Lima Barreto - Crítica e Sarcasmo à 1ª República em Policarpo Quaresma

July 25, 2017 | Autor: V. Silva Do Rego | Categoria: Social Psychology, Cultural Sociology, Literatura
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FUNDAÇÃO ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA DE SÃO PAULO Curso de Pós-Graduação em Ciência Política

Volmer SiIva do Rêgo

Poder, loucura e razão na obra de Lima Barreto: crítica e devaneio socioliterário no major Policarpo Quaresma

São Paulo

2015 Volmer Silva do Rêgo

Poder, loucura e razão na obra de Lima Barreto: crítica e devaneio socioliterário do major Policarpo Quaresma

Artigo científico apresentado para obtenção de diploma de conclusão do curso de pós-graduação em Ciência Política da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Área

de

concentração:

Sociologia

e

Literatura

Orientador: Prof. Rodrigo Estramanho de Almeida

São Paulo Janeiro 2015

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Nome: RÊGO, Volmer Silva do Título: Poder, Loucura e Razão na obra de Lima Barreto: crítica e devaneio socioliterário do major Policarpo Quaresma

BANCA EXAMINADORA

Nomes e titulação Assinatura: Profº. Ms. Rafael Balseiro Zin (USP) – Parecerista Assinatura: Profº. Dr. Rodrigo Estramanho de Almeida (PUCSP) – Coordenador do curso de Estudos Brasileiros Assinatura: Profº Dr. Humberto Dantas (USP) – Coordenador do curso de Ciência Política

Data de aprovação - 16/02/2015

AGRADECIMENTOS

A meu professor orientador Rodrigo Estramanho de Almeida, pelas inestimáveis críticas e sugestões. A Gisele C. Batista Rego, pela revisão.

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A

literatura

é

essencialmente

uma

reorganização do mundo em termos de arte; a tarefa do escritor de ficção é construir um sistema arbitrário de objetos, atos,

ocorrências,

sentimentos,

representados ficcionalmente conforme um princípio de organização adequado à situação literária dada, que mantém a estrutura da obra. Antonio Cândido

Resumo

Este artigo aborda o romance “Triste Fim de Policarpo Quaresma” de Lima Barreto, que centra a sua ação na personagem que dá nome ao livro, e na cidade do Rio de Janeiro, o centro e a periferia da capital da Primeira República, e aborda aspectos psicossociais das pessoas no contexto histórico da revolta da Armada (1892). E, em um mesmo recorte temporal e hierárquico, foca as atitudes do homem central da República, o próprio presidente, enquanto „recua‟ na direção dos personagens mais periféricos daquela ordem político-administrativa, abrindo espaço para o leitor atento circular com ampla margem de interpretações, entre os bairros descritos e as figuras de grandeza política da época: o Marechal Floriano Peixoto, presidente da República e outras pessoas públicas de menor importância, gravitando em sua órbita, e cujas envergadura e expressão político-intelectual duvidosas são ironicamente expostas.

Palavras- chave – Poder, República, nacionalismo, loucura, sociedade.

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Abstract

This paper discusses the novel “Sad End of Policarpo Quaresma” by Lima Barreto and focuses on the character named in the title of the book and on the city of Rio de Janeiro, the downtown area and the outskirts of the capital of the First Republic. The novel also addresses the psychosocial aspects of the people within the historical context of the Revolt of the Navy (1892). In the same temporal and hierarchical period, focuses on the actions of the most prominent man of the Republic, the President himself while its in the direction of the more peripheral characters of that political and administrative order, he enables the attentive reader to delve into a wide range of interpretations, amidst the neighborhoods described and the great politicians of the time: Marshal Floriano Peixoto, President of the Republic and other public figures of lesser importance, who gravitate around him, and whose questionable, political and intellectual skills and substance are ironically exposed.

Key words – Power, Republic, nationalism, madness, society.

PODER, LOUCURA E RAZÃO NA OBRA DE LIMA BARRETO: crítica e devaneio socioliterário do major Policarpo Quaresma

Em um domingo, a 13 de maio de 1888, dia comemorativo do nascimento de D. João VI, rei de Portugal, foi assinada por sua bisneta Dona Isabel, princesa imperial do Brasil, e pelo ministro da Agricultura da época, conselheiro Rodrigo Augusto da Silva, a lei que aboliu a escravatura no Brasil. Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro sete anos antes. Sancionada em 13 de maio de 1888, a lei que extinguiu a escravidão no Brasil foi precedida pela lei n. 2.040 (Lei do Ventre Livre), de 28 de setembro de 1871, e libertou todas as crianças nascidas de pais escravos, e pela lei n. 3.270 (Lei Saraiva-Cotegipe), de 28 de setembro de 1885, regulou-se “a extinção gradual do elemento servil“. A lei que promulgava extinto o trabalho escravo no Brasil data, assim, de apenas sete anos após o nascimento de Lima Barreto. Um cenário fica claro: ele nasceu ainda no calor e ao sabor da escravidão. Outras nuances, porém, haverão de compor este quadro, que à Peter Brughel (pintor flamengo do século XVI), em um sucessivo de personagens curiosos, luz e sombras, história e ciência conduzem sua leitura. Lima Barreto era mulato(1) - um cognato de mula: equídeo da família dos muares, animal usado atualmente para trabalhos de carga e transporte nas regiões rurais, e comum à época da Primeira República também nas cidades -, e deve ter sentido o peso social, à guisa de preconceito, que ainda hoje implica esta designação étnica. Pobre, morador da periferia da capital imperial, que veio posteriormente a ser também a capital da República Velha no Rio de Janeiro, Lima Barreto era filho de um tipógrafo e de uma professora pública, ambos negros, portanto, escravos, ou que, pelo menos, viveram sob o signo histórico da escravidão. Seu padrinho fora o

1 Mulato: existem na literatura nacional excelentes trabalhos, romances e análises socioliterárias sobre a situação e a condição psicossocial do que representa ser um mulato, um meio sangue, meio negro, meio branco, e, por conseguinte, à guisa de puro preconceito, uma indefinição racial ou étnica na formação do Brasil desde a chegada dos primeiros negros escravos, a miscigenação com o branco europeu, português ou não e consequentemente o que isto represente até hoje. Recomendam-se as leituras do romance naturalista O mulato, de Aluísio Azevedo, o romance socioanalítico O mulo, de Darcy Ribeiro, e o estudo socioliterário realizado pelo professor Rodrigo Estramanho de Almeida, A realidade da ficção: ambiguidades literárias e sociais em O Mulato de Aluízio Azevedo (2010).

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Visconde de Ouro Preto(2) um político monarquista, amigo do imperador Dom Pedro II, uma sorte que ele aproveitou até os 15 anos de idade, quando passou nos exames para cursar Engenharia na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, o que seguramente lhe garantiria espaço profissional futuro e diferente condição de vida. Curso e condição perdidos numa inclinação da roda do destino, logo após o golpe que os militares deram na corte imperial de Dom Pedro II, e que depôs, junto com o imperador a sua corte e os seus ministros, dentre os quais o seu protetor, Ministro da Marinha Imperial, a segunda grande força militar do império e que rivalizava em importância com o Exército Imperial, a força e organização militar mais poderosa de então e que abrigava dentre outros, em seus quadros e fileiras os Generais tornados em seguida Marechais (patentes máximas das forças armadas) Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, personagens nucleares do episódio histórico-político da proclamação de nossa república em novembro de 1888. A virada do episódio republicano alterou significativamente os rumos e a vida política do país, afetando diretamente os envolvidos e seus próximos, e, seguramente lhe custou caro, promovendo uma grande transformação em sua rotina, motivo suficiente para se posicionar contrariamente à nova instituição. Lima teve, portanto, razões pessoais para se colocar como crítico ao evento e a ele somou conteúdo histórico e social dourado em sarcasmo e acidez que se depreendem das falas, ações e descrições de seus personagens, muitas vezes expondo-lhes ao ridículo por serem o que eram, sua condição social, status e posturas. Anos depois, em 1902, o escritor teve o seu pai acusado de roubo e conduzido a um hospício após se tornar dependente de álcool. Como consequência do encadeamento sequencial destes fatos abandonou definitivamente os estudos e decidiu trabalhar para ajudar no sustento da família. É desse ano também sua primeira aparição como colaborador na imprensa carioca pelo jornal A Lanterna. No ano seguinte, passou em um concurso público e assumiu um posto de secretário administrativo, uma espécie de arquivista em um departamento da Secretaria Administrativa do Ministério da Guerra, sedimentando a sua decisão de abandonar a Escola Politécnica, condição da qual, talvez, advenham seus conhecimentos, suficientes para descrever com certa riqueza de detalhes, as minúcias militares que enredam o personagem Policarpo Quaresma em seu livro e o

2 Ministro da Marinha no 2º Reinado – Dom Pedro II – Afonso Celso de Assis Figueiredo foi o Chefe do

seu Triste fim. Nos anos seguintes, em 1905, já como jornalista profissional, empregado no Correio da Manhã e afastado da Secretaria da Guerra, participa de atividades políticas pelo Partido Operário Independente (3) e teve um livro publicado em Portugal – Recordações do escrivão Isaías Caminha (4) que recebe críticas favoráveis de Monteiro Lobato (5 ). Em 1911, adentrando o primeiro quartel do século XX, a República já consolidada, Lima inicia em capítulos publicados no Jornal do Comércio, seu livro Triste fim de Policarpo Quaresma, objeto deste artigo. A partir de 1916, os efeitos e os excessos de uma vida boêmia, devido a frequência noturna em bares e cafés, nas quais participa de debates acalorados com jornalistas e intelectuais de seu meio se fazem notar, e, em 1917, embora entregue ao alcoolismo e em condições precárias de saúde, já abalada, ainda exerce intensa atividade política como anarquista libertário, defendendo a abolição dos governos e o fim das classes sociais que deles derivam. Em uma luta pela defesa dos trabalhadores chegou a publicar um texto de conteúdo marxista defendendo estas causas e a Revolução Socialista Russa. Sua saúde abalada levou-o a internar-se por duas vezes, e o fato de ter perdido a proteção de um tutor com a importância do ex-ministro da Marinha Imperial deve tê-lo deixado insatisfeito, possivelmente irritado e estressado com os rumos de sua vida, as circunstâncias conjunturais e as suas leitura e as interpretações sociopolíticas de seu tempo, as propostas e a instabilidade da república recém instaurada, de certa forma alterando as suas relações psicossociais e no trabalho, e talvez deteriorando ainda mais a sua fé no novo regime político instalado. Em 1914, no Hospital Nacional de Alienados, na Praia Vermelha, na Urca, na então capital federal, aos 33 anos – transtornado e com alucinações supostamente provocadas pelo abuso do álcool e em camisa de força – é internado e, noutra segunda vez, em 1919, no Hospício Nacional (6) onde veio a falecer em 1922, aos 41 anos por “colapso

Conselho de Ministros da Monarquia, preso e exilado em 1899, logo após a proclamação da República. 3 Partido Operário Independente - Fac-símile – Correio da Manhã, 23 de abril de 1905. Em: http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=089842_01&pagfis=7959&pesq=&url =http://memoria.bn.br/docreader# 4 Recordações do escrivão Isaías – o primeiro romance de Lima Barreto, publicado em Portugal, em março de 1917. 5 Crítica favorável ao livro feita por José Bento Monteiro Lobato em – A barca de Gleyre – Globo livros, 1959 – p. 453 6 Informações contidas em documentos clínicos produzidos no Hospício Nacional e no Pavilhão de Observação, entre 1900 e 1930. Disponível em: - http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v17s2/31.pdf

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cardíaco e gripe torácica”, dias antes de seu pai, lá também internado pelos mesmos problemas. Estes são, fundamental e possivelmente, de forma resumida, os leitmotiven localizados pela nossa pesquisa, que lhes franquearam as bases e o levaram a escrever Triste fim de Policarpo Quaresma, assim e aqui condensados, sem esgotar o conteúdo amplo e tentacular de sua obra, escrita poucos anos antes de sofrer definitivamente os efeitos da doença que o minava e da internação que terminaram por matá-lo. Acrescente-se a isto o poder e o sentido-entendimento que dava a ele (esteve próximo e circulava entre militares pelos corredores do palácio da Guerra onde redundavam republicanos golpistas e adjuntos ao presidente Floriano) e a loucura: o conhecimento teórico da vida militar, depreendido de suas experiências no Ministério da Guerra, e suas duas passagens pelo Hospício Nacional, onde morreu seu pai, e no qual se internou voluntariamente para tratamento de saúde.(7)

A escolha deste livro se fez com o objetivo de expor não só a fragilidade estrutural com que se construiu o ideário republicano no país, novamente à revelia da vontade popular, dada à inconsistência histórico-ideológica que acomodava e movia seus homens e suas estruturas mentais e psicossociais, mas também com o intuito de tentar resgatar uma crítica literária como elemento ficcional-artístico-funcional da análise política da época e seu contínuo temporal extensivo à atualidade: a “aristocracia suburbana” ou burguesia típica do Brasil e seus reflexos na formação de uma classe média hierarquicamente abaixo daquelas (tendo, claro, como fator determinante as diferenças e injunções econômicas), tão ou mais distante dos fatos importantes que movimentavam o país e, conseqüentemente, deseducada politicamente. De gestos e moral distinta da aristocracia palaciana ou de corte, a então dona das terras da periferia, a classe média suburbana subexistia presa aos modismos importados, e só chegou àquela condição, de um novo patamar social depois de o país ter sido colônia de extrativismo primário, firmado em uma convenção econômica e estatutária baseada no escravismo servil por quase trezentos anos (FERNANDES, 1995). Só então, e a partir daí, dadas as injunções e os arranjos 7 Diário do Hospício é um (de dois) documento escrito por Lima Barreto, um impressionante relato da internação do escritor, entre o natal de 1919 e fevereiro de 1920, no Hospício Nacional dos Alienados, no Rio de Janeiro, organizada por Augusto Massi e Murilo Marcondes de Moura, prefaciada por Alfredo Bosi, pela editora Cosac Nayfi, 2010.

econômicos políticos e sociais da época, a sequência histórica, desde a derrocada napoleônica e a influência dos tratados comerciais então feitos com a Inglaterra, e além, os fatos particulares da família imperial portuguesa, em que pesem os seus modos de tratar os personagens da corte, as relações de negócios e a economia própria do Estado lusitano (FAORO, 2001), consubstanciaram-se nos fatos que levaram o país a declarar-se politicamente independente da metrópole portuguesa em 1822, para, em seguida, tornar-se Império, antes de se tornar uma República. Retrocedendo na contramão da história, comparativamente aos outros países do continente, sem a participação popular tanto quanto no episódio da independência política de Portugal preconizada por D. Pedro I, o Brasil adentrou à força de golpe militar no modelo republicano, proclamado e imposto ao país por marechais, generais e militares à revelia do povo, o que foi visto com desconfiança pela Inglaterra, mas foi saudado pela Argentina, ao mesmo tempo em que gerava um alinhamento criador de facilidades econômicas com os Estados Unidos em franca expansão industrial. O golpe fora dado em certa medida como reação à morosidade da corte que, parece também

não

pretendia

alterações

no

status

quo,

nem

na

estrutura

burocrático-administrativa, política e socioeconômica do período pré-imperial da qual remanescia e ainda se mantinha. Não houve consulta ou conclame à população, desde sempre e então, mais uma vez, alijada das principais convenções e dos rumos do país (FAUSTO, 1977). Algumas panorâmicas e outros recortes aproximados de certos personagens destacáveis no livro nos deixam entrever, erguida a cortina do sarcasmo barretiano, diversos modos de vida compondo a população em sua diversidade étnica e social. Desfilando orgulhosa e alheia, pisando no barro das ruas do subúrbio carioca, e por entre mundanos de toda ordem, agia uma burguesia branca, fatia intermediária dos substratos sociais ali apresentados, moralmente apequenada por seus interesses pessoais, cheia de recalques, artificialismos e maneirismos frouxos, também ancorada no modelo imperial e seu anacronismo, partícipes de um modo de ser econômico, administrativo e político evocativo de outros e “novos” valores trazidos a navios mercantes, galope e espada pelos ventos do tempo. Estes são demonstrados, dentre outros exemplos da “modernidade” que ganhava vulto e categorização, por exemplo, no aspecto cultural, pela introdução no gosto daquela gente mediana de um instrumento musical, o violão, que no Brasil só

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adquiriu status de instrumento sério após o Modernismo e Villa-Lobos, assim colocado e descrito por Lima Barreto no livro: [...] Não, Ricardo Coração dos Outros era um artista a frequentar e a honrar as melhores famílias do Méier, Piedade e Riachuelo. Rara era a noite em que não recebesse um convite. Fosse na casa do Tenente Marques [...] papai, disse Dona Ismênia, gosta muito de modinhas[...]. (BARRETO, 1997, p. 22) Rivalizando com o piano em importância, pela facilidade de transporte e menores custos operacionais e de manutenção, o violão como instrumento musical agregador foi-se introduzindo nas casas e no seio dessas famílias, junto com as modinhas ou canções ligeiras que falavam “descomprometidamente“ de amor e casamentos, variantes socioimputáveis às mulheres que se interpunham castamente à lógica machista presente desde então, sem lhes oferecer resistência: “Intimamente ela não se incomodava. Na vida, para ela, só havia uma cousa importante: casar-se [...]” (BARRETO, 1997, p. 38). Outros eventos da modernidade afloram no livro e os recolhemos também pelas alusões feitas às escolas livres que principiavam a surgir como espaços de aprendizado e cultura, rivalizando em importância com os centros de saber antes mantidos exclusivamente pelo Estado, cujos acessos encontravam-se, desde então, restritos apenas aos mais próximos e socialmente melhor posicionados. Pontuando a paisagem social carioca e abaixo desta camada sedimentar composta de militares, burocratas, subalternos, liberais e comerciantes, malandros, arrivistas e donzelas de prendas e dotes, giram em torno da figura continental do major Quaresma, avessos à mestiçagem e zelosos de suas posses materiais, desvalorizando a educação e os livros com o mesmo furor com que propendiam ao progresso e aos lucros dos novos tempos, subvivendo como podiam, encontramos uma profusão de seres: “ex-escravos“, os negros, caboclos, cafuzos, mestiços, remediados, os “zungas”, diluídos e revirando-se no caldo caótico de uma sociedade desestruturada, sem equipamentos ou aparatos sociais, à margem, tirando sustento de pequenos expedientes e serviços pontuais, carregando tralhas, cortando lenha, costureiras, carreteiros puxando carroças junto com a animália, limpando ruas, jardins, roçados e bueiros. Pobres que não merecem uma “enxada na mão”, “vadios” como lhe diz o próprio presidente Floriano em uma noite em que conversaram (BARRETO, 1997).

Lima Barreto vivencia, em seus últimos anos, a condição social do povo sob um novo golpe: o quinto presidente do Brasil, o civil Rodrigues Alves, milionário cafeicultor paulista (a terceira fortuna do país) delega poderes ditatoriais ao sanitarista Oswaldo Cruz, ao engenheiro Lauro Müller e ao urbanista Pereira Passos, a “tripla ditadura” para uma grande obra de reurbanização, responsáveis pelo que a imprensa carioca chamou, è época, de “regeneração” do centro do Rio de Janeiro – antes capital do Império e então capital da República: a expulsão do grosso da população pobre dos casarões da área central da cidade próxima ao porto. O fato, narrado como uma modernização necessária à região daquela área da cidade culminou com a Revolta da Vacina (SEVCENKO, 1984), movimento de reação e resistência popular que aquela gente comum ofereceu ao programa de limpeza urbana imposto à cidade, datado de 1904. O Exército, a Marinha, as Forças Armadas voluntárias e guardas republicanos se abateram fortemente armados e unidos sobre os antigos moradores da região, e anos depois, após milhares de populares detidos, centenas de feridos e dezenas de mortos, conseguiram seu intento: expulsá-los, sem indenização, para longe do centro que, assim limpo, tornava-se um lugar à altura das necessidades e requintes das exigências da “Belle Époque” e da indústria europeia que procurava mercado para desovar suas mercadorias (SEVCENKO, 1984, p. 29). Os morros do entorno, desde então, acomodam aquela população e eis aí, possivelmente, uma das raízes da formação das favelas e atuais comunidades carentes do Rio de Janeiro. Ali se reafirmou a nova divisão social do País, mera continuação do que sempre fora. A capital da República dera o exemplo a ser seguido e ditava o traçado e as diretivas das novas capitais que surgiriam nos outros estados e que estivessem interessadas em trilhar o caminho da prosperidade. A atmosfera cosmopolita que desceu sobre a cidade renovada era tal que, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, as pessoas não se cumprimentavam mais à brasileira, mas repetiam uns aos outros: “vive La France!” como corolário àqueles que não podiam se trajar decentemente (para os homens: calçados, meias, calças, camisas, colarinhos, casacos e chapéus) e que, portanto, tinham acesso proibido à cidade. (SEVCENKO, p. 26) Lima Barreto já assistira, dois anos antes, outro ataque militar ser despejado sobre Canudos, na Bahia (MONIZ, 1987), em nome e em defesa do ideal republicano, episódio sangrento e grotesco, naquela feita sob o comando do marechal Floriano, ocasião em que morreram massacrados pelos canhões e pela moderna

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artilharia e fogo do Exército e das forças militares unidas, na região do Vaza Barris, no sertão baiano, de um lado, todos os habitantes do campesinato alternativo: cerca de 30 mil brasileiros entre velhos, homens adultos, mulheres e crianças, orientados por Antônio Conselheiro - e de outro lado, emboscados e surpreendidos pela capacidade de resistência daqueles „matutos‟ simples, alguns milhares de soldados. O sistema de terror e da propaganda aplicados e alardeados nos jornais cariocas seguia as regras e a bula dos massacres e invasões do período medieval ou colonial realizados contra perigosos inimigos estrangeiros: decapitação e exposição em praça pública dos restos dos cadáveres dos insurgentes. Um museu expôs as fotos durante mais de um mês no centro da capital da República. Em 1911, surge o livro que coloca o personagem major Policarpo Quaresma no cerne da segunda revolta da República cujo movimento central atinge a capital da República, o centro do Rio de Janeiro e partes da periferia da cidade. Mas aquele personagem curioso vem, a muito tempo já, sendo gestado no imaginário do autor, fruto da sua leitura e crítica da realidade desde então. Os gestos dos próceres da república não lhe passam desapercebidos, e o fato determinante de ser jornalista e trabalhar nas redações, portanto, atualizado com os fatos de seu tempo, e de ter tomado contato com procedimentos do Ministério da Guerra tornam afiados o espírito e a sagacidade analítica de Quaresma, que nasce assim crítico, ácido e corroído pelo azedume da realidade, pois seu criador é observador, partícipe e esperançoso de uma nova ordem social. Como Lima Barreto, o personagem Policarpo tem consistência histórica, é culto, erudito, um intelectual, não se julga um qualquer. É de boa índole, tem bom humor e admite-se doido, vá lá, mas, ignorante de seu país e dos males que o acometem, jamais! Seu perfil apaixonado é amargo e ingênuo, e ao mesmo tempo, detém irônica capacidade de corrosão. Este conjunto de qualidades, atributos éticos e morais singulares, deforma-se no contínuo do romance, e ele inadvertidamente transpõe o espaço que havia entre funcionário público ousado e inconformado ao posto de subalterno indisciplinado, quando propõe a adoção do Tupi como língua oficial do país e distraidamente encaminha ofício ao superior do gabinete no Ministério da Guerra, onde trabalha, escrito na língua indígena, provocando a ira e a indignação de seus chefes, para, em seguida ao fato, ser retratado pelos folhetins e imprensa da época, sequiosa de fofocas e atenta às gafes e detalhes das ações governamentais, à procura de um bobo na corte. Por fim, no entardecer do romance, isolado e preso torna-se “criminoso de guerra‟, é condenado à prisão e à morte por traição, ele que,

em seu idealismo apaixonado só pretendeu as mudanças, só quis e procurou imprimir conceitos e caráter de qualidade e firmeza na condução do país que sabia rico, na execução de um projeto baseado na justiça e na nobreza da República, regime recém-inaugurado à força de assalto e golpe militar, e no qual, de fato, como deixa entrever em seus comentários finais, dadas estas características, com o desenrolar dos fatos e à mercê destes descrê, deixando entrever pelas suas elocuções o que verdadeiramente pensava o autor de suas peripécias, que enfim o descreve quase como um herói sem forças para exercer sua razão, impotente para consubstanciar as causas que o movem. Sozinho, e às vezes cercado de sicofantas e inúteis, o major, de certa forma, parece encarnar a República que é retratada e discutida pelos personagens como um regime que se instaura à revelia da anuência popular, à maneira dos conquistadores e invasores imperialistas, sem o contrato firmado com a população civil sempre relegada durante todo processo colonial a um plano inferiorizado, e mais uma vez, ignorante na sua maioria, irresponsável e irresponsiva do projeto que lhes é imposto, desta feita por marechais furiosos e contrários à presença de monarcas portugueses, contra quem, por militância política e forte inclinação anarquista, Lima Barreto, a mão que pinta Quaresma, dispensa ataques velados e crítica mordaz. Estava o regime, de tal sorte, fadado ao fracasso? Tinha de dar naquilo. Um fim trágico, com os elementos literários necessários para se confirmar como tal, tratado com nuances de loucuras e pantomimas que lhe conferem, ao mesmo tempo, suave sabor de comédia. Lima mata Quaresma, mas antes torna-o patético, ridicularizo-o em diversas ocasiões, juntamente com outros personagens a meio palmo da mediocridade, coloca-o em um hospício e, noutra feita, a lutar contra formigas (talvez apontado a sua inglória disposição de lutar contra o que não se pode nem se deve lutar), ele o mata no final porque o trata como um sonho que mal se tem e que logo se transforma em pesadelo. Como a república e sua instauração. Era melhor acordar! Trazido para o meio de uma luta travada entre grupos rivais, ainda que baseados na Lei, cada qual com sua interpretação do que fosse esta, o anti-herói major Policarpo Quaresma, um intelectual nacionalista visionário de boa índole nela se envolve inocentemente, sofre por seus ideais e suporta o peso e a crueldade do conflito armado, das traições e da indiferença sórdida de seus próximos, daqueles com quem convive, misantropos interessados apenas e tão somente em seus próprios

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negócios, como vai apontando nas passagens da narrativa: o médico sociopata que se casa com sua afilhada Olga, um individualista e egoísta que só quer ficar rico, as conversas com os militares reformados que nunca foram à guerra, mas vivem nas repartições, dando movimento aos trâmites burocráticos que podem melhorar as suas aposentadorias etc. Quaresma é preso e encarcerado em uma ilha por aqueles que um dia ajudou em combate e morre abandonado – executado? - pelos mesmos que viviam em sua casa, mas no final o negam e lhes viram as costas. A revolta na qual se joga como defensor do marechal Floriano Peixoto é uma luta para a qual se procurou dar feições de conturbação e convulsão social, mas sem a participação popular – deseducada e mais uma vez alheia –, conduzida pelas mãos de uma elite mesquinha e dissociada do resto e das verdades profundas do país, é mera continuação do golpe, e é neste subterrâneo de intenções, neste vazio moral que Lima coloca o major. Entre a tibiez moral daquela gente que fala de país, de honra e dos grandes fatos políticos que determinam a vida das pessoas, mas que sob a luz de um olhar mais perspicaz desnuda a falsidade e o rasteiro de suas intenções. Treze generais decidem que o presidente marechal Floriano Peixoto deveria seguir a Constituição e chamar nova eleição para o cargo que ocupara após a saída de marechal Deodoro da Fonseca. A Constituição de 1891 garantia que, se a presidência ou a vice-presidência ficassem vagas antes de se completarem dois anos de mandato, deveria ocorrer uma nova eleição, o que fez com que a oposição começasse a acusar Floriano por manter-se ilegalmente à frente da nação. Ocorre a Segunda Revolta da Armada, em 1893 (MARTINS, 1997). Mas como fazer uma revolução se aquela era uma população distante, sem a menor vontade de participar do processo “revolucionário republicano”, porquanto ignorante do que vinha ser este ou aquele modelo político? “[...] Eu sei lá[...] Urubu pelado não se mete no meio dos coroados. Isso é bom pro „sinhô‟” (BARRETO, p. 141) parecem dizer em uníssono, Felizardo, Anastácio e Mané Candieiro, os negros roceiros que cuidam do sítio do major em Curuzu, e que tão logo ouvem falar da insurgência se metem no mato e desaparecem para não serem convocados para lutar. Nisso reside a ironia de Lima Barreto que expõe a mixórdia, a algaravia da sociedade brasileira, presa dos pequenos grandes planos e interesses grupais, desconectada da realidade maior e social, enlouquecendo e adoentando aqueles que a querem entender e sanar-lhe os problemas, mas tendo de ao mesmo tempo de debater-se

com saúvas que invadem a plantação e a põem a perder de uma noite para o dia, cem, mil, milhões... Simbolismo profundo! Lima Barreto fatia a realidade, e a disseca em gestos, esmiúça-lhe as situações, circunstâncias, causas e efeitos, e assume o olhar e a fala de quem a descreve ficcionalmente. Sua estética, por meio do viés do jornalismo, se distinguiria principalmente pela simplicidade, pelo despojamento, contenção e espírito de síntese, aplicados à linguagem narrativa, enquanto que o tratamento temático se voltaria para o cotidiano, os tipos comuns, as cenas de rua, os fatos banais e a linguagem usual. (SEVCENKO, p. 168) Este uso da linguagem mais popular valeu-lhe críticas, é ignorado mas, O intelectual brasileiro, procurando identificar-se a esta civilização, se encontra, todavia, ante particularidades do meio, raça e história, nem sempre correspondentes aos padrões europeus que a educação lhe propõe e que por vezes se elevam em face deles como elementos divergentes, aberrantes. (CANDIDO, 1991, p. 102) A vida do major, que usa uma patente militar não desejada, comprou-a de ocasião por 400 contos durante a passagem em que assume a resistência pró-Floriano Peixoto – de quem traça perfil definitivo: cruel e ao mesmo tempo patético – é, contudo, de uma riqueza impressionante, de uma abundância de informações e conhecimento sobre seu país, capazes de colocá-lo acima dos generais, almirantes e demais postos que o circundavam, metidos que viviam no dia a dia de seus afazeres mesquinhos e nos escaninhos daquela burocracia empesteada de provincianismos, distante da racionalidade weberiana, ainda estruturada e alimentada pela seiva viscosa das raízes do feudalismo imperial português. (JURT, 2012). Eis porque, talvez, da escolha de seu nome Policarpo. Em sua busca quixotesca com um violeiro como escudeiro não oficial (a característica impressa pelo escritor Miguel de Cervantes, espanhol do século XV e autor de Dom Quixote de La Mancha configura-se intrínseca aos heróis sonhadores), uma ironia fina parece perpassar os arroubos nacionalistas do major Quaresma pela construção de uma República fortemente embasada em ideias de nobreza de caráter, honra revitalizada e pura, fato que por si, graças à analogia, deixa entrever a

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descrença e a falta de seriedade que permeia a crítica barretiana à instauração daquele regime de governo - poder. Quaresma busca na exuberância das terras brasileiras, na riqueza já declinada pelos versos do escrivão Pero Vaz de Caminha em sua primeira missiva ao Rei de Portugal (“em se plantando aqui, tudo dá!”), as respostas para todos os males que nos fustigam. “Quaresma era antes de tudo brasileiro. Não tinha predileção por esta ou aquela parte do país, [...] era tudo isso junto, fundido, reunido, sob a bandeira estrelada do Cruzeiro” (BARRETO, 1997, p. 27). Reflete em si o caldeirão das eficácias e necessidades do país heterogêneo, de diversas cores e etnias. Como crítico ferrenho da sociedade de sua época e da baixa aristocracia, dos modos burgueses, frívolos, sem nexo e sem fundamento, Lima Barreto, através do major, vasculha a intimidade dos lares, os corredores das repartições públicas, os hospícios e os quartéis, os palácios e os cortiços da cidade. Fala, recorta e reúne em sua prosa ricos, pobres, remediados, militares, políticos, comerciantes e burocratas, de centro e da periferia em uma costura rígida, bem amarrada em que prende todos firmemente, e de longe parece apreciá-los sem piedade, sem amor, às vezes exasperado, curioso espectador a olhar aquela tragédia a esgarçar-se. E empresta a voz a seu personagem Policarpo, por sua vez um apaixonado (todo herói é vítima das paixões, desde Hércules (8) confere-lhe uma patente, mesmo artificial, para afirmar de modo irônico, e ácido às vezes, em todo o romance, a desmesurada incompetência dos militares e das elites sem norte que mal têm o país nas mãos, e, ao mesmo tempo, afirma a necessidade de valorizar este país e seu povo mais simples, de moralizá-lo e de cobrar inteligência e firmeza na condução da “coisa pública”. Ele que nada quer a não ser ver o país progredir e não desafinar no concerto das nações. Nada de ambições pessoais, políticas ou administrativas; o que Quaresma pensou, ou melhor: o que o patriotismo o fez pensar, foi num conhecimento inteiro do Brasil, levando-o a meditações sobre seus recursos, para depois então apontar os remédios, as medidas progressivas, com pleno conhecimento de causa. (BARRETO, 1997, p. 25)

8 O mais célebre dos heróis da mitologia grega, um semideus (meio homem meio deus), o símbolo do homem em luta contra as forças da Natureza. Era filho de Zeus (pai dos deuses) e Alcmena (uma mortal), a virtuosa esposa de Anfitrião, que foi ludibriada pelo pai dos deuses e por ele fecundada. Morreu, segundo a lenda, abrasado por paixões, após vingar-se da morte da amada e por matar Quíron sagrado, um centauro que fora seu mestre nas artes da luta e da defesa.

Macunaímico (9), suas saúvas podem muito bem ter servido de inspiração para modernistas como Mario de Andrade (também mulato e interessado pelas “coisas” do País), seu nacionalismo utópico personifica crítica mordaz, ironia e malícia a uma patriotada emergente e/ou resistente, desde a Canção do Exílio (10 ) ilustração acadêmica das belezas que apenas olhos e sentimentos étnicos e socialmente adestrados pelo caldo cultural europeu e branco – o olhar de fora – podiam refletir. Ao ridicularizar os militares de gabinete, aqueles almirantes sem esquadras ou navios, generais que jamais deram um tiro em guerra, desertores interessados apenas e tão somente em suas próprias patentes e promoções, Policarpo Quaresma revela-nos Lima Barreto, e ironiza sua crença na ordem e no progresso positivista defendido pelos militares republicanos cujo lema encima o auriverde pendão nacional. “O general nada tinha de marcial, nem mesmo o uniforme que talvez não possuísse. Durante toda a sua carreira militar, não viu uma única batalha, não tivera um comando, nada fizera que tivesse relação com sua profissão!” (BARRETO, 1997, p. 36). E coloca os mequetrefes e os pândegos em fila “[...] O Contra-almirante era interessantíssimo. Na Marinha por pouco que não fazia pendant com Albernaz no Exército. Nunca embarcara, a não ser uma vez [...]” (BARRETO, 1997, p. 52), descrevendo-os, inclusive como descrentes da educação, da ilustração pelos livros, nacionais e estrangeiros, estudos sérios sobre os quais, ele, Quaresma, erguera todo o seu conhecimento. Mesmo sua crítica em relação ao marechal-presidente Floriano Peixoto, ao traçar-lhe o perfil, é definitiva, demolidora, e nela inclui subliminarmente crítica à mestiçagem, à mistura das raças que desgraçadamente também nos conforma como país: Figura vulgar e desolada, bigode caído, lábio inferior pendente e mole; traços flácidos e grosseiros, sem o desenho do queixo ou olhar próprio que revelasse dote superior [...] a tristeza nativa, da raça [...] parecia não ter nervos! [...] Preguiça [...] tibieza de ânimos [...] esse “homem-talvez” [...] – sua concepção de 9 Macunaíma, do escritor paulista Mário de Andrade é tido como um dos principais romances brasileiros do modernismo literário e artístico cultural de 1922. O livro surge em 1928, seis anos após a morte de Lima Barreto que foi considerado um dos grandes renovadores da linguagem romanceada pelos intelectuais que fazem o Movimento de 22. Mário também era mestiço. 10 Canção do Exílio - poema escrito em Coimbra – Portugal, em Julho de 1843 por Antônio Gonçalves Dias, poeta, advogado, jornalista e, curiosamente mestiço, nascido em agosto de 1823, no sítio Bom Vista, em terras de Jatobá, município de Caxias – MA. Morreu aos 41 anos em um naufrágio do navio Ville Bologna, também no litoral maranhense. Disponível em: . Acesso em: nov. 2014.

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governo não era o despotismo, nem a democracia, nem aristocracia, era de uma tirania doméstica [...] ! (BARRETO, 1997, p. 188-92) Àquela afeição desmedida à família burguesa historicamente assentada no falo patriarcal e na necessidade da manutenção das posses e propriedades, apresentada e discutida por Engels e Marx no livro A origem da família,da propriedade privada e do Estado, publicado em Zurich, em 1884 (11). A atuação do major Quaresma, ele mesmo sem família, sem esposa e filhos, tal qual Lima Barreto, pela construção de um ideário republicano brasileiro, livre das incongruências originadas na Europa, o tornam uma triste figura, um tolo, insignificante, ridículo, às vezes, e nada tinha a ver com nossas características especiais. Suas tentativas de argumentar a favor da valorização da cultura nacional, da nossa música, das nossas danças, a vegetação, a hidrografia e a geografia da terra, os produtos da indústria nacional, do vinho ao tecido das roupas que usava, a sua luta e busca pela justiça e inserção social dos que estavam abandonados pelo poder, força que se corretamente aplicada, como propôs ao marechal Floriano em memorial, “[...] desde que se corrijam os erros de uma legislação defeituosa e inadaptável às condições do país[...]” (BARRETO, 1997, p. 218), enfim, aquilo que haveria de nos tornar uma nação de verdade, deveria passar antes por uma necessária reestruturação, pela busca de uma autonomia e uma abrangente emancipação dos modelos aqui implantados e vigentes desde a época da coroa. A partir da língua, inicialmente (... “no princípio era o verbo”...). Sua proposta era o uso do tupi-guarani – Tupi or not Tupi – (ANDRADE, 1928), como sendo a verdadeira língua nacional, apresentada em requerimento em sessão da Câmara: “Policarpo Quaresma, cidadão brasileiro, funcionário público, certo de que a língua portuguesa é emprestada ao Brasil [...]” (BARRETO, p. 61) provocou enorme celeuma entre superiores e demais empregados do Ministério onde trabalhava; o major foi achincalhado, espinafrado por todos os colegas de sua repartição, do superior imediato que se viu ameaçado com tamanha desfaçatez e até pelos amigos. Embora chateado resignou-se à punição.

11 A origem da família, da propriedade privada e do Estado é uma obra de Friedrich Engels, e analisa pelo viés do materialismo científico dialético, desde o início dos tempos, o desenvolvimento da civilização. Foi publicado pela primeira vez em 1884.

[...] ele que há trinta anos estudava o Brasil minuciosamente; ele que em virtude destes estudos, fora obrigado a aprender o rebarbativo alemão, não saber tupi, a língua brasileira, a única que o era – que suspeita miserável! Que o julgassem doido vá![...] (BARRETO, 1997, p. 68) Não era doido o major, ingenuamente apaixonado por seu país, sim. Mas, o tratamento a ele dispensado por todos, à exceção de Coração dos Outros, o amigo violeiro, era este mesmo: “Você, Quaresma, é um visionário[...]” (BARRETO, 1997, p. 219). Suspenso de suas funções de subsecretario de onde trabalhava, Quaresma é tido como louco e vai-se para o Hospício. Lugar comum aos que afinam diferentemente do diapasão consensual e têm ideias próprias. Não se revolta, e de fato, aproveita o tempo ocioso para fazer breve análise da condição da loucura (o próprio Lima Barreto redigiu textos sobre sua passagem pelo “sanatório”), e em seguida principia a estudar, arquiteta e se lança num plano ambicioso – o de cultivar as terras que possuía, um sítio chamado Curuzu, com o fito de provar-lhe as qualidades e pujança. “O Brasil é o país mais fértil do mundo, é o mais bem dotado, e suas terras não precisam de „empréstimos‟ para dar sustento ao homem. Fique certo!” (BARRETO, 1997, p. 151). Lima Barreto é esteticamente apaixonado pelo Império, e deixa entrever este amor àquela sensação de estabilidade ao descrever em poucas linhas “a simplicidade do antigo palácio do imperador as palmeiras imperiais, a beleza daquele monumento etc.[...]” (BARRETO, 1997, p. 167) ou pelo menos via nisso alguns valores a serem mantidos. Evolutivamente todas as formas de governo carregam genes umas das outras, todas se parecem e se balizam pela conquista e manutenção do poder. Mas, é revolucionário, apoia os ideais libertários da revolução russa que aboliu as antigas castas aristocráticas e feudais que ainda vê funcionando no Brasil. Critica o Positivismo (12) de uma facção militar que tentava se impor como corrente filosófica dentro das Forças Armadas e implementado na política pelos militares de nossa primeira República e da ditadura de Floriano a partir de 1920. 12 Positivismo – doutrina sociofilosófica de Augusto Comte, cujas principais características se introduzem no seio do Exército Brasileiro como doutrina militar. O Exército Brasileiro até 1920 é sustentado por esse embasamento doutrinário de inspiração comtiana: o objetivo dos integrantes da Escola Militar, neste período, é aprender os ensinamentos de engenharia e matemática, deixando de lado os conhecimentos referentes à representação e função de um militar. Disponível em: . Acesso em: nov. 2014.

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Ironiza os procedimentos destes militares através do personagem Major Policarpo Quaresma, para quem se deve antes organizar o conhecimento, ordená-lo de tal forma que se possa alcançar o progresso, em que cada coisa esteja em seu lugar próprio, etiquetada, como em uma grande biblioteca, servida por bacharéis dedicados, em um âmbito operacional febril, construtivo e a ser coroado com o amor pela pátria, que assim subiria aos píncaros acantilados do sucesso e se igualaria às potências mundiais. Mas qual, na acidez barretiana, eram todos mequetrefes, bufos assemelhados, assanhados pela força que detinham enquanto militares patenteados, mas cujas patentes sequer importavam, metidos a autoridade. Mentirosos que narram batalhas das quais nunca participaram; conservadores que defendiam a monarquia apenas por sentirem saudades de suas regalias; bajuladores do governo apenas para se locupletarem em novos cargos, comissões e promoções; incapazes de realizar uma tarefa para a qual fossem designados. No entanto, a revolta produziu seus títeres. “Em nome do marechal Floriano qualquer oficial, ou mesmo cidadão, sem função pública alguma, prendia e ai de quem caia na prisão [...] Eram os adeptos deste nefasto e hipócrita positivismo, um pedantismo tirânico [...]” (BARRETO, 1997, p. 175). Sequer o povo, que Policarpo sonhava unido em nome do País, pela construção da República, tinha méritos. Sua despolitização, seu descompromisso ou até indiferença ante as grandes causas, deixavam-no atordoado, levaram-no à “certa loucura”, e como o autor, ele é também conduzido ao hospício. O quadro das miscigenações ganhou muito mais quando aqui também se introduziram os escravos negros como mão de obra trazida da África, para aumentar a produção e como forma de substituir a mão de obra indígena local, considerada preguiçosa e rebelde. Embora os negros (a característica fenotípica induz ao conceito de “raça” única), fossem, por sua vez, pertencentes a etnias diversas, eram por razões históricas e civilizatórias, e em relação aos senhores brancos escravagistas, inferiorizados tecnológica e historicamente. Vieram em seguida também os ingleses, os espanhóis, os franceses, os holandeses, os árabes e os semitas, por sua vez todos também miscigenados cada qual com sua sanha (e continuaram chegando cada vez mais povos e novas culturas), transformando o espaço, e ao mesmo tempo conformando-se e à nova geografia (SANTOS, 1996).

[...] formado por um conjunto indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como um quadro único na qual a história se dá. No começo era a natureza selvagem, formada por objetos naturais, que ao longo da história vão sendo substituídos por objetos fabricados, objetos técnicos, mecanizados e, depois cibernéticos fazendo com que a natureza artificial tenda a funcionar como uma máquina. (SANTOS, 1996) É sobre esta mistura de povos, culturas, línguas e credos, cada qual com uma visão de mundo e uma perspectiva diferenciada sobre um torrão rico e exuberante que se pretendeu construir uma República, depois de os militares retirarem pela espada os últimos monarcas. E o major Policarpo Quaresma responde a isso, positivamente: conhecendo o território, suas mazelas e remédios, suas riquezas e recursos, e pode-se, enfim, domá-lo. Para tanto é preciso educar os homens, aplicar a justiça social, distribuir a riqueza e partilhar a cultura, fomentá-la e traduzi-la como a canção universal harmonizando com todas as outras individual e indistintamente. Sabe, porém, que lhes falta algo. [...] Quaresma procurou descobrir naquela odiosa catadura que Darwin achou nos mestiços; mas, sinceramente, não a encontrou. (BARRETO, 1997, p. 158) [...] Com o tempo, a revolta passou a ser uma festa, um divertimento da cidade[...] Alugavam-se binóculos e tanto os velhos como as moças, os rapazes como as velhas, seguiam o bombardeio [...] (BARRETO, 1997, p. 176) Será que dali, erigido assim sobre os devaneios, os sonhos ou a loucura de um personagem, traduzindo em essência a loucura crítica de seu autor, surgiria um país? Sua indagação trocista, mas triste, ampara-se na questão que se subentende da leitura do livro: era então naquele povo, que se fiava a construção da República brasileira, sobre um ideário de honra, força e nobreza de caráter? Com aquela elite na direção e orientando os rumos da nação? Eram aqueles que olhavam e admiravam apenas os próprios umbigos, os próceres que ergueriam as estruturas do país do futuro? O que se construiria com isso? Uma caricatura de nação. “Todo sistema de dominação, para sobreviver, terá de desenvolver uma base qualquer de legitimidade, ainda que seja a apatia dos cidadãos [...]” (CARVALHO, 2005, p. 11). Policarpo, de muitas visões, afazeres e ideais, como uma criança séria, parece não se aperceber do jogo político, das intrigas e dos interesses dos homens,

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entrega-se de corpo e alma a suas percepções e onde vê defeito procura levar concerto. Parece não entender a pantomima e as ações dos outros que o cercam, ou se as entende não lhes dá a mínima. Age como o tolo útil que dissimula a incompreensão e, assim, imagina-se isento das maldades que o cercam; joga-se de cabeça e coração num jogo em que mistura fé e razão sem diferenciar uma da outra, um perigo, em termos políticos, e cujo resultado soma zero. Está, sim, à frente de seu tempo e acima de seus pares; e, por isso mesmo, como ave de canto fino, não tem poleiro, não pousa, mas entrega-se à morte e aos que o querem abater, por serem indiferentes a sua visão, e vai-se com ela, abandonado, sem ver resolvido nenhum de seus desejos e preocupações. Policarpo sonhou. À exceção de Olga, sua afilhada, a única mulher do texto que apontava o futuro da emancipação feminina, em uma possível analogia à República que um dia haveria de vingar a despeito de tudo e de todos, e Ricardo Coração dos Outros, o violeiro popular, que pela arte inocentemente galgava espaço entre as faixas médias da população, ninguém mais tentou salvá-lo ou procurou ajudá-lo. Mas se sonhar é possível, torná-lo realidade exige um pouco mais de sacrifícios. Quantos não morreram tentando? Quantos mais virão e enlouquecerão tentando, submersos em drogas e pesadelos, loucura, insanidade? Vítimas de preconceitos e da tacanhez de seu tempo material? Entretanto, hoje, de posse desta consciência, os retratos postos nas paredes do tempo e o desfile das velhas novidades, parece-nos, abundam recursos, estudos e saberes sólidos, suficientes e necessários que já podem apontar, babeliformemente, os rumos para esta e outras investigações...

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