Limitações e Estratégias de Ação Feminina na Sociedade Haitiana: Categorias de Articulação/ Interseccionalidades; Limitations and Female Action Strategies in Haitian Society: Articulation Categories/Intersectionality

Share Embed


Descrição do Produto

Artigo ..........................................................................................................

LIMITAÇÕES E ESTRATÉGIAS DE AÇÃO FEMININA NA SOCIEDADE HAITIANA: CATEGORIAS DE ARTICULAÇÃO/ INTERSECCIONALIDADES LIMITATIONS AND FEMALE ACTION STRATEGIES IN HAITIAN SOCIETY: ARTICULATION CATEGORIES/INTERSECTIONALITY Adriano Alves de Aquino Araújo Mestre em Ciências Humanas e Sociais/UFABC [email protected]

RESUMO O presente artigo surgiu da necessidade de reflexão acerca da situação de desigualdade de gênero na sociedade haitiana. O contato inicial com a temática deu-se a partir do processo de desenvolvimento da dissertação de mestrado intitulada “Reve de Brezil: A inserção de um grupo de Imigrantes Haitianos em Santo André, São Paulo – Brasil”. O trabalho etnográfico revelou uma aparente submissão e inércia por parte das imigrantes haitianas, o que levou-nos a buscar leituras que informassem acerca dos marcadores de gênero no Haiti. Uma série de informes de organizações atuantes no país dá conta de diversos aspectos relacionados às desigualdades de gênero presentes no país, realidade partilhada com diversos países da América Latina, inclusive Brasil. Ao analisar aspectos patriarcais presentes na sociedade haitiana, os sociólogos Desrosiers e Seguy criaram o conceito de “monogamia em série”, para referir-se ao ciclo de relações conjugais monogâmicas estabelecidas por mulheres que são abandonadas com seus filhos, e buscam a estabilidade afetiva, social e econômica na figura masculina de pai/esposo. Uma aproximação à trajetória acadêmica do movimento feminista foi imprescindível para a contextualização do surgimento das demandas do feminismo negro e das mulheres da periferia do capitalismo. As Categorias de Articulação/Interseccionalidades resultam da necessidade de considerar de modo abrangente as diversas desigualdades que incidem sobre mulheres em distintas sociedades. A leitura foucaultiana de correntes feministas, como a de Baukje Prins dá conta de que, o poder não é uma relação estática pertencente a um só grupo ou indivíduo, mas sim um jogo de forças que é constantemente negociado. Deste modo, a aparente inércia da mulher haitiana frente a sua situação passa a ser repensada, abrindo margem à consideração de diversos aspectos sociais em que a mulher haitiana obtém destaque e ganha protagonismo na relação de jogo de poderes. As desigualdades existem, mas é interessante pensar nas mesmas de modo plural, não somente em seu sentido repressivo. O texto apresenta aspectos culturais de negação de acessos a uma série de facilidades, bem como de violações auferidas à figura feminina como resultantes de uma estrutura machista, contudo as considerações finais vão ao sentido de mostrar o papel da mulher na quebra destas estruturas de poder, que não se contenta com a realidade imposta pela estrutura e encontra possibilidade de ação e mudança. É importante levar em consideração que muitas das situações vivenciadas pelas mulheres haitianas decorrem do fator estrutural e de hierarquização das nações no cenário político-econômico mundial; deste modo, atenta-se ao fato de que as necessidades das mulheres são distintas nas mais diversas partes do mundo, reforçando a necessidade do estudo micro, como defendido pela indiana Avtar Brah. 19

.......................................................................................................... Artigo PALAVRAS-CHAVE Gênero; Mulheres haitianas; Categorias de Articulação/Interseccionalidades; Imigração haitiana.

ABSTRACT This article comes from the need for reflection on gender inequality situation in Haitian society. The first contact with the theme was given from the development process of the dissertation entitled “Reve de Brezil: A inserção de um grupo de Imigrantes Haitianos em Santo André, São Paulo – Brasil”. The ethnographic study revealed an apparent submission and inaction by Haitian immigrants, which led us to seek readings to inform about gender markers in Haiti. A number of reports made by active organizations in the country enumerated a lot of aspects related to gender inequalities present in the Haiti, this reality is shared with several Latin American countries, including Brazil. When analyzing patriarchal aspects in Haitian society, Desrosiers and Seguy sociologists created the concept of “serial monogamy”, to refer to the cycle of monogamous marital relationships established by women who are abandoned with their children, and seek emotional, social and economic stability in the male figure of father / husband. An approach to the academic trajectory of the feminist movement was essential to contextualize the emergence of the demands of black feminism and women of the periphery of capitalism. The Articulation / intersectionalities Categories result of the need to consider in a comprehensive way the many inequalities that affect women in different societies. Foucault’s reading of feminist currents, such as Baukje Prins realize that power is not a static relationship belonging to one group or individual, but a power game that is constantly negotiated. This manner, the apparent inertia of the Haitian woman front of his situation becomes rethinking, opening room for consideration of various social aspects in the Haitian woman gets highlighted and gains prominence in the power game ratio. Inequalities exist, but it is interesting to think about them in a plural way, not only in its repressive sense. The text presents cultural aspects of denial of access to a range of facilities, as well as violations targeted at female figure as a result of a sexist structure, however the final considerations will the sense of showing the role of women in breaking these power structures, that is not satisfied with the reality imposed by the structure and finds the possibility of action and change. It is important to consider that many situations experienced by Haitian women result from the structural factor and hierarchisation of nations in the global political and economic environment; thus attentive to the fact that women’s needs are different in various parts of the world, reinforcing the need for micro study, as advocated by Indian Avtar Brah. KEY-WORDS Gender; Haitian women; Categories Articulation / intersectionalities; Haitian immigration.

20

Artigo .......................................................................................................... O FEMINISMO E AS CATEGORIAS DE ARTICULAÇÃO/ INTERSECCIONALIDADES A emergência dos debates acadêmicos acerca do feminismo deu-se, sobretudo, a partir do final da década de 1980. Este foi o grande momento em que diversas autoras, trabalhando no âmbito de diferentes tradições disciplinares, produziram textos críticos tratando de gênero. Joan Scott na história; Marilyn Strathern na antropologia; Donna Haraway na história da ciência e Judith Butler na filosofia. Estas autoras tornaram-se referências clássicas nas discussões contemporâneas no que tange aos estudos feministas . A ideia da existência de uma base biológica imutável que divide a humanidade em dois sexos e, consequentemente, em dois gêneros foi largamente questionada pelos textos críticos de tais autoras. O alvo principal das críticas era a fixidez e unidade que essa distinção conferia às identidades de gênero (Ibidem). Haraway (1991) apud Piscitelli (2008) afirma que as leituras críticas do conceito de gênero coincidem com intensas reivindicações internas ao movimento feminista quanto a marcadores de diferença e exclusão apresentados por mulheres negras da periferia do capitalismo e por feministas lésbicas. Algumas autoras enunciaram a importância de considerar conjuntamente classe, raça e gênero, entretanto, continuaram privilegiando a categoria gênero. Na história do pensamento feminista, a relação com outras diferenças tem sido tensa. Autoras como Kum-Kum Bhavnani e Donna Haraway privilegiaram a articulação entre raça e gênero em linhas de discussão que denunciam as exclusões do pensamento feminista da segunda onda, que já é pensado como pensamento feminista branco. Nessa linha, há autoras que chegam até mesmo a considerar – a priori – a raça entre outras diferenças possíveis, como Maxine Baca Zinn e Bonnie Thornton Dill. Autoras feministas do Terceiro Mundo e/ou que trabalham com teoria pós-colonial, como Ella Habiba Shohat, Anne McClintock e Chandra Talpade Mohanty, chamaram a atenção para a necessidade de articular gênero não apenas à sexualidade, raça e classe, mas também à religião e nacionalidade. A articulação à nacionalidade justifica-se pelo posicionamento desigual, em escala global, propiciado pela nacionalidade, chamando a atenção para a posição estrutural das nacionalidades que estão interagindo (PISCITELLI, 2008). Outras autoras concederam relevância à análise conjunta de uma porção de diferenças, no entanto, consideraram que para analisar de maneira adequada a operação conjunta dessas diferenças é necessário criar categorias alternativas a gênero e à raça. A partir da busca por categorias analíticas alternativas surge a formulação dos conceitos: categorias de articulação/interseccionalidades (PISCITELLI, 2008, p. 264). Para autoras como Kimberlé Crenshaw, as interseccionalidades são formas de capturar as consequências da interação entre duas ou mais formas de subordinação, como sexismo, racismo e patriarcalismo. Em sua concepção, gênero não é o único fator de discriminação; entende-se que outros fatores operam conjuntamente (Ibidem). Werneck e Dacach (2004) apud Santos (2007) argumentam que a intersecionalidade deve ser incorporada como um instrumento de análise para se compreender a ação dos distintos elementos que prejudicam o exercício de direito à cidadania e o alcance de políticas públicas por parte das mulheres negras. O movimento de mulheres negras nasce articulando “raça”, gênero, classe e sexualidade como categorias políticas para explicar as realidades das mulheres negras frente ao racismo, sexismo, classismo e heterossexualismo. A política de identidade têm sido uma das estratégias prioritárias dos grupos e coletivos que se dedicam a combater estes sistemas de dominação. Consiste em uma série de ações que buscam reafirmar uma subjetividade contextualizada nos produtos de feitos históricos, tais como a colonização e a escravidão, que fazem com que o “ser negra” seja uma situação desvalorizada, depreciada e muitas vezes negada (CURIEL, p. 79, 2005, tradução nossa).

Baukje Prins (2006) apud Piscitelli (2008) questiona abordagens que pensam gênero, raça e classe como sistemas de dominação, opressão e marginalização que determinam identidades exclusivamente vinculadas aos efeitos da subordinação social e desempoderamento. As linhas que se inserem no enfoque sistêmico sobre interseccionalidades às vezes trabalham com o referencial de Foucault utilizando seletivamente sua noção de poder; essas linhas ignoram o fato de que esse autor pensa o poder não apenas em sentido repressivo, mas também produtivo, que não apenas suprime, mas produz sujeitos (Ibidem).

21

.......................................................................................................... Artigo As relações de poder alteram-se constantemente, marcadas por conflitos e pontos de resistência. Os marcadores de identidade como gênero, classe ou etnicidade não devem ser encarados apenas como formas de categorização exclusivamente limitantes, mas que, oferecem simultaneamente recursos que possibilitam ação (PRINS, 2006 apud PISCITELLI, 2008). Brah (2006) apud Piscitelli (2008) propõe-se uma análise micro, considerando simultaneamente subjetividade e identidade para compreender as dinâmicas de poder na diferenciação social. Este é um aspecto característico das feministas do Terceiro Mundo, uma vez que, as preocupações políticas que as orientam requerem que as análises compreendam a produção de subjetividades no marco da história do imperialismo e do capitalismo. Esta linha é sugestiva para pensar como construções de diferença e distribuições de poder incidem no posicionamento desigual dos sujeitos no âmbito global. Gênero, raça, orientação sexual, idade, condição e local de moradia (rural, urbana, o estado, a região, o país e o continente), a situação econômica ou muitos outros fatores influenciam de diferentes formas as vantagens e desvantagens em que vivemos (WERNECK & DACACH, 2004, p. 9 apud SANTOS, 2007).

OLHARES SOBRE PAPÉIS DE GÊNERO NA SOCIEDADE HAITIANA O reconhecimento igualitário de gênero deu-se, via-de-regra, de modo tardio na América Latina e no Caribe, refletindo no grau de vulnerabilidade que ainda hoje, incide sobre essa população. Rosa (2006) afirma que no Haiti, as mulheres só foram reconhecidas como iguais perante a lei na Constituição de 1986. Segundo Neves (2011), existem hierarquias dentro da família/sociedade haitiana. Quando uma família possui pouco alimento, por exemplo, o pai tem prioridade na alimentação, depois a mãe, depois os filhos (por faixa etária) e só então as filhas (por faixa etária). Deste modo, as caçulas do sexo feminino são as últimas em grau de importância neste contexto. Apesar disso, as mulheres são consideradas a “espinha dorsal” da sociedade haitiana; são elas que movimentam o comércio de bens de primeira necessidade nas ruas. Estas mulheres, conhecidas como “Madanm Sara”, caminham por longos trechos e trabalham por longas horas sob o sol escaldante. Muitas delas, além de vender, também plantam e colhem os alimentos (THOMAZ, 2010 e 2011; PEREIRA, 2015). No Haiti utiliza-se a expressão “Poto Mitan” para referir-se às mulheres; esta referência advinda do crioulo, quer dizer “Pilar Central” e faz alusão à importância da figura feminina no lar, uma vez que, historicamente, estas são responsáveis por manter a economia familiar quando os homens estão desempregados e/ou migram em busca de trabalho (LIGA INTERNACIONAL DE LOS TRABAJADORES, 2010). O crioulo é a língua do lar, sendo o francês a língua dos ambientes institucionais, como escolas, bancos e órgãos governamentais; deste modo, todos falam o crioulo, pois aprendem em casa, mas nem todos possuem o domínio do francês, por não circularem nos ambientes institucionais. Como a educação no Haiti é paga, o estudo dos meninos vai sendo priorizado. O habitus social de que a influência da mulher deve ser circunscrita aos limites do lar, influencia todos os aspectos de sua vida desde a mais tenra idade. Não indo à escola nos anos iniciais, as meninas vão ficando defasadas em relação aos meninos no que concerne ao conteúdo escolar, tornando-se cada vez mais difícil a posterior inserção destas no ensino formal, até mesmo por não dominarem o idioma francês. Tal estrutura social sentencia que a vida e destino de muitas mulheres sejam atrelados à figura masculina, havendo certa pressão familiar para que as mesmas se casem. Até pouco tempo atrás – anos 50 do século XX – era comum que as mulheres tivessem seus pretendentes escolhidos pelos pais. A família do rapaz buscava a família da moça e procurava estabelecer um acordo. Na capital tal prática está em desuso, não se sabe no interior do país (ARAÚJO, 2015, p. 121). Rosa (2006) aponta que os homens haitianos também sofrem com os efeitos do desamparo social, sendo em grande parte igualmente impossibilitados de estudar, contudo, estes gozam da possibilidade de 22

Artigo .......................................................................................................... estabelecer diversas redes sociais que lhes permitem emigrar, por exemplo. A emigração na vida destes homens, ainda que seja para a ocupação de subempregos, lhes abre diversas possibilidades de ascensão. A ida preferencial dos homens em idade ativa para outros países força as mulheres a assumirem o posto de comando do lar. Quando estritamente doméstico, o cotidiano das mulheres lhes dificulta o estabelecimento de redes próprias, estando atreladas àquelas estabelecidas pelos homens da família. Na tentativa de estabelecer redes próprias, muitas mulheres acabam por encontrar nos serviços dos atravessadores de pessoas o único meio para chegar ao destino almejado (ROSA, 2006). As mulheres haitianas lutam pela liberdade desde antes da Revolução Haitiana (1791-1804). Passados mais de dois séculos, elas continuam reivindicando seu direito à vida, trabalhando na indústria agrícola, nas maquiladoras e formando a base do comércio e mercados locais. Falta de alimentos, de água, de moradia e o assédio das tropas de ocupação, são parte das dificuldades que penalizam - principalmente as mulheres - no Haiti (LIGA INTERNACIONAL DE LOS TRABAJADORES, 2010; SALDÍVAR, 2010; PEREIRA, 2015). Assim como em diversos países, a vida das mulheres no Haiti costuma ser muito difícil. Não raro são obrigadas a manter economicamente a família, criar os filhos sozinhas e comumente sofrem violência doméstica e\ou sexual. O Estado não garante o acesso à saúde e métodos contraceptivos, culminando em altas taxas de natalidade aliada a altas taxas de mortalidade materna. Os sociólogos haitianos Desrosiers e Seguy (2011) afirmam que a sociedade haitiana é marcada pelo machismo e opressão contra as mulheres. Segundo estes, ter vários filhos de pais diferentes é resultado de dois fenômenos que incidem sobre as mulheres provenientes principalmente das camadas mais populares do país: 1) o abandono paterno e 2) a monogamia em série. A monogamia em série configura-se em um ciclo, em que, uma mulher/mãe de um filho abandonado une-se a outro homem monogamicamente para poder sobreviver economicamente com seu filho. Desta relação nasce outro filho, que pode também ser abandonado por seu progenitor. Caso isso aconteça, reinicia-se com um terceiro homem uma nova relação monogâmica na intenção de que os filhos não cresçam “sem pai”. Desta maneira, estas mulheres acabam tendo várias crianças de pais diferentes, que podem nunca vir a ser reconhecidas pelos pais biológicos (DESROSIERS e SEGUY, 2011).

MIGRAÇÃO HAITIANA PARA O BRASIL: ESTRATÉGIAS DO PROJETO MIGRATÓRIO A partir de 2010 a imigração haitiana passou a ter destaque quando os números de entradas tornaramse expressivos no contexto das pequenas cidades fronteiriças da Amazônia. A escolha da entrada sem documentação no Brasil está ligada às atividades de traficantes de pessoas que, ao perceberem a escassa fiscalização, passaram a aliciar os haitianos em seu país de origem. As rotas para alcançar o Brasil podem envolver percursos a pé, rodoviários, aéreos e hidroviários (COSTA, 2012; TÉLÉMAQUE, 2012; CAFFEU e CUTTI, 2012; COTINGUIBA e PIMENTEL, 2012; ALESSI, 2013; SILVA, 2013; FERNANDES, 2014; HANDERSON, 2015). A migração haitiana no Brasil é predominantemente masculina, o que tem a ver com o construto moral imperante na sociedade haitiana, de que o homem é o provedor financeiro primordial do lar (COTINGUIBA, 2014 p. 105; ARAÚJO, 2015, p. 91). Esta relação está presente no habitus dos haitianos, de maneira que influi em todas as esferas da vida social, inclusive no projeto migratório. A influência deste habitus no projeto migratório dos haitianos para o Brasil dá-se a partir da estratégia dos grupos, em que, primeiro migram os homens em faixa etária correspondente às expectativas de trabalho e posteriormente mulheres e crianças, como observou Geraldo Cotinguiba (2014) em trabalho etnográfico. Estes são padrões observados na dinâmica migratória, mas que não são universais. Existem casos de casais que migram juntos, com ou sem filhos, mulheres que migram sozinhas, algumas vezes até mesmo gestantes. Segundo Vieira (2014) de maio a outubro de 2014, 26 haitianas grávidas chegaram ao abrigo improvisado em Rio Branco, após uma viagem que dura de 7 a 12 dias. Para Camila Asano, coordenadora 23

.......................................................................................................... Artigo de política externa e direitos humanos da ONG Conectas, este novo fluxo é decorrente das informações disseminadas, que dão conta dos serviços de bem estar social ofertados pelo Brasil, como saúde, educação e moradia. Migrar ainda grávida é para estas mulheres, mais econômico e prático do que com uma criança (VIEIRA, 2014). Em pesquisa etnográfica realizada entre os anos de 2013 e 2015 em Santo André, Região metropolitana de São Paulo, notamos um habitus existente entre os haitianos em que os homens tendem a não permitir que as mulheres haitianas estabeleçam diálogo “sozinhas” com homens que não pertencem ao grupo. Junto à pesquisa etnográfica colhemos as trajetórias migratórias de um grupo de haitianos composto por cinco homens e uma única mulher, a qual chamamos pelo nome fictício de Marie. Esta imigrante, que chegou ao Brasil com o esposo e um irmão em julho de 2011 através da fronteira amazônica de Tabatinga, foi a primeira de seu grupo a encontrar trabalho. A mesma deu conta que, com o dinheiro recebido a partir de serviços domésticos prestados por ela em Tabatinga, o grupo conseguiu alugar um local e sair do precário abrigo para imigrantes da cidade (ARAÚJO, 2015, p. 68-70).

O GÊNERO NA IMIGRAÇÃO HAITIANA: CONSIDERAÇÕES A PARTIR DE CAMPO ETNOGRÁFICO REALIZADO EM SANTO ANDRÉ Observou-se na etnografia que a educação haitiana tanto institucional, quanto familiar, delimita estritamente os papéis de gênero. Existem inclusive escolas só para meninos e escolas só para meninas. Em casa as meninas são preparadas para as prendas domésticas; afazeres considerados essencialmente femininos. Normalmente os homens haitianos não são preparados para lidar com o preparo dos alimentos, nem com a higienização da casa e das roupas, por exemplo, o que se apresenta como obstáculo àqueles que migram sós ou acompanhados somente de homens. Longe das mulheres da família, os homens haitianos sentem que levam uma vida de improvisações, pois desempenham tanto as “funções do homem”, quanto às “funções da mulher”. A falta de contato com o preparo dos alimentos é tão evidente, que, por vezes, ao perguntarmos pelos nomes de alguns alimentos em crioulo a um colaborador haitiano ele não sabia dizer. Ao ser questionado o porquê, ele argumentava dizendo que este era um assunto de cozinha, e cozinha é assunto de mulher. Segundo o colaborador, isso pode ser diferente com homens que são ou foram agricultores no interior do país, que provavelmente conhecem os nomes de boa parte dos gêneros alimentícios, ainda que, não preparem os mesmos. O “papel” que a mulher possui no lar, associado ao despreparo dos homens para as tarefas domésticas, bem como a situação de solidão que eles se encontram no Brasil, leva-os a considerar a conquista de uma namorada/noiva/esposa, como uma das metas primordiais. Como são poucas as haitianas solteiras no Brasil, e como nem sempre o contato com as brasileiras mostra-se tão fácil, devido – também – às diferenças culturais, muitos jovens buscam contato virtual com moças no Haiti. É muito comum rapazes haitianos se reunirem aos finais de semana para tirar fotos uns dos outros com o intuito de publicar nas redes sociais e enviar às garotas. Nestas fotos faz-se questão de aparentar sucesso econômico através de roupas, acessórios e bens de consumo. Estar fora do Haiti os coloca à frente dos jovens do país, demonstrando coragem, iniciativa e independência, sendo assim, os rapazes imigrantes conseguem contato com garotas que talvez jamais pudessem ter no Haiti. Apesar do interesse dos rapazes em conquistar uma companheira, há também uma grande desconfiança deles para com o real interesse das moças no relacionamento. Este é um assunto que surge constantemente entre os imigrantes haitianos no Brasil quando estão falando sobre namoro (interesse em você ou no que você tem?). Brinca-se até que algumas moças haitianas querem saber, antes de tudo, onde o rapaz trabalha e vive, para então iniciar uma conversa. Percebe-se que o homem é o provedor do lar que ele escolheu/optou prover. Na falta deste, o lar é chefiado por mulheres. Segundo Desrosiers e Seguy (2011) e Pereira (2015) outro indício de que as normas culturais haitianas – e não só haitianas – privilegiam os homens em detrimento das mulheres, é a falta de 24

Artigo .......................................................................................................... cobrança da responsabilidade masculina frente à criação dos filhos. Com isso, muitas mulheres são abandonadas com os filhos por homens que partem para o exterior, ou mesmo, que optam por assumir outra família. Muitos homens não encontram emprego nas cidades haitianas, sendo assim, é cada vez mais comum que mulheres “mesmo casadas” trabalhem fora. Esta “desorganização social”, nos termos de é bastante comum nas sociedades de imigração, onde normas culturais da sociedade de origem são adaptadas/reorganizadas na sociedade de destino, onde se fazem urgentes o provimento financeiro do lar e a inserção na nova sociedade. Na comunidade imigrante haitiana pesquisada, observa-se que, estar empregada não anula as obrigações morais-culturais da mulher para com a casa. Desta maneira, assiste-se a um acúmulo de funções na vida destas mulheres, que além de trabalharem fora, precisam cozinhar, lavar, passar, fazer compras e cuidar dos filhos, o que também é muito observado na sociedade brasileira. Pudemos acompanhar a sobrecarga de trabalho das imigrantes haitianas no Brasil. Por vezes a mulher vive com seu companheiro em uma residência com muitos homens, o que se dá pelo hábito de hospedarem familiares e amigos recém-chegados. Ainda que estas mulheres trabalhem, e que os hóspedes estejam desempregados, recai sobre esta a responsabilidade das tarefas domésticas. Se algum dos homens a ajudar, faz além do que é esperado socialmente deste.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Uma breve discussão acerca da trajetória dos estudos feministas foi empreendida no início do presente artigo. Percebe-se que a problematização de gênero na academia foi levada a cabo inicialmente por feministas brancas provenientes de países desenvolvidos, refletindo desta maneira, suas necessidades. Posteriormente, feministas negras dos mesmos países desenvolvidos reclamaram a inserção de raça como categoria conjunta de exclusão. A emergência de estudos feministas procedentes de países da periferia do capitalismo apresentou possibilidades adicionais às categorias de exclusão, como a posição político-econômica ocupada pelo país de origem no cenário global, bem como religião e práticas culturais específicas. Esforços foram empenhados na busca por categorias analíticas alternativas a gênero e raça, resultando na formulação dos conceitos de categorias de articulação/interseccionalidades. Tais conceitos buscam dar conta da análise da ação de distintos elementos que prejudicam o exercício de direito à cidadania plena e o alcance de políticas públicas por parte do grupo de mulheres analisado. Atenta-se para o cuidado de não tomar os sistemas de dominação como determinantes de identidades exclusivamente subordinadas e desempoderadas. Baukje Prins (2006) apud Piscitelli (2008) lembra que em termos foucaultianos o poder não apenas suprime, mas produz sujeitos; de modo que, este não pertence exclusivamente a um grupo, mas alterna-se constantemente a partir de negociações. No marco das proposições do feminismo da periferia do capitalismo, a Indiana Avtar Brah (2006) apud Piscitelli (2008), sugere análises micro que considerem subjetividade e identidade de forma simultânea como meio de compreensão das dinâmicas de poder existentes na diferenciação social. Deste modo, a partir do contexto micro, busca-se compreender os múltiplos mecanismos de diferenciação existentes no contexto específico da mulher em questão, considerando as possibilidades de ação e “inércia” daí resultantes. Os tópicos seguintes trouxeram percepções diversas acerca dos papeis de gênero na sociedade haitiana, bem como violências e violações com base em gênero no Haiti e o papel de gênero no projeto migratório haitiano para o Brasil. Tais percepções são fruto de leituras realizadas para a escrita do projeto e da dissertação de mestrado, bem como de percepções resultantes do campo etnográfico em Santo André. Uma série de fatores oprimem as mulheres haitianas e colocam os homens em situação de maior favorecimento, como a prioridade que é dada aos homens na alimentação e nos estudos por exemplo. Esta priorização é advinda da atribuição de gênero conferida ao homem no tocante ao provimento da família. 25

.......................................................................................................... Artigo Sendo seu papel fundamental para a manutenção de todos, torna-se imprescindível que este tenha todas as ferramentas possíveis para seguir desempenhando bem sua função. A mulher possui papel de importância na manutenção do lar/família, sendo assim, alimenta-se em segundo lugar; afinal é ela quem cuida do crescimento daqueles que constituirão novas famílias e perpetuarão a “espécie”. Os meninos, em ordem de idade, comem em terceiro, dada a importância dos papeis que já possuem e que possuirão; as meninas, também por ordem de idade em quarto, de acordo aos mesmos papéis que possuem e possuirão. Quando o homem deixa por qualquer motivo de prover o lar e segue com os privilégios concedidos ao provedor, tal estrutura mostra-se totalmente injusta, como nos casos citados das mulheres que acabam provendo o lar. Há uma ordem hierárquica de gênero muito discutida pelas feministas da segunda onda, que questionavam veementemente a ideia de “sexo frágil” e analisaram gênero como condição cultural e não sexual. Deste modo, tais comportamentos podem ser classificados como culturalmente excludentes, uma vez que, com base no sexo, atribui papeis rígidos tanto ao homem quanto a mulher, tentando delimitar suas ações atrelando-as a ideia de masculino e feminino. Contudo, sabe-se que há margem para ação de ambos os lados, de modo que os sujeitos forçam as barreiras visando maior liberdade de ação. No caso das mulheres haitianas, em específico, sabe-se da luta por autonomia que elas têm travado, buscando a inserção em ambientes anteriormente restritos à figura masculina. Criar os filhos sozinha também demonstra a força da mulher reconhecida por toda a sociedade haitiana, que lhe atribuí a ideia de “Poto Mitan”. Em sociedades essencialmente patriarcais, como no caso do Haiti, as mulheres buscam autonomia dentro das possibilidades que lhes são oferecidas. Se as redes migratórias não chegam às mesmas, utiliza-se das redes masculinas para migrar e experimentar novas realidades em outros países. Ainda que, observa-se que, nesta fase inicial da imigração haitiana no Brasil, as imigrantes pareçam sobrecarregadas de atividades, trabalhando fora e cuidando da casa, o emprego e o ganho financeiro lhe traz a satisfação de não depender financeiramente do homem para sua manutenção. A ideia das interseccionalidades e categorias de articulação são importantes para pensar nos aspectos de exclusão que incidem sobre estas mulheres. O papel da mulher negra e periférica no mundo é resultante de uma série de fatores histórico-estruturais que refletem diretamente nas relações contemporâneas. Faz-se importante a contextualização e análise específica do lugar de onde se fala, uma vez que leis gerais podem não aplicar-se a essas realidades individuais. Felizmente as políticas de bem estar social são ganhos que muitas mulheres imigrantes alcançaram no Brasil. Creche/escola para os filhos, bolsa-família, assistência médica, carteira assinada, seguro desemprego, entre outros, são alguns dos serviços que, apesar dos problemas de funcionamento, suprem demandas que não eram supridas no país de origem. Os casos da força de vontade das imigrantes grávidas que estão chegando do Haiti no Brasil mostram as possibilidades de quebra com estruturas de dominação muito importantes. São mulheres que decidem mudar suas vidas e as vidas de seus filhos a partir das possibilidades de ação existentes nas “brechas” do sistema.

26

Artigo .......................................................................................................... Referências Bibliográficas ALESSI, M. L. B. A migração de haitianos para o Brasil. Conjuntura Global, Curitiba, v. 2, n. Junho, p. 82-86, 2013. ARAÚJO, A. A. D. A. Reve de Brezil: A inserção de um grupo de imigrantes haitianos em Santo André, São Paulo - Brasil. Santo André: Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais - UFABC, 2015. BOURDIEU, P. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. CAFFEU, A. P.; CUTTI, D. Só viajar! Haitianos em São Paulo: Um primeiro e vago olhar. Travessia – Revista do Migrante., p. 107 – 113, 2012. COSTA, G. A.. I. T. Haitianos em Manaus dois anos de imigração. Travessia - Revista do Migrante, São Paulo, p. 91 – 97, 2012. COTINGUIBA, G. C.; PIMENTEL, M. L. Apontamentos sobre o processo de inserção social dos haitianos em Porto Velho.. Travessia – Revista do Migrante, p. 99 – 106, 2012. CURIEL, O. Identidades esencialistas o construcción de identidades políticas: El dilema de las feministas. In: CANDELARIO, G. E. B. Miradas Desencadenantes: Los estudios de genero en la República Dominicana al inicio del Tercer Milenio. Santo Domingo: Letra Gráfica, 2005. p. 79-98. DESROSIERS, M.; SEGUY, F. Haiti: As violações coletivas da Minustah. Diário da Liberdade: Portal anticapitalista da Galiza e os países lusófonos, 19 Set. 2011. Disponivel em: . Acesso em: 31 Out. 2015. FERNANDES, D. Estudos sobre a Migração Haitiana ao Brasil e Diálogo Bilateral, 2014. Disponivel em: . Acesso em: 20 Abr. 2014. HANDERSON, J. Diáspora: As dinâmicas da mobilidade haitiana no Brasil, no Suriname e na Guiana Francesa. Rio de Janeiro: Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - Museu Nacional/UFRJ, 2015. JOINT, L. A. Sistema educacional e desigualdades sociais no Haiti: o caso das escolas católicas. Pro-Posições, Mai/Ago 2008. 181-191. LIGA INTERNACIONAL DE LOS TRABAJADORES. 1910 – 2010, cem anos de luta contra a exploração, o machismo e pelo socialismo. Liga Internacional de Los Trabajadores - Cuarta Internacional, 06 Mar. 2010. Disponivel em: . Acesso em: 30 out. 2015. ALESSI, M. L. B. A migração de haitianos para o Brasil. Conjuntura Global, Curitiba, v. 2, n. Junho, p. 82-86, 2013. ARAÚJO, A. A. D. A. Reve de Brezil: A inserção de um grupo de imigrantes haitianos em Santo André, São Paulo - Brasil. Santo André: Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais - UFABC, 2015.

27

.......................................................................................................... Artigo BOURDIEU, P. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. CAFFEU, A. P.; CUTTI, D. Só viajar! Haitianos em São Paulo: Um primeiro e vago olhar. Travessia – Revista do Migrante., p. 107 – 113, 2012. COSTA, G. A.. I. T. Haitianos em Manaus dois anos de imigração. Travessia - Revista do Migrante, São Paulo, p. 91 – 97, 2012. COTINGUIBA, G. C.; PIMENTEL, M. L. Apontamentos sobre o processo de inserção social dos haitianos em Porto Velho.. Travessia – Revista do Migrante, p. 99 – 106, 2012. CURIEL, O. Identidades esencialistas o construcción de identidades políticas: El dilema de las feministas. In: CANDELARIO, G. E. B. Miradas Desencadenantes: Los estudios de genero en la República Dominicana al inicio del Tercer Milenio. Santo Domingo: Letra Gráfica, 2005. p. 79-98. DESROSIERS, M.; SEGUY, F. Haiti: As violações coletivas da Minustah. Diário da Liberdade: Portal anticapitalista da Galiza e os países lusófonos, 19 Set. 2011. Disponivel em: . Acesso em: 31 Out. 2015. FERNANDES, D. Estudos sobre a Migração Haitiana ao Brasil e Diálogo Bilateral, 2014. Disponivel em: . Acesso em: 20 Abr. 2014. HANDERSON, J. Diáspora: As dinâmicas da mobilidade haitiana no Brasil, no Suriname e na Guiana Francesa. Rio de Janeiro: Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - Museu Nacional/UFRJ, 2015.

28

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.