des Notions obscures. C'est comme dans les Mysteres où nous tachons aussi d'elever ce que nous concevons dans le cours ordinaire des Creatures, à quelque chose de plus sublime qui y puisse repondre par rapport à la Nature, et à la Puissance Divine, sans y pouvoir concevoir rien d'assez distinct et d'assez propre à former une Definition intelligible en tout."

244

posto por Des Bosses.276 O facto de o passo ter sido eliminado não altera o facto de Leibniz o ter pensado antes da solicitação eucarística de Des Bosses. Por outro lado, o que é interessante é que o problema aí abordado não é o problema da união metafísica da alma e do corpo, mas o da união das mónadas do corpo de forma a fazer uma única coisa – o que é o verdadeiro problema que Leibniz pretende resolver, para lá da questão, para ele um pouco irrelevante, da transubstanciação, com a noção de vínculo substancial. Porquê esta questão? Não afirmou ele, pelo menos desde os anos 80, que a substância corporal se tornava una e substancial pela alma ou forma substancial? Não considerava ele que, sem a alma, o corpo não passava de um agregado sem unidade? Não era o próprio organismo apenas explicável por um princípio imaterial anímico? 277 276

Leibniz, Anotação eliminada da carta para Des Bosses de 14 de Fevereiro de 1706, BC, 22: "Unio in qua difficultatem explicandi reperio ea est quae diversas substantias simplices seu Monades in corpore nostro existentes nobiscum ita jungit, ut unum inde fiat; nec satis apparet quomodo praeter singularum Monadum existentiam novum existens oriatur, nisi quod vinculo continui conjunguntur quod phaenomena nobis exhibent." 277 Novamente se salienta que o assunto foi tratado em V. 2 com citações pertinentes. Mas a Correspondência com Arnauld só foi referida de forma genérica. Eis alguns exemplos mais concretos: Leibniz, Carta para Arnauld de 14 de Julho de 1686, G, II, 58: "Si le corps est une substance et non pas un simple phenomene comme l'arc en ciel, ny un estre uni par accident ou par aggregation comme un tas de pierres, il ne sçauroit consister dans l'étendue, et il faut necessairement concevoir quelque chose qu'on appelle forme substantielle et qui repond en quelque façon à l'ame." Não está aqui a falar de um forma substancial que esteja subordinada a uma alma, mas sim de uma forma substancial análoga a uma alma (como serão as mónadas). Neste outro passo, até vai buscar a autoridade do último concílio de Latrão (por sinal, o último concílio antes da Reforma): Leibniz, Carta para Arnauld de 28 de Novembro/6 de Dezembro de 1686, G, II, 75: "nostre corps en luy même, l'ame mise à part, ou le cadaver ne peut estre appellé une substance que par abus, comme une machine ou comme un tas de pierres, qui ne sont que des estres par aggregation ; car l'arrangement regulier ou irregulier ne fait rien à l'unité substantielle. D'ailleurs le dernier concile de Lateran declare que l'ame est veritablement la forme substantielle de nostre corps." Aqui, faz depender toda a possibilidade de realidade material de se encontrar, por divisão, em qualquer matéria, máquinas animadas: ibidem, 561, G, II, 77: "s'il n'y a aucunes substances corporelles, telles que je veux, il s'ensuit que les corps ne seront que des phenomenes veritables, comme l'arc en ciel ; car le continu n'est pas seulement divisible à l'infini, mais toute partie de la matiere est actuellement divisée en d'autres parties aussi differentes entre elles que les deux diamans susdits ; et cela allant tousjours ainsi, on ne viendra jamais à quelque chose dont on puisse dire : voila veritablement un estre, que lorsqu'on trouve des machines animées dont l'ame ou forme substantielle fait l'unité substantielle independante de l'union exterieure de l'attouchement. Et s'il n'y en a point, il s'ensuit que hors mis l'homme il n'y auroit rien de substantiel dans le monde visible." Leibniz, Carta para Arnauld de 30 de Abril de 1687, G, II, 100: "le corps à part, sans l'ame, n'a qu'une unité d'aggregation, mais la realité qui luy reste provient des parties qui le composent et qui retiennent leur unité substantielle à cause des corps vivans qui y sont enveloppés sans nombre." Toda a linguagem aqui utilizada se manterá, apenas introduzindo posteriormente o termo mónada e distanciando a alma pela introdução do vínculo: Leibniz, Carta para Arnauld (Set.Out. 1687), G, II, 119-20: "Il n'y a que les substances indivisibles et leur differens estats qui soyent absolument reels. [...] on peut donner le nom d'un à un assemblage de corps inanimés quoyqu'aucune forme substantielle ne les lie, comme je puis dire : voilà un arc en ciel, voilà un tropeau ; mais c'est une unité de phenomene ou de pensée qui ne suffit pas pour ce qu'il y a de reel dans les phenomenes. [...] si on prend pour matiere de la substance corporelle non pas la masse sans formes, mais une matiere seconde, qui est la multitude des substances dont la masse est celle du corps en entier, on peut dire que ces substances sont des parties de cette matiere, comme celles qui entrent dans nostre corps, en font la partie, car comme nostre corps est la matiere, et l'ame est la forme de nostre substance, il en est de même des autres substances corporelles. Et je n'y trouve pas plus de difficulté qu'à l'égard de l'homme, où l'on demeure d'accord de tout cela. Les difficultés qu'on se fait en ces matieres viennent entre autres, qu'on n'a pas communement une notion assez distincte du tout et de la partie, qui dans le fonds n'est autre chose qu'un requisit immediat du tout, et en quelque façon homogene. Ainsi des parties peuvent constituer un tout, soit qu'il ait ou qu'il n'ait point une unité veritable. Il est vray que le tout qui a une veritable unité, peut demeurer le même individu à la rigueur, bien qu'il perde ou gagne des parties, comme nous experimentons en nous mêmes ; ainsi les parties ne sont des requisits immediats que pro tempore." Também as mónadas que fundam a massa corporal terão, no corpo orgânico, o mesmo estatuto

245

O vínculo substancial irá exatamente substituir a função que antes tinha a alma. Encontra-se, na correspondência com Des Bosses, a mesma alternativa que se encontra na correspondência com Arnauld: ou existe uma forma substancial do corpo, ou o corpo, mesmo o orgânico, não passa de um simples fenómeno, uma união por acidente ou agregação. Porém, enquanto antes a unidade era fornecida pela alma ou por algo análogo à alma, na época da correspondência Leibniz/Clarke, como se pode ver no final da correspondência contemporânea com Des Bosses, a unidade passou a ser fornecida pelo vínculo substancial. Porquê? É verdadeira causa de perplexidade que tanto se ataque a consistência da noção de vínculo substancial e não se veja grande problema na conceção de uma máquina, tão imperecível como a alma, que vai mudando, desenvolvendo-se e envolvendo-se, dobrando-se e desdobrando-se, expandindo e contraindo, sem nunca se desconjuntar completamente,278 sempre regulada por uma entidade com a qual não tem nem pode ter qualquer comunicação, sem outra unidade que não a dada por essa entidade. Leibniz considera que uma tal máquina é naturalmente requerida para a própria alma poder expressar em si o mundo, poder se relacionar de forma representativa com tudo o resto, considerando o sensível como suporte necessário do pensamento do criado. Resolve essa entre-expressão por uma misteriosa união metafísica decretada no início dos tempos e não mais reefetivada por influência alguma. Muitos poderão não ter visto aqui nenhum problema, mas Leibniz deve ter visto porque vai aceitando as alterações da noção de vínculo substancial, cada vez mais convictamente, exatamente na medida em que a noção se mostra cada vez mais consistente na resposta a este problema: o que dá unidade à máquina orgânica? Na própria correspondência com Des Bosses, Leibniz tenta resolver a questão da forma que lhe é habitual, pelas leis mecânicas fornecidas por Deus à natureza e que fazem que esta siga uma finalidade cega, por si mesma, sempre visando a melhor ordem e organização. Mas neste mesmo passo, o da metáfora da gota de óleo, supõe-se que o animal sobrevive na parte material que melhor concorda com a própria alma.279 Como, de requisitos temporários. A substância corporal requerá, sempre, mónadas que una, mas em contante fluxo, não sendo sempre as mesmas. 278 Na própria correspondência com Des Bosses, é expressa a mesma conceção: Leibniz, Carta para Des Bosses de 11 de Março de 1706, G, II, 305-6: "Nullam Entelechiam puto affixam esse certae parti materiae (nempe secundae) aut quod eodem redit, certis aliis Entelechiis partialibus. Nam materia instar fluminis mutatur, manente Entelechia, dum machina subsistit. Machina habet Entelechiam sibi adaequatam, et haec machina alias continet machinas primariae quidem Entelechiae inadaequatas, sed propriis tamen sibi adaequatis praeditas, et a priore totali separabiles." Não parece haver motivos para considerar a conceção do seguinte passo diversa, muito embora, devido a uma certa equivocidade, também possa ser vista como antecipando a noção do vínculo: Leibniz, Carta para Des Bosses de 8 de Fevereiro de 1711, G, II, 419: "Et primum, cum Entelechiae repraesentent materiae organicae constitutionem, tantam in ipsis varietatem necesse est esse, quantam in ipsa materia percipimus, nec una Entelechia alteri perfecte similis esse potest: et Entelechia agit in materia secundum ipsius exigentiam, ita ut status materiae novus sit consequens status prioris, secundum leges naturae; leges autem naturae per Entelechias effectum suum consequuntur. Sed et ipsius Entelechiae status praesens consequitur ex statu ejus priore." Porém, poder-se-á perguntar se a sequência de estados da enteléquia não é, posteriormente, atribuível ao vínculo (muito embora seja difícil admitir que possa representar alguma coisa). 279 Leibniz, Carta para Des Bosses de 11 de Março de 1706, G, II, 306-7: "Finge animal se habere ut guttam olei, et animam ut punctum aliquod in gutta. Si jam divellatur gutta in partes, cum quaevis pars rursus in guttam globosam abeat, punctum illud existet in aliqua guttarum novarum. Eodem modo animal permanebit in ea parte, in qua anima manet, et quae ipsi animae maxime convenit. Et uti natura liquidi in alio fluido affectat rotunditatem, ita natura materiae a sapientissimo auctore constructae semper affectat ordinem seu organizationem. Hinc neque animae neque animalia destrui possunt, etsi possint diminui atque obvolvi, ut vita eorum nobis non appareat. Nec dubium est ut in nascendo, ita et in denascendo naturam certas leges servare, nihil enim divinorum operum est ordinis expers. Praeterea qui considerat sententiam de conservatione animalis, considerare etiam debet, quod docui, infinita esse organa in

246

se não existe nenhum princípio de unidade próprio do próprio corpo? A noção de vínculo substancial responde, consciente ou inconscientemente, a uma objeção de Arnauld com quase três décadas chamando a atenção para o facto de que a forma substancial ou alma seria uma denominação extrínseca que, sendo realmente distinta, não poderia impedir que a substância composta fosse uma pluralidade em si mesma.280 É sabido quanto esta exigência de determinação intrínseca foi importante para Leibniz, até na correspondência com Clarke, sobretudo para que algo seja princípio de ação ou do seu sucedâneo físico, o movimento, como também foi afirmado a Arnauld que seria a substância corporal. 281 A versão a que Leibniz chega em Agosto de 1713 (e que continuará a desenvolver até fim de Maio de 1716), por pressão, é verdade, de Des Bosses, mas sem a intenção de que ele chegasse a esta versão e apenas pretendendo mostrar as incongruências da noção inicial com as suas teorias, nomeadamente as relativas à substância, é a de um vínculo, uma união entre as mónadas constituintes, como requisitos mutáveis,282 do corpo orgânico, que torna os fenómenos de conjunto desse corpo reais, 283 constituindo verdadeiro princípio de ação capaz de interagir animalis corpore, alia aliis involuta, et hinc machinam animalem et in genere machinam naturae non prorsus destructibilem esse." 280 Arnauld, Carta para Leibniz de 28 de Agosto de 1687, G, II, 107: "l'attribut de l'ens qu'on appelle unum, pris comme vous le prenez dans une rigueur metaphysique, doit estre essentiel et intrinseque à ce qui s'appelle unum ens. Donc si une parcelle de matiere n'est point unum ens, mais plura entia, je ne conçois pas qu'une forme substantielle qui en estant reellement distinguée ne sçauroit que luy donner une denomination extrinseque, puisse faire qu'elle cesse d'etre plura entia, et qu'elle devienne unum ens par une denomination intrinseque." 281 Leibniz, Carta para Arnauld de 30 de Abril de 1687, G, II, 91: "ce qu'il y a de reel dans l'estat qu'on appelle le mouvement, procede aussi bien de la substance corporelle, que la pensée et la volonté procedent de l'esprit." 282 Leibniz, Carta para Des Bosses de 23 de Agosto de 1713, G, II, 482: "Hinc substantia corporea vel vinculum substantiale Monadum, etsi naturaliter seu physice exigat Monades, quia tamen non est in illis tanquam in subjecto, non requiret eas metaphysice". Visto, em seguida, estar implícita a ligação natural à mónada dominante, é de crer que esta última seja requerida também metafisicamente. 283 Esta qualificação, o tornar os fenómenos reais, não só é diversas vezes repetida, como é extremamente importante para compreender o vínculo e o problema a que responde, que não é o da união entre alma e corpo, mas o da união do próprio corpo orgânico, podendo tributariamente contribuir para o problema anterior. Em seguida, eliminaram-se algumas referências respeitantes à transitoriedade posteriormente superada: Leibniz, Carta para Des Bosses de 16 de Junho de 1712, G, II, 451: "Sufficit substantiam corpoream esse quiddam phaenomena extra Animas realizans"; Leibniz, Carta para Des Bosses de 20 de Setembro de 1712, G, II, 460: "Admissa autem realisatione phaenomenorum et substantiis compositis"; Leibniz, Notes on Des Bosses’s letter of 12 December 1712, BC, 304: "Nescio quid sit Ens realizans phaenomena, nisi hoc ipsum quod ego voco substantiam compositam, seu vinculum substantiale. [...] At Ens realizans phaenomena mihi nihil differt a substantia composita, ut jam dixi. [...] Ens realisans phaenomena distinguens a substantia composita, videtur mihi multiplicare Entia praeter necessitatem." Repare-se como esta última objeção – multiplicar os seres sem necessidade – poderia ser aplicada à conceção final do próprio Leibniz; Leibniz, Carta para Des Bosses de 24 de Janeiro de 1713, G, II, 474, onde a substância composta ainda é considerada a hipótese vulgar: "Quodsi vulgarem sequamur Hypothesin de substantiis corporeis vel compositis, dicerem (ut jam praecedente Epistola mentem meam exposui) vinculum substantiale seu additum Monadibus substantiale, quod substantiam compositam formaliter constituit et phaenomena realisat, posse mutari salvis monadibus, quia, ut dixi, anima vermiculi non est de substantia corporis, in quo est vermiculus, nec multiplicanda sunt miracula praeter necessitatem."; ibidem, G, II, 475, embora ainda afirme a transitoriedade do vínculo: "Nolim enim Ens realisans phaenomena distinguere a vinculo substantiali, ut facere videris num. 7. Haec duo enim mihi revera sunt idem, et dicendum est nasci ea et interire. Positis ergo substantiis composites, mihi incomparabiliter facilius videtur, et convenientius destruere Ens realisans phaenomena, servatis monadibus, quam contra"; Leibniz, Carta para Des Bosses de 21 de Abril de 1714, G, II, 485-6: "Inquisitione dignum est, quidnam excogitari possit, quod sit aptum ad realitatem phaenomenis extra percipientia conciliandam, seu quid constituat substantiam compositam. Quantum judicare possum debebit consistere in potentia activa et passiva primitivis compositi, idque erit quod Materiam primam et

247

mecanicamente com outros corpos como exatamente a mónada não é capaz,284 muito embora seja tão perene quanto esta.285 Esse vínculo é constituído de poderes passivos e ativos primitivos que subjazem à sua eficácia mecânica, os poderes derivativos. O vínculo, em especial o poder ativo da enteléquia, forma a substância composta, entendida, antes de mais, como o corpo orgânico. 286 Aparentemente, mesmo após a primeira formulação do vínculo, a substância composta continuava a ser entendida como suppositum, constituída da alma ou mónada dominante e do corpo orgânico.287 A formam substantialem vocant."; Leibniz, Carta para Des Bosses de 29 de Abril de 1715, G, II, 495: "Si qua detur Unio Realis, realisans vel potius substantialisans phaenomena, quaeris quid efficiat mutationes in ipso corpore? Respondeo, cum corpus, si pro substantia habeatur, nihil aliud esse possit, quam quod ex Unione Reali Monadum resultat, resultabunt inde etiam modificationes quas habebit, Monadum mutationibus respondentes"; Leibniz, Carta para Des Bosses de 30 de Junho de 1715, G, II, 499, já citado na nota 255; Leibniz, Carta para Des Bosses de 13 de Janeiro de 1716, G, II, 510-1: "Non video quomodo concipi possit, realisans phaenomena esse extra substantiam. Nam istud realisans efficere debet, ut substantia composita contineat aliquid substantiale praeter monades, alioqui nulla dabitur substantia composita, id est, composita erunt mera phaenomena."; Leibniz, Carta para Des Bosses de 29 de Maio de 1716, G, II, 516: "Si realizans phaenomena praesupponeret aliquid praeter monades, jam compositum esset realizatum contra hypothesin. Quicquid existit praeter Monades et Monadum modificationes, realizantis phaenomena consectarium est."; ibidem, G, II, 517: "Quod vero additur monadibus ut phaenomena realisentur, non est modificatio monadum, quia nihil in earum perceptionibus mutat. Ordines enim, seu relationes, quae duas monades jungunt, non sunt in alterutra monade, sed in utraque aeque simul, id est, revera in neutra, sed in sola mente; hanc relationem non intelliges, nisi addas vinculum reale, seu substantiale aliquid, quod sit subjectum communium, seu conjungentium praedicatorum et modificationum."; Várias outras são as referências desta carta, da qual ainda se destaca esta que sublinha o primado da substância composta enquanto realização dos fenómenos: ibidem, G, II, 519: "ex his duabus positionibus, dari substantiam compositam, phaenomenis realitatem tribuentem, et substantiam naturaliter nec oriri nec occidere, mea cuncta hic consequuntur, quamquam revera ex sola prima positione seu ex solo postulato, quod phaenomena habeant realitatem extra percipiens, videatur tunc demonstrari posse Philosophia Peripatetica emendata. Nam quod substantia non oriatur nec occidat, vel ex eo confici potest, quia alias incidemus in perplexitates." Neste passo, torna-se claro que esta realização dos fenómenos constitui, para Leibniz, a conclusão do projeto de compatibilizar a filosofia peripatética com a sua. 284 ibidem, G, II, 516-7: "Substantia agit quantum potest, nisi impediatur; impeditur autem etiam substantia simplex, sed naturaliter non nisi intus a se ipsa. Et cum dicitur monas ab alia impediri, hoc intelligendum est de alterius repraesentatione in ipsa. Autor rerum eas sibi invicem accommodavit, altera pati dicitur, dum ejus consideratio alterius considerationi cedit. Aggregatum resolvitur in partes, non substantia composita; quae partes componentes exigit tantum, vero non ex iis essentialiter constituitur, alioqui foret aggregatum. Agit mechanice, quia in se habet vires primitivas seu essentiales et derivativas seu accidentales." De qualquer forma, Leibniz já havia dito que a mónada não é capaz de tal coisa ou, ainda mais radicalmente, de agir sobre as outras mónadas, por que não precisa: Leibniz, "Carta para Des Bosses de 19 de Agosto de 1715", G, II, 503: "Non credo systema esse possibile, in quo Monades in se invicem agant, quia non videtur possibilis explicandi modus. Addo, et superfluum esse influxum, cur enim det monas monadi quod jam habet?" Ainda mais se poderá dizer o mesmo em relação ao que é externo: Leibniz, Carta para Des Bosses de 29 de Maio de 1716, G, II, 518: "Monades non sunt principium operationum ad extra." 285 Leibniz, Carta para Des Bosses de 23 de Agosto de 1713, G, II, 481-2, já transcrito, parte nesta secção (nota 244) e parte em IV. 9 (nota 368). Leibniz, Carta para Des Bosses de 29 de Maio de 1716, G, II, 516, citado na nota 247. 286 Leibniz, Carta para Des Bosses de 29 de Maio de 1716, G, II, 519, ver V.2, nota 138. 287 Leibniz, Anotação integrada na correspondência com Des Bosses, G, II, 438-9: "Sed praeter has relationes reales concipi una potest perfectior, per quam ex pluribus substantiis oritur una nova. Et hoc non erit simplex resultatum, seu non constabit ex solis relationibus veris sive realibus, sed praeterea addet aliquam novam substantialitatem seu vinculum substantiale, nec solius divini intellectus, sed etiam voluntatis effectus erit. Hoc additum monadibus non fit quovis modo, alioqui etiam dissita quaevis in novam substantiam unirentur, nec aliquid oriretur determinati in corporibus contiguis, sed sufficit eas unire monades, quae sunt sub dominatu unius seu quae faciunt unum corpus organicum seu unam Machinam naturae. Et in hoc consistit vinculum metaphysicum animae et corporis, quae constituunt unum suppositum, et huic analoga est unio naturarum in Christo. Et haec sunt quae faciunt unum per se, seu unum suppositum." Não é claro, porém, mesmo neste passo, se o vínculo e o suppositum se referem à

248

enteléquia, entendida também como força ativa, era apenas um atributo essencial das mónadas. 288 Porém, na versão final, a enteléquia da substância composta apenas acompanha (comitatur) a mónada dominante, não se identificando com ela. 289 O caminho para esta conceção parece antecipado pela ausência de resposta a uma questão posta por Des Bosses, a da inclusão essencial da mónada dominante na substância composta.290 Da mesma forma, também não responde a uma objeção que, inversamente, parece corresponder à conceção final do vínculo, a de que nenhuma coleção de entidades absolutas, nomeadamente a mónada da alma e o vínculo substancial, poderia criar uma substância completa. 291 A carta seguinte é a da correção da conceção de vínculo substancial. Esta correção, porém, parece mais profunda do que o declarado, reduzindo as mónadas a meras representações de fenómenos292 e tornando os poderes ativos e passivos, mesmo os primitivos, próprios da substância composta. 293 Este percurso chega ao ponto de, na versão final, a substância composta já nem parecer ser a união metafísica entre a alma e o corpo, mas apenas o corpo orgânico com uma enteléquia própria. A união metafísica parece passar a ser pensada pela junção entre esta enteléquia do composto orgânico e a alma, para dar origem ao animal completo. 294 Exatamente na sequência deste passo é que Leibniz designa o eco já antes atribuído ao vínculo substancial, como eco originário.295 Em que sentido pode um eco ser originário? Leibniz não o explicará e a expressão é paradoxal, exatamente pela razão porque Des Bosses considerava que o eco não poderia ser princípio de ação, por ser um efeito de qualquer outra coisa, por ser derivado.296 Já em V. 2 se chamou a atenção para o facto de a metáfora não ser nova e ser utilizada na correspondência com Arnauld para expressar a harmonia pré-estabelecida. Na correspondência com Des Bosses, a metáfora surge associada às mudanças naturais do corpo e das mónadas que o compõem como requisitos ou, em mesma união ou se aquele se subordina a este, visto não ser claro se a adição, o vínculo substancial, é idêntico ao vínculo metafísico ou é o meio pelo qual se efetiva. Porém, logo a seguir, em G, II, 439, no passo referente à substância composta, ver V. 2, nota 129, esta parece identificar-se com o suppositum. É, porém, incerta a datação destas notas. 288 Leibniz, Notes on Des Bosses’s letter of 12 December 1712, BC, 304: "Entelecheia seu vis activa proprie loquendo inest Monadi, et est ejus attributum essentiale ut ratio hominis." 289 Leibniz, Carta para Des Bosses de 29 de Maio de 1716, G, II, 519: "Caeterum Entelechia compositae substantiae semper monadem suam dominantem naturaliter comitatur." 290 Des Bosses, Carta para Leibniz de 8 de Agosto de 1713, G, II, 479: "at saltem substantia corporea complete sumpta (v. g. homo aut equus) monadem sibi propriam, nempe praedominantem essentialiter includit”. 291 ibidem: “Accedit alia ratio cur vinculum substantiale monadum ad constituendam substantiam compositam requisitum modum esse mallem, quam entitatem absolutam, nempe quod omnis substantia dicat essentialiter simultatem omnium suarum partium, omnis autem entitas absoluta sine quavis alia entitate creata absoluta a se distincta existere posse videtur, ergo nulla entitatum absolutarum solarum collectio (puta collectio animae monadis humanae et vinculi substantialis absoluti) constituere potest adaequate substantiam completam quae homo dicitur.” 292 Leibniz, Carta para Des Bosses de 23 de Agosto de 1713, G, II, 481: “Et cum Monades nihil aliud sint quam repraesentationes phaenomenorum cum transitu ad nova phaenomena, patet in iis ob repraesentationem esse perceptionem, ob transitum esse appetitionem; nec dantur principia, unde aliquid aliud peti possit.” 293 Leibniz, Carta para Des Bosses de 21 de Abril de 1714, G, II, 485-6, já citado na nota 283. Cf. tabela de Leibniz, Carta para Des Bosses de 17 de Agosto de 1715, G, II, 506. 294 Leibniz, Carta para Des Bosses de 29 de Maio de 1716, G, II, 519: "et ita, si Monas sumatur cum Entelechia, continebit formam substantialem animalis." 295 ibidem: “Nil prohibet quin Echo possit esse fundamentum aliorum, praesertim si sit Echo originaria.” 296 Des Bosses, Carta para Leibniz de 20 de Julho de 1715, G, II, 500: "Substantiale enim (saltem quod modale non est) statuis esse virtutem sive principium actionis, quod non videtur convenire reali illi vinculo, cujus modificationes se habent instar Echus."

249

caso de milagre, à intervenção de Deus. 297 É natural que assim seja tendo em consideração que é a resposta à pergunta de Des Bosses acerca da variação fenoménica, visto parecer considerar, mesmo antes da metáfora do eco, que o vínculo não poderia ser ativo. 298 Deixando de parte a questão da transubstanciação que Leibniz nem sequer subscrevia, se o vínculo fosse um mero eco das mónadas, seria, enquanto eco, derivado e não originário. Na comparação com a alma enquanto eco das coisas exteriores,299 por representá-las e representar a sua sucessão, pode-se perceber que Leibniz concebia algo análogo para o vínculo substancial, na medida em que a sucessão das mudanças no corpo tinha um eco no vínculo.300 Mas não sendo o vínculo um ser percetivo, como pode ser originário se só for um eco das mudanças das mónadas que une? Apesar da falta de explicação de Leibniz, o contexto parece dar a resposta: é um eco originário, enquanto enteléquia imperecível da máquina orgânica, porque criado originalmente para se corresponder inteiramente à alma para formar (visto ser a junção desta enteléquia com a alma que lhe dá a forma substancial) o animal completo.301 Este eco originário corresponde-se à expressão originária da alma do corpo que lhe está unido. 302 Só a mónada dominante está naturalmente unida ao vínculo, 303 o vínculo adere sempre à mónada dominante.304 O vínculo é a realização natural da relação de dominação, o meio pelo qual se exerce a dominação orgânica. A fonte primitiva do eco é a mónada dominante, sendo as outras requisitos mutáveis para que possa ecoar, eternamente, a expressão da dominante, como o som requer alguma coisa em que ecoar, muito embora não sejam esses requisitos a fonte do eco. No todo da massa orgânica, como se afirmava 297

Leibniz, Carta para Des Bosses de 29 de Abril de 1715, G, II, 495, ver V. 2, nota 131. Até parece admitir a atividade do vínculo, mas acaba por radicar essa atividade ou nas mónadas, ou em Deus, caso em que seria um milagre perpétuo: Des Bosses, Carta para Leibniz de 20 de Setembro de 1714", G, II, 487-8: "Juxta hanc ergo hypothesin communem dubium non est, quin illud realizans phaenomena varietatem in se aliquam patiatur, cum manifestum sit variari phaenomena. At quae hujus varietatis causa? non solus Deus; id enim foret perpetuum miraculum non ipsum realizans phaenomena ut pote minime activum. Restant itaque solae monades subordinatae et subordinans, quae si in corpus agant, corpus pendebit ab illis; et illae erunt priores corpore." 299 Leibniz, Carta para Des Bosses de 29 de Maio de 1716, G, II, 517: "Etiam anima est Echo externorum, et tamen ab externis est independens." 300 Para lá da primeira referência ao eco e da última, onde o qualifica como originário, Leibniz ainda declara que um corpo que retornasse um eco também seria princípio de ação e que o vínculo é, dessa forma, o princípio de ação da substância composta (Leibniz, Carta para Des Bosses de 19 de Agosto de 1715, G, II, 503: "Sed objicis primo non esse principium actionis, cum sit instar Echus. Respondeo etiam: corpus Echo reddens est principium actionis. Hoc vinculum erit principium actionum substantiae compositae; et qui eam admittit (ut facit ni fallor omnis schola), etiam hoc vinculum admittet. Nonne Schola hactenus principia substantialia compositi unum per se constituentis agnovit, per quae partes uniantur?") que, mesmo sendo um eco das mónadas, delas não depende (Leibniz, Carta para Des Bosses de 29 de Maio de 1716, G, II, 517: "Est Echo monadum, ex sua constitutione, qua semel posita exigit monades, sed non ab iis pendet."). Há, porém, uma expressão utilizada por Leibniz que parece contradizer a derradeira, visto admitir, no seio da contra-argumentação, que, embora o vínculo seja uma fonte de modificações, como eco, não é uma fonte primitiva: Leibniz, Carta para Des Bosses de 19 de Agosto de 1715, G, II, 503: "seu ut fons modificationum, licet per modum Echus. [...] quia non est fons primitivus, sed Echo." Mas as duas citações não parecem ser contraditórias se se aceitar a interpretação que se segue, visto ser eco da alma ou mónada dominante e, como tal, sendo essa mónada a fonte primitiva, mas sendo esse eco de forma originária, desde a criação, como reflexo eterno dessa fonte primitiva, o eco pode não ser a fonte primitiva e ser, contudo, originário. 301 Leibniz, Carta para Des Bosses de 29 de Maio de 1716, G, II, 519, ver V. 2, nota 138. 302 Leibniz, Nouveaux essais..., Livre II, Chap. XXVII, § 14, G, V, 223, ver V. 2, nota 104. 303 Leibniz, Carta para Des Bosses de 23 de Agosto de 1713, G, II, 482: "Nec ulla Monas praeter dominatem etiam naturaliter vinculo substantiali affixa est, cum Monades caeterae sint in perpetuo fluxu." 304 Leibniz, Carta para Des Bosses de 29 de Abril de 1715, G, II, 496: "non opus erit poni nisi in corporibus quae habent Monadem dominantem, seu quae sunt unum per se ut organica, et huic semper adhaerebit Monadi." 298

250

na correspondência com De Volder, 305 poder-se-á encontrar, quanto muito, a matéria-prima.306 Não havendo, porém, entre a alma e o corpo relação causal que não ideal, a metáfora tem esta limitação, ou seja, o vínculo não é um eco que esteja a ser provocado eficientemente pela alma, mas é um eco estabelecido originalmente para se corresponder à expressão da alma. Assim, a noção de vínculo substancial pretende reforçar a harmonia pré-estabelecida considerando o organismo o correlato imprescindível da expressão monádica, um intermediário para a própria expressão do mundo. Não deixa de explicar o mundo físico maquinalmente, visto se tratar da forma da máquina que mantém a sua unidade apesar de todo o constante fluir das mónadas constituintes e das máquinas subordinadas como requisitos do corpo orgânico. Fornece, assim, um princípio de organização intrínseco ao organismo, mesmo que o mesmo apenas espelhe a expressão privilegiada da mónada dominante numa união metafísica propiciada por Deus, sem comunicação direta entre mónada e organismo. Esta união mantém-se como um mistério, mas um mistério primigénio que não requer mais explicação que a entre-expressão monádica. Outra crítica já clássica dirigida à filosofia de Leibniz é a ausência de verdadeira ligação entre a sua física e a sua metafísica, visto não se explicar de todo como as forças primitivas das mónadas poderiam dar origem às forças derivativas estudadas na física, não se percebendo como expressões, perceções e apetites poderiam originar esforços e ímpetos.307 Admitindo que, mesmo com a introdução de uma instância intermediária, a ligação entre a metafísica e a física pode permanecer indeterminada, não deixa de ser curioso que se critiquem as duas conceções, sem reparar que uma delas, a do vínculo, pretendeu também fornecer uma fundamentação alternativa da física. A consciência leibniziana da distância entre as perceções das mónadas e os ímpetos físicos torna-se muito aguda a partir do momento em que Leibniz introduz na correspondência com Des Bosses o vínculo substancial, sobretudo para não admitir quaisquer modificações das mónadas, como as que Des Bosses ia propondo, exceto os apetites que dão origem a 305

Leibniz, Carta para De Volder de 20 de Junho de 1703, G, II, 252: "Si massam sumas pro aggregato plures continente substantias, potes tamen in ea concipere unam substantiam praeeminentem seu entelechia primaria animatum. Caeterum in Monada seu substantiam simplicem completam cum Entelechia non conjungo nisi vim passivam primitivam relatam ad totam massam corporis organici". 306 Phemister tem toda a razão ao comparar o vínculo e a sua substância composta com a mónada expressa a De Volder. Porém, ao explicar a razão para a transferência das características desta para aquela, dá mais uma das habituais explicações circunstanciais que, como outras, têm o pequeno defeito de não corresponderem aos factos. Phemister, op. cit., p. 172: "So why did Leibniz introduce the notion of a substantial chain? Could he not just have reverted to the De Volder monad? The reason for his not doing may lie simply in the fact that the monad is presented in the Des Bosses Correspondence as a soul or substantial form, and not as a De Volder entelechy and primary matter. Primary matter in this Correspondence belongs to the composite substance. Rather than redefine the monad for Des Bosses at his late stage in their correspondence, Leibniz may have considered it less confusing just to coin a new phrase, ‘the substantial chain’, which would then perform the functions of the De Volder monad". Há um pequeno problema nesta interpretação: ele não precisava de redefinir a mónada que tinha apresentado a Des Bosses para esse fim porque a noção de mónada que inicialmente apresentou, logo em 1706, incluía, nas suas variantes, exatamente, a apresentada a De Volder, atribuindo-lhe as potências primitivas ativas e passivas, correspondendo esta última à matéria-prima (ver G, II, 306; o mesmo diz, aliás, 3 anos depois, G, II, 368), como se mostrará na seguinte nota 309. Pelo contrário, ele, em vez de se poupar, teve de redefinir a mónada para acomodar a nova noção de vínculo substancial, como se mostrará na nota 308. Sendo assim, Phemister deveria tentar encontrar outra razão para a evolução. Aqui considerou-se que Leibniz não consideraria as noções equivalentes por faltar unidade própria ao corpo orgânico se este apenas a recebesse de uma entidade extrínseca, pelo que tentou encontrar um correlato da unidade da alma no próprio corpo orgânico que a ela pudesse corresponder e em que pudessem entre-expressarem-se harmoniosamente. 307 E. g., Russell, CE, 96-8.

251

novas perceções. 308 Ao contrário do que havia afirmado em fases anteriores da correspondência,309 isso acaba por levá-lo a radicar na substância composta as forças 308

Começa por rejeitar modalidades para estabelecer as relações de dominação e subordinação, visto apenas admitir, nas mónadas, graus de perceção (presume-se que graus de distinção da perceção): Leibniz, Carta para Des Bosses de 16 de Junho de 1712, G, II, 451: "Vermis aliquis potest esse pars corporis mei, et sub mea anima tanquam monade dominante, qui idem alia animalcula in corpore suo habere potest sub sua monade dominante. Dominatio autem et subordinatio monadum in ipsis considerata monadibus non consistit nisi in gradibus perceptionum." Frente à insistência de Des Bosses, passa a ser muito mais perentório na rejeição de qualquer modalidade para lá das perceções e apetições: Leibniz, Carta para Des Bosses de 24 de Janeiro de 1713, G, II, 474-5: "Nullam etiam novi Monadum modificationem vel substantialem vel accidentalem, quae constituat substantiam compositam, prout rem accepisse videris numero tuo sexto; nec quicquam in Monadibus agnosco, nisi perceptiones et appetitiones." O mesmo se afirmava nas notas feitas à anterior carta de Des Bosses: Leibniz, Notes on Des Bosses’s letter of 12 December 1712, BC, 302: "Nihil aliud admitto in Monadibus quam perceptiones, et tendentiam ad novas perceptiones nec ulla unquam fit naturaliter substantialis mutatio in monadibus. Novae perceptiones jam ex prioribus colligi poterant." Logo em seguida, não só reafirmava o mesmo, como considerava a subordinação representativa: ibidem, BC, 302-4: "Nempe ut dixi nullos Monadum modos novi nisi perceptiones et appetitus seu tendentias ad novas perceptiones; et per has solas fit ut Animae seu Monades alterae alteris subordinentur repraesentative scilicet, nullo inter eas reali influxu." Em seguida, surge a passagem já citada em que Leibniz parece reduzir as mónadas à representação de fenómenos: Leibniz, Carta para Des Bosses de 23 de Agosto de 1713, G, II, 481. Posteriormente, reafirma o mesmo, juntamente com a ausência de influência física mútua, em resposta a Des Bosses, para defender o caráter contingente da criação num só decreto de todas as mónadas: Leibniz, Carta para Des Bosses de 29 de Abril de 1715, G, II, 496: "Si Monades omnes ex propria penu, ut sic loquar, et sine ullo physico unius in aliam influxu perceptiones suas habent, si praeterea cujuslibet Monadis perceptiones caeteris quae nunc a Deo creatae sunt Monadibus earumve perceptionibus praecise respondent, non potuit ergo Deus ullam ex his quae nunc existunt Monadibus creare, quin alias omnes conderet etc. Responsio est facilis et dudum data. Potuit absolute, non potuit hypothetice, ex quo decrevit omnia sapientissime agere et ἁρμονικωτάτως." O mesmo se afirma, de forma muito mais esclarecedora, visto a substância simples ser contraposta à substância composta à qual são atribuídas as potências primitivas e, como seus acidentes, as derivativas, no esquema onde os únicos acidentes admitidos das mónadas são a perceção e o apetite: Leibniz, Carta para Des Bosses de 19 de Agosto de 1715, G, II, 506. 309 Logo no início, pelo menos o poder ativo primitivo era radicado na alma e admitiam-se modificações dos poderes primitivos: Leibniz, Carta para Des Bosses de 14 de Fevereiro de 1706, G, II, 301: "Alioqui anima est Entelechia seu potentia activa primitiva in substantia corporea per quam Materia seu ejusdem substantiae potentia passiva primitiva perficitur, et horum primitivorum modificatione in ipsa substantia corporea actiones passionesque nascuntur." Mas, logo a seguir, ambos os poderes primitivos são atribuídos à mónada que é considerada a substância perfeita: Leibniz, Carta para Des Bosses de 11 de Março de 1706, G, II, 306; já citada em IV. 9, nota 357. Os poderes derivativos mecânicos não são totalmente derivados da mónada dominante do corpo orgânico porque também contribuem para eles todas as outras mónadas constituintes; mas todas as forças derivativas são consideradas modificações das primitivas (inerentes às mónadas): ibidem, G, II, 307: "Praeterea ad actiones mechanica lege exercitas, non Entelechia tantum adaequata corporis organici, sed omnes etiam concurrunt Entelechiae partiales. Nam vires derivativae cum suis actionibus sunt modificationes primitivarum". Não deixa de ser curiosa a passagem anterior em que Leibniz se justifica de uma específica discrepância, neste caso, ter tratado a alma, em certos casos, como simples substância e não como enteléquia do corpo, por nesses casos estar a tratar do acordo entre a mente e o corpo; se o facto de considerar a alma a enteléquia do corpo não é relevante nessa questão, será quando? Cf. ibidem: "In Schedis autem Gallicis de Systemate Harmoniae praestabilitae agentibus, Animam tantum ut substantiam spiritualem, non ut simul corporis Entelechiam consideravi, quia hoc ad rem, quam tunc agebam, ad explicandum nimirum consensum inter Corpus et Mentem, non pertinebat". Posteriormente, continua a atribuir ambos os poderes à mónada enquanto substância completa: Leibniz, Carta para Des Bosses de 16 de Março de 1709, G, II, 368: "Caeterum materia prima propria, id est potentia passiva primitiva, ab activa inseparabilis, ipsi Entelechiae (quam complet, ut Monada seu substantiam completam constituat) concreatur." Numa passagem de um postscriptum aparentemente não enviado a Des Bosses, apesar de parecer começar a fazer a transição, ainda designa a mónada como força primitiva de operar: Leibniz, Carta para Des Bosses de 30 de Abril de 1709, G, II, 372: "Neque animabus assignanda esse quae ad extensionem pertinent, unitatemque earum aut multitudinem sumendam non ex praedicamento quantitatis, sed ex praedicamento substantiae, id est non ex punctis, sed ex vi primitiva operandi. Operatio autem animae propria est perceptio, et unitatem

252

primitivas que estão na base das derivativas.310 Não se trata de uma duplicação, mas de uma verdadeira substituição, visto os princípios do ímpeto e da resistência, no passado radicados na potência primitiva da mónada (os dois ou, pelo menos, o ativo), passarem para a esfera da substância composta.311 Isso permite sustentar com maior facilidade a ligação entre as forças primitivas e derivativas porque, ao contrário das mónadas, a substância composta permite a influência direta de outras substâncias compostas. 312 Dessa forma, os processos físicos: colisão, elasticidade, movimentos — passam a ser radicados na substância composta. 313 Finalmente, chega a admitir uma verdadeira continuidade real e não apenas ideal, com base na substância composta. 314 Como se percipientis facit perceptionum nexus, secundum quem sequentes ex praecedentibus derivantur." Apesar desta força primitiva ser reduzida à perceção, é preciso sublinhar que Leibniz utiliza a expressão "primitiva" para explicar a "derivativa", neste caso, explicar a dinâmica e não a extensão. A conceção está também implícita nesta passagem já referente à transubstanciação: Leibniz, Carta para Des Bosses de 8 de Setembro de 1709, G, II, 390-1. Mas estranhamente, quando já tinha insistido na redução das mónadas às perceções e apetições, talvez por ainda não conceber que isso implicaria um afastamento da conceção anterior, ainda volta a afirmar: Leibniz, Notes on Des Bosses’s letter of 12 December 1712, BC, 304: "Entelecheia seu vis activa proprie loquendo inest Monadi". Já o significado desta passagem da época da conceção final do vínculo parece ser o de radicar toda ação, seja a da vontade (alma), seja a de qualquer outra faculdade de agir, em entidades substanciais, como modificações de uma enteléquia ou de um esforço (conatus) primitivo: Leibniz, Carta para Des Bosses de 15 de Março de 1715, G, II, 492: "Actus non esse res absolutas, sed modificationes Entelechiae seu conatus primitivi, manifestum esse arbitror, idque dicendum non tantum de voluntate, sed et de facultate agendi quacunque." 310 A primeira atribuição surge nesta passagem já citada na nota 283: Leibniz, Carta para Des Bosses de 21 de Abril de 1714, G, II, 485-6. Depois, surge no esquema já referido, onde, referindo-se à substância composta, radica nesta as forças primitivas que estão na origem das derivativas que explicam os fenómenos físicos: Leibniz, Carta para Des Bosses de 19 de Agosto de 1715, G, II, 506: "Consistit in potentia activa et passiva primitivis seu consistit in materia prima, id est principio resistentiae et forma substantialis, id est principio impetus". Posteriormente, numa passagem citada na nota 251, identifica a sua conceção com a Escolástica: Leibniz, Carta para Des Bosses de 13 de Janeiro de 1716, G, II, 511. Também já citado, nota 284: Leibniz, Carta para Des Bosses de 29 de Maio de 1716, G, II, 517. Ibidem, G, II, 517: "Substantia composita [...] consistit in vi activa, et passiva primitiva, ex quibus oriuntur qualitates et actiones passionesque compositi, quae sensibus deprehenduntur, si plus quam phaenomena esse ponantur." Finalmente, esta passagem citada em V. 2, nota 138: ibidem, G, II, 519. 311 A conceção parece parcialmente antecipada, ainda antes da revisão da conceção, ao se considerar que, caso existam substâncias compostas, um princípio de resistência é adicionado: Leibniz, Carta para Des Bosses de 20 de Setembro de 1712, G, II, 460: "sin addas substantias compositas, dicerem in ipsis principium resistentiae accedere debere principio activo, sive virtuti motivae." Porém, aqui ainda não é claro que esteja a referir-se a algo diverso dos poderes passivos derivativos da matéria segunda, se bem que já se esteja a restringir este princípio de resistência ao corpo orgânico. 312 Novamente, o esquema referido: Leibniz, Carta para Des Bosses de 19 de Agosto de 1715, G, II, 506: "Substantia composita, velut Animal vel aliud organicum, quae semper perstat et adhaeret Monadi dominanti, sed ab influxu aliarum substantiarum compositarum patitur." 313 A seguinte descrição das colisões faz parte da parte do esquema antes referido respeitante à substância composta: ibidem, G, II, 506: "Et cum corpus incurrit in aliud, impellit ipsum determinando vim elasticam inexistentem a motu intestino ortam, quemadmodum visibile est, si duae vesicae inflatae aequales aequali celeritate concurrant, ubi per concursum rediguntur ad quietem, et deinde per insitam vim elasticam resumunt motum. Idem fit in omnibus concursibus, neque enim natura unquam agit per saltum, seu nullum corpus momento transit a quiete ad motum, vel a motu majore ad minorem, aut contra, sed transit per intermedia, et hoc fit ope vis Elasticae seu motus insiti a fluido permeante." Não se trata de um comentário colocado no sítio errado. Posteriormente, pode dizer, de forma consequente, que a substância composta age mecanicamente: Leibniz, Carta para Des Bosses de 29 de Maio de 1716, G, II, 517. 314 Talvez esta seja a possibilidade que maior perplexidade causou em confronto com o conjunto da obra de Leibniz, visto a extensão ter sido sempre tratada como fenómeno e a continuidade com uma abstração matemática ideal: Leibniz, ibidem: "Praeterea si solae monades essent substantiae, alterutrum necessarium esset, aut corpora esse mera phaenomena, aut continuum oriri ex punctis, quod absurdum esse constat. Continuitas realis non nisi a vinculo substantiali oriri potest. Si nihil existeret substantiale

253

praeter monades, seu si composita essent mera phaenomena, extensio ipsa nil foret nisi phaenomenon resultans ex apparentiis simultaneis coordinatis, et eo ipso omnes controversiae de compositione continui cessarent." Já foi visto, nesta secção, como esta possibilidade é reforçada mais adiante, ao defender que um verdadeiro contínuo surja da colocação das substâncias compostas umas ao lado das outras: ibidem, G, II, 520; o que parece ser um desenvolvimento da extensão referida a De Volder como repetição ou difusão, muito embora reduzida à ordem de coexistência e considerada uma abstração relativa: Leibniz, Carta para De Volder de 30 de Junho de 1704, G, II, 269: "Extensio est abstractum Extensi nec magis est substantia quam numerus vel multitudo substantia censeri potest, exprimitque nihil aliud quam quandam non successivam (ut duratio) sed simultaneam diffusionem vel repetitionem cujusdam naturae, seu quod eodem redit multitudinem rerum ejusdem naturae, simul cum aliquo inter se ordine existentium, naturae, inquam, quae nempe extendi seu diffundi dicitur. Itaque extensionis notio est relativa seu extensio est alicujus extensio, uti multitudinem durationemve alicujus multitudinem, alicujus durationem esse dicimus.". Esta parece ser, de facto, uma cedência final às pressões realistas, já de muitos anos, por parte de Des Bosses. É apresentada como mais um aspeto da alternativa realismo/fenomenismo, mas a verdade é que se trata de uma questão bem diversa, relativamente à qual Leibniz resistiu até ao último momento, muito após a formulação e reformulação do vínculo substancial. Num estudo feito na sequência da carta de Des Bosses do final de 1712, Leibniz ainda considera a extensão como o mero efeito de uma multidão de perceções coordenadas numa ordem de coexistência: Leibniz, Possível estudo preparatório para a carta para Des Bosses de 24 de Janeiro de 1713, G, II, 473: "Extensio ipsa tantum abest, ut sit aliquid primitivum, quemadmodum concipiunt quidam, praesertim Cartesiani, ut potius nihil aliud sit quam multitudo comperceptionum coordinatarum seu phaenomenorum, quatenus habent ordinem coexistendi communem." Mas ainda pouco antes da derradeira carta e de forma consequente com as teses da polémica com Clarke, Leibniz resistia às pretensões realistas de Des Bosses quanto à extensão, distinguindo entre a perfeição que era dada pela potência ou força e a imperfeição da possibilidade de destruição fornecida pela extensão, aspetos que Des Bosses queria identificar. Apesar de admitir que a matéria terá naturalmente extensão, considera-a como uma ordem das partes, concluindo, aliás, a argumentação com um ataque à conceção substancialista do espaço em termos idênticos aos da polémica com Clarke: Leibniz, Carta para Des Bosses de 13 de Janeiro de 1716, G, II, 510: "Ac primum comparationi objici posse videtur, virtutem activam esse novam perfectionem; sed extensio seu positio partium extra partes potius imperfectio est, cum faciat rem obnoxiam destructioni naturali. Deinde materia seu passivum non exigit virtutem activam, ita ut materia naturaliter in virtutem activam prorumpat, nisi miraculo impediatur. Sed talis est materia, ut naturaliter habitura sit extensionem, nisi impediatur per divinam omnipotentiam. Unde etiam confirmari videtur esse modificationem; nam nihil aliud substantia exigit, quam sui modificationes. Denique si extensio nihil aliud est, quam ordo, secundum quem partes sunt extra partes, profecto nihil aliud est, quam modificatio materiae. Extensionem concipere ut absolutum ex eo fonte oritur, quod spatium concipimus per modum substantiae, cum non magis sit substantia quam tempus." E mais adiante resiste até à identificação da extensão com o poder passivo, nomeadamente com o princípio de resistência, considerando-a a mera situação daquilo que já tem tal princípio de resistência: ibidem, G, II, 511: "Objicis secundo, vinculum substantiale esse principium resistentiae; ita est, nempe compositi, est enim ipsa, ut sic dicam, potentia passiva compositi. Sed ita, inquies, extensio erit principium resistentiae. Ego vero nego hoc sequi, extensio enim longissime differt a potentia passiva, cum nihil nisi situm exprimat ejus, quod jam potentiam passivam habet." Concluindo, Leibniz admite até a primeira passagem nesta nota referida uma conceção física realista com uma estrita fundamentação dinâmica, em que as reais potências primitivas da substância composta dariam origem aos efeitos acidentais derivativos. Tal em nada alteraria a conceção da extensão e de outros efeitos sensíveis como estritamente fenoménicos, mesmo que regulados por relações ideais de coexistência. Porém, na citação referida, parece admitir, concomitantemente à hipótese do vínculo substancial, que à própria extensão fosse concedida uma realidade não ideal ou estritamente fenoménica. É verdade que havia uma passagem bem anterior que, pela negativa, associava a substância composta e a realidade da extensão: Leibniz, Carta para Des Bosses de 26 de Maio de 1712, G, II, 444: "Nam aliunde constat harmoniam phaenomenorum in animabus non oriri ex influxu corporum, sed esse praestabilitam. Idque sufficeret si solae essent animae vel Monades; quo casu etiam omnis evanesceret Extensio realis, nedum Motus, cujus realitas ad meras phaenomenorum mutationes redigeretur." Leibniz não deveria ter considerado, porém, as conceções incompatíveis, visto, na mesma carta, reduzir a extensão a uma ordem de coexistência entre as partes, exatamente a mesma linguagem usada anteriormente: Leibniz, Carta para Des Bosses de 29 de Maio de 1716, G, II, 515: "Materiam naturaliter exigere extensionem, est partes ejus naturaliter exigere inter se ordinem coexistendi." É possível que Leibniz continuasse a pensar numa fundamentação dinâmica da própria extensão enquanto fenómeno bem fundado e, como tal, real enquanto resultante das forças substanciais. Ou talvez tudo se explique por uma escrita intermitente que Leibniz

254

pode perceber que os próprios processos mecânicos sejam explicados pelas substâncias compostas estritamente orgânicas? Embora possa ser difícil de aceitar, a verdade é que esta tese não é diferente das declarações feitas na mesma época de que tudo estava pleno de vida. 315 Leibniz considerava que mesmo os agregados ou as amálgamas, embora enquanto amálgamas não fossem orgânicas, estariam cheias de vida porque se encontrariam micro-organismos na sua constituição e essas próprias máquinas orgânicas seriam constituídas por outras ao infinito. 316 Essa associação da vida ao vínculo substancial possibilita, porém, uma alternativa realista, senão para a continuidade da extensão, aparentemente dependente, mesmo na carta derradeira, das meras relações de coexistência, pelo menos para a dinâmica do mundo físico, inteiramente sustentada pelos organismos, num mundo concebido como palpitante de vida nos seus próprios processos mecânicos. O próprio Leibniz não estaria muito convencido quanto à consistência destas teses, mas há que salientar que foi uma indecisão que percorreu a maior parte da sua vida. A incerteza terá sido certamente um fator de peso para Leibniz não explorar as implicações da nova noção, nomeadamente em relação à conceção de liberdade, visto minorar as perplexidades resultantes da falta de comunicação entre a alma e o corpo, expressas, aliás, pelo próprio Clarke. Poder-se-á considerar disparatado estar a traçar paralelos entre as duas correspondências, mas outros aspetos da polémica são discutidos na correspondência com Des Bosses, nomeadamente a temática do espaço e do tempo.317 Porém, Leibniz trata a liberdade na correspondência com Des Bosses apenas em duas ocasiões (se se excetuar as discussões em torno do jansenismo), ambas bem anteriores à hipótese do vínculo substancial. A segunda faz a exposição da conceção determinista não necessitarista de Leibniz.318 A primeira, porém, tem especial ligação com a questão atual, visto tratar a alma como enteléquia primitiva da substância corporal, defendendo que não seriam as suas deliberações que influenciariam o corpo, reconhece talvez não só entre cartas, mas também entre as partes desta última carta, criando aquilo que Leibniz espera que seja apenas uma aparência de contradição: ibidem, G, II, 518: "Ignosce, quod saltatim scribo, et ideo fortasse non semper satisfacio; nam ad anteriora scripta recurrere non possum. Inde interdum quaedam species contradictionis fortasse orietur. Re tamen excussa erit magis in modo enuntiandi, quam rebus." 315 Leibniz, La Monadologie, § 66, G, VI, 618, ver II. 3, nota 108, e § 69, G, VI, 618-9: "il n'y a rien d'inculte, de sterile, de mort dans l'univers, point de Chaos, point de confusions qu'en apparence". Ver também Leibniz, Essais de Théodicée, Préface, G, VI, 40, ver VI. 6, nota 22. 316 Já foram feitas diversas referências ao longo deste trabalho, mas, apenas a título de exemplo, pode ser referida uma: Leibniz, La Monadologie, § 70, G, VI, 619, ver II. 3, nota 108. Mas, na própria correspondência com Des Bosses, surge a mesma tese: Leibniz, Carta para Des Bosses de 11 de Março de 1706, G, II, 305: "Cum dico, nullam partem materiae esse, quae non monades contineat, exemplo rem illustro corporis humani vel alterius animalis, cujus quaevis partes solidae fluidaeque rursus in se continent alia animalia et vegetabilia. Et hoc puto iterum dici debere de parte quavis horum viventium et sic in infinitum." E esclarece de seguida: ibidem, G, II, 306: "Nam Materia instar fluminis mutatur, manente Entelechia, dum machina subsistit. Machina habet Entelechiam sibi adaequatam, et haec machina alias continet machinas primariae quidem Entelechiae inadaequatas, sed propriis tamen sibi adaequatis praeditas, et a priore totali separabiles." 317 Começa, aliás, a derradeira carta: Leibniz, Carta para Des Bosses de 29 de Maio de 1716, G, II, 515, onde reproduz diversos argumentos da polémica com Clarke. Mas já antes tinha havido a referência à indiferença do tempo e do espaço, defendendo estes como ordens, e ao espaço imaginário: Leibniz, Carta para Des Bosses de 13 de Janeiro de 1716, G, II, 510; para lá de várias outras menções anteriores à própria polémica entre Leibniz e Clarke. 318 Após expor a sua tese do único decreto divino de escolha do melhor mundo possível: Leibniz, Carta para Des Bosses de 12 de Setembro de 1708, G, II, 359: "Libertatem non tantum a coactione, sed et a necessitate eximendam censeo, non tamen ab infallibilitate seu determinatione: semper enim ratio esse debet, cur unum potius quam aliud fiat, nec ulla datur indifferentia perfecti aequilibrii. Interim ratio determinans inclinando determinat, non necessitando, cum aliter fieri non implicet contradictionem."

255

visto este ser determinado pelas leis mecânicas.319 Ora, o mesmo se poderá dizer mesmo após a introdução do vínculo substancial, havendo, porém, um correlato da alma, um reflexo da unidade da alma naquilo que dá unidade ao corpo e o mantém como uma unidade, apesar de todas as alterações mecânicas. Isto significa que poderia ter havido uma aproximação leibniziana à conceção newtoniana de ação livre como eficácia física do espírito. Porém, o que Leibniz pretendia com a noção era um reforço da ligação da harmonia pré-estabelecida, mantendo o caráter mecânico de todo o mundo físico, e mesmo esse reforço manter-se-ia incerto. Significa isto que, muito embora a introdução do vínculo pudesse contribuir para explicar a persistência do corpo, fornecendo, assim, um estatuto intermediário ao organismo entre a alma e o mundo físico, no fundamental, não implicaria qualquer alteração das teses afirmadas na correspondência com Clarke ou noutros textos da mesma época a propósito da questão que suscitou esta secção, a do mecanicismo. Naturalmente, isso não significa que a noção não possa ser alvo de críticas, nomeadamente por multiplicar desnecessariamente os princípios e por introduzir uma entidade não percetiva na economia da filosofia leibniziana. Porém, a longa incerteza de Leibniz acerca da existência de substâncias corporais, acerca da forma como a alma se ligava ao corpo e até de como este persistia e tinha unidade através de algo que lhe era extrínseco, mostra que não se trata de uma noção desnecessária e muito menos fútil ou vã. Por outro lado, se é uma entidade não percetiva, é como reflexo primitivo, originário, de uma entidade percetiva e isso é algo que já era defendido em relação ao corpo na teoria da harmonia pré-estabelecida. Talvez se possa dizer que a noção mantém na obscuridade muitos aspetos que deveriam ser esclarecidos, mas não é uma noção tão disparatada como é usualmente retratada. Uma última questão deverá aqui ser tratada. Muita tem sido a discussão em torno do idealismo ou realismo de Leibniz. Como aqui se viu, as oscilações são sentidas no próprio percurso de Leibniz. Porém, muitos são aqueles que julgam a interpretação realista de Leibniz reforçada devido à fase final da correspondência com Des Bosses. Ora, a noção de vínculo substancial é apresentada muitas vezes, na própria correspondência, como uma alternativa ao fenomenismo e parece razoável presumir que, mesmo nos momentos em que a alternativa não é explicitamente enunciada, por se estar a discutir aspetos estritamente relativos à noção de vínculo, a alternativa está implícita. Porém, a própria alternativa não é uma simples tese fenomenista, visto Leibniz fazer questão de frisar que, ao menos nos casos orgânicos, se trataria de fenómenos do próprio Deus.320 Poder-se-ia pensar que se trataria de uma tese similar à 319

Leibniz, Carta para Des Bosses de 11 de Março de 1706, G, II, 307: "Quod anima non volvendo, id est qua spiritualis seu libera est, sed ut Entelechia corporis primitiva, adeoque non nisi secundum Leges Mechanicas influat in actiones corporis, jam monui literis praecedentibus." 320 De facto, antecipando a interpretação aqui proposta, esta conceção é logo apresentada como sendo a realidade dos corpos (e também do movimento, do espaço e do tempo), caso estes sejam fenómenos, independentemente da variação perspetívica do criado: Leibniz, Anotação integrada na correspondência com Des Bosses, G, II, 438: "Si corpora sunt phaenomena et ex nostris apparentiis aestimantur, non erunt realia, quia aliter aliis appareant. Itaque realitas corporum, spatii, motus, temporis videtur consistere in eo ut sint phaenomena Dei, seu objectum scientiae visionis. Et inter corporum apparitionem erga nos et apparitionem erga Deum discrimen est quodammodo, quod inter scenographiam et ichnographiam. Sunt enim scenographiae diversae pro spectatoris situ, ichnographia seu geometrica repraesentatio unica est; nempe Deus exacte res videt quales sunt secundum Geometricam veritatem, quanquam idem etiam scit, quomodo quaeque res cuique alteri appareat, et ita omnes alias apparentias in se continet eminenter." Uma nota do rascunho de uma carta de Agosto de 1713, numa passagem onde Leibniz voltava a enunciar a alternativa de os corpos serem meros fenómenos (cf. Leibniz, Carta para Des Bosses de 23 de Agosto de 1713, G, II, 481: "et ita rursus corpora mera erunt phaenomena."), afirma que Deus vê por conhecimento intuitivo até os fenómenos das coisas, de forma exata e como se fosse do centro: Leibniz, BC, 446: "DEUS enim scientia visionis videt etiam phaenomena rerum, sed videt omnia exacte et tanquam ex

256

de Berkeley, mas não parece. Em primeiro lugar, a explicação dos fenómenos humanos não se esgota, para Leibniz, em serem percebidos, na medida em que os fenómenos se fundam numa realidade insensível, por muito que similar à alma.321 Em segundo lugar, porque o papel de Deus, em Berkeley, é o de causar as ideias/fenómenos e não de os sentir/perceber.322 Ora, os fenómenos, em Leibniz, resultam das perceções confusas das almas, que fundem, por exemplo, uma multidão vastíssima de perceções numa aparência única como a extensão, o movimento ou a cor.323 Porém, nenhuma perceção centro". Existem duas outras menções explícitas à noção, a primeira das quais admite a extensão desta visão divina aos anjos e beatos, capazes de ver na transubstanciação o corpo de Cristo em vez do pão e do vinho: Leibniz, Carta para Des Bosses de 24 de Janeiro de 1713, G, II, 474: "Sin vero Monades non sint pars substantialis corporum, et composita sint mera phaenomena, dicendum foret corporum substantiam consistere in phaenomenis veris, quae nempe ipse Deus in iis per Scientiam visionis percipit, itemque Angeli et Beati, quibus res vere videre datum est; itaque Deum cum Beatis percipere Corpus Christi, ubi nobis panis et vinum apparet." A segunda tem a particularidade de afirmar que, nesta alternativa, a substância corporal (e não simplesmente o corpo) deve ser procurada nos fenómenos de Deus: Leibniz, Carta para Des Bosses de 23 de Agosto de 1713, G, II, 482: "sin nihil tale sit, et corpora sint mera phaenomena, substantia corporis quaerenda erit in solis phaenomenis. At non nostris, quibus manent priores species, sed in his quae Menti Divinae et iis quibus revelat Deus, obversantur." Resta saber se esta conceção se mantém até ao fim, visto que, posteriormente, a alternativa é enunciada em termos de verdadeiros fenómenos, mas parecendo referir-se apenas às aparências das mentes criadas: cf., e.g., Leibniz, Carta para Des Bosses de 19 de Agosto de 1715, G, II, 504: "Malim ergo dici, superesse quidem non substantias, sed species, eas autem non esse illusorias, ut somnium, aut ut gladius ex speculo concavo in nos porrectus, aut ut Doctor Faustus comedebat currum foeno plenum, sed vera phaenomena, id est eo sensu, ut Iris vel Parelium est species; imo, ut secundum Cartesianos et secundum veritatem colores sunt species. Et potest dici Entia composita, quae non sunt unum per se, seu vinculo substantiali [...] uno spiritu non continentur, esse semientia; aggregata substantiarum simplicium, ut exercitum, vel acervum lapidum, esse semisubstantias; colores, odores, sapores etc. esse semiaccidentia. Haec omnia, si solae essent monades sine vinculis substantialibus, forent mera phaenomena, etsi vera." 321 A correspondência com Des Bosses é dos poucos lugares onde Leibniz se pronuncia sobre a obra de Berkeley, embora sob a pressão provocatória e dogmática de Des Bosses. Talvez por isso a opinião apresentada seja extremamente desfavorável: Leibniz, Carta para Des Bosses de 15 de Março de 1715, G, II, 492: "Qui in Hybernia corporum realitatem impugnat, videtur nec rationes afferre idoneas, nec mentem suam satis explicare. Suspicor esse ex eo hominum genere, qui per Paradoxa cognosci volunt." No inverno de 14-15, havia produzido observações bem mais favoráveis, onde, ainda antes de várias críticas, sobretudo relativas à infinidade e aos universais, admite que existe muito no Tratado que está correto e próximo do seu ponto de vista: cf. G. W. Leibniz, trad. ingl. Roger Ariew and Daniel Garber, Philosophical Essays, Indianapolis, Hackett Publishing Company, 1989, p. 307. 322 George Berkeley, op. cit., § 29, p. 170: "whatever power I may have over my own thoughts, I find the ideas actually perceived by Sense have not a like dependence on my will. When in broad daylight I open my eyes, it is not in my power to choose whether I shall see or no, or to determine what particular objects shall present themselves to my view; and so likewise as to the hearing and other senses, the ideas imprinted on them are not creatures of my will. There is therefore some other Will or Spirit that produces them."; ibidem, § 90, p. 202: "the things perceived by sense may be termed external, with regard to their origin — in that they are not generated from within by the mind itself, but imprinted by a Spirit distinct from that which perceives them."; ibidem, § 146, p. 232: "it is evident to every one that those things which are called the Works of Nature, that is, the far greater part of the ideas or sensations perceived by us, are nor produced by, or dependent on, the wills of men. There is therefore some other Spirit that causes them; since it is repugnant that they should subsist by themselves." Aliás, Berkeley pretende, nos parágrafos seguintes, provar a existência de Deus a partir dos seus efeitos, tal como depreendemos a existência do espírito humano dos efeitos observáveis. Cf. ibidem, §146-149, pp. 232-234. 323 E. g., Leibniz, Discours de Métaphysique, XXXIII, G, IV, 459: "les perceptions de nos sens, lors mêmes qu'elles sont claires, doivent necessairement contenir quelque sentiment confus". Leibniz, Nouveaux essais..., Livre IV, Chap. VI, § 7, G, V, 384: "on ne sauroit demeler l'idée des dents de la roue, c'est à dire de la cause, dans la perception d'un transparent artificiel, que j'ay remarqué chez les horlogers, fait par la promte rotation d'une roue dentelée, ce qui en fait disparoistre les dents et paroistre à leur place un transparent continuel imaginaire, composé des apparences successives des dents et de leur intervalles, mais oú la succession est si promte que nostre fantaisie ne la sauroit distinguer. On trouve donc bien ces dents dans la notion distincte de cette transparence, mais non pas dans cette perception sensitive confuse,

257

de Deus pode ser confusa, nenhuma aparência o pode iludir, nenhuma intuição pode não corresponder à realidade. Que significa, então, que algo seja fenómeno de Deus? Longe de ser uma alternativa não realista, esta parece ser uma outra alternativa realista, que vai além da simples explicação habitual da realidade dos fenómenos por terem origem nas forças primitivas das mónadas, pois esta ainda requer a perceção confusa dessas forças. Parece mesmo fornecer um fundamento físico mais seguro para a verdade e realidade das relações do que o simples facto de serem verdades de razão existentes na mente de Deus. De facto, se se tratasse apenas disso, poder-se-ia explicar, por exemplo, a espacialidade, a extensão e o movimento,324 mas dificilmente se explicaria a visão do corpo de Cristo para lá das aparências do pão e do vinho.325 Leibniz nunca chega a questionar-se acerca da possível compatibilidade das noções de vínculo substancial e de fenómeno de Deus, apresentando-os sempre como alternativas, mas é difícil ignorar que se trata de alternativas cujo resultado final é o mesmo, o de realizar os fenómenos. 8. A força ativa Esta é uma das discussões mais decisivas da polémica, mas é também aquela onde a incompreensão mútua, agravada pelas desconfianças anteriores, é mais notória. De facto, não chega a ser claro se alguma vez, para lá da má-fé, algum dos interlocutores chega a perceber a noção de força do outro. E, porém, há mais semelhanças entre alguns aspetos destas noções do que, certamente, os autores gostariam de reconhecer. Infelizmente, na polémica, a discussão mantém-se a um nível bastante derivado e genérico, sobretudo no que se refere a Leibniz, sendo um dos aspetos em que uma possível continuação da polémica, sobretudo se fossem expostas as objeções surgidas em nota na edição de Clarke,326 poderia ter trazido esclarecimentos adicionais muito significativos. Centra-se a discussão sobre a defesa da conservação da força global no universo por Leibniz em contraposição à perda natural (ou ganho) da dont la nature est d'estre et de demeurer confuse ; autrement si la confusion cessoit (comme si le mouvement estoit si lent qu'on en pourroit observer les parties et leur succession), ce ne seroit plus elle, c'est à dire, ce ne seroit plus ce phantome de transparence." Embora estenda o exemplo, para lá do movimento, às cores e aos gostos, não é claro que o aplique, no contexto do texto, às próprias figuras e movimentos originais. Porém, pode ser visto como uma metáfora de toda a representação do mundo que, contendo sempre perceções ao infinito, seja para o maior, seja para o menor, é, em geral, confusa: e. g., Leibniz, op. cit., Livre II, Chap. I, § 1, G, V, 99, ver V.2, nota 94. Leibniz, Essais de Théodicée, 2ª parte, § 124, G, VI, 179: "Si elle n'avoit que pensées distinctes, ce seroit un Dieu, sa sagesse seroit sans bornes ; c'est une des suites de mes meditations. Aussitost qu'il y a un melange de pensées confuses, voilá les sens, voilá la matiere. Car ses pensées confuses viennent du rapport de toutes les choses entre elles suivant la durée et l'etendue." 324 Leibniz, Anotação integrada na correspondência com Des Bosses, G, II, 438: " Porro Deus non tantum singulas monades et cujuscunque Monadis modificationes spectat, sed etiam [videt, ed. Look e Rutherford] earum relationes, et in hoc consistit relationum ac veritatum realitas. Ex his una ex primariis est duratio seu ordo successivorum, et situs seu ordo coexistendi, et commercium seu actio mutua, dum nempe concipitur Monadum dependentia invicem idealis". 325 Leibniz, Carta para Des Bosses de 24 de Janeiro de 1713, G, II, 474, ver nota 320. 326 Talvez isso, mais do que o conteúdo da quinta resposta, pudesse ter feito Leibniz reconsiderar a sua intenção de não continuar a polémica, se julgasse que a mesma mais não poderia provocar senão repetições: Leibniz, Carta para Robert Erskine de 22 de Junho de 1716, CN, VI, 358: "Ma dispute avec M. Clarke defenseur de M. Newton dure encore mais j'espere qu'elle sera bientost finie, car je luy envoye maintenant une response assés ample à son dernier ecrit, la quelle éclaircit les choses à fonds ; ainsi je crois qu'apres cela, je n'auray plus grand chose à dire sans repetition, et s'il ne se rend point à la raison, je le laisseray là comme invincible." O mesmo dirá mais tarde à própria princesa: Leibniz, ed. Onno Klopp, Die Werke von Leibniz, Vol. XI, Hannover, Klindworth's Verlag, 1884 [WL], "Carta para a Princesa de Gales de 18 de Agosto de 1716", p. 132: "Cette réponse est très-ample par ce que j'ay voulu expliquer les choses à fond, et voir par-là s'il y a espérance de faire entendre raison à Mr. Clarke. Car s'il se jette sur les répétitions, il n'y aura rien à faire avec luy, et il faudra tâcher de finir honnêtement."

258

força pelos corpos,327 defendida por Newton por falta de outra força própria que não a da inércia, que, só considerando a matéria, levaria ao próprio desaparecimento do movimento. Sendo a força, em Newton, determinada diretamente em função da massa e da variação do movimento, essa perda de movimento é considerada uma perda direta da força. 328 Da mesma forma, Clarke, na polémica, considera quer que não existe uma força própria nos corpos, entendidos de forma estritamente passiva e dependente da ação divina,329 quer que a perda de movimento se traduz numa perda das forças ativas no universo, devido à natureza inerte e dependente da matéria.330 Essas forças ativas vedadas, por definição, à matéria, meramente passiva, são produzidas por cada ação de um espírito, consistindo, pois, a ação numa produção de novas forças e correspondentes movimentos no mundo. 331 Ora, Leibniz dissocia a perda do movimento que, contrariamente aos cartesianos, admite, da perda de força, considerando que ela nunca é destruída, mesmo, por exemplo, num choque entre dois corpos moles que não permitam o ressalto, mas sim dissipada nas suas partes ínfimas. 332 Reparando na restrição da 327

Leibniz, Streitschriften..., 1º escrito, § 4, G, VII, 352 (ver III. 2, nota 72); 3º escrito, § 13, G, VII, 366 (ver VI. 1, nota 21); 4º escrito, §§ 38-39, G, VII, 376; rejeição de que o universo possa ganhar nova força, 4º escrito, §§ 32-33, G, VII, 375-6 (ver V. 2, nota 95); 5º escrito, § 94, G, VII, 413: "je n'ay garde de dire qu'il soit surnaturel de donner une nouvelle force à un corps, car je reconnois qu'un corps reçoit souvent une nouvelle force d'un autre corps, qui en perd autant de la sienne. Mais je dis seulement qu'il est surnaturel que tout l'univers des corps reçoive une nouvelle force ; et ainsi qu'un corps gagne de la force, sans que d'autres en perdent autant. C'est pourquoy je dis aussi, qu'il est insoutenable que l'ame donne de la force au corps ; car alors tout l'univers des corps recevroit une nouvelle force." 328 Newton, Optics, Query 31, OO, IV, 258: "The vis inertiæ is a passive principle, by which bodies persist in their motion or rest; receive motion in proportion to the force impressing it, and resist as much as they are resisted. By this principle alone there never could have been any motion in the world. Some other principle was necessary for putting bodies into motion; and now they are in motion, some other principle is necessary for conserving the motion. For from the various composition of two motions, it is very certain that there is not always the same Quantity of motion in the world. For if two globes, joined by a slender rod, revolve about their common center of gravity with an uniform motion, while that center moves on uniformly in a right line drawn in the plane of their circular motion; the sum of the motions of the globes, as often as the globes are in the right line described by their common center of gravity, will be bigger than the sum of their motions, when they are in a line perpendicular to that right line. By this instance it appears, that motion may be got or lost. But by reason of the tenacity of fluids, and attrition of their parts, and the weakness of elasticity, motion is much more apt to be lost than got, and is always upon the decay." Horsley, em nota, considera que o exemplo dos dois globos estaria invertido. 329 Clarke, Streitschriften..., 1ª réplica, § 4, G, VII, 354; 2ª réplica, §§ 6-7, G, VII, 361; § 9, G, VII, 361(ver VI. 1, nota 17); § 11, G, VII, 362 (ver VI. 2, nota 47). 330 Clarke, op. cit, 3ª réplica, §§ 13-14, G, VII, 370 (ver VI. 1, nota 18); 4ª réplica, §§ 38-39, G, VII, 387: "Two Bodies, void of Elasticity, meeting together with equal contrary Forces, Both lose their Motion. And Sr Isaac Newton has given a Mathematical Instance [...] wherein Motion is continually diminishing and increasing in Quantity, without any communication thereof to other Bodies" (§ 39 em VI. 1, nota 19). 331 Clarke, op. cit, 4ª réplica, § 33, G, VII, 387: "Every Action is (in the nature of Things) the giving of a new Force to the thing acted upon. Otherwise 'tis not really action, but mere passiveness; as in the case of all mechanical and inanimate communications of Motion."; ibidem, 5ª réplica, § 93, G, VII, 433. Ver III. 2, nota 73. 332 Leibniz, op. cit, 5º escrito, § 99, G, VII, 414: "les forces Actives se conservent dans le monde. On m'objecte, que deux corps mols ["mous" em Janet] ou non-elastiques, concourant entre eux, perdent de leur force. Je reponds que non. Il est vray que les touts la perdent par rapport à leur mouvement total, mais les parties la reçoivent, étant agitées interieurement par la force du concours ou du choc. Ainsi ce dechet n'arrive qu'en apparence. Les forces ne sont point detruites, mais dissipées parmy les parties menues. Ce n'est pas les perdre, mais c'est faire comme font ceux qui changent la grosse monnoye en petite. Je demeure cependant d'accord, que la quantité du mouvement ne demeure point la même, et en cela j'approuve [...] l'Optique de M. Newton, qu'on cite icy. Mais j'ay montré ailleurs, qu'il y a de la difference entre la quantité du mouvement et la quantité de la force." Na passagem referida de Newton, este não se refere apenas a corpos moles, mas também a corpos absolutamente duros que Leibniz talvez não considere aqui por rejeitar a sua existência. Cf. Newton, op. cit., OO, IV, 258: "For bodies, which are

259

inelasticidade aos corpos moles, Clarke questionará, já sem obter resposta, o que acontecerá na alternativa newtoniana dos corpos perfeitamente duros que não teriam a possibilidade de dispersar as forças.333 Noutros textos, Leibniz tenta responder a esta possível objeção, considerando não só os corpos moles, mas também os corpos duros não elásticos, 334 mas fá-lo rejeitando a sua existência ou por violarem a lei da continuidade, 335 ou através de uma argumentação empírica não muito clara mas que tenta sempre explicar a perda aparente de força pela dispersão da força,336 mesmo que não exatamente da mesma forma que os corpos moles. 337 Além disso, Clarke, mostrando uma estranha falta de conhecimento da dinâmica leibniziana, considerará que se trata de um subterfúgio a dissociação entre movimento e força, sustentando a tese cartesiana, mantida por Newton, da proporcionalidade entre a força ativa impulsiva e o movimento. 338 Adiante se verá que acabará por reconhecer e enfrentar a mais either absolutely hard, or so soft as to be void of elasticity, will not rebound from one another. Impenetrability makes them stop. If two equal bodies meet directly in Vacuo, they will, by the laws of motion, stop where they meet, and loose all their motion, and remain in rest". 333 Clarke, op. cit, 5ª réplica, § 99, G, VII, 433-4: "In Order to show that the Active Forces in the World (meaning the Quantity of Motion or Impulsive Force given to Bodies) do not naturally diminish; this Learned Writer urges, that two soft unelastick Bodies meeting together with equal and contrary Forces, do for this only Reason lose each of them the Motion of their Whole, because it is communicated and dispersed into a Motion of their small Parts. But the Question is; when two perfectly HARD un-elastick Bodies lose their whole Motion by meeting together, what then becomes of the Motion or active impulsive Force? It cannot be dispersed among the Parts, because the parts are capable of no tremulous Motion for want of elasticity." 334 Leibniz, Essay de Dynamique sur les loix du Mouvement..., GM, VI, 228: "plusieurs distinguent entre les corps durs et mols, et les durs mêmes en Elastiques ou non, et bastissent là dessus des differentes regles." 335 ibidem, GM, VI, 228-9: "cette Elasticité des corps est necessaire à la Nature, pour obtenir l'Execution des grandes et belles loix que son Auteur infiniment sage s'est proposé, parmy lesquelles ne sont pas les moindres, ces deux Loix de la Nature que j'ay fait connoistre le premier, dont la premiere est la loy de la conservation de la force absolue ou de l'action motrice dans l'univers avec quelques autres conservations absolues nouvelles qui en dependent et que j'expliqueray un jour, et la seconde est la loy de la continuité, en vertu de laquelle entre autres effects, tout changement doit arriver par des passages inassignables et jamais par saut. Ce qui fait aussi que la nature ne souffre point de corps durs non-elastiques." Em seguida, imagina a possibilidade de corpos duros não-elásticos e refuta-a por contradizerem a lei da continuidade. 336 Mesmo que para fora do sistema dos corpos envolvidos ou não sendo percetível no seu todo, ibidem, GM, VI, 230-1: "ce dechet de la force totale ou ce manquement de la troisieme Equation [a da conservação da força total absoluta, p. 227] ne deroge point à la verité inviolable de la loy de la conservation de la même force dans le monde. Car ce qui est absorbé par les petites parties, n'est point perdu absolument pour l'univers, quoyqu'il soit perdu pour la force totale des corps concourans." 337 A explicação dada para os corpos moles, a de as partes não estarem suficientemente suficientemente ligadas para transferirem a força para o todo, não parece aplicável a corpos duros aparentemente não elásticos, mas Leibniz parece considerar o processo análogo, seguindo o mesmo processo de dispersão pelas pequenas partes. Cf. ibidem, GM, VI, 230: "neantmoins l'Elasticité souvent paroist pas assez dans les masses ou corps que nous employons, quand même ces masses seroient composées de parties elastiques et ressembleroient à un sac plein de petites boules dures qui cederoient à un choc mediocre, sans remettre le sac, comme l'on voit des corps mols ou qui obeissent sans se remettre assez. C'est que les parties n'y sont point assez liées, por transferer leur changement sur le tout. D'ou vient que dans le choc de tels corps une partie de la force est absorbée par les petites parties qui composent la masse, sans que cette force soit rendue au total : et cela doit tousjours arriver lorsque la masse pressée ne se remet point parfaitement." 338 Clarke, op. cit, 5ª réplica, § 99, G, VII, 434: "At length (upon the Demonstration I cited from Sir Isaac Newton) he is obliged to allow, that the Quantity of Motion in the World, is not always the same; And goes to another refuge, that Motion and Force are not always the same in Quantity. But this also is contrary to experience. For the Force here spoken of, is not the Vis inertiae of Matter (which continues indeed always the same, so long as the Quantity of Matter continues the same) but the Force here meant, is relative Active impulsive Force; which is always proportional to the Quantity of Relative Motion: As is constantly evident in Experience; except where some Error has been committed, in not rightly Computing

260

fundamental tese da dinâmica leibniziana nas notas da sua edição da polémica. Por outro lado, Leibniz continuaria a não aceitar que a natureza dependente das coisas implicasse a diminuição das forças ativas, 339 muito embora essa dependência, em Leibniz, servisse para explicar o mal e a passividade da matéria. Aliás, mostra entender a inércia newtoniana de acordo com o conceito kepleriano de resistência ao movimento,340 o que, por muito que reflita a sua conceção, mostra, também, tal como Clarke em relação a si, falta de compreensão da conceção newtoniana. Diga-se, aliás, que, se Clarke acaba por negar a restrição leibniziana do princípio da inércia, também não esclarece de uma forma geral o seu significado newtoniano, limitando-se a justificar, com a natureza da matéria inerte, a perda de força dos corpos no impacto entre corpos perfeitamente duros.341 Já se viu anteriormente que Leibniz acabou por reconhecer, de forma abstrata, a distinção newtoniana entre movimento absoluto e relativo, mas por a causa, ou seja, a força, estar no corpo. 342 Tal provocou festejos pouco fundados de Clarke, tendo em conta que essa era a tese anticartesiana de Newton, 343 a de que existia movimento absoluto, baseando essa tese na existência de verdadeiras forças que causavam o movimento, como julgava poder provar com as forças inerciais do movimento circular. 344 A aparente concordância rapidamente se dissipa até através das incompreensões da própria polémica. Normalmente, o diálogo parece possível porque ambos se referem à transferência de forças no impacto entre os corpos e, como já foi visto, é essa transferência que permite sustentar, para Leibniz, a conservação da força ativa.345 Como é possível, então, compreender a formulação de Leibniz ao defender que os corpos guardam a sua força em impactos entre iguais, apenas mudando a direção?346 and subducting the contrary or impeding Force, which arises from the Resistence of Fluids to Bodies moved any way, and from the continual contrary Action of Gravitation upon Bodies thrown upwards." A última referência lança a dúvida se não conheceria melhor do que aqui parece a dinâmica leibniziana. 339 Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 100, G, VII, 414 (ver VI. 1, nota 28). 340 Leibniz, op. cit, § 102, G, VII, 414: "On dit maintenant, que c'est une suite de l'inertie de la matiere, mais c'est ce qu'on ne prouvera pas non plus. Cette inertie mise en avant et nommée par Kepler, et repetée par Des Cartes dans ses Lettres, et que j'ay employée dans la Theodicée pour donner une image, et en même temps un echantillon de l'imperfection naturelle des creatures, fait seulement que les vitesses sont diminuées quand les matieres sont augmentées ; mais c'est sans aucune diminution des forces." Esta confusão, já identificada na Teodiceia (vide I. Bernard Cohen, "Newton's Copy of Leibniz's Théodicée: With Some Remarks on the Turned-Down Pages of Books in Newton's Library" in Isis, The University of Chicago Press, 19829, Vol. 73, Nº 3, p. 411), poderá, aliás, ter levado Newton a pensar em alterar a Definição 3 dos Principia. Cf. Cohen, "A Guide...", ch. 4, sec. 8, PM, 101; Koyré, EN, "Newton et Descartes", nota 39, 140. 341 Clarke, op. cit, 5ª réplica, §§ 100-102, G, VII, 434: "That Active Force [...] does naturally diminish continually in the material Universe [...] is no Defect, is evident; because 'tis only a Consequence of Matter being lifeless, void of Motivity, unactive and inert. For the Inertia of Matter, causeth, not only (as this learned Author observes) that Velocity decreases in proportion as Quantity of Matter increases (which is indeed no decrease of the Quantity of Motion;) but also that solid and perfectly hard Bodies, void of Elasticity, meeting together with equal and contrary Forces, lose their whole Motion and Active Force, [...] and must depend upon some other Cause for new Motion." 342 Leibniz, op. cit., § 53, G, VII, 404. Ver IV. 8, nota 295. 343 Westfall, NR, 410: "Part of his heritage, which he could not forget, was his essay "De gravitatione," in which he vehemently rejected the relativism of Cartesian mechanics for an absolutistic dynamics founded on the principle that force is the distinguishing characteristic of true motion." 344 Newton, Philosophiæ naturalis..., Definitiones, Scholium, OO, II, 10: "Effectus, quibus motus absoluti & relativi distinguuntur ab invicem, sunt vires recendi ab axe motûs circularis. Nam in motu circulari nudè relativo, hæ vires nullæ sunt; in vero autem & absoluto, majores vel minores pro quantitate motûs." 345 Leibniz, op. cit, § 94, G, VII, 413. Ver nota 327. 346 Leibniz, op. cit, § 93, G, VII, 412-3: "Je n'admets point que toute Action donne une nouvelle force à ce qui patit. Il arrive souvent dans le concours des corps, que chacun garde la force, comme lorsque deux corps durs egaux concourent directement. Alors la seule direction est changée, sans qu'il y ait du

261

Aceitando o que o próprio Leibniz afirma no parágrafo seguinte, dever-se-ia concluir, como Clarke, que, em choques elásticos, cada corpo recebe a força impressa pelo outro corpo.347 Embora Leibniz não se refira, na polémica, às forças primitivas, a formulação referida só faz sentido se supuser, ao contrário do nível de abordagem da polémica, que a comunicação da força é meramente fenoménica, sendo apenas a manifestação dos acréscimos monádicos de ação e de paixão. 348 É suposto, para Leibniz, que, fenomenicamente, tudo seja explicado mecanicamente, desde que se considere esses fenómenos efeitos (modificações e resultados) da realidade das mónadas349 ou dos seus ecos orgânicos.350 Se não existe aumento ou diminuição de velocidade, não é necessário falar de comunicação de força, mesmo a nível fenoménico. Ora, contraposta a esta noção de força inerente às próprias substâncias corporais, Newton desenvolveu uma conceção de força que transcende os próprios corpos, reduzidos a transmitir passivamente as forças impressas. As forças ativas que dão origem ao movimento no mundo e continuam a dinamizá-lo continuamente, pelo menos as de atração, começaram por ser pensadas, por Newton, como inerentes à natureza da matéria ("essas forças resultam da natureza universal da matéria"),351 mas tal conceção nunca se viu em letra impressa durante a vida de Newton (embora fosse publicada logo a seguir à sua morte, em 1728), tendo Newton, como já foi tratado em IV. 8., apesar da tendência do prefácio de Cotes, rejeitado, explicitamente, a gravidade como propriedade essencial da matéria. O tratamento estritamente matemático reivindicado por Newton,352 já referido em II.1., destinado a frutificar na posteridade científica newtoniana, ao qual já Leibniz havia contraposto a noção que remetia para o princípio da razão suficiente,353 é motivado pela suspensão de juízo em relação ao incerto, não deixando de manter conceções metafísicas genéricas acerca da natureza corporal que mantêm o fundamental da conceção passiva cartesiana. Essa mesma conceção é múltiplas vezes esclarecida por Clarke que parece só ter tido acesso à versão definitiva da conceção de matéria de

changement dans la force, chacun des corps prenant la direction de l'autre et retournant avec la même vitesse qu'il avoit déja eue." 347 Clarke, op. cit, §§ 93-95, G, VII, 433: "I alledged, that every Action is the giving of a New Force to the Thing acted upon. To this it is objected, that two equal hard Bodies stricking each other, return with the same Force; and that therefore their Action upon each other, gives no New Force. It might be, sufficient to reply, that the Bodies do Neither of them return with their own Force, but each of them loses its own Force, and each returns with a new Force impressed by the others Elasticity: For if they are not elastical, they return not at all. But indeed, all mere mechanical Communications of Motion, are not properly Action, but mere Passiveness, both in the Bodies that impell, and that are impelled." 348 Leibniz, De ipsa natura..., § 14, G, IV, 514-5: "motu de globulo per plures intermedios in globulum translato, globulum ultimun eadem vi moveri qua motus est globulus primus: mihi vero videtur, aequivalente quidem moveri, sed non eadem, cum unusquisque (quod mirum videri possit) sua propria vi; nempe elastica (nom jam de elasmatis hujus causa disputo, neque nego mechanice debere explicari motu fluidi inexistentis ac perlabentis) a proximo urgente repulsus in motum agatur." 349 Leibniz, Carta para de Volder de 20 de Junho de 1703, G, II, 250. Passagens transcritas em IV. 8. e 9, notas 312 e 365. Vide ibidem, G, II, 251: "Vires quae ex massa et velocitate oriuntur, derivativae sunt et ad aggregata seu phaenomena pertinent. Et cum de vi primitiva manente loquor, non intelligo conservationem potentiae motricis totalis de qua olim inter nos actum est, sed Entelechiam cum alia tum vim illam totalem semper exprimentem. Et sane vires derivativae non sunt nisi modificationes et resultationes primitivarum." 350 Ver a secção anterior. 351 Newton, De mundi sistemate, § 25, OO, III, 195: "His attractionibus fit, ut corpora Telluris & omnium Planetarum sphæricam affectent figuram, utque partes eorum cohæreant, & non spargantur per æthera. Oriri verò has vires ex universali naturâ materiæ jam constitit, & propterea ex particularum viribus componi vim globi totius." 352 Newton, Philosophiæ naturalis..., Def. VIII, OO, II, 5-6. 353 Leibniz, Streitschriften..., 2º escrito, § 1, G, VII, 356.

262

Newton e por isso nega a existência de quaisquer forças 354 ou poderes na matéria, admitindo apenas qualidades negativas, deficiências e imperfeições. 355 Considerando que Leibniz, a multiplíssimos títulos, faz descrições da matéria bastante similares, em que medida se pode distinguir as conceções de matéria e de inércia, assim como das forças ativas, entre os dois lados da contenda? Seja qual for a explicação newtoniana das forças ativas, estas agem na matéria e não a partir dela. As únicas forças dos corpos, as suas forças internas (vis insita), são as que preservam o estado do corpo. Todas as forças que modificam esse estado são externas.356 Naturalmente, uma força externa poderá provir da força interna de outro corpo, mas apenas porque algum corpo, na sequência causal, foi movido por uma causa não corporal, caso contrário nunca teria existido movimento. Para lá disso, há forças (gravítica, elétrica, magnética) que é difícil explicar de forma mecânica357 e mesmo o movimento mecânico, sem princípios ativos, acabaria por desaparecer. Koyré, a propósito do argumento apresentado no final da Regra III, quanto à variabilidade do peso, salienta a má qualidade do argumento, frisando que, se o efeito (o peso) varia, a causa (a atração gravítica) comum a todos os corpos, não.358 Mas isso apenas mostra que Newton nem admite a possibilidade de outro papel para a matéria que não o passivo de ser objeto de atração, nunca o de fonte da atração. 359 O problema é que uma conceção da matéria como causa da atração colidia com a sua conceção passiva de matéria, em que a única força inerente era a resistência à mudança de estado ou inércia da massa, apenas exercida, aliás, quando uma força impressa altera o estado e enquanto esse estado está ser alterado.360 Aliás, a própria gravitação era explicada pela conjunção entre essa resistência à mudança própria da matéria361 e uma força que tentava mudar o 354

Clarke, aliás, argumenta, na sequência da Query 31 de Newton, que o movimento existente seria impossível sem a orientação de uma consciência porque tenderia, igualmente, para todo o lado e, por isso, ficaria imóvel: Clarke, DA, III, 19: "A tendency to move some one determinate way cannot be essential to any particle of matter, but must arise from some external cause because there is nothing in the pretended necessary nature of any particle to determine its motion necessarily and essentially one way rather than another. And a tendency or conatus equally to move every way at once is either an absolute contradiction, or at least produce nothing in matter but an eternal rest of all and every one of its parts." Cf. DA, VIII, 45. 355 Clarke, DA, VIII, 41: "figure, divisibility, mobility, and other such like qualities of matter, have not real, proper, distinct, and positive powers, but only negative qualities, deficiencies, or imperfections." 356 Cohen, op. cit., ch. 3, sec. 3, PM, 55; ch. 4., sec. 7, PM, 96-7. 357 Há que reconhecer que, por vezes, talvez para responder à pressão dos argumentos leibnizianos, Newton voltava a tentar alguma explicação mais mecânica da gravidade, mas isso nunca dispensava o recurso a algum princípio ativo, como um eventual poder repulsivo e elástico do éter: cf. Newton, Optics, Queries 21-22, OO, IV, 225-226, exatamente surgidas, pela primeira vez, na 2ª ed. inglesa da Ótica: Isaac Newton, Opticks, 2nd. ed., London, W. and J. Innys, 1718, pp. 325-327. 358 Koyré, EN, "Newton et Descartes", Appendice C, 201: "ce n'était pas la gravitas comme poids (pondus) qui était en cause mais la gravitas comme force d'attraction, et dont le pondus n'était qu'un effet : Ainsi elle pouvait rester constante – et le faisait selon Newton lui-même – malgré tous les changements de poids." 359 Newton, Carta para Bentley de 25 de Fevereiro de 1693, OO, IV, 438: "It is inconceivable, that inanimate brute matter should, without the mediation of something else, which is not material, operate upon, and affect other matter without mutual contact". 360 Newton, Philosophiæ naturalis..., Def. III, OO, II 2: "Materiæ vis insita est potentia resistendi, quâ corpus unumquodque, quantum in se est, perseverat in statu suo vel quiescendi vel movendi uniformiter in directum. Hæc semper proportionalis est suo corpori, neque differt quicquam ab inertiâ massæ, nisi in modo concipiendi. Per inertiam materiæ fit, ut corpus omne de statu suo, vel quiescendi, vel movendi, difficulter deturbetur. Unde etiam vis insita nomine significantissimo vis inertiæ dici possit. Exercet verò corpus hanc vim solummodo in mutatione statûs sui per vim aliam, in se impressam, factà; estque exercitium illud sub diverso respectu & Resistentia & Impetus: Resistentia, quatenus corpus ad conservandum statum suum reluctatur vi impressæ; Impetus, quatenus corpus idem, vi resistentis obstaculi difficulter cedendo, conatur statum obstaculi illius mutare." 361 Como, aliás, sublinha com toda a razão Whiston, considerando que a força centrífuga que Newton

263

seu estado. Já se viu, aliás, em VI. 5., como Clarke entendia a causa da gravitação como estranha à matéria.362 Porém, o que impediria ambos de considerar a matéria ativa? Por que não atribuir um efeito tão constante à atividade da própria matéria, como Toland pretendia, de acordo com o que foi visto em V. 1., ou como a própria ciência newtoniana posterior acabou por concluir? Se o fizesse, porém, teria o universo reduzido a uma máquina que dispensava Deus, como o que criticava em Leibniz. Para manter a estreita dependência da ação e vontade arbitrária (segundo os seus desconhecidos desígnios) de Deus, a matéria tem de ser impotente e toda a verdadeira atividade tem que ser atribuída aos espíritos e almas e, no que se refere à própria ordenação cósmica, direta ou indiretamente, a Deus.363 Aliás, se este dualismo parece mais próximo de Descartes e, em geral, até está, não deixa de ser curiosa uma maior proximidade de Leibniz, no que toca à caracterização da matéria, em relação a ainda, por vezes, refere (cf. a recensão feita em Cohen, op. cit., ch. 3, sec. 10, PM, 82-3), não é mais que um resultado da inatividade da matéria: Whiston, "Lemma X" in John Harris, Lexicon Technicum: or, An Universal English Dictionary of Arts and Sciences, 4th. ed., D. Browne & others, 1725, Planets, Vol. I, p. 594: "since all Bodies have a Vis centripeta or Propension toward one another, 'tis impossible they should of themselves, in as proper a Manner, have a contrary Propension, or Vis centrifuga, an Endeavour of avoiding one another. The true meaning therefore of this Attempt or Endeavour to get farther off the Centre of Motion is only this, That all Bodies being purely passive, and so incapable of altering their Uniform Motion along those Straight Lines or Tangents, to their Curves, in which they are every Moment, do still tend onwards in the same Lines, and retain their Propension or Effort towards that Rectilinear Motion all the Time they are obliged to move in Curves; and consequently at every Points of their Course, endeavour to fly off by their Tangents. Now the Parts of the Tangent, to which this Endeavour is, being farther from the Centre than those of the Curves to which the Bodies are actually forced, an Attempt to go on in the Tangent may be, and is stiled an Attempt to go farther off, or recede from that Centre; tho' from no other Affection than that of Inactivity, or of persevering in a Rectilinear Motion: So that tho' the Vis centripeta, or Power of Gravitation, be an Active and Positive Force, continually renew'd and impress'd on Bodies; yet the Vis Centrifuga, or Conatus recedendi a centro motus, is not so, but the meer Consequence and Result of their Inactivity." Resta saber a que se deve a Vis centripeta, visto não se poder explicar pela inatividade ou passividade dos corpos, pois é uma força positiva e ativa. 362 Clarke, DA, X, 58; Clarke, LD, "A Second Defence of an Argument...", 183-4. 363 Cohen, op. cit., ch. 3, sec. 5, PM, 64, atribui a Fatio de Duillier e a David Gregory o testemunho de que Newton acabava por fundar a gravidade dessa forma. Jammer, pelo contrário, considera que Newton se opunha a qualquer interpretação metafísica ou teológica da gravitação. Cf. Max Jammer, Concepts of Force – A Study in the Foundation od Dynamics, Cambridge, Massachussets, Harvard University Press, 1957; Mineola, New York, Dover Publ., 1999 [CF], p. 141. Se assim era, não se percebe a sua estranha falta de reação a tanta astroteologia aparecida na altura e nos seus meios, incluindo as mais moderadas, mas claras, teses de Clarke. A oposição genérica (e não só na gravitação) à metafísica e à teologia de tipo metafísico, escolástico, nunca o impediu de atribuir a ordenação e movimentos planetários ao desígnio divino ou de recorrer à necessidade da ação concreta de Deus para resolver as irregularidades surgidas. A suspensão de juízo de Newton quanto à causa da gravidade incide mais sobre o meio utilizado por Deus para a efetivar e não tanto sobre a sua responsabilidade última. O próprio Newton cunhou, privadamente, a expressão "teologia astronómica" referindo-se à teologia gentia primitiva que corresponderia à prisca sapientia que, supostamente, ele apenas estaria a redescobrir: Westfall, NR, 353: "gentile theology had its origin in natural philosophy. Chapter 1 asserted the same thing: "Gentile theology was philosophical and dependent on the astronomy and physical science of the system of the world..." [Yahuda MS 16.2, f. 1.] He frequently called it "astronomical theology" and similar names." Cf. Jammer, CF, 153-4, onde Jammer atribui a Newton uma visão mais deísta que More, por reduzir a sua intervenção à criação e a possíveis raras regulações (são bem mais que possíveis...), sustentando a sua interpretação na passagem do sensorium estritamente sensória e ignorando a passagem motora, a única que poderia ser posta em correlação, ao menos possível, com a força: "In these words a strong emphasis on space as God's omnipresence is recognizable, but very little is said about force as an immediate divine operation." Cf. Newton, Optics, Query 31, OO, IV, 262, ver IV. 1, nota 27. Entre os rascunhos de adições para o Livro III dos Principia, Add MS 3965.6, f. 269, Newton afirmava de forma inequívoca, a propósito da gravitação, que a matéria é movida nesse e por esse infinito espírito, chamado pela tradição judaico-cristã Deus e pelos filósofos místicos Pan. Cf. Westfall, NR, 510-1.

264

Descartes, onde as características que se vieram a chamar inerciais eram atribuídas à conservação divina contínua e à sua imutabilidade.364 Em Newton, o princípio divino é o da dinâmica do universo, apesar de o termo ser rejeitado devido à sua origem leibniziana.365 Essa imutabilidade surge associada, direta ou indiretamente, ao princípio universal da gravitação. Além disso, visto a única força inerente aos corpos ser a inercial, parece ser relativamente evidente, pois nem sequer ainda se tinha encontrado nelas a constância verificada na gravidade, que as forças atrativas e repulsivas que Newton supunha entre os corpos, até às partículas elementares, faziam parte das forças ativas, direta ou indiretamente atribuíveis à ação divina.366 Há mesmo quem considere que esse é o sentido primitivo da noção newtoniana de força, extraída do princípio alquímico ativo orientado pela providência divina. 367 Dessa forma, as forças ativas agiriam, embora a nível físico, com uma natureza não material, entre as partículas e não a partir delas, sob a tutela, mais ou menos direta, da própria divindade.368 Por muito indeterminada que seja a noção newtoniana de força, está longe da complexidade leibniziana. Pior ainda, quando alguém percebe a disparidade das noções e tenta atribuir as noções da física posterior às noções leibnizianas, depara-se sempre com obstáculos de interpretação: as noções contemporâneas não encaixam perfeitamente nas leibnizianas porque o mapa conceptual é diverso, nascido e desenvolvido a partir das teorias newtonianas, mesmo quando essas noções tentam identificar as realidades que Leibniz tentava descrever. Além disso, existe uma considerável oscilação terminológica cuja análise excede claramente as pretensões desta dissertação. Porém, visto ser tão básica, deve ser referida a própria abrangência do termo força. A noção de força tanto é circunscrita ao âmbito da ação, não abrangendo assim a totalidade da unidade monádica,369 como se identifica com a própria substância, 364

Koyré, EN, "Newton et Descartes", 97, parágrafo referente à conceção da conservação dos estados. Cohen, op. cit., ch. 1, sec. 1, PM, 11. 366 Newton, PN, Præfatio ad lectorem, 2ª pág.: "Utinam cætera Natura phænomena ex principiis Mechanicis eodem argumentandi genere derivare liceret. Nam multa me movent ut nonnihil suspicer ea omnia ex viribus quibusdam pendere posse, quibus corporum particulæ per causas nondum cognitas vel in se mutuo impelluntur & secundum figuras regulares cohærent, vel ab invicem fugantur & recedunt: quibus viribus ignotis, Philosophi hactenus Naturam frustra tentarunt. Spero autem quod vel huic Philosophandi modo, vel veriori alicui, Principia hic posita lucem aliquam præbebunt." A este propósito, ver a longa lista de processos associados aos princípios ativos, entre as quais as forças gravíticas, magnéticas, elétricas, de fermentação e de coesão, de atração e de repulsão, em Newton, Optics, Query 31, OO, IV, 242-260. 367 Dobbs, NM, 520. 368 Dobbs, NM, 526-7: "For Newton, it was theologically unacceptable to designate the forces that generated activity in nature as intrinsic components of matter. Activity – the generation of activity – was the province of divinity; to attribute to "brute matter" the capacity for initiating motion would lead to atheism. Newton was always aware of the danger inherent in attributing activity to matter, and he always insisted that his forces acted only between particles. They were not really a part of matter itself, but were manifestations of God's activity in nature, a position that subsequent philosophers soon explicitly rejected. Given Newton's insistence upon the divine generation of activity, however, it hardly mattered whether his electrical "force", "spirit," or "medium" was corporeal or incorporeal. Where Newton said "active" in his discussions of forces, we really should understand that a divine spirit is there at work either directly or indirectly, and that divine spirits, despite the ambiguity of the broad seventeenth-century usage of the term "spirit," are unequivocally incorporeal. Since a divine spirit was necessarily at work behind any active force that generated motion, then if an active force proved to be incorporeal, its operations would be direct evidence of the operation of divinity in the universe. If it proved to be corporeal, then an incorporeal spirit must stand behind it." Mesmo que interviessem partículas na ação das forças ativas entre partículas, essas próprias partículas não teriam o poder das forças ativas, mas recebê-lo-iam, passivamente, de entidades não materiais. 369 Leibniz, Carta para Remond de 11 de Fevereiro de 1715, RD, II, 167: "comme les Monades sont sujettes aux passions, excepté la primitive [Deus], elles ne sont des forces pures, elles sont les fondements 365

265

incluindo agir e padecer.370 É possível que esta noção mais abrangente de força tenha sido substituída pela noção de potência, circunscrevendo-se, neste caso, a força à potência ativa tendencial, incluindo quer as forças ativas primitivas, quer as forças derivativas.371 Mas a terminologia não se fixou definitivamente, referindo-se, bem mais tarde, à matéria como força passiva primitiva.372 Esta falta de precisão talvez se deva à pouca distinção que é feita entre as forças passivas primitivas e as derivativas, sendo estas como que uma manifestação das primeiras na matéria segunda ou massa, já resultado da junção com as forças ativas primitivas.373 Certo é que Leibniz radica logo na matéria-prima o princípio da resistência à penetração e ao movimento (a inércia kepleriana). Quanto à inércia newtoniana do movimento, a conceção de Leibniz é bem diversa, não a atribuindo de todo à inércia ou passividade, mas à mais primitiva força motiva.374 O movimento surge sempre como imagem da ação, assim como a massa da substância, efeitos fenoménicos das causas reais.375 Por isso, Leibniz recusa que esse movimento uniforme em linha reta seja uma verdade necessária,376 visto envolver um non-seulement des actions, mais encore des résistances ou passibilitez, & leurs passions sont dans les perceptions confuses." 370 Leibniz, De ipsa natura..., § 14, G, IV, 508: "ipsam rerum substantiam in agendi patiendique vi consistere"; Leibniz, Specimen dynamicum..., Pars II, GM, VI, 247: "Ostendimus igitur in omni substantia vim agendi et, si creata sit, etiam patiendi inesse, extensionis notionem per se nom completam esse, sed relationem ad aliquid quod extenditur cujus diffusionem sive continuatam replicationem dicat, adeoque substantiam corporis quae agendi resistendique potentiam involvit et ubique nassa corporea existit praesupponi, hujusque diffusionem in extensione contineri." 371 Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XXI, § 1, G, V, 156: "la puissance active est prise quelques fois dans un sens plus parfait, lorsqu'outre la simple faculté, il y a de la tendance ; et c'est ainsi que je la prends dans mes considerations dynamiques. On pourroit luy affecter particulierement le mot de Force : et la Force seroit ou Entelechie ou Effort ; car l'Entelechie (quoyqu'Aristote la prenne si generalement qu'elle comprenne encor toute Action et tout Effort) me paroist plustost convenir aux Forces agissantes primitives, et celuy d' Effort aux derivatives." Na mesma época, na carta para De Volder de 20 de Junho de 1703, a matéria é designada potência passiva primitiva: Vide G, II, 252: "Materiam nempe primam seu potentiam passivam primitivam". 372 Leibniz, Carta para Remond de Julho de 1714, G, III, 622: "Dans cette Masse on appele matiere ou bien force passive ou resistance primitive ce qu'on considere dans les corps comme le passif et comme uniforme par tout ; mais la force active primitive est ce qu'on peut nommer Entelechie, et en cela la masse est variée." 373 Leibniz, Specimen dynamicum..., Pars I, GM, VI, 236-237: "Et quidem vis primitiva patiendi seu resistendi id ipsum constituit, quod materia prima, si recte interpreteris, in Scholis appellatur, qua scilicet fit, ut corpus a corpore non penetretur, sed eidem obstaculum faciat, et simul ignavia quadam, ut sic dicam, id est ad motum repugnatione sit praeditum, neque adeo nisi fracta nonnihil vi agentis impelli se patiatur. Unde postea vis derivativa patiendi varie in materia secunda sese ostendit." A outro título, já foi discutida a matéria-prima em IV. 6. 374 Leibniz, De ipsa natura..., § 14, G, IV, 511: "nam quam certum est, materiam per se motum non incipere, tam certum est (quod experimenta etiam ostendunt praeclara de motu impresso a motore translato) corpus per se conceptum semel impetum retinere constansque in levitate sua esse, sive in illa ipsa mutationis suae serie, quam semel est ingressum, perseverandi habere nisum. Quae utique activitates atque entelechiae, cum materiae primae sive molis, rei essentialiter passivae, modificationes esse non possint, [...] vel hinc judicare potest, debere in corporea substantia reperiri entelechiam primam, tandem πρῶτον δεκτικὸν activitatis, vim scilicet motricem primitivam, quae praeter extensionem (seu id quod est mere geometricum) et praeter molem (seu id quod est mere materiale) superaddita, semper quidem agit, sed tamen varie ex corporum concursibus per conatus impetusve modificatur." 375 Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XXI, § 72, G, V, 196: "Quant au mouvement ce n'est qu'un phenomene reel, parce que la matiere et la masse, a laquelle appartient le mouvement, n'est pas à proprement parler une Substance. Cependant il y a une image de l'action dans le mouvement, comme il y a une image de la Substance dans la masse ; et à cet egard on peut dire que le corps agit, quand il y a de la spontaneité dans son changement, et qu'il patit, quand il est poussé ou empeché par un autre". 376 Leibniz, op. cit., § 9, G, V, 161: "Cette verité conditionelle, savoir : supposé que la balle soit en

266

esforço377 que não está presente na mera passividade geométrica. Para dizer a verdade, a própria resistência não se deduz de uma mera conceção geométrica da matéria que seria absolutamente indiferente ao movimento ou ao repouso. 378 Leibniz admite a necessidade metafísica da preservação do estado, muito embora de forma limitada porque o que se move em linha curva não mantém, naturalmente, a sua curvatura, mas resistir à alteração do estado não está incluído nessa preservação e requer uma força.379 Regressando à tendência a manter a linha reta, também a essa luz se deve ver, para lá do tributo a Huygens, a sua interpretação da força centrífuga como força real ou esforço do corpo gerado pela circulação.380 A força centrífuga é, a cada momento, força morta,381 no sentido de um esforço (nisus) que não se repete na mesma direção e, por isso, se fica por uma solicitação (solicitatio), não se transformando em ímpeto (impetus) e, logo, em força viva, por repetição dos esforços elementares.382 Se a força viva é o resultado de sucessivos incrementos de força morta, como se pode compreender que seja a força viva que sirva de referência, de padrão, para compreender os fenómenos dinâmicos? Já foi visto que, para Leibniz, só se supera a relatividade do movimento quando este é

mouvement dans un horison uni sans empechement, elle continuera le même mouvement, peut passer pour necessaire en quelque manière, quoyque dans le fonds cette consequence ne soit pas entierement geometrique, n'estant que présomtive pour ainsi dire et fondée sur la sagesse de Dieu qui ne change pas son influence sans quelque raison, qu'on presume ne se point trouver presentement ; mais cette proposition absolue : la balle que voicy, est maintenant en mouvement dans ce plan, n'est qu'une verité contingente, et en ce sens la balle est un agent contingent non libre." Aliás, a distinção entre natural e essencial feita no final de II. 4 também utilizava o exemplo da persistência do movimento, considerada, ao contrário da força da inércia em Newton, como natural, mas não como essencial, visto poder ser alterada. Cf. Leibniz, Essais de Théodicée, 3ª parte, § 383, G, VI, 342. 377 Jammer, CF, 141: "This state of continual change of place involves some effort. As, however, the very principle of inertia excludes an external influence for the continuation of this motion with constant speed, this effort must be the outcome of an inherent force or activity. Inertia as the principle of the continuation of motion is thus a proof of the existence of an activity inherent in the moving body." 378 Leibniz, Specimen dynamicum..., Pars I, GM, VI, 240-1: "si solae mathematicae notiones, magnitudo, figura, locus, horumque mutatio, aut in ipso concursus momento mutandi conatus in corpore intelligerentur, nulla habita ratione notionum metaphysicarum, potentiae scilicet actricis in forma ei ignaviae, seu ad motum resistentiae in materia, atque adei si necesse esset concursus eventum sola compositione conatuum Geometrica, ut explicuimus, determinari: tunc sequi debere, ut incurrentis, etiam minimi, conatus toti excipienti, licet maximo, imprimatur, atque adeo maximum quiescens a quantulocunque incurrente sine ulla hujus retardatione abripiatur, quandoquidem tali materiae notione ulla ejus ad motum repugnatio, sed indifferentia potius continentur." 379 Leibniz, Carta para de Volder de 24 de Março/3 de Abril de 1699, G, II, 170: "Hanc deducis ex vi quam quaevis res habeat permanendi in statu suo, quae ab ipsa ejus natura non differat. Ita simplicem extensionis conceptum sufficere etiam ad hoc phaenomenon arbitraris. Sed axioma ipsum de conservando statu modificatione indiget, neque enim (ex. gr.) quod in linea curva movetur, curvedinem per se sed tantum directionem servat. Sed esto, sit in materia vis tuendi statum suum; ea certe vis ex sola extensione duci nullo modo potest. Fateor unumquodque manere in statu quo, donec ratio sit mutationis, quod est metaphysicae necessitatis principium; sed aliud est statum retinere donec sit quod mutet, quod etiam facit per se indifferens ad utrumque, aliud est multoque plus continet rem non esse indifferentem sed vim habere et velut inclinationem ad statum retinemdum atque adeo resistere mutanti." 380 Aiton, VT, 129: "For Leibniz, centrifugal force was not the reaction to centripetal force but a real force or endeavour of the moving body engedered by its circulation." 381 E, já agora, do ponto de vista de Leibniz, também a força centrípeta, surgindo o movimento concreto do equilíbrio entre as duas. Cf. Leibniz, Specimen dynamicum..., Pars I, GM, VI, 238: "vis mortuae quidem exemplum est ipsa vis centrifuga, itemque vis gravitatis seu centripeta, vis etiam qua Elastrum tensum se restituere incipit." 382 Leibniz, ibidem: "Hinc patet duplicem esse Nisum, nempe elementarem seu infinite parvum, quem et solicitationem appello, et formatum continuatione seu repetitione Nisuum elementarium, id est impetum ipsum [...]. Sed in percussione, quae nascitur a gravi jam aliquamdiu cadente, aut ab arcu se aliquamdiu restituente, aut a simili causa vis est viva, ex infinitis vis mortuae impressionibus continuatis nata."

267

considerado como efeito fenoménico da força.383 As forças primitivas não são, porém, observáveis empiricamente. Daí que a força viva expresse, por excelência, a nível fenoménico, a força absoluta, visto as impulsões e os choques não passarem da remoção de obstáculos (a resistência material) da expressão da força.384 Porém, a medida da força viva é obtida pela sua destruição no efeito violento, o desaceleramento da ascensão, 385 e não através do seu efeito formal, correspondente à inércia newtoniana do movimento, que persiste por natureza e é livre por não ter obstáculo,386 muito embora possa sempre ser convertido naquele.387 A resistência da gravidade permite aferir a proporcionalidade da causa inteira pelo efeito inteiro,388 donde resulta a fórmula f=mv2.389 Porém, o efeito futuro que permite estimar a força não é um dado real no presente, ao passo que essa força tem de já existir no presente, pelo que se tem que admitir na raiz dos corpos algo diverso da mera extensão e seu movimento.390 383

Leibniz, Carta para Arnauld de 14/1/1688, G, II, 133: "le mouvement en luy même separé de la force est quelque chose de relatif seulement, et on ne sçauroit determiner son sujet. Mais la force est quelque chose de reel et d'absolu, et son calcul estant different de celuy du mouvement, comme je demonstre clairement, il ne faut pas s'étonner que la nature garde la même quantité de la force et non pas la même quantité du mouvement." 384 Gueroult, LM, 202: "Puisque la nature de la force n'est pas celle d'une « faculté morte, incapable de produire une action sans être excitée du dehors », les impulsions externes et les chocs ne devront pas être compris comme des agents véritables, mais comme la simple suppression des obstacles s'opposant à la diffusion interne d'un pouvoir." 385 Leibniz, Essay de Dynamique..., GM, VI, 218: "la Force absolue doit estre estimée par l'effect violent qu'elle peut produire. J'appelle l'Effect violent qui consume la Force de l'agent, comme par exemple donner une telle vitesse à un corps donné, elever un tel corps à une telle hauteur, etc. Et on peut estimer commodement la force d'un corps pesant par le produit de la masse ou de la pesanteur multipliée par la hauteur à la quelle le corps pourroit monter en vertu de son mouvement." 386 Gueroult, LM, 128: "l'action formelle (essentielle), ainsi appelée parce qu'elle est naturelle à l'agent, découle comme de soi de la nature ou de l'état de la chose ; sa rapidité plus ou moins grande ne vient pas de ce que plus ou moins d'obstacles lui est opposé, mais de son élan propre, car elle est une action purement libre, nullement mélangée d'effet violent." 387 Leibniz, op. cit., GM, VI, 220: "si les corps convertissoient leur mouvemens horizontaux en mouvemens d'ascension, ils pourroient tousjours elever en somme le même poids à la même hauteur avant ou apres le choc, supposé que rien de la force n'ait esté absorbé dans le choc par les parties des corps ; lorsque ces corps ne sont pas parfaitement Elastiques, sans parler de ce qu'absorbe le milieu, la base et autres circonstances." 388 Leibniz, Essais de Théodicée, 3ª parte, § 346, G, VI, 320-1: "on peut rendre raison de ces Loix, en supposant que l'effect est tousjours egal en force à sa cause, ou, ce qui est la même chose, que la même force se conserve tousjours : mais cet axiome d'une Philosophie superieure ne sauroit être demontré geometriquement. On peut encor employer d'autres principes de pareille nature, par exemple ce principle, que l'action est tousjours egale à la reaction, lequel suppose dans les choses une repugnance au changement externe, et ne sauroit être tiré ny de l'etendue ny de l'impenetrabilité". Já em 87, defendia a equivalência entre causa inteira e efeito inteiro, considerando o princípio fundado metafisicamente: Leibniz, Carta para Bayle, G, II, 45-6: "au lieu du Principe Cartesien, on pourrait establir une autre Loy de la nature que je tiens la plus universelle et la plus inviolable, sçavoir qu'il y [a] toujours une parfaite Equation entre la cause pleine et l'effect entier. Elle ne dit seulement que les Effects sont proportionnels aux causes, mais de plus, que chaque effect entier est equivalent à sa cause. Et quoyque cet Axiome soit tout à fait Metaphysique, il ne laisse pas d'estre des plus utiles qu'on puisse employer en Physique, et il donne moyen de reduire les forces à un calcul de Geometrie." 389 Leibniz, Essay de Dynamique..., GM, VI, 218-219: "quand un corps pesant a fait du progres en descendant librement, et a conçu de l'impetuosité ou de la Force vive, alors les hauteurs aux quelles ce corps pourroit arriver, ne sont point proportionelles aux vitesses, mais comme les quarrés des vistesses. Et c'est pour cela qu'en cas de force vive les forces ne sont point comme les quantités de mouvement ou comme les produits des masses par les vistesses." Cf. a demonstração apresentada em Leibniz, Specimen dynamicum..., Pars I, GM, VI, 244-245. 390 Leibniz, Carta para Bayle, G, II, 48: "la force ne se doit pas estimer par la composition de la vistesse et de la grandeur, mais par l'effect futur. Cependant il semble que la force ou puissance est quelque chose de reel dès à present, et l'effect futur ne l'est pas. D'ou il s'ensuit, qu'il faudra admettre dans les corps

268

Quando, na sua edição da polémica, Clarke introduz a longa nota sobre a questão, mais não faz do que reproduzir a já longa discussão entre Leibniz e os cartesianos.391 Através das medidas pendulares, pretende aferir a exaustão da totalidade da força, pelo que não considera o tempo que leva a destruir a força, mas sim o espaço (a altura). 392 Clarke, seguindo as críticas cartesianas, considera isto um erro de palmatória: um corpo com velocidade dupla sobe a uma altura quádrupla, mas fá-lo no dobro do tempo.393 Leibniz já havia rejeitado no passado esta restrição, reduzindo-a ao absurdo por levar a que se considerassem diferentes as forças, mesmo que dois objetos quelque chose de different de la grandeur et de la vistesse, à moins qu'on veuille refuser aux corps toute la puissance d'agir. Je croy d'ailleurs que nous ne concevons pas encor assez parfaitement la matiere et l'etendue même." 391 Gueroult, LM, ver, sobretudo, as pp. 111-117. 392 Leibniz, De causa gravitatis..., GM, VI, 203: "Fuere etiam quibus errandi causa praebita est, quod putarunt in potentia aestimanda non solius effectus, qui producitur, hoc loco habendam rationem, sed et temporis, quo producitur; itaque non debere potentiam aestimari sola ratione composita ponderis et alitudinis, ad quam pondus per potentiam attolli potest. Et sane verum est, temporis rationem quoque habendam in illis effectibus producendis, ubi eadem potentia longiore tempore concesso majorem effectum producere potest, uti fit cum globus datam habens celeritatem, potentiam habet pondus suum transferendi in plano horizontali per datum spatium tempore dato; sed hoc in effectibus potentiisque, de quibus hic agitur, secus est, ubi vis agendo consumitur, et quidquid vi praeditum est (ut arcus tensus ad certum gradum, corpus habens certam velocitatem) si secundum unum operandi modum totam suam actionem impendat in datum pondus elevandum ad certam altitudinem, nulla alia machinatione vel artificio idem pondus faciet altius assurgere, quantocunque tempore concesso. Unde frustanea fit temporis consideratio." 393 Clarke, CP, 329-31: "this Impetus, or relative Impulsive Active Force of Bodies in Motion, is evidently both in Reason and Experience, always proportional to the Quantity of Motion. Therefore, according to Mr. Leibnitz's Principles, this impulsive active Force being always the same in Quantity, the Quantity of Motion also must of necessity be always the same in the Universe. Yet elsewhere, he inconsistently acknowledges, [§ 99,] that the Quantity of Motion is Not always the same: And in the Acta Eruditorum, ad Ann. 1686, pag. 161, he endeavours to Prove that the Quantity of Motion in the Universe is Not always the same, from that very Argument, and from that single Argument only, (of the Quantity of Impulsive Force being always the same,) which, if it was true, would necessarily infer on the contrary, that the Quantity of Motion could not but be always the same. The Reason of his Inconsistency in this Matter, was his computing, by a wonderfully unphilosophical Error, the Quantity of Impulsive Force in an Ascending Body, from the Quantity of its Matter and of the Space described by it in Ascending, without considering the Time of its ascending. [...] "I suppose the same Force is requisite to raise a Body A of one Pound Weight, to the Height of four Yards; which will raise the Body B of four Pounds Weight, to the Height of One Yard. This is Granted both by the Cartesians, and other Philosophers and Mathematicians of our Times. And from hence it follows, that the Body A, by falling from the Height of four Yards, acquires exactly the same Force, as the Body B by falling from the Height of One Yard". But in this Supposition, Mr. Leibnitz is greatly mistaken. Neither the Cartesians, nor any other Philosophers or Mathematicians ever grant this, but in such Cases only, where the Times of Ascent or Descent are equal." E examina, em seguida, os casos pendulares. A nota é enorme e é uma grande infelicidade que Leibniz não tenha podido responder--lhe, contrapondo de forma pormenorizada a sua física à newtoniana. Porém, a objeção fundamental é exatamente a mesma que os cartesianos tinham exposto durante três décadas e que havia sido, inicialmente, exposta pelo Abade Catelan: "Courte Remarque de M. l'Abbé C. où l'on montre à M. G. G. L. le paralogisme contenu dans objection précédente", G, III, 42: "dans l'exemple de M. Leibnits le corps d'une livre monteroit à la hauteur de 4 aunes dans un tems comme 2, et le corps de 4 livres monteroit à la hauteur d'une dans un tems comme 1. Puis donc que les tems sont inégaux, il n'est pas étrange qu'il trouve inégales dans cette chûte les quantités du mouvement, quoiqu'elles eussent été trouvées égales dans une chûte que l'egalité de tems rendoit tout-à-fait différente de celle-cy. Supposons présentement que ces deux corps ne se meuvent qu'en même tems, c'est-à-dire, qu'il sont suspendus à une même balance et à des distances reciproques à leur grosseur, nous trouverons égales les quantités opposées de leur mouvemens, ou les forces de leurs poids, soit que nous multipliions leurs masses par leurs distances, soit que nous le fassions par leurs vitesses. La chose arrive autrement lorsque les tems sont inégaux." Desta forma, a resposta leibniziana à objeção de Clarke pode-se encontrar também no passado.

269

tivessem a mesma massa e a mesma velocidade, apenas por um ter adquirido a força numa descida muito gradual e o outro num choque súbito. Ao contrário, Leibniz considerava que a força correspondia unicamente ao estado presente do corpo.394 Do ponto de vista cartesiano (e newtoniano), se a força fosse independente do tempo, uma tartaruga teria a mesma força que uma lebre, ou até mesmo toda a força seria infinita.395 Porém, no efeito formal que constitui o movimento horizontal, exatamente por não haver destruição da força, não é possível, do ponto de vista leibniziano, medi-la, sendo necessário medir o tempo, naquilo que Leibniz designa por ação motriz, onde, aliás, julga, de novo, encontrar o mesmo absoluto, mv2. 396 Em ambos os casos, porém, Leibniz defende a conservação que se expressa, na polémica, sob a forma de conservação das forças ativas. A tendência geral é a de considerar que, na discussão com os cartesianos, ocorre uma discussão vã, na medida em que Leibniz procura medir a força pelo que se viria a chamar trabalho e os cartesianos pela impulsão.397 Por sua vez, na discussão com os newtonianos, a noção newtoniana de força corresponderia, quanto muito, à de força morta, correspondendo a força viva leibniziana ao que se viria a chamar energia, cingindo-se, nos exemplos utilizados, à energia cinética. 398 De facto, a dificuldade 394

Leibniz, Carta para Bayle, G, III, 43-4: "le temps ne sert de rien à cette estime. Voyant un corps d'une grandeur donnée aller avec une vistesse donnée, ne pourrat-on point estimer sa force sans sçavoir en quel temps et par quels detours ou délais il a peutestre acquis cette vistesse qu'il a ? Il me semble qu'on peut juger icy sur l'estat present sans sçavoir le passé. Quand il y a deux corps parfaitement égaux et semblables, et qui ont une même vistesse, mais acquise dans l'un par un choc subit, dans l'autre par quelque descente d'une durée notable, dirat-on pour cela que leur forces sont differentes ? Ce seroit comme si on disoit qu'un homme est plus riche, à qui l'argent a cousté plus de temps à gagner." Mais adiante, ibidem, G, III, 45: "mon objection est formée expres de telle sorte, qu'il n'importe point comment la force a esté acquise, dont je fais abstraction pour ne pas entrer en dispute sur aucune hypothese. Je prends la force et la vistesse acquise telle qu'elle est, sans me mettre en peine maintenant si elle a esté donnée tout d'un coup par un choc subit d'un autre corps ou peu à peu par une acceleration continuelle de la pesanteur ou d'un ressort. Il me suffit que le corps a maintenant cette force ou bien cette vistesse. Et là dessus je fais voir que sa force ne doit pas estre estimée par la vistesse ou quantité de mouvement, et que ce corps peut donner sa force à un autre sans luy donner sa quantité de mouvement, et qu'ainsi ce transport se faisant, il se peut et même se doit faire que la quantité de mouvement soit diminuée ou augmentée dans les corps, pendant que la même force demeure." Já antes tinha defendido que se um corpo de 4 libras com 1 de velocidade transferisse toda a força para um corpo de 1 libra, este ficaria com 2 de velocidade e não com 4 como o que seria defendido pelos cartesianos. 395 Gueroult, LM, 120-1: "il lui [De Lalande, Astronomie, art. 3505] semble plus naturel de considérer la force dans un temps donné ; sans cela, on dirait qu'une tortue a autant de force à la course qu'un lièvre, car, avec le temps, elle parcourrait le même chemin ; un enfant aurait autant de force que celui qui porte un sac de bled de 240 livres, puisqu'avec le temps et par parties, l'enfant porterait tout le bled. D'ailleurs, le mouvement se continue à l'infini, ainsi toute force serait infinie si l'on n'avait pas égard au temps". 396 Leibniz, Essay de Dynamique..., GM, VI, 220-6. Perto do final da dedução (225-6), no caso dos tempos serem iguais, volta a concluir: "l'Action est comme le produit de la masse par le quarré de l'espace de la translation (on entend une translation horizontale dans les corps pesans) ou comme le produit le la masse par le quarré de la vistesse." Pretende provar, em seguida, que a soma desses produtos das massas pelos quadrados das velocidades se conserva no concurso dos corpos, ou seja, que a ação motriz se conserva. 397 Gueroult, LM, 117: "les deux points de vue, temps et espace sont légitimes, mais ils correspondent à deux plans entièrement diffèrents. Par lá, s'explique la vanité de la controverse : « Les uns voulant mesurer la force des corps par le travail (intégrale du vecteur force le long d'un parcours), les autres par l'impulsion (intégrale du vecteur par rapport au temps), les adversaires se trouvaient sur deux plans différents et ne pouvaient se rencontrer. En effet, la physique moderne prouve qu'à une impulsion déterminée ne correspond pas une quantité de travail déterminée. » Bouasse, Cours de mécanique rationelle et expérimentale, p. 445." 398 Jammer, CF, 141: "Leibniz's concept of force is what we call today kinetic energy, but conceived as inherent in matter and representing the innermost nature of matter"; ibidem, 166: "What Leibniz really determined was, of course, the efficacy of the force as manifest in the moving body. One half of the vis

270

conceptual, em termos posteriores, é maior porque era habitual na época a confusão entre força e energia, entre trabalho e ação, e entre potência e força, para se conseguir uma definição real da ação. 399 Além disso, é possível que, até por causa do seu fundamento metafísico, Leibniz estivesse preso ao estado animista que Jammer faz corresponder à noção pré-científica de força.400 Por isso, mais do que ficar agarrado a pormenores, para efeitos desta dissertação, importa perceber qual o sentido global das conceções de ambos os modelos. Partindo ambos da rejeição da conservação cartesiana do movimento, da qual Leibniz tanto se ufana de ter convencido Malebranche, 401 Newton, ao manter a correlação entre força e movimento, nunca admitiu qualquer princípio de conservação absoluto, nomeadamente de algo análogo à energia. Ora, Leibniz julga encontrar no mv2 a sustentação da conservação da força, visto só o positivo se expressar (uma velocidade multiplicada por si própria é sempre positiva).402 Parecendo tratar-se de uma versão rudimentar do princípio de conservação de energia, há também alguma intuição das transformações da energia. Na sua conceção de que a força viva resulta da remoção de obstáculos, parece haver algo similar à noção de energia potencial. Por outro lado, a dissipação da energia cinética nos movimentos ínfimos conspirantes, aliás responsáveis pela explicação, em Leibniz, da própria coesão dos corpos, não pareceria especialmente associada aos fenómenos térmicos, como o que viva, that is, ½mv2, was later called by Jean Baptista Charles Joseph Bélanger "the living power" and is known today as "kinetic energy". Consequently, it is our concept of energy that was referred to by Leibniz as "force"." 399 Gueroult, LM, 143: "la plupart des physiciens du XVIIIe siècle, ont consideré que cette confusion était nécessaire dès que l'on voulait aboutir non plus seulement à une definition nominale, mais à une définition réelle de l'action, et fournir une démonstration du concept." 400 Jammer, CF, 17: "The idea of force, in the prescientific stage, was formed most probably by the consciousness of our effort, spent in voluntary actions, as in the immediate experience of moving our limbs, or by the consciousness of the feeling of a resistance to be overcome in lifting a heavy object from the ground and carrying it from one place to another. Clearly, "force", "strength", "effort", "power", and "work" were synonymous, as they still are today in ordinary unsophisticated language. The injection of our personal experience into the external environment, characteristic of the animistic stage in the intellectual growth of mankind, led to a vast generalization of the concept of force: trees, rivers, clouds, and stones were endowed with force and were regarded as centers of power. For what is active was thought to be alive, and an object, animal or material, being alive, was conceived as having it the same sort of force that man recognized in himself." Claro que se poderá perguntar se Newton e não só Leibniz, no meio das suas indecisões e embora rejeitando toda a atividade à matéria, embora toda fosse objeto dos princípios ativos, não albergaria, mais ou menos secretamente, uma análoga noção de força. 401 Seguem-se apenas dois entre tantos exemplos que poderiam ser dados: Leibniz, De ipsa natura..., § 4, G, IV, 505-6: "Cujus inter alia indicium insigne praebet fundamentum naturae legum, non petendum ex eo, ut conservetur eadem motus quantitas, uti vulgo visum erat, sed potius ex eo, quod necesse est servari eandem quantitatem potentiae actricis, imo (quod pulcherrima ratione evenire deprehendi) etiam eandem quantitatem actionis motricis, cujus alia longe aestimatio est ab illa, quam Cartesiani concipiunt sub quantitate motus. Eaque de re cum duo Mathematici [Malebranche e Johann Bernoulli] ingenio facile inter primos mecum partim per literas partim publice contulissent, alter penitus in castra mea transiit, alter eo devenit, ut objectiones suas omnes post multam et accuratam ventilationem desereret, et ad meam quandam demonstrationem nondum sibi responsionem suppetere candide fateretur."; Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XXI, § 4, G, V, 157: "cette opinion erronée, que les Cartésiens ont mise en vogue, comme si les corps perdoient autant le mouvement qu'ils en donnent, qui est detruite aujourd'huy par les experiences et par les raisons, et abandonnée même par l'auteur illustre de la Recherche de la verité, qui a fait imprimer un petit discours tout exprès pour la retracter, ne laisse pas de donner encor occasion aux habiles gens de se meprendre en bastissant des raisonnements sur un fondement si ruineux." 402 Leibniz, Essay de Dynamique..., GM, VI, 227-8: Referindo-se à conservação da força total absoluta: "toutes les variations des signes qui ne peuvent venir que de la diverse directions des vistesses y, x, z, y, cessent, par ce que toutes les lettres qui expriment ces vistesses montent icy au quarré. Or -y et +y ont le même quarré +yy, de sorte que toutes ces differentes directions d'y font plus rien. Et c'est aussi pour cela que cette Equation donne quelque chose d'absolu, independant des vistesses respectives, ou dès progrès d'un certain costé."

271

se pensa, atualmente, que ocorre nas colisões inelásticas403 (isto sem contar, ainda, que, para Leibniz, não existem corpos que sejam completamente inelásticos), mas a verdade é que Leibniz associa o frio a uma privação de força.404 Estas transformações são tornadas possíveis pelo princípio da continuidade que impossibilita o repouso absoluto, 405 a extrema dureza dos átomos, sendo a infinita divisibilidade a condição de possibilidade da universal elasticidade406 que, por sua vez, surge tão associada à força ativa quanto a massa à passiva. É por isso que a elasticidade 403

Jammer, CF, 168: "It is obvious that Leibniz's explanation is a precursor of the modern principle of transformation of energy which contends that in an inelastic collision the decrease of kinetic energy is accounted for by the quantity of heat caused by the impact, that is, ultimately by the increase of molecular energy." 404 A totalidade do parágrafo é bem mais interessante, mas, para os atuais objetivos, chega este segmento, Leibniz, Essais de Théodicée, 2ª parte, § 153, p. 186, G, VI, 201: "le froid est une certaine privation de la force, il ne vient que de la diminution d'un mouvement qui ecarte les particules des fluides." Da mesma forma, em Leibniz, Carta para Des Bosses de 20 de Setembro de 1706, G, II, 317, é considerado um impedimento: "Per impedimenta autem prodeunt actiones, quae sine ipsis non prodirent, ut frigoris exemplo patet." Mas a redução do calor a movimento tinha-se tornado uma conceção relativamente comum na filosofia mecanicista. Cf. Marie Boas, "The Establishment of the Mechanical Philosophy" in Osiris, The University of Chicago Press, 1952, Vol. 10, pp. 412-541 [EM], e. g., o próprio Descartes, de forma genérica, p. 459, Hooke, p. 455, e, naturalmente, Boyle, pp. 470-471. Leibniz também o reduz a um mecanismo oculto, proveniente das forças ativas, em Leibniz, Carta para Des Bosses de 19 de Agosto de 1715, G, II, 506. O próprio Newton o afirmava, e. g., Newton, Optics, Query 5, OO, IV, 216: "putting their parts into a vibrating motion, wherein heat consists". 405 Leibniz, Nouveaux essais..., Préface, G, V, 49: "Rien ne se fait tout d'un coup, et c'est une de mes grandes maximes et des plus verifiées que la nature ne fait jamais des sauts : ce que j'appellois la Loy de la Continuité, lorsque j'en parlois dans les premières Nouvelles de la Republique des lettres, et l'usage de cette Loy est tres considerable dans la physique : elle porte qu'on passe tousjours du petit au grand et a rebours par le mediocre, dans les degrés comme dans les parties, et que jamais un mouvement ne naist immediatement du repos ny s'y reduit que par un mouvement plus petit, comme on n'acheve jamais de parcourir aucune ligne ou longueur avant que d'avoir achevé une ligne plus petite, quoyque jusqu'icy ceux qui ont donné les loix du mouvement n'ayent point observé cette loy, croyant qu'un corps peut recevoir en un moment un mouvement contraire au precedent"; L. II, Ch. I, § 2, G, V, 100: "Il n'y a point de corps dont les parties soyent en repos"; Leibniz, Essais de Théodicée, 3ª parte, § 348, G, VI, 321: "il s'y observe cette belle loy de la continuité, que j'ay peutêtre mis le premier en avant, et qui est une espece de pierre de touche dont les regles de Monsieur Descartes, du P. Fabry, du P. Pardies, du P. de Mallebranche et d'autres, ne sauroient soutenir l'epreuve : comme j'ay fait voir en partie autres fois dans les Nouvelles de la Republique des Lettres de Monsieur Bayle. En vertu de cette loy, il faut qu'on puisse considerer le repos comme un mouvement evanouissant apres avoir eté continuellement diminué"; Leibniz, Carta de Leibniz para Des Maizeaux de 8 de Julho de 1711, RD, II, 479: "il [Bayle] croyoit que je concevois la force que je donne aux Corps, comme quelque chose qui y pouvoit être renfermé, lorsqu'ils sont même en repos. Mais je lui marquai, que chez moi la force est tousjours accompagnée d'un mouvement effectif ; à peu près comme ce qui se passe dans l'Ame, est toujours accompagné de ce qui y répond dans le Corps. Aussi un état momentanée d'un Corps qui est en mouvement, ne pouvant point contenir du mouvement, qui demande du tems, ne laisse pas de renfermer de la force."; Leibniz, Specimen dynamicum..., Pars II, GM, VI, 249: "Huic Legi Continuitatis a mutatione saltum excludentis etiam illud consentaneum est, ut casus quietis haberi possit pro speciali casu motus, scilicet pro motu evanescente seu minimo, et ut casus aequalitatis haberi possit pro casu inaequalitatis evanescentis." 406 Veja-se como o princípio da continuidade, a impossibilidade de repouso e a elasticidade se articulam na explicação das substâncias compostas: Leibniz, Carta para Des Bosses de 19 de Agosto de 1715, G, II, 506: "Et cum corpus incurrit in aliud, impellit ipsum determinando vim elasticam inexistentem a motu intestino ortam, quemadmodum visible est, si duae vesicae inflatae aequales aequali celeritate concurrant, ubi per concursum rediguntur ad quietem, et deinde per insitam vim elaticam resumunt motum. Idem fit in omnibus concursibus, neque enim natura unquam agit per saltum, seu nullum corpus momento transit a quiete ad motum, vel a motu majore ad minorem, aut contra, sed transit per intermedia, et hoc fit ope vis Elasticae seu motus insiti a fluido permeante." Numa Carta para Burnett, parecendo apoiar um pouco Newton, Leibniz afirma que a força elástica é essencial à matéria (presume-se que segunda), Leibniz, Carta para Th. Burnett (talvez de 1699), G, III, 260: "la force elastique est essentielle à la matiere et se trouve par tout."

272

surge como a versão física da harmonia pré-estabelecida, na medida em que se articula com a resistência da matéria, impossibilitando a dureza ou a fluidez perfeita, de forma a sustentar, contrariamente a Newton, um mesmo princípio de conservação da energia.407 Também a nível fenoménico, é necessário estabelecer a possibilidade da conservação da força absoluta, até porque esta consiste no conjunto das forças derivadas, vivas e mortas.408 A importância da elasticidade pode-se perceber tendo em conta que a busca de Huyghens de um princípio de conservação de energia foi bloqueada exatamente por acreditar que os átomos seriam inelásticos e ele não poder evitar a conclusão de que, nos impactos inelásticos, havia perda de movimento.409 Ao afirmar a universal e variável elasticidade dos corpos, Leibniz cria condições para poder afirmar a conservação das forças ativas no mundo, na medida em que permite a aparente transferência integral de força nos diversos impactos. Mas como pode uma teoria metafísica fundada na incomunicabilidade das substâncias onde radicam as forças sustentar uma conservação da quantidade de força no mundo, através do ganho e perda de força entre todos os corpos no mundo? Naturalmente, através de outra teoria metafísica, a da harmonia pré-estabelecida. A elasticidade é o simples efeito fenoménico do jogo das espontaneidades internas, 410 sendo todos os fenómenos causados pelas substâncias, inclusive aquilo que parecem ser paixões violentas.411 É verdade que a noção de vínculo 407

Gueroult, LM, 167: "Un second pas s'accomplit en faisant de la force active et de la masse deux expressions différentes d'un seul et même principe d'énergie. Par là, Leibniz s'oppose à Newton qui concevait la matière inerte et la force active comme deux principes originairement hétérogènes et distincts, la matière devant par son inerties amener progressivement le repos de l'univers, si l'activité n'intervenait pas pour redonner du dehors à la matière une nouvelle impulsion." 408 Gueroult, LM, 108: "il s'agit ici non point des phénomènes en général, mais seulement des phénomènes respectifs. Or la vis absoluta en question, causa et κριτήριον du mouvement réel, n'est nullement la force au sens métaphysique du terme, mais comme le montre le titre de la I er section de la IIe partie de la Dynamique, la vis viva ou mortua, dont il est traité em physique. Ainsi la force « absolue » est force phénoménale, c'est-à-dire celle-lá même dont s'occupent Huyghens et Newton, quoique autrement interprétée. Tout en appartenant aux phénomènes, elle peut être réelle et absolue, parce qu'elle n'appartient pas à la classe phaenomenorum respectivorum." Quando está a falar da força motriz total não está falar da força primitiva da enteléquia que, porém, expressa essa força, visto aquela ser derivada da primitiva: Leibniz, Carta para de Volder de 20 de Junho de 1703, G, II, 251. Ver nota 349. Cf. Leibniz, Essais de Théodicée, 3ª parte, §§ 345-346, G, VI, 319-20, parcialmente transcrito em II. 4, nota 146. 409 Jammer, CF, 167: "his quest for a quantity invariant in impact phenomena together with his statement about the impossibility of a perpetuum mobile leaves no doubt that what he had in mind was a principle of conservation of energy. His search for such a principle was complicated by the fact that he believed atoms to be inelastic ; on the other hand, he was inable to account for the loss of motion (or energy) in inelastic impacts." 410 Gueroult, LM, 151: "Toutes les variations de l'énergie d'un corps doivent être interprétées comme le déplacement d'une limite qui avance ou recule suivant que la manifestation da sa spontaneité interne est rendue plus ou moins compossible avec le reste de l'univers, et cette variation peut descendre jusqu'à zéro. Lorsque la force consumée par un travail se trouve dans le même corps immédiatement remplacée par une force nouvelle équivalente, différente, « venue d'ailleurs », cela signifie que le jeu de toutes les spontanéités internes (élasticités) s'efforçant vers l'existence (c'est-à-dire vers la détente), jeu qui contribuait à ramener vers zéro la manifestation extérieure de la spontanéité de ce corps (c'est-à-dire à ramener vers la tension maxima son elasticité), a dans l'instant immédiatement suivant reporté plus loin la limite, c'est-à-dire a fait surgir une expansion nouvelle de cette spontanéité, expansion égale à celle que la consomption avait réduite et supprimée. La force nouvelle de remplacement apparaît donc alors comme identique à celle qui a été consumée, et l'expression « venue d'ailleurs » n'a plus de sens."; ibidem, 176: "Sans doute, elle [a unidade substancial] révèle tout autant l'interaction (des forces dérivatives, bien entendu, et non des primitives) que la spontanéité, mais l'interaction unie à la spontanéité n'implique nullement quelque chose de plus qu'une simple loi de la coordination des spontanéités internes, c'est-à-dire l'harmonie préétablie." 411 Leibniz, Carta para Foucher, G, I, 391: "quoyqu'une substance se puisse appeler avec raison cause physique et souvent morale de ce qui se passe dans une autre substance, neantmoins parlant dans la rigueur metaphysique, chaque substance (conjointement avec le concours de Dieu) est la cause réelle

273

substancial permite pensar a origem das forças derivativas no próprio corpo orgânico, mas apenas enquanto esse vínculo espelha ou acompanha a mónada dominante, segundo, exatamente, a mesma harmonia pré-estabelecida. 412 A introdução de uma instância intermédia poderia ter contribuído (e não se pode dizer que tenha contribuído, dado o caráter apenas esboçado e incerto da teoria) para explicar como os fenómenos são bem fundados, mas não alterava a fundamentação monádica do sistema. Assim, tudo acaba por ser reconduzido à condição de possibilidade da liberdade, a espontaneidade, muito embora, a não ser no caso dos espíritos, sem a consciência racional que constituiria a sua condição suficiente. E, porém, visto cada movimento que expressa, no corpo, a perceção da alma estar tão completamente coordenado com tudo o resto que não pode haver o mais pequeno desvio à quantidade de força no universo, corpo e alma têm de estar completamente determinados, desde a origem, por Deus, pelo que a consciência nada mais é do que um meio para se efetivar a cadeia causal, não muito diferente, ao menos analogicamente, da forma como o movimento é composto pelas várias tendências que concorrem no móbil.413 Inversamente, se, do ponto de vista físico, se utiliza a compreensão racional e abstrata, ou seja, geométrica, para compreender o movimento e este surge como o resultado do desvio da sua natural linha reta por impactos sucessivos, do ponto de vista da causa substancial, é o movimento curvo que surge como sua expressão concreta.414 Mas a completa coordenação entre a abstração geométrica e a determinação substancial mostra, mais uma vez, a total inevitabilidade, em Leibniz, de tudo aquilo que acontece. 9. Conceções de religião natural Esta temática já foi abordada em VI. 2, mas de forma superficial e subordinada a outro tema. Foi visto logo em I. 1. que Leibniz acusava a Inglaterra de permitir que a religião natural se enfraquecesse extremamente.415 Parece adequado que se encerre este percurso explicitando o tema que o iniciou. É insólito que, ao que parece, ninguém tenha achado a acusação estranha porque, numa acusação religiosa, pareceria mais natural incidir-se sobre o não cumprimento ou respeito dos dogmas, ou seja, dos artigos de fé da religião revelada. 416 É possível que Leibniz estivesse também a pensar na religião natural tal como era pensada pelos latitudinários ingleses, sobretudo desde a immediate de ce qui se passe dans elle, de sorte qu'absolument parlant, il n'y a rien de violent. Et même on peut dire qu'un corps n'est jamais poussé que par la force qui est en luy même. Ce qui est encor confirmé par les experiences car c'est par la force de son ressort qu'il s'eloigne d'un autre corps en se restituant après la compression." 412 Ver a secção anterior. 413 Leibniz, Essais de Théodicée, 1ª parte, § 22, G, VI, 116. Ver VI. 1 nota 38. 414 Leibniz, Carta para De Volder de 20 de Junho de 1703, G, II, 252-3: "At in phaenomenis sive aggregatis mutatio omnis nova a concursu derivatur secundum praescriptas partim ex metaphysica partim ex Geometria Leges, abstractionibus enim opus est ut res scientifice explicentur. Hinc in massa singulas partes ut incompletas spectamus, suumque quoddam conferentes, consursu autem omnium cuncta compleri; corpusque ideo quodlibet per se intelligitur tendere in recta tangente, etsi impressionibus aliorum continuatis motus in ipsa curva consequatur. Sed in ipsa substantia quae per se completa est cunctaque involvit, ipsius lineae curvae constructio continetur exprimiturque, quia et futurum omne in praesenti substantiae statu praedeterminatur. Tantum nempe interest inter substantiam et massam, quantum inter res completas, ut sunt in se, et res incompletas, ut a nobis abstratione accipiuntur, quo definire liceat in phaenomenis quid cuique parti massae sit ascribendum, cunctaque distingui et rationibus explicari possint, quae res necessario abstractiones postulat." 415 Leibniz, Streitschriften..., 1º escrito, §§ 1-3, G, VII, 352. 416 Talvez por pensarem, como Brewster, que daí se deduziria a subversão da religião revelada. Cf. Brewster, ML, II, 284: "when he represented the Newtonian philosophy and the opinions of Locke as subversive of natural, and inferentially of revealed religion, he yielded to an ignoble impulse, and did violence to the dignity of philosophy."

274

Restauração,417 correspondente ao protestantismo abrangente, por eles, defendido.418 O próprio Clarke não é alheio a esta fusão entre religião natural e revelada, até por a Igreja Anglicana do seu tempo ser dominada por bispos que, pelo menos, foram latitudinários.419 Assim, é possível que Leibniz estivesse a tentar abrir uma brecha na própria aliança entre latitudinários e newtonianos ou a pretender denunciar alguma traição ao latitudinarismo original que incluía filósofos como More, Cudworth, Barrow ou Boyle. De qualquer forma, Clarke não só não negou a acusação, como a confirmou e concordou com ela, apenas a estendendo também a outros países. Afirmou mesmo que há pessoas que negam a religião natural (repare-se, não a revelada, não uma confissão) ou que a corrompem extremamente (idem), atribuindo o facto ao desregulamento dos costumes e à filosofia materialista. 420 A discussão desvia-se em seguida para o materialismo que Clarke associará à fatalidade e necessidade, correlacionando as explicações mecanicistas com a ausência de liberdade, e que Leibniz associará aos princípios matemáticos da filosofia, correlacionando estes com o atomismo antigo. Mesmo esta específica discussão não terá grande continuidade, visto a última referência aos materialistas surgir na segunda réplica de Clarke.421 Uma única outra menção parece estar relacionada com a noção de religião natural, a referência leibniziana à teologia natural considerada demonstrada através do princípio da razão suficiente.422 De facto, a teologia natural parece ser tomada, na passagem, como estreitamente associada à metafísica, senão sinónimo da mesma, o que será, porventura, significativo para esta análise. Embora não se utilize mais, explicitamente, o conceito,423 o que poderia levar a pensar que teria apenas servido de tiro de partida para temas bem mais interessantes e importantes para os próprios autores, não deixa de ser curioso que, na dedicatória à princesa da sua edição da polémica, já após a polémica, em balanço da mesma, Clarke centre a sua atenção sobre a temática da religião natural e outras questões religiosas que considerava associadas. Poder-se-á dar o caso de bem mais de meio mundo, na própria época e muito mais ainda depois, estar a pensar que se estava a tratar, na polémica, predominantemente de filosofia natural, quando afinal o que estava em causa era a religião? Nessa dedicatória, Clarke enuncia quase uma definição de religião natural e estabelece a sua relação com a revelada. As "Grandes e Fundamentais Verdades da Religião Natural" foram "universalmente implantadas, em algum grau," pela "Sabedoria da Providência", "mesmo nas Mentes das Pessoas com as Menores Capacidades,"

417

Margaret C. Jacob, The Newtonians and the English Revolution, Ithaca, Cornell University Press, 1976 [ER], p. 30: "the Anglican moderates of the Restoration nonetheless fashioned their own Protestantism, or natural religion as they liked to call it." 418 Jacob, ER, 49: "The latitudinarians devised a natural religion comprehensive enough to override doctrinal differences and so broad in its application as to include behavior once labeled simply as unchristian." 419 É claro que, por certas definições, continuariam a sê-lo, mas não há qualquer definição consensual do que fosse o latitudinarismo. CF. Force, EC, 124: "As these latitudinarians moved up the ladder of preferment, their defense of the Anglican church as the established Church took the form of repression of the freedom of speech. Their more tolerant early latitudinarianism was retained only in their recognition of the impossibility of prohibiting freedom of thought." 420 Clarke, Streitschriften..., 1ª réplica, § 1, G, VII, 353. 421 Clarke, op. cit., 2ª réplica, § 1, G, VII, 359: "Materialists suppose the Frame of Nature to be such, as could have arisen from mere Mechanical Principles of Matter and Motion, of Necessity and Fate". 422 Leibniz, op. cit., 2º escrito, § 1, G, VII, 356. Ver II. 1. 423 Há uma muito importante passagem de Clarke nesta correspondência que ilumina a sua conceção de religião natural, mas, como não utiliza explicitamente o termo "religião natural", será mencionada mais tarde.

275

incapazes de "examinar Provas demonstrativas."424 Por sua vez, esta religião é condição de possibilidade da religião revelada: "A Cristandade pressupõe a Verdade da Religião Natural. Seja o que for que subverta a Religião Natural, subverte, consequentemente, muito mais a Cristandade: e seja o que for que tenda a confirmar a Religião Natural, está proporcionalmente ao Serviço do Verdadeiro Interesse da Cristã."425 Não pareceria, através destas declarações, que se avançasse alguma coisa em relação ao declarado na polémica. De facto, o aparente entendimento na polémica é conseguido através da declaração de umas generalidades mínimas com que ambos poderiam concordar, uma espécie de latitudinarismo teórico básico que mantinha as aparências. Nada a dedicatória parecia acrescentar a esse entendimento elementar. Mas não é assim. A noção de religião natural partilha, nesta época, a equivocidade ligada a diversos empregos do adjetivo. Aparentemente, todos se inspiravam na mesma noção que estava presente na sistemática expressão cartesiana "luz natural da razão". Porém, uma coisa era entender o natural como aquilo que advém do uso natural da razão, sobretudo se subordinado a um bom uso, e outra era entendê-lo como o que era original, o que provém das origens naturais da humanidade. A equivocidade era até intensificada quando se pretendia que essa origem correspondia ao bom uso da razão. Ora, Clarke tenta fazer passar a sua conceção de religião natural como sendo consensual, quando, pelo contrário, não só é bem diferente da de Leibniz, como, porventura, encontra-se aqui uma das maiores oposições entre Leibniz e, sobretudo, o próprio Newton. Como escolástico newtoniano apostado na apologética da filosofia do mentor no terreno do inimigo, a metafísica, poderá a sua conceção não parecer tão oposta à de Leibniz como a de Newton. Isso não significa, como já foi visto várias vezes, que Clarke não tenha a mesma oposição à metafísica que Newton, como o atesta a história que Whiston conta a propósito das Conferências de Boyle.426 Em primeiro lugar, não é claro que Leibniz considere a religião natural uma espécie de substrato religioso acessível a todos os homens, por mais limitados e estultos que pudessem ser. Pelo contrário, parece fazer uma clara distinção entre a religião do povo e a religião dos sábios, ao menos no que se refere às religiões não cristãs.427 Antes do cristianismo, a religião natural seria a dos sábios e não a do povo. Em segundo lugar, o cristianismo, para Leibniz, não desenvolveu simplesmente uma religião natural dada a

424

Clarke, CP, To Her Royal Highness, The Princess of Wales, vii-viii: "those Great and Fundamental Truths of Natural Religion, which the Wisdom of Providence has at the same time universally implanted, in some degree, in the Minds of Persons even of the Meanest Capacities, not qualified to examine Demonstrative Proofs." 425 ibidem, vi: "Christianity presupposes the Truth of Natural Religion. Whatsoever subverts Natural Religion, does consequently much more subvert Christianity: and whatsoever tends to confirm Natural Religion, is proportionably of Service to the True Interest of the Christian." 426 William Whiston, Historical Memoirs of the Life of Dr. Samuel Clarke being A Supplement to Dr. Sykes's and Bishop Hoadley's Accounts. Including certain Memoirs of several of Dr. Clarke's Friends., London, Fletcher Gyles and J. Roberts, 1730 [HM], p. 11: "I was in my Garden over against St. Peter's College in Cambridge, where I then lived. Now I perceiv'd that in these Sermons he had dealt a great deal in Abstract and metaphysick Reasonings. I therefore asked him how he ventured into such Subtilties, which I never durst meddle with? And shewing him a Nettle, or the like contemptible Weed in my Garden, I told him, "That Weed contained better Arguments for the Being and Attributes of God than all his Metaphysicks'. Mr. Clarke confess'd it to be so: but alledg'd for himself, ''That since such Philosophers as Hobbs and Spinoza had made use of those kind of Subtilties against; he thought proper to shew that the like way of Reasoning might be made better use of on the Side of Religion". Which Reason or Excuse I allow'd not to be inconsiderable." 427 Na passagem seguinte, tinha referido vários exemplos da Antiguidade, sendo o último exemplo, o zoroástrico, mas incluindo uma clara generalização: Leibniz, Essais de Théodicée, 2ª parte, §137, G, VI, 191: "Peutêtre faut il distinguer, comme ailleurs, entre les Sages et le Peuple."

276

todos os homens, antes tornou acessível ao povo a anterior religião dos sábios. 428 Surpreendentemente, para a época, considera que Maomé não se afastou dos grandes dogmas da Teologia Natural. Pelo contrário, Clarke considera o cristianismo não só a única religião atual razoável, mas também a única que sequer tem aparência de o ser.429 Porém, pelo menos a perspetiva apresentada por Clarke nas Conferências de Boyle, não é muito diferente da de Leibniz. Clarke considerava que o único verdadeiro deísmo que pode ter existido seria o dos filósofos pagãos anteriores à revelação,430 não passando todos os outros de ateísmo disfarçado (incluindo, segundo a sua tese, com já foi visto em II. 5 e VI. 1, o de Leibniz). Esse deísmo daria origem, sobretudo, ao cultivo das virtudes, imitando os atributos morais de Deus, obrigações inerentes à religião natural.431 Chega a reconhecer – no meio de uma argumentação cujo objetivo é o de salvaguardar a liberdade divina, não obrigando Deus nem à revelação a todos, nem à concessão de idênticas capacidades – que, não tendo dado Deus as mesmas capacidades a todos, nem todos poderiam conhecer a própria religião natural.432 Mas, embora para sustentar como os homens precisavam da revelação, Clarke acaba por fazer uma declaração que coloca a questão de uma outra forma: "nem todos os homens são capazes de ser filósofos, mas todos estão igualmente obrigados a ser religiosos."433 Mas como estão obrigados a ser religiosos, se poucos tiveram acesso à revelação? Embora de forma não muito clara, Clarke desvenda um pouco das conceções newtonianas ao considerar que Deus se revelou àqueles que tinham genuína vontade de cumprir a sua vontade, sendo a religião natural confirmada, desde o início, por uma perpétua tradição em Famílias particulares que aderiram à adoração do Deus da Natureza.434 Em seguida, são nomeados os Judeus, não como constituindo essas famílias, mas como uma adição, uma nação que também preservou essa tradição. Assim, o fundamento da religião 428

Leibniz, op. cit., Préface, G, VI, 26-7: "Jesus Christ acheva de faire passer la religion naturelle en loy, et de luy donner l'autorité d'un dogme public. Il fit luy seul ce que tant de philosophes avoient en vain taché de faire : et les Chrestiens ayant enfin eu le dessus dans l'Empire Romain, maistre de la meilleure partie de la terre connue, la religion des sages devint celle des peuples. Mahomet depuis ne s'écarta point de ces grands dogmes de la Theologie naturelle". 429 Clarke, DC, 9: "there is no other Religion now in the World but the Christian, that has any just Pretence, or tolerable Appearance of Reason". Veja-se como rejeita a condescendência feita por Leibniz a Maomé (tal como rejeita, embora de forma mais moderada, o judaísmo), ibidem, 167-8. 430 Clarke, DC, 25: "The Heathen Philosophers, those few of them, who taught and lived up to the Obligations of Natural Religion, had indeed a consistent Scheme of Deism so far as it went; and they were very Brave and Wise Men, if any of them could keep steddy and firm to it. But the Case is not so Now." 431 Clarke, DC, 94: "the Soberest and most Intelligent Persons among the Heathens, in all Ages, very rightly and wisely concluded, that the best and certain Part of Natural Religion, which was of the greatest Importance, and wherein was the least Danger of their being mistaken, was to imitate the moral Attributes of God, by a Life of Holiness, Righteousness and Charity"; ibidem, p. 132: "There have indeed in almost every Age been, in the Heathen World, some Wise, and Brave, and Good Men, who have made it their Business to study and practise the Duties of natural Religion Themselves, and to teach and exhort Others to do the like." 432 Clarke, DC, 166: "all the Truths of Natural Religion are indeed certainly discoverable by the due Use of Right Reason alone, yet 'tis evident All Men are not indued with the same Faculties and Capacities, nor have they All equally afforded to them the same Means of making that Discovery; [...] consequently the Knowledge oſ Natural Religion being, in Fact, by no Means universal, it will follow that there is no great Necessity even of That". Cf. ibidem, 201. 433 Clarke, DC, 93: "all Men are not equally capable of being Philosophers, though all Men are equally obliged to be Religious." 434 Clarke, DC, 238: "It appears in History, that the Great Truths and Obligations of Natural Religion have from the Beginning been Confirmed by a perpetual Tradition in particular Families, who, though in the midst of Idolatrous Nations, yet stedfastly adhered to the Worship of the God of Nature, the One God of the Universe."

277

natural poderá ser o de uma revelação ou natureza original que sempre esteve acessível aos homens. Regressando a Leibniz, em terceiro lugar, apesar de considerar que o cristianismo tornou popular a religião dos sábios, não deixa de distinguir uma teologia natural da teologia revelada, mas, sobretudo, considera que aquela completa esta, considerada, aliás, tal como nos newtonianos, mas com diversa valorização, a parte empírica da religião,435 o que significa que a teologia revelada é um corpo inacabado se não recorrer à razão natural.436 Ao passo que, em Clarke, a razão apenas permite atingir uma verdade abstrata e insuficiente que é plenamente manifestada na revelação cristã, sem maior necessidade de teologia natural autónoma, Leibniz considerava que a luz da razão não é menos um dom de Deus do que a revelação, 437 pelo que se, de facto, estivessem em conflito, isso significaria que Deus estaria a combater contra Deus.438 Mas poder-se-á perguntar, em quarto lugar, se não existirá, em Leibniz, um primado da razão sobre a fé, visto a fé se fundar na razão, tendo em conta que a razão é precisa para, por exemplo, preferir a Bíblia ao Corão ou aos livros bramânicos; 439 aliás, Leibniz defende que o próprio Cristo não pregava senão a virtude ensinada pela razão natural, preterindo, muitas vezes, os milagres em favor da pregação;440 no mesmo passo, em que Leibniz está a atacar o entusiasmo, aproximadamente aquilo a que hoje se chama fanatismo, afirma mesmo que não são precisas novas revelações e, consequentemente, milagres, bastando as regras salutares (presume-se, razoáveis) de comportamento; por outro lado, se não se conseguisse suportar um dogma contra as objeções, não existiria fundamento para crer, visto tudo o que puder ser refutado de forma sólida e demonstrativa não poder deixar de ser falso;441 uma verdade não pode sofrer objeções 435

Leibniz, Essais de Théodicée, Discours…, § 1, G, VI, 49-50: "L'on peut comparer la Foy avec l'Experience, puisque la Foy (quant aux motifs qui la verifient) depend de l'experience de ceux qui ont vû les miracles, sur lesquels la revelation est fondée, et de la Tradition digne de croyance, qui les a fait passer jusqu'à nous, soit par les Ecritures, soit par le rapport de ceux qui les ont conservées. A peu près comme nous nous fondons sur l'experience de ceux qui ont vû la Chine, et sur la credibilité de leur rapport, lorsque nous ajoutons foy aux merveilles qu'on nous raconte de ce pays eloigné." 436 Leibniz, Nouveaux essais..., L. IV, Ch. VII, § 11, G, V, 396: "La Theologie Chretienne, qui est la vraye Medecine des ames, est fondée sur la revelation, qui repond à l'experience ; mais pour en faire un corps accompli, il y faut joindre la Theologie naturelle, qui est tirée des Axiomes de la Raison éternelle." 437 Leibniz, Essais de Théodicée, Discours..., § 29, G, VI, 67: "la lumière de la Raison n'est pas moins un don de Dieu que celle de la Revelation." 438 Leibniz, op. cit, § 39, G, VI, 73: "Mais comme la raison est un don de Dieu, aussi bien que la foy, leur combat feroit combattre Dieu contre Dieu". 439 Leibniz, Nouveaux essais..., L. IV, Ch. XVII, § 23, G, V, 477: "Je vous applaudis fort, Monsieur, lorsque vous voulés que la foy soit fondée en raison : sans cela pourquoy prefererions nous la Bible à l'Alcoran ou aux anciens livres des Bramines ?" 440 Leibniz, op. cit., Ch. XIX, G, V, 491: "Et quant aux dogmes de Religion, nous n'avons point besoin de nouvelles revelations : c'est assés qu'on nous propose des regles salutaires pour que nous soyons obligés de les suivre, quoyque celuy qui les propose ne fasse aucun miracle. Et quoyque Jesus Christ en fût muni, il ne laissa pas de refuser quelquesfois d'en faire pour complaire à cette race perverse qui demandoit des signes, lorsqu'il ne prechoit que la vertu et ce qui avoit déja esté enseigné par la raison naturelle et les prophetes." 441 Leibniz, Essais de Théodicée, Discours..., § 5, G, VI, 52: "Tout ce qui nous reste donc, apres avoir ajouté foy aux Mysteres sur les preuves de la verité de la Religion (qu'on appelle motifs de credibilité) c'est de les pouvoir soutenir contre les objections ; sans quoy nous ne serions point fondés à les croire ; tout ce qui peut être refuté d'une manière solide et demonstrative, ne pouvant manquer d'être faux ; et les preuves de la verité de la religion, qui ne peuvent donner qu'une certitude morale, seroient balancées et même surmontées par les objections qui donneroient une certitude absolue, si elles estoient convaincantes et tout à fait demonstratives." A confiança leibniziana nos recursos lógicos da razão (o seu "calculemos!") é bem conhecida e é aqui reafirmada, ibidem, § 65, G, VI, 87: "les apparences sont souvent contraires à la Verité, mais nostre raisonnement ne l'est jamais, lorsqu'il est exact et conforme aux regles de l'art de raisonner. Si par Raison on entendoit en general la faculté de raisonner bien ou mal, j'avoue qu'elle nous

278

invencíveis, pelo que se existir uma tal objeção, a falsidade da tese é demonstrada e deve deixar de ser objeto de fé. 442 Embora Leibniz tente mostrar que a verdadeira revelação não pode conter destas teses, nascendo elas de interpretações defeituosas, a verdade é que a razão surge aqui como critério de deliberação, ao menos quanto à condição de possibilidade, em relação à fé. Naturalmente, admitem-se verdades acima da razão, mas não contra a razão, 443 pelo que mesmo os mistérios deverão ser, ao menos, possíveis, ou seja, não absurdos. 444 Finalmente, em quinto lugar, pode-se esclarecer a correlação implícita na polémica entre metafísica e teologia natural. A teologia natural apenas não se identifica com a metafísica porque, contrariamente ao que se poderia pensar visto não ser só Deus o objeto da metafísica, é mais abrangente: inclui não só toda a metafísica mas também a moral.445 Quanto às expressões "teologia natural" e "religião natural", embora possam não ser exatamente sinónimas, estão muito pourroit tromper, et nous trompe en effect, et que les apparences de nostre entendement sont souvent aussi trompeuses que celles des sens : mais il s'agit icy de l'enchainement des verités et des objections en bonne forme, et dans ce sens il est impossible que la Raison nous trompe." 442 Leibniz, op. cit., § 25, G, VI, 65: "je ne saurois être du sentiment de ceux qui soutiennent qu'une verité peut souffrir des objections invincibles : car une objection est elle autre chose qu'un argument dont la conclusion contredit à nostre these ? Et un argument invincible n'est il pas une demonstration ? Et comment peut on connoitre la certitude des demonstrations, qu'en examinant l'argument en détail, la forme et la matiere ? afin de voir si la forme est bonne, et puis si chaque premisse est ou reconnue ou prouvée par un autre argument de pareille force, jusqu'à ce qu'on n'ait besoin que de premisses reconnues. Or s'il y a une telle objection contre nostre these, il faut dire que la fausseté de cette these est demontrée, et qu'il est impossible que nous puissions avoir des raisons suffisantes pour la prouver ; autrement deux contradictoires seroient veritables tout à la fois. Il faut tousjours ceder aux demonstrations, soit qu'elles soyent proposées pour affirmer, soit qu'on les avance en forme d'objections."; ibidem, § 39, G, VI, 73: "si les objections de la raison contre quelque article de foy sont insolubles, il faudra dire que ce pretendu article sera faux et non revelé : ce sera une chimere de l'esprit humain, et le triomphe de cette foy pourra être comparé aux feux de joye que l'on fait apres avoir été battu." E fornece, aliás, exemplos de tal refutação: a danação dos bebés e dos adultos sem as luzes necessárias à salvação. 443 Leibniz, op. cit., § 23, G, VI, 64: "La distinction qu'on a coutume de faire entre ce qui est au dessus de la raison, et ce qui est contre la raison, s'accorde assés avec la distinction qu'on vient de faire entre les deux especes de la necessité. Car ce qui est contre la raison, est contre les verités absolument certaines et indispensables ; et ce qui est au dessus de la raison, est contraire seulement à ce qu'on a coutume d'experimenter ou de comprendre. [...] Mais une verité ne sauroit jamais être contre la raison, et bien loin qu'un dogme combattu et convaincu par la raison soit incomprehensible, l'on peut dire que rien n'est plus aisé à comprendre, ny plus manifeste, que son absurdité. Car j'ay remarqué d'abord que par LA RAISON on n'entend pas icy les opinions et les discours des hommes, ny même l'habitude qu'ils ont prise de juger des choses suivant le cours ordinaire de la nature, mais l'enchainement inviolable des verités."; ibidem, § 60, p. 65, G, VI, 83: "contre la raison sera tout sentiment qui est combattu par des raisons invincibles, ou bien dont le contraditoire peut être prouvé d'une maniere exacte et solide. Ils [les Theologiens] avouent donc, que les Mysteres sont au dessus de la Raison, mais ils n'accordent point qu'ils luy sont contraires." 444 Leibniz, op. cit., § 28, G, VI, 67: "tout le monde convient que les mysteres sont contre les apparences, et n'ont rien de vraisemblable, quand on ne les regarde que du côté de la raison ; mais il suffit qu'il n'y ait rien d'absurde." 445 Leibniz, Nouveaux essais..., L. IV, Ch. VIII, § 9, G, V, 413: "la Theologie naturelle, comprenant deux parties, la Theoretique et la Practique, contient tout a la fois la Metaphysique reelle et la Morale la plus parfaite." Numa das falas de Filaleto que não corresponde, de todo, ao texto de Locke (cf. Locke, EU, 328), cujas teses só surgem posteriormente: Leibniz, op. cit., Ch. III, § 18, G, V, 364-5: "Mais en parlant des choses, qui nous importent le plus, j'ay pensé à la Morale, dont j'avoue que vostre Metaphysique donne des fondemens merveilleux : mais sans creuser si avant, elle en a d'assés fermes, quoyqu'ils ne s'étendent peutestre pas si loin (comme je me souviens que vous l'avés remarqué) lorsqu'une Theologie naturelle, telle que la vostre, n'en est pas la base." A esta luz, a aparente identificação entre metafísica e teologia natural, num passo já citado (em IV. 7, nota 248), onde diz que "a Metafísica é a teologia natural", talvez se possa entender, se existir algum descuido na linguagem, como uma inclusão ou, então, supõe que se percebe estar apenas a referir-se à parte teórica da teologia natural: Leibniz, Carta para a duquesa Sofia de Hannover, G, IV, 292. Não deixa, porém, de ser claro que, para Leibniz, toda a metafísica é teológica.

279

próximas uma da outra. Raramente surgem juntas, eventualmente por serem quase sinónimas, mas na passagem já citada em que se refere a Cristo e a Maomé, sucessivamente, são utilizadas as duas como se se referissem à mesma realidade. Desta forma, pode-se considerar a religião natural como a expressão da razão natural tanto no domínio prático, como teórico, correspondendo este último à metafísica corretamente demonstrada pela razão natural, ou seja, por recurso ao princípio da razão suficiente. O primado racional poderá ser posto em dúvida pelas múltiplas declarações de Leibniz de conformidade com os dogmas inclusivamente católicos, 446 mas isso é conseguido, em grande medida, ou evitando as questões dogmáticas mais problemáticas, ou torneando algumas por uma abordagem vaga ou equívoca, permitindo o desafio já citado ao Landgrave, no início da correspondência com Arnauld, para que se encontrasse, na sua obra, alguma coisa herética sob o ponto de vista de qualquer que fosse a Igreja.447 Só é possível um desafio tão geral quando ou não existe um tratamento muito pormenorizado, ou não existe qualquer tratamento de questões teológicas sensíveis. Aliás, Leibniz procurava, desde há muito, defender uma muito peculiar ideia de Igreja Católica que na sua mente não estaria distante da religião natural, visto ter como único requisito o amor universal.448 Por exemplo, a declaração dogmática de Des Bosses excluindo, à partida, a possibilidade de verdadeira caridade fora da sua Igreja,449 seria certamente vista como cismática e não católica por Leibniz, muito embora se tenha contentado, neste caso, por uma fria mas diplomática redução da questão às verdades de facto e não de fé.450 Essa Igreja Católica distinguir-se-ia da "comunhão externa com Roma",451 mas constituiria um pequeno núcleo dogmático no qual Leibniz depositava as 446

Em resposta à solicitação disfarçada de Des Bosses de a Teodiceia nada conter de contrário à fé católica, Leibniz é ainda mais específico e declara a conformidade com a Ordem de Des Bosses, ou seja, a Companhia de Jesus: Leibniz, Carta para Des Bosses de 31 de Julho de 1709, G, II, 378: "In libello nihil a me defendi puto dogmatis, quod non et vestrum aliquis tueri possit". 447 Leibniz, Carta para o Landgrave de 12/4/1686, G, II, 21, ver VI. 7, nota 261. 448 Leibniz, OM, VI, Pars I, 313: "XCII. Schisma est contra charitatem, hæresis contra fidem. Omnes ergo illi sunt Schismatici, qui pro fratibus non agnoscunt non fundamentaliter dissentientes. Charitas est character Ecclesiae Catholicæ. Ille Catholicus est, cujus amor catholicus est. Ille Schismaticus, qui estra suam opinionem nulli salutem permittit. XCIII. Definitio charitatis, ut doctores nostri tradunt, est bona voluntas. Ita Jonas Aurelianensis in Institutione regia a P. Labbæo Paris. A. 1662. 8. edita cap. 9. Ego charitatem definio benevolentiam, sed universalem." 449 Des Bosses, Carta para Leibniz de 6 de Janeiro de 1711, G, II, 416-7: "Nec vero ex hoc principio sequi arbitramur eos qui extra Ecclesiae communionem degunt, salutem consequi posse, negamus enim omnes, eos ad caritatem perfectam quamdiu ab Ecclesia segregati sunt, posse pertingere. Nempe caritatem perfectam necesse est praecedat fides, eaque non late dicta aut implicita, qualem ex testimonio creaturarum haustam habere potuerant philosophi, sed stricte sumpta et explicita (saltem aliquorum articulorum) quae Dei revelantis verbo nititur unice. Hac porro fide caret qui orthodoxae Ecclesiae repugnat autoritati, quam ita perspicuam esse contendimus ut nemo saltem eruditus, si ut debet implorato lumine divino notas ejus accurate perpenderit, eam sine pertinaciae culpa ignorare queat. Jam vero hac cum culpa stare nequit ullius articuli fides Theologica, quia per cujuslibet articuli fidem ita comparatur credentis animus, ut si alii articuli quicumque a Deo revelati sibi innotescerent ac credendi proponerentur, ab iis assensum cohibere, vel saltem dissentire stante quam habebat fide non posset, et haec quidem ex parte fidei quae caritatis fundamentum est. In ipsa caritatis natura secundum se considerata difficultas occurrit similis; nam caritas ea quam justificatio requirit, virtuale votum sive propositum includit adimplendi ea omnia quae divinae amicitiae leges exigunt. Exigunt autem ut orthodoxa cum Ecclesia communicemus, quam sine culpa, quae caritati repugnat, ignorare non possumus." 450 Leibniz, Carta para Des Bosses de 8 de Fevereiro de 1711, G, II, 419: "Caeterum utrum aliquis extra vestram Ecclesiam caritatem veram habere possit, facti est quaestio, quod possibile praesumitur, donec contrarium probetur." 451 Leibniz, Carta para a Mad. de Brinon de 16 de Julho de 1691, WL, VII, 119-20: "Vous avez raison, Madame, de me juger catholique dans le coeur ; je le suis mesme ouvertement : car il n'y a que l'opiniastreté qui fasse l'heretique; et c'est de quoy, grace à Dieu, ma conscience ne m'accuse point. L'essence de la catholicité n'est pas de communier exterieurement avec Rome ; autrement ceux qui sont

280

esperanças de reconciliação entre os cristãos. Diversas são as suas declarações em que afirmava que aquilo que o fazia não se converter ao catolicismo não eram tanto os fundamentos teológicos, mas outros aspetos que considerava acessórios como as questões rituais e o extremismo condenatório de Trento. 452 Naturalmente, a sua conceção do que são os fundamentos teológicos do catolicismo obedece a critérios seletivos certamente estranhos aos católicos. Em última análise, o seu primeiro esclarecimento ao Landgrave em relação à razão porque persistia luterano clarifica bem mais a sua posição, aparentemente inalterada ao longo da sua vida, apesar de algumas formulações teóricas que parecem concessões às posições científicas da Igreja. 453 Distinguia ele entre a comunhão interior da verdadeira Igreja Católica e a exterior da Igreja visível, sendo a primeira infalível em assuntos de fé, mas requerendo a segunda a adesão a erros filosóficos e científicos, mesmo quando estes poderiam ser demonstrados. 454 Se, como já se viu, Leibniz subordinava à razão a aceitação de conteúdos de fé como verdades de fé, visto não poderem ser absurdas,455 muito mais rejeitava qualquer subordinação a autoridades eclesiásticas em matérias que considerava estranhas aos assuntos necessários para a salvação. Aliás, é conhecida a sua insistência na glorificação de Deus através das descobertas científicas, 456 tentando convencer as excommuniés injustement, cesseroient d'estre catholique malgré eux, et sans qu'il y eût de leur faute. La communion vraye et essentielle, qui fait que nous sommes du corps de Jesus-Christ, est la charité. Tous ceux qui entretiennent le schisme par leur faute, en mettant des obstacles à la reconciliation, contraires à la charité, sont veritablement des schismatiques : au lieu que ceux qui sont prests à faire tout ce qui se peut pour entretenir encor la communion exterieure, sont catholiques en effet." 452 Leibniz, Carta para o Landgrave [ed. Janet; para Arnauld na ed. Gerhard], G, II, 129-130: "En matiere de religion [...] il y a des gens [...], qui ne sont pas eloignés des sentimens de l'Eglise catholique Romaine, qui trouvent les definitions du Concile du Trente assez raisonnables et conformes à la Sainte Ecriture et aux Saints Peres, qui jugent que le systeme de la Theologie Romaine est mieux lié que celuy des Protestants, et qui avouent que les dogmes ne les arresteroient pas ; mais ils ont arrestés premierement par quelques abus de practique tres grands et trop communs qu'ils voyent tolerés dans la Communion Catholique Romaine surtout en matiere de culte ; ils craignent d'estre engagés à les approuver ou au moins à ne pas oser les blâmer ; ils apprehendent de donner par-lá du scandale à ceux qui les prendroient pour des gens sans conscience, et que leur exemple quoyque mal entendu porteroit à l'impieté ; ils doutent même, si on peut communier avec des gens qui pratiquent certaines choses peu tolerables ; et ils considerent qu'en ces rencontres il est plus excusable de ne pas quitter une Communion que d'y entrer. Secondement, quand cet obstacle ne seroit pas, ils se trouvent arrestés par les Anathematismes du Concile de Trente, ils ont de la peine à souscrire à des condemnations qui leur paroissent trop rigides et peu necessaires, ils croyent que cela est contraire à la charité et que c'est faire ou fomenter un schisme. Cependant ces personnes se croyent veritablement Catholiques, comme le seroient ceux qu'on a excommuniés injustement, clave errante, car ils tiennent les dogmes de l'Eglise Catholique, ils souhaitent de plus la communion exterieure, à quoy d'autres mettent des obstacles ou la leur refusent." 453 Não pretendendo que a relatividade do movimento tenha sido formulada para defender a equivalência dos modelos astronómicos, apesar de sempre sublinhada a maior simplicidade e inteligibilidade do modelo copernicano, a verdade é que tal alegada equivalência foi muito utilizada, por Leibniz, para promover o diálogo com Roma: cf., e. g., Leibniz, OF, 590-3. 454 Referindo-se a uma carta ao Landgrave Ernst de 11/1/1684, Aiton, LB, 123-4: "Distinguishing between the interior communion of the Catholic Church (the Church as it should be) and the exterior communion (the visible Church), he accepted that the Church was infallible in all matters of faith necessary for salvation but objected that the visible Church also required its members to accept some errors in matters of science and philosophy, even when the contrary could be demonstrated. In these cases, the beliefs condemned by the Church – Copernicanism, for example – were not opposed to Scripture, tradition or the declarations of any Council. [...] as he had been born and brought up outside the Catholic Church, it would not be honest for him to join an institution which opposed propositions of science and philosophy which he held to be true and important." 455 Leibniz, Carta para a Eleitora Sofia de Abril de 1709, WL, VII, 300: "Je suis persuadé que la Religion ne doit rien avoir qui soit contraire à la Raison, et qu'on doit tousjours donner à la Revelation un sens qui l'exemte de toute absurdité." 456 Couturat, LL, 138: "Le meilleur moyen de connaitre et d'honorer, c'est d'étudier l'univers et d'améliorer

281

próprias ordens religiosas a considerarem a descoberta e a invenção como obra pia, certamente superior às simples orações, visto estas serem meras palavras e não obras.457 Será que este primado da racionalidade não ocorre, igualmente, do lado newtoniano? Talvez sim, mas não é o mesmo. Indo por partes, contrariamente a Leibniz que afirmava a religião revelada como incompleta sem a natural, em Clarke, pelo contrário, é a natural, ao menos enquanto entendida como religião dos sábios anteriores à revelação, que surge como algo abstrato, incompleto, desarticulado e incapaz de conter a corrupção humana. Cita Lactâncio para afirmar que os filósofos, tomados todos em conjunto, descobriram de facto todas as doutrinas particulares da verdadeira revelação, mas isto foi feito por diferentes homens, em diferentes tempos e de diferentes maneiras, concorrendo entre si, não tendo havido nenhum homem capaz de reunir estas verdades num único esquema consistente. 458 Assim, a revelação era requerida pela razão, suplementa a razão459 e fornece a força necessária para conter a corrupção.460 Mas, embora muitas doutrinas tivessem de ser reveladas, depois mostram-se racionais. 461 A este título talvez se perceba a passagem da correspondência antes referida, onde, não sendo referida a religião natural, é posta em concordância uma

le sort des hommes. Le plus bel hymne qu'on puisse chanter à Dieu, c'est la découverte d'une loi de la nature ou une invention utile à l'humanité. Ainsi se concilient les tendances en apparence opposées de l'esprit de Leibniz, sa religiosité presque mystique et sa philanthropie positive et pratique, de même que dans sa morale se concilient l'utilitarisme et l'intellectualisme ; c'est que sa religion est au fond essentiellement rationaliste, naturaliste et presque païenne, comme sa morale elle-même." O mais difícil, aqui, é, porém, ver por que razão é alcunhada de pagã. Parece estar a arrastar a qualificação "naturalista" para um sentido que não é o da religião natural de Leibniz. 457 ibidem: "Leibniz ne craint même pas de considérer les découvertes scientifiques et les inventions industrielles comme des œuvres pies bien supérieures aux prières et cérémonies des prêtres, dans la mesure où les actes sont préférables aux paroles, et de dire qu'une seule d'entre elles vaut mieux que mille discours, poèmes ou sermons." 458 Clarke, DC, 149-50: "This whole Matter is excellently set forth by Lactantius: The Philosophers, saith he, take them All together, did indeed discover all the particular Doctrines of true Religion; but, because each one endeavoured to confute what the others asserted, and no One's single Scheme was in all its Parts consistent and agreeable to Reason and Truth, and none of them were able to collect into One whole and intire Scheme the several Truths dispersed among them All, therefore they were not able to maintain and defend what they had discovered. [...] Whereas, had there been any Man, who could have collected and put together in Order all the several Truths, which were taught singly and scatteredly by Philosophers of all the different Sects, and have made up out of them One Intire consistent Scheme; truly he would not have differed much from Us Christians: But This it was not possible for any Man to do, without having the True System of Things first Revealed to him." 459 Ferguson mostra que estas teses são muito precoces em Clarke: Ferguson, EH, 12-3: "revealed religion supplements natural theology. The latter can take us part of the way, then, when it has made its utmost contribution, it has to give place to the truths which revelation unveils. Then after revelation has disclosed its eternal verities, reason again has a part to play in its recognition that the content of the divine revelation is agreeable to and expresses its profoundest intuitions which so far have remained latent and unconfirmed." 460 Grande parte da conferência de 1705 afirma isto, mas, a título de exemplo, Clarke, DC, 8: "That therefore there was plainly wanting a Divine Revelation, to recover Mankind out of their universally degenerate Estate, into a State suitable to the original Excellency of their Nature". 461 Clarke, DC, 10: "though indeed many of them [Doctrines] not discoverable by bare Reason unassisted with Revelation, yet, when discovered by Revelation, apparently most agreeable to sound unprejudiced Reason". Cf., ibidem, 285: "This, Doctrine [relativa ao Filho de Deus] (I say) though not indeed discoverable by bare Reason, yet, when made known by Revelation, appears plainly very consistent with right Reason, and ('tis manifest) contains nothing that implies any Manner of Absurdity or Contradiction in it." Não deixa de ser curioso o ataque feito, em seguida e em nota, não só à Escolástica, mas também a Cudworth por representar a Trindade como uma coisa diretamente contraditória a toda a razão humana e entendimento. É natural, visto ser o contrário do que está a defender, mas isso não significa que esteja bem sustentado...

282

passagem bíblica com a natureza e a razão.462 Restaria apenas saber se trataria de uma teoria antecipada pela religião natural ou apenas reconhecida como racional após a revelação. No entanto, tudo isto parece demasiado semelhante às teses de Leibniz, parecendo apenas se diferenciar num pendor levemente maior para a revelação. Mas, de facto, não é assim. Nas explicações de Clarke, a razão confunde-se com os objetos de fé, considerando provas racionais os relatos bíblicos, as profecias (e as suas interpretações) e argumentos de uma singeleza pueril: por exemplo, como prova da verdade, os martírios, os milagres, a semelhança da mensagem, a fidelidade à causa ou a extensão geográfica da sua ação, 463 tudo exemplos que poderiam ser dados até de confissões bem mais recentes contraditórias entre si, todas com mártires, com alegações de milagres, com uma mensagem determinada por uma doutrina, com pessoas leais e abrangendo diversas nações! E depois de dezenas de páginas de argumentos deste nível e de outras menções bíblicas, considera-se tudo racionalmente provado.464 Mesmo que a argumentação leibniziana tenha fragilidades, não confunde referências deste tipo com demonstrações racionais, como se pode ver na Teodiceia cujo objetivo não é muito diverso deste Discurso. Clarke poderia dizer que se trata apenas de uma certeza moral, contrariamente à que pretendia na outra conferência, a de 1704. 465 Mas o que, de facto, está a fazer é a tentar passar objetos de pura e simples fé por provas racionais. Ora, qualquer um pode se habituar de tal forma a uma alegada verdade de fé que acaba por a considerar racional, mas isso retira o conteúdo à razão. Será que é só isto que está presente nesta conceção de racionalidade? Numa passagem célebre das Duas notáveis corrupções, Newton declara: "Se se disser que não devemos determinar o que é Escritura e o que não é, pelo nosso juízo privado; eu aceito-o em lugares não controversos: mas, em lugares discutíveis, adoro seguir o que melhor posso entender. É têmpera da parte exaltada e supersticiosa da humanidade, em assuntos de religião, gostar mais do que entende menos." 466 A sua interpretação das Escrituras pauta-se por critérios de racionalidade e, assim, parece, novamente, similar a Leibniz. Porém, o que Leibniz submete aos critérios da consistência lógica são as teorias. Pelo contrário, Newton pretende submeter a critérios também lógicos, mas, sobretudo, materiais, semânticos, os próprios textos da Escritura. 462

Clarke, Streitschriften..., 5ª réplica, §§ 36-48, G, VII, 427: "This strange Doctrine, is the express Assertion of St. Paul, as well as the plain Voice of Nature and Reason." 463 Clarke, DC, 284-7. 464 Clarke, DC, 289: "From what has been said upon the foregoing Heads, 'tis abundantly evident, that Men are not called upon to believe the Christian Religion without very reasonable and sufficient Proof; much less are they required to set up Faith in Opposition to Reason, or to believe any Thing for that very Reason, because it is incredible. On the contrary, God has given us all the Proofs of the Truth of our Religion, that the Nature of the Thing would bear, or that were reasonable either for God to give, or Men to expect." 465 Clarke, DC, 11: "I might here, before I enter upon the particular Proof of these several Propositions, justly be allowed to premise, that having Now to deal with another Sort of Men, than those against whom my former Discourse was directed; and being consequently in some Parts of this Treatise to make Use of some other Kinds of Arguments than those which the Nature of that Discourse permitted and required; the same demonstrative Force of reasoning, and even Mathematical Certainty, which in the main Argument was there easy to be obtained, ought not here to be expected; but that such moral Evidence, or mixt Proofs from Circumstances and Testimony, as most Matters of Fact are only capable of, and wise and honest Men are always satisfied with, ought to be accounted sufficient in the present Case." O anterior Discurso era dirigido aos ateus assumidos e este é dirigido aos aparentes deístas, considerados ateus dissimulados. 466 Newton, An historical account of Two notable Corruptions of Scripture in a letter to a friend, OO, V, 529-30: "If it be said that we are to determine what is scripture, and what not, by our private judgements; I confess it in places not controverted: but in disputables places, I love to take up with what I can best understand. It is the temper of the hot and supersticious part of mankind, to like best what they understand least."

283

O recurso leibniziano à Escritura, na Teodiceia, é escasso se se comparar com a imensidade de autoridades teológicas e filosóficas que são referidas. A tradição puritana é muito mais escritural. Mesmo entre os platónicos de Cambridge, a certos títulos até próximos de Leibniz, a interpretação racional das Escrituras é absolutamente central. Mas é Locke que mais se aproxima de Newton porque, contrariamente ao pendor metafísico dos platónicos de Cambridge, nomeadamente Cudworth, a sua interpretação racional das Escrituras é baseada numa outra conceção de razão, uma razão limitada pela experiência externa e interna, incapaz, dentro dos seus limites, de ir seguramente para lá do que a experiência, neste caso a Escritura, fornece. 467 Se Newton disso precisasse, encontraria no seu amigo um reforço para a sua abordagem interpretativa da Bíblia, guiada por critérios de simplicidade e o mais literal que fosse possível. Desde as Paraphrases de 1701 e 1702468 que Clarke pretendia que se reduzisse os comentários bíblicos à sua original simplicidade, supostamente levando a deixar para trás todas as controvérsias religiosas.469 É difícil saber se acreditaria, de facto, nisso ou se era, nele como noutros, apenas uma estratégia persuasiva para os combates expectáveis. De qualquer forma, é a mesma conceção de redução ao texto bíblico original, que está expressa até no título da obra470, que lhe valeria os maiores dissabores e que, embora Clarke o negasse,471 talvez o tenha levado a, parcialmente, mais por omissão que pelo que foi declarado, se retratar. 472 Esta alegada busca da simplicidade interpretativa procura a correspondência com um ideal de simplicidade da Igreja primitiva, 473 contraposta às investigações filosóficas e escolásticas introdutoras de conceitos metafísicos.474 Juntamente com a tese da infalibilidade da Escrituras,475 o que nada tem 467

Maurice Wiles, Archetypal Heresy – Arianism through the Centuries, Oxford, Clarendon Press, 1996 [AH], p. 70: Locke "fully shared Cudworth's basic understanding of theology as based on 'Scripture together with reason deducing natural consequences therefrom'. But his understanding of reason was not the same as Cudworth's, so that the application of the principle had very different results for him. Locke may have been an apostle of reason, but not in a sense that implies the assertion of its omnicompetence. Indeed, his rejection of innate ideas and insistence that reason was dependent on ideas drawn from sensation and reflection led to a recognition of the limitation of reason, especially in the realm of religious knowledge. And that in turn gave rise to, or at least was compensated by, an insistence on revelation, which runs through all his writings, and on the impossibility of making significant deductions that take us beyond the expressions given in that scriptural revelation." 468 Samuel Clarke, A Paraphrase on the Four Evangelists, 9th. ed., London, John and Paul Knapton, 1751. 469 Ferguson, EH, 19: "He gives his aim as that of expressing the full sense of the Evangelists in the plainest words and of providing a continuous narrative that will reproduce the natural meaning of the texts and represent the doctrine of Christ in its original simplicity, leaving all religious controversies aside." 470 Samuel Clarke, The Scripture-Doctrine of the Trinity, London, James Knapton, 1712. 471 FL, 36. Mais do que os argumentos, os pormenores biográficos e o facto da declaração que se segue ter sido feita sob um contexto de enorme pressão, retira credibilidade à tese de não se tratar de uma retratação. 472 Clarke, FL, 32: "My Opinion is, That the Son of God was eternally begotten by the Eternal Incomprehensible Power and Will of the Father; and that the Holy Spirit was likewise Eternally derived from the Father, by, or through the Son, according to the Eternal Incomprehensible Power and Will of the Father." 473 Clarke, ST, viii-ix: "In the days of the Apostles therefore, Christianity was perfect; and continued for some Ages, in a tolerable Simplicity and Purity of Faith and Manners; supported by singular Holiness of Life, by Charity in matters of Form and Opinions, and by the extraordinary Guidance of the Spirit of God, the Spirit of Peace, Holiness and Love." Antecipando a questão do latitudinarismo, chama-se a atenção para a expressão "Caridade em assuntos de Forma e Opiniões". 474 Clarke, ST, xxvi: "with regard to Scholastick and Philosophical Inquiries concerning the metaphysical Nature and Substance of each of the Three Persons in the everblessed Trinity, this manner of judging is so right and true, that had These things Never been medled with, and had men contented themselves with what is plainly revealed in Scripture, (more than which, they can never certainly know;) the Peace of the Catholick Church, and the Simplicity of Christian Faith, had possibly never been disturbed."

284

de surpreendente na época, a rejeição de outra fonte que não a bíblica parece excluir qualquer papel da razão, como logo em seguida Wells objetou.476 Na sua resposta,477 Clarke nem trata estritamente do papel da razão defendido por Wells, do qual não discorda, nem sequer do recurso a fontes patrísticas, mas da utilização de fontes patrísticas para decidir do sentido das verdades reveladas. Além disso, a interpretação da patrística levanta ainda problemas maiores e, se se subordina essa interpretação à Igreja (e porque não então a Católica?), então longe de ser a razão a decidir seja o que for, é a autoridade, até mesmo contra o texto da Escritura. Como resume Ferguson, "ou a Igreja deve ser julgada pela Escritura, ou um homem tem de seguir cegamente a autoridade."478 O que está em questão não é o uso da razão, mas, mais uma vez, a metafísica. Newton e Clarke consideram que a linguagem bíblica, com exceção das passagens que tentam provar como corrupções, é muito mais racional do que as conceções metafísicas introduzidas que, sob a pretensão de racionalidade, acabaram por conduzir à afirmação de mistérios. É já contra a religião dos mistérios que Newton declarava que se gostava mais do que menos se entendia. O recurso aos textos mais primitivos do cristianismo destinava-se, sobretudo para Newton, a purgar o cristianismo das irracionalidades 479 introduzidas por subtilezas metafísicas que descambam nos mistérios e outras superstições480 e que acabaram por corromper a religião com a idolatria, paganismo e uma mentalidade milagreira.481 A falta de capacidade de persuasão por recurso apenas a argumentos fez os corruptores, em especial esse seu arqui-inimigo da Patrística, Atanásio, recorrer a falsos milagres.482 Assim, pode-se considerar que os newtonianos, 475

Clarke, ST, vi-vii: "the Whole Scripture is the Rule of Truth; and whatever is there delivered, is infallibly True". 476 Edward Wells, Remarks on Dr. Clarke Introduction to his Scripture-Doctrin of the Trinity, Oxford, Anthony Peisley, 1713, pp. 7-8: "Reason must ALWAYS be, and consequently is to Us Now, as well as it was to Others in any Foregoing age of the World, the Fundamental Rule of All Religious Truth, Supernatural as well as Natural. Wherefore, as it can in No sense be Truly said, that Scripture is absolutely the Whole and Only Rule of Truth in matters of Religion; so Scripture can be said to be the Whole and Only Rule even of Supernatural Truth, only in a qualify'd sense, that is, as it is the Immediate Rule of Supernatural Truth. For Reason, being the FUNDAMENTAL Rule of ALL Truth, must consequently be of necessity the Mediate Rule even of Supernatural Truth. [...] this Proposition The Scripture is the Whole and Only Rule of Truth in matters of Religion, can TRULY import no more than this, that the Scripture is the Whole and Only IMMEDIATE Rule of SUPERNATURAL Truth. And consequently hereby may be Rectify'd the Grand Fundamental Mistake I before hinted at, forasmuch as it consists in Misapprehending the Scripture to be ABSOLUTELY the Whole and Only Rule of Truth in matters of Religion; that is, in Such a manner as to exclude Reason from being, either the Immediate Rule of Natural Truth (as in other matters, so) in matters of Religion, or the Mediate Rule of Supernatural Truth." Globalmente embora com outra linguagem, a conceção não está muito longe da de Leibniz. 477 Samuel Clarke, A Letter to the Reverend Dr. Wells, Rector of Cotesbach in Leicestershire. In Answer to his Remarks, etc., London, James Knapton, 1714. 478 Ferguson, EH, 67: "In short, either the Church must be judged by Scripture, or man must blindly follow authority." 479 Westfall, "Newton and Christianity", NW, 370: "The central thrust of his lifelong religious quest was the effort to save Christianity by purging it of irrationalities." 480 Westfall, NR, 826: "Newton set out at an early age to purge Christianity of irrationality, mystery, and superstition, and he never turned from that path." 481 Westfall, NR, 345: "What Newton called superstitions were "monstrous Legends, fals miracles, veneration of reliques, charmes, ye doctrine of Ghosts or Daemons, & their intercession invocation & worship & such other heathen superstitions as were then brought in." Along with the practices above, he included the introduction of images into churches. The identity of the superstitions to which he pointed with practices of the Catholic church cannot be missed." De facto, a Igreja Católica, no contexto do puritanismo de Cambridge, era o alvo por excelência, mas não o único, nem o original. O manuscrito que está a ser citado é Clarke Library MS. 482 ibidem: "Athanasius and his party adopted the pretense of miracles as a conscious design. "They found

285

entre os quais o próprio Newton, Whiston, como já se viu, e até Clarke, embora, em textos públicos e como clérigo, não pudesse criticar tão universalmente os mistérios, viam a racionalidade metafísica como irracional porque introduzia noções ininteligíveis, como ocorria na conceção da Trindade, 483 e dava origem a ou permitia crenças e práticas idolátricas e pagãs. Tentavam associar, publicamente, essas imposições de noções, crenças e práticas, contra a crítica racional, pela força, ao Papado, 484 para conseguirem obter a tolerância protestante, através da atitude latitudinária que era favorecida a partir da Revolução Gloriosa e, sobretudo, da instalação hannoveriana, por motivos de conveniência485 (embora se verifique, cada vez mais, ao longo da vida destes protagonistas, ser tendencialmente a atitude da Casa Alta da Convocação e, como tal, dos bispos da Corte), mas que os newtonianos tentavam reforçar pela associação à Igreja primitiva.486 É difícil dizer se esse latitudinarismo era defendido por convicção intrínseca487 ou por estratégia resultante da situação defensiva em que os newtonianos se mantinham após o Ato de Tolerância que não incluía os não-trinitários. Force defendeu que o seu latitudinarismo era aparente, 488 resultado de uma aliança de oportunidade, apesar de dificilmente sustentável por alguma intolerância de Newton,489 muito embora se pudessem contabilizar, para lá das relações pessoais, várias características comuns: a by experience yt their opinions were not to be propagated by disputing & arguing, & therefore gave out that their adversaries were crafty people & cunning disputants & their own party simple well meaning men, & therefore imposed this law upon the Monks that they should not dispute about ye Trinity. Thus they left ye success of their cause to ye working of miracles & spreading of Monkery." Among feigned miracles he included "the superstitious or to speak more truly the magical use of the signe of ye Cross ..." (Clarke Library MS)." Não deixa de ser curiosa esta implícita condenação da fuga às disputas quando se tratava daqueles que Newton considerava inimigos. 483 Manuel, RI, 75: "Abstract system-making, building hypothetical structures, was a mode of thinking responsible for the perversion of the only truly revealed religion, primitive Christianity." 484 Samuel Clarke, "Carta de 22/7/1714" in John Jackson, atr., Three Letters to Dr. Clarke from a Clergyman of the Church of England; concerning his Scripture-Doctrine of the Trinity. with the Doctor's replies, London, Black Boy, 1714, p. 21: "The Peace and Unity of the Church, can be secured but Two Ways: either by that of Charity, and allowing learned men a Liberty of examining things; which is the Protestant and Christian Method: Or by introducing with Force an Universal Ignorance; which is the Method of Popery." 485 Meli, CL, 483: "Later he [George I] did not convert but rather, according to Leibniz, judged that the Anglican and Lutheran Churches did not differ in fundamental dogmas but only in minor points, such as the liturgy." Tal menosprezo pelos aspetos rituais, era uma das exigências do latitudinarismo, subscrito, aliás, por Newton. 486 Stephen David Snobelen, "Isaac Newton, Socinianism and «The One Supreme God»" in M. Mulsow, J. Rohls, ed., Socinianism and Arminianism. Antitrinitarians, calvinists and cultural exhange in seventeenth-century Europe, Leiden, Boston, Brill, 2005 [NS], pp. 250-251: "In a lengthy manuscript treatise on Church history, Newton observes that those in the early Church who believed in Christ’s preexistence refused to call heretics those who did not, and, in addition, took the question of Christ’s existence before his birth as being an adiaphoron." Ou seja, indiferente. 487 Há passagens que parecem contrárias, pelo menos, a certo latitudinarismo: Steffen Ducheyne, "Isaac Newton's 'Of the Church' manuscript description and analysis of Bodmer Ms. in Geneva" in European Journal of Science and Theology, 20096, Vol.5, Nº.2 [OC], pp. 28-29. 488 Force, EC, 134: "Newton [...] believed in doctrines which were incompatible even with the minimal doctrinal constraints finally maintained, however reluctantly, by the latitudinarians. These theological doctrines - Arianism, predestinarianism, "Newtonian" millennialism, and millennial inductivism - were rooted in Newton's voluntaristic conception of the power and dominion of God. Furthermore, Newton's keystone theological beliefs, while based on reason and evidence, were maintained with a sense of passion foreign to the latitudinarians. Newton's only hope was that the wise would understand. The latitudinarians might be able to swallow a quiescent Newton (in contrast to the strident Whiston), but Newton could not compromise his principles sufficiently enough to maintain that he was himself a latitudinarian." 489 Veja-se a complicada relação com Wake: Force, EC, 120.

286

rejeição do entusiasmo, a exigência de racionalidade, 490 a defesa da ciência como suporte para o argumento do desígnio, 491 o menosprezo pelos aspetos rituais 492 e a referida tolerância doutrinária, eventualmente para proteção própria. Na verdade, a posição newtoniana estava longe do irenismo de Leibniz, visto não incluir de todo os católicos, antes pelo contrário.493 Sob a acusação de metafísicos, rejeita muitos outros, Gnósticos, Cabalistas, Platónicos e talvez seja por conveniência que não rejeita todos aqueles que, no mundo protestante, perfilhavam a conceção essencialista, substancialista da Trindade que corresponderia à grande apostasia condenada por Newton.494 Estas são as opiniões dos homens que procuram perverter a mensagem divina e a exigência newtoniana, tornada pública através de Clarke, de se regressar ao texto bíblico na sua simplicidade, é também a plataforma de entendimento entre os cristãos,495 rejeitando todos aqueles que não se conformarem com a mensagem divina.496 Embora, até na sequência do projeto de filosofia experimental que foi a Royal Society, Newton afirmasse a separação497 da leitura dos dois livros: o da Natureza e o da 490

ibidem: "Besides Newton's apparently latitudinarian spirit of toleration and the web of personal and occasional working relationships which existed between Newton and the latitudinarian churchmen (and between the latitudinarians and followers of Newton such as William Whiston), other scholars have argued that what Newton really shared with the latitudinarians was a revulsion to any form of "enthusiasm" and an emphasis on the adjudicating power of reason." 491 Force, EC, 121: "The most vital link forged between Newton and the latitudinarians went beyond shared intellectual dispositions and mutual friendships and admiration. In a word, the link was science. Latitudinarian churchmen and the members of the new Royal Society, including Newton who was President of the Royal Society from 1701 until his death in 1727, were quick to notice the new machine of war against religious scepticism provided by Newtonian mechanics in the design argument of natural theology." A data de 1701deverá ser uma gralha. Newton só assumiu esse cargo no final de 1703. 492 Brewster, ML, II, Appendix XXIX, 19, 530: "To distinguish churches from one another by any difference in customs or ceremonies, or in other laws than the laws of God, is improper, and tends to superstition. And if the distinction occasions a breach of communion, the person insisting upon it as a matter of religion is guilty of the schism. For the distinction being taken from things which are only of human authority and external to religion, ought not to be considered as a part of religion, nor to enter into the definition of a Church." 493 Manuel, RI, 65-6: "Papists were the very embodiment of the mystery of iniquity and their extermination was ordained. And the metaphysicians of all ages ranked closely behind them in sowing false conceptions of God." 494 Westfall, NR, 321: "Newton was not prepared to identify the established Church of England with pure apostolic Christianity. Accepting the broad outlines of the Protestant interpretation, he altered the meaning of the great apostasy to fit his new perception of Christianity. Over the years, Newton continually revised his interpretation, and with each revision made its thrust more obscure. In the version ultimately published, a melding together of two different manuscripts composed during his old age, a couple of references to the great apostasy appeared without anything that even hinted at the new meaning he attached to the phrase. Indeed, it is quite impossible to find any point to the rambling chronologies that compose Newton's published Observations upon the Prophecies. There is no similar problem with the manuscript of the 1670s. The great apostasy was trinitarianism." 495 Clarke, DC, 182-3: "there has always been Extant a sufficient Rule, to inable sincere Persons, in the midst of the greatest Disputes and Contentions, to distinguish the Doctrine which is of God from the Opinions of Men; the Doctrine of Christ having been plainly and fully delivered in our Saviour's own Discourses, and in the Writings of his immediate Followers the Apostles, who cannot with any Reason be imagined either to have misrepresented it, or to have represented it imperfectly." 496 Brewster, ML, II, Appendix XXIX, 19, 530-1: "After baptism we are to live according to the laws of God and the king, and to grow in grace and in knowledge of our Lord Jesus Christ, by practicing what they promised before baptism, and studying the Scriptures, and teaching one another in meekness and charity, without imposing their private opinions, or falling out about them." 497 Isaac Newton, Keynes, MS. 6 fol. 1r, RI, 28: "Religion and Philosophy are to be preserved distinct. We are not to introduce divine revelations into Philosophy, nor philosophical opinions into religion." Force chama a atenção, porém, para o facto de ser Newton a defender a compatibilidade da descrição moisaica da criação com a filosofia natural contra o que fora afirmado por Burnet, tendo claramente favorecido

287

Revelação; o que é parte de uma das mais importantes realizações de Newton, a da separação da filosofia experimental e matemática das outras áreas, nomeadamente teologia, alquimia e metafísica;498 não deixa de manifestar intenções religiosas nas suas obras fundamentais, não como algo lateral, mas como o fim fundamental da atividade científica.499 Os paralelos entre os domínios são, aliás, frequentes. O mesmo medo das disputas (porventura, neste caso, com maiores razões…) também o faz ser ainda mais reservado nas suas opiniões religiosas que no domínio da alquimia ou da filosofia.500 Essa mesma oposição às disputas legitima a opção pelo texto literal e condena a dedução a partir das Escrituras, como se fora um hypothesis non fingo da exegese bíblica que, tal como na ciência, acaba por fundamentar a certeza.501 Na verdade, estas declarações refletem bem mais o que Newton pensa que faz do que aquilo que, de facto, faz. Newton pensa que tudo extrai da experiência (neste caso, os textos proféticos e as ocorrências históricas), impondo-se a sua interpretação pela congruência, um pouco como as demonstrações matemáticas nos Principia.502 Até admite que possam existir diversas interpretações e que uma sentença possa ser ambígua, mas nunca no Apocalipse onde não existe qualquer ambiguidade! 503 Considera que nem seriam necessárias tais advertências porque as provas apresentadas são tão evidentes que terão o assentimento de qualquer espírito imparcial que acredite nas escrituras.504 Que as suas pretensões são de provar e de acabar com todas as discussões, como ocorreu na física, não poderia ser mais claro: "Por estes meios, a Linguagem dos Profetas tornar-se-á certa Whiston após a publicação da sua teoria concorrente com a de Burnet (Whiston, NT). Na própria Royal Society, já Halley, em 1994, havia apresentado uma teoria análoga, interpretando o Dilúvio como resultado do choque de um cometa. Cf. James E. Force, William Whiston – honest newtonian, New York, Cambridge University Press, 1985, pp. 49-53. Mais tarde, seguindo, aliás, a tendência geral dos newtonianos da época, Whiston defende claramente a comparação dos dois livros: William Whiston, Astronomical Principles of Religion, Natutal and Reveal'd, London, J. Senex and W. Taylor, 1717, Part VII, p. 133: "It cannot be now improper, to compare these two Divine Volumes, as I may well call them, together; in such Cases, I mean, of Revelation, as relate to the Natural World, and wherein we may be assisted the better to judge, by the Knowledge of the System of the Universe about us." 498 Cohen, "A Guide...", ch. 3, sec. 4, p. 59; sec. 5, PM, 61. 499 Newton, Optics, Query 28, OO, IV, 238: "Though every true step made in this philosophy bring us not immediately to the knowledge of the First Cause, yet it brings us nearer to it, and on that account is to be highly valued." 500 Manuel, RI, 12. O texto em causa, dirigido a Locke, terá sido publicado, pela primeira vez, em 1754, com base no texto que ficou na Holanda, surgindo também, com base noutro manuscrito, em Newton, An Historical Account..., OO, V, 495-550, visto a primeira impressão ter sido retirada a tempo. 501 Isaac Newton, Yahuda MS. 15. I, fol. 11r, RI, 54-5: "It is not enough to say that an article of faith may be deduced from scripture. It must be exprest in the very form of sound words in which it was delivered by the Apostles. Otherwise there can be no lasting fixity nor peace of the Church catholick. For men are apt to vary, dispute, and run into partings about deductions. All the old Heresies lay in deductions; the true faith was in the text." Da mesma forma, afirmava Whiston, antes da sua queda em desgraça: Whiston, NT, 65-6: "nothing will so much tend to the vindication and honour of reveal'd Religion, as free enquiries into, and a solid acquaintance with, (not ingenious and precarious Hypotheses, but) true and demonstrable principles of' Philosophy, with the History of Nature, and with such ancient Traditions as in all probability were deriv'd from Noah, and by him from the more Ancient Fathers of the World." 502 A recorrente metáfora da máquina (engin aqui), inclusive na polémica, ressurge aqui como forma de provar a verdade da interpretação: Newton, "Fragments from a Treatise on Revelation", RI, 121. 503 Ibidem: "Tis true that an Artificer may make an Engin capable of being with equal congruity set together more ways then one, and that a sentence may be ambiguous: but this Objection can have no place in the Apocalyps, becaus God who knew how to frame it without ambiguity intended it for a rule of faith." 504 Ibidem: "But it is needless to urge with this general reasoning the Construction which I have composed, since the reasons wherewith I have there proved every particular are of that evidence that they cannot but move the assent of any humble and indifferent person that shall with sufficient attention peruse them and cordially beleives the scriptures."

288

e a liberdade de a arrancar à imaginação privada será eliminada. Aos termos a que reduzo essas palavras, chamo Definições."505 Estas interpretações tão indubitavelmente certas, com base no inequívoco texto do Apocalipse e nas evidências empíricas, sem qualquer dedução, concluem, por exemplo, que a prostituta da Babilónia é o papado.506 Às evidências que suportavam os significados dados a setenta figuras, chamou a "Prova", cuja versão mais antiga pretendia demonstrar proposições como nos Principia.507 A esta convicção na certeza do seu método, com a regra da simplicidade na sua base, e o pressuposto de ser o eleito predestinado508 a dar a conhecer as leis de Deus, ainda se junta a ameaça de castigos divinos a quem puser em causa a sua interpretação. 509 Todas estas pretensões conferem alguma credibilidade à razão apresentada por Whiston para o corte final de relações por parte de Newton, o facto de o ter contraditado em matéria de interpretação profética, 510 contrariamente ao desejo "ortodoxo" de que tivesse ocorrido devido ao seu arianismo. Se fosse essa a razão, mesmo que só por ter tornado público esse arianismo, o corte teria de ser bem anterior. Além disso, se fosse essa a razão, como explicar a manutenção de relações com outros notórios heréticos?511 Tendo em conta as alusões teológicas e históricas nas suas duas obras mais importantes, e a pretensão da filosofia natural culminar na Primeira Causa, não parece haver grandes dúvidas que as Leis do Movimento eram entendidas como Leis de Deus, até porque eram dessa forma normalmente referidas na época. Mas o que mais claramente mostra a ausência de fronteiras é o facto de Newton utilizar o termo "leis da natureza" para os próprios mandamentos.512 Talvez a separação defendida visasse, antes de mais, proteger a religião das opiniões que, afinal, são igualmente atacadas na ciência ou filosofia experimental. Assim, talvez a conceção de Newton fosse a de que havia que preservar ambas as suas missões sagradas, até por talvez serem a mesma, da infeção corrosiva que representavam as disputas metafísicas.513 Juntamente com o papado, a que associa constantemente a metafísica, os metafísicos são considerados bem piores e mais irremediavelmente perdidos que os ateus.514 Todo o seu ataque às alegadas corrupções bíblicas parece ter estado centrado na introdução de conceitos metafísicos, 515 destruindo o verdadeiro sentido da Escritura que seria o moral.516 Numa das versões do prefácio não publicado dos Principia, fazendo lembrar a lendária história do Sultão e da biblioteca de Alexandria, Newton defende que a metafísica ou é religião, ou, mesmo que diga respeito às ações internas da nossa mente, é física, não havendo pois lugar para

505

Newton, "Fragments...", RI, 115: "By which means the Language of the Prophets will (appear) become certain and the liberty of wresting it to private imaginations be cut of. The heads to which I reduce these words I call Definitions." 506 Manuel, RI, 95. 507 Westfall, "Newton and Christianity", NW, 365. Depois, terá evoluído para posições. 508 Um dos "filhos da ressurreição": Manuel, RI, 100. 509 Newton, "Fragments...", RI, 114. 510 William Whiston, Memoirs of the Life and Writings of Mr. William Whiston..., London, Whiston and Bishop, 1749 [MW], p. 294. Ver nota 587. 511 Snobelen, NS, 248-9. 512 Manuel, RI, 56. 513 A começar pelos clássicos do pensamento metafísico, Platão e Aristóteles, que, alegadamente, teriam associado a falsa ciência com a falsa religião, iniciando o percurso de obscuridade continuado pela Escolástica, Manuel, RI, 42 – isto apesar de várias vezes serem citados, sobretudo Platão, como detentores de partes significativas da prisca sapientia. 514 Manuel, RI, 65-6. 515 Manuel, RI, 65. 516 Manuel, RI, 68.

289

ela.517 E o seu grande desígnio seria, porventura, o de restaurar a prisca sapientia e a prisca theologia através da restauração da figura do padre-cientista dos primórdios, especialmente consagrada, como ele, à astronomia e à química. 518 Aliás, Newton preferia considerar que não era o autor da teoria da gravitação, apenas a fazendo reviver através da força das demonstrações, para garantir a autoridade da Antiguidade, fazendo-a remontar aos Caldeus.519 Por fim, os paralelos entre a decifração dos livros das profecias e a do livro da natureza são constantes.520 Os dois livros concedidos por Deus, o da natureza e o da revelação, fornecem a base empírica inquestionável que só perversores podem querer arruinar com as suas hipóteses especulativas.521 A falsa ciência e a falsa religião, desde Platão e Aristóteles, passando pelos gnósticos e pela escolástica até o moderno racionalismo, são uma e a mesma.522 Da mesma forma, pode-se equiparar o seu método científico e o seu método hermenêutico, regido pelos princípios da indução, da simplicidade e da analogia da Natureza. 523 Na religião cristã, o efeito da falsa religião inspirada metafisicamente 517

Cohen, "A Guide...", ch. 3, sec. 2, PM, 54. Excecionalmente, tendo em conta o interesse, apesar da falta do texto original, apresenta-se a tradução de Cohen: "What is taught in metaphysics, if it is derived from divine revelation, is religion; if it is derived from phenomena through the five external senses, it pertains to physics ["ad Physicam pertinet"]; if it is derived from knowledge of internal actions of our mind through the sense of reflection, it is only philosophy about the human mind and its ideas as internal phenomena likewise pertain to physics." 518 Manuel, RI, 43. 519 Cohen, op. cit., PM, 53. 520 Manuel, RI, 88: "The meaning of prophecy was concealed, as were the laws of nature, that other book in which God had written a record of his actions; and Newton drew frequent parallels between unravelling the mysteries of the books of prophecy and discovering the secrets of the Book of Nature." Um dos paralelos mais insólitos (cf. Newton, Philosophiæ naturalis..., Def, VIII, Scholium, OO, II, 11, utilizando "sacris literis" para se referir às realidades naturais; ver IV. 5, nota 171) já parecia tão estranho a Cajori (ou a Crawford) que sentiu a necessidade de alterar totalmente o texto: vide Cohen, op. cit., ch. 2, sec. 3, PM, 35-6. 521 Esta é a linguagem utilizada pelo próprio Clarke a propósito da teologia trinitária: Clarke, ST, 243: "What the proper Metaphysical Nature, Essence, or Substance of any of these divine Persons is, the Scripture has no where at all declared; but describes and distinguishes them always, by their Personal Characters, Offices, Powers and Attributes. [...] All Reasonings therefore, deduced from their supposed metaphysical Nature, Essence, or Substance, instead of their Personal Characters, Offices, Powers and Attributes delivered in Scripture; are but Philosophical and probable Hypotheses." Tal qual como rejeita as hipóteses especulativas da mesma forma que na filosofia natural, também defende a mesma suspensão de juízo relativa às causas ou aos modos como teve origem determinado processo confirmado pela experiência, neste caso a Escritura, sem, porém, fornecer dados acerca desses modos e dessas causas: Clarke, ST, 272: "In what particular Metaphysical Manner, the Son derives his Being or Essence from the Father, the Scripture has no where distinctly declared; and therefore men ought not to presume to be able to define." O mesmo quanto ao Espírito Santo: Clarke, ST, 290. Há, porém, a diferença de nem se admitir a possibilidade de se vir a explicar, um pouco como Cotes aborda a gravidade. 522 Manuel, RI, 42: "Newton's sketch of the period of Plato and Aristotle and that of the medieval schoolmen makes of them two comparable dark ages, when false religion was bound up with false science." 523 Snobelen, NS, 274: "it is worth noting that some of Newton’s scriptural interpretative principles find striking analogies in his natural philosophical method. Newton’s four “Rules of reasoning in philosophy”, published in the Principia, provide some examples. An affirmation of the unity of phenomena in the natural world and the inference of universal principles from specifics can be found in Rules II and III. The Scottish mathematician David Gregory records a variant of this method he obtained from Newton: "The best way of overcoming a difficult Probleme is to solve it in some particular easy cases. This gives much light into the general solution. By this way Sir Isaac Newton says he overcame the most difficult things." This principle is similar to Newton’s hermeneutic in which the meaning of difficult texts is induced from those that are apparent. The simplicity reflex can also be seen in Newton’s study of nature, declaring in Rules I and III that “Nature is pleased with simplicity” and “wont to be simple”. Finally, Newton’s aversion to the use of vain hypotheses in natural philosophy compares well with his opposition to the

290

traduziu-se na teoria das emanações, misturada, além disso, com conceções idolátricas e pagãs. 524 É improvável que Newton conhecesse a linguagem por vezes utilizada por Leibniz das emanações525 ou das fulgurações,526 mas isso apenas comprovaria a visão que tinha do autor. Para Newton, como para Pascal, diz Koyré, o Deus dos filósofos, ou melhor, dos metafísicos, não é o Deus da fé. 527 A simples religião primitiva era acessível à mais limitada das pessoas e foi pervertida por gente como Atanásio e Leibniz 528 cuja metafísica procura tutelar a teologia e, depois, justifica a sua incompreensibilidade com os mistérios acima da razão. Com exceção dos livros proféticos, a religião bíblica seria de teor meramente moral e foram esses perversores que a transformaram em metafísica.529 Embora os newtonianos pareçam relativizar os rituais, a adoração externa de Deus parece um elemento fundamental evidente, embora não se perceba porquê, para a própria Luz Natural.530 Mas a própria adoração parece ser compreendida de forma moral531 e o próprio objeto de adoração é prático,532 sendo o corruption of Scripture with metaphysics and philosophy." Não deixa de ser curioso o recurso a queries em tudo análogas às da Ótica quer no domínio histórico (Brewster, ML, II, Chap. XXIV, 342-6), quer no domínio teológico (Brewster, ML, II, Appendix XXX, 532-4). 524 Manuel, RI, 69: "Newton's Cabbalists, Platonists, and Gnostics had a single false doctrine in common, which they infused into Christian theology at the time of their conversion. This was the theory of emanation, according to which lesser spiritual beings derived from God and were of His substance, but were not an act of creation of His divine Will. «The Gnosticks after the manner of the Platonists and Cabbalists considered the thoughts or Ideas or intellectual objects seated in Gods mind as real Beings or substances, and supposed them to be male and female and to generate by emission of Substance as animals generate or as the heathens supposed their Gods to generate and thence accounted them consubstantial.» [Yahuda MS. 15. 7, fol. 108v.]" 525 God. Guil. Leibnitii, ed. Joannes Eduardus Erdmann, Opera Philosophica quae exstant latina gallica germanica Omnia, Berolini, Sumtibus G. Eichleri, 1840, Remarques sur le sentiment du P. Malebranche, p. 452, col. b: "Dieu nous donne tout ce qu'il y a de positif en cela et toute perfection y enveloppée par une émanation immédiate et continuelle en vertu de la dépendance, que toutes les créatures ont de lui". Mais conhecida é esta passagem já do Discurso de Metafísica: Leibniz, DM, XIV, 46 (cf. G, IV, 439): "les substances créées dependent de Dieu qui les conserve et même qui les produit continuellement par une maniere d'emanation comme nous produisons nos pensées." 526 Leibniz, Monadologie, § 47, G, VI, 614: "Dieu seul est l'Unité primitive, ou la substance simple originaire, dont toutes les Monades creées ou derivatives sont des productions, et naissent, pour ainsi dire, par des Fulgurations continuelles de la Divinité de moment à moment, bornées par la receptivité de la creature, à laquelle il est essentiel d'être limitée." 527 Koyré, EN, "Newton et Descartes", 154. 528 Westfall, NR, 822-3: "The primitive religion, easily understood by the meanest of people, was handed down in simplicity "untill men skilled in the learning of heathens Cabbalists & Schoolmen corrupted it with metaphysicks, straining the scriptures from a moral to a metaphysical sence & thereby making it unintelligible." [Yahuda MS 15.5, f. 97v] To cap his other crimes, Leibniz repeated the intellectual stance of the archfiend Athanasius." 529 Manuel, RI, 72: "Newton charged the Platonists with having bestowed esoteric meanings upon plain scriptural names for Christ that were readily understood, such as 'Lamb of God', 'Son of Man', 'Son of God'. In his church history he exclaimed in high dudgeon, «What all this has to do with Platonism or Metaphysicks I do not understand.... The Scriptures were given to teach men not metaphysics but morals.» [Yahuda MS. 15.7, fol. 190r]" 530 Clarke, DC, 140: "That God ought to be worshiped is, in the general, as evident and plain from the Light of Nature, as any Thing can be: But in what particular Manner, and with what Kind of Service he will be worshipped, cannot be certainly discovered by bare Reason. Obedience to the obligations of Nature, and Imitation of the Moral Attributes of God, the wisest Philosophers easily knew, was undoubtedly the most acceptable Service to God. But some external Adoration seemed also to be necessary; and, how this was to be performed, they could not with any Certainty discover." 531 Clarke, DC, 100: "though we were indeed absolutely obliged in Duty to honour him in this Manner, notwithstanding that there had been no Reward to be expected thereupon; yet 'tis necessary, in the Government of the World, and well-becoming an infinitely wise and good Governor, that those who Honour Him he should Honour; that is, should distinguish them with suitable Marks of his Favour." 532 Westfall, NR, 354-5: "Newton declared that God prefers to be worshiped, not for the necessary aspects

291

sentido da adoração, como diz o Escólio Geral, mostrar-nos como servos do Senhor.533 Também aqui é notória a diferença relativamente a Leibniz, visto as orações nada alterarem ao que está predeterminado. 534 Trata-se, de facto, de uma religião de obediência aos mandamentos, 535 mas não uma religião sem amor ou perdão, como afirma Manuel 536 , tal como se pode ver em diversas passagens porventura pouco adequadas para as tendências psicanalíticas deste comentador.537 Regressando à temática da religião natural, a razão por que, em Clarke, a razão se confundia com os objetos de fé, ao contrário do que acontecia com Leibniz, está diretamente ligada com a conceção newtoniana de razão, uma razão ancorada na e limitada pela experiência, experiência que, no caso da revelação, como já foi visto, é entendida quer por Leibniz, quer por Clarke, como sendo constituída pela mensagem das Escrituras. A autoridade indiscutível e literal concedida pelos newtonianos às Escrituras originais538 mostra, como já se viu em VI. 2, que não está em causa qualquer perspetiva deísta.539 É verdade que os newtonianos, seguindo o próprio Newton, não of His being, such as His omniscience and omnipotence, but for what he has done: «y e wisest of beings requires of us to be celebrated not so much for his essence as for his actions, the creating preserving & governing all things according to his good will & pleasure. The wisdome power goodness & justice w ch he always exerts in his actions are his glory wch he stands so much upon, & is so jealous of.» [Yahuda MS 21, f. 2.]" 533 Newton, Philosophiæ naturalis..., Liber tertius, OO, III, 173: "Colimus enim et servi". 534 Leibniz, Essais de Théodicée, 2ª parte, § 120, G, VI, 174: "l'importunité des prieres ne fait rien aupres de Dieu ; il sait mieux que nous ce qu'il nous faut, et il n'accorde que ce qui convient au tout." 535 Manuel, RI, 15-6. 536 Manuel, RI, 22-3: "Newton could not establish relations with his God through a feeling of His love, either directly or through an intermediary. Neither love, nor grace, nor mercy plays an important role in Newton's religious writings. Only two paths are open to him in his search for knowledge of the will of God as Master: the study of His actions in the physical world, His creations, and the study of the verbal record of His commandments in Scripture, both of which have an objective historical existence." 537 E. g. Newton, Keynes MS 3, p. 36, NS, 263: "For a man to forgive his enemies even without satisfaction is no injustice. It's an act of mercy & more commendable then to forgive our Enemies upon satisfaction made. Its our duty to do so a dut & God has commended us to do if we expect to have our sins forgiven. And what wch is an act of mercy, a duty a meritorious act in us cannot be injustice in God." 538 É o primeiro postulado de Whiston: Whiston, NT, "A Discourse concerning the Nature, Stile, and Extent of the Mosaick History", Postulata, 95: "The Obvious or Literal Sense of Scripture is the True and Real one, where no evident Reason can be given to the contrary." 539 Richard Popkin admite algumas reservas, devido ao alegado arianismo de Newton, mas acaba por reconhecer que o próprio arianismo original tinha como referência aquilo que considerava a verdadeira mensagem do Novo Testamento: Popkin, EC, 31: "Newton expressed himself as a theist who devoutly believed in a world created and dominated by the all-powerful Deity in which Jesus, the Lamb of God and a human being, played an important, even essential, role in God's relationship to men. Jesus, for Newton, provided the epistemological guarantee of the correctness of the text of the Book of Revelation. (It should be noted that Arianism, from its initial formulation by Arius, [...] down to its 17th. century versions was always presented by Arians as the actual Christian message of the New Testament, as "true" Christianity, and not as a demythologized version amouting to deism. The Arians held Christian church services and that Jesus had a special place in Divine and human history.)" Veja-se a este propósito a reação de Whiston a tentativas de interpretação deísta (uma religião natural sem recurso à revelação) do argumento newtoniano do desígnio: William Whiston, Astronomical Principles of Religion, Natural and reveal'd, London, J. Senex, W. Taylor, 1717: "he who will now be an Atheist, must be an absolute Ignoramus in Natural Knowledge; must neither understand the Principles either of Physicks or Astronomy. Let us consider farther, that as to Deism, or the Denial of the Scriptures, and of Divine Revelation, it is really Ill Mens last Refuge, and taken up of late, not by honest Enquirers, impartially searching after Truth, and discovering upon Evidence, that all Revealed Religion is false; but that it is chiefly fallen into of late, by some Irreligious Persons, in the Distress of their Affairs, and upon that surprizing and overbearing Light, which Sir Isaac Newton 's wonderful Discoveries have afforded; whereby they have perceiv'd that Natural Religion, with its Foundations, were now become too certain to bear any farther Opposition. That this is

292

confiam nas Escrituras atuais, mas apenas porque pretendem provar, por recurso às mais antigas fontes, a sua corrupção. Essa corrupção autoriza, aliás, o recurso a outras fontes, incluindo textos pagãos (eventualmente deístas no único sentido verdadeiramente admitido por Clarke como tal) e a própria filosofia natural,540 muito embora Newton tenha acabado por ficar convencido que a história judia era a mais antiga e a mais precisa, apesar de todas as corrupções, o que evidenciava, por si só, o desígnio divino.541 Porém, o objetivo é apenas o de fixar os dados daquilo que os newtonianos entendiam, neste caso, por experiência, a história sagrada. Esta redução à ordem empírica é também mais declarada que real por não resultar tanto de uma estrita visão epistemológica, mas mais de uma conceção teológica, de subordinação à vontade de Deus, intimamente ligada à conceção da sua liberdade.542 Não são, de novo, diversas as true, I appeal to a certain Club of Persons, not over-religiously dispos'd, who being soberly asked, after Dr. Bentley's remarkable Sermons at Mr. Boyles's Lectures, built upon Sir Isaac Newton's Discoveries, and level'd against the prevailing Atheism of the Age, What they had to say in their own Vindication against the Evidence produc'd by Dr. Bentley? The Answer was, That truly they did not well know what to say against it, upon the Head of Atheism: But what, say they, is this, to the Fable of Jesus Christ? And in Confirmation of this Account, it may, I believe, be justly observ'd, that the present gross Deism, or the Opposition that has of late so evidently and barefacedly appear'd against Divine Revelation, and the Holy Scriptures, has taken its Date in some Measure from that Time." Apesar de nada chegar a concluir neste trecho, o estilo é elucidativo da rejeição dessa abordagem deísta. Para apresentar toda essa rejeição, seria necessário uma citação bem mais longa. 540 Force, EC, 58: "Newton, and, later, Whiston, utilize whatever they judge to be the best evidence available - the design argument of natural religion, fulfilled historical prophecies, profane histories - and wrest from them the truth about the nature of God and about man's duty toward God." 541 Popkin, EC, 111-2: "Through careful research and evaluation, one could work out an acceptable text of the Old Testament. With regard to the New Testament, Newton insisted the text had to be rescued from the Trinitarians and restored to its pristine doctrine according to which Jesus was the Lamb of God, but was not co-substantial. Because Newton, unlike Spinoza, was convinced that the essential prophetic message of the Bible survived in the texts of Daniel and Revelation, he did not become a sceptic about religious knowledge. Newton, on the other hand, with Spinoza, thought that much of the Old Testament could be studied as an early historical document and could be evaluated in terms of our other historical data. In this way its accuracy could be determined. [...] Newton, using astronomical discoveries, constructed a chronology based upon the positions of the stars described in scripture and in other ancient writings[...]. Using his astronomical method of dating, Newton came to the conclusion that the Bible was historically accurate and was the oldest historical record that we have. Scriptural history is more accurate than Greek, Phoenician, Babylonian, or Egyptian records. The earliest chronologists, Manetho and Eratosthenes, contradicted both scripture and 17th-century astronomy. In view of the fact that we do not have any records older than the Bible, there are good reasons to question the claims to great antiquity in some of the early pagan authors. We should begin, Newton said, where we can have reasonable confidence in the available data. This, he thought, involved accepting the history and chronology in the Bible up to the books of Ezra and Nehemiah, as well as accepting the astronomical records mentioned by Thucydides and Ptolemy. From the description of the stars in the constellations in the zodiac presented in accounts of the mission of Jason and the Argonauts and the events in the Trojan War, we could calculate when these events took place. The procession of various stars in these constellations was measurable and followed a uniform law. From present observations, we could calculate backward to where these stars were historically described as being and date when the stars were in the positions described in early Greek history. [...] our earliest historical knowledge came from the Bible. The ancient Israelites were the first civilization and had the first monarchy. All other cultures and kingdoms, Newton declared, were derivative from the original Hebrew one. Newton's elaborate astronomical argument and his debunking of pagan chronological and historical claims aimed to show that the Bible was accurate as history, no matter how corrupted the text had become over the years. And, assumed Newton, the message in the Bible was still of the greatest importance to mankind. The fact that the Bible was accurate historically meant that God had presented His message from the very beginning of the world through the history of the Hebrews and through the prophetic insights given to them" 542 Force, EC, 78: "I maintain that Newton's God of Dominion is the key to understanding how he finally integrates his world and his theories in whatever field into a synthetic unity of a startling coherence. I do not claim that this voluntaristic theory of the nature of God develops first in any historical sense[...]. I

293

restrições no âmbito da investigação natural e no âmbito da investigação bíblica, nomeadamente, a profética. Na própria investigação natural, a exigência empírica advém, como foi visto em IV. 7 e 8 e, de forma mais genérica, em VI. 2, da possibilidade da própria ordem do mundo mudar, no tempo e/ou no espaço.543 O poder absoluto de Deus tudo mudar impede quaisquer conclusões que excedam os limites da experiência. 544 Mas o constante ataque dos newtonianos aos romances filosóficos, físicos ou geológicos,545 estes últimos até tendo dado origem a uma dissensão entre os claim only that Newton's view concerning God's dominion - a theory in which Newton emphasizes God's totally free will in conjunction with his absolute power - finally becomes the common denominator in all his intellectual work of whatever shade or hue and so provides the key to understanding the systematic unity and coherence of all of his thought. It doesn't matter whether Newton's science or his mathematics precede, in any temporal sense, his theory of the nature of God. Once he comes to that metaphysical view - and he comes to it quite early - it provides the background for all his other work and provides the key to seeing how Newton's true genius is greater in the aggregate whole than it is in any of its refracted parts." 543 Newton, Optics, Query 31, OO, IV, 263, ver IV. 8, nota 288; Force, EC, 88-9: "While mathematically necessary descriptions will hold as "universally" true, for the most part, owing to the ordinary concourse of God's dominion, ultimately God suffers no restraint upon his absolute will and power. Because God is so powerful that he can alter the course of nature at will, scientific knowledge of nature must necessarily be based upon repeated empirical observations just because we humans do not know when or where he might exercise his specially provident power of miraculous will and suspend or reverse what we have been pleased to call the "laws" of nature generally operative in this creation until now. Our knowledge of whether scientific "laws" of nature imposed by the Lord God of Dominion at the time of creation will continue to be "laws" in the future, and to express then the same relationships previously discovered to hold between forces, can ultimately be only very highly probable owing to the contingent aspect of our knowledge of nature which results from Newton's conception of the unlimited power and will of the Lord God of Dominion. Newton's experimentalism is inextricable from his theology and his voluntaristic metaphysics because of the contingency which it introduces into human knowledge of nature." 544 Force, EC, 90: "The contingent nature of our knowledge, which is the direct result of the nature of God's power and will to change the ordinary concourse of events, results for Newton and the Newtonians in a characteristic note of caution in both theological speculations about future prophecies and scientific "predictions" about the course of future events. [...] The contingent feature which God's will and power introduce into what humans may know about the fabric of God's creation limits human knowledge of the natural laws ordinarily governing mechanical causes to probabilistic inductions based upon repeated observations." 545 Naturalmente, os newtonianos não conheciam a Protogaea de Leibniz, só publicada após a sua morte, mas reagiram a um outro "romance" geológico onde, por sinal, Thomas Burnet avança com uma conceção de Providência quase idêntica, não apenas no seu conteúdo, mas também nos seus exemplos, à apresentada por Leibniz na correspondência com Clarke, através da metáfora do relógio e do seu criador. A única diferença é a inclusão das conceções milenaristas: Thomas Burnet, The Theory of the Earth, 3rd. ed., London, Walter Kettilby, 1697, pp. 72-73: "such a disposition or establishment of second causes, as will in the best order, and for a long succession, produce the most regular effects, assisted only with the ordinary concourse of the first cause, is a greater argument of wisdom and contrivance, than such a disposition of causes as will not in so good an order, or for so long a time produce regular effects, without an extraordinary concourse and interposition of the First cause. This, I think, is clear to every man's judgment. We think him a better Artist that makes a Clock that strikes regularly at every hour from the Springs and Wheels which he puts in the work, than he that hath so made his Clock that he must put his singer to it every hour to make it strike: And if one should contrive a piece of Clock-work so that it should beat all the hours, and make all its motions regularly for such a time, and that time being come, upon a signal given, or a Spring toucht, it should of its own accord fall all to pieces; would not this be look'd upon as a piece of greater Art, than if the Workman came at that time prefixt, and with a great Hammer beat it into pieces? I use these comparisons to convince us, that it is no detraction from Divine Providence, that the course of Nature is exact and regular, and that even in its greatest changes and revolutions it should still conspire and be prepar'd to answer the ends and purposes of the Divine Will in reference to the Moral World. This seems to me to be the great Art of Divine Providence, so to adjust the two Worlds, Humane and Natural, Material and Intellectual, as seeing thorough the possibilities and futuritions of each, according to the first state and circumstances he puts them under, they should all along correspond and fit one another, and especially in their great Crises and Periods." Este é, aliás, um correspondente de Leibniz (G, III, 148-329) através do qual, por exemplo, Leibniz fez chegar as suas

294

newtonianos,546 não visa apenas defender a ciência, mas sobretudo o relato bíblico e a primeiras impressões acerca dos seus Ensaios a Locke. Aliás, mesmo a diferença referida só ocorre se se tiver como referência a polémica com Clarke, visto existirem passagens de Leibniz que incluem, nesta conceção, as convulsões milenaristas. Veja-se, por exemplo, Leibniz, La Monadologie, § 88, G, VI, 622: "Cette Harmonie fait que les choses conduisent à la grace par les voyes mêmes de la nature, et que ce globe par exemple doit être détruit et reparé par les voyes naturelles dans les momens, que le demande le gouvernement des Esprits pour le chatiment des uns et la recompense des autres." Logo no início do seu próprio "romance", Whiston estabelece a sua específica diferença tomando como referência Burnet, de um lado, como exemplo de uma perspetiva deísta, e a comum, vulgar e pouco racional exposição literal, do outro, tentando compatibilizar o relato bíblico com as teorias e dados científicos. O parágrafo inicial do seu "Discurso" preliminar é tão esclarecedor da posição newtoniana que vale a pena a citação integral, apesar da sua extensão: Whiston, NT, "A Discourse...", 1-3: "It being no inconsiderable part of the ensuing Theory, to account for the Creation of the World, agreeably to the description thereof in the Book of Genesis, it cannot but be very necessary in this place, to discourse of the nature of that Sacred History, the Stile in which it is Writ, and how far it is to be Extended. The misunderstanding of which points has been, I think, the principal occasion of those perplexities and contrarieties into which Men have run with relation to it; while Some have adher'd to the common and vulgar, tho' less rational Exposition; without any consideration of Nature, Reason, Philosophy, or just Decorum in the several parts of it: And Others, on the contrary, have been so sensible of the wildness and unreasonableness of That, that they have ventur'd to exclude it from any just sense at all; Asserting it to be a meer Popular, Parabolick, or Mythological relation; in which the plain Letter is no more to be accounted for or believ'd, than the fabulous repreſentations of Æsop, or at best than the mystical Parables of our Saviour. Of what mischievous consequence this latter is commonly esteem'd, I need not say; a late excellent Author (Dr. T. Burnet's Theory oh the Earth. and Archæologia.), who thought it absolutely necessary to be introduc'd, having felt reflections sufficiently severe, and seen effects sufficiently mischievous of such Interpretation. And how unworthy of God, how incoherent and absurd the former Exposition is in it self, and must be esteem'd by free and inquisitive Thinkers, 'tis not difficult to make appear to any impartial Man, and shall in this Discourse be particularly attempted. Indeed I cannot but imagine that, As those who plead for the Mythological sense, do it only because they suppose it impossible to give a commodious and rational scheme of it on any other Hypothesis; and therefore will easily and readily embrace any more literal Interpretation which shall agree to the Divine Attributes, the Reason of their own Minds, and the true System of the World; So I think those who, notwithstanding its apparent incongruities, adhere to the vulgar Exposition, will have great reason to encourage, and rest satisfy'd in such an account, as shall at once keep sufficiently close to the Letter of Moses, and yet be far from allowing what contradict's the Divine Wisdom, Common Reason, or Philosophick Deductions: to both which therefore, I persuade my self this new attempt ought not to be unacceptable." 546 O mesmo John Keill que iniciou, formalmente, a polémica do cálculo, não só ataca a tendência a tudo explicar mecanicisticamente em Thomas Burnet, mas acrescenta críticas análogas à própria explicação de Whiston, exatamente por defender a intervenção divina através de milagres: Jo. Keill, An Examination of Dr. Burnet's Theory of the Earth. Together with some remarks on Mr. Whiston's New Theory of the Earth, Oxford, Theater, 1698, e.g., pp. 19-20: "But of all Philosophers, those have done Religion the least service, who have not only asserted, that the world was made by the laws of Mechanism, without the extraordinary concurrence of the Divine power, but also that all the great changes which have happened to it, such as the Deluge, and other great effects dilivered to us as miracles by the sacred writers, were the necessary consequences of natural causes, which they pretend to account for. These contrivers of Deluges, have furnished the Atheist with an Argument, which upon their supposition is not so easily answer'd as their Theories are made." E apresenta, em seguida, o argumento ateu. E conclui, ibidem, p. 33: "our holy Faith stands so well confirmed by real miracles, that we are neither to make nor admit of any false ones, yet certainly we are not to detract from the value of the true ones, by pretending to deduce them from Natural and Mechanical causes, when they are no ways explicable by them." Estas palavras não são especialmente dedicadas a Whiston, mas, na 2ª edição, Keill já responde a Whiston: J. Keill, An Examination of Dr. Burnet's Theory of the Earth: with some remarks on Mr. Whiston's New Theory of the Earth. Also An Examination of the Reflections of the Theory of the Earth; and a Defence of the Remarks on Mr. Whiston's New Theory, 2nd. ed, Oxford, H. Clemens, London, S. Harding, pp. 313-314: "Mr. Whiston says, that I am deeply engag'd against his design, thro' a peculiar fondness I seem to have for unaccountable Miracles. If I had a mind to criticise upon words, I would ask him what he means by unaccountable Miracles, and whether there be any that can be accounted for, since it is the common opinion, that what can be accounted for by natural causes, is no Miracle. However, I know no Miracles I am fond of, save those mention'd in Scripture; and at present I am only engag'd in the Defence of two of

295

insondabilidade dos desígnios divinos. 547 Após alguns entusiasmos de juventude e apesar da extrema importância dada por Newton aos textos proféticos, a posição madura de Newton é a da impossibilidade de previsão concreta dos factos profetizados, defendendo que as profecias não serviriam para prever mas sim para demonstrar o desígnio de Deus após os factos.548 Já se viu que quer entre os newtonianos,549 quer em Leibniz, 550 havia uma enorme relutância em aceitar milagres atuais. Porém, como them, viz. The Creation and the Deluge, and a fondness for them seems not to be peculiar to me; since till this Age of World-makers, Christians have always thought them such works, as could never be produced by the Laws of Nature and Mechanism." Resta saber qual é que melhor expressará a posição newtoniana, Whiston ou Keill. O assunto é abordado por James Force em Force, EC, 159-60. Porém, a aparente restrição de Keill aos milagres da Escritura mostra que não deveria haver uma discrepância tão significativa entre as posições, correspondendo, ambos, em geral, à posição newtoniana. 547 Paolo Rossi, La Nascita della Scienza Moderna in Europa, Roma-Bari, Editori Laterza, 19973 [SM], p. 271: "Le grandi cosmologie cartesiane degli anni Novanta vengono degradate da Keill (e da moltri altri newtoniani) a opere di fantascienza. Contro di esse ci si richiama al valore della scienza newtoniana, alla certezza delle sue leggi, al rigore delle sue definizioni. Dietro la polemica dei seguaci di Newton contro le romanzesche ipotesi dei world makers e dietro il richiamo alla grande fisica di Newton operano in realtà tre massicci presupposti che vengono di principio sottratti a ogni possibile discussione: 1) la storia della Terra e del cosmo non è per intero spiegabile sul terreno della filosofia naturale e in quella storia sono operanti alcuni eventi miracolosi; 2) la verità del racconto biblico non può essere messa in dubio; 3) è necessario riconoscere la presenza, in natura, delle cause finali e l'assunzione di un punto di vista antropomorfico è, anche in sede di fisica, del tutto legittima." 548 Newton, Observations..., OO, V, 449, ver VI. 3, nota 94. A propósito desta passagem, Force aborda-a com dois objetivos complementares: Force, EC, 59-60: "As for the arrogance of the deists, with their smug assurance that human reason is the measure of all things, including God, Newton constantly warns against feigning hypotheses and urges instead a cautious empiricism through which he recognizes the power of God to effect changes even in created natural law. Newton's epistemological caution is legendary. It is reflected in his advice to interpreters of prophecy not to attempt to necessitate God almighty by predicting in advance when or how God will choose to fulfill his prophetic promises." Force, EC, 113: "Newton differed from many of those who had worked on the interpretation of prophecies in denying that we could or should figure out exactly when the climactic events in world history would occur, when Jesus would return, when the Jews would return to Palestine and rebuild Jerusalem, etc. Newton, in a famous passage, declared that God had not intended people to be prophets. What people could do was recognize after the fact that events which had occurred were in fact those previously predicted in the prophecies. This post facto reading of history would demonstrate that the course of historical events was divinely providential. God had laid out the whole sequence. We, in studying history, could realize that this was the case as we recognized that each major event which happened had already been forecast in the prophetic writings. When we realized this, we should be in awe of God's dominion over our history, as well as over nature, and we should realize that, in studying the scriptural text, we were also learning what events remained to be fulfilled before the end of human and natural history." 549 Veja-se como Newton só dá crédito aos ocorridos na Idade Antiga, identificando uma das figuras do séc. III como uma das últimas a ter essa dádiva: Newton, Carta para Locke de 16 de Fevereiro de 1691/92, CN, III, 195: "Miracles of good credit continued in the Church for about two or three hundred years. Gregorius Thaumaturgus had his name from thence & was one of ye latest who was eminent for that guift." Também Whiston partilhava desta tese: cf. Force, EC, 100. 550 Poder-se-á, aliás, questionar se na total harmonia entre o reino da natureza e o da graça, eles serão sequer possíveis. Gregory Brown, "Miracles in the Best of All Possible Worlds: Leibniz's Dilemma and Leibniz's Razor" in History of Philosophy Quarterly, University of Illinois Press, 1995 1, Vol. 12, Nº. 1, pp. 26-27: "in choosing the best of all possible worlds, God would choose rules to govern the kingdom of nature that would be consonant with the rules that govern the dispensation of grace. But we should now note that it must follow from what Leibniz says in the passage from the Monadology [passagem citada na nota 545] and the last one quoted above from the letter to Caroline [carta inicial da polémica com Clarke] that there are no miracles at all. For if, as the latter passage argues, there is a true harmony between "the physical kingdom of nature" and "the moral kinsdom of grace", so that "things lead to grace by means of the very ways of nature", then the kingdom of grace cannot be left wanting by the kingdom of nature. So if, as the former passage argues, all miracles are done "to supply the wants... of grace", whence the need for miracles?" Quanto às precauções de Leibniz quanto à possibilidade de milagres atuais, poderão advir, antes de mais, dos seus desejos de compatibilização com os católicos.

296

Newton e os newtonianos se mostram favoráveis a uma conceção de Providência que implica a constante presença e intervenção histórica de Deus, haveria que questionar por que se mostram tão adversos a milagres no sentido de intervenções divinas extraordinárias. A questão é que os newtonianos consideravam que aquilo que mostrava a Providência divina especial (por oposição a uma geral como a leibniziana ou como o argumento newtoniano naturalista do desígnio) seria o cumprimento das profecias e não os milagres.551 Este seria mesmo o método favorito de Newton para mostrar o domínio providencial de Deus, superior à demonstração da ordenação astronómica universal ou à organização dos seres vivos. 552 Muito embora tal domínio profético requeresse a predestinação,553 a inacessibilidade do desígnio divino salvaguardava, mais uma vez, a liberdade divina do juízo humano, ao passo que as provas históricas das profecias provavam o seu domínio constante da criação, em geral, e dos homens, em particular, através de uma Providência a que os homens se deveriam subordinar. Naturalmente, esta proteção da liberdade divina pela contingência do nosso conhecimento tem a particularidade de que os newtonianos não pareciam ter consciência, de não garantir que a ação divina não fosse, em relação à própria essência e natureza divinas, necessária.554 551

Force, EC, 147: "Newton always attempts to preserve both the mathematically astute, generally provident mechanic of the design argument with the specially provident God who daily exercises dominion over His created servants down to the last sparrow's last flight. For Newton, God's dominion exhibited in acts of both general and special providence – is as unlimited as his power. In the system of theism worked out by some of Newton's followers, God usually displays his specially provident power of dominion through fulfilled Biblical prophecies and, only occasionally, through miracles." Force, EC, 150: "Fulfilled prophetic predictions tidily demonstrate the messiahship of Christ and also reveal, once and for all, the hand of a specially provident deity continuously active in His creation. At the same time, fulfilled prophecies seem to avoid the dilemma of how it is possible for the generally provident order of natural law to be suspended in a specially provident miraculous act while simultaneously avoiding the problem of spurious miracles. Locke, Newton, and Newton's successor at Cambridge, William Whiston, use the many instances of apparently fulfilled prophetic predictions recorded in the Bible to supplement the design argument of natural religion, to round it out, and to draw from the total package the special, as well as the general, providence of God. Properly "Newtonian" theology is always the design argument in conjunction with the argument from prophecy. Together, both illustrate God's total dominion - both general and special." 552 Force, EC, 81: "the most important aspect of the prophetic prediction of events to come and the cataloging of the historical fulfillment of them is that it is Newton's favorite method for demonstrating God's providential dominion." E Force chega mesmo a supor que o argumento referido por Newton a Bentley e deixado em suspenso é o argumento profético. Cf. Newton, Letter I to Dr. Bentley, 10 de Dezembro de 1692, OO, IV, 433: "There is yet another argument for a Deity, which I take to be a very strong one; but till the principles on which it is grounded are better received, I think it more adviseable to let it sleep." 553 Force, EC, 131: "Newton's voluntaristic theory about God's dominion and power, exercised through his infinite will, influenced his theory concerning predestinarianism. Human beings were as much the vassals of their divine liege as Jesus and so were equally under his sovereign dominion." 554 Acaba por ser sensivelmente o mesmo problema que em Leibniz, embora seja muito menos evidente nos newtonianos, visto estes fazerem questão de ocultar o problema com os limites da experiência humana, incapaz de penetrar, mesmo genericamente, nos insondáveis desígnios divinos. Talvez seja por isso que mesmo os melhores comentadores não pareçam se dar conta desta falha argumentativa: Force, EC, 89: "Newton's universe is in one sense necessary and in another contingent. For God, the universe is always necessarily dependent upon his will. As the generally provident author of the physical laws which ordinarily govern motion in the current structure of the material realm or as the specially provident interventionist, Newton's God rules on earth and in heaven. But the absolute nature of God's dominion over creation makes human knowledge of the usually lawful structure of the material world necessarily contingent upon the will of God. Human knowledge is contingent upon whether God is exercising his will through the ordinary concourse of nature (as has ordinarily been the case in the past) or through the very rare instances of an extraordinary direct interposition of his will. Mathematically demonstrable laws of nature which apply to a great many observed phenomena are "necessary" only while God sustains and preserves them in their ordinary concourse." Porém, a contingência do nosso conhecimento não torna

297

A questão do caráter herético das doutrinas newtonianas interessa muito pouco, em si própria, a esta dissertação. Mas a reação religiosa à atribuição de tais teses a Newton mostra que a teologia e a ciência não são assim tão separáveis como se julga. Imediatamente após a atribuição por Whiston de teses antitrinitárias a Newton,555 um imenso rol de autores negou que o grande Sir Isaac Newton pudesse ter teses não ortodoxas, seja lá o que isso for, tendo em conta a facilidade com que, na própria época, a ortodoxia de um é alvo da acusação de heterodoxia por outro. Mesmo quando se tentou negar as corrupções da Escritura identificadas por Newton, fazia-se questão de negar qualquer heterodoxia ao cada vez mais divinizado Newton. 556 Mesmo após as incertezas de juízo de Brewster557 e as redescobertas do séc. XX, mesmo após todo o trabalho erudito realizado na análise dos manuscritos teológicos, continuam a aparecer teses, mais ou menos elaboradas, cujo objetivo único é o de mostrar que o grande Isaac Newton se encaixa numa ortodoxia qualquer.558 Um tal empenho tanto tempo depois faz contingente a ação de Deus, aparente condição de possibilidade da liberdade, assim como, no realismo newtoniano, a contingência do mundo não pode ser um mero resultado da contingência do nosso conhecimento. Logo, haveria que estabelecer a liberdade divina sobre melhores bases que a nossa ignorância ou a nossa subordinação. Mas, para isso, era preciso fazer a metafísica que repugna a Newton. Aliás, a concordância deste trabalho com as teses de James Force é generalizada, mas há uma pequena distinção que nelas parece faltar. Veja-se o seguinte passo: Force, EC, 84: "I will argue that the above reading [uma citação de Gale E. Christianson] is a misunderstanding of the role of metaphysics and, consequently, of epistemology in the natural philosophy of Isaac Newton. It has been time honored tradition since Hume to banish metaphysics from natural philosophy, but it has nothing to do with Newton's position. What the impact of theology and metaphysics is upon Newton's conception of matter and upon how we can gain knowledge about the laws governing matter we shall see. Newton's thought is a seamless unity of theology, metaphysics, and natural science." De facto, este próprio trabalho mostra como as conceções metafísicas de Newton são determinantes, mas haveria que salientar que ele não parece ter consciência de que são metafísicas, opondo-se à metafísica (ou talvez só a certa metafísica) inúmeras vezes. Além disso, muito embora diversas das suas conceções teológicas sejam metafísicas, Newton parece convencido que todas se alicerçam ou na experiência natural, ou na experiência da revelação, tentando sublinhar até a irrelevância dos atributos metafísicos de Deus. 555 Aliás, parece atribuir à influência de Newton e Clarke a descoberta das teses anti-atanasianas e mesmo arianas: Whiston, HM, 12-3. 556 E. Henderson, The great Mistery of godliness incontrovertible; or, Sir Isaac Newton and the Socinians, London, Holdsworth and Ball, 1830. 557 Brewster, ML, II, Ch. XXIV, 337: "There are certainly, as Professor De Morgan has shown, two or three expressions in the Dissertation which a believer in the doctrine of the Trinity is not likely to have used; but while I freely make this admission, I think Mr. De Morgan will also admit that they would not justify us in considering Newton as an Anti-trinitarian. They warrant us only to suspect his orthodoxy." Protege, aliás, ibidem, 340, a sua anterior defesa do trinitarismo de Newton reclamando uma latitude que reconhece que as autoridades eclesiásticas poderão não ter. 558 E. g., Van Alan Herd, The Theology of Sir Isaac Newton, Norman, Oklahoma, ProQuest, 2008. Refere-se aqui este trabalho apenas para mostrar quanto o proselitismo não perdeu atualidade e como pode misturar-se com o aparente cultivo da ciência, visto ser uma tese com intenções teológicas e religiosas inequivocamente afirmadas à partida, que recebeu a chancela de um Departamento de História da Ciência. Toda a tese é um exercício de confirmacionismo, ficando, várias vezes, a dever muito à honestidade interpretativa, tendo como único objetivo recuperar o grande Newton para uma ortodoxia que qualquer leitor das polémicas desta época poderia ver como dependia da posição de cada qual, podendo-se sempre ver nos adversários posições heréticas. Mas mesmo os trabalhos mais parciais podem apresentar razões apreciáveis, aliás como acontece com as posições contrárias, também elas muitas vezes prosélitas. Este chama a atenção para as raízes puritanas do newtonianismo e para a oposição ao triteísmo, muito embora tal oposição também ocorresse da parte dos arianos, socinianos e unitarianos, exatamente na época de referência. Para um trabalho como um sentido análogo, mas com muito maior isenção, qualidade, rigor e consistência: Thomas C. Pfizenmaier, The trinitarian theology of Dr. Samuel Clarke (1675-1729): Context, sources, and controversy, Pasadena, California, U.M.I.,19931[TT]. Popkin mostra, aliás, a vasta influência de Newton nos fundamentalismos cristãos, mas uma passagem inicial é extremamente elucidativa para as referências anteriores desta nota: Popkin, EC, 167: "he [Newton] has been, and still is, a source of data, interpretation, and inspiration to fundamentalist thinkers (who usually

298

compreender muito melhor a reserva de Newton num tempo de muito mais acesas disputas teológicas, acerca das mínimas diferenças interpretativas ou teóricas, que bem deram razão à irónica obra de Hare que recomendava aos clérigos os estudos naturais em vez dos bíblicos,559 e acabaram por contribuir para o distanciamento latitudinário ou científico das disputas religiosas. Há, porém, algumas razões para a incerteza quanto à posição de Newton: por exemplo, Lutero também rejeitou a terminologia "essencialista" e Calvino rejeitou subscrever Atanásio. 560 Cudworth parece favorável à noção de gradual subordinação platónica e nega que ela implique o arianismo. 561 Parece não haver grandes dúvidas quanto à importância do puritanismo em Cambridge, mesmo após a Restauração, e a sua influência ao menos prática em Newton.562 Por outro lado, são conhecidas as suas condenações de Ário por também utilizar subtilezas metafísicas. 563 Nas disputas dos eruditos contemporâneos, tem-se prestado pouca atenção à reivindicação de Whiston de que o seu alegado arianismo era, de facto, um

ignore his antiTrinitarianism.) Just recently I was asked to evaluate a paper, based solely on material from the Keynes manuscripts, which sought to present Newton as really a sincere Trinitarian Christian. Some who have pored over the vast collection of the Yahuda manuscripts in Jerusalem (over half of Newton's writings) have been looking for a still meaningful religious message." 559 Francis Hare, atr., The Difficulties ans Discouragements which attend the Study of the Scriptures in the Way of Private Judgement, 3ª ed., London,. John Baker, 1714. Apesar de censurado pela Casa Baixa da Convocação, gozou de grande sucesso, tanto que, embora tenha surgido em 1714, esta 3ª edição ainda é do mesmo ano. 560 Wiles, AH, 54: "This widespread use of the word ‘Arian’ as a term of theological abuse did not cease with the Reformation. The charge was levelled against Luther by Catholics and against Calvin by fellow Protestants. Although the charges are manifestly false, there are aspects, particularly of their early teaching, which helped to give rise to them. Luther disliked the traditional terminology of Trinitarian orthodoxy, such as homoousios and Trinitas. These terms had a cold sound compared with the language of Scripture. He preferred to speak of ‘oneness’ and of ‘God’. Calvin, in his exegetical work on the gospels, emphasized the human limitations of Jesus and often rejected interpretations that had been traditionally used in support of the doctrine of the Trinity. He described the Nicene Creed as more suitable for singing than for use as a confession of belief. Even when charged with Arianism by Peter Caroli, Calvin refused to defend himself by a formal act of subscription to the three creeds on the grounds that he ‘had pledged his faith to the one God not to Athanasius, whose creed had never been approved by any true church’. None of this, of course, begins to justify a charge of Arianism." 561 R. Cudworth, The true Intellectual System of the Universe: The First Part; wherein, All the Reason and Philosophy of Atheism is Confuted and its Impossibility Demonstrated, London, Richard Royston, 1677, Book I, Chap. IV, pp. 591-600. 562 Westfall, NR, 78: "The Puritanical style of Newton's life would have set him apart from the ordinary pensioners even if his status of sizar had not. His conduct largely repeated the rules and ideals that had dominated the university during its heyday as the Puritan institution." 563 Manuel, RI, 58: "While Newton's chief villain in the history of the Church was Athanasius rather than Arius, he censured both for having introduced metaphysical subtleties into their disputes and corrupted the plain language of Scripture: «Both of them perplexed the Church with metaphysical opinions and expressed their opinions in novel language not warranted by scripture. The Greeks to preserve the Church from these innovations and metaphysical perplexitys and put an end to the troubles occasioned by them anathematized the novel language of Arius in several of their Councils, and so soon as they were able repealed the novel language of the homousians, and contended that the language of the scriptures was to be adhered unto. The Homousians made the father and son one God by a metaphysical unity the unity of substance: the Greek Churches rejected all metaphysical divinity as well that of Arius as that of the Homousians and made the father and son one God by a Monarchical unity, an unity of Dominion, the Son receiving all things from the father, being subject to him, executing his will, sitting in his throne and calling him his God, and so is but one God with the Father as a king and his viceroy are but one king .... And therefore as a father and his son cannot be called one King upon account of their being consubstantial but may be called one King by unity of dominion if the Son be Viceroy under the father: so God and his son cannot be called one God upon account of their being consubstantial.» [Yahuda MS. 15.7, fol. 154r]"

299

eusebianismo. 564 Eusébio de Cesareia terá sido o primeiro historiador da Igreja preocupado com a determinação das características do cristianismo primitivo e um adversário a que Atanásio não conseguiu fazer frente. Tendo em conta a predileção de Newton pelo cristianismo primitivo comum a Eusébio, as próprias predileções reveladas por Clarke, por exemplo, na conferência de 1705, em que Orígenes é um dos dois autores cristãos mais citados (o outro é Lactâncio – o que também mostra a predileção por autores anteriores a Niceia), o mesmo Orígenes que inspirou Eusébio e que defendia a subordinação do Filho ao Pai, é de crer que a filiação indicada pelo mais ou menos renegado Whiston possa, talvez, ser identificadora da conceção religiosa do círculo mais próximo de Newton.565 Que estas posições possam ser e ter sido identificadas como arianas, pode ser visto pela forma como Pagitt, em 1645, resume as teses arianas: "1. Negam a Trindade de pessoas na divindade; 2. Negam que o Filho seja Deus; 3. Negam a eterna geração do Filho que é, dizem, contra a razão e a verdade; 4. Negam que Cristo deva ser chamado Deus a respeito da sua essência, mas só por causa do seu domínio; 5. Negam que o Espírito Santo seja Deus."566 Das 5 teses, apenas a terceira está sob discussão e, mesmo essa, poderá ser devida aos cuidados de Clarke, tentando dar um aspeto ortodoxo às suas teses, sem deixar de fazer a crítica a certas conceções anglicanas, tendo em conta que Whiston o condenava, implicitamente, por ter traído a verdade que declarava ele bem conhecer, quando da publicação do livro sobre a Trindade.567 O que Clarke critica é o uso contraditório dos termos pessoa e essência ou substância,568 defendendo que cada 564

Whiston, HM, 18: "having by that time satisfy'd my self that what was of late called Arianism, but ought to be rather call'd Eusebianism, was for certain no other than Primitive Christianity". Faz, aliás, esta ressalva múltiplas vezes. Quanto à questão do Eusébio que serviria de referência, esta interpretação só é válida se se tratar de Eusébio de Cesareia. Whiston terá começado por se identificar com Eusébio de Nicomédia, tal como, corretamente, afirma Pfizenmaier (Pfizenmaier, TT, 196: "Whiston was a more radical subordinationist, a follower of Eusebius of Nicomedia, and an avowed Arian"), visto se estar a referir a uma publicação de 1712, mas, posteriormente (o texto citado foi editado em 1730), quando começou a fazer a distinção entre o arianismo grosseiro e a acusação mais ampla que Clarke rejeita por não corresponder às doutrinas de Ário e que Whiston aceita, em sentido lato, mas faz corresponder aos verdadeiros eusebianos ou verdadeiros cristãos, já não fazia sentido fazer a identificação com Eusébio de Nicomédia porque as teses deste em pouco ou nada se distinguem das de Ário, correspondendo ao arianismo grosseiro. Cf. Wiles, AH, 102: "What then of the Eusebians with whom Whiston so closely identifies himself? Even here not everything is entirely straightforward. In his earlier writings he recognizes that it is Eusebius of Nicomedia after whom the Eusebians are named. But he is not entirely comfortable about the fact, as there are aspects of that Eusebius' conduct about which he is unhappy. And so later we find him describing Eusebius of Nicomedia as ‘head of the gross Arians’, and ‘the great Eusebius, Bishop of Caesarea’ as ‘head of the genuine Eusebians’." 565 Fazendo a contabilidade das fontes patrísticas na The Scripture-Doctrine of the Trinity, embora, tendo em conta o assunto, se encontrem mais citações de outros autores, entre os quais Atanásio, Pfizenmaier acaba por concluir que as influências determinantes de Clarke são Orígenes e Eusébio, muito embora talvez se incline demais para Orígenes. Cf. Pfizenmaier, TT, 93-119. Mesmo o monarquismo, apesar da inspiração conceptual de Tertuliano, é concebido de acordo com a dupla Orígenes/Eusébio: ibidem, 126-7. Chega, por fim, a concluir, tal como aqui, que Clarke seria um eusebiano: ibidem, 145-50. 566 Ephraim Pagitt, A brief description of Heretics, Coconut Creek, Florida, Puritan Publications, 2013, pp. 20-21: "1. They deny the Trinity of persons in the Godhead. 2. They deny the Son to be God. 3. They deny the eternal generation of the Son, which is, they say, against reason and truth. 4. They deny Christ to be called God in respect to his essence, but by reason of his dominion. 5. They deny the Holy Spirit to be God." 567 Whiston, HM, 41: "for your avoiding the Doctrine or Expression that Christ was created, and the owning as it were, his eternal Generation; when you know that Eternity was before his Generation: So that I think this Book will lie heavy upon you at the great Day." 568 Ferguson, EH, 68: "Three Persons of the same divine individual essence is a contradiction, since individual essence is that which makes the Person what he is and at the same time different from all others. The use of such language as 'essence' is neither Scriptural nor primitive, but is the invention of the

300

pessoa possui uma essência e duas pessoas não podem, por isso, ser uma pessoa. 569 Poder-se-á, porém, questionar se Clarke não oculta, por trás do ataque à Metafísica e da insistência da redução aos termos da Escritura, a alternativa inevitável entre dois deuses ou a conceção do Filho como uma criatura (embora preferisse o termo "geração" para distinguir entre a geração a partir de Deus e a criação a partir do nada)570, mesmo que gerada antes do mundo (já se viu em IV. 2 que, do ponto de vista newtoniano, não faz sentido considerar que "antes do mundo" seria "antes do tempo") e mesmo com antecedentes patrísticos, como Whiston e, provavelmente, Newton advogam. Clarke terá sido, aliás, confrontado com a sua duplicidade através de uma questão de Hawarden que se interrogava acerca de se, na conceção de Clarke, o Filho ou Espírito Santo poderiam ser destruídos por Deus, ao que teria respondido ou que não sabia ou que não tinha ainda pensado nisso.571 Se não tivesse dúvidas acerca da divindade absoluta do Filho, Clarke teria de responder, sem hesitações, não. O facto de não ter respondido, mostra que só concebia a "divindade" do Filho e do Espírito Santo de forma relativa, dependente de Deus e, como tal, não partilhando da existência necessária de Deus que havia estabelecido na conferência de 1704, tendo, assim, um estatuto contingente, análogo ao criado, mediador entre este e Deus, decorrente da liberdade de Deus, do seu Poder e Vontade, seguindo a formulação eusebiana, e não da sua essência necessária. O único aspeto em que poderá ter-se afastado da formulação de Eusébio reside no facto de este colocar a geração do Filho antes do tempo, o que não faz sentido na conceção newtoniana onde o tempo não é uma criação de Deus, mas uma consequência da sua existência. Daí parecer aproximar-se, neste aspeto, mais de Orígenes e da sua geração eterna.572 Quanto a Newton, parece ser a verdadeira fonte da conceção: já na primeira metade dos anos 70, apresenta um conceção subordinacionista, 573 concebe essa subordinação com uma comunicação de força, por um lado, decorrente da causa no Poder e Vontade de Deus, e, por outro, embora não necessariamente separado, fazendo lembrar a sua filosofia natural,574 e acaba por defender as teses que inspiraram Whiston Schools." 569 Ferguson, EH, 77: "To say that the Son of God is God in the same sense as that of the Father is an express contradiction. Two Persons cannot be one being. If the Father has some eminence or priority over the Son, both cannot constitute one being." 570 E. g., Clarke, ST, 276: "the Antients were careful not to reckon Him among Beings made [...] out of Nothing, but (on the contrary) thought themselves oblig'd to keep to the Scripture-language, which stiles him The only-begotten of the Father, and [...] The first-born, (not [...] The first-created) of every Creature". 571 Ferguson, EH, 247-8. Cf. versão preferida por Ferguson, ibidem, 146. 572 Pfizenmaier, TT, 94: "The Son was a product of both the nature and the will of the Father in Origen. The Son was a middle principle which allowed the Father to pour out his likeness and life into the creation. While Eusebius adopted a similar Platonic structure, he denied the necessity or eternity of the Son's generation. The Son was begotten before time, herein lay his uniqueness. The Son was in the Father's image, but not of his essence." 573 Westfall, NR, 311. 574 Newton, Yahuda MS 14, ff. 173-3V, NR, 317: "To apply ye name of God to ye Son or holy ghost as distinct persons from the father makes them not divers Gods from ye Father becaus the divinity of ye son & holy ghost is derived from yt of ye father. To make this plainer suppose a, b & c are 3 bodies of wch a hath gravity originally in it self by wch it presseth upon b & c wch are wthout any originall gravity a b but yet by ye pressure of a communicated to ym do presse downwards as much as A doth. Then c there would be force in a, force in b & force in c, & yet they are not thre forces but one force wch is e e originally in a & by communication/descent in b & c Soe there is divinity in y Father, divinity in y Son, & divinity in ye holy ghost, & yet there are not 3 divinities but one divinity wch is originally in ye father & by descent or communication in ye son & holy ghost. And as in saying there is but one force, that in body a I deprive not ye body b & c of that force wch they derive from a so by saying there is but one god, the father of all things, I deprive not ye son & holy ghost of the divinity wch they derive from ye father &c."

301

e Clarke. 575 Há, porém, que ter em consideração que os manuscritos relevantes de Newton se espraiam ao longo de 55 anos, sem qualquer publicação que fixasse o seu pensamento num determinado momento e o obrigasse a ter o antes afirmado como referência, com as exceções da impressão cuja publicitação acabou por impedir à última hora 576 e a publicação à sua revelia de um resumo já muito disfarçado de uma cronologia que dificilmente denunciaria o seu pensamento teológico. 577 A grande maioria desses manuscritos é de muito difícil datação e viu-se como, mesmo no âmbito da filosofia natural, com muito mais publicações e cartas a servirem de referência, podem existir grandes divergências na datação de alguns manuscritos. 578 Tendo em conta a própria forma discreta como Newton desenvolvia as suas teses teológicas, será crível que ele tenha mantido, ao longo de todo esse tempo, exatamente as mesmas teses? 579 Para lá das diferenças interpretativas dos mesmos textos, é possível que qualquer um possa encontrar nos seus textos sustentação para interpretações calvinistas, filojudaicas, latitudinárias, arianas, socinianas, unitarianas, etc., etc. Por exemplo, existem textos em que Newton afirma a corporalidade do Filho mesmo antes de o mundo começar, reservando para o Pai a possibilidade de ser puro espírito,580 tal como Leibniz defendia mas em relação ao todo trinitário de Deus, em contraposição à corporalidade inevitável de todas as criaturas – não reforça isto a conceção do Filho como criatura? Será possível uma interpretação ortodoxa desta conceção? Mas será esta conceção mantida ao longo de toda a vida de Newton? O conhecimento da teologia Resta saber se esta utilização da força gravítica é apenas metafórica ou se a própria divindade é encarada como força, explicando mesmo as forças ativas do Universo. Ver VI. 8. 575 Westfall, NR, 824: "Newton had reached back to the primitive church to resurrect a concept of Christ as a human body animated by a divine or semidivine spirit. He rejected any notion of a unity of substance between God the Father and Christ the Son, and asserted instead what he called a monarchical unity – "an unity of Dominion, the Son receiving all things from the father, being subject to him, executing his will, sitting in his throne & calling him his God, & so is but one God wth the Father as a king & his viceroy are but one king. For the word God relates not to the metaphysical nature of God but to his dominion." [Yahuda MS 15.7, f. 154] Though created by God in time, Christ existed before the world began." 576 Isaac Newton, An historical account..., OO, V, 495-550. 577 Westfall, NR, 805-11. 578 Ver discussão na nota 62 da secção IV. 2. 579 É sabido que, no final da vida, houve a preocupação de eliminar ou alterar as referências mais heréticas das Observações e da Cronologia de forma a serem publicadas, sem polémica, ao menos dentro do círculo latitudinário (Westfall, NR, 804-17). Mas o que mais evidencia a alteração é a protelação das expetativas milenaristas, não só evidente nas declarações contrárias de Whiston (Whiston, HM, 157, citado na nota 588), mas também decorrente da atitude de cada vez mais protelar a data (Iliffe, NV, 127; nos anos 70 e 80, ainda esperava a segunda vinda para meados do séc. XIX: Force, EC, 82) ou suspender o juízo em relação à questão, o que corresponde a uma das principais diferenças identificada por Jacob entre o latitudinarismo, após uns excessos provocados pela instabilidade politico-religiosa que deu origem à Revolução Gloriosa, e o entusiasmo (Jacob, ER, 116). Pode-se acrescentar que não apenas o distingue do entusiasmo (onde também se pode encontrar o newtoniano Fatio de Duillier), mas do newtonianismo mais herético representado por Whiston (Jacob, ER, 133-5). Aparentemente, Newton cada vez se sentiu mais confortável com o domínio latitudinário da Igreja e a reverência que a hierarquia anglicana mostrava pela filosofia natural newtoniana, acabando por se ter tornado ou se mostrar mais moderado. 580 Wiles, AH, 82: "Newton speaks of how «The nativity of his tangible body—whether before the world began or at his birth of the Virgin or at his resurrection was the nativity of the Son of God.» The reference to a precosmic tangible body may seem surprising, but it is an integral part of Newton's belief. It is yet another feature of the secondariness of the Son. Only «the Father with his λόγōς ἐνδιάθετōς is a pure spirit, invisible, intangible, and immoveable, being alike in all places and incapable of incorporation.» As his wrestling with Jacob and his being handled by Thomas show, the Son had the same kind of body in his preincarnate and his post-resurrection states. It was «not the body of an Angel or Spirit which hath not flesh and bones, but a body which by the power of his will he could form into the consistence of flesh and bones as well before his incarnation as after his resurrection.»" As passagens são de Martin Bodmer MS, On the Church (C-H 33), ch. 1. A propósito deste manuscrito, cf. Steffen Ducheyne, OC, 25-35.

302

newtoniana parece ainda bastante incerto para avançar com conclusões definitivas. Porém, o mesmo não acontece com os discípulos Whiston e Clarke que publicaram mais do que o suficiente sobre o assunto. Ora, se a relação com Whiston foi notoriamente problemática, não há registo da mínima desavença com Clarke. Além disso, ao menos em tudo aquilo que é possível comparar, existe, como bem mostrou Pfizenmaier, uma quase completa concordância entre as abordagens teológicas de Newton e as de Clarke.581 Se Cotes é o primeiro cientista newtoniano normal, Clarke será o primeiro teólogo newtoniano normal,582 mostrando, aliás, a difícil separação das duas áreas, visto ser também um dos mais importantes divulgadores da filosofia natural newtoniana, tentando exatamente conciliá-la com a religião natural e até com a revelada. Porém, os puzzles que Clarke procura resolver não se centram só na busca de uma maior aderência entre o paradigma e a experiência, representada, neste caso, como já se viu, pelos textos da Escritura, nem sequer na mais ampla interpretação das fontes patrísticas, mas também na compatibilização das teses newtonianas com as doutrinas da Igreja Anglicana, razão pela qual Clarke se envolve em subtilezas que, por princípio, um newtoniano rejeitaria, de forma a dar um contorno aceitável, do ponto de vista da ortodoxia anglicana, às teses defendidas. De qualquer forma, aqueles que tentam defender a ortodoxia de Newton, cuja definição importa pouco a esta dissertação, deveriam interrogar-se acerca dos muitos pormenores biográficos quer em relação a Newton, quer em relação a Clarke, que excedem, infelizmente, o âmbito desta abordagem, mas que se mostrariam inconsistentes num contexto de ortodoxia indiscutível. Mas, nesta dissertação, já cabe questionar a razão por que Clarke não respondeu às provocações leibnizianas, já referidas em VI. 2, que os associavam ao socinianismo. 583 Se se tratassem de 581

Pfizenmaier, TT, 152-86. Não parece ser necessário referir a origem kuhniana dos conceitos aqui "adaptados", mas é necessário esclarecer por qual razão é Clarke aqui considerado o primeiro teólogo normal newtoniano e não, por exemplo, Bentley. Em primeiro lugar, Bentley promove a filosofia newtoniana no quadro do projeto latitudinário de demonstração na natureza do desígnio divino. Isto significa que Bentley, assim como outros conferencistas de Boyle mais tarde, incluindo o próprio Clarke, promovem o newtonianismo, não naquilo que ele tem de mais específico (pelo menos, não de uma forma clara e inequívoca), mas naquilo que partilha com o plano mais genérico do latitudinarismo que se foi tornando dominante, exatamente neste período, na Igreja Anglicana. Em segundo lugar, Whiston afirmou de forma rebelde e subversiva, ou seja, revolucionária, o seu arianismo perante a própria Igreja Anglicana (cf. William Whiston, An Account of the Convocation's Proccedings with relation to Mr. Whiston, London, ed. autor, 1711). Em terceiro lugar, é Clarke que tenta apresentar as teses teológicas newtonianas de ortodoxia duvidosa de forma a poderem ser aceites, pelo menos, pela mais alta hierarquia anglicana, tanto na sua abordagem inicial da Trindade, (cf. Clarke, ST), como nas suas posteriores intervenções, diretas ou indiretas, na polémica subsequente. Esse é que é verdadeirtamente o conjunto de puzzles que aqui justificam a designação. 583 Leibniz, Streitschriften..., 2º escrito, § 9, G, VII, 358 (ver VI. 2, nota 45); 5º escrito, § 5, G, VII, 389-90: "La necessité Hypothetique est celle, que la supposition ou hypothese de la prevision et preordination de Dieu impose aux futurs contingens. Et il faut l'admettre, si ce n'est qu'avec les Sociniens on refuse à Dieu la prescience des contingens futurs, et la providence qui regle et gouverne les choses en détail." Aliás, Leibniz estaria convencido da ortodoxia da sua posição e suspeitaria do caráter herético das rivais: Meli, CL, 484: "it would be surprising if the project for the reunion of the Protestant Churches undertaken through Caroline in January 1716 had no links with the dispute with Clarke, especially because the very themes of the dispute would have been high on the agenda of the theologians drafting the fundamental points of doctrine of the new Panprotestant Church. Leibniz had considerable experience in this field because of his extensive exchanges with several theologians of different confessions over many decades, and he thought that his positions were fundamentally orthodox, whereas Clarke's and Newton's were not." De qualquer forma, há que sublinhar que a referência aos socinianos era recorrente em Leibniz, como foi referido em VI. 2, utilizando este exemplo (nota 43): Leibniz, Carta de Leibniz para o Landgrave de 12/4/1686, G, II, 23. 582

303

verdadeiros guardiões da ortodoxia, sobretudo nesta época e num contexto de polémicas e suspeitas que atingiam o círculo newtoniano nos últimos anos e que iam desde o arianismo ao socinianismo, seria de esperar uma inequívoca rejeição da insinuação. Para lá das polémicas que envolveram Whiston e Clarke, um dos críticos de Clarke resolveu adicionar uma adenda a uma nova vaga de objeções que interpretava a noção relativa de Deus de Clarke e do Escólio Geral da 2ª edição dos Principia como uma importação sociniana, mais precisamente de Johann Crell, 584 com o qual Newton até contactou. Longe do timorato Newton ter retirado as páginas alvo da acusação na terceira edição, ainda reforçou mais a associação, como Snobelen mostra, 585 embora sem se comprometer. É também para não se comprometerem que não respondem à provocação de Leibniz, muito embora a associação até fosse facilmente demonstrável como errada quer pelos textos de Clarke, quer pelos de Newton, como, aliás, já se viu nesta dissertação. Por muito que Newton pudesse ser condescendente para com os socinianos, por muito que algum do seu estilo e alguns dos seus métodos pudessem lembrar os socinianos, Snobelen não parece ter razão na associação que faz, não só devido à questão da pré-existência do Filho, mas, sobretudo devido às questões tratadas nesta dissertação, como a providência, a presciência e a liberdade. Talvez em vez de tentar encaixar Newton numa qualquer seita, puritana, ariana, sociniana, unitariana, etc., fosse melhor tentar compreender o seu específico pensamento, incluindo eventuais incertezas e mudanças, e concluir que Newton era demasiado original para pertencer a outra seita que não a que ele próprio fundasse. Já uma questão mais decisiva para esta abordagem é o eventual diferente entendimento da Revelação, de Newton em relação a Clarke. De facto, contrariamente à infalibilidade das Escrituras defendida pela tradição e pelo próprio Clarke, Newton restringia a Revelação aos textos proféticos, considerando os livros históricos meras compilações dos homens.586 Whiston defendeu que a interpretação profética era mais própria de Newton, seguindo Clarke simplesmente a sua autoridade, contrariamente a Whiston. 587 Mas a sua importância seria de tal ordem que, ainda segundo Whiston, 584

John Edwards, Some brief critical remarks on Dr. Clarke’s last papers; which are his reply to Mr. Nelson, and an anonymous writer, and the author of some considerations, &c., London, Ferdinando Burleigh, 1714, pp. 36–37. Já havia editado antes: John Edwards, Some Animadversions on Dr. Clark's Scripture-Doctrine, (As he Stiles it) of the Trinity, London, John Morphew, 1712. 585 Snobelen, NS, 281. 586 Westfall, NR, 826-7: "Christianity sought already, age, surging far beyond the limits he had envisaged. He justified himself in terms of the Bible, but the Bible as he understood it was far removed from the Bible of traditional belief. Where that Bible contained truths beyond reason, Newton summed up true religion in terms that effectively dispensed with all of revelation beyond the prophecies. Christians for centuries had understood divine revelation in terms of a new dispensation foretold in the Old Testament and fulfilled in the New; divine revelation as Newton understood it centered on two books, Daniel and Revelation, which revealed the almighty dominion of God over history as natural philosophy revealed His dominion over nature. Newton questioned the plenary inspiration of the received canon of books and regarded the historical books of the Old Testament as the compilations of men." Esta conceção parece percorrer a sua vida, já sendo identificável nos anos 70: ibidem, 319: "Already in the 1670s, he believed that the essence of the Bible was the prophecy of human history rather than the revelation of truths beyond human reason unto life eternal. Already at that time he believed what he asserted later about Revelation: «There [is] no book in all the scriptures so much recommended & guarded by providence as this.» [Yahuda MS 7.2i, f. 4]" Westfall, "Newton and Christianity", NW, 367: "Newton treated the historical books of the Old Testament as nothing more than the historical records of the jewish people, records no more authoritative than those of other peoples to which he compared them." 587 Essa é a razão apresentada por Whiston para Newton o ter renegado: Whiston, MW, 294: "I enjoy a large Portion of his Favour for twenty Years together. But he then perceiving that I could not do as his other darling Friends did, that is, learn of him, without contradicting him, when I differed in Opinion from him, he could not, in his old Age, bear such Contradiction and so he was afraid of me the last thirteen Years of his Life." Diga-se que as duas afirmações não são congruentes: não suportar contradição e ter

304

teriam sido essas interpretações que levaram Newton e Clarke a desistir dos esforços públicos para restaurar a Igreja primitiva. 588 Mas se a verdadeira Revelação era a profética, que realidade era a da restante religião? Não importava? É neste domínio que as noções de religião natural e religião revelada não parecem convir a Newton. Para ele, o que há é a verdadeira religião e a falsa religião, assim como a verdadeira ciência e a falsa ciência, confundindo-se, aliás, estas noções com as de prisca sapientia e prisca theologia (já antes tratadas em IV. 1 e 9, tal como nesta secção). No fundo, não poderia ser uma religião mais natural porque estava fundida com a filosofia natural, sendo a sua outra dimensão, a moral, que Clarke funda na adequação à "razão natural das coisas".589 As duas dimensões da religião natural de Leibniz, a teórica e a prática, estão presentes, mas fundadas na razão natural das coisas e não na metafísica, através da ciência e da moral presentes na religião de Noé e dos seus filhos,590 de que as outras mais não foram do que recuperações muitas vezes parciais.591 Todas as degenerações ocorridas ao longo medo dele. Sem negar o afirmado por Whiston, o medo deveria porvir do seu comportamento cada vez mais descontrolado evidenciado nos seus livros tardios, declarando tudo, acusando todos e manifestando uma atitude de desesperada intolerância em relação a todas as outras posições. 588 Whiston, HM, 157: "it is not impossible that such a Notion of a long future corrupt State of the Church soon coming on, according to the Scripture Prophecies, might be one Discouragement to Sir Isaac Newton's and Dr. Clarke's making publick Attempts for the Restoration of Primitive Christianity: as I confess my Expectation of the near approach of the Conclusion of the corrupt State, and by Consequence of the Commencement of the State when Primitive Christianity is, by those Prophecies, to be restored, greatly encourages me to labour for its Restoration." Apesar da parcialidade de Whiston, parece concordante com as interpretações newtonianas. Cf. Westfall, NR, 816-7; Snobelen, NS, 269. Essa importância seria de tal ordem que teria motivado a zanga de um ano contra alguém tão próximo como Bentley: Whiston, MW, 106-7: "so greatly was he offended at this Interpretation, that he long afterward bluntly asked Sir Isaac Newton himself (with whom I had brought him acquainted about A.D. 1696.) who thus expounded the Prophesies also, whether he could demonstrate the same. Sir Isaac Newton was so greatly offended at this, as invidiously alluding to his being a Mathematician; which Science was not concerned in this Matter; that he would not see him as Dr. Bentley told me himself, for a Twelvemonth afterward." 589 Clarke, DC, utiliza múltiplas vezes a expressão "nature and reason of things" ou similares, e. g., 3, 38-43, 65, 79-80, 84, 90-91, etc. 590 Westfall, NR, 820: "«All nations were originally of one religion & this religion consisted in the Precepts of the sons of Noah ...» The principal heads of the primitive religion were love of God and love of neighbor. This religion descended to Abraham, Isaac, and Jacob. Moses delivered it to Israel. Pythagoras learned it in his travels and taught it to his disciples. «This religion,» Newton concluded, «may be therefore called the Moral Law of all nations.» [Keynes MS 3, p. 27] Chapter I, "Of the Church of God," in his history of the early church began with the same theme. «The true religion was propagated by Noah to his posterity, & when they revolted to ye worship of their dead Kings & Heros & thereby denyed their God & ceased to be his people, it continued in Abraham & his posterity who revolted not. And when they began to worship the Gods of Egypt & Syria, Moses & the Prophets reclaimed them from time to time till they rejected the Messiah from being their Lord, & he rejected them from being his people & called the Gentiles, & thenceforward the beleivers both Jews & Gentiles became his people.» [Yahuda MS 15.3, f. 57]" 591 Westfall, "Newton and Christianity", NW 366-7: "The central concept of the Origenes asserted that all the ancient people had worshipped twelve gods, the same twelve gods, which were the seven planets, the four elements, and the quintessence. A second concept, not fully integrated with the first, claimed that the twelve gods were their deified ancestors, to wit, Noah, his children, and his grandchildren, from which all the mankind had descended. The religion of twelve gods was not the earliest religion; Noah and his family themselves had worshipped the one true God, the Creator of the universe. However, there is an innate tendency toward superstition and idolatry in man which led him to corrupt the true religion. The Egyptians had led the way in this; the other ancient peoples had learned their idolatry from Egypt. Each people had appropriated the religion to their own history, giving to the twelve gods the names their own records assigned to their ancestors, but the perceptive student of their chronicles could discern the common originals. God had made repeated efforts to lead mankind back to the true religion. Despairing of humanity as a whole, he had chosen the Jewish people and had sent Moses and the prophets to reclaim them. Despairing of the Jews, he had sent Jesus Christ to the gentiles. Jesus had come to recall men to the

305

da história foram também culpa sempre do mesmo inimigo, a metafísica.592 Abraão,593 Moisés e Cristo apenas recuperaram as leis de Noé que mais não são que as leis da natureza. 594 O orgulho de Newton não é o de ter descoberto leis naturais, mas o de restaurar a ciência antediluviana,595 apenas fragmentariamente recuperada ao longo da história antes dele, conjuntamente com a sua religião que, porém, poderá ter de esperar pelo cumprimento das profecias. A sua própria cronologia e toda a sua argumentação naturalista e astronómica destinavam-se a fazer encaixar todos os acontecimentos a partir da datação atribuída a Noé. 596 E, para tirar estas conclusões, não é necessário recorrer a nenhum manuscrito obscuro porque isso está claramente expresso no final da Ótica. 597 Nessa conceção, fundem-se as noções de filosofia natural, filosofia moral, religião natural e religião revelada, ou melhor, da verdade de alguma forma concedida, pelo próprio Deus, a Adão e Noé, e que Newton teria recuperado, na medida do possível, segundo o próprio, para a nossa era.

true religion, which rested on two commandements, to love God and to love one's neighbor. He had added nothing to that religion, Newton insisted; he had come only to call mankind back to its original worship." 592 Manuel, RI, 69: "He discovered the fountainhead of this corruption far back in the degeneration of primitive Egyptian and Chaldean monotheism into a confused metaphysical idolatry that imputed real powers to forces in nature." 593 Abraão teria preservado a antiga religião de Ur que seria a herdada de Noé. Cf. Steffen Ducheyne, OC, 26. 594 Newton, Yahuda MS 15.5, f. 91, NR, 821: "These are the laws of nature, the essential part of religion wch ever was & ever will be binding to all nations, being of an immutable eternal nature because grounded upon immutable reason." Newton, Yahuda MS 7.4, n. f., NR, 821-2: "The law was ancienter then the days of Moses being given to Noah & all his posterity, & therefore wn the Apostles & Elders in the Council at Jerusalem declared that the Gentiles were not obliged to be circumcised & observe the law of Moses, they excepted this law as being imposed on all nations not as the sons of Araham but as the sons of Noah not by circumcision but by an earlier law of God not by conversion to the Christian religion but even before they were Christians. And of the same kind is the law of absteining from meats offered to Idols. & from fornication. not as Christians but as Gentiles - as being imposed on all nations not by the law of Moses but by an earlier law of God, not as sons of Abraham but as sons of Noah, not as Christians but even as Gentiles. And of the same kind is the law of absteining from meats offered to Idols & from fornication." 595 McGuire e Rattansi, PP, 136: "The most important difference between More and Cudworth on the one hand, and Newton on the other, lay in Newton's conviction that not the Cartesian philosophy (as More once held), nor the 'mechanical philosophy' (in Cudworth's basically Cartesian interpretation), but his own system of the world represented the restoration of the true and original natural philosophy, as revealed by God even before the Flood." 596 Westfall, NR, 813: "by counting years, Newton arrived at the same date for the Argonauts' expedition that he had established by astronomy. Using the expedition as a benchmark, he fixed other dates mostly by the course of nature, that is, by the length of reigns. He could not place any event outside of Greek history by the equinoxes, but the principle of the average length of reigns, and the synchronism and interconnection of all ancient history, which he accepted as obvious, helped him to date events in the other kingdoms. Using these devices, he drastically shortened the accepted chronologies of the ancient world as we have seen, in order (though he did not state his purpose) to fit them to the pattern of the multiplying offspring of Noah, which he had sought to establish in the Origines." 597 Newton, Optics, OO, IV, 264: "if Natural Philosophy in all its parts, by pursuing this method, shall at length be perfected; the bounds of Moral Philosophy will also enlarged. For so far as we can know by Natural Philosophy what is the First cause, what power he has over us, and what benefits we receive from him; so far our duty towards him, as well as that towards one another, will appear to us by the light of Nature. And, no doubt, if the worship of false gods had not blinded the heathen, their Moral Philosophy would have gone farther than to the four Cardinal Virtues. And instead of teaching the transmigration of souls, and to worship the sun and moon, and dead heroes; they would have taught us to worship our true Author and Benefactor, as they ancestors, did under the government of Noah and his sons, before they corrupted themselves."

306

VII. Acabamentos Mesmo no seio dos conflitos latentes ou patentes entre newtonianos e leibnizianos, esta polémica foi apenas uma pequena parte que, aliás, Newton considerou apenas como um truque leibniziano para desviar as atenções do que era, segundo Newton, essencial, a questão da prioridade1 (ou melhor, das prioridades). No conjunto das obras dos intervenientes, inclusive o próprio Clarke, esta correspondência ainda constitui uma parte menor que poderia ser negligenciada sem que se perdesse o conhecimento de qualquer das teorias dos autores. Porém, a importância que lhe foi dada até na própria época mostrou que era nesta polémica que se jogava a partida mais decisiva, não a de uma mera zaragata de direitos de autor, não a do rasgar de vestes de personalidades demasiado cheias da sua vaidade para deixar passar a sombra de uma ofensa, não a das manobras maliciosas que se entendiam legitimadas por se supor a malícia do opositor e se considerar, à partida, justa e inquestionável a posição de cada qual, mas a do confronto entre dois modelos de conhecimento, dois modelos de ciência e dois modelos de realidade, não radicalmente opostos, mas suficientemente diversos para simbolizarem a discussão entre a metafísica racionalista, mesmo tendo componentes experimentais, e a ciência experimental emergente, mesmo se não deixava de manter objetivos teológicos. Tal como não se pode deixar de ver as preocupações com a exatidão da 2ª ed. dos Principia à luz da necessidade de mostrar a superioridade da matemática newtoniana no contexto da polémica do cálculo,2 também não é possível ignorar que as alterações, bem mais substanciais do ponto de vista teórico, da 2ª ed. inglesa da Ótica, introduzindo a hipótese etérea da gravidade3 e esclarecendo que esta não era uma propriedade essencial dos corpos,4 conceção, aliás, reforçada na 3ª ed. dos Principia,5 assim como outras menções desta edição, reforçando a rejeição da acusação de Deus como Alma do Mundo 6 ou introduzindo uma quarta regra sustentando as conclusões por indução contra meras hipóteses, só refutáveis por constatação de novos fenómenos, 7 foram, ao contrário da declarada menorização newtoniana, uma 1

Westfall, NR, 773: "Leibniz was trying to avoid the matter of fact "by running the dispute into a squabble about a Vacuum, & Atoms, & universal gravity, & occult qualities, & Miracles, & the Sensorium of God, & the perfection of the world, & the nature of time & space, & the solving of Problemes, & the Question whether he did not find the Differential Method proprio marte: all which are nothing to the purpose." (Add MS 3968.27, f. 390.)" 2 Westfall, NR, 733-4: Newton "was concerned to make the edition appear to the best advantage as to the numbers. Quantitative precision provided the unanswerable argument for his philosophy. He was not above placing it in the most favorable light possible. Among his papers on the dispute with Leibniz is one that contains a calculation of the correlation on the same sheet." 3 Newton, Optics, Queries 21-22, OO, IV, 225-6. 4 Newton, op. cit., Advertisement II, OO, IV, 4: "at the end of the Third Book I have added some Questions. And to shew that I do not take Gravity for an Essential Property of Bodies, I have added one Question concerning its Cause, chusing to propose it by way of a Question, because I am not yet satisfied about it for want of Experiments." 5 Newton, Philosophiæ naturalis..., Liber tertius, Regulæ..., OO, III, 4. 6 Newton, op. cit., Scholium generale, OO, III, 171. 7 Newton, op. cit., Regulæ..., OO, III, 4. Isto não significa que esta última regra só tenha sido pensada após a polémica. Num rascunho de 1713 de uma carta para Cotes, ainda anterior à 2ª ed., Newton não só a expressa de forma mais clara, como também explica a razão por que não a introduzirá nessa edição, por a julgar decorrente da 3ª regra: Newton, CN, V, 398: "to admitt of such Hypotheses in opposition to rational Propositions founded upon Phænomena by Induction is to destroy all arguments taken from Phænomena by Induction & all Principles founded upon such arguments. And therefore as I regard not Hypotheses in explaining the Phenomena of nature so I regard them not in opposition to arguments founded upon Phænomena by Induction or to Principles setled upon such arguments. In arguing for any Principle or Proposition from Phænomena by Induction, Hypotheses are not to be considered. The arguments holds good till some Phænomenon can be produced against it. This argument holds good by

307

consequência direta e óbvia da polémica que aqui foi tratada. Assim, a própria ciência newtoniana (e não só Newton) encarou esta correspondência como uma prova de fogo onde se jogava o seu sucesso e assim também foi entendida pela posteridade. Naturalmente, do lado leibniziano, era toda uma visão de mundo, de ciência e de razão que lutava desesperadamente pela sobrevivência. Ainda hoje, esta polémica é encarada como exemplar, muito embora, como foi visto desde o início desta dissertação, se tenda a encará-la de forma anacronista como precursora das discussões cosmológicas atuais, considerando todas as restantes discussões como peculiaridades irrelevantes da época. Ora, esta dissertação procurou mostrar que essas "excentricidades" desse tempo foram decisivas para a determinação dos próprios modelos científicos e, na verdade, embora isso exceda em muito o objeto deste trabalho, outras "excentricidades" análogas continuam a ter ainda hoje o mesmo papel.8 Aliás, longe destas questões terem sido encaradas pelos newtonianos como um fait divers e só surgirem nesta correspondência, mesmo que tenham sido suscitadas por Leibniz (em diversa correspondência, suscetível em vários casos de chegar ao conhecimento newtoniano, 9 e na própria Teodiceia10), motivaram uma contraofensiva de que são episódios o prefácio de Cotes da 2ª ed. dos Principia,11 o final da Recensão ou Relatório de Newton do Commercium Epistolicum12 the third Rule of philosophizing. And if we break that Rule, we cannot affirm any one general law of nature: we cannot so much as affirm that all matter is impenetrable. Experimental Philosophy reduces Phænomena to general Rules & looks upon the Rules to be general when they hold generally in Phænomena. It is not enough to object that a contrary phænomenon must be actually produced." O que foi novo foi a necessidade de expor esta conceção epistemológica como uma regra autónoma e isso parece ter origem na forma como Leibniz pôs em questão, na polémica, a gravitação. De qualquer forma, não há qualquer dúvida que já tinha em mente Leibniz quando escreveu este rascunho. Logo a seguir ao passo citado, acrescenta, ibidem, 398-9: "Hypothetical Philosophy consists in imaginary explications of things & imaginary arguments for or agains such explications, or against the arguments of Experimental Philosophers founded upon Induction. The first sort of Philosophy is followed by me, the latter too much by Cartes, Leibnitz & some others." Aliás, aqui torna-se bastante claro que o prefácio de Cotes não era dirigido só ou até sobretudo a Descartes. 8 José R. Croca, Rui N. Moreira, Diálogos sobre Física Quântica – Dos Paradoxos à Não-Linearidade, 1ª ed., Lisboa, Esfera do Caos, 20075; 2ª ed. 20105. Todo o livro é muito interessante, mais ainda em relação à temática da secção VII.1 do que em relação às temáticas das secções anteriores, mas, a título de exemplo, poder-se-á salientar a referência à inspiração religiosa da teoria do Big Bang e à forma como tem sido dogmaticamente defendida: pp. 294-300. 9 Mesmo que não tivesse sido publicada alguma e provocado reação direta de Newton, como aconteceu, em 1712, com parte da correspondência entre Leibniz e Hartsoeker, havia na verdade uma vasta rede informal de comunicação europeia de toda a produção epistolar filosófica e científica: Newton, CN, V, 298-300. Esta reação newtoniana datará já de 1713, visto Newton só ter sido alertado para a publicação, por Cotes, em 18 de Março (ou Fevereiro) de 1713, ibidem, 393. 10 Já foi visto, em II, a propósito de um pequeno detalhe, a Inteligência Supramundana, que Newton conhecia a obra antes da polémica com Clarke, como o mostrou na Recensio: Newton, Recensio, OO, IV, 495, ver II, nota 13. 11 Cotes, Philosophiæ naturalis..., Præfatio in editionem secundam, OO, II, xiii-xxv. Variadíssimas são as passagens que tanto poderiam ter como alvo os cartesianos, como Leibniz. Além disso, Descartes é o único autor mencionado. Tal facto corresponde à orientação dada por Bentley em nome de Newton, escrevendo da sua própria casa, na carta em que exige que seja Cotes a escrever o prefácio e não Newton (ou Newton e/ou Bentley): Bentley, Carta para Cotes de 12 de Março de 1712/13, CN, V, 390-1: "Tis both our opinions, to spare the Name of M. Leibnitz, and abstain from all words or Epithets of reproch: for else, yt will be ye reply (not that its untrue) but yt its rude & uncivil." Os termos do prefácio não deixam, porém, dúvidas, quanto ao autor visado em primeiro lugar, reproduzindo a crítica leibniziana que mais tinha irritado Newton, a da gravitação newtoniana ser um milagre perpétuo: Newton, Philosophiæ naturalis..., Cotesii Præfatio in editionem secundam, OO, II, xix: "Sunt qui Gravitatem præter naturam esse dicunt, & Miraculum perpetuum vocant. Itaque rejiciendam esse volunt, cùm in Physicâ præternaturales causæ locum non habeant. Huic ineptæ prorsus objectioni diluendæ, quæ & ipsa Philosophiam subruit universam, vix operæ pretium est immorari." Cf. Newton, CN, V, 299. Depois de todos os procedimentos newtonianos, parece pouco crível que a falta da menção a Leibniz fosse

308

e a intermediação de Conti. 13 É óbvio, aliás, após o conjunto desta dissertação, que Newton e os newtonianos queriam ganhar não apenas no terreno da disputa do cálculo, mas no da física, da metafísica (mesmo que fosse contra a metafísica) e da teologia. Assim, se se tratou de um truque tático o desvio do debate eventualmente provocado por Leibniz, só a incerteza do desfecho mais amplo poderia fazer com que Newton o não desejasse, tendo em conta a sua predileção por vitórias certas. Naturalmente, a incomodidade leibniziana com toda a dificuldade em se defender, até por falta de provas documentais, na questão do cálculo, fazia-o desejar uma disputa bem mais abrangente, nomeadamente por estar convencido da maior fraqueza argumentativa newtoniana nos domínios metafísico e teológico. Porém, mesmo que os motivos não fossem os melhores, Leibniz acabou por desencadear um debate que, embora quase permitisse simbolizar algumas das mais fundamentais discussões da filosofia e ciência modernas, antecipa, sobretudo, a época contemporânea, muito embora nenhum dos participantes corresponda exatamente a qualquer ideologia ou ideal dominante da nossa época. As duas derradeiras secções têm objetivos muito diferenciados. A segunda pretende fazer apenas um balanço final das conclusões desta dissertação. A primeira, inicialmente gizada como anexo, podendo ser ignorada por quem queira apenas se cingir ao tema desta dissertação, saltando imediatamente para a conclusão, pretende esboçar um projeto de investigação mais amplo, também histórico-filosófico, com uma forte componente metafísica e, subsidiariamente, teológica, mas com muito maiores pretensões epistemológicas. Sem representar qualquer compromisso e, por isso, sem se garantir a sua realização, parece particularmente evidente que o confronto entre o modelo newtoniano e o leibniziano é especialmente significativo quanto às possibilidades da ciência, ou seja, quanto à questão relativa ao que deveria ser a ciência, para lá de ter de ser esclarecedor relativamente a outra questão central da epistemologia, a questão histórica: porque é que a ciência se tornou aquilo que é, como se chegou à ciência do final do séc. XVIII, à do séc. XIX e até à do séc. XX. Claro que envolvida com ambas as questões anteriores, a metodológica e a histórica, está também a questão da relação com a filosofia e, particularmente, com a metafísica. Diferente, mas também importante, terá de ser a questão da relação, não só da ciência, mas também da filosofia, com a religião. O que se apresenta em seguida é apenas um pequeno esboço, sob uma perspetiva restrita, de uma pequena questão a desenvolver no seio do maior projeto referido – e apenas a esse título é aqui apresentado, como uma espécie de anúncio de um possível trabalho. 1. Confronto entre dogmatismos Tendo em conta a multiplicidade de sentidos de dogma, dogmático e dogmatismo, importa precisar em que sentido se utiliza aqui o termo. A palavra "dogma" tem, aliás, tido uma diversidade de sentidos que pode espantar pela sua dispersão: desde opinião a doutrina, desde conclusão demonstrativa a artigo de fé, desde a declaração de um conhecimento a afirmação de autoridade; "dogmatismo", que é o termo que aqui interessa, ganhou, porventura, ainda maior número de sentidos. O provocada, como dizia Bentley, por um desejo de civilidade. Parece mais provável a razão posteriormente avançada por Cotes, votá-lo ao desprezo, juntamente com a menção que, de facto, é Leibniz, antes de mais, o alvo na crítica às teorias de vórtices. Cotes, Carta para Newton de 18 de Fevereiro ou Março de 1712/13, CN, V, 393: "I do not propose to mention Mr. Leibnitz's name, t'were better to neglect him; but the Object I think may very well be answered & even retorted upon the maintainers of Vortices." Esta menção segue-se, aliás, imediatamente, à referência às críticas leibnizianas na carta para Hartsoeker. 12 Newton, Recensio, OO, IV, 492-5; Newton, "Account...", PW, 312-4 . 13 Antonio Schinella Conti, "Carta para Remond de 30 de Junho de 1715" apenas enviada para Leibniz a 18 de Outubro, G, III, 654-5.

309

sentido que aqui se segue é, de forma genérica, o kantiano, mas apenas enquanto se opõe à crítica e não estando restringido ao procedimento sem crítica da razão em relação a si própria.14 Aliás, a escolha da palavra por Kant não deixa de refletir as suas origens, incluindo também a oposição ao ceticismo, por um lado, e a subordinação ao princípio de autoridade, por outro, visto se poder sempre entender a aceitação de qualquer tese sem crítica como um ato de fé e como aceitação indiscutida de uma qualquer autoridade, nem que seja a da opinião pública ou daquilo que se diz por aí. De qualquer forma, o sentido primário aqui adotado para o termo dogmatismo é o de uma atitude que se isenta de exame crítico, mesmo que explicitamente não se refira a um ato de fé, não recorra a uma autoridade identificada para defender a sua tese, nem se escude numa autoridade abstrata, como a razão ou os factos, muito embora seja muito improvável que não haja pelo menos uma destas referências. Parece, aliás, evidente que este é o sentido mais básico em que é utilizado o termo na epistemologia contemporânea. Outros sentidos referem-se a adições desta atitude, como, por exemplo, a atitude de fazer o possível e o impossível, custe o que custar, para que os factos batam certo com a teoria, nunca aceitando, por mais factos contrários que sejam observados, pôr em causa a teoria, ou a resistência à consideração sequer – pelo menos, consideração séria – dos argumentos e dados factuais de teorias rivais. É fácil ver que a atitude primitiva é a da adesão acrítica à teoria, a fé na teoria que, depois, sustenta todas as outras atitudes tributárias.15 Ora, tendo em consideração o sentido examinado, o próprio título desta secção pode ser considerado provocatório. A títulos diferentes, Newton e Leibniz poderiam ser utilizados como modelos de atitudes antidogmáticas numa época em que as disputas dogmáticas proliferavam, como se tentassem reavivar, a partir do plano intelectual, mas com eventuais intenções mais violentas, as guerras religiosas que tinham dominado a Europa até meados do séc. XVII.16 Viu-se, em VI. 9, que Newton, por convicção ou por conveniência, favorecia pelo menos parte significativa das atitudes latitudinárias. O seu alinhamento político, entre os whigs, também o predispunha a uma maior tolerância. A Royal Society, dominada inicialmente pela filosofia experimental de Boyle, recuperada de alguma decadência pela presidência de Newton, parecia um farol de investigação crítica da época, contrária à cultura anquilosada e empoeirada das universidades da época e à intromissão das discussões teológicas na atividade científica.17 Ora, o próprio Newton parecia, metodologicamente, a continuação do projeto de filosofia experimental de Boyle, só aceitando a refutação das conclusões tiradas de matéria de facto através da produção de novos fenómenos, como acabou por ser consagrado na quarta regra do filosofar.18 Aliás, a própria recusa do caráter necessário das leis a que se chegava, de 14

Kant, KV, Prefácio da 2ª ed., 30-1. Thomas S. Kuhn, "The function of dogma in scientific research" in A. C. Crombie (ed.), Scientific Change (Symposium on the History of Science, University of Oxford, 9–15 July 1961), New York and London, Basic Books and Heineman, 1963 [FD]. pp. 348-349. 16 Se Leibniz nasceu nos últimos tempos da Guerra dos Trinta Anos, Newton viveu a sua infância sob o espetro das guerras civis que instauraram a República puritana. 17 Sobretudo, procurava, como Newton, resolver as questões no âmbito da matéria de facto e fazê-lo da forma mais pública possível: William Eamon, Science and the Secrets of Nature, Princeton, New Jersey, Priceton University Press, 1994 [SN], pp. 336-337: "The founders agreed that the company ought to avoid debates over theory and to strive for agreement upon "matter of fact." [...] The new philosophers repeatedly insisted that the mechanisms and causes of nature were secret, and that debates over such matters were unresolvable. What could be agreed upon were matters of fact. [...] Boyle intended to draw "the chymists doctrine out of their dark and smoky laboratories" and bring it "into the open light." Experimental knowledge had to be public knowledge." 18 Newton, Philosophiæ naturalis..., Liber tertius, Regulæ..., OO, III, 4: "In Philosophiâ experimentali, Propositiones ex phænomenis per inductione collectæ, non obstantibus contrariis hypothesibus, pro veris 15

310

forma a manter a sua dependência da vontade divina, ao reforçar o caráter contingente das conclusões científicas, diminuía consideravelmente as pretensões dogmáticas, admitindo a possibilidade de não uniformidade da natureza no espaço e no tempo, e, como tal, a possibilidade de se chegar a conclusões diversas das anteriormente atingidas. Desta forma, as pretensões posteriores de certeza apodítica, quer ao estilo de um Kant, quer ao estilo de um Comte, pareciam não fazer parte da matriz originária do newtonianismo. Por outro lado, como ignorar o espírito tolerante da filosofia de Leibniz, tentando conciliar as mais diversas perspetivas, tanto na filosofia, como na teologia e na política? Como ignorar a sua vocação diplomática e os seus esforços irénicos, incluindo projetos que excediam o ecumenismo (e. g., as esperanças na China)?19 Como ignorar os seus esforços destinados à criação de academias um pouco por todo o lado, destinadas a uma investigação que não estivesse subordinada a qualquer quadro dogmático? Elucidativo da sua atitude antidogmática é a sua defesa dos jansenistas contra as perseguições que lhes eram movidas pela Igreja Católica, 20 frente a um representante dessa mesma Igreja, o jesuíta Des Bosses, mesmo reconhecendo que as perseguições ainda poderiam ser piores caso se tivesse estabelecido uma ortodoxia jansenista na Igreja,21 considerando que a perseguição premeia crimes ao exigir que se abjure aquilo em que se acredita.22 O ataque ao dogmatismo católico não só se centra, aut accuratè, aut quamproximè, haberi debent, donec alia occurrerint Phænomena, per quæ aut accuratiores reddantur, aut exceptionibus obnoxiæ. Hoc fieri debet, ne argumentum inductionis tollatur per hypotheses." 19 Entre muitas possíveis referências, Belaval retrata bem as ocorrências, as tentativas e o ecletismo da formação, das teorias e da metodologia: Belaval, LI. Ver também Antognazza, IB, e Aiton, LB. Quanto às esperanças na China, assim com as reflexões acerca da teologia natural chinesa segundo a interpretação de Leibniz, são objeto da correspondência com Des Bosses desde 1709 até ao final da mesma (G, II, 372520), mostrando-se Leibniz um ativo apoiante da posição dos jesuístas na questão dos ritos, sobretudo até 1712. Esta ligação dupla com a causa jesuíta e as relações com a China durava, pelo menos, desde o contacto com o missionário jesuíta Grimaldi em 1689. Para as conceções leibnizianas acerca da teologia natural chinesa, ver G. W. Leibniz, Lettre de M. G. G. de Leibniz sur la philosophie chinoise à M. de Rémond, trad. port. Adelino Cardoso, Discurso sobre a Teologia Natural dos Chineses, Lisboa, Colibri, 199111. 20 Não só os defende das perseguições, como considera as perseguições pouco inteligentes, tendo contribuído para promover o próprio jansenismo: Leibniz, Carta para Des Bosses de 21 de Julho de 1707, G, II, 337: "Et sane si mihi esset facultas persuadendi, Gerberonius et similes plenissima libertate fruerentur: fac (quod objicis) redituros in antiquam sylvam, fac scribere, fac tueri sententiam; aequis armis, non vi metuque errores subverti debent; imo fac stare errores, id levius in talibus malum est, quam sic agi. Quin cadunt plerumque neglecti facilius quam pressi. Nullus hodie esset, quem vocatis, Jansenismus, nisi tantum contra Jansenii opus strepitum homines infesti excitassent, quibus factionis, non veritatis cura erat." Aliás, outra declaração aqui presente que evidencia o seu antidogmatismo é a condenação das facções, dos partidos, onde se procura mais a defesa de um determinado coletivo do que a verdade, tese inúmeras vezes reafirmada, em diversíssimos contextos, por Leibniz. Quanto ao Gerberon mencionado, trata-se de um beneditino, autor de diversas obras jansenistas, que havia sido preso em 1703, em Bruxelas, e só viria a ser libertado em 1710, passando por diversas prisões e diversas provações, após se ter, finalmente, retratado, como sempre exigiram as autoridades eclesiásticas. 21 ibidem: "Jansenii Augustinum aliquando non sine cura inspexi: egregium opus esse deprehendi, et magno doctrinae Theologicae malo eruditorum manibus excussum, etsi sententias ejus plurimas non probem. Notare mihi visus sum, consilium ei fuisse non tantum Systema Theologicum Augustini revocare in scholas, quod improbari non poterat, sed et contraria dogmata tanquam Pelagiana aut Semipelagiana ejicere, quod probare non possum." 22 ibidem: "Persecutiones autem ob sententias, quae crimina non docent, pessimas censeo, a quibus non tantum abstinendum sit probis, sed et abhorrendum, et in id laborandum, ut alii, apud quos nobis aliqua est auctoritas, ab iis deterreantur. Honores et commoda, quae non debentur, iis negare permissum est, qui sententias fovent, quae nobis incommodae videntur: sua auferre, et magis etiam proscriptionibus, vinculis, remis, gravioribusque adhuc malis saevire, permissum non puto. Quid hoc enim aliud est quam violentiae

311

como em passagens antes vistas, na absurdidade da pretensão de decidir matérias de facto, 23 mas estende-se às questões dogmáticas, nomeadamente à tendência para a produção de novos dogmas24 em matérias em que Leibniz já havia mostrado existirem dificuldades interpretativas. 25 Ao defender a liberdade de filosofar, mesmo entre os genus, a quo nisi per crimen (abjurando quae vera putas) tutus esse non possis? Itaque quanto quisque melior est, tanto magis sub hac tyrrannide laborat." Os termos não poderiam ser mais veementes, tirania que castiga tanto mais as pessoas quanto melhores elas são. Aliás, o exemplo de Gerberon não poderia ser melhor, por ser para isso que o prenderam, e pior, visto terem conseguido, após 7 anos e já bem depois desta carta, a sua retratação. Leibniz até fornece, nesta passagem, as condições daquilo que ele considera um castigo admissível para lá da censura intelectual: a perda ou não concessão de honras e comodidades; mas condena o recurso à confiscação de bens, à proscrição e, ainda mais, à prisão e à tortura. 23 ibidem, G, II, 338: "Archiepiscopi Cameracensis, viri certe magni et ob alia mihi valde aestimati, subtilitates miras, quibus in facti quaestionibus infallibilitatem Ecclesiae vindicat, discutere non vacat, neque mihi certe eo labore opus est, qui sentio nullam Ecclesiae infallibilitatem esse, nisi in conservandis dogmatibus salutaribus, dudum a Christo traditis; caetera ad disciplinam pertinere, ubi reverentia sufficit, assensus necessarius non est. Si Roma definisset, Antipodes non esse, si hodie motum terrae damnaret, an infallibilem habendam putaremus?" O Arcebispo referido é Fénelon. A utilização de exemplos da filosofia natural para questionar a infalibilidade papal é habitual em Leibniz, se bem que, até aí, Leibniz procurou compromissos com a Igreja, sustentando a equivalência das hipóteses astronómicas, suportada pela relatividade do movimento. O assunto já foi, porém, tratado em VI. 9. Também se viu aí, nota 450, como Leibniz rejeitava que só pudesse haver, à partida, verdadeira caridade numa dada Igreja, considerando que isso era uma matéria de facto, sendo, pelo contrário, possível até que se provasse o contrário: Leibniz, Carta para Des Bosses de 8 de Fevereiro de 1711, G, II, 419. 24 Leibniz, Carta para Des Bosses de 21 de Julho de 1707, G, II, 338: "Et licet mos ille malus in Ecclesia invaluerit, nova dogmata fidei producendi et alios condemnandi praeter necessitatem, non ideo minus improbari aliisque abusibus, qui irrepsere, computari debet." 25 ibidem, G, II, 337-8: "Valde noxium est constringi indies sentiendi libertatem non necessariis definitionibus. Fac quaedam esse, in quibus Scholastici quidam Pelagianis consentiant, an ideo statim damnandi sunt? Ipse Augustinus quasdam suas priores sententias, Pelagiana controversia invalescente, mutavit. Sufficit conclusiones Pelagianas et Semipelagianas primarias et ab Ecclesia antiqua rejectas vitari. Itaque ita sentio: si Jansenius aut Janseniana pars scopum obtinuisset, multo adhuc graviorem futuram fuisse servitutem; et in Jansenio reprehendi merito poterat condemnandi alios inconsulta vehementia. Sed evenit, nescio quo fato, ut reprehensa sint tanquam Janseniana, quae mihi, ut verum fatear, Jansenius docuisse non videtur, nam plus simplice vice protestatur, a se et Augustino vocabula libertatis, necessitatis, possibilitatis, impossibilitatis longe alio sensu sumi, quam qui in scholis est receptus; in quo Theses receptas se non negare ait, sed tamen de iis nec laborare. Itaque vereor, ne irrita sint illa Vaticana in eum fulmina, verissimaeque exceptiones amicorum Jansenii, quidvis potius in animo fuisse viro, quam sensum illum obvium censorum Romanorum. Nam sensus verborum hodie obvius in scholis, apud veteres obvius non erat. Et saepissime expertus ipse sum, quam varie ea ipsa verba ab hominibus sumantur inter loquendum pariter et scribendum, idque in populari sermone non minus quam inter eruditos. Itaque miratus sum, Dumasium vestrae partis scriptorem Historiae Jansenismi suae non addidisse, quod basis operis esse debebat, indicem locorum Jansenii, in quibus extent propositiones damnatae, ut facilius conferri possent. An putat in re, quae oculari inspectione constat, Vaticanorum Censorum autoritatem, et extortas subscriptiones sufficere posse?" É óbvia, neste passo, a assimilação com o seu próprio caso e com a má compreensão do sentido em que se usa, neste ou naquele autor, nesta ou naquela época, termos como "necessidade" e "possibilidade". Acrescente-se que a menção crítica a Hilaire Dumas é dirigida, diretamente, a um jesuíta. A defesa de Jansen não ficou por aqui nesta própria carta, para lá de o ter feito em muitas outras passagens, quer devido à simples perseguição, quer por aquilo que considerava interpretações defeituosas da Igreja, o que mostra que deveria ser um assunto que o afligia particularmente. Essa parece ser, aliás, a sua maior divergência em relação aos jesuístas, bem notória desde, pelo menos, a perseguição movida a Arnauld, esse mesmo Arnauld em que Leibniz depositava esperanças para uma aproximação das Igrejas: cf. Aiton, LB, 169-70. É no contexto da questão jansenista, também, que, já próximo do final da vida, Leibniz critica a atitude censória romana com base em críticas vagas e pouco fundamentadas: Leibniz, Carta para Des Bosses de 13 de Janeiro de 1716, G, II, 509: "Ego putem rectissime facturos Romanos, si dent explicationes tamdiu desideratas, ita enim haerentibus satisfacient. Nunquam mihi censurae illae vagae placuere, quibus percelluntur homines, non docentur. Et vereor ne Censurarum multitudine laboremus, quae praetextus saepe praebent vexandi viros bonos et doctos."

312

jesuítas, não deixa, aliás, de lamentar a extrema restrição que se vive em Itália e Espanha como causas de retrocesso intelectual.26 Em geral, a tendência predominante em Leibniz é a de defender a tolerância, mesmo no quadro dogmático incontornável da época, inclusive para si mesmo, como condição da própria possibilidade de diálogo com a Igreja Católica.27 A busca da tolerância de Arnauld para as suas teses inscrevia-se, aliás, nos esforços contemporâneos de reunião das Igrejas que contavam com o apoio de Leibniz, sobretudo um apoio que corporizava no plano do Bispo Católico Rojas, apesar de não concordar, em tudo, com ele. 28 Leibniz reconhecia que a tolerância não era condição suficiente, pelo que era preciso todo um trabalho de compromisso que reconhecia no método proposto por Rojas. 29 Porém, o apoio leibniziano ativo a um projeto de reunião das Igrejas protestantes com a Igreja Católica, no contexto da Revolução Gloriosa e de uma hostilidade britânica generalizada ao papismo,30 pode ter sido uma das origens das reservas mentais britânicas manifestadas nas polémicas com os newtonianos, incluindo as reservas desse antipapista radical que era Isaac Newton. Aliás, Leibniz continuaria a porfiar nesse desígnio até à sua velhice, pelo que seria difícil esquecer essa sua tendência para dialogar com responsáveis da Igreja Católica. O entusiasmo leibniziano pelas Academias, para lá dos seus projetos mais pessoais que adiante serão referidos, também advém das características que estas apresentaram, desde o seu início, apesar das diferenças que apresentavam entre si, como instituições avessas a qualquer sequestro por partidos ou fações, de qualquer tipo que fossem. Nesse sentido, é possível que Leibniz até se revisse mais na Académie Royale des Sciences31 na qual teve tantas esperanças de ficar assalariado32 antes (e até depois) de se comprometer com o Duque de Hannover, do que na Royal Society, embora não 26

Leibniz, Carta para Des Bosses de 21 de Julho de 1707, G, II, 335: "Etsi autem non probem primarias sententias autoris, optarem tamen concedi doctis, etiam vestris, philosophandi libertatem, quae aemulationem parit et ingenia excitat: contra animi servitute dejiciuntur, neque aliquid egregii ab iis exspectes, quibus nihil indulgeas. Itaque Itali et Hispani, quorum excitata sunt ingenia, tam parum in philosophia praestant, quia nimis arctantur." 27 Leibniz, Carta de Leibniz para o Landgrave de 30/4/1687, G, II, 103: "il y a des erreurs tolerables, et même [...] il y a des erreurs dont on croit que les consequences detruisent les articles de foy, et neantmoins on ne condamne pas ces erreurs, ny celuy qui les tient, parcequ'il n'approuve pas ces consequences ; par exemple les Thomistes tiennent que l'hypothese des Molinistes detruit la perfection de Dieu, et à l'encontre les Molinistes s'imaginent que la predetermination des premiers detruit la liberté humaine. Cependant l'Eglise n'ayant rien encor determiné là dessus, ny les uns ny les autres ne sçauroient passer pour heretiques, ny leur opinions pour des heresies. Je croy qu'on peut dire la même chose de mes propositions[...]. Mais il est aisé à luy [Arnauld] de juger de la tolerabilité, puisqu'il ne s'agit que de sçavoir, si elles sont contraires à quelques definitions de l'Eglise." 28 Aiton, LB, 152: "Although he did not agree with all Rojas had said, Leibniz thought his plan reasonable and useful." 29 ibidem, 141: "Tolerance, though a necessary beginning, was not sufficient by itself. Conferences and discussions, however, had usually proved fruitless, as had controversies in writing, because the proponents had sough to impress their own side rather than reach a solution. The great merit of the method proposed by the Catholic Bishop Rojas, after consultation with Protestant theologians, was that it could accomodate the principles of both Catholics and Protestants." 30 ibidem, 149. 31 Eamon, SN, 340: "The French Académie Royale des Sciences, which was founded at Paris in 1666, was explicitly conceived on Baconian principles. Indeed, the Paris Academy, with its exclusive coterie of professional scientists, may have resembled Solomon's House even more closely than did Royal Society. The academy's objective, according to one of its founding members, was "to banish all prejudice from science, basing everything on experiments, to find in them something certain, to dismiss all chimeras and to open an easy path to truth for those who will continue this practice." Cartesians and Jesuits were banned, not because of doctrinal differences, but because they were considered dogmatic partisans of metaphysical creeds rather than open-minded seekers after truth." 32 Aiton, LB, 55.

313

pela razão que se vê em tantos comentários mal informados, de uma menor atenção à experiência. 33 Particularmente, Leibniz revia-se na rejeição dos cartesianos pelas Academias, à semelhança dos aristotélicos ou de outras "obediências", na medida exatamente em que se deveria procurar a verdade independentemente de qualquer autoridade.34 O mesmo que, durante a maior parte da sua vida, disse dos cartesianos, acabou por ser, aliás, transposto para os newtonianos. Essa mesma oposição ao espírito de fação terá muito contribuído para a sua tendência a criar pontes de diálogo com os mais diversos interlocutores, Malebranche, Arnauld, Bayle, Thomas Burnet, Locke, De Volder, Lady Masham (a propósito de seu pai, Cudworth), Hartsoeker, Des Bosses, etc., tantas vezes tentando extrair da sua linguagem e conceções aquilo que, de alguma forma, pudesse ser compatibilizável ou até pudesse enriquecer o seu próprio pensamento. Na verdade, embora Leibniz também condenasse as disputas que considerava estéreis, sempre se mostrou disponível, como foi logo visto em I. 1, para o debate e considerava o confronto construtivo de ideias uma condição para a própria evolução intelectual e civilizacional dos povos. Além disso, o facto de estar constantemente assoberbado com as mais diversas atividades fazia com que muito pouco produzisse, em termos filosóficos, senão através do aguilhão da contraposição ou adaptação a uma posição diversa. a) Os dogmatismos de Leibniz Esta imagem diáfana de herói da razão, lutando, numa época extremamente dogmática e dogmática de uma forma temivelmente persecutória, contra a falta de tolerância e a imposição violenta da autoridade, o investigador desinteressado da 33

Não são, aliás, por acaso as referências, na polémica, a Bacon, pelo qual tinha uma admiração que incluía o seu modelo experimental, ao ponto de considerar que um bom experimento valia cem discursos: cf. Aiton, LB, 105. 34 Numa carta não identificada nem datada, Leibniz não poderia ser mais claro a este propósito, centrando muito a sua crítica nos cartesianos, mas não se restringindo apenas a esta facção: cf. G, IV, 297: "tout ceux qui donnent absolument dans les sentimens de quelque auteur tiennent de l'esclavage et se rendent suspects d'erreur ; car de dire que des Cartes est le seul des auteurs qui soit exempt d'erreur considérable, c'est une supposition qui pourra estre vraye, mais qui n'est pas vraisemblable. En effet, cet attachement n'appartient qu'à des petits esprits qui n'ont pas la force ou le loisir de méditer d'eux mêmes ou qui ne s'en veuillent pas donner la peine. C'est pourquoy les trois illustres Académies de nostre temps, la Societé Royale d'Angleterre qui a esté établie la première, et puis l'Academie Royale des Sciences à Paris et l'Academie del Cimento à Florence ont protesté hautement de ne vouloir estre ny Aristoteliciens ny Cartesiens ny Epicuriens ny sectateurs de quelque Auteur que ce soit. Aussi ay je reconnu par experience que ceux qui sont tout a fait Cartesiens ne sont gueres propres à inventer, ils ne font que le métier d'interpretes ou commentateurs de leur maistre, comme les philosophes de l'école faisoient sur Aristote ; et de tant de belles découvertes qu'on a faites depuis des Cartes, il n'y en a pas une que je sçache qui vienne d'un Cartesien veritable." Depois de um ataque cerrado a Descartes, nem sempre totalmente justo, concluirá assim, de forma tão familiar aos newtonianos, não só para falar de Descartes, mas também, em parte ao menos, de Leibniz, G, IV, 302-3: "S'il avoit eu moins d'ambition pour se faire une secte, plus de patience à raisonner sur les choses sensibles, et moins de penchant à donner dans l'invisible, il auroit peut-estre jetté les fondements de la vraye physique, car il avoit le genie admirable pour y reussir ; mais s'estant egaré du vray chemin, il a fait tort à sa reputation qui ne sera pas si durable que celle d'Archimede. On oubliera bientost le beau Roman de physique qu'il nous a donné. C'est donc à la posterité de commencer à bastir sur des meilleurs fondemens que les illustres Academies sont occupées de jetter en sorte que rien ne les puisse ebransler. Suivons donc leur exemple, contribuons à de si beaux desseins, ou bien si nous ne sommes pas propres à inventer, gardons au moins la liberté d'esprit si necessaire pour estre raisonnable." Dificilmente poderia haver declarações mais antidogmáticas que estas. De forma mais compacta, o mesmo é dito em Leibniz, G, IV, 349: "Ordinairement les sectateurs ex professo sont capables d'estre inventeurs et par je ne sçay quel malheur je ne connois aucune invention memorable qui soit d'aucun de ceux qu'on appelle proprement Cartesiens. Aussi les Societés ou Academies d'Angleterre, de France et d'Italie temoignent beaucoup d'eloigment de cet Esprit de secte, et font profession de demander des demonstrations ou experiences."

314

verdade não motivado por medo ou desejo, 35 não deixando de corresponder a parte significativa da atividade leibniziana, está longe de ser rigorosa e corresponder à mais completa verdade. Se se tenta conciliar diversas perspetivas dogmáticas entre si, sobretudo religiosas, como nos esforços de reunião das Igrejas que percorreram a maior parte da sua vida, a discussão toma como referência as interpretações dos dogmas, não pondo em causa um núcleo significativo de dogmas e, sobretudo, a legitimidade de um pensamento dogmático. Quando Leibniz declara que é preferível reformar as opiniões recebidas do que as derrubar,36 sobretudo num contexto de conciliação com os dogmas católicos, após ter indicado o fim de não permitir que a juventude seja infetada por princípios objetáveis, 37 não só recorre ao princípio de autoridade como mostra, pelo menos, uma contemporização com o espírito censório e persecutório do dogmatismo. Considera mesmo que "as opiniões mais antigas e mais recebidas são as melhores", condenando a pura inovação.38 A própria Teodiceia, enquanto projeto de conformidade entre a razão e a fé, não deixa de ter muito de Escolástico. Desde a sua juventude que Leibniz procurava conciliar as suas afirmações com as opiniões recebidas e tinha a intenção de recorrer, pelo menos como tática persuasiva, ao princípio de autoridade.39 Aliás, a sua adaptação aos interlocutores inclui o reconhecimento de adaptar a sua escrita de forma a ser aceite por instituições dogmáticas como a Companhia de Jesus.40 De facto, a sua admiração por esta última não resulta apenas do seu espírito de missão e da sua organização. As academias que gostaria de formar, até para a realização do seu projeto enciclopédico, não seriam organizações abertas à maior multiplicidade de contribuições possível como ocorreu na primeira Royal Society, mas sim organizações disciplinadas, autónomas, guiadas e talvez controladas por objetivos bem identificados. 41 O perfil do associado parece ser quase idêntico ao proposto na sua juventude, talvez com exceção do facto de pôr aí em pé de igualdade o espírito de seita

35

Aiton, LB, 261, embora se trate do simples apoio às declarações da sua amada Sofia Carlota. Leibniz, Carta para Des Bosses de 2 de Fevereiro de 1706, G, II, 295: "Fateor me adolescentem etiam Scholae spinas attigisse nonnihil (praeter morem nostrorum) neque id fecisse unquam poenituit, et alioqui eo semper animo fui, ut mallem recepta emendari quam everti. Inde natae sunt mihi conciliatoriae Meditationes, quibus pro humanitate Tua tantopere faves." 37 ibidem, G, II, 294: "TE vero, Vir Eximie, cum rectum iter ingredi videam emendandae atque exponendae Philosophiae ad usum scholae, ut juventus non poenitendis principiis imbuatur, etiam atque etiam (pro ea quam mihi indulges libertate) hortari audeo, ne in re tanta Reipublicae, imo Ecclesiae desis. Et Theologiam docenti ubique sese offert Philosophia." 38 Leibniz, Carta para o Landgrave de 12/4/1686, G, II, 20-1: "je pretends nullement à la gloire d'estre Novateur[...]. Au contraire je trouve ordinairement que les opinions les plus anciennes et les plus receues sont les meilleurs. Et je ne croy pas qu'on puisse estre accusé de l'estre (d'estre Novateur), quand on produit seulement quelque nouvelles verités, sans renverser les sentimens establis (reçus). Car c'est ce que font les Geometres et tous ceux qui passent plus avant. Et je ne sçay, s'il sera facile de marquer des opinions autorisées à qui les miennes soyent opposées." 39 Christia Mercer and R. C. Sleigh, Jr., op. cit., p. 71. 40 Leibniz, Carta para Des Bosses de 3 de Setembro de 1708, G, II, 356, ver VI. 7, nota 262. 41 Couturat, LL, 513: "Leibniz définit, avec beaucoup de bon sens et de finesse, les conditions morales que devrait remplir une telle societé. Ce ne devrait être ni une societé sans lien durable et sans union intime, comme les Académies libres, ni une société patronée et subventionée par les grands et les pouvoirs publics, comme les Universités et l'Académie Royale de Paris ; parce que dans le premier cas elles manquent d'entente et de zèle pour l'œuvre commune, et dans le second cas, elles sont encombrées de parasites, protégés de courtisans, qui ne travaillent que pour l'argent et paralysent l'activité des autres membres. La société que souhaite Leibniz devrait être indépendante, fondée sur l'union volontaire et l'accord réciproque, et en même temps posséder en propre des biens et des revenus. Elle ne pourrait donc être que le résultat d'une fondation privée faite par des personnes généreuses et zélées pour la science. [...] Il précise encore sa pensée en disant que cette societé devrait ressembler à un ordre monastique ou à une congrégation comme celles de l'Église romaine." 36

315

e o de sistema.42 Talvez fosse, porém, mais claro na juventude o teor do projeto, cujo fim último parece ser mais o poder (mesmo se bem intencionado) do que o saber. 43 Ao se confrontar com as dificuldades dos seus projetos, estes acabarão por se limitar e ser transferidos, total ou parcialmente, para a própria Companhia de Jesus, deixando assim a mera comparação. Isso é especialmente visível no apoio dado aos jesuítas nos seus ataques aos cartesianos, subscritos, da mesma forma dogmática, por Leibniz. Se algumas expressões utilizadas por Leibniz, se poderiam interpretar no âmbito da mera discussão intelectual,44 o seu apoio inequívoco à atuação jesuíta põe toda a questão a outro nível.45 Neste contexto, não são muito diferentes as acusações leibnizianas aos cartesianos que, numa derrapagem argumentativa, vão da curiosidade à subversão e da subversão à libertinagem, e tantas outras apologias da perseguição que varriam a Europa de então contra a liberdade de pensamento.46 Poder-se-á considerar que se trata de uma 42

ibidem, 505: "Il énumère les qualités morales qu'on devra exiger des sociétaires : ils devront avoir horreur des plagiats, de l'esprit de secte et de système, des disputes et des rivalités ; ils ne devront pas avoir d'amour-propre ni de jalousie, ni d'ambition égoïste, ni surtout l'amour de l'argent ; ils devront être unis par le pur amour de la science et de la verité." 43 ibidem, 506-7: "Elle sera d'abord exempte de tous impôts, en échange de quoi elle pourvoira gratuitement à tous les services publics, fournira magistrats, avocats, médecins, professeurs, etc., ce qui lui acquerra la faveur populaire et une grande influence, « à l'exemple des Jésuites » . [...] Elle nouera des relations étroites avec les sociétés savantes et les ordres religieux, notamment la Compagnie de Jésus. Ses membres ecclésiastiques se feront confesseurs pour capter les héritages (toujours à l'imitation des Jésuites). Elle exploitera les privilèges ou brevets des inventions dues à ses membres, et dont elle gardera le secret. Enfim elle aura la haute main sur les universités, sur le gouvernement, sur l'armée, sur la marine, sur les colonies, qu'elle remplira de ses membres et de ses élèves. Elle acquerra ainsi une extension internationale et une influence universelle qui lui permettront de mettre fin aux guerres et d'empêcher les injustices et les violences entre les nations. C'est un rêve étrange et séduisant que celui de cette espèce d'Internationale des savants, calquée sur la Compagnie de Jésus, et qui ferait servir au progrès des sciences et au bonheur du genre humain une puissance et des méthodes d'action analogues à celles que les Jésuites mettaient au service de la politique pontificale." Ver Leibniz, OV, VII, "Leibniz et les Académies", 1875. 44 Leibniz, G, IV, 344: "on ne doit pas souffrir que nos modernes, pour embellir la physique particuliere, nous detruisent la metaphysique, et nous renversent la morale et la Theologie, à quoy il semble que quelque unes de leur opinions pourroient porter." Na mesma página, referindo-se à abolição das causas finais: "Ce qui cache une profanité dangereuse." ibidem, 345: "L'ambition de faire une secte a porté quelque fois de bons esprits à avancer des nouveautés choquantes et dangereuses. Mais par là ils entrent en guerre avec les autres et font tort aux bonnes choses qu'ils disent, comme aussi aux verités anciennes, dont ils ébranlent les fondements dans l'opinion des hommes amateurs de nouveautés." É difícil não dar um sentido bem denotativo aos adjetivos usados ou à esperança de "un ouvrage parfait d'une philosophie demonstrative, capable d'effacer les novateurs" (ibidem, 347) depositada no jesuíta de la Chaise. 45 ibidem, G, IV, 346: Descartes "a terni ces belles qualités par une ambition demesurée d'estre chef de secte, par un mépris intolerable et souvent mal fondé des autres et par des artifices eloignés de la sincerité, dont il est aisé de voir des marques ; et les applaudissemens qu'on luy donna, l'ayant rendu trop hardi et presque temeraire, il est tombé dans des erreurs et a crû d'avoir decouvert des choses dont il estoit encor bien eloigné. Et comme sa philosophie mal prise va faire grand tort à la religion, si elle prend le dessus, car il semble qu'elle mene droit aux sentimen de Spinoza, qui a osé dire ce que des Cartes a evité avec soin, on a sujet de s'y opposer. C'est pourquoy je loue fort le zele des RR. PP. Jesuites qui ont crû que le plus seur est de ne se pas eloigner sans necessité et sans demonstration des dogmes receus qui souvent interessent la religion." O passo seguinte surge logo após um já citado referente ao afastamento do espírito de seita nas novas Academias, ibidem, G, IV, 349: "Je conclus qu'il est important de desabuser les hommes des opinions dangereuses ou inutiles, de retablir la reputation de la philosophie de S. Thomas, et de tant d'autres habiles gens dont les meditations que les esprits populaires decrient, ont plus de solidité qu'on ne pense, de faire cesser cette manie des sectes et qui tendent à renverser les dogmes bien fondés par quelques nouvelles expressions ou opinions avancées recemment, et d'etablir enfim des Elemens demonstratifs et tout à fait rigoureux à la façon des Geometres, qu'on puisse enseigner seurement dans les écoles, et employer utilement dans la vie humaine. Et à mon avis les RR. PP. Jesuites sont les plus capables de donner ce bien au genre humain." 46 Ibidem, G, IV, 343: "Il est asseuré que l'abus de la philosophie nouvelle fait grand prejudice à la pieté,

316

fraqueza leibniziana no caso do cartesianismo, que o leva mesmo a criar um espantalho dogmático do abuso da dúvida metódica, 47 mas não é exatamente o mesmo tipo de ataque dogmático que Leibniz procura promover na polémica com Clarke? Foi visto, durante este trabalho: que a polémica se inicia por uma acusação religiosa; que Leibniz recorre várias vezes ao princípio de autoridade, utilizando o próprio Descartes que tanto atacou,48 os ocasionalistas,49 o próprio Boyle,50 etc., como referências de autoridade que deveriam ser tidas em conta, para lá de outras mais vagas ou menos claramente dogmáticas; que lança uma ameaça clara à possibilidade de defesa de uma tese pelos adversários; 51 que insinua uma acusação de heresia; 52 e que, finalmente, recorre a uma genérica autoridade teológica,53 o que, aliás, lhe vale duas particulierement en quelque pays, où ces dogmes nouveaux sont fort connus non seulement des doctes, mais generalement de tous ceux qui se piquent un peu d'esprit et de curiosité. Car comme ils donnent moyen aux personnes sans étude de parler hardiment de toute sorte de matieres, et de mepriser les maistres et les docteurs de profession qui ont passé leur vie à mediter et à enseigner, on voit que quantité de personnes, et particulierement les jeunes gens ne manquent pas de donner là dedans. Ce qui ne seroit pas un fort grand mal, si cette liberté de philosopher qui rejette les abstractions et rapporte tout à la necessité de la matiere, et à ce qui frappe l'imagination. ne disposoit quelque fois au libertinage, outre qu'elle nuit au progrés des sciences, en accoustumant les gens au babil qui n'aboutit à rien, au lieu d'une meditation utile." 47 ibidem, G, IV, 344-5: "Le conseil non seulement de revoquer tout en doute, mais même de rejetter comme faux ce qui est douteux, quoy qu'il puisse recevoir une bonne explication, n'est pas necessaire à la decouverte de la verité, et peut estre sujet à de grands abus." 48 De início, não parecia, de todo, uma referência dogmática: Leibniz, Streitschriften..., 4º escrito, § 11, G, VII, 373: "Dire que l'espace infini est sans parties, c'est dire que les espaces finis ne le composent point, et que l'espace infini pourroit subsister, quand tous les espaces finis seroient reduits à rien. Ce seroit comme si l'on disoit dans la supposittion Cartesienne d'un Univers corporel etendu sans bornes, que cet univers pourroit subsister, quand tous les corps qui le composent, seroient reduits à rien." Torna-se mais claro em Leibniz, op. cit., 5º escrito, § 32, G, VII, 396, ver II. 3, nota 70. Conjuntamente com os aristotélicos, talvez também em Leibniz, op. cit., § 34, G, VII, 396-7, ver IV. 6, nota 198. 49 Começando por Malebranche, Leibniz, op. cit., 2º escrito, § 4, G, VII, 356, ver V. 1, nota 26; Leibniz, op. cit, 5º escrito, § 84, G, VII, 410, ver V. 2, nota 108. 50 Leibniz, op. cit, § 114, G, VII, 417: "Du temps de Monsieur Boyle et d'autres excellens hommes qui fleurissoient en Angleterre sous les commencemens de Charles II, on n'auroit pas osé nous debiter des notions si creuses. J'espere que ce beau temps reviendra sous un aussi bon Gouvernement que celuy d'à present, et que les esprits un peu trop divertis par le malheur des temps, retourneront à mieux cultiver les connoisances solides. Le capital de M. Boyle étoit d'inculquer que tout se faisoit mechaniquement dans la Physique. Mais c'est un malheur des hommes, de se dégouter enfin de la raison même, et de s'ennuyer de la lumiere. Les chimeres commencent à revenir, et plaisent parce qu'elles ont quelque chose de merveilleux. Il arrive dans le pays Philosophique ce qui est arrivé dans le pays Poëtique. On s'est lassé des Romans raisonnables, tels que la Clelie Françoise, ou l'Aramene Allemande, et on est revenu depuis quelque temps aux Contes des Fées." 51 Leibniz, op. cit, 2º escrito, § 10, G, VII, 358: "Je ne crois point qu'on me puisse reprendre avec raison, d'avoir dit que Dieu est Intelligentia supramundana. Ceux qui le desapprouvent diront ils qu'il est Intelligentia Mundana, c'est à dire qu'il est l'Ame du Monde? J'espere que non. Cependant ils feront bien de se garder d'y donner sans y penser." 52 Leibniz, op. cit., § 9, G, VII, 358 (ver VI, 2, nota 45); 5º escrito, § 5, G, VII, 389-90 (VI. 9, nota 583). 53 Leibniz, op. cit, 3º escrito, § 17, G, VII, 366: "Les Theologiens ne demeureront point d'accord de la Thèse qu'on avance contre moy, qu'il n'y a point de difference par rapport à Dieu, entre le naturel et le surnaturel. La pluspart des philosophes l'approuveront encor moins. Il y a une difference infinie ; mais il paroist bien qu'on ne l'a pas bien considerée."; 4º escrito, § 42, G, VII, 377: "Il semble qu'on avoue icy que l'idée qu'on se fait du miracle n'est pas celle qu'en ont communement les Theologiens et les Philosophes. Il me suffit donc, que mes adversaires sont obligés de recourir a ce qu'on appelle miracle dans l'usage receu et qu'on tache d'eviter en philosophant." Parecendo inócua, esta passagem é deveras reveladora. Leibniz fica satisfeito com o reconhecimento do sentido tradicional teológico como se isso lhe desse uma razão indiscutível, referindo-se ao filosofar de forma depreciativa, como se o que importasse fosse a autoridade em que um significado se baseia e não o maior ou menor sentido que ele tem em conformidade com a realidade. Veja-se, também, ibidem, 5º escrito, §§ 106-108, G, VII, 416: [parte

317

verdadeiras reprimendas antidogmáticas do reverendo Samuel Clarke.54 Esta tendência para algum dogmatismo teológico ter-se-á, aliás, agravado na polémica porque, como foi visto em VI. 9, Leibniz estaria convencido da ortodoxia da sua posição e suspeitaria do caráter herético das rivais.55 Por muito que custe, há que reconhecer que, se não se olhar para o ambiente geral da época, mas para a vanguarda intelectual da mesma, existem características inegavelmente dogmáticas, no sentido religioso tradicional, em Leibniz, mesmo se, de acordo com o concluído em VI. 9, a sua conceção de religião se ancorava, primariamente, na racionalidade, "um padre da justiça natural", pouco ligando aos deveres formais rituais da religião,56 advindo esse dogmatismo da sua ânsia de tudo relevante do § 106, ver IV. 3, nota 104] "ce n'est pas l'usuel ou non-usuel, qui fait le miracle proprement dit, ou de la plus grande espece, mais de surpasser les forces des creatures: et que c'est le sentiment des Theologiens et des Philosophes. Et qu'ainsi on m'accorde au moins, que ce qu'on introduit, et que je desapprouve, est un miracle de la plus grande espece, suivant la notion receue, c'est à dire, qui surpasse les forces creées ; et que c'est justement ce que tout le monde tache d'eviter en philosophie. On me répond maintenant, que c'est appeller de la raison à l'opinion vulgaire. Mais je replique encore, que cette opinion vulgaire, suivant laquelle il faut eviter, en philosophant, autant qu'il se peut, ce qui surpasse les natures des creatures, est tres raisonnable. Autrement rien ne sera si aisé que de rendre raison de tout, en faisant survenir une Divinité, Deum ex machina, sans se soucier des natures des choses. D'ailleurs le sentiment commun des Theologiens ne doit pas etre traité simplement en opinion vulgaire. Il faut de grandes raisons pour qu'on ose y contrevenir, et je n'en vois aucune icy." Mais um passo bem revelador, visto, segundo Leibniz, não bastarem simples razões para contraditar o sentimento comum dos teólogos, cuja autoridade, não sendo totalmente inquestionável, é aqui, implicitamente, considerada só questionável em casos excecionais extraordinariamente fundamentados. Significa isso que, em geral, se deve, segundo Leibniz, seguir a autoridade teológica, mesmo tendo razões em contrário. Vide ibidem, § 112, G, VII, 417, ver VI. 1, nota 32; ibidem, § 117, G, VII, 418, ver VI. 5, mota 174. 54 Clarke, Streitschriften..., 3ª réplica, § 17, G, VII, 371 ; 5ª réplica, §§110-116, G, VII, 436. A posição de Leibniz está longe de ser contrária em absoluto ao princípio de autoridade, sobretudo aquela que tem a tradição do seu lado: Leibniz, Nouveaux essais..., L. IV, Ch. XX, § 17, G, V, 501: "Cependant je ne suis point d'avis qu'on meprise l'antiquité en matiere de Religion ; et je croy même qu'on peut dire que Dieu a preservé les Conciles veritablement oecumeniques jusqu'icy de toute erreur, contraire à la doctrine salutaire." Daí, utilizar recorrentemente o Concílio de Latrão, o último que, na sua opinião luterana, foi verdadeiramente ecuménico, como referência de autoridade, e. g., Leibniz, Carta para Arnauld de 28 de Novembro/6 de Dezembro de 1686, G, II, 75, ver VI. 7, nota 277, ou Leibniz, Carta para Des Bosses de 4 de Outubro de 1706, G, II, 319. Como é óbvio, Newton não seria favorável a esta infalibilidade dos concílios ecuménicos: cf. Newton, Irenicum, fol. 52 in Van Alan Herd, op. cit., p. 60: “even general Councils have erred & may erre even in matters of faith & what they decree as necessary to salvation is of no strength or authority unless they can be shewn to be taken from the holy scriptures.” Porém, Leibniz parece restringir essa infalibilidade ao núcleo doutrinário, pondo de lado quer questões de facto, quer divergências interpretativas dessas mesmas doutrinas. Parece ser isso que defende perante Des Bosses quando, aliás, equipara as censuras feitas à Companhia de Jesus às feitas a Jansen, ainda antes das passagens acima citadas: Leibniz, Carta para Des Bosses de 5 de Fevereiro de 1707, G, II, 327-8: "ego enim fateor me semper Bellarmini et aliorum sententiam magis probasse, qui ipsa Generalia Concilia in eo genere labi posse putant, et nollem commodis praesentibus affectibusque doctrinas imposterum poenitendas dari. Imponere etiam omnibus, ut in rebus hujusmodi de interiore assensu jurare debeant, iniquum arbitror, cum ille hic non sit in potestate nec adsint quae sufficiant ad persuadendum. Ecclesiae autoritas, (quam ego, si justis limitibus contineatur venerandam arbitror) perinde ut principum non augetur abusu et prolatationibus nimiis, sed tandem etiam intra aequum periclitatur, quod experientia plus semel docuit. Utinam praeclari homines et in vestro ordine et alibi passim vel ponerent vel coercerent hos affectus, quibus non raro boni viri gravantur. Ego nec Sorbonicorum in vestros acta nupera nec vestrorum in Jansenii memoriam laudare potui, et damnatas propositiones nasi cerei similes puto, cum nemo nesciat, quam varie possibilitatis necessitatisque nomina accipiantur." 55 Meli, CL, 484, ver VI. 9, nota 583. 56 Pelo menos, durante toda a sua velhice, nunca terá comungado, apesar do destaque que se viu ter a Eucaristia nas suas reflexões, e terá recusado os serviços de um pastor luterano no leito de morte. Eckhart considera que ele era, em geral, considerado, pela corte de Hannover, como um descrente e testemunha que Leibniz não encontrava nada no Novo Testamento senão a transmissão do ideal de justiça natural, em conformidade com a sua conceção de religião natural. Cf. Aiton, LB, 348-9.

318

tentar compatibilizar, incluindo as diversas tradições dogmáticas cristãs. Mas o dogmatismo não se fica por aí. Já na juventude, Leibniz pretendeu captar para si ou para o Eleitorado que, na altura, servia (Mainz), toda a censura de livros do Império, incluindo a aplicação de medidas preventivas e "profiláticas". 57 Poder-se-ia pensar tratar-se de um serviço à sua tutela da altura, mas, numa passagem da maturidade até indicadora de moderação e sem quaisquer objetivos de Estado, Leibniz não se coíbe de apoiar alguma censura, muito embora com um tom mais paternalista que repressor: "Temos o direito de tomar precauções contra más doutrinas, que têm influência sobre os costumes e a prática da piedade: mas não devemos atribuí-las às pessoas em seu prejuízo, sem ter boas provas. Se a equidade quer que poupemos as pessoas, a piedade ordena que se mostre onde está o mau efeito dos seus dogmas, quando eles são prejudiciais, como são aqueles que vão contra a providência de um Deus perfeitamente sábio, bom e justo, e contra esta imortalidade das almas que as torna suscetíveis dos efeitos da sua justiça, sem falar de outras opiniões perigosas em relação à moral e à ordem." 58 O mesmo tom paternalista, considerando, em princípio, boa a perspetiva antidogmática, mas rapidamente passando da defesa das pessoas às verdades que a elas estariam ligadas, se nota nos comentários à Carta sobre o Entusiasmo de Shaftesbury.59 Menos habitual é o típico dogmatismo de senso comum de se justificar com o que toda a gente diz ou pensa. Pelo contrário, na polémica com Clarke, é habitual a utilização depreciativa do termo vulgar, le vulgaire, opinion vulgaire,60 quer no sentido de senso comum, quer no sentido de uma filosofia fácil. Não deixando de ser um recurso dogmático, é bem mais compreensível do que o recurso à opinião comum. Esta chega a ser referida mas tendo como referência o alegado consenso dos especialistas, nesse caso dos teólogos. 61 Porém, nem mesmo ao recurso dogmático à opinião comum, ad populum, Leibniz é imune, apesar de as suas teses tanto o afastarem das conceções de senso comum. Bem notório é esse recurso na primeira vez que apresenta com razoável desenvolvimento o seu pensamento bem afastado do vulgo, na correspondência com Arnauld.62 O facto de ter tantas teses bem afastadas do que "todo o género humano" 57

Leibniz, OV, VII, 3-4, 8-11. Embora estas passagens pareçam repugnantes para um espírito ocidental contemporâneo, se se tiver em atenção a continuação do texto, poder-se-á perceber que esta censura profilática, prévia e imediata, que pretendia revitalizar a censura existente e pouco eficaz, era considerada como uma condição para o desenvolvimento de um verdadeiro trabalho enciclopédico e académico, como Leibniz o sonhava. 58 Leibniz, Nouveaux essais..., L. IV, Ch. XVI, § 4, G, V, 443: "On a droit de prendre des precautions contre de mauvaises doctrines, qui ont de l'influence dans les moeurs et dans la practique de la pieté : mais on ne doit pas les attribuer aux gens à leur prejudice sans en avoir de bonnes preuves. Si l'equité veut qu'on epargne les personnes, la pieté ordonne de representer où il appartient le mauvais effect de leur dogmes, quand ils sont nuisibles, comme sont ceux qui vont contre la providence d'un Dieu parfaitement sage, bon et juste, et contre cette immortalité des ames qui les rend susceptibles des effects de sa justice, sans parler d'autres opinions dangereuses par rapport à la Morale et à la Police." 59 Leibniz, Remarques sur lettre sur l'enthousiasme, § IV, OM, V, 47-8: "il [Shaftesbury, embora inicialmente anónimo] lui semble pourtant que l'autorité publique met trop de bornes à la liberté de critiquer, & il voudroit que rien n'en fut exempt. Je veux croire qu'il ne parle que des Dogmes, & qu'il ne niera pas qu'on doit respecter certaines personnes. Mais souvent les Dogmes sont liés avec ces personnes ; & quand ces Dogmes sont véritables & contiennent des verités très-utiles & très importantes, je ne vois point à quoi puisse servir la liberté de critiquer ces vérités & de les rendre douteuses." Cf. [Anthony, Earl of Shaftesbury], A Letter concerning Enthusiasm, London, J. Morphew, 1708, muito embora pelo texto e pelos parágrafos, seja claro que Leibniz terá lido a tradução francesa, publicada em Haia, de 1709. 60 Leibniz Streitschriften..., 4ª escrito, §§ 33-34, G, VII, 376: "[...]ce que le vulgaire attribue à l'ame dans le corps. En voulant soutenir cette opinion vulgaire de l'influence de l'ame sur le corps[...]"; ibidem, 5º escrito, § 21, G, VII, 394, ver IV. 4, nota 139; ibidem, § 84, G, VII, 410, ver V. 2, nota 108. Além destas, há outras referências aos filósofos e à filososofia vulgar. 61 Leibniz, op. cit, 4º escrito, §§ 42-43, G, VII, 377 62 Leibniz, Carta para o Landgrave de 12/4/1686, G, II, 20-1: "le monde n'a pas tousjours esté de son [de

319

pensa não o coibiu de recorrer a tal argumento para atacar adversários, nomeadamente, como habitual, o cartesianismo, o que também é revelador de uma tendência dogmática. Porém, a razão que levou, primitivamente, à criação desta secção não estava radicada nos dogmatismos religiosos, políticos ou morais, mas sim na existência, em ambos os lados da contenda, de verdadeiros dogmatismos epistemológicos. Ora, a pretensão quase constante de demonstrar verdades especulativas baseadas em princípios metafísicos, 63 tão comum, aliás, na época (e embora comum quer a Leibniz, quer a Clarke, não tendo o mesmo entusiasmo neste último), foi o que mereceu de Kant a acusação de dogmatismo. 64 Ortega y Gasset considerava que, para Leibniz, pensar significava provar. 65 Não parece possível sustentar semelhante afirmação, apesar da noção de prova, em Leibniz, ser bastante vasta. Já seria diferente se Gasset tivesse ligado a prova ao conhecimento. A questão é especialmente importante na polémica porque os interlocutores passam boa parte do tempo a pretender ter provado diversas teses (não necessariamente na própria correspondência) e a exigir provas ao adversário. A este propósito, Leibniz pretende que o princípio da razão suficiente não precise de prova;66 pretende ter provado ou demonstrado os princípios dinâmicos ou da força,67 a relatividade do espaço e do tempo, através da conjugação entre o princípio da razão suficiente e o princípio dos indiscerníveis,68 o caráter imaginário do espaço vazio,69 a Arnauld] sentiment." Carta para Arnauld de Setembro ou Outubro de 1687, G, II, 117: "Il sera difficile d'arracher au genre humain cette opinion receue tousjours et par tout, et catholique s'il en fut jamais, que les bestes ont du sentiment." ibidem, G, II, 120-1: "ce n'est tout à fait sans raison, que tout le genre humain a tousjours donné dans l'opinion qu'il a du sentiment des bestes". 63 Veja-se, a mero título de exemplo, entre tantos outros que poderiam ser dados, a resenha de supostas demonstrações, numa manifestação condensada do que o prof. Pedro Alves, informalmente, chamou a afirmação de uma razão presunçosa, em Leibniz, op. cit., L. IV, Ch. III, § 18, G, V, 364: "Qu'y at-il de plus important, supposé qu'il soit vray, que ce que je crois que nous avons determiné sur la nature des substances, sur les unités et les multitudes, sur l'identité et la diversité, sur la constitution des individus, sur l'impossibilité du vuide et des atomes, sur l'origine de la cohesion, sur la loy de la continuité, et sur les autres loix de la nature ; mais principalement sur l'harmonie des choses, l'immaterialité des ames, l'union de l'ame et du corps, la conservation des ames, et même de l'animal, au delà de la mort. Et il n'y a rien en tout cela, que je ne croye demonstré ou demonstrable." 64 Kant, KV, Prefácio 2ª ed., 30. 65 José Ortega y Gasset, Obras Completas, 1962, 2ª ed., Madrid, Revista de Occidente, 1965, Tomo VIII, La Idea de Principio en Leibniz y la Evolucion de la Teoria Deductiva, p. 71: "En efecto: a la pregunta ¿qué entiende Leibniz por «pensar»?, se puede responder con un pistoletazo verbal: pensar es probar." 66 Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 18, G, VII, 393: "Ces raisonnemens sautent aux yeux, et il est bien etrange de m'imputer que j'avance mon principe du besoin d'une raison süffisante, sans aucune preuve tirée ou de la nature des choses, ou des perfections Divines." O resto em IV. 7, nota 244. Leibniz, op. cit., § 125, G. VII, 419: "Ce principe est celuy du besoin d'une Raison suffisante, pour qu'une chose existe, qu'un evenement arrive, qu'une verité ait lieu. Est ce un principe qui a besoin de preuve?" 67 Leibniz, op. cit., 2º escrito, § 1, G, VII, 356. Ver II. 1, nota 23. 68 Leibniz, op. cit, 3º escrito, § 2, G, VII, 363: "on se sert d'une instance qui tombe justement dans une de mes Demonstrations contre l'Espace reel absolu"; ibidem, §§ 5-6, G, VII, 363-4: "Pour refuter l'imagination de ceux qui prennent l'espace pour une substance, ou du moins pour quelque étre absolu, j'ay plusieurs demonstrations. Mais je ne veux me servir à present que de celle dont on me fournit icy l'occasion." Para o resto do § 5, ver II. 3, nota 73. O § 6 aplica o mesmo raciocínio ao tempo. Ibidem, 5º escrito, § 29, G, VII, 395: "J'ay demontré que l'espace n'est autre chose qu'un ordre de l'existence des choses, qui se remarque dans leur simultaneité." Após a trancrição já feita em IV. 8, nota 290, ibidem, § 52, G, VII, 404: "Le contraire est fondé sur la supposition d'un espace reel absolu, que j'ay refuté demonstrativement par le principe du besoin d'une raison suffisante des choses." Logo após outra passagem transcrita em IV. 8, nota 295, referindo-se à realidade absoluta do espaço, ibidem, § 53: "Et j'ay demonstré la fausseté de cette realité par un principe fundamental des plus raisonnables et des plus éprouvés, contre lequel on ne sauroit trouver aucune exception ny instance." Para o tempo, ver IV. 4, nota 115, e 10, ibidem, § 55, nota 385. 69 Leibniz, op. cit., 4º escrito, § 7, G, VII, 372, ver IV. 4, nota 144.

320

não existência de átomos, a subdivisão infinita e o movimento constante da matéria70 e a existência de Deus pela harmonia pré-estabelecida;71 e exige provas de que a perda de força seja uma consequência da dependência das coisas criadas,72 de que a sua conceção de liberdade leve à necessidade e fatalidade,73 da realidade própria do espaço74 e de que um agente necessário não seria um agente.75 Todos estes casos são, para Leibniz, conceptuais, visto não aceitar as pretensões dos Principia de comprovação empírica do espaço absoluto, mas isto não significa que não admita provas empíricas. Além disso, Leibniz considera como conhecimento não simplesmente o certo, mas também o provável e, correspondentemente, admite que existam provas não somente para o certo, mas também para o provável. 76 Da mesma forma, distingue entre provas de verdades necessárias e provas empíricas, considerando que estas nunca poderiam sustentar uma verdade universal sem recurso àquelas.77 Por outro lado, como substituto da análise interminável, a experiência, apesar de tutelada pelo princípio da razão, acaba por guiar, controlar e confirmar a razão nos assuntos que não se podem encerrar de forma estritamente analítica.78 Multiplíssimas vezes, Leibniz 70

Leibniz, op. cit., 5º escrito, § 22, G, VII, 394, ver IV. 9, nota 339. Leibniz, op. cit., 5º escrito, § 87, G, VII, 411. Ver V. 2, nota 118. 72 Leibniz, op. cit., 4º escrito, § 39, G, VII, 376: "Comment prouveront-ils, que ce defaut est une suite de la dependance des choses?"; ibidem, 5º escrito, § 100, G, VII, 414 (ver VI. 1, nota 28); em relação com a inércia, ibidem, § 102, G, VII, 414 (ver VI. 8, nota 340). 73 Leibniz, op. cit., § 3, G, VII, 389: [Ver início em III. 4, nota 92] "On objecte, que cette notion mene à la necessité et à la fatalité. Mais on le dit sans le prouver, et sans prendre connoissance des explications que j'ay données autresfois pour lever toutes les difficultés qu'on peut faire lá dessus." 74 Leibniz, op. cit., § 53, G, VII, 404 (ver IV. 8, nota 299). 75 Leibniz, op. cit., § 77, G, VII, 409: "ce qu'on adjoute icy, est mal fondé, qu'un agent necessaire ne seroit point un agent. On prononce souvent hardiment et sans fondement, en avançant contre moy des theses qu'on ne sauroit prouver." 76 Leibniz op. cit., Nouveaux essais..., L. IV, Ch. II, § 14, G, V, 354: PH. "nous pouvons compter trois sortes de connoissances : l'intuitive, la demonstrative, et la sensitive. TH. Je crois que vous avés raison, Monsieur, et je pense même qu'à ces especes de la certitude ou à la connoissance certaine vous pourriés adjouter la connoissance du vraisemblable ; ainsi il y aura deux sortes de connoissances, comme il y a deux sortes de preuves, dont les unes produisent la certitude, et les autres ne se terminent qu'à la probabilité." 77 Leibniz, op. cit., L. I, Ch. I, § 5, G, V, 76: "Vous voyez donc, Monsieur, que ces personnes très-habiles d'ailleurs qui sont d'un autre sentiment, paroissent n'avoir pas assez medité sur les suites de la difference, qu'il y a entre les verités necessaires ou éternelles, et entre les verités d'expérience, comme je l'ay déja remarqué, et comme toute nostre contestation le monstre. La preuve originaire des verités necessaires vient du seul entendement, et les autres verités viennent des experiences ou des observations des sens. Nostre esprit est capable de connoistre les unes et les autres, mais il est la source des premières, et quelque nombre d'experiences particulières qu'on puisse avoir d'une verité universelle, on ne sauroit s'en asseurer pour tousjours par l'induction, sans en connoistre la necessité par la raison." Leibniz, Carta para a Eleitora Sofia de 12 de junho de 1700, G, VII, 553: "lorsqu'on a appris quelque verité par experience, les sens ou les experiences peuvent bien nous faire presumer qu'il en ira tousjours ainsi dans les exemples que nous n'avons pas encor experimentés ; mais on ne sera jamais asseuré de la necessité de la chose sans appeller à son secours les raissonnemens demonstratifs, fondés sur la lumiere interne independante des sens." Neste sentido, fala Leibniz de conclusões mistas: Leibniz, Essais de Théodicée, Discours..., § 1, G, VI, 49: "La Raison consistant dans l'enchainement des verités, a droit de lier encor celles que l'experience lui a fornies, pour en tirer des conclusions mixtes". 78 Couturat, LL, 256: "L'expérience remplace pour nous, hommes, l'analyse interminable qu'il faudrait accomplir pour « rendre raison » de la moindre vérité de fait, et nous livre en bloc et sous une forme brute le résultat d'une synthèse infinie, d'une intégration logique que Dieu seul peut effectuer. [...] si nous pouvons dans une certaine mesure suppléer ou reconstituer ce calcul au moyen du principe de raison, la nature nous donne le moyen de vérifier nos déductions rationnelles, comme la preuve par 9 permet de vérifier les calculs numériques. Ainsi l'expérience va au-devant de notre raison imparfaite, elle la confirme, la contrôle et la guide. Entre elle et la raison il existe un accord parfait, une véritable « harmonie préétablie », car l'expérience est encore de la raison, une raison latente et confuse, mais 71

321

refere a necessidade de desenvolver uma lógica da probabilidade que, exatamente, Aristóteles não teria desenvolvido,79 parte da qual consistiria no desenvolvimento de um cálculo de probabilidades. 80 Porém, parece utilizar, antes de mais, o modelo judicial para estabelecer uma gradação da probabilidade onde reconhece já, na tradição, algo precursor da lógica das probabilidades.81 Também este modelo é útil para mostrar que infinie". 79 Leibniz, Nouveaux essais..., L. IV, Ch. II, § 14, G, V, 353: "il a tort d'avoir restreint ses Topiques à cela, et cette veue a fait qu'il ne s'y est attaché qu'à des maximes receues, la pluspart vagues, comme si on ne vouloit raisonner que par quolibets ou proverbes. Mais le probable ou le vraisemblable est plus etendu : il faut le tirer de la nature des choses ; et l'opinion des personnes, dont l'autorité est de poids, est une des choses, qui peuvent contribuer à rendre une opinion vraisemblable, mais ce n'est pas ce qui acheve toute la verisimilitude. Et lorsque Copernic estoit presque seul de son opinion, elle estoit tousjours incomparablement plus vraisemblable que celle de tout le reste du genre humain. Or je ne say si l'etablissement de l'art d'estimer les verisimilitudes ne seroit plus utile qu'une bonne partie de nos sciences demonstratives, et j'y ay pensé plus d'une fois." Leibniz, op. cit., L. II, Ch. XXI, § 66, G, V, 191: "quant à la grandeur de la consequence et les degrés de probabilité, nous manquons encor de cette partie de la Logique, qui les doit faire estimer et la pluspart des Casuistes, qui ont ecrit sur la Probabilité, n'en ont pas même compris la nature, la fondant sur l'autorité avec Aristote, au lieu de la fonder sur la vraisemblance comme ils devroient, l'autorité n'estant qu'une partie des raisons qui font la vraisemblance." Este discurso contrário ao princípio de autoridade poderia parecer contradizer o dogmatismo teológico antes referido, mas este só pode ser contraditado por demonstrações e não meros raciocínios verosímeis, porventura o que Leibniz quereria significar antes com as simples razões: Leibniz, Essais de Théodicée, Discours..., § 28, G, VI, 67: "C'est toute autre chose quand il ne s'agit que des vraisemblances, car l'art de juger des raisons vraisemblables n'est pas encore bien établi, de sorte que nostre Logique à cet égard est encor tres imparfaite, et que nous n'en avons presque jusqu'icy que l'art de juger des demonstrations. Mais cet art suffit icy : car quand il s'agit d'opposer la raison à un article de nostre foy, on ne se met point en peine des objections qui n'aboutissent qu'à la vraisemblance : puisque tout le monde convient que les mysteres sont contre les apparences, et n'ont rien de vraisemblable, quand on ne les regarde que du côté de la raison ; mais il suffit qu'il n'y ait rien d'absurde. Ainsi il faut des demonstrations pour les refuter." 80 Depois de exemplos de estimativas de valores e de probabilidades de lançamento de dados, acrescenta: Leibniz, Nouveaux essais..., L. IV, Ch. XVI, §§ 5-9, G, V, 448: "J'ay dit plus d'une fois qu'il faudroit une nouvelle espece de Logique, qui traiteroit des degrés de probabilité, puisqu'Aristote dans ses Topiques n'a rien moins fait que cela, et s'est contenté de mettre en quelque ordre certaines regles populaires, distribuées selon les lieux communs, qui peuvent servir dans quelque occasion, où il s'agit d'amplifer le discours et de luy donner apparence, sans se mettre en peine de nous donner une balance necessaire pour peser les apparences et pour former là dessus un jugement solide. Il seroit bon que celuy qui voudroit traiter cette matiere, poursuivit l'examen des jeux de hazard ; et generalement je souhaiterois qu'un habile Mathematicien voulût faire un ample ouvrage bien circonstancié et bien raisonné sur toute sorte de jeux, ce qui seroit de grand usage pour perfectionner l'art d'inventer, l'esprit humain paroissant mieux dans les jeux que dans les matieres les plus serieuses." 81 Leibniz, op. cit., G, V, 446-7: "Les Jurisconsultes en traitant des preuves, presomtions, conjectures et indices, ont dit quantité de bonnes choses sur ce sujet, et sont allés a quelque detail considerable. Ils commencent par la notorieté, où l'on n'a point besoin de preuve. Par après ils viennent à des preuves entieres, ou qui passent pour telles, sur lesquelles on prononce, au moins en matiere civile, mais où en quelques lieux on est plus reservé en matiere criminelle ; et on n'a pas tort d'y demander des preuves plus que pleines et sur tout ce qu'on appelle corpus delicti selon la nature du fait. Il y a donc preuves plus que pleines, et il y a aussi des preuves pleines ordinaires. Puis il y a presomtions, qui passent pour preuves entières provisionnellement, c'est à dire, tandis que le contraire n'est point prouvé. Il y a preuves plus que demi pleines (à proprement parler) où l'on permet à celuy qui s'y fonde, de jurer pour y suppléer (c'est juramentum suppletorium) ; il y en a d'autres moins que demi pleines, où tout au contraire on defere le serment à celuy qui nie le fait, pour se purger (c'est juramentum purgationis). Hors de cela il y a quantité de degrés des conjectures et des indices. Et particulierement en matiere criminelle il y a indices (ad torturam) pour aller à la question (laquelle a elle même ses degrés marqués par les formules de l'arrest) ; il y a indices (ad terrendum) suffisans à faire monstrer les instrumens de la torture et preparer les choses comme si l'on y vouloit venir. Il y en a (ad capturam) pour s'asseurer d'un homme suspect ; et (ad inquirendum) pour s'informer sous main et sans bruit. Et ces differences peuvent encor servir en d'autres occasions proportionnelles. Et toute la forme des procedures en justice n'est autre chose en effect qu'une espece de Logique, appliquée aux questions de droit."

322

nem todo o pensamento é comprovativo. O nível mais baixo de prova, a prova provisória, é a presunção judicial que exige prova em contrário. 82 Ora, abaixo deste nível, o que é especialmente relevante para a subsecção seguinte, encontra-se a conjetura, cuja maior probabilidade é determinada pela comparação com outras conjeturas. 83 Leibniz admite que a este nível e, porventura, a níveis superiores de probabilidade, o sucesso de uma proposição não confirma a verdade da hipótese, embora até mesmo a probabilidade deva ser determinada pela lógica necessária.84 Que esses critérios para determinar a probabilidade sejam todos necessários no sentido lógico estrito é que será mais discutível, por muito que Leibniz julgasse o contrário, visto, mesmo quando parecem ter cariz metodológico, parecerem mais pressupostos epistemológicos heurísticos do que verdades analíticas. 85 De qualquer forma, têm enorme importância prática, em Leibniz, visto sobretudo a política executiva e judicial dever ser determinada pela arte das consequências que depende da arte das probabilidades.86 Naturalmente, o objetivo desejável é atingir a probabilidade no mais 82

Veja-se como aplica as distinções das notas anteriores em questão bem diversa: Leibniz, op. cit., L. III, Ch. VI, § 23, G, V, 294: "La generation ou race donne au moins une forte presomption (c'est à dire une preuve provisionelle) et j'ay déja dit que bien souvent nos marques ne sont que conjecturales." 83 Leibniz, op. cit., L. IV, Ch. XIV, §§ 1-4, G, V, 439: "Quant à la presomtion, qui est un terme des Jurisconsultes, le bon usage chez eux le distingue de la conjecture. C'est quelque chose de plus, et qui doit passer pour verité provisionnellement, jusqu'à ce qu'il y ait preuve du contraire, au lieu qu'un indice, une conjecture doit estre pesée souvent contre une autre conjecture. C'est ainsi, que celuy qui avoue d'avoir emprunté de l'argent d'un autre, est presumé de le devoir payer, à moins qu'il ne fasse voir qu'il l'a fait déja, ou que la dette cesse par quelque autre principe. Presumer n'est donc pas dans ce sens prendre avant la preuve, ce qui n'est point permis, mais prendre par avance mais avec fondement, en attendant une preuve contraire." 84 Leibniz, op. cit., Ch. XVII, §§ 5-6, G, V, 466: "dans les Hypotheses Astronomiques ou Physiques [em contraposição à Análise], le retour n'a point lieu ; mais aussi le succès ne demonstre pas la verité de l'hypothese. Il est vray qu'il la rend probable, mais comme cette probabilité paroist pecher contre la regle de Logique, qui enseigne que le vray peut estre tiré du faux, on dira que les regles logiques n'auront point lieu entierement dans les questions probables. Je reponds, qu'il est possible que le vray soit conclu du faux, mais il n'est pas tousjours probable, sur tout lorsqu'une simple hypothese rend raison de beaucoup de verités, ce qui est rare et se rencontre difficilement. On pourroit dire avec Cardan, que la Logique des probables a d'autres consequences que la Logique des verités necessaires. Mais la probabilité même de ces consequences doit estre demonstrée par les consequences de la Logique des necessaires." 85 Couturat, LL, 267-8: "on trouve souvent qu'un même phénomène (ou loi empirique) peut également se déduire de plusieurs hypothèses differentes. Une telle hypothèse ne sera donc jamais certaine, mais elle sera probable ; et s'il y a d'autres hypothèses admissibles, elles seront, elles aussi, plus ou moins probables, puisqu'elles ne peuvent être toutes vraies à la fois. Maintenant, à quelles conditions une hypothèse sera-t-elle probable, et à quoi mesurera-t-on sa probabilité? Une hypothèse est d'autant plus probable, selon Leibniz : 1º qu'elle est plus simple ; 2º qu'elle explique un plus grand nombre de phénomènes par un plus petit nombre de postulats ; 3º qu'elle permet de prévoir de nouveaux phénomènes ou d'expliquer de nouvelles expériences. Dans ce dernier cas surtout, l'hypothèse équivaudra à la « verité », elle aura une certitude « physique » ou « morale », c'est-à-dire une extrême probabilité, comme est celle d'une clef présumée qui permet de déchiffrer entièrement un long cryptogramme en luy donnant un sens intelligible et suivi." Couturat refere-se aqui a G, I, 195-6. O que Leibniz tentou fazer, honesta ou desonestamente é aqui pouco relevante, com o Tentamen de 89 foi exatamente mostrar que se poderia chegar aos mesmos resultados matemáticos que os Principia partindo de pressupostos diversos, tentando reduzir a teoria da gravitação universal a uma hipótese e tentando defender uma equivalência entre hipóteses que pudesse, mesmo que fosse mais tarde devido à pouca maturação da sua, ser decidida por recurso aos critérios que acabam de ser enunciados. Cf. Leibniz, Tentamen de motuum coelestium causis, GM, VI, 144-61. Mesmo não conhecendo esses critérios que até são compatibilizáveis com os seus, percebe-se, em primeiro lugar, neste caso ao menos, a aversão newtoniana ao estatuto hipotético e, em segundo lugar, a ira que deve ter sentido com o ensaio de Leibniz e que só mais tarde se viria a revelar. Cf. Meli, EP, 169. 86 Leibniz, Nouveaux essais..., L. II, Ch. XXI, § 67, G, V, 192: "il nous faudroit encor l'art de s'aviser et celuy d'estimer les probabilités et de plus la connoissance de la valeur des biens et des maux, pour bien

323

alto grau, a verdadeira prova a nível da lógica do provável que, por vezes, chama certeza moral, 87 embora noutros casos nem reconheça à certeza moral o estatuto de prova. 88 É possível que, neste último caso, reduza a certeza moral ao estatuto de conjetura plausível. De qualquer forma, certamente só há provas exatas através daquilo a que se chama demonstração.89 E é dessas provas que se está a falar durante toda a polémica. As demonstrações não se cingem, para Leibniz, às verdades necessárias, 90 estendendo-se, como é claro na polémica com Clarke, através do uso do princípio da razão suficiente e outros princípios subsidiários, à generalidade da metafísica que pretende ter-se tornado, através dele, demonstrativa.91 Naturalmente, Leibniz considera que existem variadíssimas demonstrações metafísicas que são absolutamente necessárias, como a prova ontológica da existência de Deus, mas estende esta capacidade bem para lá do absolutamente necessário através do hipoteticamente necessário, como na demonstração do pleno onde, como foi visto, admite a possibilidade do vazio, mas pode concluir demonstrativamente a sua não existência sob a condição fornecida pela natureza divina. As provas não demonstrativas estão relacionadas, direta ou indiretamente, com a matéria de facto. Sempre que se trate de chegar a uma verdade universal, tem de se obter uma demonstração. Mesmo que não atingido, o seu ideal é o do cálculo que resolveria todas as disputas,92 julgando que, se employer l'art des consequences : et il nous faudroit encor de l'attention et de la patience après tout cela, pour pousser jusqu'à la conclusion." 87 Leibniz, op. cit., Preface, G, V, 61: "il [Locke] attribue à l'immaterialité de l'ame une probabilité dans le supreme degré, qui pourra passer par consequent pour une certitude morale". 88 Leibniz, Carta para Des Bosses de 31 de Julho de 1709, G, II, 378: "Brutum animatum esse demonstrari, ne quidem probari nequit, cum ne hoc quidem possit, alios homines non nudas machinas esse, quando in ipsorum mentes introspicere non possumus. Sed haec sunt moraliter certa, quemadmodum aliquas esse creaturas praeter me." 89 Leibniz, Essais de Théodicée, 3ª parte, § 384, G, VI, 343: "on auroit besoin d'une preuve plus exacte pour appeller cela une demonstration." 90 Essa é a razão da inclusão, na Teodiceia, das verdades positivas entre as verdades de razão, como foi visto em II. 2. Cf. Leibniz, Essais de Théodicée, Discours..., § 2, G, VI, 50. Isso é especialmente evidente nas demonstrações físicas, e. g., Leibniz op. cit., 3ª parte, §§ 345-346, G, VI, 319-20: A parte relevante do § 345 está transcrita em II. 4, nota 146, dada a sua relação com a questão da liberdade e necessidade, e a parte inicial do § 346 está citada em VI. 8, nota 388, onde se reconhece que não é possível demonstrar geometricamente as leis da natureza. O que não significa que não sejam demonstradas, tal como tinha dito no parágrafo anterior: "Je puis demontrer ces Loix de plusieurs manieres". Estão numa situação intermédia entre a lógica necessária e a lógica do provável, que é a situação da necessidade hipotética sob a condição da escolha do melhor, supondo, aliás, o recurso a princípios metafísicos: "Ces suppositions sont tres plausibles, et reussissent heuresement pour expliquer les loix du mouvement : il n'y a rien de si convenable, d'autant plus qu'elles se rencontrent ensemble ; mais on n'y trouve aucune necessité absolue qui nous force de les admettre, comme on est forcé d'admettre les regles de la logique, de l'arithmetique et de la geometrie." 91 Leibniz, Streitschriften..., 2º escrito, § 1, G, VII, 356; 4º escrito, § 5, G, VII, 372 (transcritos em II. 1, notas 23 e 30); 5º escrito, § 21, G, VII, 393: "ce grand Principe, quoyqu'il ait eté reconnu, n'a pas eté assés employé. Et c'est en bonne partie la raison pourquoy jusqu'icy la Philosophie premiere a eté si peu feconde, et si peu demonstrative. J'en infere entre autres consequences, qu'il n'y a point dans la nature deux etres reels absolus indiscemables : parce que s'il y en avoit, Dieu et la nature agiroient sans raison, en traitant l'un autrement que l'autre ; et qu'ainsi Dieu ne produit point deux portions de matiere parfaitement egales et semblables." Ibidem, § 26, G, VII, 395 (ver II. 1, nota 30). Este último parágrafo tem a vantagem de mostrar que a demonstração do princípio dos indiscerníveis não é estritamente necessária, visto o contrário não ser impossível, mas é apenas necessária hipoteticamente, por o oposto ser contrário ao princípio da razão suficiente. 92 Um ideal que só não é partilhável com Newton, como se verá, por ser diverso o meio. Ver, entre tantos exemplos, Leibniz, G, VII, 26: "Cette écriture ou langue (si on rendoit les caracteres enonçables) pourroit estre bientost receue dans le monde, parce qu'elle pourroit estre apprise en peu de semaines, et donneroit

324

todos os argumentos estivessem dispostos em boa forma silogística, as conclusões impor-se-iam de forma indiscutível, visto qualquer outra não ser admissível por duas contraditórias não poderem ser verdadeiras ao mesmo tempo.93 A "Antitética" kantiana encarregou-se de mostrar que esta ilusão metafísica era infundada,94 mas ela decorre, em Leibniz, diretamente de uma conceção de verdade muito mais formal que material. Quando Leibniz minimiza o problema da natureza do conhecimento quanto à existência dos objetos físicos para lá das suas representações nas mónadas, dizendo que a verdade dos fenómenos está na sua ligação matemática e lógica95 e que esta se manteria, sem engano, mesmo se só houvesse uma mónada criada no mundo,96 torna ainda mais claro moyen de communiquer par tout. Ce qui seroit de grande importance pour la propagation de la foy, et pour l'instruction des peuples eloignés. Mais ce seroit le moindre des ses avantages, car cette même écriture seroit une espece d'Algebre generale et donneroit moyen de raisonner en calculant, de sorte qu'au lieu de disputer, on pourroit dire: comptons. Et il se trouveroit que les erreurs du raisonnement ne seroient que des erreurs de calcul qu'on decouvriroit par des epreuves comme dans l'Arithmetique. Les hommes trouveroient par lá un juge des controverses veritablement infallible." Leibniz, "Synopsis libri cui titulus erit: Initia et Specimina Scientiae novae Generalis pro Instauratione et Augmentis Scientiarum ad publicam felicitatem", G, VII, 64-5: "Quo adhibito semper terminari possunt controversiae quantum ex datis eas determinari possibile est, manu tantum ad calamum admota, ut sufficiat duos disputantes omissis verborum concertationibus sibi invicem dicere: calculemus; ita enim perinde ac si duo Arithmetici disputarent de quodam calculi errore, ipsa praescripta methodus etiam ignorantibus vel invitis exitum dabit." Leibniz, "Guilielmi Pacidii initia et specimina Scientiae Generalis sive de instauratione et augmentis scientiarum in publicam felicitatem", G, VII, 125: "Modum ergo tradere aggredior, quo semper homines ratiocinationes suas in omni argumento ad calculi formam exhibere controversiasque omnes finire possunt, ut non jam clamoribus rem agere necesse sit, sed alter alteri dicere possit: calculemus." Leibniz, G, VII, 200: "Quo facto, quando orientur controversiae, non magis disputatione opus erit inter duos philosophos, quam inter duos Computistas. Sufficiet enim calamos in manus sumere sedereque ad abacos, et sibi mutuo (accito si placet amico) dicere: calculemus." 93 Leibniz, Essais de Théodicée, Discours..., § 25, G, VI, 65: "je ne saurois être du sentiment de ceux qui soutiennent qu'une verité peut souffrir des objections invincibles : car une objection est elle autre chose qu'un argument dont la conclusion contredit à nostre these ? Et un argument invincible n'est il pas une demonstration ? Et comment peut on connoitre la certitude des demonstrations, qu'en examinant l'argument en détail, la forme et la matiere ? afin de voir si la forme est bonne, et puis si chaque premisse est ou reconnue ou prouvée par un autre argument de pareille force, jusqu'à ce qu'on n'ait besoin que de premisses reconnues. Or s'il y a une telle objection contre nostre these, il faut dire que la fausseté de cette these est demontrée, et qu'il est impossible que nous puissions avoir des raisons suffisantes pour la prouver ; autrement deux contradictoires seroient veritables tout à la fois." Esta invencibilidade inclui mesmo os dogmas religiosos, considerados, nesse caso, falsos dogmas. 94 Kant, KV, 2ª parte, 2ª divisão, Cap. II, "ª secção, 392-418. 95 Leibniz, op. cit., Remarques..., § 5, G, VI, 404-5; Leibniz, Nouveaux essais..., L. IV, Ch. IV, §§ 1-5, G, V, 373. Ambas as passagens são citadas em II. 2, notas 49 e 50. 96 Não ocorreria qualquer engano numa mónada se esta julgasse existirem coisas fora de si e a mónada fosse a única coisa existente para lá de Deus: Leibniz, Carta para Des Bosses de 29 de Abril de 1715, G, II, 496: "Deceptio autem creaturarum rationalium nulla foret, etsi Phaenomenis earum non omnia extra ipsas exacte responderent, immo si nihil: veluti si mens aliqua sola esset; quia omnia perinde evenirent, ac si essent alia omnia, neque illa cum ratione agens sibi damnum accerseret. Hoc enim est non falli." Leibniz, Carta para Des Bosses de 29 de Maio de 1716, G, II, 516: "At ratione rerum (etiam sine respectu ad sapientiam divinam) judicamus, nos non solos existere, quia nulla apparet privilegii pro uno ratio. Nec ipse aliter ratione convincere poteris aliquem, qui contenderet se solum existere, alios a se tantum somniari. Sed ratio datur privilegii existentium prae non existentibus, seu cur non omnia possibilia existant. Caeterum etsi nullae existerent creaturae praeter percipientem, ordo perceptus ostenderet sapientiam divinam. Itaque nullus hic circulus, quamquam etiam sapientia Dei a priori, non ex solo phaenomenorum ordine habeatur. Ex eo enim, quod contingentia reperiuntur, reperitur Ens necessarium, id intelligens, ut in Theodicaea ostendi. Si corpora mera essent phaenomena, non ideo fallerentur sensus. Neque enim sensus pronuntiant aliquid de rebus metaphysicis. Sensuum veracitas in eo consistit, ut phaenomena consentiant inter se, neque decipiamur eventibus, si rationes experimentis inaedificatas probe sequamur." Ou seja, mesmo se não existissem outras criaturas, a ordem do percebido seria reveladora do divino e a contingência do único criado, requereria a existência necessária. Além disso, a

325

aquilo que é claro em muitas outras passagens, que embora mantenha uma noção de verdade material, ou seja, de concordância entre o enunciado e a coisa a que se refere,97 esta noção subordina-se à relação entre as ideias, quer seja espelhada na relação, apenas fenoménica ou não, entre os objetos físicos, quer na entre-expressão das mónadas,98 quer apenas, idealmente, na concordância existente na mente de Deus. 99 Embora Leibniz a possa pensar como consistência analítica, na verdade esta concordância é simplesmente similar à coerência, como se pode ver no caráter desenfreadamente analógico do pensamento leibniziano, radicado numa conceção de verdade que é ela mesma analógica, 100 muito embora Leibniz saiba reconhecer o caráter meramente provável dos raciocínios analógicos, pelo menos nos outros.101 A pretensão de atingir uma certeza idêntica à matemática no âmbito da metafísica com base num modelo verdade fenoménica reside na sua ligação, mesmo que os sentidos sejam incapazes de atingir a verdade metafísica. 97 Leibniz, Nouveaux essais..., L. IV, Ch. V, §§ 3-11, G, V, 378: "Contentons nous de chercher la verité dans la correspondence des propositions qui sont dans l'esprit, avec les choses dont il s'agit." 98 Neste caso, acontecer fora da alma significa acontecer noutras almas: Leibniz, Carta para Des Bosses de 16 de Junho de 1712, G, II, 451-2: "Verum est consentire debere, quae fiunt in anima, cum iis quae extra animam geruntur; sed ad hoc sufficit ut quae geruntur in una anima respondeant tum inter se, tum iis quae geruntur in quavis alia anima; nec opus est poni aliquid extra omnes Animas vel Monades; et in hac hypothesi, cum dicimus Socratem sedere, nihil aliud significatur, quam nobis aliisque, ad quos pertinet, haec apparere, quibus Socratem sessumque intelligimus." 99 Leibniz, Nouveaux essais..., L. IV, Ch. V, §§ 1-2, G, V, 377-8: "Il vaut donc mieux placer les verités dans le rapport entre les objets des idées, qui fait que l'une est comprise ou non comprise dans l'autre. Cela ne depend point des langues, et nous est commun avec Dieu et les Anges ; et lorsque Dieu nous manifeste une verité, nous acquerons celle qui est dans son entendement, car quoyqu'il y ait une difference infini entre ses idées et les nostres, quant à la perfection et à l'etendue, il est tousjours vray qu'on convient dans le même rapport. C'est donc dans ce rapport qu'on doit placer la verité, et nous pouvons distinguer entre les verités, qui sont independantes de nostre bon plaisir, et entre les expressions, que nous inventons comme bon nous semble." 100 Couturat, LL, 269: "pour Leibniz la verité ne consiste pas dans la conformité des idées aux choses, mais dans leur analogie ou proportion". Existem inúmeros níveis de pensamento analógico, explícito ou implícito, mas esta declaração parece dizer respeito ao conjunto do seu pensamento e não apenas àquilo que estava a ser tratado: Leibniz, Carta para Des Bosses de 11 de Julho de 1706, G, II, 311: "Meae enuntiationes universales esse solent, et servare Analogiam." Certamente, Leibniz concordaria com a analogia da natureza de Newton, mas considerá-la-ia demasiado restrita. Cf. Newton, Philosophiæ naturalis..., L. III, Regulæ..., OO, III, 3: "Certè contra experimentorum tenorem somnia temerè confingenda non sunt, nec à Naturæ analogiâ recedendum est, cùm ea simplex esse soleat & sibit semper consona." Isso percebe-se no seguinte passo de Leibniz: Leibniz, Nouveaux essais..., L. IV, Ch. XVI, § 12, G, V, 455-6: "j'approuve fort la recherche des Analogies : les plantes, les insectes et l'anatomie comparative des animaux les fourniront de plus en plus, sur tout quand on continuera à se servir du microscope encor plus qu'on ne fait. Et dans les matieres plus generales on trouvera que mes sentimens sur les Monades repandues par tout, sur leur durée interminable, sur la conservation de l'animal avec l'ame, sur les perceptions peu distinguées dans un certain estat, tel que la mort des simples animaux, sur les corps qu'il est raisonnable d'attribuer aux genies, sur l'harmonie des ames et des corps, qui fait que chacun suit parfaitement ses propres loix sans estre troublé par l'autre et sans que le volontaire ou l'involontaire y doivent estre distingués : on trouvera dis-je, que tous ces sentimens sont tout à fait conformes à l'analogie des choses que nous remarquons et que j'etends seulement au delà de nos observations, sans les borner à certaines portions de la matière, ou à certaines especes d'actions, et qu'il n'y a de la difference que du grand au petit, du sensible à l'insensible." É, aliás, o mesmo que significa a passagem da polémica: Leibniz, Streitschriften..., 5º escrito, § 24, G. VII, 394: "on peut dire, comme disoit Arlequin dans l'Empereur de la Lune, que c'est tout comme icy". Cf. Evaristo Gherardi, Le Theatre Italien..., [Vol. I] Geneve, Jacques Dentand, 1695. Apesar deste reconhecimento leibniziano, o porte e a variedade dos seus recursos analógicos parecem exceder esse reconhecimento e a exploração desta temática, em Leibniz, em Newton e, em geral, no seu tempo, merecia uma monografia muito aprofundada, até porque certamente traria esclarecimentos epistemológicos importantíssimos. 101 Leibniz, Carta para Des Bosses de 13 de Janeiro de 1716, G, II, 510: "Hoc argumentum a simili hic non nisi ad verisimilitudinem valere ipse haud dubie agnoscis."

326

formal de verdade que confiava nas capacidades demonstrativas da silogística em todos os domínios,102 mesmo que provisoriamente ou devido à limitação das criaturas não se conseguisse, aqui e ali, atingir tal demonstração, tendo como fundamento a ideia de que toda a proposição verdadeira, ao fim e ao cabo, pelo princípio da razão suficiente, é analítica,103 é a verdadeira raiz do mais essencial dogmatismo leibniziano. Este dogmatismo é, porém, mais metafísico do que lógico. Constitui, aliás, um tipo diferente do primeiro dogmatismo, do recurso ao princípio de autoridade, da ortodoxia religiosa e do autoritarismo político. Quando Couturat se interroga em relação às razões porque Leibniz, com todos os elementos para estabelecer uma vasta lógica das relações, a negligenciou sistematicamente, em favor da lógica clássica, explica isso unindo estes dois dogmatismos, ou seja, explica a conceção lógica de Leibniz pelo respeito pela autoridade de Aristóteles e até da Escolástica.104 Embora, como já se viu, não se deva descartar nunca a influência do dogmatismo tradicional em Leibniz, a sua conceção predicativa de verdade em que, em toda a proposição verdadeira, se considera que o predicado está contido no sujeito, 105 que justifica essa subordinação à lógica clássica, não encontra outra justificação senão uma conceção substancialista da própria lógica. É verdade que Leibniz, como foi visto nesta secção, prefere sempre reformar o que é dado pela tradição a inovar, mas também nada o impede de discordar dessa tradição quando a julga errada ou inadequada. Nesta mesma subsecção, se viu, por exemplo, a crítica feita por Leibniz a Aristóteles no âmbito da lógica do provável e, ao longo da dissertação, diversas vezes se viu o ataque às qualidades ocultas escolásticas. 102

Leibniz, Essais de Théodicée, Discours..., § 25, G, VI, 65: "Il faut tousjours ceder aux demonstrations, soit qu'elles soyent proposées pour affirmer, soit qu'on les avance en forme d'objections." 103 Couturat, LL, 215: "le principe d'identité affirme que toute proposition identique est vraie, tandis que le principe de raison affirme, au contraire, que toute proposition vraie est analytique, c'est-à-dire virtuellement identique. Ce principe servira précisément à démontrer les vérités contingentes que nous ne pouvons pas prouver directement : il est pour nous, hommes, le succédané de cette analyse infinie que Dieu seul peut accomplir. Il a d'ailleurs une portée universelle, et il vaut pour toute espèce des vérités, car il ne signifie en définitive rien de plus que ceci : dans toute proposition vraie, la notion du prédicat est comprise dans celle du sujet." Neste texto, há apenas a questão se uma análise infinita é terminável – isto porque Deus não a precisa de realizar visto abarcar a totalidade por intuição. 104 Couturat, LL, 437-8: "Leibniz avait tous les éléments, ou du moins les matériaux d'une Logique des relations infiniment plus vaste et plus compréhensive que la Logique classique et même que son Calcul logique. Mais il les a systématiquement négligés, ou plutôt, il les a exclus de la Logique pure et les a renvoyés à la Grammaire, ce qui privait la Logique de sa matière propre et de son riche contenu. Et pourtant, il reconnaissait que l'analyse exacte et complète des formes du discours était le meilleur moyen de pénétrer le mécanisme de l'esprit, et de découvrir « les diverses formes » et « opérations de l'entendement ». D'où vient cette négligence et cette exclusion étrange? Elle parait ne pouvoir s'expliquer que par un respect presque inconscient pour la tradition scolastique et pour l'autorité d'Aristote. Il semblait qu'Aristote eût fixé à jamais les principes et les bornes de la Logique par sa théorie du syllogisme, et plutôt que de reculer ces bornes consacrées par la tradition, Leibniz préférait, instinctivement, exclure de la Logique pure toutes les opérations intelectuelles qui les dépassaient. On a déjà vu que c'est par un respect excessif pour l'autorité d'Aristote que Leibniz préférait le point de vue de la compréhension à celui de l'extension, plus conforme à ses principes logiques et à son génie mathématique ; et que c'est son attachement à la tradition scolastique qui a fait échouer ses divers essais de Calcul logique, parce qu'il voulait à toute force justifier la subalternation, la conversion partielle, et les modes illégitimes du syllogisme. De même, si l'on cherche ce qui a entravé le développement de son Calcul géométrique, ce qui l'a restreint et fait avorter, on trouvera que c'est l'autorité d'Euclide." 105 Leibniz, OF, 401-2: "Vera autem propositio est cujus prædicatum continentur in subjecto, vel generalius cujus consequens continetur in antecedente, ac proinde necesse est quandam inter notiones terminorum esse connexionem, sive fundamentum dari à parte rei ex quo ratio propositionis reddi, seu probatioà priori inveniri possit. Idque locum habet in omni propositione vera affirmativa universali vel singulari, necessaria aut contigente; ut prædicati notio insit notioni subjecti vel expressè, vel virtualiter; expressè in propositione identica, Virtualiter in alia quacunque." Leibniz, Carta para Foucher de 1686, G, I, 382: "dans toute proposition veritable la notion du predicat est enfermée dans celle du sujet".

327

Não haveria nenhuma razão para restringir as formas das proposições à predicativa ou a modificações da mesma se Leibniz pensasse que isso era absolutamente inadequado. Tem, por isso, de haver uma razão para ele o considerar adequado sem ser a mera autoridade pela autoridade, caso em que ficaria por explicar porque não seguiu essa mera autoridade noutros casos. Couturat só podia explicar "essa negligência e essa exclusão estranha" pela autoridade por partir do pressuposto que toda a filosofia leibniziana se fundava na lógica. Na verdade, o que essa exclusão mostra é que Leibniz não é regido por estritos motivos lógicos, mas faz depender a lógica de pressupostos metafísicos a que aqueles se submetem. Regressando à questão, não haveria nenhuma razão para restringir as formas das proposições à predicativa a não ser que Leibniz pensasse que o sujeito lógico deveria replicar a estrutura da realidade e que todas as outras categorias deveriam ser subordinadas à categoria da substância. Ora, isso que assim o limitou logicamente não foi o simples respeito a Aristóteles, mas a concordância com ele, devido a partilharem, segundo a conceção leibniziana, o mesmo pressuposto metafísico. Dessa forma, se se revela aqui um dogmatismo, é primariamente, não o dogmatismo do recurso ao princípio de autoridade, mas o dos pressupostos metafísicos que, posteriormente, sustentam as suas pretensões de demonstração bem para lá dos domínios da Lógica e da Matemática. b) O dogmatismo newtoniano Contrariamente a Leibniz, onde, mesmo que se intersetem, é possível distinguir entre tipos de dogmatismo que não dependem uns dos outros, no caso do newtonianismo ir-se-á aqui defender que, muito embora pareça ocorrer o mesmo, de facto existe uma maior unidade nos recursos dogmáticos, originada por uma finalidade comum. Deixando para depois essa finalidade, é possível que, para esse dogmatismo, também contribuíssem características de personalidade do próprio Newton106 que não deixam de se ver refletidas na polémica. Tais características que, na juventude, o faziam propender para o isolamento e para reagir descontroladamente a qualquer contrariedade, deram origem, na maturidade e, sobretudo, na velhice, a um comportamento autoritário e, em certos episódios, como o relativo a Flamsteed, despótico. Em que medida essas características contribuíram para definir as orientações metodológicas da ciência newtoniana é difícil dizer. Quando aqui se referem orientações metodológicas, não se trata simplesmente de defender os procedimentos da filosofia experimental, como era defendida, desde a origem, pela Royal Society, de acordo com a inspiração de Boyle107 (que julgava "melhor ter um pequeno conhecimento que é certo porque baseado em 106

Muitas vezes se apresentam as respostas desabridas, as recusas de publicação, os recuos nas mesmas publicações, os atrasos injustificáveis, as declarações de pôr fim ao trabalho filosófico, de se demitir da Royal Society, os encerramentos de correspondência com determinadas pessoas ou sobre determinados assuntos, a ingratidão diversas vezes revelada, como reações às objeções, dúvidas, diversidade de pontos de vista, que a sua personalidade não conseguiria tolerar. Mas a raiz parece bem mais profunda: em 1669, os cuidados que põe na preservação do anonimato, não são motivados por qualquer rejeição, objeção ou dúvida, visto estas ainda não terem podido acontecer. Cf. Westfall, NR, 204. Claro que não deixa de ser curioso que seja alguém aterrorizado perante a simples expetativa de alguma pressão pública que acabe por se tornar não somente, ainda em vida, no líder científico britânico absoluto, mas numa bem importante figura política que não se coíbe de utilizar todos os meios públicos ao seu alcance para conseguir atingir os seus objetivos. 107 Iliffe, NV, 45: "They [Os membros da Royal Society] were also to be modest about what they claimed, to the extent that they should not claim greater certainty for their views than was warranted by the evidence. Time and the replication of phenomena by many other people on a number of occasions would prove the truth or otherwise of any statement. Boyle thought that some mathematically inclined natural philosophers were over-confident in applying mathematical techniques to the naturalworld, and in claiming an unwarranted degree of certainty for their work."

328

experimentos e está a crescer, muito embora sempre de forma incompleta e fragmentária, que construir grandes hipóteses especulativas do universo" 108 ), mas de considerar indiscutíveis as suas conclusões, razão por que Newton rejeita que se lhes chame hipóteses e também porque adota o termo “leis”,109 embora normalmente só do movimento, 110 importado, juntamente com parte do seu conteúdo, do autor de que menos reconhece a influência111, termo que se tornará consagrado na ciência posterior. Mas, para que se perceba o pendor autoritário da atitude newtoniana, quando, em 1675, apresenta uma hipótese, uma explícita conjetura e não uma certeza, também considera que, por isso mesmo, não teria que responder a quaisquer objeções por não desejar ser envolvido em disputas. 112 Pela mesma razão, aliás, se recusa a discutir qualquer hipótese de outros ou a examinar possíveis inconsistências a que levem as conceções defendidas. Aliás, ao longo de toda a sua vida, não há correspondência ou edição de obra em que se envolva em que não seja referida a sua aversão a disputas ou discussões de qualquer tipo. É verdade que esse autoritarismo é muito estimulado, desde o início, pela incompetência dos adversários. 113 Porém, a intolerância perante qualquer reação que não a aceitação incondicional, encomiástica, panegírica e idolátrica, é o que caracteriza o comportamento newtoniano desde a juventude à velhice. A diferença está, apenas, no enorme aumento do seu poder de esmagar os adversários. 114 Por muito ressentido que estivesse Flamsteed e com muitas razões para o estar, por muito irritante que o próprio Flamsteed fosse e era de facto, a sua caracterização, com as devidas precauções, não deixa de ser relevante: sempre o tinha considerado traiçoeiro, ambicioso e excessivamente cobiçoso de elogio e impaciente à contradição.115 108

Burtt, MF, 187: "Better to have a little knowledge which is cenain because based on experiment, and is growing, though always incomplete and fragmentary, than to construct large speculative hypotheses of the universe." 109 Newton, Philosophiæ naturalis..., OO, II, 13-4. Cf. James Gleick, op. cit., p. 123 e nota 13, p. 200. Diga-se, aliás, que a utilização do termo lei, inclusive na versão mais forte de lei da natureza, é uma tendência da época (nem por isso menos dogmática) que até é mais notória em Leibniz, embora com a habitual mistura com princípios metafísicos explícitos. Mesmo a nível experimental, Leibniz estabelece certezas pelo menos com maior facilidade do que Locke e, como na filosofia experimental de Boyle, sem que sejam maculadas pelo desconhecimento causal ou das ligações com outras qualidades: cf. Leibniz, Nouveaux essais..., L. IV, Ch. VI, § 8, G, V, 385: "Nous savons presque aussi certainement que le plus pesant de tous les corps connus icy bas est fixe, que, nous sçavons certainement qu'il fera jour demain. C'est parce qu'on l'a experimenté cent mille fois, c'est une certitude experimentale et de fait, quoyque nous ne connoissions point la liaison de la fixité avec les autres qualités de ce corps." Ver também § 13, G, V, 386-7. Além disso, até é difícil compreender algumas críticas de Leibniz a Newton tendo em conta esta passagem: Leibniz, op. cit., Ch. XII, §§ 9-10, G, V, 435: "Nous ne devons pas esperer de rendre raison de toutes les experiences, comme même les Geometres n'ont pas encor prouvé tous leur Axiomes ; mais de même qu'ils se sont contentés de deduire un grand nombre de Theoremes d'un petit nombre de principes de la raison, c'est assés aussi que les Physiciens par le moyen de quelques principes d'experience rendent raison de quantité de phenomenes et peuvent même les prevoir dans la practique." 110 Não foi possível identificar a exceção referida por Cohen, na correspondência de Newton com Cotes, em que terá usado a expressão "Lei da natureza": Cohen, op. cit., ch. 5, sec. 1, PM, 109. 111 Descartes, OL, Principes, II, §§ 37-40, 633-6. Naturalmente, o facto de não a reconhecer, não significa que não exista. 112 Newton, NP, 83-4: "No man may confound this with my other discourses, or measure the certainty of one by the other, or think me obliged to answer objections against this script; for I desire to decline being involved in such troublesome, insignificant disputes." 113 Toda a polémica com Linus e seus seguidores é um exemplo gritante de como, por um lado, a incompetência não impedia, na época, o direito de polemizar, mas, por outro, da perda de controlo de Newton perante qualquer objeção e não só as de tipo metafísico: Westfall, NR, 267-8 e 274-9. 114 Westfall, NR, 659: "The angry temper which, in the young man, could not cope with contradiction, now manifested itself in the president of the Royal Society as imperious autocracy. He and he alone knew what was best." 115 Westfall, NR, 666, citando a biografia de Flamsteed feita por Baily.

329

Por outro lado, desde relativamente cedo, como se viu em VI. 9, Newton encarou a sua missão como obedecendo ao desígnio divino que, antes do fim dos tempos, segundo a profecia de Daniel, traria um muito significativo aumento de conhecimento aos eleitos.116 O que une todas as dimensões da atividade de Newton, com exceção, talvez, da política monetária, é esta confiança no seu papel no seio do desígnio divino, entendido não apenas de forma genérica, mas através da sua intervenção concreta na história, na qual, Newton e os primeiros newtonianos tinham consciência de estar a dar um contributo decisivo. 117 A filosofia natural newtoniana desvendava, através das leis descobertas na ótica, na mecânica e na astronomia, a ordem arbitrária, mas harmoniosa decidida por Deus. Durante muito tempo, Newton acreditou que também conseguiria descobrir as leis que regulavam as partículas ínfimas através da alquimia e, quando desesperou pela falta de sucesso definitivo, deixou certas partes das queries para outros prosseguirem o seu trabalho no âmbito alquímico, magnético e elétrico. Por outro lado, através da interpretação da Escritura e sobretudo dos livros proféticos, através da cronologia e da restauração da prisca sapientia, através da denúncia das corrupções e desvios sucessivos às mensagens divinas originais, pretendia restaurar a verdadeira revelação escritural, preparando os homens para a revelação final.118 Este sentido de missão, mesmo se a prudência o impediu de dar a conhecer a maior parte da sua obra, ou por ter medo de repercussões religiosas, ou por não estar convencido de se poder impor de forma esmagadora como tinha feito com os Principia, reforçava consideravelmente a sua propensão para o autoritarismo. Há que distinguir, em Newton, duas atitudes autoritárias diferentes que estiveram, ambas, na origem do dogmatismo científico posterior. Uma delas é autoritária, no mesmo sentido da metafísica tradicional, por exemplo racionalista, com inequívoco teor metafísico, mas não sendo apresentado como tal. Tal como em Descartes tanto havia que era considerado liminarmente como evidente, embora não o fosse para muitos, o mesmo acontece para Newton, por exemplo, nas noções de espaço absoluto, do vazio ou das partículas indivisíveis. Porém, o que é novo é a pretensão de sustentação empírica destas conceções, como já foi examinado nesta dissertação, e a rejeição, ao menos implícita, de que fossem metafísicas, muito embora o fossem. A ausência de crítica conceptual, nestas e noutras noções, marcará, modelarmente, o futuro da ciência. 119 Outra atitude será a da recusa do debate em relação a todas as hipóteses que tentam explicar os processos fenoménicos que foram matematicamente descritos. Koyré mostra o processo pelo qual a aversão às hipóteses, declarada desde a primeira controvérsia relativa à luz, vai, paulatinamente, eliminando as utilizações positivas do termo, restringindo cada vez mais o seu sentido ao de ficção ou quimera sem fundamento na experiência. 120 De certa forma, as duas atitudes fundem-se na 116

Newton, Yahuda MS I, f.l., EC, 65-6: "If they are never to be understood, to what end did God reveale them? Certainly he did it for the edification of ye church, & if so, then it is as certain yt ye church shall at length attain to ye understanding thereof. I mean not all that call themselves Christians, but a remnant, a few scattered persons which God hath chosen, such as without being led by interest, education, or humane authorities, can set themselves sincerely & earnestly to search after the truth. For as Daniel hath said ye wise shall understand, so he hath said also that none of ye wicked shall understand." Cf. Newton, Observations..., OO, V, 448, ver VI. 3, nota 103. 117 Ver VI. 3 e 9. 118 Clarke, DC, 113, ver VI. 3, nota 101. Ver também VI. 9. 119 Cotes, no mesmo parágrafo em que ataca as hipóteses mecânicas (de um Descartes ou de um Leibniz), defende a homogeneidade de toda a matéria, sem que veja aí nada de conjectural, exatamente por ser um dos pressupostos tidos como evidentes e não sujeitos a crítica. Cf. Cotes, Philosophiæ naturalis..., præfatio in Editionem secundam, OO, II, xiii-xiv. 120 Koyré, EN, "L'hypothèse et l'expérience chez Newton", 53-73. Com alguma ironia, na pág. 69, Koyré sublinha que, inversamente, Newton adora o termo suposição, termo que não identificaria a hipótese. Há

330

contraposição entre as suas poucas suposições e a multiplicação desnecessária de hipóteses, onde a sua atitude se junta à sua específica versão da denominada navalha de Occam. 121 Em ambos os casos, Newton não será propriamente dogmático, mas sim autoritário (muito embora existam noções de dogmatismo que incluem o simples autoritarismo). Os seus seguidores imediatos, porém, ainda em vida de Newton, tornaram-se cada vez mais dogmáticos, quer no sentido da indiscutibilidade dos artigos de fé, quer no sentido da ausência de crítica dos conceitos e verdades afirmadas, tirando conclusões que assumem o exemplo newtoniano bem para lá das intenções do próprio Newton. Por exemplo, Newton questionou-se boa parte da sua vida acerca da causa da gravidade e gizou diversas hipóteses, das quais até chegaram alguns fragmentos aos seus textos publicados em vida. Embora, porventura, não acreditasse que outro tivesse sucesso onde ele apenas conjeturava, mesmo se, em dada altura, assumiu uma suspensão de juízo para preservar a insondabilidade do desígnio divino,122 a verdade é que nunca pretendeu que a própria busca de uma causa da gravidade fosse absurda. Cotes, porém, no seu prefácio, pretende que a gravidade seja a causa mais simples possível, não tendo sentido sequer tentar procurar qualquer causa dela. 123 Tratou-se, aliás, de uma estratégia que teve imenso futuro na filosofia: se um problema é incómodo, arranja-se uma forma de o declarar absurdo. Já se viu, aliás, que Clarke também não é imune à estratégia. Porém, Clarke, se declara absurdas certas teorias leibnizianas,124 mantém a suspensão de juízo newtoniana após os fracassos na obtenção de uma teoria quanto às causas da gravidade e, até na própria polémica com Leibniz, como foi visto na dissertação, contenta-se em rejeitar, ao abrigo da 4ª regra newtoniana, que hipóteses possam contradizer conclusões indutivas, deixando para a posteridade a descoberta das causas. 125 Para Cotes, pelo contrário, não há nada para explicar, antecipando a atitude que Lakatos atribui aos newtonianos posteriores.126 Neste sentido, que duvidar desta conclusão no que se refere ao texto relativamente ao qual Koyré faz esta observação: Newton utiliza este termo na imediata sequência do termo hipótese. Cf. Newton, NP, 84. 121 Na projetada e não publicada introdução à Ótica, Newton contrapunha as duas: Newton, Add MS 3970.3, f. 479, NR, 642-3: "Could all the phaenomena of nature be deduced from only thre or four general suppositions there might be great reason to allow those suppositions to be true: but if for explaining every new Phaenomenon you make a new Hypothesis [...]: your Philosophy will be nothing else then a systeme of Hypotheses. And what certainty can there be in a Philosophy w ch consists in as many Hypotheses as there are Phaenomena to be explained." 122 Sobretudo nas três décadas que medeiam entre a 1ª ed. dos Principia e a 2ª ed. inglesa (ou seja, de facto, 3ª) da Ótica. 123 Cotes, op. cit., præfatio..., xix: "Etenim causæ continuo nexu procedere solent à compositis ad simpliciora; ubi ad causam simplicissimam perveneris, jam non licebit ulterius progredi. Causæ igitur simplicissimæ nulla dari potest mechanica explicatio: si daretur enim, causa nondum esset simplicissima." 124 Ver V. 2. 125 Imre Lakatos, ed. John Worrall and Gregory Currie, The methodology of scientific research programmes, Cambridge, Cambridge University Press, 1978; reimpr., New York, 1989 [MS], "Newton's effect on scientific standards", p. 204: "after Newtonians failed in their repeated efforts, they became convinced that the task of 'explaining' gravity (that is, explaining it 'intelligibly') must be left for later generations and that their research programme could go on regardless. Metaphysical criticism as a ground for rejecting a theory, or, better, for holding up or stopping a research programme, must then be ignored." Ver, nesta dissertação, o final de VI. 5. 126 Lakatos, MS, 203: "Newton's efforts later baffled his successors who, born into a world dominated by the spectacular growth of his research programme and not Cartesian philosophy - found his principles not only securely proven but also perfectly intelligible and in no need of further explanation." Acrescente-se que Lakatos inclui na filosofia cartesiana, Leibniz, muito embora chegue, no fundo, a integrar ambos, Leibniz e Newton, na filosofia cartesiana, o que se pode aceitar como duas variações ao mecanicismo cartesiano original, tal como se viu ao longo de VI. A propósito do caráter insólito da teoria da gravitação e do facto ainda mais insólito de, como em tantos outros casos, por ser familiar, ter deixado de ser problemática, vide Dolnick, CU, ch. 51, 301-6.

331

embora Lakatos pareça ter razão em rejeitar os esforços dos positivistas agressivos em fazer de Newton seu precursor, não parece que pudesse dizer o mesmo em relação a Cotes. 127 Não admira, aliás, que a própria correspondência entre Newton e Cotes preparatória da 2ª edição dos Principia pareça ser um eloquente primeiro exemplo da ciência normal newtoniana.128 É evidente que Newton segue a conceção de filosofia experimental de Boyle, na sua rejeição de todas as hipóteses que não se baseiem em observações e experimentos. 129 Koyré tem, aliás, razão quando associa a suspensão de juízo de Newton não só a Boyle, mas também a Hooke, Wallis e até a Galileu.130 Aliás, ninguém mais que Boyle combateu o caráter pernicioso do dogmatismo metafísico no sentido da acusação kantiana, considerando que a pretensão de construir grandes sistemas, não só leva a que se afirme o que não se sabe, mas também que se impeça que se desenvolva o trabalho mais humilde e menos impressionante das pequenas descobertas experimentais, menosprezadas por não estarem inseridas em grandes sistemas. 131 Há, porém, entre outras, duas importantes diferenças: Boyle defendeu, desde muito cedo, mesmo em assuntos alquímicos,132 a comunicação pública dos resultados atingidos, manifestando, quanto muito, em domínios herméticos, alguma hesitação133; Newton, pelo contrário, opta, constantemente, pela reserva e pelo secretismo,134 mesmo em assuntos estranhos à 127

Lakatos, MS, 207-8. Edleston, CC. 129 Cf. Boas, EM, 487-92, embora seja muito duvidosa a simples transposição das conceções de Boyle (e Bacon) para Newton. 130 Koyré, EN, "Newton et Descartes", 191-2. 131 Robert Boyle, The Works of the Honourable Robert Boyle, 1744, new ed., London, Rivington e outros, 1772, vol. I., p. 301: "The worst inconvenience of all is yet to be mencioned; and that is, That whilst this vanity of thinking men obliged to write either sistems or no thing is in request, many excellent notions or experiments are, by sober and modest men, suppressed; because such persons being forbidden by their judgement and integrity to teach more than they understand, or assert more than they can prove, are likewise forbidden by custom to publish their thoughts and observations, unless they were numerous enough to swell into a system. And indeed it may be doubted, wheter the systematical writers have not kept the world from much more useful composures than they presented it with." Diga-se, porém, que Newton não escapou a essa tentação sistemática e o projeto original dos Principia pretendia ser bem mais do que acabou por ser; a exigência metodológica de se cingir ao comprovado empírica e matematicamente, acabou por se impor. Não deixa de ser curioso que esse outro grande experimentalista, Huygens (muito embora sob influência e até pretendendo limitar a afirmação de Leibniz: Leibniz, Carta para Huygens de 29 de Dezembro de 1691, GM, II, 125: "Je m'etonnerois si Mr. Boyle, qui a tant de belles experiences, ne seroit arrivé à quelque theorie sur la chymie, apres y avoir tant medité. Cependant dans ses livres et pour toutes consequences qu'il tire de ses observations, il ne conclut que ce que nous scavons tous, scavoir tout se fait mecaniquement. Il est peut-estre trop reservé. Les hommes excellens nous doivent laisser jusqu'à leur conjectures, et ils ont tort, s'ils ne veuillent donner que des verités certaines."), também se queixe de Boyle nada mais ter construído sobre tantas experiências. Aliás, entrevê-se uma oposição à atitude de Newton na passagem, visto concordar que, de facto, as conjeturas são prejudiciais, mas apenas quando se fazem passar, como em Descartes, por verdades: Huygens, Carta para Leibniz de 4 de Fevereiro de 1692, GM, II, 128: "Mr. Boyle est mort, comme vous scaurez desja sans doute. Il paroit assez étrange qu'il n'ait rien basti sur tant d'expériences dont ses livres sont pleins ; mais la chose est difficile, et je ne l'ay jamais cru coupable d'une aussi grande application qu'il faut pour establir des principes vraisemblables. Il a bien fait cependent en contredisant a ceux des Chymistes. Je suis de vostre avis en ce que vous souhaitez jusqu'aux conjectures des hommes excellents en ces matieres de Physique. Mais je crois qu'ils nuisent beaucoup, lors qu'ils veulent faire passer leur conjectures pour des veritez, comme a fait Mr. des Cartes, parceque ils empeschant leurs sectateurs de chercher rien de meilleur." 132 Dobbs, FA, 68-9. O ideal geral surge muito cedo em Boyle, na esteira de Hartlib e Bacon: cf. Eamon, SN, 330-1. 133 Dobbs, FA, 195. 134 Nomeadamente, no exemplo referido, Stephen Jordan Rigaud, ed., Correspondence of Scientific Men of the Seventeenth Century, Oxford, University Press, 1841, Vol. II, Newton to Oldenburg, April 26, 128

332

"filosofia hermética", como se pode ver nos factos que deram origem a toda a polémica do cálculo, assim como em muitos outros assuntos; por outro lado, se Boyle ataca a elaboração de hipóteses empiricamente infundadas e aí até poderá estar na origem de algum dogmatismo newtoniano, também recomenda, frequentemente, alguma prevenção contra a precipitação com que se pretendem provar teorias com base nas observações, na medida em que novos fenómenos poderão desmentir as conclusões135; se é verdade que Newton parece adotar o mesmo princípio, 136 na verdade passa da experiência à prova com imensa facilidade e parece ter uma conceção muito elementar da prova empírica.137 No primeiro aspeto, a polémica da prioridade mostra que, neste 1676, pp. 395-397. 135 Robert Boyle, op. cit., p. 307: "I have hitherto, though not always, yet not unfrequently, found, that what pleased me for a while, as fairly comporting with the observations, on which such notions were grounded, was soon after disgraced by some further or new experiment, which at the time of the framing of those notions was unknown to me, or not consulted with." 136 No contexto do debate de 72 em torno da luz, rejeita todas as objeções que não fossem empíricas: Newton, OO, IV, 321: "Therefore I could wish all objections were suspended taken from hypotheses, or any other heads than these two: of shewing the insufficiency of experiments to determine these queries, or prove any other parts of my theory, by assigning the flaws and defects in my conclusions drawn from them; or of producing other experiments, which directly contradict me, if any such may seem to occur." A antecipação da 4ª regra também parece clara. 137 Poder-se-á considerar suspeita a apreciação leibniziana, sobretudo na circunstância em que é feita, já após todos os agravos do cálculo e considerando não hipotética mas demonstrativa a teoria da harmonia pré-estabelecida. Porém, talvez tenha alguma razão quando questiona o valor das induções newtonianas: Leibniz, Carta de 9 de Abril de 1716 para o Abbé Conti em resposta a carta de Newton, RD, II, 61: "Je ne préfére pas des Hypothèses aux Arguments tirez de l'induction des experiences ; mais quelquefois on fait passer pour inductions générales ce qui ne consiste qu'en observations particuliéres". Esta discussão é bem ilustrativa de dois dos dogmatismos envolvidos, muito embora nada tenha de especial na época, onde se considerava, com imensa facilidade, em tantos assuntos, um raciocínio como demonstrativo ou um alegado facto como prova. De qualquer forma, a passagem leibniziana aqui citada parece implicar que ele aceitaria como provas as induções gerais. É difícil perceber como se o ponto de partida da indução são os dados dos sentidos: Leibniz, Nouveaux essais..., Livre I, Chap. I, § 5, G, V, 77: "les sens peuvent insinuer, justifier, et confirmer ces verités, mais non pas en demonstrer la certitude immanquable et perpetuelle."; e a comprovação é dada pela acumulação de testemunhos: Leibniz, op. cit., Chap. II, § 20, p. 65, G, V, 90: "je me sers du consentement universel non pas comme d'une preuve principale, mais comme d'une confirmation". A sua rejeição do caráter científico da indução é clara: Couturat, LL, 261-2: "L'expérience sert d'abord de base à l'induction ; mais ce n'est pas là, suivaint Leibniz, l'œuvre propre et essentielle de la science. La généralisation de l'observation et de l'expérience n'est pas un procédé « scientifique » (au sens propre du mot) parce qu'elle n'a aucune valeur logique. Leibniz distingue et oppose en effet les consécutions empiriques, qui nous sont communes avec les bêtes, et les consécutions rationelles, c'est-à-dire les raisonnements déductifs. Les premières s'expliquent mécaniquement par l'association des idées, et donnent lieu à des inductions qui réussissent quelquefois, mais qui trompent souvent. Mais la science consiste dans la connaissance rationnelle et déductive des « raisons » des phénomènes, lesquelles sont universelles et nécessaires ; or aucune induction ne peut fonder une proposition universelle et nécessaire. En un mot, Leibniz condamne abolument l'induction, telle que l'entendent les empiristes, comme insuffisante et même comme trompeuse." Será então enganosa a passagem anterior. Talvez não, se se entender a tal indução geral que Leibniz parece aprovar, subordinada ao tratamento matemático que permite a posterior demonstração dedutiva: ibidem, 263-4: "L'induction ainsi comprise trouve un auxiliaire presque indispensable dans les Tables numériques qui résument une série d'expériences sous une forme synoptique : car le rapprochement des données expérimentales fait ressortir leurs « analogies » et leurs « harmonies » et suggère la loi, c'est-à-dire la foction mathématique qui les unit. Mais l'induction, même sous cette forme mathématique, ne sert tout au plus qu'à suggérer la loi et à faire « présumer » ; il reste à la démontrer, et c'est là l'œuvre de la déduction." Talvez também esta conceção explique a admiração tantas vezes manifestada por Leibniz em relação a Newton, antes da polémica do cálculo ter destruído qualquer possibilidade de apreciação justa. De qualquer forma, nem tudo em Newton é demonstrado matematicamente e nem tudo o que foi demonstrado alcança tanto quanto Newton eventualmente julgou alcançar. Ora, é o tratamento matemático dos dados experimentais que Leibniz respeita: ibidem, 271: "l'induction, ou plutôt l'invention des lois naturelles, se ramène à l'analyse,

333

âmbito, o da comunicação pública, é Leibniz que se situa muito mais próximo de Boyle, mostrando Newton um enorme desprezo pelo que o "segundo inventor" permitiu em termos de desenvolvimento da matemática europeia ao divulgar as suas descobertas duas décadas antes dele.138 Mesmo na época, houve quem não se deixasse impressionar pela propaganda promovida pelos newtonianos e colocasse a questão onde o próprio Leibniz não a soube colocar: Montmort salienta que, fosse quem fosse o inventor, tinham sido Leibniz e os Bernoulli que ensinaram a Europa a fazer toda uma nova e vasta variedade de cálculos.139 No segundo aspeto, a título de exemplo, a muito incerta possibilidade de conversão da água em terra, apresentada por Boyle com muitas reservas 140 , é enunciada, por Newton, na Ótica (quer na ed. latina, quer na 2ª ed. inglesa), como um facto estabelecido 141 . Um caso bem conhecido é também o das sucessivas rejeições dos dados de Flamsteed, mesmo quando este já os fornecia submetidos às sucessivas correções propostas por Newton, sistematicamente atribuindo a responsabilidade ao astrónomo. 142 Mas talvez o exemplo mais eloquente possa ser dado por um dos momentos mais inconscientemente metafísicos de Newton, na famosa terceira regra dos Principia, a da analogia da Natureza. Após inferir que, se muitos corpos que são objeto de experiência são duros, então todas as partículas não divididas de todos os corpos são duras, o que já é logicamente questionável, conclui que, se ocorresse um único experimento em que uma partícula não dividida sofresse uma divisão, por aplicação da regra, todas as partículas poderiam ser divididas ao infinito. 143 Naturalmente, esta possibilidade só deveria ser considerada retoricamente por Newton e deveria nascer da convicção de que teria alcançado substâncias elementares, cujas partículas não seriam compostas, mas como se poderia concluir da divisão de uma partícula, como tantas outras antes divididas, que a partir daí tudo se poderia dividir ao infinito? Porque não supor que a partícula indivisível poderia ser mais pequena (como, aliás, acabaram por fazer os físicos)? Por um lado, este exemplo ilustra bem a convicção de Newton de que os experimentos, especialmente os que considerava cruciais, forneciam provas terminantes não apenas do que aconteceu mas de enunciados universais. Por outro lado, mostra que, porventura não de forma tão desenfreada, Newton utiliza o mesmo raciocínio analógico que c'est-à-dire à la deduction à rebours ; mais on ne raisonne jamais que par déduction. La Physique a la même méthode que les sciences mathématiques, ou plutôt, sa méthode consiste dans l'application des Mathématiques à la nature, où la raison et l'expérience, marchant l'une au devant de l'autre, se rencontrent, s'unissent et collaborent à la recherche de la verité. En somme, la Mathématique abstraite est la véritable Logique des sciences naturelles ; et l'on peut dire sans paradoxe que la seule méthode expérimentale est la déduction." 138 Westfall, NR, 718: "Newton contended — with his endless redrafting, contended repeatedly — that second inventors have no rights. A more patently absurd claim could not have been advanced. The first inventor clutched his discovery to his breast and communicated almost nothing. The second inventor published his calculus and thereby raised Western mathematics to a new level of endeavor. Newton realized as much in the end, and a good half of his fury was flung at Leibniz as a surrogate for his former self who had buried such a jewel in the earth." 139 Montmort, carta de Montmort para Taylor de 18 de Dezembro de 1718, NR, 784-5,. 140 Dobbs, FA, 200-1. Aliás, dá, logo em seguida, outro exemplo da falta de espírito crítico de Newton na receção das especulações de Boyle, nesse caso nos Principia. 141 Newton, Optics, Query 30, OO, IV, 241: "I know no body less apt to shine than water; and yet water, by frequente distillations, changes into fixed earth, as Mr. Boyle has tried; and then this earth, being enabled to endure a sufficient heat, shines by heat like other bodies." 142 Lakatos, MS, 215-7. 143 Newton, Philosophiæ naturalis..., Regula III, OO, III, 3: "At si vel unico constaret experiment, quòd particular aliqua indivisa, frangendo corpus durum & solidum, divisionem pateretur: concluderemus vi hujus Regulæ, quòd non solùm partes divisæ separabiles essent, sed etiam quòd indivisæ in infinitum dividi possent."

334

Leibniz, visto a possibilidade que apresenta ser ilustrativa do próprio procedimento de Leibniz que, a partir das observações microscópicas, conclui que se encontrarão seres vivos, máquinas orgânicas por mais que se divida a matéria ao infinito. Da geometria, Leibniz até poderia concluir a infinita divisibilidade de qualquer extensão, mas não que se encontrassem máquinas orgânicas no mais ínfimo ponto. Naturalmente, tal como na tese oposta de Newton, pressupostos metafísicos sustentam a validade da analogia, nomeadamente o tão referido princípio da uniformidade da natureza. 144 Estes três exemplos tão díspares ilustram bem, pela sua própria disparidade, a fragilidade metodológica da noção newtoniana de prova empírica. Como foi visto em VI. 9, quer no domínio histórico, quer no domínio da interpretação profética, Newton pretendia alcançar uma evidência empírica que lhe permitisse provar definitivamente o que pretendia. É também essa a sua convicção, naturalmente, na Física, na Astronomia e na polémica do cálculo. Hall e Tilling sublinham a mentalidade legalística, ou seja, judicial, que preside às suas diversas atividades, incluindo o trabalho na Mint e as investigações alquímicas.145 De facto, é provável que a palavra prova tenha essa origem judicial e já se viu, na subsecção anterior, como Leibniz tentava encontrar na linguagem judicial um ponto de partida para a sua lógica do provável, mas, não tendo uma intenção muito diferente de Leibniz, Newton parece reduzir as exigências e as fases processuais do processo judicial ao mínimo possível. É verdade que Newton tinha alguma experiência judicial na perseguição de falsários, mas, quem quer que examine a construção do processo contra Leibniz na questão do cálculo, não pode deixar de julgar ofendidas muitas das exigências básicas de um tal procedimento, a necessidade de contraditório, não condenar com base em provas circunstanciais suscetíveis de outras interpretações e até explicações factuais, não passar o ónus da prova para o acusado, etc.. 146 Parece que resume a prova no estabelecimento de uma condenação (ou de uma decisão acerca da realidade, noutros casos) com base em factos e no encerramento definitivo do caso, a não ser que surjam novos factos. Nunca considera a possibilidade de uma diferente interpretação dos mesmos factos e isso desde a juventude, visto o enunciado da quarta regra dos Principia147 já ter sido produzido, mais letra, menos letra, na correspondência de 1672.148 E, naturalmente, não é admissível a reabertura de um caso com base em conjeturas. Aliás, regressando à comparação com Boyle, nada jamais coibiu este último de apresentar hipóteses a partir dos factos, até porque sempre foi partidário do debate e 144

O que não sendo grande problema para Leibniz (muito embora também se possa questionar se os seus pressupostos metafísicos têm justificação aceitável), é naturalmente um grande problema para o modelo indutivo de Newton que Leibniz considerava que, como todos os modelos empiristas, nem conseguia justificar indutivamente a própria indução: Couturat, LL, 468: "non seulement l'induction ne peut jamais justifier des propositions absolument universelles, mais elle ne peut se justifier elle-même qu'en s'appuyant sur quelque principe universel, qui par conséquent ne saurait être induit. Ainsi l'empirisme qui ruine toute déduction ne réussit même pas à justifier l'induction, ni par suite aucune science, même expérimentale." 145 Hall e Tilling, Introduction, CN, VI,. xxx: "In Newton's mind, no one who cleary saw the force of the documents [do Commercium Epistolicum][...] could fail to do him justice. In 1711 Newton had seen the issue as a biographical and historic one (here, as in his Mint work, in his writings on chronology, and indeed in his alchemichal lucubrations, Newton reveals an almost legalistic mentality with respect to the value of evidence). He continued to see it in this way." 146 A obra que continua a merecer um muito especial destaque neste assunto é a de Hall, PW. 147 Newton, Philosophiæ naturalis..., Liber tertius, Regulæ..., OO, III, 4, citada em VII. 1, nota 18. 148 O que também afasta qualquer possibilidade de ser a sua experiência na Mint a ter dado origem a tal conceção. Newton, Carta para Oldenburg de 7/1672, OO, IV, 320-1, ver I. 1 (nota 20) e nesta secção (nota 136).

335

sempre o considerou fundamental para o desenvolvimento da própria filosofia experimental. Como já foi visto nesta secção, a sua oposição fundamental dirigia-se contra as construções sistemáticas hipotéticas. De facto, apresenta as suas próprias conclusões, nomeadamente a lei que ainda hoje tem o seu nome, como hipóteses.149 Compare-se esta atitude com a de Newton assim que tinha comunicado a sua primeira grande descoberta na física.150 Newton mostra-se sistematicamente adverso ao debate e à elaboração de hipóteses e, por isso, não as sujeita à crítica, visto apresentar muitas hipóteses como pressupostos não questionados ou como certezas inquestionáveis. De facto, ele não "finge" hipóteses, apenas finge não ter hipóteses. Num dos passos mais elucidativos do dogmatismo newtoniano, consegue recorrer ao dogmatismo tradicional de uma suposta autoridade antiga, um resquício das muito mais vastas referências à prisca sapientia que chegaram a ser planeadas para os próprios Principia151, acusa os filósofos posteriores de terem inventado hipóteses metafísicas para tudo explicarem mecanicamente, defende que a filosofia natural não deve especular acerca de hipóteses, mas que deve deduzir as causas dos efeitos até chegar à primeira causa, nem notando que esse é um típico procedimento metafísico, enunciando tudo isto num contexto em que estava a defender a existência do vácuo, dos átomos e da gravidade nos átomos, implicitamente considerados não hipotéticos, nem metafísicos.152 Compare-se a atitude de Boyle, responsável por inúmeras experiências no vácuo, a respeito da questão do vazio, considerando que se tratava mais de uma questão metafísica que física e que, por isso, não teria lugar na filosofia experimental,153 com a de Newton que já supunha que o vácuo ou os átomos não seriam nem hipóteses, nem a sua afirmação dependeria de metafísica. Nessa passagem de Newton, não deixa de ser, igualmente, óbvia a atribuição a causas não mecânicas, diretas ou tributárias da Primeira Causa, o funcionamento da máquina do mundo, em oposição a uma explicação estritamente mecanicista, o que já foi abundantemente tratado na dissertação e está estreitamente ligado à questão da liberdade divina. Curiosamente, David Hume valorizava bem mais Newton que Boyle, exatamente não só devido à sua atitude avessa a conjeturas, como devido ao facto de remeter as causas dos fenómenos para um domínio não mecânico inacessível ao conhecimento humano, ao passo que Boyle cederia à tentação de tudo tentar explicar mecanicamente.154 É difícil perceber se Hume teria notado a pretensão metafísica, não 149

Boas, EM, 422: "it was in answer to Linus that Boyle performed the quantitative experiments which confirmed "the hypothesis, that supposes the pressures and expansions to be in reciprocal proportion". This is the earliest (1662) published statement of Boyle's Law, here denominated an hypothesis; the first to call it a "law of nature" was Mariotte, the able experimenter of the Académie des Sciences, in his Discours de la nature de l'air, published in 1676." 150 Newton, Carta para Oldenburg, OO, IV, 310, citada logo em I. 1, nota 21. 151 McGuire e Rattansi, PP, 108-43. 152 Newton, Optics, Query 28, OO, IV, 237: "And for rejecting such a medium [a dense fluid], we have the authority of those the oldest and most celebrated philosophers of Greece and Phœnicia, who made a vacuum and atoms, and the gravity of atoms, the first principles of their philosophy; tacitly attributing gravity to some other cause than dense matter. Later philosophers banish the consideration of such a cause out of Natural Philosophy, feigning hypotheses for explaining all things mechanically, and referring other causes to metaphysics. Whereas the main business of natural philosophy is to argue from phænomena without feigning hypotheses, and to deduce causes from effects, til we come to the very First cause; which certainly is not mechanical: and not only to unfold the mechanism of the world, but chiefly to resolve these and such like Questions." 153 Rossi, SM, 289: "Boyle non identificava con il nulla il vuoto costruito nei suoi esperimenti. Non intendeva essere etichettato como un sostenitore del «pieno» o del «vuoto». Il recipiente svuotato è privo di ogni sostanza corporea? Relativamente a domande di questo tipo, Boyle è molto cauto. Pensa si tratti di questioni più metafisiche che fisiche che non devono trovare spazio nella «filosofia sperimentale»." 154 David Hume, The History of England from the Invasion of Julius Caesar to the Revolution in 1688, London, 1782, vol. 8, pp. 332-334 in EC, 186: "Boyle was a great partizan of the mechanical philosophy;

336

declarada enquanto tal por Newton, de conhecer um conjunto de realidades que Boyle reconhecia inacessíveis à experiência ou se partilhava a ilusão newtoniana de nada disso ser metafísico, mas sabe-se que não partilhava, de todo, as convicções religiosas de Newton.155 Ora, como foi visto, a sua preferência pela insondabilidade das causas estava intimamente ligada com as suas convicções religiosas e com a preservação da liberdade divina da determinação mecanicista do mundo. Da mesma forma, Newton, aqui em consonância com Boyle, valoriza os alquimistas por descreverem fenómenos da natureza, implicitamente não considerando haver nada de hipotético na alquimia, ao contrário dos modernos metafísicos, como Descartes ou Leibniz, que só sonhavam com sistemas que representavam falsamente o mundo de Deus.156 No fundo, mais do que atacar a invenção de hipóteses, mais do que abolir a especulação metafísica, estes epítetos visam distinguir as teorias erradas das verdadeiras, consideram as suas teses metafísicas como verdades inquestionáveis a que são contrapostas as teorias opostas como meras hipóteses. Mesmo nas "Queries", onde adota, inicialmente ao menos, a forma da questão, Newton supõe que as teorias dos outros são meras conjeturas sem fundamento empírico, ao passo que as suas teorias mais básicas são certezas se não diretamente empíricas, generalizadas a partir dos fenómenos por indução ou, mais amplamente, por analogia. É, aliás, por vezes, difícil de discernir o que é considerado certo e o que é considerado conjetural nas queries,157 mas certamente as teses básicas a theory, which, by discovering some of the secrets of nature, and allowing us to imagine the rest, is so agreeable to the natural vanity and curiosity of men. [...] In Newton this island may boast of having produced the greatest and rarest genius that ever arose for the ornament and instruction of the species. Cautious in admitting no principles but such as were founded on experiment; but resolute to adopt every such principle, however new or unusual[...]. While Newton seemed to draw off the veil from some of the mysteries of nature, he shewed at the same time the imperfections of the mechanical philosophy; and thereby restored her ultimate secrets to that obscurity in which they ever did and ever will remain." James Force conclui a este propósito: Force, EC, 190: "Hume, in text cited above, explains that Newton is a greater natural philosopher than Boyle because he puts the "Imaginary" mechanical philosophy back into the bottle by cautiously refusing to countenance any "principles but such as were founded on experiments" thereby restoring Nature's "ultimate secrets to that obscurity in which they ever did and ever will remain."" 155 Force, EC, 187: "Hume firmly emphasizes that Newton's religious heterodoxy is both sincere and chiefly due to the defects and ignorance of Newton's historical era which influenced his theological enthusiasm for such doctrines as millennialism. Hume also makes clear that this particular aspect of Newton's thought is distasteful to him because it goes beyond the boundaries of decent scepticism." Acontece, como já foi visto anteriormente, que a principal razão que motiva as reservas de Newton é a de preservar a insondabilidade dos desígnios divinos e, assim, sustentar um determinado tipo de fideísmo que não parece compatível com as conceções de Hume. 156 Manuel, RI, 44-5: "Those alchemists who had preserved what remained of the authentic tradition of Hermes [...] were searching for a first cause, for a simple unifying principle. And just as Newton could profitably study the textual fragments of ancient Greek astronomers and mathematicians and pre-Socratic philosophers who had observed the universe, so he could read, copy, and meditate over alchemical writings as conceivably genuine, if incomplete, revelations of God's creation. The alchemists were describing phenomena of nature, in contradistinction to the modern metaphysicians — he meant Descartes and Leibniz — who were only dreaming up systems that falsely represented God's world. Essential truths about the operations of God in nature might be extracted from the alchemical traditions if their imagery could be unravelled. (The problem was identical with the interpretation of visions in the Apocalypse.)" O que também significa que, ao menos em parte, o que foi visto em VI. 9 é aplicável aqui. 157 A primeira utilização cuja data é conhecida do modelo das queries é de Julho de 1672, na sequência da apresentação perante a Royal Society da sua teoria da luz ou das cores e das objeções que se seguiram, e é perfeitamente evidente que, neste caso, as queries são avançadas para provar experimentalmente a teoria. Toda a carta pretende defender que a teoria é derivada dos experimentos positiva e diretamente e que, por isso, não são admissíveis objeções produzidas a partir de hipóteses. Cf. Newton, Carta para Oldenburg de 7/1672, OO, IV, 320-1. Mesmo nos exemplos históricos e religiosos, a intenção de Newton na forma exata da Query, talvez um pouco alterada em alguns segmentos das maiores queries da Ótica, é a de fazer

337

acima referidas não são consideradas conjeturais porque são explicitamente contrapostas às meras hipóteses mecânicas opostas. É verdade que na sua recensão anónima do seu próprio Commercium Epistolicum, Newton assume as "Queries" da Ótica como hipóteses, embora as tentando diferenciar como conjeturas e questões que possam vir a ser examinadas por experimentos.158 Não se percebe a razão por que as hipóteses dos outros (os vórtices, o éter denso, a circulação harmónica, etc.) não poderiam vir a ser examinadas por experimentos, não parecendo ser mais inacessíveis empiricamente que muitas das de Newton. É, aliás, o que afirma Leibniz quando acusado de fazer uma filosofia conjetural em vez da filosofia experimental implicitamente correta. 159 Num rascunho dado a conhecer pelos Hall e que Manuel, apesar de o datar de 1715, associa à quinta resposta de Clarke, quando parece estar a responder à última declaração aqui referida de Leibniz, Newton refere uma série de teorias estritamente metafísicas que não eram nitidamente aquelas em que Leibniz estava a pensar, como sendo insuscetíveis de vir a ter uma resposta experimental.160 Poder-se-ia dizer o mesmo das teses da passagem referida da um desafio, como se dissesse "Vão lá ver se é assim ou não é", tal como alguém que estivesse a propor uma aposta que já sabia que ganharia. 158 Newton, Recensio, OO, IV, 492; Newton, "Account...", PW, 312: "In this Philosophy Hypotheses have no place, unless as Conjectures or Questions proposed to be examined by Experiments. For this Reason, Mr. Newton in his Optiques distinguished those things which were made certain by Experiments from those things which remained uncertain, and which he therefore proposed in the End of his Optiques in the Form of Queries." 159 Leibniz, Apostilha de uma carta ao Abbé Conti, RD, II, 7: "J'approuve fort sa Méthode de tirer des Phénomênes ce qu'on en peut tirer sans rien supposer, quand même ce ne seroit quelquefois que tirer des conséquences conjecturales. Cependant quand les Data ne suffisent point, il est permis (comme on fait quelquefois en déchifrant) d'imaginer des Hypothèses; & si elles sont heureses on s'y tient provisionnellement, en attendant que de nouvelles experiences nous apportent nova Data, & ce que Bacon appelle experimenta crucis, pour choisir entre les Hypothèses." A passagem também se encontra, sem indicação do destinatário, em Leibniz, OO, IV, 597. Isso não o impediu de ter uma atitude semelhante ao "hypotheses non fingo" de Newton quando confrontado com as incompatibilidades entre o respeito dos cometas da lei da área e os seus vórtices harmónicos: cf. Aiton, VT, 137. De facto, a sua atitude é ainda mais vasta, abrangendo a atração e a circulação harmónica, muito embora numa curiosa inversão do que se considera hipotético em relação a Newton, como bem vê Meli, EP, 158: "For Leibniz the existence of attraction is hypothetical, since attraction is a purely imaginary mathematical construct to save the phenomena; reality lies in the impulsion of fluids. His interpretation is almost the opposite of Newton's hypotheses non fingo; for Newton the existence of attraction inversely proportional to the squared distance is a mathematicallly demonstrated fact, whereas the existence of subtle fluids is a hypothesis: the two players could not agree on the rules of the game." A passagem da carta de Conti, enviada por Rémond, a que Leibniz responde, refere-se ao artigo anónimo de Newton e pode ser lida em G, III, 654. Na passagem citada de Leibniz, para lá da afirmação de uma metodologia análoga à afirmada por Newton, declarações porventura não completamente sinceras, é de sublinhar a referência aos experimenta crucis de Bacon, os mesmos que eram reivindicados por Hooke e Newton a propósito da refração da luz, mas sem Newton jamais referir o nome do autor. Pelo contrário, Leibniz cita-o e refere-o inúmeras vezes, o que faz pensar se Brewster não terá razão na dissociação que estabelece entre o método de Bacon e a prática de Newton, ao contrário do afirmado por inúmeros comentadores: Brewster, ML, II, Ch. XXVII, 400-4. Segundo Eamon, o método baconiano era reconhecidamente mais conjetural e analógico do que indutivo. Cf. Eamon, SN, 288. O facto de ser analógico não é muito contrário a Newton, mas o facto de ser conjectural... Porém, o seu silêncio (e o de Clarke) acerca de outras influências, como, por exemplo, Henry More (para não falar das mais heréticas), mesmo quando Leibniz as refere, é bastante notório, pelo que talvez não se possa concluir grande coisa daí. 160 Manuel, RI, 76-7: "And at the same time he is propound ing Hypotheses (not Quaeres to be examined by experiments but precarious opinions to be believed without proof) which turn Philosophy into a Romance." Implicitamente, cria perplexidade que Newton pense que as suas conceções metafísicas ou já foram comprovadas pela experiência (o que é, se calhar, o que pensa da maioria), ou poderão vir a sê-lo. Ao estar a atacar Leibniz por as suas conceções metafísicas não serem testáveis, parece não admitir a possibilidade de existirem conceções análogas nas suas teorias. 161 Leibniz, RD, II, Apostilha de uma carta ao Abbé Conti, 7-8: "Je suis fort pour la Philosophie expérimentale ; mais Mr. Newton s'en écarte fort, quand il prétend que toute la Matiére est pesante (ou que chaque partie de la Matiére en attire chaque autre partie) ce que les expériences ne prouvent nullement, comme Mr. Huygens a déja fort bien jugé. La Matiére gravifique ne sauroit avoir elle-même cette pesanteur dont elle est la cause, & Mr. Newton n'apporte aucune expérience, ni raison suffisante pour le Vuide & les Atomes, ou pour l'Attraction mutuelle, générale." Não se pode deixar de referir a utilização de Huygens como autoridade. Também é esclarecedora a dupla referência às possibilidades de prova segundo Leibniz: ou uma experiência, ou uma razão suficiente. 162 Antonio Schinella Conti, "Carta para Remond de 30 de Junho de 1715" apenas enviada para Leibniz a 18 de Outubro, G, III, 654: "Ce qui semble beau dans le systeme de M. Newton, c'est qu'il ne suppose rien et n'admet dans les choses que ce qu'il voit". Conti está já, neste caso, a fazer o papel de advogado de Newton que, de facto, contrapõe a sua filosofia indutiva baseada em dados empíricos contra Leibniz, mas que reconhece, em carta a Flamsteed, logo a seguir a, implicitamente, criticar as observações deste, não fazer quaisquer observações astronómicas: cf. Newton, Carta para Flamsteed de 16 de Fevereiro de 1694/5, CN, IV, 87: "In ye former edition of my Book you may remember yt you communicated some things to me & I hope ye acknowledgmts I made of your communications were to your satisfaction: & you may be assured I shall not be less just to you for ye future. For all ye world knows yt I make no observations my self & therefore I must of necessity acknowledge their Author: And If I do not make a handsome acknowledgment, they will reccon me an ungratefull clown." A não ser que se trate de uma visão por procuração, isto não parece corresponder à declaração de Conti. Já foi visto, aliás, como Newton rejeitou dados de Flasmsteed, apesar da correção já feita segundo os seus critérios. 163 Leibniz, OV, VII, 633, onde considera, nas propostas para a Sociedade Prussiana das Ciências, que, se há alguma coisa que possa ser considerada obra pia, é a investigação científica, visto levar ao conhecimento das obras do Criador.

339

querer substituir a religião tradicional por uma religião da racionalidade e da ciência.164 Em Newton, se a ciência talvez não deva ser vista como uma criada da religião,165 é porque este não a concebe como sendo uma missão alternativa, subordinada ou subordinante, mas apenas, na melhor das hipóteses, como uma faceta da mesma missão. Em geral, poder-se-ia dizer que esta ligação entre a religião e a ciência, nomeadamente no seu caráter dogmático, é "fruta da época" e a verdade é que mesmo os autores mais louvados pela defesa da tolerância não se coibiam de certas exceções inequivocamente intolerantes.166 É evidente, porém, que ocorria, na época, uma gradual evolução erosiva do dogmatismo religioso, em que qualquer um destes autores participou. Mas enquanto Leibniz, mesmo quando recorre ao princípio de autoridade, fazendo-o, na polémica, por vezes, de forma verdadeiramente grosseira, se mostrou, porém, sempre disposto ao diálogo, à argumentação e à discussão de pontos de vista, o que diferencia a atitude newtoniana e antecipa o dogmatismo científico é a recusa do diálogo, considerando todas as disputas teóricas (e não só), por princípio, negativas. Na verdade, Leibniz partilhava o mesmo objetivo e, como foi visto na subsecção anterior, até desejava fazê-lo de forma mais total e definitiva, reduzindo toda a discussão a um cálculo lógico. Porém, enquanto não realizava tal desígnio, promovia o intercâmbio com os mais diversos interlocutores, como forma de comunicar as suas teorias, de as aperfeiçoar, mas também de se adaptar a perspetivas diversas. São bem conhecidas diversas passagens onde defendia que a generalidade dos autores (e até das seitas) tinha razão naquilo que defendia, muito embora perdessem a razão ao rejeitarem o que outros diziam,167 chegando mesmo a defender, explicitamente, que se extraísse o melhor de cada um.168 Em ambos os casos, tanto em Leibniz, como Newton, existe a pretensão de provar ou até demonstrar; em ambos os casos, existem manifestações de ultraje por se considerar hipotético ou conjetural o que, segundo eles, foi provado ou até demonstrado; mas só em Newton tal atitude gera uma aversão ao próprio debate que constantemente é reafirmada. Grande parte das omissões sobretudo nos Principia deveram-se não a Newton julgar que se tratavam de teses duvidosas, antes as considerando absolutamente verdadeiras, mas, muito provavelmente, ao seu receio de polémicas.169 Isso mostra que lhe importava mais o poder da indiscutibilidade que a procura da verdade, ao menos enquanto esta é entendida como um empreendimento coletivo, para o qual, por exemplo, podem contribuir as conjeturas e a comunicação dos resultados atingidos, mesmo se parciais. A redução do conhecimento aos dados empíricos teve, muitas vezes, como contrapartida, mesmo que não na sua forma extrema emocionalista do entusiasmo que não se reveria sequer numa racionalidade empírica, o fideísmo, visto ser a única forma admitida de chegar a Deus e, em geral, aos mistérios situados para lá da experiência 164

Couturat, LL, 138, citada em VI. 9, nota 456. Westfall, "Newton and Christianity", NW, 357; pelo contrário, Manuel parece atribuir mais esta conceção ao círculo newtoniano do que ao próprio Newton: Manuel, RI, 35; provavelmente, prefereria que a subordinação fosse apenas, na sua própria obra, mais discreta. 166 Cf. a propósito do ateísmo, John Locke, Epistola de Tolerantia, Institut Internationale de Philosophie/PUF, 1965; trad. port. João da Silva Gama, Carta sobre a Tolerância, Lisboa, Edições 70, 19873, p. 118. 167 E. g., Leibniz, Carta para Remond de 10 de Janeiro de 1714, G, III, 607: "J'ay trouvé que la pluspart des Sectes ont raison dans une bonne partie de ce qu'elles avancent, mais non pas tant en ce qu'elles nient." Leibniz, Essais de Théodicée, Préface, G, VI, 46, ver VII. 2, nota 236. 168 Leibniz, Carta para Coste de 4 de Julho de 1706, G, III, 384: "J'ay cette Maxime generale de mepriser bien peu de choses et de profiter de ce qu'il y a de bon par tout." 169 Ilustrativo é o artigo de McGuire e Rattansi, PP, 108-143, que tem como referência principal os escólios para a 2ª edição dos Principia que acabaram por ser omitidos. Na Ótica, do livro IV, só restaram as Queries, inicialmente muito mais restritas. Cf. Westfall, NR, 640-3. 165

340

possível. O próprio Leibniz associa a fé à experiência, destacando ambas da razão pura.170 Para dizer a verdade, Newton, na prática, fazia as mesmas distinções, mas para rejeitar a razão pura. Não é por acaso que se preocupa a apresentar a própria geometria como uma parte da mecânica, a racional, fundada, porém, na prática que compreende, em geral, as artes manuais.171 O próprio positivismo visava superar a metafísica, mas não dispensava a religião (muito embora da humanidade).172 Claro que a superação da metafísica, tal como em Newton, é apenas declarada, supondo sempre uma metafísica camuflada.173 E, no séc. XX, não faltam as associações populares (e não só) entre a ciência e a religião, ignorando, porém, a filosofia ou, mais precisamente, a metafísica (pelo menos, explicitamente). Em geral, a recusa newtoniana de quase todo o debate intelectual estará na origem de muito do dogmatismo científico e, embora haja quem pense que esse dogmatismo é fundamental para o aprofundamento do trabalho 170

Leibniz, op. cit., Discours…, § 1, G, VI, 49-50: "L'on peut comparer la Foy avec l'Experience, puisque la Foy (quant aux motifs qui la verifient) depend de l'experience de ceux qui ont vû les miracles, sur lesquels la revelation est fondée, et de la Tradition digne de croyance, qui les a fait passer jusqu'à nous, soit par les Ecritures, soit par le rapport de ceux qui les ont conservées. A peu près comme nous nous fondons sur l'experience de ceux qui ont vû la Chine, et sur la credibilité de leur rapport, lorsque nous ajoutons foy aux merveilles qu'on nous raconte de ce pays eloigné." 171 Newton, Philosophiæ naturalis..., Auctoris Præfatio, OO, II, ix: "Fundatur igitur Geometria in praxi mechanicâ, & nihil aliud est quàm Mechanicæ universalis pars illa, quæ artem mensurandi accuratè proponit ac demonstrat." Não se trata, apenas, de considerar a mecânica racional uma geometria do movimento, como afirmou Harris citando Wallis, cf. nota de Cohen e Whitman, PM, 381. A conceção de geometria de Newton, aquela que lhe permitiu criar o cálculo fluxional, é, de raiz, resultante do movimento: Isaac Newton, Tractatus de Quadratura Curvarum, "Introductio" in Isaac Newton, Opticks, London, Sam Smith & Benj. Walford, 1704, 2º vol., p. 165: "Quantitates Mathematicas non ut ex partibus quam minimis constantes, sed ut motu continuo descriptas hic considero. Lineæ describuntur ac describendo generantur non per appositionem partium sed per motum continuum punctorum, superficies per motum linearum, solida per motum superficierum, anguli per rotationem laterum, tempora per fluxum continuum, & sic in cæteris. Hæ Geneses in rerum natura locum vere habent & in motu corporum quotidie cernuntur. Et ad hunc modum Veteres ducendo rectas mobiles in longitudinem rectarum immobilum genesin docuerunt rectangulorum." Cf. Trad. ingl. de John Harris in John Harris, Lexicon Technicum: Or, An Universal English Dictionary of Arts and Sciences, London, Dan. Brown, Tim. Goodwin e outros, 1710, 2º Vol, Artigo "Quadrature of Curves": "I don't here consider Mathematical Quantities as composed of Parts extreamly small, but as generated by a continual motion. Lines are described, and by describing are generated, not by any apposition of Parts, but by a continual motion of Points. Surfaces are generated by the motion of Lines. Solids by the motion of Surfaces, Angles by the Rotation of their Legs, Time by a continual flux, and so in the rest. These Geneses are founded up on Nature, and are every Day seen in the motion of Bodies." É perfeitamente evidente a intenção de radicar empírica e naturalmente os elementos geométricos. 172 Burtt refere que Brewster terá afirmado, nas Memoirs, que Newton foi o primeiro grande positivista, Burtt, MF, 305-6. Visto a afirmação não se encontrar na edição de 1855, é possível que surja na edição de 1885 referida na bibliografia e a que este trabalho não teve acesso. De qualquer forma, poder-se-ia dizer que será um estranho positivista que não dispensa o estado teológico. 173 Não se está aqui a pensar nas discussões lógicas mais complexas desenvolvidas em relação a Carnap por, e. g., Karl Popper, Conjectures and Refutations, Londres, Routledge & Kegan Paul, 1963, 11. A demarcação entre ciência e metafísica, pp. 341-392, mas no simples princípio de indução e seu associado princípio da uniformidade da natureza, e. g., Karl Popper, Logik der Forschung, 1934, Fünfte Auf., 1973; The Logic of Scientific Discovery, Londres, Hutchinson & Co., 1959, 1968, 6 th. impr., 1972; trad. port. Leonidas Hegenberg, Octanny Silveira da Mota, A Lógica da Pesquisa Científica, 2ª ed., São Paulo, Ed. Cultrix, 1974, X, 79., pp. 277-278. O assunto é longamente discutido em Karl Popper, Postscript: After Twenty years, Vol. I, Realism and the Aim of Science, Londres, Hutchinson, 1956, 1983; trad. port. Nuno Ferreira da Fonseca, Pós-escrito à Lógica da Descoberta Científica, Vol. I, O Realismo e o Objetivo da Ciência, Lisboa, Pub. Dom Quixote, 19877, sobretudo o cap. I, pp. 45- 175. É interessante como, aliás, a metafísica e a religião se fundem, a este e a outros propósitos, na tentativa de superar a metafísica: Auguste Comte, Catéchisme Positiviste, Paris, chez l'auteur, 1852; édition électronique par Jean-Marie Tremblay, 20022, p. 34: "Le dogme fondamental de la religion universelle consiste donc dans l'existence constatée d'un ordre immuable auquel sont soumis les événements de tous genres."

341

científico, 174 não é nada evidente que a ciência estivesse a evoluir muito mais lentamente antes da adoção da referida atitude. Pelo contrário, ao menos na matemática, Thomas Simpson, em 1757, queixava-se do atraso que se estava a registar na matemática britânica em comparação com a continental, devido à insistência em seguir o paradigma geométrico newtoniano do cálculo fluxional, em detrimento do mais algébrico cálculo diferencial. 175 Lakatos sublinha o mesmo estrangulamento no desenvolvimento da filosofia natural newtoniana em Inglaterra, ao contrário do que acontecia em França, onde, movidos pela concorrência com teorias rivais, os problemas newtonianos em aberto eram livremente discutidos.176 Tão-pouco é evidente que, para ter a ciência moderna, isso implicasse um barbarismo metafísico.177 A matematização da realidade física já havia sido levada a cabo por Descartes e a filosofia experimental tinha investigadores próprios que não perdiam tempo com questões metafísicas, sem que isso implicasse um alheamento e uma hostilidade total a qualquer debate intelectual, não só metafísico, mas simplesmente hipotético. Apesar de algum dogmatismo, por exemplo, entre os cartesianos que quer Leibniz, quer Boyle criticam, em lado algum se vê uma rejeição tão radical como a newtoniana do debate de várias perspetivas. Aliás, diversos paradigmas já existiam, como Kuhn reconhece, com a respetiva ciência normal, implicando um certo afunilamento empírico da discussão, como era visível na Royal Society desde a sua origem, sem que isso implicasse a rejeição do debate conjetural no âmbito dos problemas empíricos ou operativos. Além disso, o facto de só se discutir puzzles empíricos não implicava que se considerasse que nem deveria existir reflexão metafísica, mesmo se feita por outros, como parece inferir-se da atitude e das declarações de Newton.178 E, certamente, a Royal Society sob a presidência de Newton foi bem diferente da de Boyle e Oldenburg. De facto, a Royal Society dos anos 60 e 70 foi um bastião antidogmático efervescente de discussão e curiosidade intelectual, 179 quer, internamente, nas suas 174

Parece ser uma das teses de Thomas S. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, Chicago, The University of Chicago Press, 1962, 1970, 3 rd. ed., 1996, e. g., pp. 18-20, utilizando o exemplo da ciência normal frankliniana (após uma referência mais genérica através da revolução newtoniana na ótica, pp 12-13) e pp. 163-164 para uma abordagem mais geral. Não deixa de ser curioso referir-se Boyle (para lá de outros bem mais antigos) para o paradigma da química (p. 15), tendo em conta as perspetivas bem pouco dogmáticas do autor, ao menos em termos científicos. A questão central é se Newton não terá fornecido um modelo de ciência que passou a ser reproduzido, de forma acrítica, por todas as comunidades científicas e não só a da mecânica e da ótica. Ver também Thomas S. Kuhn, "The function of dogma in scientific research" in A. C. Crombie (ed.), Scientific Change (Symposium on the History of Science, University of Oxford, 9–15 July 1961), New York and London, Basic Books and Heineman, 1963, pp. 347–369; mais particularmente, o exemplo frankliniano é fornecido nas pp. 354-355; na p. 359, Kuhn afirma que a consideração das perspetivas relativistas de Leibniz e outros teria atrasado a revolução científica do séc. XX. Com que fundamento tira tal conclusão, é difícil perceber. 175 Convém ler a explicitação anterior de Meli: Meli, EP, 202-3. Porém, a passagem referida é a seguinte: "it appears clear to me, that, it is by a diligent cultivation of the Modern Analysis, that Foreign Mathematicians have, of late, been able to push their Researches farther, in many particulars, than Sir Isaac Newton and his Followers here, have done." 176 Lakatos, MS, 219: "It should be here mentioned that Newton's authority strangled the development of Newtonian philosophy in Britain. Open problems were freely and aggressively discussed in France, where there was a rival research programme, but not in Britain, where there was none". 177 Burtt, MF, 305-6. 178 O passo citado por Cohen é bem esclarecedor: Cohen, PM, 54. Ver VI. 9, nota 517. 179 Nos próprios panegíricos, pode-se concluir muito acerca daquilo que é elogiado visto não ser por acaso que tal aspeto é elogiado em vez de um outro, por exemplo, a paz em vez da guerra, o intercâmbio internacional em vez do simples serviço à nação, o debate e as conjeturas em vez das demonstrações definitivas. Quando Sprat se refere às razões que levaram à escolha do objeto dos debates de Oxford que antecederam a criação da Royal Society, mostra bem a consciência que tinha dos danos causados pelo dogmatismo na história inglesa: Tho. Sprat, The History of the Royal-Society of London for the Improving

342

sessões, onde Boyle e Hooke tiveram um papel de destaque, quer como o maior centro de intercâmbio intelectual internacional, amplificando, institucionalmente, um papel análogo ao que Mersenne havia tido anteriormente, sendo o seu grande dinamizador Oldenburg.180 Essa necessidade de discussão livre das guerras políticas e religiosas que devastaram a Europa já se sentia bem antes, como bem o expressa um dos fundadores da Royal Society muito antes dessa fundação.181 O objetivo central da Sociedade era a busca baconiana das causas escondidas, 182 correspondendo-se, inteiramente, ao ideal of Natural Knowledge, 2nd. ed., London, Rob. Scot, Ri. Chiswell, Tho. Chapman, and Geo. Sawbridge, 1702 [HR], p. 56: "It was Nature alone, which could pleasantly entertain them, in that estate. The contemplation of that, draws our minds off from past, or present misfortunes, and makes them conquerers over things, in the greatest publick unhappiness: while the consideration of Men, and humane affairs, may affect us, with a thousand various disquiets; that never separates us into mortal Factions; that gives us room to differ, without animosity; and permits us, to raise contrary imaginations upon it, without any danger of a Civi'l War." Sem se ter chegado a uma guerra civil, as disputas deste tempo e, inclusive, as analisadas neste trabalho, mostram que Sprat não tinha razão, mas há que reconhecer que, numa grande parte dos casos e, porventura, nos mais intensos, a dissensão é agravada pela associação dos debates a temas com implicações religiosas ou por terem, por trás, motivações religiosas. Logo em seguida, referindo-se em conjunto ao grupo de Oxford, à Academia Francesa e à Royal Society (visto considerar que aquela estaria a imitar esta), acrescenta, ibidem: "Their [da Academia de Paris] manner likewise, is to assemble in a private house, to reason freely upon the works of Nature; to pass Conjectures, and propose Problems, on any Mathematical, or Philosophical Matter, which comes in their way." Na sua declaração relativa ao desígnio da Royal Society, o conteúdo fundamental é o da oposição a qualquer modelo dogmático, da restrição ao estudo e ao domínio da Natureza, sem se submeter a qualquer interesse privado, como decorria, naturalmente, da inspiração baconiana: ibidem, 61-62: "Their purpose is, in short, to make faithful Records, of all the Works of Nature, or Art, which can come within their reach: that so the present Age, and posterity, may be able to put a mark on the Errors, which have been strengthned by long prescription: to restore the Truths, that have lain neglected: to push on those, which are already known, to more various uses: and to make the way more passable, to what remains unreveal'd. This is the compass of their Design. And to accomplish this, they have indeavor'd, to separate the knowledge of Nature, from the colours of Rhetorick, the devices of Fancy, or the delightſul deceit of Fables. They have labor'd to inlarge it, from being confin'd to the custody of a few; or from servitude to private interests. They have striven to preserve it from being over-press'd by a confus'd heap of vain, and useless particulars; or from being straitned and bounded too much up by General Doctrines. They have try'd, to put it into a condition of perpetual increasing; by settling an inviolable correspondence between the hand, and the brain. They have studi'd, to make it, not onely an Enterprise of one season, or of some lucky opportunity; but a business of time; a steddy, a lasting, a popular, an uninterrupted Work. They have attempted, to free it from the Artifice, and Humors, and Passions of Sects; to render it an Instrument, whereby Mankind may obtain a Dominion over Things, and not onely over one anothers Judgments." 180 Marie Boas Hall, "The Royal Society's Role in the Diffusion of Information in the Seventeenth Century (1)" in Notes and Records of the Royal Society of London, The Royal Society, 19753, Vol. 29, Nº. 2, pp. 173-192. Veja-se a abordagem mais geral de Eamon, SN, 333-40. 181 Rossi, SM, 26: "Nell'epoca delle guerre di religione che hanno sconvolto l'Europa gli uomini che compongono i primi gruppi di coloro che si autodefinivano «filosofi naturali» costruirono, all'interno della più grande società nella quale vivevano, delle più piccole e più tolleranti società. «Quando abitavo a Londra — scrive John Wallis nel 1645 — ebbi occasione di far conoscenza di varie persone che si occupavano di ciò che viene ora chiamato filosofia nuova o sperimentale. Dai nostri discorsi avevamo escluso la teologia, il nostro interesse si volvega alla fisica, all'anatomia, alla geometria, alla statica, al magnetismo, alla chimica, alla meccanica, agli esperimenti naturali». Coloro che si associano nelle prime Accademie intendono proteggersi sopratutto da due cose: la politica e l'invadenza delle teologie e delle Chiese." 182 Eamon, SN, 298-9: "even if the causes of such phenomena remained elusive, it was nevertheless possible to establish natural effects experimentally. In spite of its skepticism, the experimental philosophy could establish "matters of fact." The new philosophers did not considerer such experimental "matters of fact" as ends in themselves, but, provided the proper method were followed, as the "traces" of nature that would lead to hidden causes. These considerations may give us a better understanding of the "Baconian" research programs of the Royal Society and other seventeenth-century scientific organizations. It is misleading to regard the Royal Society's activities as involving merely random experimentation and indiscriminate collection of "curious" facts. Many of the apparently random experiments performed by

343

não só de Boyle,183 mas também desse outro grande naturalista, apesar de não britânico, que foi Huygens.184 Assim, o debate conjetural no sentido de explicar os fenómenos sistematicamente registados, tentando descobrir as suas causas ou avançar hipóteses a elas relativas, independentemente de qualquer partido, interesse ou sistema, constituía a marca genética da Sociedade. O simples exame dos títulos dos discursos lidos perante a Assembleia ou das teorias apresentadas na Sociedade evidenciaria o seu caráter hipotético, muito embora num sentido experimental e não meramente especulativo, 185 opondo-se mesmo a Royal Society a essa especulação e, por aí, antecipando uma das características da filosofia newtoniana. Ora, apesar do apoio recebido pela Royal Society, incluindo a chancela oficial do Principia (embora não o apoio financeiro), Newton nunca mostrou especial interesse pelos seus debates, chegou a deplorá-los quando lhe diziam respeito, ameaçou deixá-la e muito pouco a frequentou, antes de se ter tornado presidente da mesma. Deve-se dizer que os anos 80 e, sobretudo, 90 foram anos de profunda decadência da Royal Society, pelo que a presidência de Newton até lhe the virtuosi were actually directed at the investigation of occult qualities — in Baconian jargon, the "hidden causes of things." The premise of the society's research program was that passive observation was incapable of seeing beyond the surface of things. Only by experiments and disciplined observation was it possible to arrive at a knowledge of causes. When the new philosophers attacked occult qualities, they were attacking the scholastic doctrine of occult qualities, which they regarded as a refuge for ignorance that ended investigation: it was the ne plus ultra of Scholasticism. For the Baconians, however, occult qualities were the beginning point of experimental research." Aí, aliás, se deve enquadrar o seu interesse (e o de Newton) pela alquimia. 183 Tudo o que se disse já aqui sobre Boyle mostra a sua identidade total com o projeto da Royal Society, mas há ainda um aspeto que não foi referido e que aumenta a evidência dessa identidade: o facto de não pertencer a nenhum partido: Boas, EM, 460-1: "Boyle was neither a follower of any atomic sect nor a Cartesian. He was thoroughly familiar with all theories of matter, both ancient and modern, and mentioned by name most of the writers on the subject; he was careful to keep himself informed of the latest developments in Cartesian ans Epicurean physics; but his "corpuscles" were neither the atoms of Gassendi nor the particles of Descartes. Though he owed much to these, as to other predecessors, Boyle's "corpuscular philosophy" was an independent development, along lines suggested by Bacon." É também evidente que não teve qualquer pretensão a criar um partido, pelo menos no âmbito da filosofia natural. Talvez se deva dizer algo diferente na religião, onde se integrava no latitudinarismo. 184 Para Huygens, a essência da física era a investigação de teorias verosímeis: Rossi, SM, 181: "le vie che conducono alla conoscenza di cose tanto lontane [estava em causa a existência de habitantes noutros mundos no seu Cosmotheoros] non soro sbarrate e v'è materia per una serie di congetture verosimili. A esse non devono essere posti ostacoli per due ragioni: in primo luogo perché se avessimo accettato l'imposizione di limiti alla curiosità umana, non conosceremmo né la forma della Terra né l'esistenza del continente americano; in secondo luogo perché la ricerca di teorie verosimili costituisce l'essenza stessa della fisica." 185 Sprat, HR, 254-6. Grande parte dos títulos inclui a palavra "hipótese", às quais ainda se poderia acrescentar outros onde se utiliza variantes da palavra "possibilidade". Alguns que não têm tais palavras têm, contudo, um teor compatível, como, por exemplo, um "Tratado sobre a vaidade de dogmatizar". Sprat fica tão preocupado com a lista que não resiste a sublinhar que não se trata de hipóteses meramente especulativas, aquilo a que chama Filosofia Teórica, tendo sim fins operativos: ibidem, 257: "In this Collection of their Discourses, and Treatises, my Reader beholding so many to pass under the name of Hypotheses, may perhaps imagine that this consists not so well with their Method, and with the main purpose of their Studies, which I have often repeated to be chiefly bent upon the Operative, rather than the Theoretical Philosophy. But l hope he will be satisfied, if he shall remember, that I have already remov'd this doubt, by affirming that whatever Principles, and Speculations they now raise from things, they do not rely upon them as the absolute end, but only use them as a means of farther Knowledge. This way the most speculative Notions, and Theorems that can be drawn from matter, may conduce to much profit. The light of Science, and Doctrines of causes, may serve exceeding well to promote our Experimenting; but they would rather obscure, than illuminate the mind, if we should only make them the perpetual Objects of our Contemplation: as we see the light of the Sun, is most beneficial to direct our footsteps in walking, and our hands in working, which would certainly make us blind, if we should only continue fix'd, and gazing on its Beams."

344

deu novo folgo, mesmo no que se refere à experimentação ou à realização de sessões. Porém, tornou-a em algo bastante diferente do projeto original, sobretudo a partir de 1710, quando afasta a oposição declarada, 186 e ainda mais a partir de 1713, quando afasta o seu anterior aliado, Hans Sloane.187 É verdade que também a Sociedade original era dominada pelos latitudinários e que estes tinham um programa próprio que passava por utilizar a ciência como reveladora do desígnio divino, criando uma religião unânime para todas as crenças que predispusesse à aceitação do seu programa compreensivo de moderação e promoção da religião natural,188 em detrimento da rigidez dogmática, do formalismo ritual e do frenesim entusiástico.189 Este era, porém, um programa aberto que permitia, desde que se não defendessem teorias deterministas, 190 uma enorme liberdade de investigação e promovia os valores da racionalidade, muito embora com um forte cariz empírico, talvez, tal como Newton, por se considerar a experiência a revelação natural e, como tal, o correlato da fé escritural. Perante o triunfo newtoniano, houve inegavelmente uma aliança generalizada entre os latitudinários, cada vez mais dominantes da Igreja Anglicana, e o partido newtoniano que, gradualmente, mas com grande rapidez, se constituía. Porém, Force parece ter razão ao sublinhar que, enquanto os latitudinários queriam, antes de mais, a paz social, promovendo, o mais possível, a diluição das diferenças ideológicas, os newtonianos só aderiam a esse programa porque a sua tolerância lhes convinha, tendo convicções, apesar de igualmente opostas ao entusiasmo e à rigidez ritual e, naturalmente, favoráveis à filosofia natural, menos latitudinárias do ponto de vista doutrinal, certamente, se conhecidas, mais heréticas ou de ortodoxia duvidosa, talvez mais fideístas191 que o latitudinarismo (embora existam demasiados matizes a este respeito no próprio latitudinarismo192), mais vocacionadas para a cruz do que para a paz. 193 Além disso, à medida que o newtonianismo se 186

Westfall, NR, 673-5. Westfall, NR, 679-80. Mesmo o outro secretário foi substituído por um newtoniano, Brook Taylor, a quem se viu Montmort ter respondido a propósito da querela da prioridade, no início de 1715. 188 Sprat, HR, 82: "This is a Religion, which is confirm'd, by the unanimous agreement of all sorts of Worships: and may serve in respect to Christianity, as Solomon's Porch to the Temple; into the one the Heathens themselves did also enter; but into the other, onely God's peculiar People." 189 Jacob, ER, ch. 1. 190 Os dois inimigos ideológicos, por excelência, deste latitudinarismo eram a predestinação calvinista e o determinismo hobbista. Cf. Jacob, ER, 51-7. 191 Podendo ser um resultado das más-línguas, não deixa de impressionar a história que se conta acerca da sua derrota eleitoral de 1705, onde os insultos de fanatismo pareciam associar Newton ao puritanismo: cf. Force, EC, 119-20. "Simon Patrick, whose brief tract in 1662 helped to characterize the defining characteristics of the latitudinarian movement, remarked about how "shameful" it was to see such a "worthy gentleman" as Newton mocked by Cambridge University students as a "Fanatic" and an "Occasional Conformer" when, in 1705 and at the urging of his political patron, Lord Halifax, Newton stood as a candidate for Parliament from Cambridge. Patrick, the Bishop of Ely, describes Newton's difficulties: "at the election at Cambridge it was shameful to see a hundred or more young students, encouraged in hollowing like schoolboys and porters, and crying No Fanatic, No Occasional Conformity, against two worthy gentlemen that stood candidates. The mudslinging charges of fanaticism and occasional conformity apparently stuck and,in a field of four, Newton ran last. He never again stood for public election." Naturalmente, poderia haver algum conhecimento informal das suas teses mais heréticas, mas tal parece improvável visto tudo se ter passado antes dos casos de Whiston e Clarke, assim como do Escólio Geral dos Principia e da reação que provocou em algum vigilante mais inflamado. 192 Esta é uma questão complexa porque, para lá de haver matizes na defesa da predominância entre razão e fé, havia, como foi visto em VI. 9 com Clarke, muitas defesas da racionalidade da revelação que mais não eram que máscaras de fideísmo, sustentando como racionais conteúdos que só poderiam ser meros objetos de fé. É importante sublinhar que qualquer fideísmo que aqui exista está longe de ser a posição fideísta mais radical da época, visto quer os entusiastas, quer os defensores da high church, serem claramente mais radicais a este propósito. 193 Force, EC, 121-2 e nota 21 onde se compara a diferença ideológica entre Newton e os latitudinários à 187

345

afirmava, o latitudinarismo ganhava poder e transformava-se, perdendo parte da sua identidade tolerante. 194 Porventura, também isso criou condições para um projeto científico bem diferente. De qualquer forma, a Royal Society tornou-se o braço institucional do newtonianismo, cada vez mais preenchida exclusivamente por newtonianos, pronta para esmagar adversários e incomodidades, como Flamsteed ou Leibniz. Westfall considera, pelo contrário, que o que era surpreendente era que ainda houvesse oposição.195 Terá certamente razão face ao domínio newtoniano, mas não face ao projeto original da Royal Society. As experimentações passaram a servir, predominantemente, os programas newtonianos de investigação196 e o projeto de uma Royal Society universal e não nacionalista 197 desaparece, de facto, na presidência de Newton, por muitos (eventualmente até mais) membros estrangeiros que tivesse. A semelhança deixada na persistência da mesma designação fornecia a aparência de imparcialidade e abertura que Newton, por exemplo, usou para esmagar Leibniz, através de um suposto comité internacional numeroso, imparcial e competente que, na verdade, era composto, com exceção de um diplomata prussiano, exclusivamente por newtonianos, três dos quais apenas nomeados uma semana antes da enunciação das conclusões, o que pouco as alteraria, visto não terem feito mais que sancionar a investigação newtoniana. Newton, a coberto do anonimato, clamava indignado contra o facto de Leibniz ser testemunha em causa própria porque só admitia, embora exclusivamente no seu caso, que se fosse juiz em causa própria.198 Aliás, a Royal Society não foi a única organização pública utilizada para a promoção do pensamento newtoniano. Boa parte das famosas Conferências de Boyle

diferença entre Lutero e Erasmo. Tal como foi visto em VI. 9, havia uma forte ligação do newtonianismo com o puritanismo: ibidem, 128: "In this view, Newton had more in common with the radical Puritans (who shared his Biblically based vision concerning God's dominion and power and his consequent emphasis on the precariousness and contingency of God's creation) rather than with the latitudinarians of the Revolutionary settlement, who did in fact, as Jacob rightly points out, base their model of social stability upon the stability of the ordinary concourse of nature as emphasized in the latitudinarian version of the design argument." 194 Force, EC, 127: "Latitudinarianism might have started out as an intellectual movement devoted to a gentle pursuit of the moderate middle ground in politics and religion, but it did not maintain this character once its adherents were established in power." 195 Westfall, NR, 684. 196 E. g., Westfall, NR, 633-4. 197 Sprat, HR, 63: "they have freely admitted Men of different Religions, Countries, and Professions of Life. This they were oblig'd to do, or else they would come far short of the largeness of their own Declarations. For they openly profess, not to lay the Foundation of an English, Scotch, Popish, or Protestant Philosophy; but a Philosophy of Mankind." 198 Westfall, NR, 724-5. Cf. Isaac Newton, "Account..., PW, 284: "no Man is a Witness in his own Cause. A Judge would be very unjust, and act contrary to the Laws of all Nations, who should admit any Man to be a Witness in his own Cause." Repare-se que se trata de Newton a escrever sobre um documento que ele próprio escreveu (sob anonimato em ambos os casos, mas essa foi prática de ambos os lados), onde é clara a intenção de julgar e condenar Leibniz. De facto, num texto destinado ao Journal Literaire de la Haye, onde tinham sido publicados os artigos contraditórios de Leibniz sob anonimato, muito embora não se saiba se chegou a ser enviado, nesta ou noutra de várias versões, Newton acusa Leibniz de pretender ser testemunha e juiz em proveito próprio: Newton, CN, VI, 81: "For he has wrote to the Society that it would be injustice to question his candour, that is, to deny him to be both witness & judge in his own cause." Numa outra versão, referindo-se explicitamente a uma passagem da Charta Volans de Leibniz (ibidem, 15-7), Newton afirma o mesmo com um desenvolvimento um pouco maior, ibidem, 94: "But since Mr Leibnitz began these disputes, & detracts from the candor of those who oppose him & in opposition to them represents it unjust to question his candour, making himself a witness in his own cause contrary to the laws of all nations, & appeals from the Report of a large Comittee of the R. Society, to the judgement of a nameless Mathematician chosen by himself, wch is the same thing as to make himself a Judge as well as a witness in his own cause".

346

foram, de facto, transformadas, desde o seu início, 199 em Conferências newtonianas, muito embora subordinadas ao mesmo objetivo latitudinário de prova da religião cristã contra ateus, deístas, 200 pagãos, judeus e maometanos, sem descer a pormenores de controvérsias entre cristãos,201 o que acabou por garantir que a maioria das conferências procurasse provar a existência da providência divina na natureza e a racionalidade da Escritura. Porém, mesmo o objetivo de mostrar o desígnio divino na natureza não implicava necessariamente o predomínio garantido pela filosofia natural newtoniana. Newton terá, provavelmente, participado na escolha do primeiro conferencista e terá pressionado para que a base orgânica do argumento do desígnio, com recurso, por exemplo, à obra de John Ray publicada nesse ano, fosse preterida em favor da base astronómica fornecida pelos seus próprios Principia.202 Na verdade, as conferências de Boyle tornar-se-ão num poderoso instrumento de divulgação da filosofia natural newtoniana, assim como do seu significado teológico, tornando-a acessível a um vasto público inglês e não restringida a um conjunto muito exíguo de especialistas capazes de acompanhar as suas demonstrações matemáticas. Richard Bentley, John Harris, Samuel Clarke, William Whiston, William Derham203 ou John Clarke, eram todos reconhecidos naturalistas newtonianos, sendo os restantes conferencistas, em vida de Newton, latitudinários que, ainda assim, não dispensavam, por vezes, o recurso à nova visão newtoniana do mundo natural, na medida em que ilustrava a Providência divina. No que concerne mais estreitamente à temática central desta dissertação, Shapin mostra bem como a toda a primeira geração (Bentley, Cotes, Maxwell, Clarke) do partido newtoniano faz depender toda a natureza do domínio constante e da vontade livre de Deus, 204 muito embora possam seguir, de forma genérica, a tendência geral antes afirmada pelos platónicos de Cambridge e por Boyle, ou seja, a primeira geração latitudinária. 205 Tal ligação tem sempre sido tratada como acidental, a cedência de 199

Westfall, NR, 498: "On 30 December 1691, the day before Newton left for London, Robert Boyle died. Newton apparently attended his funeral. We know that two days later, at Samuel Pepys's invitation and at his home, Newton joined with John Evelyn and Thomas Gale, the master of St. Paul's School, who had preceded Newton in his chambers in Trinity, "in thinking of a man in England fitt to bee sett up after him [Boyle] for our Peireskius . . ." Newton may have participated that evening in the selection of Richard Bentley to deliver the inaugural series of Boyle Lectures." 200 Evelyn terá, provavelmente, interpretado corretamente a referência de Boyle a theists por ser uma versão arcaica alternativa de deists e não por não julgar necessário atacar os ditos teístas, como afirmou Jacob, ER, 159. 201 Robert Boyle, Testamento de Julho de 1691, ER, 144: "for proving the Christian Religion, against notorious Infidels, viz. Atheists, Theists, Pagans, Jews, and Mahometans, not descending lower to any controversies, that are among Christians themselves". 202 É bem ilustrativo o memorando de Gregory de 28 de Dezembro de 1691 [a data é referente certamente a parte dos apontamentos, muito variados, que compunham o memorando, mas estará, aparentemente, incorreta quanto a Newton; Turnbull considera que poderá se referir ao Janeiro subsequente], não só em relação às conferências e à concorrência com o argumento orgânico, mas também à sua inspiração astro-teológica: Newton, CN, III, 191: "In Mr. Newton's opinion a good design of a public speech (and which may serve well at ane Act) may be to shew that the most simple laws of nature are observed in the structure of a great part of the Universe, that the philosophy ought ther to begin; and that Cosmical Qualities are as much easier as they are more Universall than particular ones, and the general contrivance simpler than that of Animals plants &c". Veja-se a interpretação de Jacob, ER, 154. 203 As desavenças de John Harris e William Derham (e outros) com Hans Sloane (secretário da Royal Society) poderão ter feito que ocorresse um afastamento do primeiro de Newton (cf. Westfall, NR, 690-5), assim como uma queda em desgraça junto do círculo latitudinário (Jacob, ER, 179), mas já posteriormente à conferência de Boyle. Derham parece ter continuado a manter as boas relações com Newton. Nenhum deles, porém, parece ter mudado de convicções por causa das desavenças referidas. 204 Steven Shapin, "Of Gods and Kings: Natural Philosophy and Politics in the Leibniz-Clarke Disputes" in Isis, The University of Chicago Press, 19816, Vol. 72, Nº. 2, p. 193. 205 ibidem, p. 192.

347

verdadeiros homens de ciência a uma época ainda dominada pela obscuridade das confissões de fé, em que a esmagadora maioria das posições universitárias exigiam a dignidade eclesiástica. Não se repara que em lado algum da Europa se assistia a uma tão grande concentração de teólogos cientistas,206 incluindo teólogos não eclesiásticos como Newton, o que, de facto, era mais raro. Novamente iludida pela reserva de Newton, neste caso devido ao caráter heterodoxo das suas teses, a posteridade negligenciou a importância da religião na filosofia natural de Newton. Mas o objetivo de Newton (e dos newtonianos) era tornar a própria ciência sagrada, como uma verdadeira teologia natural.207 Eram, aliás, intermutáveis: a verdadeira religião da Antiguidade reproduzia, igualmente, a filosofia newtoniana da natureza. 208 Os dogmatismos newtonianos são, por isso, na sua raiz, dogmatismos religiosos. Newton não herdou, simplesmente, a sua epistemologia de uma era dominada pela teologia, como afirma, com razão, Lakatos,209 a sua epistemologia é dominada pela teologia e a metodologia desenvolvida na ciência tem o seu reflexo na teologia escritural. 210 E é essa identidade teológica, quase messiânica, fortalecida pelos laços heréticos do círculo mais estreito, alargando a sua influência através de um latitudinarismo respeitável, aparentemente idêntico ao dos bispos e bem visto pela Corte, 211 que dá consistência ao partido newtoniano, transformando-o numa entidade temível, exatamente ao mesmo tempo que estiola e regride em termos de inovação científica. Leibniz não deixa de verificar esta entrega às preocupações religiosas e também políticas em detrimento das científicas como sinal da degenerescência da vida intelectual inglesa.212 Considerava, aliás, o reinado de Carlos II o "Século de Ouro" das Ciências inglesas. 213 Respondendo à afirmação de Conti que as Artes e as Ciências floresciam na Inglaterra como nunca, bem compreensível num homem de corte que não é conhecido por nenhuma originalidade intelectual e que deveria apreciar os espetáculos experimentais realizados na própria corte, assim como os rituais encomiásticos da Royal Society, Leibniz lastimava o desaparecimento de figuras como Boyle e Hooke, e 206

Frank E. Manuel, op. cit, p. 33: "Frenchmen like Father Marin Mersenne are Continental counterparts, but nowhere is there anything resembling the English concentration of impressive scientist-theologians." A este propósito, também Margaret C. Jacob, op. cit., pp. 184-185, se questiona: "why so many churchmen in the late seventeenth and early eighteen centuries turned to scientific study"? 207 Frank E. Manuel, op. cit, pp. 48-49. 208 Newton, Yahuda MS 17.3, ft. 8-11 in Richard S. Westfall, op. cit, p. 354: "Now the rationale of this institution [a religião de Noé e as que dela derivaram] was that the God of Nature should be worshiped in a temple which imitates nature, in a temple which is, as it were, a reflection of God. Everyone agrees that a Sanctum with a fire in the middle was an emblem of the system of the world". Outros fragmentos transmitem a mesma ideia que explica, aliás, a importância dada à determinação da configuração e das dimensões do templo de Salomão. 209 Imre Lakatos, op. cit., p. 220. 210 É verdade que a inflexão para a filosofia experimental da primeira Royal Society já poderia ter idênticos objetivos teológicos, passando por uma rejeição do caráter exclusivamente mecânico do mundo físico cartesiano e por uma religião mais escritural e, como tal, mais afastada das interpretações metafísicas. Porém, a pluralidade permitida e a orientação conjectural tornavam ainda difícil a sua captura por qualquer dogmatismo religioso. Sob a égide das conferências da Boyle e do domínio newtoniana da Royal Society, tudo muda muito consideravelmente, mesmo que fosse apenas por muitos latitudinários terem concluído ter encontrado a verdade divina natural na física newtoniana. 211 Steven Shapin, op. cit, pp. 187-215. 212 Leibniz, Carta para Montmort de 17 de Janeiro de 1716, RD, II, 197: "Les Anglois sont profonds, mais ils se sont un peu gâtez depuis quelque tems, en s'appliquant trop aux Controverses Politiques & Théologiques."; Leibniz, Apostilha de uma carta ao Abbé Conti de 9 de Abril de 1716, RD, II, 76-7: "des gens mieux informez que moi, m'ont avoué que depuis quelque tems on s'étoit trop attaché à i ghiribizzi della Politica, & aux Controverses de Religion." 213 ibidem, 76: "Je crois vous avoir dit, Monsieur, que le Régne de Charles II (au moins dans sa premiére moitié) me paroissoit le Siècle d'Or des Sciences en Angleterre."

348

considerava que após o desaparecimento de Wren, Newton, Flamsteed e Halley, ninguém os poderia substituir porque só restavam os aderentes de Newton que não passavam de uns copistas, ou seja, que não tinham qualquer originalidade.214 De forma similar à que já havia usado para os cartesianos, surpreende-se que os sectários não produzam nada que mostre o bom método do seu mestre.215 Por muito ressentido que estivesse, a verdade é que Leibniz parecia ter razão. Existia muito pouca investigação original na Royal Society desta época e muita estava subordinada aos desígnios newtonianos, numa primeira formatação da sua ciência normal, apesar do próprio Newton se centrar nas questões administrativas.216 A imagem de decadência dada por Uffenbach em 1710,217 tenderia a agravar-se muito no final da vida de Newton.218 O que se julga adequado para uma adulação é também revelador do ambiente que se vive numa sociedade ou numa instituição: Chamberlayne julga apropriado dizer que, se dependesse do seu voto, Newton seria eleito Ditador Perpétuo da Sociedade. 219 Em menos de um ano, talvez ressentido pela utilização pouco respeitadora, da sua intermediação com Leibniz por parte de Newton e da Sociedade, recusa-se a encontrar com Newton durante o encontro regular da Royal Society por não gostar de ser reduzido, em lado algum, a uma cifra.220 Esta imagem de uma Sociedade reduzida a ser um grupo em que cada qual apenas fazia número para apoiar o líder indiscutido não é compatível com o seu ideal original. De resto, toda a já referida multiplicação de astro-teologias, assim como as obras apologéticas, também pertenciam ao conjunto das muito elaboradas formas de lisonja que satisfaziam no final da vida a necessidade de adoração de Newton. Na verdade, esta necessidade era sentida desde a juventude e Halley bem a percebeu, tendo conseguido, através de diplomacia e adulação, retirar Newton da sua tradicional reserva e publicar os Principia que, logo na primeira edição, são antecedidos de uma ode idolátrica,221 na 214

ibidem, 77: Je voudrois voir revivre un Prince Robert, dans les Mécaniques : un Mr. Boyle, dans la Chymie : un Mr. Hook, dans les Observations du Microscope : un Mr. Sydenham, ou um Mr. Lister, dans celles de la Médecine ; un Mr. Ray, dans la Botanique, & ainsi des autres. Et quand Mr. Wren, Mr. Newton, Mr. Flamsteed, Mr. Halley, Mr. Sloane, Mr. Woodward, & Mr. Wotton, ne seront plus, je ne sai si les gens qui paroissent à present les pourront remplacer. Il semble que presque tous les Adhérens de Mr. Newton ne sont à present que Copistes". Juntando um pouco as referências anteriores, Leibniz, Carta de Leibniz para Conti de 6 de dezembro de 1715, RD, II, 8-9: "C'est dommage que Mr. le Chevalier Wren, de qui Mr. Newton & beaucoup d'autres ont appris, quand il étoit jeune, n'a pas continué de régaler le Public. Je crois qu'il est encore en vie. Il seroit bon de faire connoissance avec lui. Dans le tems qu'il étoit jeune, on se seroit moqué en Angleterrre de la nouvelle Philosophie de certains Anglois. Lui & Mr. Flamsteed avec Mr. Newton, sont presque le seul reste, du Siècle d'Or d'Angleterre par rapport aux Sciences. Mr. Whiston étoit en bon train; mais un certain zèle étrange l'a jetté d'un autre côté. Je plains le Public de cette perte. Depuis quelque tems on s'y est trop jetté dans les Ghiribizzi Politici, ou dans les Controverses Ecclésiastiques." É curioso Leibniz se referir ao arianismo de Whiston como "zelo estranho", implicitamente afirmando, assim, que teria feito melhor se se tivesse mantido dedicado à matemática e à filosofia natural. 215 ibidem, 8: "Au reste, je m'étonne que les Sectateurs de Mr. Newton ne donnent rien qui marque que leur Maître leur a communiqué une bonne Méthode. J'ai été plus heureux en Disciples." Raro reconhecimento da existência de um partido leibniziano. Porventura, estará a pensar, talvez entre outros, nos Bernoulli, Wolff, Hermann, etc. 216 Westfall, NR, 630-1. 217 Westfall, NR, 635. 218 Westfall, NR, 863-4. 219 Chamberlayne, Carta para Newton de 25 de Novembro de 1713, CN, VI, 43: "whom I would make Perpetual Dictator of the Society, if that depend only on the vote of..." 220 Chamberlayne, Carta para Newton de 28 de Outubro de 1714, CN, VI, 185: "I must frankly own to you, that I don't love to make a Cypher anywhere, being grown a little too Bulky, not to Great for that". 221 Redigida por Edmund Halley, PN, páginas não numeradas: veja-se sobretudo a estrofe final, onde Newton é elevado ao nível dos deuses ou, pelo menos, mais próximo do que será possível a qualquer

349

qual não se viu, posteriormente, nenhum problema, pois se via a ode como natural no quadro de uma adoração cada vez mais generalizada, mas que deveria surpreender o historiador face ao facto de se tratar do primeiro livro publicado do autor, numa edição com pequena tiragem, relativamente a uma teoria e um escritor que estavam longe de estar consagrados nessa altura. Tratou-se do início de um processo desejado por Newton, mas que terá ido para lá desse desejo, visto que, tal como as controvérsias religiosas se resolveram num latitudinarismo (pelo menos até 1760) em que pouco era discutido, parecendo seguir a irónica obra de Hare já referida, 222 assim o próprio Newton se tornou cada vez mais desconhecido dos seus seguidores, muitos deles contrários ao próprio Newton, sobretudo, mas não só, em termos religiosos. Algo similar ao que, segundo Nietzsche, se passou na cultura europeia com o cristianismo, cujos ideais igualitários se realizaram de forma ateia, até porque a pequenez do europeu moderno já não era capaz de Deus, na democracia e no socialismo,223 se passou com o dogmatismo científico que reteve o dogmatismo religioso, dispensando, porém, Deus. Como declarava Koyré, com uma certa graça, "A Inglaterra que quase divinizou Newton, tratou-o como tem o hábito de tratar as coisas sagradas, quer dizer, tocando-lhe o menos possível."224 O popular filósofo francês Voltaire provava a consagração desse dogmatismo ao pretender dizer o contrário, ao sustentar que só os erros tinham seitas, como os leibnizianos e os cartesianos, e que ninguém denominava newtoniano quem defendia o cálculo infinitesimal, a composição da luz ou a teoria da gravitação. 225 Supondo que era verdadeira a afirmação (e, nessa altura, ainda não o deveria ser), o mesmo se poderia dizer no séc. XV ou XVI, na Península Ibérica, em relação aos judeus ou muçulmanos que seriam o erro, em contraposição aos católicos, a pura verdade – e o mesmo poderia ser dito de todas as tradições dogmáticas quando o seu domínio se torna absoluto.226 Mas Voltaire, simultaneamente, consagrava os desejos do próprio Newton e apontava o futuro próximo da ciência: as teorias newtonianas tinham-se tornado inquestionáveis. A conceção de que a ciência só se pode especializar experimentalmente sob um dogmatismo análogo ao da ciência newtoniana é construída após o facto instituído e não pode garantir que teria que ser assim ou que só assim se poderiam ter alcançado os resultados atingidos (pelo menos, tão cedo) ou, ainda, que não se poderia ter ido mais longe de outra forma ou ter ocorrido uma evolução simplesmente diversa mas, igualmente, relevante. Essa conceção é tributária de uma imaginação empiricamente limitada que tende a pensar que as coisas têm de ser ou até que devem ser como se verificou empiricamente que aqui e agora são (ou foram) – e existem inúmeros exemplos históricos de como tais raciocínios erraram redondamente, ao pretender negar possibilidades futuras. É verdade que uma tradição dogmática fornece uma base de trabalho que propicia o trabalho de maior minúcia e precisão, e isso nem sequer se outro mortal: "Nec fas est propius Mortali attingere Divos.". Cf. Newton, Philosophiæ naturalis..., OO, II, vii-viii. 222 Francis Hare, atr., op. cit.. 223 E. g., Friedrich Nietzsche, Jenseits von Gut und Böse; trad. port. Hermann Pflüger, Para Além do Bem e do Mal, Lisboa, Guimarâes Ed., 19829, Cap. 5, § 202, p. 110. 224 Koyré, EN, "L'hypothèse...", 53: "L'Angleterre qui, à peu de chose près, a divinisé Newton, l'a traité un peu comme on a l'habitude de traiter les choses sacrées, c'est-à-dire en y touchant le moins possible." 225 Koyré, EN, "Newton et Descartes", 92. 226 Aliás, a total vitória de uma tradição dogmática ocorre quando já nem se tem consciência da possibilidade de uma alternativa: Dolnick, CU, ch. 7, 38: "“People rarely thought of themselves as ‘having’ or ‘belonging to’ a religion,” notes the cultural historian Jacques Barzun, “just as today nobody has ‘a physics’; there is only one and it is automatically taken to be the transcript of reality.”"; ibidem, ch. 10, 62: "the triumph of the scientific worldview has been so complete that we’ve lost more than the losing side’s version of history. We’ve lost the idea that a view different from ours is even possible."

350

restringe à ciência empírica. Um bom exemplo é o período de afirmação da Escolástica cristã aristotélica, desde o final do séc. XII, mas, sobretudo, ao longo de todo o séc. XIII e início do séc. XIV. Com o objetivo geral da Escolástica de compatibilizar a fé com a razão que era, neste caso, personificada por Aristóteles, os teólogos e filósofos escolásticos necessitaram de desenvolver classificações e distinções conceptuais que muito contribuíram para o aumento de rigor do vocabulário filosófico. Os pequenos puzzles a que se dedicavam, deixando o fundamental do quadro dogmático intocado e reagindo ferozmente a quem fosse suspeito de o pôr em causa, correspondiam exatamente à caracterização da ciência normal, mesmo se não existisse um paradigma físico envolvido.227 De facto, o fundamental desse trabalho nada tinha de empírico (com as exceções de Grosseteste e Bacon) e só na escolástica tardia, já em crise após Occam, em meados do séc. XIV, se desenvolve um paradigma de estrita ciência empírica, a física do impetus. 228 Com isto, pretende-se afirmar que o que caracteriza a ciência dogmática não é diferente do que caracteriza qualquer tradição dogmática, sobretudo as que se desenvolvem em ambientes académicos, criando sempre a ilusão de grande progressão em termos de minúcia e rigor, quando, num balanço mais distanciado, se verifica que se trataram de tradições que acabaram por impedir mais do que permitiram, visto não admitirem a mínima interrogação no que consideravam verdades definitivas. Que impressão de rigor, de complexidade e de minúcia deveria causar a multiplicação cada vez maior de epiciclos e de equantos na astronomia ptolemaica? Quão esotéricos e inacessíveis aos não iniciados seriam os textos alquímicos? E, exatamente, todas essas investigações cada vez mais estéreis e minuciosas fizeram progredir o quê e para quê? E será que não houve, de facto, paradigmas no seio das ciências sociais? Correntes existiram nas ciências sociais que criaram paradigmas com toda uma hoste de investigadores a dedicar-se a problemas cada vez mais crípticos e irrelevantes, aliás, para a generalidade dos leigos: nas várias psicanálises, nos marxismos, nos behaviorismos, nos estruturalismos, mesmo que não tenham alcançado um paradigma consensual para todos os que se consideravam psicólogos, sociólogos, linguistas, antropólogos, etc., os investigadores, na atividade normal no seio do seu paradigma, agiam como se existisse apenas o seu paradigma científico e, caso viesse a propósito, atacavam os outros como pseudocientíficos, apenas podendo mudar os insultos acessórios, como aqueles que os marxistas usavam para os inimigos da revolução. Acabam por ter de ocorrer revoluções científicas porque essas tradições não aceitam a mínima alternativa ao paradigma e acabam por se erguer a partir das anomalias dessa tradição porque se têm de defrontar com o poder instalado. O mesmo ocorre ou pode ocorrer, com as devidas diferenças, na arte ou na filosofia. Não houve grande inovador, por exemplo, na música que não fosse pateado, não apenas pelo público, mas também pelos especialistas da época. As correntes filosóficas criam tradições dogmáticas académicas com todas as características da ciência normal, onde é mais importante a utilização dos códigos esotéricos de cada paradigma do que o próprio conteúdo, podendo haver artigos paupérrimos que são considerados relevantes apenas por utilizarem uma determinada linguagem formal mesmo que na sua forma mais básica, ao passo que um texto de conteúdo muito mais rico pode ser rejeitado apenas 227

Kuhn reconhece, aliás, implicitamente o paralelo, e. g., Kuhn, FD, 350: "even a cursory inspection of scientific pedagogy suggests that it is far more likely to induce professional rigidity than education in other fields, except, perhaps, sistematic theology." 228 Alexandre Koyré, Études galiléennes, Paris, Hermann, 1966; trad. port. Nuno Ferreira da Fonseca, Estudos Galilaicos, Lisboa, Pub. Dom Quixote, 1986 5, particularmente, o estudo intitulado "Na alvorada da ciência clássica", muito embora centrado na versão renascentista desta física (e da sua adversária aristotélica), pp 13-100, sobretudo a secção referente a Benedetti, pp. 58-75.

351

por não usar "pês" e "quês" ou outra qualquer parafernália de um qualquer paradigma. Vertidos na linguagem ordinária, como o professor de Leibniz, Erhard Weigel, requeria, em vez da terminologia latina escolástica vazia,229 imediatamente tais artigos revelariam a sua indigência intelectual. De facto, nas tradições académicas dogmáticas, existe quase um investimento mágico na simbologia, na taxonomia ou em outro qualquer léxico especializado, que exclui qualquer flexibilidade intelectual, supondo que só aquelas fórmulas mágicas poderão penetrar o objeto de estudo e que a qualquer outra linguagem faltaria o poder e a eficácia que se supõe na linguagem sacrossanta que se interiorizou sem ninguém se atrever à mínima sombra, ao mínimo eco de uma crítica. Longe disso garantir um maior progresso, é apenas a versão académica, científica, artística ou filosófica da estultícia, em que se julga progredir na medida em que se aumenta o caráter esotérico da linguagem utilizada, mas em que a maioria da comunidade mais não faz do que tentar resolver puzzles irrelevantes para uma verdadeira compreensão da realidade no seio dos "preceitos e fórmulas", ou seja, dos "instrumentos mecânicos do uso racional" que são "os grilhões de uma menoridade perpétua". 230 Este encerramento sobre si mesma de uma tradição tem sido até potenciado pela forma técnica que predominantemente o pensamento assumiu desde a Idade Moderna, sobretudo devido à componente "atomista" desse pensamento que tende a isolar cada microproblema como se existisse num mundo à parte, ignorando toda a sua inserção numa realidade mais vasta quer do ponto de vista da compreensão, quer do ponto de vista da transformação da realidade. Cada especialista debruça-se sobre a sua minúscula tarefa nunca questionando os pressupostos de que parte, nem as consequências que estão para lá do seu objetivo extremamente restrito predeterminado. Podendo ter os seus méritos dentro de uma determinada tradição, qualquer conceção que considere que uma ciência ou uma arte ou uma corrente filosófica só se pode desenvolver desta forma está a defender os aspetos mais nefastos da mentalidade dogmática. A única coisa que assim progride é o espírito de seita tão combatido por Leibniz exatamente por ser naturalmente contrário ao progresso, 231 muito embora aquele espírito possa satisfazer a habitual conceção linear, técnica e meramente cumulativa de progresso. Assim, ciência normal, filosofia normal, teologia normal, arte normal, sobretudo quando entendidas como exclusivas, mais não são do que a elaboração especializada do tão humano, demasiado humano, dogmatismo e ao menos a consciência de que se pode fazer mais ou de que há outras possibilidades não pode deixar de criar condições para o desenvolvimento da compreensão daquilo que a realidade pode ser. Pensar o contrário é equivalente a considerar que é necessário ser intelectualmente limitado para progredir. Mesmo que tivesse sido necessário, numa época dominada pela fé, crer cegamente num paradigma para desenvolver o trabalho pormenorizado da ciência normal, não há nada que garanta que tenha de ser assim. Não é necessária uma crença cega para desenvolver um trabalho disciplinado, especializado e minucioso, não é necessário rejeitar que até outros possam propor possibilidades alternativas à teoria que serve de referência, para realizar trabalhos de investigação de adequação cada vez mais pormenorizada dessa 229

Aiton, LA, 16: "Weigel, by forcing his Scholastic opponents to repeat their empty terminology and definitions in plain German, made them appear ridiculous." 230 Immanuel Kant, Zum Ewigen Frieden, Ein Philosophischer Entururf, etc.; trad. port. Artur Morão, A Paz Perpétua e outros opúsculos, Lisboa, Edições 70, 19924, "Resposta à pergunta: Que é o Iluminismo?", p. 12. 231 Leibniz, Carta para Bayle, G, III, 49: "L'esprit de secte est naturellement contraire au progrès". Na edição Dutens, interpreta-se o C. de Abade C, como referindo-se a Conti, óbvio anacronismo visto este ser uma criança na altura, para além de ser óbvia a referência às objeções do Abade de Catelan. Cf. Leibniz, OM, III, 200.

352

teoria à realidade empírica, não é necessário acreditar que a sua missão é sagrada e que a sua doutrina corresponde à verdade absoluta, para desenvolver qualquer que seja o trabalho. Na verdade, até se verifica que os grandes avanços científicos tendem a ocorrer na fase de instauração do paradigma, ou seja, durante a revolução científica e nas fases imediatamente subsequentes, as fases iniciais da ciência normal. A partir daí, o próprio facto de a imaginação científica ser extremamente condicionada acaba por levar a uma estagnação cada vez maior, por muito que isso seja ocultado por uma linguagem cada vez mais críptica e complexa. É verdade que, mesmo nessas tradições, há graus diferenciados de dogmatismo e que isso pode fazer com que existam menores bloqueios à inovação e à diferenciação. Por exemplo, o paradigma cartesiano mostrou-se muito mais aberto à discussão que o newtoniano, muito embora também exista uma espécie de "escolástica" cartesiana como virá a existir e a desenvolver-se, ainda durante as últimas décadas de vida de Newton, uma "escolástica" newtoniana.232 Ora, exatamente, Clarke é um dos primeiros e mais insignes representantes dessa "escolástica" que viria a fornecer o modelo para a ciência moderna. É talvez possível que seja, de facto, preciso algum dogmatismo no desenvolvimento da atividade da ciência normal, devido à grande especialização que implica e que não pode estar constantemente a questionar os pressupostos. Isso não implica que se tenha que considerar profana ou demoníaca qualquer atividade que se desenrole fora desse âmbito especializado ou que se desqualifique qualquer atividade, dentro desse âmbito especializado, que tente encontrar vias alternativas de resposta a problemas dificilmente resolúveis. Porém, se se deixar esse dogmatismo dominar autocraticamente a ciência, é a própria ciência, na sua progressão, que fica paralisada, incapaz de pensar para lá do quadro previamente dado e assim incapaz de encontrar soluções para os maiores problemas a não ser através do penoso e demorado processo da revolução científica. Se nem mesmo as Igrejas já parecem ter a mesma cegueira dogmática de outras eras e admitem ou mesmo promovem o diálogo inter-religioso até para lá do domínio ecuménico, por que se julgaria absolutamente inevitável que a ciência só se possa cultivar sob o jugo de um dogmatismo autocrático? c) Extrapolação final Tal qual a ciência newtoniana rapidamente se libertou das conceções religiosas newtonianas e, subsequentemente, das suas conceções metafísicas e físicas daquelas dependentes, como, por exemplo, o caráter estritamente passivo da matéria que não poderia explicar os princípios ativos (gravitação, magnetismo, eletricidade, etc.), fazendo-os depender da liberdade divina, também não há garantia que, se se tivesse imposto uma ciência leibniziana, ela não sofreria alterações muito significativas. Assim como a sua conceção dinâmica foi, parcialmente, integrada na ciência newtoniana, também as conceções newtonianas poderiam, parcialmente, integrar uma ciência leibniziana. 233 Porém, ambas as conceções tinham elementos dogmáticos intrínsecos que, através de seguidores que absorvessem esses elementos como indiscutíveis, admitindo ainda menor crítica que os fundadores, constituiriam sempre obstáculos à 232

Nisso, Leibniz sempre fez questão de se opor ao espírito de seita, designação com que, mais frequentemente, brinda os cartesianos que acabaram por aceitá-lo bem melhor que os newtonianos. Para referir um exemplo apenas da sua crítica aos interesses de partido: Leibniz, Essais de Théodicée, 3ª parte, § 375, G, VI, 339: Após se referir a várias seitas, entre as quais os cartesianos: "On garde rarement un juste milieu dans les ouvrages que l'interest de parti fait donner au public." 233 De alguma forma, terá sido o intentado por Boscovich: cf. Rogerio Josepho Boscovich, De Viribus Vivis, Romæ, Venantii Monàldini Bibliopolæ, 1745; Rogerio Josepho Boscovich, Theoria Philosophiæ Naturalis, [2ª ed.] Venetiis, Typographia Remondiniana, 1763; trad. ingl. J. M. Child, A Theory of Natural Philosophy, Chicago/London, Open Court Publishing Co., 1922.

353

evolução científica. Negligenciando agora as conceções religiosas, em breve tornadas aparentemente obsoletas na ciência, pese embora a sua importância na origem e motivação das conceções científicas, a pretensão leibniziana de demonstração de teses metafísicas ficaria sempre a tutelar, mesmo que, apenas, de uma forma arquitetónica, uma física demasiado subordinada a pressupostos que excluíam muitas hipóteses, à partida, apesar da sua maior sustentação empírica, como é o caso da atração universal e do vazio espacial; por outro lado, a ausência de reconhecimento newtoniano dos seus conceitos metafísicos como metafísicos, fazia que fossem aceites sem serem subordinados a qualquer crítica,234 ao passo que a sua recusa de admitir a consideração de conjeturas enquanto conjeturas, quer como possíveis programas de investigação (que, aparentemente, admitia só enquanto suas queries), quer como hipóteses especulativas acerca das causas dos fenómenos, constituía um obstáculo metodologicamente significativo à procura incondicionada de soluções para os problemas naturais. É difícil saber o que seria mais prejudicial, se a presunção metafísica leibniziana, se o non plus ultra newtoniano, transformado, pelos seus seguidores, numa proibição de questionação acerca dos conceitos basilares da física, orientação que o próprio Cotes antecipa. Pelo contrário, se os princípios mais fundamentais da metafísica leibniziana, sobretudo o princípio da razão suficiente, desempenhassem uma função crítica e reguladora na própria investigação newtoniana, indicando eventuais contrassensos que fosse necessário superar, no quadro até de uma ciência normal que se interrogasse também ou, pelo menos, permitisse a interrogação sobre os próprios fundamentos das teorias e não se coibisse de conjeturar ou permitir conjeturar hipóteses alternativas, muito embora estas nunca se pudessem justapor aos dados empíricos e devessem sempre ser testáveis, é difícil perceber porque não poderia a evolução científica ser maior. Aliás, se as pretensões da razão pura necessitam, indiscutivelmente, de crítica, não se percebe porque as pretensões da ciência empírica também não necessitariam dela, confrontadas com princípios racionais reguladores que teriam de tentar satisfazer, assim como, do lado contrário, não se deveria admitir que as especulações metafísicas se arrogassem um estatuto superior ao do mero pensamento. De qualquer forma, haveria sempre, como há sempre, espíritos dogmáticos suficientes para aprofundar ou pormenorizar cada um dos modelos teóricos. A diferença estaria em que, com maior rapidez, surgiriam possibilidades para ultrapassar algum impasse surgido, em vez de porfiar até à insanidade em alguma tese empiricamente insustentável e/ou até, porventura, racionalmente incongruente, ou em vez de sumariamente rejeitar, como se fora sacrílega, qualquer possibilidade de estudar alternativas à teoria paradigmática. Ora, esta discussão, apesar da superação do positivismo e das revoluções científicas do século XX, está longe de estar encerrada e pode ser adaptada e adequada aos temas atuais. Não deixa de ser curioso como a bem justa crítica newtoniana à irracionalidade do cultivo religioso dos mistérios235 é tão adequada a certas conceções físicas hoje até popularmente propaladas, bem mais distantes da exigência leibniziana de inteligibilidade que as descrições fenoménicas de Newton que, alegadamente, suspendiam simplesmente o juízo acerca das causas, admitindo um, por si só, sempre legítimo desconhecimento. 234

Os efeitos desta forma acrítica de pensar ainda se sentem, constantemente, pelo menos ao nível popular da divulgação científica, da imposição política do consenso teórico científico e até da legitimação académica das investigações. Em todos os casos, estão em causa questões de poder, nomeadamente o poder religioso da verdade indiscutível, mesmo se aparentemente se baniram as crenças religiosas da ciência, e não questões de saber. 235 Newton, An historical account..., OO, V, 529-30: "It is the temper of the hot and supersticious part of mankind, to like best what they understand least."

354

2. Conclusão Leibniz, com o habitual espírito de compromisso, costumava dizer que, normalmente, os autores com algum mérito tinham sempre bastante razão no que defendiam, mas pouca naquilo que atacavam.236 Atribuía, aliás, à malignidade humana a preferência pelos ataques. Sob risco de ser alvo da condenação por malignidade proferida de um túmulo com três séculos de idade, esta dissertação acabou por dar razão, nesta polémica, aos ataques de ambos. Naturalmente, sempre preocupados em, pelo menos, fingir uma ortodoxia que, conscientemente ou não, estavam longe de ter, muito embora isso pudesse ser mais evidente no caso newtoniano (VI. 9), ambos tinham de negar o teor das acusações, aliás feitas com objetivo de lançar sobre o opositor a suspeita de heresia, ateísmo ou impiedade. Na maioria dos casos, porém, a designação era mesmo a única coisa que era negada porque as conceções e até as justificações clamavam o contrário do negado. Não admitindo verdadeiras forças senão nos espíritos e almas, visto se manterem presos à conceção cartesiana estritamente passiva dos corpos, os newtonianos, por muito que o neguem, concebem Deus como uma verdadeira Alma do Mundo (VI. 4). Isso é especialmente compreensível à luz da teoria clarkiana da liberdade como eficiência física do agente (III. 2), sustentada, contra as objeções leibnizianas adversas à possibilidade de comunicação entre a alma e o corpo, exatamente por Deus, imaterial, agir sobre a matéria (V. 2), aliás compatível com a noção do espaço que surge na Ótica, como um verdadeiro sensoriomotor (IV. 1). Reforçando a semelhança com o divino, a própria alma possui uma extensão indiscerpível que lhe garante, através do seu próprio sensório, uma interação com o corpo análoga à de Deus com o mundo (IV. 3 e V. 1). O domínio sobre a realidade, que Newton tanto sublinha, traduz-se na permanência da ação livre de Deus, não apenas na criação, mas através do constante governo do mundo (VI. 2), ação livre exatamente entendida como eficiência física, ou seja, determinante, direta ou indiretamente, dos princípios ativos da própria Natureza (VI. 8). Não é por acaso que a linguagem usada para sustentar a liberdade da alma é a mesma: a existência de um princípio ativo na mesma (III. 1 e 2). Apesar de, segundo Clarke, o desígnio divino ou a determinação moral original ser certa e infalível, a liberdade divina é salvaguardada pela rejeição da causalidade final como verdadeira causalidade (apesar da infalibilidade) e, sobretudo, pelo exercício da Providência divina através de uma intervenção constante no criado correspondente à verdadeira causalidade, a eficiente, traduzindo-se por uma constante eficiência física no Mundo. Para salvaguardar a liberdade dessa eficiência, Newton e Clarke não admitem que Deus esteja obrigado a respeitar as próprias leis descobertas por Newton, admitindo a possibilidade da sua variação não só no tempo, mas também no espaço, ou seja, que outros mundos possam ter outras leis no Universo (IV. 7 e 8). Pelo contrário, uma tese como a do vazio parece 236

Apenas a título de exemplo, Leibniz, Essais de Théodicée, Préface, G, VI, 46: "j'ay trouvé qu'ordinairement dans les combats entre des gens d'un merite insigne (dont il y en a sans doute icy de deux côtés) la raison est de part et d'autre, mais en differens points, et qu'elle est plustost pour les défenses que pour les attaques, quoyque la malignité naturelle du coeur humain rende ordinairement les attaques plus agreables au lecteur que les défenses." Cf. Leibniz, Specimen Dynamicum..., GM, VI, 235-6: "Atque haec studiorum ratio mihi et prudentiae docentis et utilitati discentium maxime accomodata videtur, ne destruendi quam aedificandi cupidiores videamus neve inter perpetuas doctrinae mutationes audacium ingeniorum flatibus quotidie incerti jactemur, sed tandem aliquando humanum genus, refrenata sectarum libidine (quam inanis novandi gloria stimulat), constitutis certis dogmatibus, inoffenso pede non in Philosophia minus quam in Mathesi ad ulteriora progrediatur, cum in scriptis praestantium Virorum veterum et recentiorum (si ea fere adimas, quibus in alios durius dicunt) plurimum esse soleat veroui et in publicos thesauros digeri meretur. Idque utinam facere malient homines, quam censuris tempus prodigere, quibus tantum vanitati suae litant."

355

decorrente do modelo astronómico de Newton e da falta de resistência observável nos movimentos celestes. A própria física dos fluidos desenvolvida no Livro II dos Principia parece reforçar esta inspiração empírica, muito embora se pudesse defender a existência de outras entidades físicas a preencher o alegado vazio, caso não se partisse de uma conceção atomista homogénea da matéria (IV, IV. 6 e IV. 9). Mas a rejeição do pleno material tem outros motivos bem clarificados por Clarke. Este considera que a exigência leibniziana de plenitude só se justifica se se conceber a matéria como necessária, retirando isso toda a liberdade à ação criativa e ordenadora de Deus. Se algo existisse em toda parte, seria por, como Deus, não poder deixar de existir; se algo não existir em algum sítio, será por poder não existir, ou seja, ser contingente (IV. 4). O vazio e a rejeição do pleno material são, assim, condições da própria liberdade divina, ao salvaguardar a contingência material (IV. 6). Por essa mesma razão, se admite a possibilidade, ao menos como exercício intelectual, de um universo finito a mover-se no vazio (IV. 8), a possibilidade genérica da finitude da matéria e a limitação temporal (IV. 10). Mas essa eficiência divina traduz-se não só nas forças naturais e na ordem cósmica, mas também na intervenção concreta na história humana, pela qual se realiza mais plenamente o desígnio divino (IV. 10, VI. 3 e VI. 9). O compatibilismo de tendência libertista de Clarke nunca aceita, porém, uma completa arbitrariedade, a liberdade de indiferença, até mesmo na polémica, onde a sua posição parece mais libertista devido ao confronto com Leibniz, submetendo inclusive o caso extremo da distribuição indiferente de partículas idênticas na criação a razões de conjunto, ou seja, ao desígnio divino prévio (III. 1). É a presença constantemente interventiva de Deus que assegura a sua liberdade e não a sua absoluta arbitrariedade, a escolha ao acaso (III. 3), porque a própria máquina do Universo não é nem determinada por uma necessidade matemática cega, nem fruto de indiferença casual, antes mostrando, na sua harmonia e diversidade, escolhas segundo desígnios (II.4). A redução da noção de milagre ao pouco habitual ou a sua extensão, caso dependesse da inexplicabilidade, a quase toda a Natureza, incluindo, aliás, nessa inexplicabilidade dependente de Deus, a própria vida (VI.6), para lá de reforçarem a conceção da presença divina interventiva, preservam, igualmente, a liberdade de Deus não por ser arbitrária, mas por estar dependente de um desígnio para nós inatingível (VI. 5). A conceção newtoniana da realidade é dominada pela liberdade divina e, tributariamente, pela possível liberdade de outros espíritos e agentes, para lá dos humanos, cuja liberdade é garantida à imagem e semelhança de Deus. As próprias bestas partilham, parcialmente, desta liberdade (III. 2), garantida como sempre pelos princípios ativos miraculosos ou não, apenas a vedando completamente à matéria inerte, encarada como mero objeto de exercício da liberdade. Quanto a Leibniz, por muito que mantenha uma conservação contínua por Deus das naturezas criadas, simultaneamente assente na e sustentadora da distinção modal entre necessário e contingente (II. 5), e por muito que salvaguarde a liberdade por outra distinção modal, a distinção entre necessário e possível (II. 4) (apesar de uma determinação completa das escolhas pelas sequências causais finais, visto as eficientes serem restringidas à natureza fenoménica), não consegue convincentemente se proteger da acusação, implícita na polémica e explícita fora dela, de deísmo, assim como ainda da mais recorrente acusação de fatalismo que, na verdade, até reconhece na sua versão cristã (II. 6). Ao superar o mecanicismo pela concessão de força própria a todo o criado, reduzindo o corporal a uma manifestação fenoménica dessa força (VI. 8) análoga à existente no anímico e espiritual, Leibniz pretende dispensar quaisquer intervenções adicionais da divindade, tornando a máquina da natureza autónoma, funcionando por si só, desde a criação (VI. 1). Como inteligência supramundana, a liberdade divina esgota-se na escolha do melhor mundo possível, inevitável, afinal, pela natureza divina, 356

cuja bondade inclinaria inelutavelmente a sua vontade para essa opção apresentada pelo seu entendimento (VI. 4). Não sendo da natureza divina mudar, essa escolha determina completamente todas as sequências causais de todo o criado e do próprio mundo no seu conjunto, sendo o seu funcionamento perfeito sinal da sua soberana sabedoria. Os atos livres dos espíritos criados não fazem mais do que realizar, pela sua escolha entre os possíveis e, por isso, sob a forma de determinação final, tudo aquilo que a sua sequência causal, já presente na sua noção completa original, determinava que se fizesse. A denúncia da falácia da razão preguiçosa não nega a fatalidade, antes insistindo que a predeterminação divina opera através das próprias escolhas, não sendo, por isso, indiferentes as escolhas (II. 6). Essa fatalidade é, aliás, do ponto de vista humano, genérica e, por isso mesmo, problemática, protegendo-nos a nossa ignorância contra o sentimento da inevitabilidade da nossa escolha. Mas a possibilidade de escolha esgota-se, na verdade, nas simples modalidades lógicas, porque, se uma única entidade escolhesse fazer outra coisa que não aquilo para o qual está determinada desde sempre (visto estar na sua noção completa presente no entendimento divino desde sempre), toda a harmonia pré-estabelecida do universo ruiria, visto cada decisão de cada espírito ter de se articular com o funcionamento mecânico de todo o universo, por sua vez emanado de todas as outras mónadas que se entre-expressam tão completamente que a partir de uma única se poderia rever tudo o que aconteceu e prever tudo o que acontecerá no universo (V. 2 e VI. 2). Compatibilista será a posição de Leibniz, visto a determinação incluir na sequência causal as próprias escolhas e serem sempre possíveis alternativas, mas um compatibilismo com fortíssima tendência determinista, visto nenhum ser jamais escolher outra alternativa que não a predeterminada (III. 7). Embora, até em contraposição ao milenarismo newtoniano, Leibniz deposite o seu otimismo numa expetativa de progresso cósmico e histórico (IV. 10 e VI. 3), embora compreenda a realidade de forma radicalmente individualizada e concretizada na entre-expressão desses infinitos singulares (IV. 9 e V. 2), razão porque rejeita a realidade física de entidades abstratas e ideais como o espaço e o tempo (IV. 4 e 5), embora recuse a predestinação da danação (VI. 3), tenta sempre tudo explicar, incluindo a própria eterna danação, pela determinação sequencial individual e global. A liberdade é, em Leibniz, sempre subordinada à razão, mas não necessariamente a razão subjetiva humana, visto as decisões serem muitas vezes tomadas com base em perceções de que o sujeito humano não tem consciência, para lá da própria aperceção poder resultar, nas disposições notáveis, do acumular de tais ínfimas perceções inconscientes (III. 4). A decisão é encarada como um resultado de uma multiplíssima concorrência de fatores, onde a consciência parece desempenhar um papel reduzido ou instrumental (III. 5). Até a possibilidade de controlo racional pela suspensão dos desejos parece muito limitada e precária (III. 6). A razão determinante da liberdade é a razão suficiente que explica porque aconteceu isto em vez daquilo e porque as coisas são assim em vez de serem de outra forma (II. 3). Mas essa razão suficiente, em última análise, percorrendo a série da determinação, só se encontra em Deus e, sobretudo, no seu decreto único determinante ao infinito de toda a teia de ocorrências, de forma que um espírito poderá sempre representar alternativas, mas nunca conseguirá efetuar nenhuma que não a decidida desde a criação. Bem útil é Spinoza com o seu necessitarismo, para Leibniz se poder apresentar, a coberto da distinção modal, como um defensor da liberdade. Todas as restantes escolhas cosmológicas têm presente, ao menos sob pano de fundo, a inevitabilidade da escolha, a começar pela escolha divina. O princípio do melhor (III. 4) que a rege decide pelo pleno em vez do vazio (IV. 6), pelo ilimitado em vez do limitado e pelo eterno futuro em vez de um mundo e criaturas sujeitas a um fim (IV. 10). A relativa suspensão de juízo em relação a estas questões, com exceção do 357

vazio, por parte dos newtonianos, procura salvaguardar sempre a efetiva liberdade divina. 237 A própria afirmação do vazio, associado ao espaço absoluto e, assim, ao próprio Deus, garante um meio imaterial pelo qual se exerce essa liberdade, através das forças resultantes dos princípios ativos, mesmo que não exista mais nenhum meio adicional. Um universo de massas inertes exige princípios de vida que lhe são estranhos e, porém, constantemente patentes numa natureza palpitante de dinamismo. Ao tentar explicá-la, concebendo todo o existente como ativo, não pretendendo, porém, deixar o quadro das explicações mecânicas da natureza (VI. 5 e 6), Leibniz acaba por deixar muito menor margem de manobra para a liberdade. A própria hipótese do vínculo substancial não altera este quadro, apenas procurando explicar mais consistentemente a série mecânica do corpo orgânico, na sua persistência desde a criação e na sua correspondência com a mónada dominante (VI. 7). Não deixa de ser curioso pensar que, se Leibniz estivesse um pouco mais liberto do colete-de-forças das explicações mecanicistas, dependentes de um contacto espacial direto, porventura, apesar da hipótese realizadora do vínculo, apenas fenoménico, visto as mónadas expressarem, sem limites, o universo inteiro, poderia ter fornecido uma fundamentação metafísica para a própria possibilidade da atração gravítica a distância, sem necessidade de recorrer a imaginativos vórtices. Diga-se, aliás, que os restantes obstáculos eram mais facilmente superáveis, visto os princípios da continuidade e do melhor não impedirem uma rarefação da matéria até uma falta de resistência equiparável ao vazio.238 Se o tivesse feito, seria, certamente, visto com melhores olhos pela posteridade científica, o que poderia ter tido efeitos até positivos na evolução registada e na multiplicidade de perspetivas admitidas, mas teria, porém, chegado a um relógio dinâmico muito semelhante à conceção posterior da ciência newtoniana e que o próprio Newton não poderia decerto desejar, pois dispensaria a constante intervenção divina na sua obra. O que quer dizer que mesmo que Leibniz tivesse aceitado a gravitação universal e os desentendimentos do cálculo não tivessem ocorrido, as suas diferentes conceções de liberdade divina, sobretudo na sua relação com o mundo, tê-los-ia condenado a não se entenderem. O Senhor Deus de Newton seria sempre incompatível com a Inteligência Supramundana de Leibniz.

237

James Force considera mesmo que essa é a razão (a salvaguarda da liberdade divina) que origina a limitação da analogia da natureza (regra 3) pela 4ª regra, apenas surgida na 3ª edição (muito embora, como foi visto em VII, nota 7, e VII., 1. b), com antecedentes na preparação da 2ª edição e até nas polémicas de 72), admitindo a possibilidade de revisão das conclusões indutivas por novos fenómenos, visto estar no arbítrio de Deus alterar os fenómenos. Da mesma forma, a subordinação indutiva aos fenómenos deve ser entendida como uma subordinação ao que Deus decide revelar, sem procurar penetrar nos seus desígnios inacessíveis ao criado através de hipóteses especulativas. Assim, a própria metodologia científica tem origem religiosa, limitando a razão à experiência por resultar da manifestação divina que é a natureza e procurando deixar tudo o resto para o domínio da fé. Cf. Force, EC, 89, em menor grau, 60; para a leitura humiana, 188. Ver VI. 9 e VII, 1. b). 238 Cotes chama, aliás, a atenção para o facto de, ao se admitir fluidos celestes que não resistem aos movimentos dos astros (planetas e cometas), nega-se o vácuo ao assumi-lo, visto, sem inércia detetável, não existir qualquer forma de distinguir esses fluidos do simples espaço vazio. Cf. Cotes, præfatio in Editionem secundam, OO, II, xxiii: "Qui cælos materiâ fluidà repletos esse volunt, hanc verò non inertem esse statuunt; hi verbis tollunt Vacuum, re ponunt. Nam cùm hujusmodi materia fluida ratione nullâ secerni possit ab inani spatio; disputatio tota fit de rerum nominibus, non de naturis."

358

Bibliografia Fontes dos autores envolvidos na polémica:    

  

       

 

Anónimo (presumivelmente, a própria Igreja Anglicana), A full Account of the Late Proceedings in Convocation relating to Dr. Clarke’s Writings about the Trinity, 2nd. ed, London, John Baker, 1714. [FL] H. G. Alexander, The Leibniz-Clarke correspondence, Manchester/New York, Manchester University Press, 1st. ed. 1956, reimpr. 2005. Roger Ariew, ed., intr., G. W. Leibniz and Samuel Clarke Correspondence, Indianapolis/Cambridge, Hackett Publishing Company, Inc., 2000. Samuel Clarke, A Collection of Papers, Which passed between the late Learned Mr. Leibnitz, and Dr. Clarke, In the Years 1715 and 1716, Relating to the Principles of Natural Philosophy and Religion, London, James Knapton, 1717. [CP] Samuel Clarke, A Demonstration of the Being and Attributes of God, London, James Knapton, 1705. [DB] Samuel Clarke, A Demonstration of the Being and Attributes of God and other writings, Cambridge, Cambridge University Press, 1998. [DA] Samuel Clarke, A Discourse concerning the Being and Attributes of God, the Obligations of Natural Religion, and the Truth and Certainty of the Christian Revelation, 10th. ed., London, H. Woodfall e outros, 1767. [Edição exclusivamente utilizada para a 2ª conferência, DC] Samuel Clarke, A letter to Mr. Dodwell, 6ª edição (com toda a sequência da polémica, incluindo as objeções de Collins), London, James and John Knapton, 1731. [LD] Samuel Clarke, A Letter to the Reverend Dr. Wells, Rector of Cotesbach in Leicestershire. In Answer to his Remarks, etc., London, James Knapton, 1714. Samuel Clarke, A Paraphrase on the Four Evangelists, 9th. ed., London, John and Paul Knapton, 1751. Samuel Clarke, Remarks upon a Book entituled A Philosophical Enquiry concerning Human Liberty, London, James Knapton, 1717. [RB] Samuel Clarke, A Reply to the Objections of Robert Nelson and of an Anonymous Author, against Dr. Clarke Scripture-Doctrine of the Trinity, London, James Knapton, 1714. Samuel Clarke, The Scripture-Doctrine of the Trinity, London, James Knapton, 1712; 2nd. ed., London, James Knapton, 1719. [ST] I. Bernard Cohen, Richard S. Westfall, sel. e ed., Newton – Texts, Backgrounds, Commentaries, New York/London, W. W. Norton & Co., 1995. [NW] Pierre Desmaizeaux, Recueil de Diverses Pieces, sur la Philosophie, la Religion Naturelle, l'Histoire, les Mathematiques, &c. par Mrs. Leibniz, Clarke, Newton, & autres Auteurs célèbres, Amsterdam, H. du Sauzet, 1720; 2ª ed. ver., corr., e aum., Amsterdam, François Changuion, 1740. [RD] J. Edleston, ed., Correspondence of Sir Isaac Newton, and Professor Cotes, including letters of other eminent men, London e Cambridge, John W. Parker e John Deighton, 1850. [CC] John Jackson, atr., Three Letters to Dr. Clarke from a Clergyman of the Church 359



                   

of England; concerning his Scripture-Doctrine of the Trinity. with the Doctor's replies, London, Black Boy, 1714. John M. Kemble, State Papers and Correspondence illustrative of the Social and Political State of Europe from the Revolution to the Accession of the House of Hanover, London, John W. Parker and son, 1857. [SP] Leibniz, éd. Henri Lestienne, Discours de Métaphysique, Paris, Libr. Phil. J. Vrin, 1e. éd. 1907, 1929. [DM] Gottfried Wilhelm Leibniz, ed. e trad. Michel Fichant, De l’Horizon de la Doctrine Humaine (1693); La restitution universelle (1715), Paris, Libr. Philosophique J. Vrin, 1991. [HD] G. W. Leibniz, Lettre de M. G. G. de Leibniz sur la philosophie chinoise à M. de Rémond, trad. port. Adelino Cardoso, Discurso sobre a Teologia Natural dos Chineses, Lisboa, Colibri, 199111. G. W. Leibniz, Translated, Edited, and with an Introduction by Brandon C. Look and Donald Rutherford, The Leibniz – Des Bosses Correspondence, New Haven and London, Yale University Press, 2007. [BC] Gottfried Wilhelm Leibniz, ed. C. I. Gerhard, Leibnizens mathematische Schriften, Berlin (1º e 2º vols.), Halle (3º a 7º), A. Asher (iniciais), H. W. Schmidt (restantes), 1849-1863. [GM] G. W. Leibniz, étude et notes Clodius Piat, La Monadologie, Paris, Librarie Victor Lecoffre,1900; Online Distributed Proofreaders Europe, 2006. G. W. Leibniz, Nouveaux Essais sur l’entendement humain, tr. port. Adelino Cardoso, Novos Ensaios sobre o Entendimento humano, Lisboa, Colibri, 1983. [NE] Leibniz, Foucher de Careil, ed., Nouvelles Lettres et Opuscules Inédits, Paris, Auguste Durand, 1857. Leibniz, intr. M. A. Jacques, Oeuvres, Paris, Charpentier, 1842. Leibniz, intr. e notas, A. Foucher de Careil, Œuvres, Paris, Libr. Firmin Didot, 1859-1875. [OV] Leibniz, intr. e notas, Paul Janet, Oeuvres Philosophiques, Paris, Félix Alcan, 1900. Gothofredi Guillelmi Leibnitii, Ludovici Dutens, ed., Opera Omnia, Genevae, Frates de Tournes, 1768. [OM] God. Guil. Leibnitii, ed. Joannes Eduardus Erdmann, Opera Philosophica quae exstant latina gallica germanica Omnia, Berolini, Sumtibus G. Eichleri, 1840. G. W. Leibniz, ed. Louis Couturat, Opuscules et fragments inédits, Paris Presses Universitaires de France, 1903; Hildesheim, Georg Olms Verlagsbuchhandlung, 1966. [OF] G. W. Leibniz, trad. ingl. Roger Ariew and Daniel Garber, Philosophical Essays, Indianapolis, Hackett Publishing Company, 1989. Gottfried Wilhelm Leibniz, ed. C. I. Gerhard, Die Philosophischen Schriften, Berlin, Weidmannsche Buchhandlung, 1875-1890 (7 vols.). [G] Gottfried Wilhelm Leibniz, Specimen Dynamicum, Hamburg, Felix Meiner Verlag, 1982. Leibniz, ed. Onno Klopp, Die Werke von Leibniz, Hannover, Klindworth's Verlag, 1864-84. [Vols. 1-7, 9, 11] [WL] Newton, H. W. Turnbull, ed., The Correspondence of Isaac Newton, Vol. III, Cambridge, Cambridge University Press, 1961, reimpr. 2008. [CN] Newton, J. F. Scott, ed., The Correspondence of Isaac Newton, Vol. IV, 360

         

   

   

Cambridge, Cambridge University Press, 1967. [CN] Newton, A. Rupert Hall e Laura Tilling, ed., The Correspondence of Isaac Newton, Vols. V-VI, Cambridge, Cambridge University Press, 1975-1976, reimpr. 2008. [CN] Isaac Newton, trad. ingl. Andrew Motte, The Mathematical Principles of Natural Philosophy; New York, Daniel Adee, 1846. Isaac Newton, ed., arr. and notes H. S. Thayer, Newton's Philosophy of Nature – Selections from His Writings, New York, Hafner Pub. Co., 1953; Mineola, New York, Dover Pub., 2005. [NP] Isaac Newton, ed. Samuel Horsley, Opera quae exstant omnia, Londini, Johannes Nichols, 1782-1785. [OO] Isaaco Newton, Latine reddidit Samuel Clarke, Optice, Londini, Sam. Smith & Benj. Walford, 1706. [OP] Isaac Newton, Opticks, London, Sam Smith & Benj. Walford, 1704. Isaac Newton, Opticks, 2nd. ed., London, W. and J. Innys, 1718. [OK] Is. Newton, Philosophiae naturalis Principia Mathematica, Londini, Iosephi Streater, 1687 (repr. Henderson & Spalding, London, s/d). [PN] Isaaco Newton, Philosophiae naturalis Principia Mathematica, Editio Ultima, Amstælodami, Sumptibus Societatis, 1714. Isaac Newton, Philosophiae naturalis Principia Mathematica, 1687; trad. ingl. Andrew Motte, The Mathematical Principles of Natural Philosophy, 1729; rev. Florian Cajori, BerKeley, Los Angeles, University of California Press, 1934; 5ª impr., 1975. Isaac Newton, Alexandre Koyré and I. Bernard Cohen, eds., Philosophiae naturalis Principia Mathematica, 3rd. ed. (1726) with variant readings, Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1972. Isaac Newton, ed. Andrew Janiak, Philosophical Writings, Cambridge, Cambridge University Press, 2004. Isaac Newton, trad. ingl. I. Bernard Cohen e Anne Whitman, The Principia – Mathematical Principles of Natural Philosophy, Berkeley and Los Angeles, University of California Press, 1999. [PM] Isaac Newton, ed. e trad. ingl. A. Rupert Hall and Marie Boas Hall, Unpublished Scientific Papers, Cambridge, Cambridge University Press, 1962, paperback ed., 1978, re-issued 2009. [US] Stephen Jordan Rigaud, ed., Correspondence of Scientific Men of the Seventeenth Century, Oxford, University Press, 1841. André Robinet, ed., Correspondance Leibniz-Clarke, Paris, Presses Universitaires de France, 1957. [CLC] Jacobi Rohaulti, trad. lat. e notas Samuel Clarke, Physica, Secundâ Editione, Londini, Jacobi Knapton, 1702; Editio Quarta, Londini, Jacobi Knapton, 1718. Rohault, trad. ingl. John Clarke com notas de Samuel Clarke, System of Natural Philosophy, London, James Knapton, 1723; 2nd. ed., London, James and John Knapton, 1728. Contexto histórico-filosófico:



Agostinho, De Libero Arbitrio, trad. port. António Soares Pinheiro, O Livre Arbítrio, 3ª ed., Braga, Faculdade de Filosofia da UCP, 1998. 361

                      

Aristóteles, tr. fr. Jean Voilquin, Éthique de Nicomaque, Paris, Garnier fréres, 1965; Garnier-Flammarion, 1987. Aristotle, Jonathen Barnes, ed., The Complete Works of Aristotle, Princeton, Princeton University Press, 1984. 4th. pr. 1991, Vol. I, trad. ingl. R. P. Hardie and R. K. Gaye, Physics. Aristóteles, ed. trilingue de Valentín García Yebra, Tά Mετά τά Φυσικά, 1ª ed., Madrid, Ed. Gredos, 197011; 2ª ed, 198211. Aristóteles, ͗Όργανον, trad. port. Pinharanda Gomes, Organon, Lisboa, Guimarães ed., 1985-1986. Francis Bacon, Novum Organum, Academia de Toulouse, The Latin Library, eLiber, 2002. [NO] Francis Bacon, Novum Organum, trad. ingl. William Wood, London, William Pickering, 1844. Francis Bacon, Works, 4th volume, Novum organum scientiarium, Vol. I., London, M. Jones, Paternoster-row, 1815. Francis Baily, ed., An Account of the Revd. John Flamsteed..., London, William Clowes, 1835. Pierre Bayle, Dictionnaire historique et critique, Rotterdam, Reinier Leers, 1697. Pierre Bayle, Dictionnaire historique et critique, 6ª ed., Basle, Jean Louis Brandmuller, 1741. George Berkeley, The Works of George Berkeley, D.D., Oxford, Clarendon Press, 1871. Rogerio Josepho Boscovich, De Viribus Vivis, Romæ, Venantii Monàldini Bibliopolæ, 1745. Rogerio Josepho Boscovich, Theoria Philosophiæ Naturalis, [2ª ed.] Venetiis, Typographia Remondiniana, 1763; trad. ingl. J. M. Child, A Theory of Natural Philosophy, Chicago/London, Open Court Publishing Co., 1922. Robert Boyle, The Philosophical Works of the Honourable Robert Boyle, ed. Peter Shaw, London, Innys, Osborn and Longman, 1725. Robert Boyle, ed. M. A. Stewart, Selected Philosophical Papers, 1st. ed., Manchester University Press, 1979; Indianapolis/Cambridge, Hackett Publishing Co., 1991. Robert Boyle, The Works of the Honourable Robert Boyle, 1744, new ed., London, Rivington e outros, 1772, vol. I. Thomas Burnet, The Theory of the Earth, 3rd. ed., London, Walter Kettilby, 1697. Anthony Collins, Philosophical inquiry concerning Human Liberty, London, R. Robinson, 1717. [PL] Auguste Comte, Catéchisme Positiviste, Paris, chez l'auteur, 1852; édition électronique par Jean-Marie Tremblay, 20022. R. Cudworth, The true Intellectual System of the Universe: The First Part; wherein, All the Reason and Philosophy of Atheism is Confuted and its Impossibility Demonstrated, London, Richard Royston, 1677. Ralph Cudworth, ed. Thomas Birch, The Works, Oxford, D. A. Talboys, 1829. René Descartes, Oeuvres et Lettres, s/l, Gallimard, 1953, reimpr. Bruges, Gallimard, 19838. [OL] Henry Dodwell, An Epistolary Discourse proving, from the Scriptures and the first fathers that the Soul is a principle naturally mortal, 2ª ed., London, R. 362

          

    

 

Smith, 1706. Davide Gregorio, Astronomiæ Physicæ & Geometricæ Elementa, Oxoniæ, Theatrum Sheldonianum, 1702. David Gregory, trad. ingl., The Elements of Astronomy, Physical and Geometrical, London, J. Nicholson, 1715. Francis Hare, atr., The Difficulties ans Discouragements which attend the Study of the Scriptures in the Way of Private Judgement, 3ª ed., London, John Baker, 1714. John Harris, Lexicon Technicum: Or, An Universal English Dictionary of Arts and Sciences, London, Dan. Brown e outros, 1710; 4th. ed., London, D. Browne e outros, 1725. E. Henderson, The great Mistery of godliness incontrovertible; or, Sir Isaac Newton and the Socinians, London, Holdsworth and Ball, 1830. Benjamin Hoadly, The Works, London, W. Bowyer and J. Nichols, 1773. Thomas Hobbes, The English Works, London, John Bohn, 1861, Vol. V, The Questions concerning Liberty, Necessity, and Chance. Thomas Hobbes, Leviathan or The Matter, Forme, & Power of a CommonWealth Ecclesiasticall and Civill, London, Andrew Crooke, 1651; repr. 1st. ed., 1909, Oxford, Clarendon Press, 1929. Thomas Hobbes, trad. port. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva, Leviatã, 4ª ed., Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2010. David Hume, Dialogues concerning Natural Religion, ed. Norman Kemp Smith; tr. port. Álvaro Nunes, Diálogos sobre a Religião Natural, Lisboa, Edições 70, 20059. David Hume, Enquiry concerning the Human Understanding, 1748; ed. SelbyBigge, Clarendon Press, 1909, 1972; Oxford University Press, 1975; trad. port. Artur Morão, Investigação sobre o Entendimento Humano, Lisboa, Edições 70, 19851. Christiaan Huygens, Traité de la Lumiere avec un Discours de la Cause de la Pesanteur, Leide, Pierre Vander Aa, 1690. Immanuel Kant, Kritik der Reinen Vernunft, Riga, Hartknoch, 1781, 2ª ed., 1787; trad. port. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão, Crítica da Razão Pura, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 19858. [KV] Immanuel Kant, Metaphysische Anfanngsgründe der Naturwissenschaft, tr. port. Artur Morão, Primeiros Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza, Lisboa, Ed. 70, 19907. Immanuel Kant, Zum Ewigen Frieden, Ein Philosophischer Entururf, etc.; trad. port. Artur Morão, A Paz Perpétua e outros opúsculos, Lisboa, Edições 70, 19924. Jo. Keill, An Examination of Dr. Burnet's Theory of the Earth. Together with some remarks on Mr. Whiston's New Theory of the Earth, Oxford, Theater, 1698; J. Keill, An Examination of Dr. Burnet's Theory of the Earth: with some remarks on Mr. Whiston's New Theory of the Earth. Also An Examination of the Reflections of the Theory of the Earth; and a Defence of the Remarks on Mr. Whiston's New Theory, 2nd. ed, Oxford, H. Clemens, London, S. Harding. William King, De origine Mali, Bremen, seguindo uma cópia de Londres, Philippum Godofredum Saurmannum, 1704; trad. ingl. Edmund Law, An Essay on the Origin of Evil, Cambridge, W. Thurlbourn Bookseller, 1731. John Locke, Epistola de Tolerantia, Institut Internationale de Philosophie/PUF, 363

                    

1965; trad. port. João da Silva Gama, Carta sobre a Tolerância, Lisboa, Edições 70, 19873. John Locke, An Essay concerning human understanding, New York, Dover pub., 1959; coor. trad. port. Eduardo Abranches de Soveral, Ensaio Sobre o Entendimento Humano, Lisboa, Fund. Calouste Gulbenkian, 2008. John Locke, An Essay concerning Humane Understanding, (1st. ed., 1690) 4th. ed. with large additions, London, Awnsham and John Churchil/Samuel Manship, 1700. [EU] John Locke, Works, London, John Churchill, 1714. Nicolas Malebranche, Meditations Chrétiennes et Métaphysiques, nouv. ed., Lyon, Leonard Plaignard, 1707; trad. port. Adelino Cardoso, Meditações Cristãs e Metafísicas, Lisboa, Ed. Colibri, 200312. [MC] Nicolas Malebranche, Oeuvres Complètes, Tomes XII – XIII, Entretiens sur la Métaphysique et sur la Religion; Entretiens sur la mort, 1965; 4ª ed., Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1991. Nicolas Malebranche, De la Recherche de la Verité, 4ª ed., Amsterdam, Henry Desbordes, 1688. Henry More, A Collection of Several Philosophical Writings, 2nd. ed. corrected and enlarged, London, James Flesher, 1662; 4ª ed., London, Joseph Downing, 1712. [The Immortality of the Soul surge, porém, com a data de 1713!] [CS] Henry More, Divine Dialogues, containing sundry Disquisitions & Instructions concerning the Attributes of God and his Providence in the World, [1ª ed., 1668] 2nd. ed., London, Joseph Downing, 1713. [DD] Henry More, Enchiridion Metaphysicum, Pars Prima, Londini, Guilielmum Morden, 1671. Friedrich Nietzsche, Jenseits von Gut und Böse; trad. port. Hermann Pflüger, Para Além do Bem e do Mal, Lisboa, Guimarâes Ed., 19829. Ephraim Pagitt, A brief description of Heretics, Coconut Creek, Florida, Puritan Publications, 2013. C. A. Patrides, ed., The Cambridge Platonists, Edward Arnold, 1969; Cambridge, Cambridge University Press, 1980. Platon, Oeuvres Complètes, Tome X, trad. fr. Albert Rivaud, Timée – Critias, 3ème éd., Paris, Soc. « Les Belles Lettres », 1956. Platon, Oeuvres Complètes, Tome IV, 3e Partie, trad. fr. Léon Robin, Phèdre, 4ème éd., Paris, Soc. « Les Belles Lettres », 1954. Platão, ed. J. Burnet, Platonis Opera, T. IV, Oxonii e typographeo Clarendoniano, 1949; tr. port. Maria Helena da Rocha Pereira, A República, 11ª ed., Lisboa, Fund. Calouste Gulbenkian, 200810, pp. 486 e 488-489. [Anthony, Earl of Shaftesbury], A Letter concerning Enthusiasm, London, J. Morphew, 1708. Spinoza, trad. fr. Charles Appuhn, Éthique, Paris, Garnier Flammarion, 1965. Tho. Sprat, The History of the Royal-Society of London for the Improving of Natural Knowledge, 2nd. ed., London, Rob. Scot, Ri. Chiswell, Tho. Chapman, and Geo. Sawbridge, 1702. [HR] Benedictus de Spinoza, ed. Gebhardt, Heidelberg, 1926; tr. ingl. Samuel Shirley, Complete Works, Indianapolis, Hackett, 2002. [CW] Toland, Letters to Serena, London, Bernard Lintot, 1704. [LS] Thomas Aquinas, trad. ingl. Fathers of the English Dominican Province, The Summa Theologica, New York, Benziger Bros., 1947; Repub. Catholic Way 364

    

 

Publishing, 2014. Edward Wells, Remarks on Dr. Clarke Introduction to his Scripture-Doctrin of the Trinity, Oxford, Anthony Peisley, 1713. Voltaire, Candide ou l'optimisme, s/l, mozambook, 2001. William Whiston, An Account of the Convocation's Proccedings with relation to Mr. Whiston, London, ed. autor, 1711. William Whiston, Astronomical Principles of Religion, Natutal and Reveal'd, London, J. Senex and W. Taylor, 1717. William Whiston, Historical Memoirs of the Life of Dr. Samuel Clarke being A Supplement to Dr. Sykes's and Bishop Hoadley's Accounts. Including certain Memoirs of several of Dr. Clarke's Friends., London, Fletcher Gyles and J. Roberts, 1730. [HM] William Whiston, Memoirs of the Life and Writings os Mr. William Whiston. Containing, Memoirs of several of his Friends also., London, Whiston and Bishop, 1749. [MW] William Whiston, A new Theory of the Earth, 2nd ed., Cambridge, University Press, 1708. [NT] Comentadores:

             

Robert Merrihew Adams, Leibniz – Determinist, Theist, Idealist, New York/Oxford, Oxford University Press, 1994, reimpr. 1998. E. J. Aiton, The Vortex theory of Planetary Motions, New York/London, American Elsevier Inc./Macdonall, 1972. [VT] E. J. Aiton, Leibniz – A Biography, Bristol and Boston, Adam Hilger Ltd, 1985. [LB] Ferdinand Alquié e outros, trad. port. Geminiano Cascais Franco, Galileu, Descartes e o Mecanismo, Lisboa, Gradiva, 19872. Maria Rosa Antognazza, Leibniz – An Intellectual Biography, New York, Cambridge University Press, 2009. [IB] Yvon Belaval, Études leibniziennes, s/l, Éd. Gallimard, 19769. [EL] Yvon Belaval, Leibniz, Initiation à sa Philosophie, 1961, 5ª ed., Paris, Libr. Phil. J. Vrin, 1984. [LI] Yvon Belaval, Leibniz critique de Descartes, s/l, Gallimard, 1960 ; reimpr. Cher, Gallimard, 19784. Mafalda de Faria Blanc, “A essência da Força: Leibniz e Heidegger” in coord. Leonel Ribeiro dos Santos, Pedro M. S. Alves e Adelino Cardoso, Descartes, Leibniz e a modernidade, Lisboa, ed. Colibri, 1998. Maurice Blondel, Une énigme historique: Le « Vinculum Substantiale » d’après Leibniz et l’ébauche d’un réalisme supérieur, 2éme. éd, Paris, Gabriel Beauchesne, 1930. Marie Boas, "The Establishment of the Mechanical Philosophy" in Osiris, The University of Chicago Press, 1952, Vol. 10, pp. 412-541. [EM] David Brewster, Memoirs of the Life, Writings and Discoveries of Sir Isaac Newton, Edinburgh/London, Thomas Constable/Hamilton, Adams, 1855. [ML] C. D. Broad, Leibniz – An Introduction, Cambridge, Cambridge University Press, 1975, reimps. com corr. 1979. [LA] Gregory Brown, "Miracles in the Best of All Possible Worlds: Leibniz's 365



                   

Dilemma and Leibniz's Razor" in History of Philosophy Quarterly, University of Illinois Press, 19951, Vol. 12, Nº. 1, pp. 19-39. James C. Brown, "John Toland’s Letters to Serena: From the Critique of Religion to the Metaphysics of Materialism" in Anthony Paul Smith and Daniel Whistler, ed., After the Postsecular and the Postmodern: New Essays in Continental Philosophy of Religion, Newcastle upon Tyne, Cambridge Scholars Publishing, 2010, pp. 44-63. E. A. Burtt, The Metaphysical Foundations of Modern Science, Doubleday, N. Y., ed. Garden City, 1954; Mineola, New York, Dover Publications, 2003. [MF] Ronald S. Calinger, "The Newtonian-Wolffian Controversy: 1740-1759" in Journal of the History of Ideas, Vol. 30, Nº 3, University of Pennsylvania Press, Jul.-Set. 1989, pp. 319-330. Adelino Cardoso, org., O envolvimento do infinito no finito, Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 20065. Adelino Cardoso, Leibniz segundo a Expressão, Lisboa, Ed. Colibri, 199210. Adelino Cardoso, José M. de Miranda Justo, org., Sujeito e Passividade, Lisboa, Ed. Colibri, 200312. Adelino Cardoso & Laura E. Herrera Castillo, Coord. Cient., O surgimento da ciência moderna na Europa: G. W. Leibniz, in Cultura - Revista de História e Teoria das Ideias, IIª Série, Vol. 32, Lisboa, Ed. Húmus/CHC, 2013. Adelino Cardoso, O Trabalho de mediação no pensamento leibniziano, Lisboa, Ed. Colibri, 20051. Adelino Cardoso, Vida e perceção de si, Lisboa, Ed. Colibri, 20084. I. Bernard Cohen, George E. Smith, ed., The Cambridge Companion to Newton, Cambridge. Cambridge University Press, 2002, 2004. I. Bernard Cohen, "The first english version of Newton's Hypotheses non fingo" in Isis, The University of Chicago Press, 19629, Vol. 53, Nº 3, pp. 379-388. I. Bernard Cohen, "Newton's Copy of Leibniz's Théodicée: With Some Remarks on the Turned-Down Pages of Books in Newton's Library" in Isis, The University of Chicago Press, 19829, Vol. 73, Nº 3, pp. 410-414. I. Bernard Cohen, Introduction to Newton's 'Principia', Cambridge, University Press, 1971. Louis Couturat, La logique de Leibniz d’aprés des documens inédits, Paris, PUF, 1901; Hildesheim, Georg Olms Verlagsbuchhandlung, 1969. [LL] José R. Croca, Rui N. Moreira, Diálogos sobre Física Quântica – Dos Paradoxos à Não-Linearidade, 1ª ed., Lisboa, Esfera do Caos, 20075; 2ª ed. 20105. Gilles Deleuze, Le pli – Leibniz et le Baroque, Ed. Minuit, 1988; tr. port. Luiz B. L. Orlandi, A dobra: Leibniz e o Barroco, Campinas, Papirus, 1991. Betty Jo Teeter Dobbs, The Foundations of Newton's Alchemy, New York, Cambridge University Press, 1975, re-issued 2008. [FA] B. J. T. Dobbs, "Newton's Alchemy and His Theory of Matter" in Isis, The University of Chicago Press, 198212, Vol. 73, Nº 4, pp. 511-528. [NM] Edward Dolnick, The Clockwork Universe - Isaac Newton, the Royal Society, and the Birth of the Modern World, New York, HarperCollins Publishers Inc., 2011. [CU] François Duchesneau, Leibniz et la méthode de la science, Paris, Presses Universitaires de France, 19933. Steffen Ducheyne, "Isaac Newton's 'Of the Church' manuscript description and 366

                  



analysis of Bodmer Ms. in Geneva" in European Journal of Science and Theology, 20096, Vol. 5, Nº. 2, pp. 25-35. [OC] William Eamon, Science and the Secrets of Nature, Princeton, New Jersey, Priceton University Press, 1994. [SN] J. P. Ferguson, An Eighteenth Century Heretic: Dr. Samuel Clarke, Kineton, The Roundwood Press, 1976. [EH] James E. Force, Richard H. Popkin, Essays on the context, nature, and influence of Isaac Newton's Theology, Dordrecht/Boston/London, Kluwer Academic Publishers, 1990. [EC] James E. Force, "Hume and the Relation of Science to Religion among Certain Members of the Royal Society" in Journal of the History of Ideas, University of Pennsylvania Press, 198410/12, Vol. 45, No. 4 (Oct. - Dec., 1984), pp. 517-536. James E. Force, William Whiston – honest newtonian, New York, Cambridge University Press, 1985. Daniel Garber, Leibniz: Body, Substance, Monad, New York, Oxford University Press, 2009. José Ortega y Gasset, Obras Completas, 1962, 2ª ed., Madrid, Revista de Occidente, 1965, Tomo VIII, La Idea de Principio en Leibniz y la Evolucion de la Teoria Deductiva, pp. 59-356. Fernando Gil, "A suposição de Samuel Clarke" in Revista da Faculdade de Letras, Série de Filosofia, Porto, 1985, 2ª série, nº 2, pp. 83-122. James Gleick, Isaac Newton, New York, Pantheon Books, 2003; New York, Vintage Books, Random House, 20046. Edward Grant, Much Ado about Nothing, Cambridge & other pl., Cambridge University Press, 1981; dig version, 2008. Henry Guerlac and M. C. Jacob, "Bentley, Newton, and Providence: The Boyle Lectures Once More" in Journal of the History of Ideas, University of Pennsylvania Press, 19697/9, Vol. 30, Nº. 3, pp. 307-318. Martial Gueroult, Leibniz, Dynamique et Métaphysique, Paris, Aubier – Montaigne, 1967. [LM] A. Rupert Hall and Marie Boas Hall, "The Intellectual Origins of the Royal Society. London and Oxford" in Notes and Records of the Royal Society of London, The Royal Society, 196812, Vol. 23, Nº. 2, pp. 157-168. A. Rupert Hall and Marie Boas Hall, "Newton's Theory of Matter" in Isis, 19606,Vol. 51, Nº. 2, pp. 131-144. A. Rupert Hall, Philosophers at War – The Quarrel Between Newton and Leibniz, Cambridge, Cambridge University Press, 1980, 2002. [PW] Marie Boas Hall, "The Royal Society's Role in the Diffusion of Information in the Seventeenth Century (1)" in Notes and Records of the Royal Society of London, The Royal Society, 19753, Vol. 29, Nº. 2, pp. 173-192. James Harris, Of Liberty and Necessity, Oxford, Oxford University Press, 2005. Glenn A. Hartz, Leibniz’s Final System - Monads, Matter and Animals, New York, Routledge, 2007. Martin Heidegger, “Aus der letzten Marburger Vorlesung” in Zeit und Geschichte, Tübingen, 1964; Trad. port. Ernildo Stein, Sobre a essência do fundamento – A determinação do ser do ente segundo Leibniz – Hegel e os gregos, São Paulo, Livr. Duas Cidades, 1971. Martin Heidegger, Metaphysische Anfangsgründe der Logik im Ausgang von Leibniz, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1978; tr. ingl. Michael Heim, 367

              

  

The Metaphysical Foundations of Logic, Bloomington/Indianapolis, Indiana University Press, 1984; tr. cast. Juan José García Norro, Principios metafísicos de la lógica, Madrid, Ed. Síntesis, 2009. John Henry, "Henry More" in The Stanford Encyclopedia of Philosophy, Edward N. Zalta (ed.), Fall 2012 Edition, URL = . Van Alan Herd, The Theology of Sir Isaac Newton, Norman, Oklahoma, ProQuest, 2008. Rob Iliffe, Newton: A Very Short Introduction, Oxford, New York, Oxford University Press, 2007. [NV] J. A. Irving, "Leibniz' Theory of Matter" in Philosophy of Science, The University of Chicago Press, 19364, Vol. 3, Nº. 2, pp. 208-214. Margaret C. Jacob, The Newtonians and the English Revolution, Ithaca, Cornell University Press, 1976. [ER] Max Jammer, Concepts of Force – A Study in the Foundation od Dynamics, Cambridge, Massachussets, Harvard University Press, 1957; Mineola, New York, Dover Publ., 1999. [CF] Max Jammer, Concepts of Mass in Classical and Modern Physics, Cambridge, Massachussets, Harvard University Press, 1961; Mineola, New York, Dover Publ., 1997. Nicholas Jolley, ed., The Cambridge companion to Leibniz, Cambridge – New York – Melbourne, Cambridge University Press, 1995. Alexandre Koyré, I. Bernard Cohen, "The Case of the Missing Tanquam: Leibniz, Newton & Clarke" in Isis, The University of Chicago Press, 196112, Vol. 52, Nº. 4, pp. 555-566. Alexandre Koyré, Études galiléennes, Paris, Hermann, 1966; trad. port. Nuno Ferreira da Fonseca, Estudos Galilaicos, Lisboa, Pub. Dom Quixote, 19865. Alexandre Koyré, Études newtoniennes, s/l, Éd. Gallimard, 1968, reimpr. 1980. [EN – mesmo os artigos traduzidos do inglês terão sido reformulados pelo autor] Alexandre Koyré, From the Closed World to the Infinite Universe, Baltimore, The John Hopkins Press, 1957. [IU] Alexandre Koyré, trad. fr. Raissa Tarr, Du monde clos à l’univers infini, Presses Universitaires de France, 1962; s/l, Éditions Gallimard, 1973; trad. port. Jorge Pires, Do mundo fechado ao universo infinito, Lisboa, Gradiva, s/d. Alexandre Koyre, "An Unpublished Letter of Robert Hooke to Isaac Newton" in Isis, 195212, Vol. 43, Nº. 4, pp. 312-337. Thomas S. Kuhn, "The function of dogma in scientific research" in A. C. Crombie (ed.), Scientific Change (Symposium on the History of Science, University of Oxford, 9–15 July 1961), New York and London, Basic Books and Heineman, 1963. [FD] Thomas S. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, Chicago, The University of Chicago Press, 1962, 1970, 3rd. ed., 1996. Imre Lakatos, ed. John Worrall and Gregory Currie, The methodology of scientific research programmes, Cambridge, Cambridge University Press, 1978; reimpr., New York, 1989. [MS] Imre Lakatos, Philosophical Papers I, Press Syndicate of the University of Cambridge, 1978; tr. port. Emília Picado Tavares Marinho Mendes, História da Ciência e suas recontruções racionais e outros ensaios, Lisboa, Edições 70, 19984. 368

     

     

      

Brandon Look, "Leibniz and the Substance of the Vinculum Substantiale" in Journal of the History of Philosophy, Baltimore, The Johns Hopkins University Press, Vol. 38, nº 2, 20004, pp. 203-220. Frank E. Manuel, The Religion of Isaac Newton, Oxford, Oxford University Press, 1974. [RI] J. E. McGuire e P. M. Rattansi, "Newton and the 'Pipes of Pan'", in Notes and Records of the Royal Society of London, 196612, Vol. 21, nº 2, pp. 108-143. [PP] D. Bertoloni Meli, "Caroline, Leibniz, and Clarke" in Journal of the History of Ideas, University of Pennsylvania Press, 19997, Vol. 60, No. 3, pp. 469-486. [CL] Domenico Bertoloni Meli, Equivalence and Priority: Newton versus Leibniz, Oxford, Oxford University Press, 1993; Clarendon Press, repr. 2002. [EP] António Pedro Mesquita, "A dupla subsunção da figura do homem em Leibniz – acerca da impossibilidade de uma antropologia monadológica” in coord. Leonel Ribeiro dos Santos, Pedro M. S. Alves e Adelino Cardoso, Descartes, Leibniz e a modernidade, Lisboa, ed. Colibri, 1998. Louise Diehl Patterson, "Hooke's Gravitation Theory and Its Influence on Newton. I: Hooke's Gravitation Theory" in Isis, The University of Chicago Press, 194911, Vol. 40, Nº. 4, pp. 327-341. Louise Diehl Patterson, "Hooke's Gravitation Theory and Its Influence on Newton. II: The Insufficiency of the Traditional Estimate" in Isis, The University of Chicago Press, 19503, Vol. 41, Nº. 1, pp. 32-45. Thomas C. Pfizenmaier, The trinitarian theology of Dr. Samuel Clarke (16751729): Context, sources, and controversy, Pasadena, California, U.M.I.,19931. [TT] Pauline Phemister, Leibniz and the Natural World, Dordrecht, Springer, 2005. Karl Popper, Conjectures and Refutations, Londres, Routledge & Kegan Paul, 1963. Karl Popper, Logik der Forschung, 1934, Fünfte Auf., 1973; The Logic of Scientific Discovery, Londres, Hutchinson & Co., 1959, 1968, 6th. impr., 1972; trad. port. Leonidas Hegenberg, Octanny Silveira da Mota, A Lógica da Pesquisa Científica, 2ª ed., São Paulo, Ed. Cultrix, 1974. Karl Popper, Postscript: After Twenty years, Londres, Hutchinson, 1956, 19821983; trad. port. Nuno Ferreira da Fonseca, Pós-escrito à Lógica da Descoberta Científica, Lisboa, Pub. Dom Quixote, 1987-1989. André Robinet, "L'abbé de Catelan, ou l'erreur au service de la vérité" in Revue d'histoire des sciences et de leurs applications, Vol. 11, Nº 4, 1958, pp. 289-301. Paolo Rossi, La Nascita della Scienza Moderna in Europa, Roma-Bari, Editori Laterza, 19973; trad. franc. Patrick Vighetti, La naissance de Science moderne en Europe, Paris, Éd. Seuil, 19995. [SM] Bertrand Russell, A Critical Exposition of The Philosophy of Leibniz, 1900; Nottingham, Spokesman, 2008. [CE] Adriana Veríssimo Serrão, ed., Philosophica, Lisboa, Ed. Colibri, 20114, nº 37, Leibniz. Steven Shapin, "Of Gods and Kings: Natural Philosophy and Politics in the Leibniz-Clarke Disputes" in Isis, The University of Chicago Press, 19816, Vol. 72, Nº. 2, pp. 187-215. Steven Shapin, The Scientific Revolution, Chicago, The University of Chicago Press, 1996. 369

  

 

       





Lawrence Sklar, Space, Time, and Spacetime, Berkeley, University of California Press, 1974, 1977, reimpr. 1984. [SS] Stephen David Snobelen, “To discourse of God: Isaac Newton’s heterodox theology and his natural philosophy” in Paul B. Wood, ed., Science and dissent in England, 1688-1945, Aldershot, Hampshire, Ashgate, 2004, pp. 39-65. Stephen D. Snobelen, "«God of Gods, and Lord of Lords»: The Theology of Isaac Newton's General Scholium to the Principia" in Osiris, The University of Chicago Press, 2001, Vol. 16, Science in Theistic Contexts: Cognitive Dimensions, pp. 169-208. Stephen D. Snobelen, "Isaac Newton, Heretic: The Strategies of a Nicodemite" in The British Journal for the History of Science, Cambridge University Press, 199912, Vol. 32, Nº. 4, pp. 381-419. [NS] Stephen David Snobelen, "Isaac Newton, Socinianism and «The One Supreme God»" in M. Mulsow, J. Rohls, ed., Socinianism and Arminianism. Antitrinitarians, calvinists and cultural exhange in seventeenth-century Europe, Leiden, Boston, Brill, 2005, pp. 241-298. Viriato Soromenho-Marques, Razão e Progresso na filosofia de Kant, Lisboa, Edições Colibri, 199812. Ezio Vailati, Leibniz & Clarke - A Study of their Correspondence, New York/Oxford, Oxford University Press, 1997. [LC] Vadim Vasilyev, “Hume: Between Leibniz and Kant (The role of preestablished harmony in Hume’s philosophy)” in Hume Studies, University of Western Ontario, 19934, Volume XIX, Number 1, pp. 20-21. Richard S. Westfall, Never at Rest - A Biography of Isaac Newton, New York, Cambridge University Press, 1980, 20th. pr. 2010. [NR] Richard S. Westfall, "Newton's Marvelous Years of Discovery and Their Aftermath: Myth versus Manuscript" in Isis, The University of Chicago Press, 19803, Vol. 71, Nº. 1, pp. 109-121. D. T. Whiteside, "Isaac Newton: Birth of a Mathematician" in Notes and Records of the Royal Society of London, The Royal Society, 19646, Vol. 19, Nº. 1, pp. 53-62. D. T. Whiteside, "Newton's Marvellous Year: 1666 and All That" in Notes and Records of the Royal Society of London, The Royal Society, 19666, Vol. 21, Nº. 1, pp. 32-41. Jeffrey R. Wigelsworth, "Samuel Clarke's Newtonian Soul" in Journal of the History of Ideas, University of Pennsylvania Press, 20091, Vol. 70, Nº. 1, pp. 4568. Maurice Wiles, Archetypal Heresy – Arianism through the Centuries, Oxford, Clarendon Press, 1996. [AH] Elhanan Yakira, "Time and Space, Science and Philosophy in the LeibnizClarke Correspondence" in Studia Leibnitiana - Zeitschrift für Geschichte der Philosophie und der Wissenschaften, Stuttgart, Franz Steiner Verlag, Band XLIV, Heft 1, 2012, pp. 14-20.

370

Índice remissivo [Incluindo variantes em género e número, substantivo (nome próprio, caso não se refira corrente com o seu nome) e adjetivo correspondente, corrente e seguidor da corrente, faculdade e ato, concreto e abstrato, sob a designação de referência] 176-184, 186-191, 197, 199, 205-206, 212-221, 226, 230, 232-235, 237, 243-247, 250-252, 255, 257, 264, 274, 319, 326, 355 Alma do Mundo 16, 33, 90-92, 196, 198, 202, 215, 307, 355 alquimia 10, 85, 121, 265, 288, 330, 332, 335, 337, 344, 351 Alves .......................................................... 5, 320 amálgama...................................... 161, 216, 255 amor .......................................... 47, 67, 280, 292 análise 6, 20, 23, 26, 44, 61, 76, 82, 88, 95, 107, 126-128, 194, 201, 214, 224, 236, 265, 275, 281, 298, 321, 323, 326-327, 357 analítico................................................... 20, 126 analogia 19, 33, 87, 89, 91, 93, 101, 110, 112-113, 132, 147, 164-166, 171, 173, 190, 199, 217, 221, 234, 244, 290, 326, 334-335, 337-338, 358 anglicana .. 8, 200, 222, 241, 275, 300, 303, 345 animal/animado 13, 32-33, 39, 55, 60, 63, 73, 76, 87-89, 131, 147-151, 157, 168, 171, 178, 184-185, 187, 202, 205, 216, 223, 232-235, 237, 243, 245-246, 250, 271, 320, 326, 338 aniquilação .............. 97, 140, 167, 179, 214, 224 anjo 32, 54, 73, 131, 137-138, 179, 199, 217, 223-224, 229, 257 antediluviana ................................................ 306 anticartesiana ............................................... 261 Anticristo ....................................... 158, 209, 210 antidogmatismo ..5, 310-311, 314, 318-319, 342 Antigos .......................................... 108, 117, 162 Antiguidade ................... 142, 276, 285, 290, 348 antipapista .................................................... 313 antitética ............................................... 106, 325 antitrinitarismo ..................................... 200, 298 aperfeiçoamento........................................... 212 apetite .............................. 71, 148, 151, 251-252 Apocalipse ......................................209-210, 288 apodítica ............................................... 109, 311 arbitrariedade 39-40, 42, 51, 61-62, 70, 72, 134, 136, 146, 175, 181, 209, 214, 217, 224, 234, 264, 330, 356 arbítrio ...................... 17, 55, 187, 197, 213, 358 argumentação 7, 12, 15, 22, 26-27, 29, 31-35, 38-39, 42, 45, 48-49, 51-52, 54-55, 57, 59, 61-63, 65, 76, 83, 92, 95, 98, 100, 108-109, 111, 113-118, 120-123, 126-129, 131-134, 136, 138-140, 142-143, 145-146, 153, 159, 162-163, 166-167, 171, 188-190, 193-194, 199-200, 205, 207, 214, 216, 218, 220, 222, 230, 232, 234, 237, 240-242, 250, 254-255,

A a posteriori ......................................... 21, 23, 44 a priori ..............21, 23, 35, 43-44, 137, 232, 325 Abraão .......................................................... 306 absoluto 13, 20, 27, 36-42, 44, 47, 49, 51, 53-54, 57, 62, 65, 72, 75, 83, 85, 87, 89, 92, 96-99, 103-108, 110, 112-114, 116, 124, 126-135, 137-139, 141-142, 147, 152, 154-157, 162, 164, 166, 168, 170, 172, 187, 200, 216, 236-237, 241-242, 249, 253, 260-261, 268, 270-273, 294, 301, 318, 320-321, 328, 330, 350, 353, 356, 358 abstração 11, 24-25, 28, 35, 57-59, 66, 79, 80, 87, 94, 96, 103-105, 107, 109, 111-112, 114-115, 117, 122, 131, 141, 144, 152, 162, 202, 208, 229, 253, 261, 274, 278, 282, 310, 357 absurdidade 31, 39, 57, 64, 86, 116, 121, 156-157, 165, 167-168, 189, 210, 229, 230, 269, 279, 281, 312, 331 academia 5, 8, 20, 218, 313, 316, 319, 343, 351-352, 354 Académie ...................................... 313, 315, 336 ação/agente/ato 13, 31, 35, 37-39, 41-42, 48-49, 51-55, 57-63, 65, 67-68, 70-77, 79-81, 83, 85, 88, 102-103, 124, 127-128, 148, 161, 163, 165, 169, 173-175, 177-178, 181, 185, 187-188, 190, 194-195, 197, 200, 202, 205, 212, 216, 223, 228, 230, 235, 242, 247, 249, 250, 253, 256, 259, 262, 264-266, 270-271, 283, 289, 297, 298, 310, 321, 355-356 acaso 36, 52-53,63-65, 71, 91, 129, 240, 314, 341-342, 355-356 acidente 14, 46, 96, 112, 115, 167, 230, 240-241, 246, 252, 254, 347 acrítica .......................................... 310, 342, 354 ad populum................................................... 319 Adams ..........................................9, 44, 235, 238 Adão ............................................................. 306 adequação 6, 21, 30, 32, 40, 88, 121, 127, 129, 184, 198, 242, 292, 305, 328, 349, 352, 354 adoração ....................................... 277, 291, 349 Agostinho ............................................... 34, 212 agregado ........................147, 150, 237, 245, 255 água ..71, 118-119, 120, 123, 135, 140, 142, 334 Aiton 8, 201, 233, 267, 281, 312-315, 318, 338, 352 alma 7-8, 13, 16-17, 28, 37-38, 46, 49-50, 61-63, 66, 69, 74-76, 79, 85, 89-91, 97-100, 102, 108, 141, 146-147, 148-150, 161-174,

371

260, 263, 277, 283-285, 287, 292, 295, 297, 306, 309-310, 316, 320, 325, 340, 347 arianismo ........ 289, 292, 298-300, 302-304, 349 Ariew .......................................17, 101, 108, 257 Ário ............................................... 292, 299, 300 Aristóteles 18, 73, 74, 86-87, 87, 109, 115, 117-118, 121, 124, 140, 215, 218, 224, 239, 243, 289, 290, 314, 317, 322, 327, 351 Arnauld 11, 24, 45, 152, 183-185, 201, 218-219, 245-247, 249, 268, 280-281, 312-314, 318-320 Arquimedes ...................................15, 17, 25, 53 arquiteto ....................................................... 204 arquitetónica ................... 11, 20-21, 35, 76, 354 artífice ................................................... 194-195 astro................. 49, 195, 212, 233, 347, 349, 358 astrológicas..................................................... 49 astronomia 9, 135, 142, 264, 281, 290, 297, 306, 312, 335, 339, 347, 356 Atanásio .................................285, 291, 299, 300 ateísmo 142, 194, 277, 283, 289, 295, 340, 347, 350, 355 atividade 13, 53, 55-56, 59-60, 71, 89, 108, 121-123, 133, 136, 139, 145, 147-148, 150-151, 162, 176, 187, 193, 195-197, 208, 220, 224, 235-236, 244, 248-253, 258-266, 270-273, 288, 302, 310-311, 313, 315, 330, 351, 353, 355, 358 Ato de Tolerância ......................................... 286 atomismo 13, 85, 87, 117, 122, 142, 144, 149, 152, 218, 275, 352, 356 átomo 12, 19, 27, 64-65, 85, 99, 108, 111, 116, 132, 141-149, 151, 167, 191, 218, 272, 321, 336, 339 atração 28, 64, 90, 121, 145, 158, 189, 218-219, 221, 225, 227, 230-231, 262-263, 265, 338-339, 354, 358 atributo 23, 29, 31, 41-42, 56, 86-87, 92-99, 102-103, 106, 112-113, 129, 132, 161, 166-167, 170-173, 198, 204, 210, 249, 277, 298 autómato ........................... 31, 72, 198-199, 205 autoridade 18, 24, 28, 55, 118, 153, 165, 171, 209, 230, 234, 240, 245, 281, 284-285, 290, 292, 298, 304, 309, 311, 314, 317-318, 322, 327, 336, 339 autoritarismo ......................................... 327-331 Averróis ........................................................ 117

Barrow..................................................... 97, 275 Bayle 11, 17, 49, 70, 72, 181, 196, 199, 203, 219, 225, 234, 268, 270, 272, 314, 352 Belaval ........... 11, 25, 65, 86, 180, 235, 244, 311 beleza .............................................. 39, 182, 186 Benedetti ...................................................... 351 Bentley 90, 119, 136, 158, 209, 227, 229-230, 263, 293, 297, 303, 305, 308, 347 Berkeley .................. 90, 115, 139-140, 240, 257 Bernoulli ................................ 149, 271, 334, 349 bestas ............. 38, 63, 74-76, 108, 110, 188, 356 Bíblia 207, 209-210, 215, 278, 283-285, 287-289, 291, 294-295, 299 bondade .......................................................... 31 Boscovich ...................................................... 353 Bourguet ................................................. 31, 156 Boyle 8, 20, 29, 30, 42, 46, 54, 60, 85, 93, 119-120, 163-164, 209, 227, 230, 232-233, 272, 275-277, 303, 310, 317, 328-329, 332-336, 342-344, 346-349 bramânicos.................................................... 278 Brewster ............ 9, 274, 287, 291, 298, 338, 341 Broad .................................... 80-81, 85, 115, 236 budismo ........................................................ 216 Bulkeley ........................................................... 55 Buridan .................................... 53, 57, 68, 73, 85 Burnet(t)........... 82, 212, 272, 287, 294-295, 314 burro .................................. 53, 57, 68, 73-75, 85 Burtt ................................. 97, 109, 329, 341-342 C cabalistas................................................. 95, 287 Cajori ............................................................. 290 cálculo 9, 11-12, 16, 109, 139, 174, 194, 203, 232, 295, 307, 309, 322, 324, 333, 335, 340-342, 350, 358 Calvino .................................... 61, 299, 302, 345 Capella ............................................................ 16 Cardoso .................... 5, 23, 25, 30, 33, 235, 311 Carnap ........................................................... 341 cartesianismo 8, 24, 28, 45-46, 54, 85, 89, 97, 109, 113, 118, 120-121, 123, 137, 145, 161, 165, 173, 180, 182, 186, 190, 193, 197-198, 207, 233, 243, 259-260, 262, 269-271, 276, 308, 314, 316-317, 320, 331, 342, 348-350, 353, 355 caseiro ................................................... 198, 204 castigo .................. 50, 73, 82, 213-214, 289, 312 Catelan .................................................. 269, 352 catolicismo 85, 201, 239, 280-281, 285, 287, 296, 311, 315, 350, 353 causa 9-11, 13, 15, 18-22, 24, 28-29, 34, 37-38, 41, 43-44, 46-51, 54-55, 58-65, 71-73, 75, 78, 80-81, 85, 90, 93, 95, 97, 99, 103, 110, 115, 118, 122-124, 126-127, 129, 131, 133, 135-141, 144, 146, 148, 150-151, 161-162, 168, 171, 174, 178, 180-182, 184, 186-190,

B Bacon 20, 110-111, 168, 314, 332, 338, 343-344, 351 Baily .............................................................. 329 balança 15-17, 21, 25, 51-54, 56, 62, 65, 67-73, 77, 81, 132 balde ..................................................... 135, 139 barco....................................................... 34, 135

372

198-200, 204, 207, 214, 216-217, 220, 226, 228-230, 239, 244, 246, 250-251, 261-269, 271, 273-275, 283, 288-290, 292, 300-301, 310-311, 313, 315-316, 329, 331, 336, 339, 343-344, 346-347, 351, 354-357 celeste ... 117, 120, 123, 135, 200, 224, 356, 358 censura .................................. 312, 315, 318-319 centrífuga ..................................... 140, 263, 267 centrípeta ..................................... 135, 221, 267 cérebro ............. 87, 165-166, 169-170, 172, 176 certeza 5, 7, 10-11, 20, 24, 41, 47, 49, 61, 64, 66, 72, 74, 78-79, 81, 85, 87, 101, 105-109, 112, 125, 127-128, 144-145, 161-162, 168-169, 174, 186, 190, 195, 218-219, 221-222, 228, 233, 246, 252, 275, 283-284, 286, 288-289, 298, 300, 309-311, 321, 324, 326, 328-331, 336-337, 340, 342, 350, 354-355 ceticismo ...................................................... 310 Chamberlayne .............................................. 349 choque ... 134, 141, 226, 259, 262, 268, 270, 288 Cícero .............................................................. 62 cidade ................................................... 204, 232 ciência 7, 9-11, 14, 18-19, 20, 22, 76, 105, 107, 109, 118, 132, 142, 157, 181, 191, 193, 195, 209, 229, 232, 262, 264, 271, 281, 287-290, 295, 298-299, 305-311, 328-330, 332-333, 339-342, 346, 348-354, 358 cinética ......................................................... 270 circulação............... 119, 163, 182, 233, 267, 338 Clarke 6-9, 12-20, 23-30, 32-42, 45-46, 48, 50-67, 70-71, 74, 76, 78, 80, 83, 85-88, 90-95, 97-101, 104, 106-108, 110-111, 113-121, 124-130, 132-136, 138-144, 146, 153-155, 157-158, 161-175, 177-179, 181, 186-191, 193-197, 199-200, 202-203, 205-211, 214-217, 219, 223-231, 233-235, 240, 242, 246-247, 254-255, 258-264, 269, 275-278, 282-287, 290-292, 294, 296, 298, 300-305, 307-308, 317-318, 320, 324, 330-331, 338-339, 345, 347, 353, 355 Clauberg ....................................................... 180 coesão ................... 137, 144-146, 218, 265, 271 coexistência 27, 33, 104, 111-112, 125, 140, 151, 153, 180, 254-255 cogitata .......................................................... 22 cogito .......................................22, 169, 180, 188 Cohen 16, 88, 90, 95, 119, 123, 261, 263-265, 288, 290, 329, 341-342 colisão ............................................. 85, 253, 272 Collins 8, 14, 55, 58, 60, 62-63, 65, 83, 99-101, 162-164, 166-168, 170-171, 173, 190, 206, 220, 229 cometa 15, 40, 120, 123, 220, 226, 232, 288, 338, 358 Commercium Epistolicum ......125, 308, 335, 338 Companhia de Jesus ...... 239-240, 280, 315, 318

compatibilismo ................................60, 356-357 completo 6, 13-14, 28, 32, 35, 39, 42, 54, 70, 79, 81, 83, 108, 129, 133-134, 138, 145, 169-170, 175, 184, 188, 193, 196, 203, 205, 238, 241, 243, 249-250, 252, 274, 278, 303, 315, 356 composto 13, 32-33, 35, 70, 86, 100-101, 109-110, 121-123, 144-145, 147, 150, 155, 168, 170, 184-185, 199, 205, 216, 233, 238-239, 242-243, 247, 249, 250-254, 272, 274, 334, 346, 350 compromisso.......................... 309, 312-313, 355 comprovação .................. 32, 132, 321, 323, 333 Comte .................................................... 311, 341 comunicação 13, 53, 87, 89-91, 133, 141, 161, 163-165, 168-169, 171, 173-174, 183, 187, 189, 197, 218, 220-221, 226, 230, 246, 251, 255, 262, 301, 308, 332, 334, 340, 355 concreto 24-25, 28, 34-35, 45, 59, 86-87, 94, 103-109, 115, 122-123, 130-131, 150, 152, 202, 245, 264, 267, 274, 296, 330, 356 confirmacionismo ......................................... 298 confissão ............... 201, 211, 222, 240, 283, 348 confusão 21, 42, 56, 68-69, 77-78, 81-82, 115, 124, 169, 175, 183, 208-210, 236, 257-258, 261, 271 conjetura 243, 323, 329, 332, 335-338, 340, 342, 344, 354 consequência 19-20, 33, 37, 39, 46-47, 49-50, 52, 82, 92-93, 95-96, 98, 107, 120, 163, 171, 186, 189, 198, 213, 301, 308, 321, 323, 352 conservação 13, 46, 187, 197, 202, 207, 215, 235, 258, 260-261, 265, 270-271, 273, 356 conspirante 32, 50, 123, 144-145, 186, 219, 271 Conti 8-9, 11-12, 174, 309, 333, 338-339, 348-349, 352 contingente 13, 22-23, 36-37, 40, 42-45, 47-48, 66, 70, 72, 102, 126, 187, 252, 267, 297-298, 301, 311, 325, 327, 356 continuidade 12, 14, 32, 45-46, 69, 72, 75, 81, 101-102, 105, 111-114, 122-123, 131, 133, 156, 158, 176, 180-181, 195-196, 199, 207, 214-215, 218, 220, 223, 230, 235, 238, 253-254, 260, 265, 272, 275, 356, 358 contradição 17, 21-23, 36-37, 39-40, 43-44, 56, 64, 67, 77, 98-100, 106, 108, 116, 130-132, 135, 137, 142, 154-155, 159, 161, 165, 167, 170-171, 187, 203, 211, 229, 235, 239, 241, 255, 304, 329 controvérsia 10, 46, 90, 200, 235, 283-284, 330, 347, 350 conveniência 21, 25, 30, 34-35, 39, 42, 60, 65, 73, 79, 81-83, 94, 286-287, 310 convicção 158, 286, 289, 310, 334-335, 337, 345, 347 Convocação ................................... 200, 286, 299 Conway ........................................................... 99

373

copernicano .................................................. 281 Corão ............................................................ 278 Cordemoy ..................................................... 180 corpo 6, 11, 13, 18, 27-28, 32-33, 35, 37-38, 50-53, 62-63, 68-69, 73, 86, 88-92, 96-97, 99-104, 108-112, 114-115, 117, 120-125, 129, 133, 135-137, 139-141, 144-151, 154, 157, 159, 161, 163-166, 168-169, 171-174, 177-191, 197, 200, 205-206, 208, 212, 216, 218, 220-222, 225-226, 229-233, 235-237, 239-241, 243-245, 247-253, 255-264, 267-271, 273-274, 278, 302, 307, 334, 355, 358 corpúsculo .........................10, 27, 143, 191, 344 correspondência 5, 7-9, 11, 13-14, 16, 20, 23, 25, 32, 34, 44, 46, 54, 59, 61, 75, 77, 80, 94, 98, 106, 112, 115, 117, 132, 134, 137, 139, 143, 149-150, 152, 154, 165, 169, 172, 174-175, 179, 181-186, 201, 218-219, 235, 237-239, 242-244, 246, 248-249, 251, 255-259, 268, 275, 280, 282, 284, 294, 307-308, 311, 319-320, 328-329, 332, 335, 355, 358 corrupção 95, 142, 209-210, 282-283, 285, 289, 293, 298. 330 cósmico.......... 148, 197, 205, 212, 264, 356-357 cosmológico ............. 9, 11, 13, 85, 111, 308, 357 Cotes 10-11, 136, 226, 262, 290, 303, 307-308, 329-331, 347, 354, 358 Couturat 15, 128, 281, 315, 321, 323, 326-327, 333, 335, 340 Crell .............................................................. 304 criação 12-13, 27-28, 30, 37, 41-42, 45-47, 54, 57, 60, 75-76, 86, 127-128, 130-133, 151, 153, 158-159, 177, 181-184, 186-187, 189-190, 193, 195-198, 203-204, 207, 209, 214-215, 217, 220, 223-224, 226, 231-233, 250, 252, 264, 287, 297, 301, 311, 320, 342, 355-358 criança .............................................. 48, 63, 352 criatura 24, 32-34, 42, 45-46, 51, 54, 69, 92-93, 102-103, 111, 143, 156, 159, 166, 181, 187, 204, 207-208, 215, 227, 231, 301-302, 325, 327, 357 crime ................................ 82, 213-214, 291, 311 Cristandade .................................................. 276 cristianismo 47, 162, 193, 201, 211, 238, 240, 264, 276-278, 281, 285, 287, 290, 298, 300, 319, 347, 350-351, 356 Cristo 90, 208, 211, 217, 222, 241, 257-258, 278, 300, 306 crítica 5, 7-8, 10, 15-16, 45, 47, 57, 82, 94, 96-97, 109-110, 117, 139, 161, 164, 172, 174-175, 179-181, 195-196, 199-200, 205, 224-226, 232, 241, 251, 256-257, 269, 286, 295, 300, 304, 308-310, 312, 314, 327, 329-330, 334, 336, 352-353

cronologia ..................................... 302, 306, 330 cruz................................................................ 345 Cudworth 95, 99, 110, 275, 282, 284, 299, 306, 314 D danação 34, 48, 76, 82-83, 194, 212-214, 279, 357 Daniel ... 109, 208, 210, 236, 257, 293, 304, 330 De la Chaise ................................................... 316 De Volder 13, 122, 149, 238, 244, 251, 254, 266, 274, 314 debate 7, 11, 14, 26-27, 51, 94, 98, 106, 217, 240, 243, 309-310, 314, 330, 333, 335-336, 340-342, 344 declinação ..........................................64-65, 144 decreto 45-47, 49, 81, 149, 159, 178, 181, 206, 252, 255, 357 degeneração ..................................209-210, 305 deísmo 46, 194, 199-200, 216, 264, 277, 283, 292-293, 295, 347, 356 deliberação ................. 68, 74, 85, 189, 255, 279 Demócrito ..................................................... 142 demonstração 10, 15, 18, 20, 22, 24, 26, 123, 128, 137, 157, 162, 169, 232, 239, 268, 276, 278, 283, 288, 290, 297, 303, 309, 320, 322, 324, 328, 333, 342, 347, 354 densidade ............................... 119-120, 122, 146 Derham ......................................................... 347 derivativas 13, 22, 141, 149, 236, 248, 251-253, 266, 274 Des Bosses 13, 75, 115, 123, 129, 137, 140, 149-150, 184-185, 235-242, 244-258, 272, 280, 311-315, 318, 324-326 Des Maizeaux .............................. 11, 92, 94, 272 descanso ................................................. 46, 207 Descartes 22, 24, 26, 28, 38, 43, 45, 59, 61, 63, 89-90, 95, 97, 103, 109-110, 113, 122, 124, 140, 143, 147, 153-155, 161, 167, 169, 180, 188, 198, 261, 263-265, 272, 291, 308, 314, 316-317, 329-330, 332, 337, 342, 344, 350 desejo 9, 73, 77-79, 81, 174, 239, 289, 296, 309, 315, 350, 357 desencarnados .............................................. 179 desígnio 15, 35, 40-41, 83, 90, 129, 134, 136, 157-158, 193, 196, 204-205, 207-209, 217, 226, 234, 264, 287, 290, 292-293, 296-297, 303, 313, 330-331, 337, 340, 343, 345, 347, 349, 355-356, 358 destinação ....................................... 47, 194, 212 determinação 13-14, 20, 35, 37, 39-41, 43, 45-46, 48-50, 52, 54-55, 57-62, 67, 70-74, 79-81, 83, 85, 104, 112, 114, 123-124, 127, 130-131, 133-134, 136, 151-158, 164, 172-173, 178, 186-187, 189, 199, 203, 205, 210, 213, 244, 247, 256, 259, 274, 283, 290, 300, 302, 308, 311, 323, 328, 337, 348, 351,

374

355-357 determinismo 17, 37, 50, 58, 80, 164, 186, 255, 345, 357 Deus 7, 12-13, 15-16, 21, 23-24, 26-32, 34-52, 54-55, 57, 59-62, 65, 73-76, 80-81, 83, 85, 87-109, 111, 113, 115, 117, 124, 126-131, 133-137, 140, 143-144, 146-147, 149-150, 153-156, 158-159, 161, 163-174, 177-183, 185-188, 190, 193-210, 212-218, 220, 223-224, 226-227, 230, 232-236, 243, 246, 250, 252, 255-259, 264-265, 274, 277-278, 280-282, 287, 289-290, 293, 295-298, 300-301, 303-304, 306-307, 311, 319, 321, 324-325, 327, 330-331, 336-337, 339-340, 345, 347-350, 353, 355-358 diálogo 157, 191, 243, 261, 281, 313-314, 340, 353 difração ................................................. 121, 191 dinâmica 88-89, 102, 109, 187, 194-195, 225, 253-255, 260-261, 265, 267, 320, 353, 358 dinamismo ............................................ 235, 358 direção ........... 40, 57, 70, 78, 114, 153, 261, 267 discerpção .................................................... 100 Discurso de Metafísica .............11, 184, 216, 291 discussão 11, 17-20, 51, 56, 77, 94, 108, 114, 126, 134, 141, 164, 181, 186-187, 195, 208, 215, 217, 219-220, 255-256, 258, 269-270, 275, 288, 300, 302, 307-310, 315, 329, 333, 340-342, 353-354 dispersão ....................... 183-184, 214, 260, 309 disposição 27, 46, 49, 59, 67-68, 70, 80-81, 87, 110, 177, 195, 197, 225, 233, 357 disputa 10-11, 19, 214, 286, 288-289, 299, 309-310, 314, 324, 329, 340, 343 distinção 13, 17-19, 21, 23, 25, 28, 30, 34, 36-38, 42-43, 46-47, 52-53, 58, 61, 63, 67, 72, 79, 81-82, 85, 87, 91, 93, 99, 100-101, 106, 114-115, 126-127, 129, 134, 137, 141, 144, 149, 161, 164, 167, 170, 172, 176, 179, 185-187, 193-194, 200, 202-204, 221, 226, 229, 247, 252, 261, 266-267, 276, 298, 300, 323, 341, 351, 356 divórcio ........................................... 19, 191, 220 Dobbs................... 16, 90, 95, 217, 265, 332, 334 Dodwell............................... 8, 100-101, 162-164 dogma 16, 239, 274, 277-278, 280, 286, 309-310, 312, 315, 319, 325, 342 dogmatismo 101-102, 158, 208, 223, 239, 257, 280, 298, 309-312, 314-315, 317-320, 322, 327-333, 336, 339-343, 345, 348, 350-353 dogmatista ...................................................... 83 dominação 32, 150, 184-185, 201, 213, 237, 243-244, 247-248, 250, 252, 274, 303, 309, 345, 358 doutrina 20, 132, 200, 229, 282-283, 287, 298, 300, 303, 309, 318-319, 345, 353 dualismo ................................................. 89, 264

Duas notáveis corrupções ............................. 283 Duchesneau .............................................. 20, 44 Dumas ........................................................... 312 Duque de Órleans ........................................... 11 duração 34, 92-93, 95-99, 101-103, 106, 112, 116 dureza .............109, 123, 144-146, 272-273, 334 Dutens ........................................................... 352 E Eamon ........................... 310, 313, 332, 338, 343 Eckhart .......................................................... 318 eclesiásticos .................. 240, 281, 298, 311, 348 ecletismo ....................................................... 311 eco......................... 184, 235, 249-250, 262, 352 economia ........................ 46, 133, 147, 198, 256 ecumenismo .................................. 311, 318, 353 eficiente 37, 43-44, 55, 57-59, 61-64, 71-72, 85, 161, 187, 216, 355-356 elasticidade .....176, 253, 260, 262-263, 272-273 eleição ............................. 52, 194, 289, 330, 349 Eleitorado ...................................................... 319 eletricidade ............. 58, 263, 265, 330, 339, 353 emanações .............................................. 95, 291 emocionalista ................................................ 340 empírico 20, 22, 27, 32-33, 35, 76, 94, 101, 109, 127, 129, 131, 140, 142-143, 158, 176, 191, 207, 211, 232, 260, 278, 289-290, 293, 321, 330, 332-333, 335, 337, 339-342, 345, 351, 353-354, 356 empirismo ....................................... 53, 169, 335 Encarnação ............................................ 190, 238 enciclopédico ................................ 239, 315, 319 encomiástica ......................................... 329, 348 energia .................................................. 270, 273 enteléquia 149, 185, 244, 246, 248-250, 252-253, 255, 273 entendimento 20-21, 50, 55-57, 60, 65, 74, 77-78, 80-82, 86, 102, 105, 107, 113, 133-134, 148, 176, 202, 208, 227, 276, 282, 287, 304, 357 entre-expressão 185-186, 206, 246, 251, 326, 357 entusiasmo 46, 206, 224-225, 278, 287, 296, 302, 313, 320, 340, 345 Epicuro .... 52, 63-65, 71, 129, 141-142, 144, 149 epistemologia 44, 137, 293, 308-309, 310, 320, 323, 326, 348 Erasmo .......................................................... 346 escolástica 28, 97, 132, 147, 162, 180, 193, 206-207, 238-239, 264, 276, 284, 290, 327, 351-353 escolha 13, 15-16, 21, 23, 26, 28, 34-37, 39-41, 43-45, 51-53, 58, 62, 64-67, 72-74, 76-78, 85, 90, 126, 129, 134, 156, 158, 167, 173, 187, 203, 240, 255, 310, 324, 342, 347, 356-357

375

Escritura 109, 157, 206-207, 210, 283-284, 288-290, 292, 296, 298, 301, 303-304, 330, 339, 345, 347-348 esforço 47, 68, 78-79, 140, 157, 211, 222, 239, 251, 253, 267, 305, 311, 315, 332 esotérico ................................................ 351-352 espaço 12-13, 15, 20, 24-25, 27-28, 34, 51-52, 54, 57, 59, 85, 87-93, 95-108, 110-118, 120, 122-135, 137-139, 141-142, 146, 153-155, 158, 161-166, 168-173, 199, 216-217, 242, 254-256, 258, 269, 294, 311, 320-321, 330, 354-355, 357-358 espantalho ................................................ 7, 317 espécie intencional ....................... 180, 221, 230 espiral ........................................................... 212 espírito 5, 12, 28, 30, 36-38, 43-44, 48-49, 58-60, 65-68, 72-73, 75-76, 78-80, 85, 89-90, 97, 99-100, 102, 104, 109, 125, 136, 142, 151, 161, 167, 169, 171-172, 179, 185, 193, 195, 197-198, 200, 204, 206, 212, 230, 235, 256-257, 259, 264, 274, 288, 300, 302, 311, 314-316, 319, 334, 352-357 Espírito Santo ....................................... 290, 301 espontaneidade 36, 63, 73-74, 152, 173, 177-178, 182, 202, 233, 273-274 essência 33, 36, 43-46, 55-56, 69, 75, 89-90, 93, 99, 102, 104, 109, 129, 136, 139, 145, 152, 156, 167-168, 172, 177, 194, 215, 230, 249, 262, 267, 272, 297, 300-301, 307, 327, 344 essencialista.......................................... 287, 299 estoico ........................... 16, 33, 47, 92, 117, 216 estrelas ............................39, 114, 120, 131, 158 éter ..................................10, 121, 233, 263, 338 eternidade 13, 21, 25, 29-30, 34, 41-42, 82-83, 88, 92-97, 100-102, 105-107, 110, 112, 125, 137, 153, 155-156, 182, 184, 208-209, 213-214, 250, 300, 357 Ética .......................................................... 66, 73 euclidiana ..................................................... 139 Eusébio .................................................. 300-301 Evelyn ........................................................... 347 evidência .................................24, 289, 335, 344 evolução 8, 63, 74, 83, 122, 156-157, 212, 239, 243, 251, 314, 340, 350, 354, 358 evolucionismo .............................................. 157 exatidão ..... 23, 44, 175, 182, 256, 307, 324, 337 exegese ................................................. 209, 288 experiência 20-23, 66, 109, 118, 132, 135, 138, 152, 163, 169, 189, 278, 284, 288, 290, 292, 297, 303, 314, 321, 330, 332-337, 339-341, 345, 358 experimento 12, 123, 132, 140, 165, 189, 232, 314, 329, 332, 334, 337-338 experimentum crucis ...................................... 20 expressão 16, 29, 33, 36-37, 39, 41, 43, 52, 58, 60, 80, 85, 92-94, 117, 120, 125, 168, 177-178, 182, 184-186, 206, 215, 228, 246,

249-251, 253, 264, 268, 274, 276, 279-280, 284, 305, 316, 326, 329, 357 extensão 13, 25, 28, 33-34, 49, 87, 89, 95-97, 99-103, 105, 108-110, 118, 122, 125, 133, 136-137, 143, 147-148, 150, 154-155, 161, 163, 167, 170-176, 217, 226, 240-241, 253, 255, 257, 268, 283, 295, 335, 355 F Fabricius .....................................................82-83 fação.......................................................313-314 factos/factual 10-11, 17, 20, 23, 65, 188-191, 207, 251, 296, 310, 333, 335 fanatismo .............................................. 278, 345 fatalidade 13, 15, 36, 38, 47-48, 50-51, 63-64, 80, 124, 153, 178, 188-189, 202-203, 233, 275, 321, 357 fatalismo 13, 15-18, 37-38, 42, 50, 86, 124, 129, 133, 193-194, 356 Fatio de Duillier ............................... 16, 264, 302 fatum..................................................47-49, 203 fé 33, 111, 162, 172, 200, 206-208, 211, 221, 225, 238, 258, 274, 278, 280, 283, 291-292, 309, 315, 331, 341, 345, 348, 351-352, 358 felicidade ................................... 66, 69, 156, 214 Fénelon ......................................................... 312 fenomenismo ........................ 236, 243, 254, 256 fenómeno 11, 13, 17, 22, 38, 93, 101, 105, 109, 115, 123, 127, 135, 137, 139, 148, 150, 184, 188-191, 206, 217, 220, 226, 231, 235, 239-241, 243, 246-247, 252-253, 256, 258, 262, 267, 271, 273, 307, 310, 325, 333, 336, 339, 344, 354, 358 Ferguson 8, 61, 200, 206, 282, 284-285, 300-301 ficção 11, 52-53, 65, 71, 104, 122, 128, 144, 179, 188, 207, 218, 231, 240, 330 fideísmo ................................ 109, 337, 340, 345 Filho ...................................... 282, 300, 302, 304 filojudaicas .................................................... 302 filosofia experimental 21, 23, 287, 289, 310, 328- 329, 332, 336, 338-339, 342, 348 filosofia natural 8, 13, 18, 85, 210, 240, 275, 287, 289-290, 293, 301-303, 305-306, 312, 330, 336, 342, 344-345, 347-349 finalidade10, 12-13, 21, 23, 26, 29-30, 32, 37, 40, 42-44, 46, 57-59, 61-62, 64, 67, 71-73, 75, 80, 85-86, 89-90, 99, 104-105, 119, 126, 128, 136, 139, 141, 146, 150, 157, 162, 169, 178, 184-185, 187, 193-194, 201, 204-206, 208, 210, 212-213, 219, 224, 230-232, 235, 238, 243-244, 246-247, 249, 253-254, 256, 263, 267, 270, 287, 289, 300, 302, 306, 308-309, 311-312, 316, 328, 330-331, 349, 351, 353, 355-357 fineza ..................................................... 118, 121 finito 83, 85, 100, 103, 125, 128, 130, 134, 136,

376

139-140, 150, 154-155, 157-158, 166, 171-173, 213-214, 356 física 8, 11, 13-14, 17-19, 20-21, 24, 28, 34-35, 37-39, 41-44, 53-57, 63, 72, 85, 90, 94-95, 105, 109, 111, 116, 122-123, 126, 128, 133-134, 137, 139, 141, 144, 146-148, 150-152, 161-163, 166, 173-174, 177, 180, 185, 187-188, 191, 193-194, 198, 200, 206, 216-219, 228, 232, 235, 238, 244, 247, 251-256, 258, 265, 269, 273-274, 288-289, 294, 309, 324-325, 334, 336, 342, 344, 348, 351, 353-357 fitness ...................................... 30, 35, 39, 60-61 Flamsteed .............. 328-329, 334, 339, 346, 349 fluidez 97, 118, 120-123, 145-146, 219, 246, 253, 272-273, 356, 358 força 12-13, 18, 20, 24, 38, 47, 62-63, 80, 108, 113, 122-123, 132, 134-136, 138-141, 147-149, 151, 163, 177-178, 187, 193-194, 196-199, 203, 208, 220-224, 228, 230, 235-236, 249, 251-254, 258-274, 282, 286, 290, 301-302, 320, 355, 356, 358 Force 18, 24, 163, 179, 200, 210-211, 227, 229-231, 259-262, 264, 266, 268-269, 275, 283, 286-287, 293-294, 296-297, 302, 337, 345-346, 358 forma 5, 7-8, 10-11, 13-17, 19-25, 27-32, 34-35, 37-39, 44-47, 49, 51, 53-55, 58-60, 65, 70, 74-75, 77-80, 85, 87, 89-93, 95-101, 103, 105-106, 108-109, 111, 113, 116, 119-122, 125-132, 134-136, 138, 141, 143-144, 146-149, 152, 155-159, 162-166, 168-171, 173-174, 177-185, 187-188, 190-191, 193-195, 200-201, 205-206, 208, 211-212, 214, 217, 219, 221-223-227, 232, 235-236, 239-243, 245-246, 248, 250, 252-254, 256, 259, 261, 263-264, 267-270, 272-274, 277-278, 283-284, 288-290, 294, 299-300, 302-303, 306-308, 310-311, 314, 317, 321, 325, 328-330, 333-334, 337, 340-342, 344, 346-347, 349-351, 353-354, 357-358 frankliniano .................................................. 342 freedom ....................... 13, 63, 93, 201-202, 275 fulgurações ................................................... 291

Geulincx ........................................................ 180 Gil ..........................................................174, 222 glândula........................................... 90, 169, 180 gloriosa.................................. 200, 286, 302, 313 gnosiológico ................ 13, 17, 45, 105, 165, 191 gnósticos ................................................. 95, 290 governador ............................. 124, 200, 202-204 governo 92, 185, 193, 196, 199, 201-204, 216, 355 graça 25, 48, 74, 149, 186, 204, 207, 224-225, 229, 350 gradação ....................................... 145, 179, 322 gravidade 20, 66, 90, 119-121, 135-136, 142, 144, 163, 191, 219, 225-226, 230, 262-265, 268, 290, 307, 331, 336, 339 gravitação 7, 13, 18, 40, 65, 136, 141-142, 158, 163, 166, 186, 188-189, 217, 219, 222, 224-225, 226-227, 229, 232-233, 263-265, 290, 302, 308, 323, 331, 339, 350, 353, 358 Gregory 139, 142, 226, 232, 264, 290, 296, 331, 347 Grimaldi................................................. 191, 311 grosseiro ............................................... 121, 300 Grosseteste ................................................... 351 Guéricke ........................................................ 118 Gueroult ................................. 203, 268-271, 273 H habitual 11, 49, 68, 73, 79, 94, 101, 158, 161, 209, 216, 227, 246, 251, 258, 271, 312, 319, 329, 350, 352, 355, 356 Hall ........................ 9, 89, 95, 139, 335, 338, 343 Halley .................................................... 288, 349 Hare....................................................... 299, 350 harmonia 13, 30, 33, 37, 46, 62, 82, 111, 168, 174, 177-179, 182, 185-189, 193, 198-199, 201, 204-206, 215, 223, 231, 235, 243, 249, 256, 273-274, 296, 321, 333, 356-357 Harris ....................................... 61, 264, 341, 347 Hartlib ........................................................... 332 Hartsoeker ..... 132, 218, 219, 220, 308-309, 314 Hawarden ...................................................... 301 heliocentrismo .......................................137-138 herméticos .............................................332-333 heterodoxia ........................................... 240, 298 heurísticos ..................................................... 323 high church.................................................... 345 hipótese 5, 7, 10, 21, 36-38, 41, 43-44, 49, 54, 58, 61, 72, 74, 78, 83, 95, 109, 119, 121, 128-131, 144, 149, 159, 173, 184, 187-190, 220, 233, 236-237, 240, 247, 254-255, 290, 307, 312, 323-324, 329-333, 335-340, 342, 344, 354, 358 história 5, 7, 14, 22, 126, 142, 205-209, 211-212, 216, 225, 243, 276, 288-289, 291, 293, 297, 304, 306, 309, 330, 335, 337, 339, 342, 345, 350, 356-357

G Galileu........................................................... 332 Gassendi ..................................95, 149, 151, 344 Gasset ........................................................... 320 geocentrismo ......................................... 137-138 geológico ...................................................... 294 geometria 19, 37, 43, 89, 109, 122-123, 128, 139, 143, 147, 175, 180, 185, 267, 274, 335, 341-343 Gerberon ............................................... 311-312 Gerhard ..........6-7, 101, 105, 138, 184, 244, 281 gestor.................................................... 198, 204

377

Hobbes ............... 14, 50, 60-61, 71-73, 142, 345 holenmerianismo ........................................... 97 homem/humanidade 8, 13, 22-24, 30, 32-34, 37-38, 41, 44, 48, 54-55, 60-63, 66-67, 71-76, 79-82, 86-87, 104, 108, 110-112, 115, 117, 137, 147, 156-157, 161, 165, 167-169, 171, 178, 187-190, 194, 197, 199-200, 204-208, 210-212, 217, 223-224, 237, 243, 257, 276, 282-283, 285, 287, 297, 304, 319, 330, 336, 341, 348, 352, 355-357 homogeneidade 121-122, 133, 145-147, 151, 330, 356 Hooke ................ 10, 20, 272, 332, 338, 343, 348 Horsley.................................................... 89, 259 Hume ..................... 8, 21, 29, 169, 298, 336-337 Huygens 10, 138-140, 218-219, 232, 267, 332, 339, 344 hypotheses non fingo ........................... 288, 338

ímpeto ........................................... 251, 253, 267 impetus ................................. 185, 253, 267, 351 impossibilidade 11, 20, 25, 27-28, 33, 35, 39, 41-42, 44, 48, 52, 54, 56-57, 60, 62, 73, 102, 124, 129-130, 154, 163, 167, 171, 188, 199, 206, 215, 263, 272, 296, 310, 324 impressão 53, 67-68, 70, 75, 79, 121, 196, 288, 295, 302, 351 inato.................................................22, 176-177 incerteza 131, 146, 184, 195, 234, 255, 298-299, 304, 309 inclinação 36-37, 49, 62, 65, 67-68, 74, 78-81, 95, 204, 211, 217, 240, 242 incompleto ............................. 169-170, 282, 329 incompreensibilidade............ 221, 226, 233, 291 incomunicabilidade ................................. 62, 273 inconsciente ............... 50, 58, 71, 74-75, 81, 357 indefinido ........................................ 70, 103, 155 indeterminação 35, 60, 70, 131, 137, 148, 152, 169, 203, 208-209, 211, 238, 251, 265 Indiferença 13, 48, 51-55, 57-58, 60, 62, 65, 67-71, 80, 85, 108, 122, 126-128, 129, 132-133, 189, 202, 255, 267, 286, 356-357 indiscernibilidade 11, 25, 27-28, 31, 34-35, 52, 57, 87, 108, 126-131, 133-134, 137, 141, 146-147, 153, 320, 324 Indiscerpibilidade 98, 101, 106, 146, 166-167, 355 Indiscerpible .................................................... 99 Individualidade 41, 86, 128, 152, 182, 206, 300, 357 Indivisibilidade 97-99, 101, 123, 143-147, 163, 165-167, 171-173, 330, 334 indução 22, 25, 135, 290, 307, 331, 333, 335, 337-339, 341, 358 inelásticos ............................................. 272, 273 Inércia 43, 89, 135-136, 138-140, 227, 259, 261, 263, 265-268, 321, 358 inevitável 27, 103, 150, 189, 274, 301-302, 353, 356-357 inexplicável ................................... 169, 180, 221 inextenso............................................... 147, 173 Infalibilidade 41, 49, 61, 66, 72, 74, 81, 85, 213, 281, 284, 304, 312, 318, 355 Inferno .................................................... 34, 214 infinidade/infinitude 13, 23, 25-26, 30, 32-35, 44, 46, 50, 57, 75, 83, 88, 92, 94-96, 98-103, 105-106, 110, 117, 122-123, 127-128, 130-132, 134-135, 139, 141, 145, 147, 151, 153-155, 158, 166-167, 169-173, 178, 183-184, 198, 206, 212-213, 215-216, 227, 233, 246, 255, 257-258, 264, 270, 272, 321, 327, 334-335, 357 infinitesimal .................................. 143, 179, 350 infinitistas ...................................................... 117 ingénua ........................... 53, 175, 178, 180, 240 injustiça ................................... 76, 209, 213, 214

I ideal 11, 24, 28, 103-105, 111-113, 117, 130-131, 139, 153-154, 232, 238, 251, 253-254, 284, 309, 318, 324, 332, 343, 349-350, 357 idealismo 89, 109, 133, 161, 164, 174, 180, 184, 191, 235, 238, 240, 256 ideia 21, 25, 39-40, 52, 56, 58, 60, 66, 87, 90, 93, 103-106, 111-112, 125, 127-128, 131, 134, 161, 168-170, 175-176, 180, 196, 203, 207, 211, 257, 280, 314, 326-327, 348 identidade 17, 25, 31, 34-36, 43, 57, 72, 86-87, 126-128, 132, 147, 151, 153-154, 344, 346, 348 Identidade dos indiscerníveis 25, 31, 34-35, 57, 87, 126-128, 132, 147, 153 Idola ............................................... 110-112, 168 idolatria ......................... 285-286, 291, 329, 349 Igreja 8, 200, 222, 239-240, 275, 280, 284-286, 300, 302-303, 305, 311-313, 315, 345, 353, 359 ilusão ................. 71, 86, 103, 175, 325, 337, 351 imagem/imaginação 17, 69, 76, 90-91, 100, 107-110, 117, 143, 165-166, 168-176, 178-179, 185, 190-191, 203, 207, 266, 289, 314, 349, 350, 353, 356 Imanência ................................13, 107, 198, 214 imaterialidade 18, 90, 96, 99, 142, 146, 150, 155, 159, 161-163, 166-167, 171-173, 180, 190, 206, 230, 245, 355, 358 Imensidade 26, 35, 89-90, 92, 94-96, 98, 101-103, 106-107, 135, 171, 173, 284, 298, 331 imortalidade .............. 8, 146, 162, 206, 220, 319 impacto......................................... 139, 261, 273 impenetrabilidade ................................ 136, 226 imperfeição 34, 65, 169-170, 174, 194, 197, 204, 221, 254, 263

378

inobservabilidade ................................. 137, 139 inquietação ................................................ 66-69 insensível .... 54, 67-69, 77, 81, 85, 156, 220, 257 insondabilidade ..... 109, 134, 296-297, 331, 337 Inteligência ...... 16, 195, 215, 217, 224, 308, 358 inteligência supramundana 16, 214-215, 356, 358 inteligível 10, 23, 25, 34, 102, 105, 113, 139, 225 Intelligentia supramundana ................... 46, 215 intolerância....................211, 286, 305, 329, 340 invencibilidade ..................................... 279, 325 irenismo .................................211, 239, 287, 311 irracionalidade 32-33, 73, 75, 162, 209, 285-286, 354

Kant 21, 109, 157, 212, 310-311, 320, 325, 332, 352 Keill ............................................ 9, 232, 295-296 Kepler ..............................43, 138, 193, 261, 266 King .............................. 59-61, 82, 200, 202, 299 Koyré 13, 88, 92, 97, 134, 140, 169, 226, 261, 263, 265, 291, 330, 332, 350-351 Kuhn ......................................303, 310, 342, 351

110-134, 136-159, 161-165, 168-172, 174-189, 191, 193-208, 211-216, 218-253, 255-287, 291-292, 294, 296-297, 302-305, 307-335, 337-342, 346-350, 352-353, 355-356, 358 liberdade 5, 13-15, 17-18, 21, 26, 28, 35-42, 47-48, 50, 52-63, 65-77, 79-80, 82, 85, 90, 93, 107-108, 124, 126, 129, 132-133, 135-136, 141, 148, 152, 158, 161-162, 164, 167, 173, 177-178, 186-188, 193, 199-200, 202, 211-213, 216, 218, 222, 235, 240, 255-256, 268-270, 274-275, 277-278, 289, 293, 298, 301, 304, 312, 316, 321, 324, 332, 336-337, 343, 345, 347, 353, 355-358 libertinagem .......................................... 211, 316 libertismo ...........................................59-61, 356 liberty ............................ 55, 56, 63, 71, 205, 289 Linus ...................................................... 329, 336 lisonja ............................................................ 349 Locke 7-9, 11, 54-56, 60, 62, 66, 68-69, 72, 77, 79, 86, 95, 104, 144-145, 161-163, 167, 169-170, 176, 190, 215, 220, 225, 234, 243, 274, 279, 284, 288, 295-297, 314, 324, 329, 340 lógica 13, 17, 23-24, 35-39, 42-45, 56, 72, 105, 124, 126, 128, 134, 187, 283, 322, 324, 325, 327, 335, 341, 357 Look........................................ 123, 235-236, 258 lugar/local 5, 18-19, 22, 27, 33, 36-37, 39, 43, 51-52, 57-58, 70, 73, 77-78, 86, 88, 90-91, 98, 101, 104, 106-107, 112-115, 120-121, 123, 125-127, 130, 132-134, 150, 153, 159, 166-168, 170, 172, 174, 177-178, 180, 182, 186, 199, 206, 222, 257, 276, 278, 283, 289, 303, 308, 323, 336 Lutero ............................ 211, 222, 299, 318, 346 luz 10, 20, 28, 35, 59, 82, 90, 100, 118, 121, 143, 145, 157, 165, 187, 190-191, 207, 236, 267, 276, 278-279, 307, 330, 333, 337-338, 350, 355

L

M

La Forge ........................................................ 180 Lactâncio............................................... 282, 300 Lady Masham ............................................... 314 Lakatos........................... 331-332, 334, 342, 348 Landgrave 201, 240, 280-281, 303, 313, 315, 319 latitudinarismo 274-276, 284, 286-287, 291, 299, 302-303, 310, 344-345, 347-348, 350 Law ....................................24, 60, 230, 305, 336 lei 21, 24, 37-38, 40, 42-43, 61-62, 85, 112, 120, 122, 134-136, 141, 158, 163, 169, 178, 181-182, 188-189, 199-200, 215, 217, 224-225, 227-231, 233, 246, 256, 260, 289, 306, 310, 324, 329-330, 336, 338, 355 Leibniz 6-83, 85-88, 90-92, 94, 96, 98-108,

magnetismo 20, 54, 58, 118, 239, 263, 265, 330, 339, 343, 353 mal 8, 12, 21, 34, 38, 63, 66, 68, 76, 79-80, 82, 94, 142, 144, 155, 177, 188, 196, 199, 201, 205, 213, 220, 261, 278, 281, 314, 316-317, 321 Malebranche 24-25, 31, 40, 134, 161, 165, 180-182, 219, 225-226, 271, 291, 314, 317 mandamentos ................................. 53, 289, 292 Manuel 80, 95, 125, 142, 158, 206, 208-209, 286-292, 299, 306, 337-338, 340, 348 Maomé .......................................... 277, 280, 347 máquina 15, 28, 37-38, 45, 68, 72, 110, 127, 149, 178, 180, 187-188, 193-194, 197, 199, 204, 231-232, 245-246, 250-251, 255, 264,

J Jacob ..................... 227, 275, 302, 305, 345-348 Jacquelot ...................................................... 205 Jammer .................................. 264, 267, 270-273 Jansen ................................................... 312, 318 jansenismo .................................... 255, 311-312 jesuíta .................................... 239, 311-313, 316 Jesus 82, 162, 209, 225, 277-278, 281, 287, 292-293, 296-297, 299, 305, 316 John Clarke ................................................... 347 judaísmo ....................................................... 277 judicial .....................................50, 174, 322, 335 justiça 73, 80-83, 89, 204, 214, 307, 314, 318-319, 333, 354 K

379

288, 335-336, 356 massa 150, 158, 163, 244-245, 250, 259, 262-263, 266, 270, 272, 274, 358 matemática 9-10, 12, 17-20, 22, 24, 35-36, 42, 59, 97, 104-105, 108-109, 112, 114-115, 117, 122, 126, 129-130, 138-139, 144, 146-148, 152, 162-163, 194, 200, 203, 218, 231-232, 253, 262, 275, 288, 307, 323, 325, 333-334, 342, 347, 349, 356 matéria 13, 18-19, 26, 31-32, 34-35, 37-38, 40, 43, 51, 54, 57-59, 62-63, 65-66, 85, 87, 89-90, 96, 99, 109, 113, 116-127, 133-137, 139-140, 142-155, 159, 161-164, 166-168, 170-173, 178-180, 184, 188-190, 194, 196-198, 202-203, 206, 208, 220, 228, 230, 235-236, 240, 244-246, 251, 253-254, 259, 261-268, 271-273, 281, 283, 289, 297, 299, 310, 312, 321, 324-325, 330, 335, 353, 355-356, 358 materialismo 8, 13, 16-18, 46, 63, 89, 117, 142, 162-164, 168, 189-190, 194, 196, 275 mathesis ......................................................... 20 Maupertuis ................................................... 226 máximo ......................... 26, 30-31, 133, 202-203 Maxwell ........................................................ 347 mecânica 38, 52, 70, 109, 148, 178, 188, 193, 197-199, 202, 219, 226, 230-231, 233, 235, 246, 248, 252, 255-256, 263, 330, 336, 339, 341-342, 348, 352, 357-358 mecanicismo 12-13, 89, 144, 193, 198, 225, 232, 234-235, 256, 272, 275, 331, 336, 356, 358 mecanismo 188, 190, 198, 205, 208, 229, 231, 233-234, 272 Meditações ....................................... 22, 25, 364 melhor 5, 13, 17, 21, 26, 30-32, 34, 36-37, 39, 41, 43, 45-47, 49-50, 60-62, 65-68, 72, 74, 78, 81-82, 87, 95, 97, 103, 106-107, 109, 124, 129, 131, 133, 157, 163, 166, 172, 181, 187, 196-197, 203, 205, 207-208, 211, 213, 246, 255, 261, 283, 291, 296-297, 299, 304, 306-307, 309, 312, 315, 324, 328, 339, 349, 353, 356-358 Meli 12, 139-140, 195, 232, 286, 303, 318, 323, 338, 342 mensagem .......................17, 283, 287, 292, 330 Mercer .................................................. 239, 315 mercúrio ................................................ 118-120 Mersenne ............................................. 343, 348 messiânica .................................................... 348 metafísica 8, 10-13, 16-20, 24, 34, 36-37, 40, 43, 59, 66, 93-95, 108-109, 111, 122-124, 126-129, 132, 135-137, 139, 142-143, 147-148, 150, 158, 162-163, 174, 178, 183-184, 191, 200, 202, 204, 206-208, 217, 232, 238, 243-244, 246, 249, 251, 262, 264, 267, 271, 273, 275-276, 279-280, 284-289,

291, 298-299, 305-307, 309, 320, 324, 326-330, 332, 334-339, 341-342, 348, 353-354, 358 metempsicose ............................................... 179 microscópio ............................. 33, 142, 234, 335 milagre 13, 74-75, 149, 178, 181-182, 186, 188-189, 193, 196, 198, 202, 215, 217-231, 233-236, 238, 241-242, 244, 250, 278, 283, 285, 295-296, 308, 356 milagreira ...................................................... 285 milenarismo 90, 157, 194, 200, 208, 212, 226, 294, 302, 357 minimis et maximis ....................................... 203 Mint......................................................... 11, 335 minúcia...................................................350-352 mistério 33, 65, 78, 144, 190, 221-222, 226, 232-233, 235, 238-239, 244, 246, 251, 279, 285, 291, 340, 354 modo 13, 15, 42, 46-47, 49, 55, 61, 66-67, 92-95, 97-99, 104, 107, 110, 129, 132, 147-148, 161-164, 167, 172-173, 187, 208, 237, 240-242, 246, 248, 252, 255, 263, 265, 267, 290, 356-357 Moisés ........................................................... 306 moles......................................................259-260 mónada 13, 33, 35, 43, 64, 73, 75, 87, 112, 122, 127, 130, 141-142, 147-151, 174, 179-181, 184-187, 199, 206, 236, 243-245, 247-253, 258, 262, 265, 274, 325, 357-358 Monadologia ................................... 23, 149, 204 monarca ................................................ 200, 203 monarquismo ................................................ 300 Montmort ..................................... 334, 345, 348 moral 14, 21, 24, 26, 30-31, 34, 36-39, 41-42, 50, 54-61, 63, 66, 68, 79, 85, 89, 124, 132, 151, 164, 187, 194, 203-205, 209-210, 229, 277, 279, 283, 289, 291, 294, 305-306, 319-320, 355 More 30-31, 89-90, 92, 95, 97-99, 101, 110, 125, 154, 161, 166-167, 169, 171-172, 195, 198, 217, 227, 264, 275, 306, 338 morta ............................................ 267, 270, 273 motivo 26, 32, 37, 43, 52-55, 58-59, 60, 64-65, 67-68, 74, 78-82, 129, 132, 135, 164, 209, 235, 239, 246, 286, 309, 328, 339, 356 motor ......... 89-90, 171, 173, 177, 193, 205, 264 Motte ............................................................ 109 movimento 12, 15-16, 20, 27, 35, 37-38, 40, 43-44, 54, 57, 63, 70, 74, 89, 112-113, 116, 120, 122-123, 134-142, 144-145, 147, 163-164, 167, 171, 178, 183, 188-189, 194-195, 197, 199-200, 202, 204, 218-219, 225-226, 232-233, 247, 253, 256-264, 266-268, 270-274, 281, 312, 321, 329, 341, 356, 358 mudança 68, 104, 112, 121-122, 136, 140, 145, 151, 156, 179, 185, 206, 242, 249, 263, 304

380

mundo 11, 13, 15-16, 23, 25, 28, 30-31, 33-34, 39, 44, 46, 76, 82, 85, 88, 90, 97, 101, 105, 107-111, 118, 124, 127-131, 133-136, 139-141, 143, 146, 153-158, 169, 179-181, 183, 187-188, 193-196, 198-199, 202-212, 214-217, 228, 231-232, 246, 251, 255-256, 258-259, 262, 273, 275, 287, 294, 298, 301-302, 308, 325, 336-337, 344, 347-348, 352, 355-358

265-266, 269-270, 275-278, 282, 285, 287-288, 291-292, 294-298, 301-305, 307-309, 311, 313-314, 323, 328-331, 333-337, 339-342, 344-350, 353-358 Nietzsche ....................................................... 350 nirvana .......................................................... 216 nisus ...................................................... 148, 267 noção completa 28, 35, 73, 81, 85-86, 127-128, 130, 151, 357 noções incompletas .................. 11, 85, 107, 122 Noé .................................................305-306, 348 nominalismo ................................................... 86 normal ............ 303, 332, 342, 349, 351-352, 354 Novos Ensaios 11, 21, 23, 25, 68, 71, 74, 86, 92, 98, 103, 122, 124, 149, 162, 186, 221 Novum Organum..................................... 20, 110 Numa Pompilius ............................................ 142 numero ...................... 28, 76, 130, 144, 244, 252

N natureza 10, 13, 16, 20-22, 24-25, 29-30, 33-34, 37-46, 48, 51-52, 54, 56, 59-61, 63-64, 69, 74-75, 83, 85, 88-89, 90, 93-94, 97, 100, 105-106, 108-112, 115-117, 122, 124, 133, 146-147, 156-157, 162-164, 168, 175, 177-179, 182, 185-187, 189, 191, 193, 195-198, 202, 204, 207, 210, 212-213, 217-218, 220-231, 233, 240, 246-247, 249-250, 258-259, 261-262, 264-265, 267-268, 274-280, 282-284, 287, 289-290, 292-299, 303-306, 311, 318, 324, 326, 328-329, 335-337, 341, 343, 345, 347-348, 350, 354, 356-358 navalha ......................................................... 331 necessidade 5, 10, 13-17, 21, 23, 26, 28-31, 34-44, 47, 49, 51-56, 58, 60-66, 70-72, 74-75, 78, 80-81, 85-87, 92-98, 101, 104-106, 121, 124-126, 128-130, 132, 134, 136, 141, 146, 148, 153, 155, 162, 164-165, 168, 177-179, 182-183, 187-188, 196-198, 201-203, 209, 211, 214-215, 218, 226-227, 229, 232-233, 238-242, 246-247, 262, 264, 266-267, 270, 273, 275, 278-279, 281-282, 288, 290, 293, 297, 301, 303, 306-308, 310, 312, 321-325, 335, 343, 347, 349, 352, 356, 358 necessitarismo 13, 18, 37-38, 42, 50, 54, 61, 71, 80, 97, 124, 129, 133, 193, 255, 357 neoplatónica ..................................... 92, 95, 110 Newton 7-21, 25, 28, 31, 40, 45, 60, 70, 80, 85, 87-100, 102-109, 111, 113, 118-121, 123, 125, 127, 132-136, 138-142, 144-147, 151, 154, 156-158, 161-162, 164-166, 169, 171-172, 174, 178, 181, 186, 190-191, 193-195, 197, 200, 202, 205-210, 216-218, 222-223, 226-234, 240, 258-265, 267, 271-273, 276, 283, 285-294, 296-299, 301-310, 313, 318, 324, 326, 328-342, 344-350, 353-355, 358 newtonianismo 8, 10, 12, 16, 18-20, 35, 40, 54, 61, 85, 88-90, 94-95, 101, 109-110, 116-117, 121-123, 125, 132, 134, 136, 138-142, 146-147, 150, 154, 157, 161-162, 165, 169-171, 173-174, 186, 189-191, 196, 198-201, 205-208, 210-211, 216, 219, 222, 226-227, 229-230, 232, 256, 260-261, 263,

O objeção 5, 10, 13, 15, 19, 26-27, 58, 64, 75, 90, 94, 98, 100-101, 118, 123-124, 139, 141, 153, 164, 167-169, 179, 207, 228, 233, 247, 258, 260, 269, 278-279, 304, 328-329, 333, 337, 352, 355 objeto 26, 34, 53, 59-60, 66, 68, 94, 109, 117, 139, 165, 176, 196, 234-235, 239, 242, 263, 269, 271, 279, 283, 291-292, 308, 311, 325, 334, 342, 345, 352, 356 obra 6-8, 10-12, 14, 16, 21, 30-32, 36, 61, 71-72, 82, 89, 97, 107, 135, 142, 156, 158, 164, 168-169, 194-197, 200-201, 206, 213, 232, 236, 240-241, 243, 253, 257, 280, 282, 284, 288-289, 299, 307-308, 311, 329-330, 335, 339-340, 347, 349-350, 358 obscurantismo .............................................. 230 obscuridade .. 148, 238, 244, 256, 289, 306, 348 observabilidade 13, 126, 134, 136-137, 140, 148, 158, 167, 188, 257, 268, 356 ocasional ......................... 42, 181, 201, 220, 228 ocasionalismo . 89, 161, 180, 182, 220, 244, 317 Occam ................................................... 331, 351 oceano ............................................ 45, 157, 205 ocultas 28, 145, 147, 162, 193, 221, 230, 232, 272, 301, 327 Oldenburg .. 10, 20, 233, 332, 335-337, 342-343 ondulatória.................................................... 191 operação 46, 90, 102-103, 145, 168, 188, 195, 202, 215, 230 opinião 36, 49, 174, 194, 238, 242, 257, 287-289, 309, 315, 318-319 ordem 15, 24, 27, 29-30, 38-40, 45-47, 51-52, 54, 96, 102-104, 107, 111-114, 116, 126-128, 130, 133-135, 141, 144, 158, 177-178, 181-182, 184, 186, 197, 200, 204-207, 210-212, 222, 224, 242, 246, 254-255, 282, 293, 304-305, 319, 325, 330, 356

381

órfico .............................................................. 89 orgânico/organismo 5, 32, 88-89, 137, 149-150, 179, 182-184, 198-199, 205, 231-235, 237, 239, 243, 245-247, 250-253, 255-256, 262, 274, 335, 339, 347, 358 órgão 40, 68, 87, 91, 164-166, 169, 172, 178-179 origem 7, 9, 13, 15-16, 21, 26, 29-31, 34-35, 43-45, 51, 55, 57, 75, 83, 85, 88-90, 95, 127, 134, 136, 138, 141, 146, 148, 150, 158, 161, 163, 165-166, 175-176, 178, 181, 186, 191, 196, 198, 200, 205-207, 210, 213, 218, 223-224, 229-230, 233, 249, 251, 253-254, 258, 262, 265, 274-278, 282, 284-286, 290, 292-294, 302-304, 306, 308, 310, 313, 328, 330-333, 335, 339, 341, 345, 349, 354-355, 357-358 Orígenes ................................................ 300-301 originário ....................... 235, 249-250, 256, 311 ortodoxia 82, 102, 156, 229, 239-240, 289, 298, 300, 302-304, 311, 327, 345, 355 Ótica 15, 88, 91, 99, 119-121, 136, 145, 157, 166, 171-172, 190, 194, 208, 216, 231, 233, 263, 291, 306-307, 331, 334, 337-340, 355 Ovídio ............................................................. 66

partícula 35, 51, 54, 57, 85, 99, 109, 121-123, 128, 133, 141, 143-146, 167, 202, 265, 330, 334, 356 partido 7, 11, 49, 66, 68, 98, 139, 311, 313, 335, 344, 347, 348, 349, 353 Pascal ............................................................ 291 passividade 13, 53, 55-60, 80, 89, 102, 122-123, 136-137, 139, 145, 147-150, 163, 193-194, 196-197, 200, 206, 208, 228, 235-236, 238, 244, 247-248, 251-254, 261-264, 266-267, 272, 353, 355 patrística .......................... 97, 285, 300-301, 303 Paulo ............................................... 71, 215, 341 paz ................................................. 211, 342, 345 pecado ............... 34, 48, 50, 76, 82-83, 213, 232 Pedro o Grande ............................................... 11 penetração .............................. 85, 114, 172, 266 pensamento 7, 10, 14, 31, 46, 60, 66, 69, 77-79, 82, 88-89, 94, 104, 109, 117, 121, 141, 162, 164, 166-167, 171, 174, 176, 186, 215, 220, 226, 235, 242, 246, 289, 302, 304, 314-315, 319, 323, 326, 346, 352, 354 perceção 21-22, 50, 53-54, 57, 59, 66, 68-69, 74-75, 77-78, 80-81, 85-86, 89, 91, 115, 121, 127, 148, 151, 156, 165, 168, 174, 180, 182-184, 189, 199, 234, 251-254, 257-258, 274, 357 perfeição 13, 32-34, 41, 46-47, 69, 75, 95, 116, 122, 124, 133, 144, 155-156, 177, 183, 195-197, 199, 201, 204-205, 207, 218, 252, 254, 273, 357 peripatética ................... 117, 195, 239, 241, 248 perseguição .................... 311-312, 314-316, 335 perverso .........................................213-214, 290 peso 9, 15, 53, 65, 67, 70, 119, 121, 163, 218, 255, 263 pessoa 5, 12, 16, 38, 93, 214, 217, 220, 275, 283, 286, 291, 300, 312-313, 319, 328 Petersen .............................................82-83, 213 Pfizenmaier ............................ 298, 300-301, 303 Phemister .............................................. 236, 251 Pitágoras ................................................. 18, 117 planeta 15, 32, 39, 90, 123, 131, 135, 226-227, 264, 358 plantas.......................... 13, 33, 39, 131, 233-235 Platão 18, 86, 89, 95, 212, 215, 243, 284, 289-290, 299, 347 plausível ........................................................ 324 plenitude 11, 25-28, 31-35, 70, 75, 111, 116, 118, 121-125, 137, 139-140, 143, 153, 198, 220, 255, 324, 356-357 poder 13, 23, 31, 53, 56, 62, 73, 124, 146-147, 163, 167, 196-197, 200, 206, 217, 224, 228, 236, 244, 248, 252-253, 255-256, 263, 275, 296, 301, 316, 319, 333, 338 ponto 8-9, 13-14, 19, 26-29, 36, 43-44, 46, 51, 62, 65, 73, 82, 103, 105-106, 109, 113, 122,

P paganismo 47, 211, 277, 282, 285-286, 291, 293, 347 Pagitt ............................................................ 300 Pai ......................................................... 300, 302 paixões 67-68, 74, 76-78, 80-81, 177, 211, 262, 273 panorganicismo ............................................ 235 Pantokrátor .................................................. 216 pão ................................................. 241, 257-258 papismo ......................................... 286, 312-313 paradigma...................... 303, 342, 351-352, 354 Paraphrases .................................................. 284 parte 5, 7, 9, 12-13, 15-18, 21, 26, 28-29, 31-36, 39-46, 48-54, 58, 64-66, 70-76, 78-83, 88-89, 91-92, 96-100, 102-106, 109-110, 112-113, 117-118, 120-123, 125-129, 131, 133, 137-144, 147-151, 153-157, 161, 164-166, 168-175, 177, 179, 181-185, 187, 190, 193, 195-196, 199, 201, 203-205, 207-214, 216, 218, 223-227, 232-235, 237-238, 242, 246, 248, 250, 253-255, 258-260, 262, 265, 267-268, 272-274, 276, 278-280, 282-283, 288-289, 292, 298, 307-308, 310, 314-315, 317, 320, 322, 324-325, 327, 329-331, 334, 337, 340-341, 343-344, 346-347, 349 particular 6, 32, 47, 51, 58, 72, 83, 86, 90, 93, 107, 116, 121, 132, 144, 153, 156, 170, 181, 189, 217, 224, 228, 257, 277, 282-283, 288, 290-291, 297, 334, 337, 347 particularismo .............................................. 122

382

125-126, 127-128, 133-134, 138-139, 147-148, 150, 161, 165-166, 168, 173, 175, 177, 182, 185-186, 188-189, 193, 196, 208, 223, 227, 232, 243, 249, 257, 267, 270, 274, 280, 301, 303, 307, 314, 328, 333, 335, 340, 345, 352, 357 ponto de vista 8, 13-14, 28, 36, 44, 73, 82, 103, 106, 109, 113, 125, 127, 138-139, 148, 150-151, 161, 177, 182, 186-189, 193, 196, 223-224, 232, 243, 257, 267, 270, 274, 280, 301, 303, 307, 328, 340, 345, 352, 357 popular .................. 106, 278, 341, 343, 350, 354 positivismo ................................... 332, 341, 354 possibilidade 5-7, 9-10, 13-14, 16, 18-20, 22-26, 28, 31, 33-37, 39, 41-45, 47, 54, 57-59, 64-65, 68-71, 74, 76-79, 83, 85-86, 90-93, 95-97, 102-111, 114-116, 118, 121-126, 128-133, 135-136, 140-141, 143, 147, 152-154, 156-159, 161-163, 165-167, 169, 171-174, 177, 179-181, 184-185, 187, 190, 193, 195-198, 200, 203, 205-210, 212-213, 217, 219-220, 222, 224, 226-227, 229, 233-234, 236, 239-243, 245, 253-255, 258, 260-261, 263-264, 266, 270-274, 276, 279-280, 284, 290, 294, 296, 298, 302, 306-307, 309-313, 315, 317, 320, 324, 328-329, 331, 333-335, 339, 341, 344-345, 349-350, 352-358 post facto .............................................. 208, 296 potência 37, 59, 60, 122, 150, 195, 224, 251-254, 266, 271 povo ...................................................... 209, 276 prática 56, 73, 76-77, 280, 286, 291, 299, 305, 319, 323, 338, 341, 346 precisão ...........................59, 113, 207, 266, 350 predestinação 13, 48, 157, 212, 289, 297, 345, 357 predeterminação 13, 42, 47-51, 74, 81, 86, 181, 187, 201, 204, 212, 225, 292, 352, 357 predicado 28, 59, 86, 112, 114-115, 125, 127-128, 138, 327 predisposições .......................................... 58, 79 preguiçosa 47-48, 79, 81, 188, 190, 221, 232, 357 prémio ............................ 50, 73, 80-81, 213-214 presciência 13, 41, 47-48, 50, 66, 187, 196, 213, 304 pressuposto 34, 115-116, 121-123, 139, 162, 232, 243, 289, 323, 328, 330, 335-336, 339, 352-354 presunção ..............................226, 320, 323, 354 primigénio .............................186, 223, 235, 251 primitiva 13, 18, 22, 113, 115, 122, 141-142, 148-150, 176, 181, 211, 218, 224, 236, 238, 248, 250-256, 258, 262, 264-266, 268, 273, 284-286, 291, 300, 305, 310 princesa de Gales, Carolina 7-8, 12, 15-17, 222,

239 Principia 10-11, 18, 21, 40, 85, 90-91, 93-95, 98-99, 105, 113, 119-121, 123, 132, 134-137, 139-140, 145, 158, 202, 216, 219, 231, 261, 264-265, 288-290, 304, 307-308, 321, 323, 330-332, 334-336, 340, 344-345, 347, 349, 356 princípio ativo 53, 56-57, 59-60, 62, 73-74, 78, 80, 148, 161, 263, 356 Princípios da Natureza e da Graça ................ 149 prisca ... 89-90, 142, 264, 289-290, 305, 330, 336 privação........................................... 34, 214, 272 probabilidade 80, 128, 158, 162, 210, 309, 321-322, 324, 326-327, 335 prodígio ......................................................... 228 profecias 97, 200, 208-210, 283, 288-291, 294, 296-297, 304, 306, 330, 335, 339 programa........................ 146, 232, 345-346, 354 progresso/progressão 32, 69, 83, 156-158, 170, 208, 211-212, 351-353, 357 propriedade 85, 92-94, 96-101, 107-108, 113, 117, 127, 136-137, 143, 145, 166, 170-171, 173, 180, 226, 230, 235, 262, 307 prostituta da Babilónia.................................. 289 protestante ................................... 200, 286, 313 prova 8, 26, 29, 39, 43, 52, 54, 118, 131, 166-167, 182, 207, 235, 283, 288, 297, 308-309, 319-321, 323-324, 333-335, 339, 347 providência 13, 36, 47, 51, 92, 153, 156, 158, 161, 193, 204, 206, 211, 216, 265, 297, 304, 319, 347 provisória ...................................................... 323 pseudocientíficos .......................................... 351 psicanálise ............................................. 292, 351 ptolemaica .................................................... 351 punição ................................................. 164, 214 puritanismo 284-285, 298-299, 304, 310, 345-346 puzzles .................................... 303, 342, 351-352 Q qualidade 28, 30, 35-36, 53, 59, 85-86, 106, 109, 115, 121, 125, 127, 131, 136, 144-145, 147, 166, 175-176, 193, 221, 230, 232, 263, 298, 327, 329 quantidade 34-36, 40, 85, 113-120, 124, 127, 131, 230, 273, 274 queries 10, 89, 119, 121, 233, 291, 330, 333, 337, 354 quimera 11, 44, 51, 128, 134, 141, 180, 230, 330 química.................................. 145, 290, 339, 342 R racionalidade 44, 60, 75, 79, 85, 109, 162, 190, 193, 199-200, 207, 209, 213-214, 224, 274,

383

280, 282-285, 295, 318, 340-341, 345, 347, 352, 354, 357 racionalismo ............................59, 290, 307, 330 raridade ......6, 158, 220, 227-228, 264, 318, 348 Ray ........................................................ 347, 349 razão 7, 11, 13-15, 17-18, 20-23, 25-33, 35-36, 43, 45-49, 51-54, 56-60, 63-81, 83, 85-88, 94-95, 100, 103, 105-109, 111, 113-116, 120-124, 126-130, 132-133, 136-137, 139, 141, 143, 148, 153, 155-156, 158, 170, 172, 177, 179-181, 187-190, 193, 195, 201, 203, 207-208, 212, 214-216, 218-222, 224-225, 229, 232, 238-239, 242-243, 249, 251, 262-263, 275-276, 278-285, 288-289, 291-292, 298-300, 303-305, 307-310, 314-315, 317-318, 320-322, 324, 327-329, 332-333, 337-341-343, 345-346, 348-349, 351, 354-358 razão suficiente 11, 13, 15, 17-18, 21, 23, 25-31, 35-36, 51-52, 58, 64-65, 71-73, 116, 126-128, 130, 133, 141, 153, 180, 188, 214, 220, 262, 275, 280, 320, 327, 357 realismo 13, 109, 137, 161, 174, 178-180, 184, 235-236, 238, 240-242, 254-256, 298 reflexão/reflexo 59, 66, 73, 85, 127, 185, 190, 250, 256, 328, 342, 348 reforma ............................15, 158, 208, 211, 245 refração .............................10, 20, 121, 145, 338 reguladores................................................... 354 regular 186, 209, 217, 228, 230, 233, 265, 294, 349 rei ...... 7, 9-10, 93, 145, 199, 201, 203, 266, 327 relativo 6-7, 9, 12, 19-21, 39, 47, 51, 53, 59, 61, 71, 85, 96, 98-99, 104-105, 109-111, 113-115, 121, 125-128, 130, 132-134, 137-139, 145, 153-155, 158, 168, 170-171, 179, 194, 202, 207, 212, 220, 223-224, 229, 247, 254, 256-257, 261, 282, 290, 301, 304, 309, 328, religião 7, 13, 17, 95, 109, 200-201, 206, 209, 211-212, 227, 238-239, 244, 274-278, 280, 282-285, 288-290, 292, 298-299, 302-303, 305-306, 308-310, 315, 317-318, 320, 325, 327, 330, 337, 339-341, 343-345, 347-348, 350, 353-354, 358 religião natural 7, 13, 17, 206, 274-280, 282, 303, 305-306, 318 religião revelada .... 207, 274, 276, 282, 305-306 relógio 38, 58, 68, 179, 187, 189, 193-194, 198-199, 231, 294, 358 relojoeiro ............................................... 194-195 Rémond 9-10, 33, 43, 108, 265-266, 309, 311, 338, 339, 340 renovação ............................................. 158, 209 repouso 48, 123, 135, 139, 145, 163, 218, 267, 272 requisito ....................................................... 280

requisito ...... 49-50, 150, 185, 246-247, 249, 280 res extensa ...................................................... 97 resistência 43, 79, 118-123, 150, 219, 253-254, 261, 263, 266-268, 273, 310, 356, 358 resolução ..................... 54, 56, 76-77, 79-80, 123 restauração ........................................... 275, 299 revelação 162, 207-208, 210, 277-279, 282-283, 290, 292, 298, 330, 339, 345 revolução 200, 209, 211, 286, 302, 313, 351, 354 rigor ........... 11, 20, 100, 123, 126, 298, 315, 351 ritual . 12, 281, 286-287, 291, 311, 318, 345, 348 Robinet .................................. 9, 12, 31, 101, 143 Rohault ...................................................... 8, 135 Rojas .............................................................. 313 romance ................................................ 232, 294 Royal Society 9-10, 16, 89, 119, 142, 227, 287-288, 310, 313, 315, 328-329, 337, 342-344, 346-348 Russell ........................... 128, 235, 238, 242, 251 Rutherford............................. 123, 235, 236, 258 S sabedoria 15-16, 23, 26, 28, 30-36, 38-40, 43, 46-47, 51-52, 54, 65, 117, 129-130, 133, 153, 182, 187, 195-196, 201, 203-205, 275-276, 278, 282, 319, 357 seita ... 12, 304, 315-316, 340, 349-350, 352-353 Senhor ............... 10, 93, 194, 208, 216, 292, 358 sensível 27, 61, 66, 75, 79, 87, 91, 109, 122, 135, 146, 172-173, 176-177, 191, 205, 216, 220-221, 225, 231, 246, 254, 280 sensório 87-89, 91, 165-166, 168, 170-173, 177, 216-217, 355 sensoriomotor.............. 88-90, 92, 173, 216, 355 sensorium 15, 51, 87-91, 126, 164-165, 168-169, 172, 264 sentido 7, 21, 23, 32, 37, 39, 41-42, 44, 47, 55-56, 59, 63, 66, 72-73, 75, 77, 80-82, 87, 90, 93-95, 100-101, 103, 107, 109-110, 115, 121, 124, 127-128, 134, 137-138, 143-144, 150, 153, 155, 162, 166, 169, 171-172, 176-178, 183, 189-190, 204, 206, 209, 218, 220-221, 236, 241, 249, 262, 265, 267, 271, 282, 285, 289, 292-293, 298, 300-301, 309-310, 312-313, 316-318, 321, 323, 326, 330, 332-333, 344 sequência 8-9, 20, 23, 34, 38, 41-42, 46-47, 49-50, 66, 86, 88, 92, 101, 117, 126-128, 151, 162, 179-180, 182-183, 186, 199, 203, 205, 242, 246, 249, 254, 263, 287, 331, 337, 356-357 série 23, 44, 54, 59, 112, 155, 174, 176, 181, 206, 232, 333, 338, 357-358 servos .............................. 93, 113, 202, 207, 292 Shaftesbury ................................................... 319 Shapin ............................................193, 347-348

384

silogística ................................................ 87, 325 simples 8, 13, 17, 20, 31, 35, 43, 46, 52, 56, 58, 70, 76, 86, 88, 91, 100, 103-104, 108-109, 113, 115, 127, 130, 138, 143-144, 146-147, 149-151, 168, 172-174, 178, 180, 182, 184-186, 190, 194, 198, 216, 219, 221-222, 235, 246, 252, 256, 273, 281-284, 287, 289-291, 312, 315, 318, 322, 326, 328, 331-332, 341-342, 344, 357-358 Simpson ........................................................ 342 singular ....................................23, 231, 284, 357 sistema 14, 28, 33, 46-47, 50-51, 72, 74, 81, 90, 109, 126, 135, 147, 157, 161, 167, 169, 177, 181, 208, 226, 235, 239, 243, 260, 274, 276, 316, 332, 336-337, 344 sistema solar ............................90, 135, 157, 208 situação 26-28, 41, 53-54, 57-58, 60, 66, 85, 90, 104, 111-114, 125, 127, 130, 133, 136, 138, 168, 212, 254, 286, 324 Sklar ............... 115, 126-129, 131-132, 135, 137 Sleigh .................................................... 239, 315 Sloane ........................................... 345, 347, 349 Snobelen ......................... 286, 289-290, 304-305 sociedade/social 82-83, 204, 339, 343, 345-346, 349, 351 socinianismo .......................... 201, 298, 302-304 Sofia ............... 128, 131-132, 279, 281, 315, 321 solicitação .... 9, 68, 119, 232, 240, 245, 267, 280 solipsismo ............................................. 184, 188 soteriologia ...................................... 50, 212-213 Spinoza 14, 16, 39, 41, 43, 50, 53, 61, 66, 71, 92, 173, 180, 196, 203, 216, 276, 293, 316, 357 Sprat ...................................................... 342-346 Stein ........................................................... 95-96 Stillingfleet .................................................... 162 subjectum ..................................... 138, 236, 248 subordinação 14, 43, 150, 252, 281, 293, 298-301, 310, 327, 340, 358 subordinacionista ......................................... 301 substância 5, 13, 18, 27, 35, 46, 50, 59-60, 65, 72-73, 85-87, 89, 92, 96, 98-99, 112-113, 115-117, 122-123, 125, 127, 130, 134, 137-138, 142, 147-150, 159, 161, 163, 166-168, 170-174, 180, 182-186, 188, 190, 198, 204, 206-207, 215-216, 220, 224, 230, 235-243, 245-247, 249-257, 262, 265-266, 272-274, 300, 307, 328, 334, 358 substanciado.......................................... 237-238 substancialista .............................. 254, 287, 327 subtileza 40, 51, 61, 77, 80, 94, 106, 118, 145, 162, 179, 285, 299, 303 sujeito 32, 53, 57, 74, 82, 86, 96, 101-102, 104, 106, 112, 115, 128, 138, 179, 184, 187, 225, 327, 330, 357 superstições.......................................... 283, 285 suppositum ................................... 184, 244, 248

surdos.................................................. 44, 66, 78 suspensão 55, 76-80, 136, 169, 229, 262, 264, 290, 331-332, 357 T Taylor .................................... 288, 292, 334, 345 técnica ........................................................... 352 tempo 5, 7-8, 11-13, 15, 22-25, 27-28, 34, 46, 51, 55, 57-58, 78-79, 81, 85, 92-93, 96-99, 101-105, 107, 109-116, 121, 125-131, 134, 138, 140, 147, 153-154, 156-159, 161, 166, 173, 177, 182, 186-187, 189, 191, 194, 206-208, 210-211, 216, 220, 235, 246, 255-256, 269-270, 275, 282, 288, 294, 298, 301-302, 308, 310-311, 320, 325-326, 330, 342-343, 348, 355-357 tenacidade ............................................ 120, 123 Teodiceia 11-12, 14, 16, 18, 21-22, 34, 36, 43-47, 49-50, 53, 59, 70, 73-74, 131, 149, 175, 187, 203-204, 207, 222, 239, 241, 244, 261, 280, 283-284, 308, 315, 324 teologia 8, 10-11, 13-14, 16, 18, 32, 61, 74, 76, 90, 94-95, 97, 102, 107, 109-110, 117, 127, 135, 157, 162, 194, 207, 209, 222, 235, 239, 264, 275, 278-281, 284, 288-291, 293, 298-299, 302-303, 307, 309-311, 317-318, 322, 339, 341, 343, 347-348, 352 teoria 7, 10, 13, 18, 20, 38-39, 50, 58-59, 67, 80, 111, 120, 139, 149, 158, 163-166, 168, 174, 181-182, 188-189, 191, 213, 219-220, 227, 232-233, 235, 237, 239, 242-243, 247, 256, 265, 273, 276, 279-281, 283, 288, 290-291, 295, 299, 305, 307-311, 323, 331, 333, 337-340, 342, 344, 350, 352, 354-355 Tertuliano ...................................................... 300 Tilling ..................................................... 139, 335 Toland ................................................... 162, 264 tolerância 286-287, 310-311, 313-314, 340, 345-346 tomismo ........................................ 207, 221, 224 Torricelli ........................................................ 118 Tournemine....................................222, 243-244 trabalho 5, 14, 194, 239, 243, 255, 270, 298, 308-309, 313, 317, 319, 328, 330, 332, 335, 341, 343, 350, 352 tradição 5, 76, 97, 102, 208, 210, 264, 277, 284, 304, 318-319, 322, 327, 350-351, 353 transcendência .. 13, 33, 107, 194, 198, 212, 214 transcriação ...............................................74-75 transmigração ............................................... 179 transubstanciação 185, 222, 236-237, 239-242, 244, 250, 253, 257 Trindade 8, 95, 194, 201, 282, 286, 290, 300, 302-303 trinitarismo ............................................. 97, 298 triteísmo ........................................................ 298 Turnbull ......................................................... 347

385

U

306, 308, 311, 314-315, 319-321, 323-324, 326-327, 329, 331-333, 335, 337-341, 345, 347-351, 353-354, 356 verdades de facto 17-18, 21-23, 44, 126, 128, 280 verdades de razão 13, 17-18, 21-25, 36, 43-44, 72, 105, 118, 126, 128-129, 131, 146, 258, 324 verosimilhança .............................. 156, 322, 344 vício ......................................................... 66, 213 vida 5, 10, 12, 32, 63, 94, 157, 164, 184, 197, 200, 211, 213, 232, 239-240, 243, 255, 262, 281, 286, 302, 304, 312, 314-315, 328-329, 331, 347-349, 353, 356, 358 vínculo 5, 65, 137, 150, 184, 235-243, 245-248, 250-251, 253-256, 273, 358 vinculum 150, 185, 235, 237-238, 241-242, 244, 247-250, 254 vis insita ........................................................ 263 viva ......................... 106, 184, 267, 270-271, 273 vivo 32, 40, 54, 66, 73, 91, 151, 165, 182, 216, 297, 335 Voltaire.................................................. 226, 350 voluntarismo ............................................. 61, 93 vontade 19, 24, 28-29, 37, 39-41, 49-58, 60-61, 63-65, 68, 72-73, 75-79, 81, 88-89, 91-92, 94, 102, 105, 126, 129, 132, 134, 136, 154, 172, 178, 188, 199, 203-204, 206, 213, 218, 253, 264, 277, 293, 311, 347, 357 vórtices.......... 120, 123, 163, 233, 309, 338, 358 vulgaire ..... 48, 107, 177, 179-180, 216, 318-319 vulgar 11, 93, 174, 177, 179-180, 199, 218, 247, 295, 319

ubiedade ....................................................... 102 ubiquidade......................................... 92-93, 101 Uffenbach ..................................................... 349 união 91, 108, 146, 190, 216, 236, 243-244, 246-247, 249, 251 unidade 14, 86-87, 98, 135, 147-148, 151-152, 183, 194, 237-239, 242, 244-248, 251, 256-258, 265, 273, 325-326, 328, 344 uniformidade 15, 27, 52, 72, 89-90, 104-105, 113, 130-133, 135, 150, 156, 166, 266, 311, 335, 341 unitariana ..................................... 194, 302, 304 universal 7, 15, 30, 62, 82-83, 85, 156, 166, 188, 199, 205, 211, 213, 215, 230, 257, 262, 265, 272, 277, 280, 290, 297, 307, 321, 323-324, 334, 346, 354, 358 Universo 12-15, 18, 26-28, 32-35, 40, 45, 50, 73, 86, 88-89, 97, 102-103, 117-118, 125, 127, 139-140, 148, 151, 153-154, 157-158, 161, 166, 170, 177, 179, 182-183, 186-188, 193-195, 197-198, 200, 204-205, 208, 216, 224, 232, 235, 258-259, 264-265, 274, 302, 329, 355, 357-358 unum per se ... 148, 150, 184, 237, 248, 250, 257 Uranias ........................................................... 83 V vacuistas ....................................................... 117 vácuo 116, 118, 120, 122-123, 135, 142, 144, 336, 339, 358 Vailati ..................................... 61, 81, 94, 98, 113 variedade 7, 33, 117, 130, 133, 144, 146, 151, 178, 205, 326, 334 vazio 12, 19, 26, 34, 54, 57, 66, 85, 92, 96, 102-103, 108, 110, 114, 116-118, 121-122, 124-127, 130-134, 139-140, 142-143, 162, 171-173, 220, 320, 324, 330, 336, 354-355, 357-358 velocidade ..... 120, 134, 138, 140, 262, 269-271 verdade 11, 15-16, 19-25, 30, 35, 37-39, 42-46, 48-49, 51, 54, 57, 59-61, 67, 71-72, 74, 77, 80, 82, 85, 90, 92-93, 97, 105-107, 111-113, 125, 127-129, 132, 137, 139-140, 143, 146, 151, 155, 157-158, 163, 167, 169, 173, 177, 184, 194, 197, 201, 204, 207, 209-210, 215-216, 221-224, 232, 234, 236-238, 240, 242, 247, 254-255, 258, 266, 272-273, 275, 278-279, 281-283, 285, 287-288, 292, 300,

W Wallis............................................. 332, 341, 343 Waterland ..................................................94-95 Weigel ........................................................... 352 Wells ............................................................. 285 Westfall 9, 11, 95, 119, 193, 200, 209, 261, 264, 285, 287, 289, 291, 299, 301-302, 304-307, 328-329, 334, 340, 345-349 whigs ............................................................. 310 Whiston 200, 209, 226-227, 263, 276, 286-289, 292-293, 295-298, 300-305, 345, 347, 349 Wigelsworth .................................................. 214 Wren ............................................................. 349 Z zoroástrico .................................................... 276

386

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.