Lily Frankenstein, feminismo e poder

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Noiva de Ninguém: Lily Frankenstein, feminismo e poder.
A condição da mulher na sociedade vitoriana:

A sociedade vitoriana marca um período de transição entre a queda de estruturas sociais da idade média e a entrada factual da sociedade europeia na modernidade. Essa transição marca a perca de poder de muitas entidades, como por exemplo, a religião. A moral cristã entra em crise no novo mundo e passa a ser questionada. Essa perca de poder permite, entre várias coisas, a emergência da luta dos primeiros movimentos sociais que hoje em dia conhecemos tão bem (Movimentos negros, feministas, LGBTs, etc).
A condição da mulher dentro do contexto vitoriano e também no reinado seguinte, no período eduardiano, foi marcado por uma forte segregação social a esfera privada, ou seja, a vida doméstica. Essa era a ideologia da separação das esferas, na qual a mulher era um ente privado, praticamente um objeto, e o homem, um ser público.

Legalmente, a mulher era proibida de exercer qualquer profissão ou possuir bens em seu nome, e a única mobilidade social do sexo feminino era na mudança do status de filha para esposa. A ideologia da separação das esferas se transmutou na naturalização biológica da inferioridade feminina (STEINBACH, 2012); gravidez e menstruação seriam fatores que incapacitariam o corpo feminino de se igualar ao masculino, muitos cientistas recorriam à natureza e aos animais para retificar essa ideia.
Contudo, a industrialização capitalista e machista, ironicamente requis os números e a força feminina para suprir a produção, colocando ambos os sexos lado a lado e começando a semear a articulação do movimento sufragista feminino, também contribuindo para a mudança na mentalidade das mulheres, impulsionando-as na busca pelos seus direitos. No fim do século XIX, essa nova mentalidade feminina de independência foi personificada como a Nova Mulher (em inglês, New Woman) e começou a ser manifestada na cultura vitoriana, principalmente na literatura, e, em geral, retratada de forma não muito positiva. Lily Frankenstein pode ser interpretada como uma figura que personifica essa Nova Mulher na sociedade inglesa, mas antes de entendermos o surgimento de Lily, precisamos entender o sofrimento de Brona.

Brona Croft: Força motriz da ira de Lily



Conhecemos Brona na primeira temporada como a prostituta pela qual Ethan Chandler se apaixona. Brona é irlandesa e fugiu de casa para não se casar, acabou na prostituição por ser uma das poucas formas de subsistência para uma mulher pobre e não-britânica. Brona se encontra no cruzamento de três condições que a relegavam a pobreza e más condições de vida: A pobreza, o gênero e a nacionalidade. Uma mulher britânica era inferior ao homem britânico, mas uma mulher irlandesa, naquela época, estaria quase na condição de não-humanidade perto de um legítimo cavalheiro inglês, devido ao histórico conflito entre esses países. Então, por mais que as fábricas e o capitalismo estivessem em expansão, mulheres estrangeiras como Brona estavam sempre em posição inferior a mão de obra britânica, o que tornava a prostituição uma saída quase óbvia para encontrar sustento.Brona contraiu a tuberculose de um dos clientes também.
Na primeira temporada, não temos um foco tão grande na personagem e eu mesma devo confessar que a via como pouco mais que a "namorada do Ethan". Brona não é efetivamente desenvolvida como sujeito na primeira temporada, mas sabe-se que ela encontrou amor de verdade com Ethan e também que os últimos dias dela foram melhores com a companhia dele. No entanto, mesmo sem muito foco nela, sabemos que Brona sofreu bastante na sua vida em Londres. Brona, ao contrário dos outros personagens como Ethan, Vanessa, Dorian e Malcolm, não tinha nenhum elemento sobrenatural para atormentá-la externa ou internamente, todos seus sofrimentos e tormentos eram frutos da injusta estrutura social na qual vivia, como milhares de prostitutas irlandesas que devem ter vivido na Era Vitoriana, e que nunca tomaremos conhecimento.

Lily Frankenstein, a Ciência de Victor & a Nova Mulher

Para explorar Lily, precisamos entender Brona, mas também um arquétipo social que assombrava a sociedade vitoriana e ameaçava chacoalhar suas fundações: A Nova Mulher. Esse arquétipo englobava nada mais que as mulheres, em geral aristocratas ou burguesas, que começavam a lutar contra as diversas opressões e ideologias machistas na sociedade inglesa. Essas mulheres eram vistas como "riot girls" ou seja, como perturbadoras e indesejadas na sociedade vitoriana.
Naturalmente, elas foram retratadas por homens na Literatura, uma das mais poderosas expressões culturais britânicas, via de regra, como antagonistas, sempre pondo obstáculos para os protagonistas masculinos e se opondo a moral cristã vitoriana, geralmente pelo uso de poderes sobrenaturais e da sedução imanente de suas belezas.


Dois exemplos desse arquétipo na literatura gótica são "She" (1886) de Haggard e "The Lair of the White Worm" (1911) de Bram Stoker, o consagrado autor de Drácula. No primeiro livro, "She", temos a história de Ayesha, uma rainha imortal escondida nas selvas africanas que entra em contato com exploradores britânicos e decide dominar o mundo, começando por derrubar a rainha Vitória do trono. Já "Lair of the White Worm" traz a sedutora Lady Arabella March como uma mulher que consegue se transmutar numa grande serpente e que mata inocentes em sua fúria. Naturalmente, ambas são paradas em suas maquinações malignas pelos bravos cavalheiros ingleses, sempre lutando pela preservação das estruturas sociais que os privilegia.


O que Lily Frankenstein tem a ver com Ayesha e Arabella? Lily, assim como ambas, também representa uma ruptura na estrutura social vitoriana. Então, ao meu ver, Lily pode ser lida como uma representação da Nova Mulher na sociedade vitoriana, mas também carrega uma importante mensagem para os movimentos feministas pós-modernos. Mas já chegamos lá.


A gênese de Lily é a morte de Brona. A vida de Brona é tomada por Victor sem consentimento e ele rouba seu cadáver e a leva para seu laboratório, para cumprir a promessa de criar uma companheira imortal para a Criatura. Brona/Lily é nada mais que um objeto, um corpo, um cadáver, desprovida de escolha, de subjetividade, de agência, no primeiro momento entre a morte e a ressurreição científica, ela é uma vítima passiva da ciência de Frankenstein e sua obsessão por superar a morte.
Após a ressurreição, Frankenstein e a Criatura criam uma nova identidade para a "noiva", Lily Frankenstein,uma prima distante de Victor. O cientista muda o guarda roupa, a história e o visual de Lily para desassociá-la de Brona. A Criatura também tenta inventar uma história de amor entre os dois para que Lily se apaixone por ele e aceite seu destino de amante imortal.


É interessante considerar o tamanho dos cabelos de Lily, o cabelo curto é um anacronismo do seriado em relação a Era Vitoriana e mesmo em relação a posterior, Era Eduardiana, pois a tendência era que as mulheres, independente do nível econômico ou da condição social, mantivessem os cabelos longos. Na sociedade ocidental, o cabelo curto em mulheres começou a ser adotado a partir de 1910, quando as mulheres começaram a trabalhar em fábricas e os cabelos de comprimento longo se tornaram inviáveis devido às funções desempenhadas por elas no trabalho braçal, e se tornou uma moda verdadeira em 1920, principalmente na Europa por causa da explosão da primeira onda do feminismo.
O cabelo curto e pintado de Lily, então, é algo fora do lugar para o período histórico do seriado. Podemos interpretá-los como um simples erro de produção, porém, tendo em vista o desenvolvimento de Lily, ele pode ter um valor metafórico essencial para a compreensão da personagem enquanto (re)encarnação do arquétipo da Nova Mulher. Embora o corte tenha sido feito por Frankenstein, as atitudes de Lily e sua mudança pessoal parecem em consonância com o cabelo curto e a subversão brutal dos planos que lhe foram originalmente traçados.
Nos episódios finais, Lily Frankestein começa a mudar sua postura em relação a aparente docilidade que mostrava para com Victor Frankestein e a Criatura. O telespectador é levado a acreditar que Lily se apaixona por Victor, mas a personagem tem planos muito diferentes para si mesma em mente, e a relação de ambos muda brutalmente. É importante analisar a virada na personalidade de Lily sob as luzes do contexto da situação da mulher durante as eras Vitorianas e Eduardianas, previamente expostos aqui, e também sobre as possíveis implicações e um diálogo estabelecido entre a recriação do arquétipo da Nova Mulher e suas implicações para os desafios contemporâneos dos feminismos atuais.
Lily Frankenstein apresenta-nos a questão da agência, ou seja, de fazer o seu destino. Embora, sim, o movimento feminista tenha conquistado muitas vitórias da Era Vitoriana até aqui, ainda somos condicionadas a um padrão estético inalcançável, temos nossas imagens sexualmente exploradas desde a mais tenra infância, somos castradas de uma sexualidade em busca do verdadeiro prazer e da libertação e ainda temos que realizar a dupla jornada da vida profissional e doméstica, para não citar as condições sociais de mulheres negras e indígenas e as centenas de lutas particulares dentro dos feminismos. Então, Lily funciona como uma forma de nos lembrar que temos que nos erguer, quebrar nossas correntes e lutar, nem que seja brutalmente, contra as amarras e correntes que ainda temos aí.


A cena de Lily matando um homem durante o ato sexual remete a uma passagem de "The Lair of White Worm" em que Arabella mata um de seus servos também durante sexo, trazendo a associação com a figura aracnídea da viúva negra. Ou seja, a sexualidade da mulher enquanto uma arma mortal, que é usada como uma armadilha fatal. A cena no seriado remeteu-me a ira de Lily contra os homens e os anos de Brona trabalhando enquanto prostituta.
O discurso final de Lily para a Criatura, em que ela deixa claro que não se curvará a ele, nem a Victor e nem a nenhum outro homem, materializa muitas das opressões historicamente sofridas pelas mulheres e que até hoje são pautas de discussão dentro dos feminismos.



O seriado termina com a improvável aliança entre Lily e Dorian e também com a destruição das esperanças de Victor no episódio final. Lily traz a todas nós, com sua ira autêntica e sua desesperada vontade de fazer a própria história, que nós, mulheres (biologicamente ou não, porque as mulheres trans também estão nessa luta) temos que nos levantar e destruir as estruturas sociais, jurídicas e políticas que são a base do patriarcado, para criar uma realidade mais justa e igualitária.
Assim como Lily, cujo futuro muito me intriga nas próximas temporadas, a nossa fúria é só o começo.












Referências
BORDEAU, Brigitte. Daughters of Lilith: Transgressive Femininity in Bram Stoker's Late Gothic Fiction. 2014. 230 f. Tese (Doutorado em Estudos Ingleses). Departamento de Estudos Ingleses, Université de Montreal, 2014. Disponível em http://hdl.handle.net/1866/11123. Acesso em 5 de outubro de 2015.

BRANTLINGER, Patrick. Rule of Darkness: British Literature and Imperialism, 1830-1914. Cornell University Press, 1988.

MURPHY, Patricia. The Gendering of History in "She". Studies in English Literature, 1500-1900, Rice University, vol. 39, n. 4, 1999. Disponível em http://www.jstor.org/stable/1556272. Acesso em 16 de setembro de 2015.

PENNY Dreadful. Direção: John Logan, Sam Mendes. SHOWTIME, 2014-2015. Disponível em http://migre.me/rITwq. Acesso em 5 de outrubo de 2015.

STEERE, Elizabeth. "British Women in Haggard's Early African Romances". Nineteenth-Century Gender Studies, volume 6.3, 2010. Disponível em http://migre.me/rIQCJ. Acesso em 16 de setembro de 2015.

STEINBACH, Susie. Understanding the Victorians: Politics, Culture and Society in Nineteenth-Century Britain. Routledge, 2012.




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