Limites do estético - Arthur Danto e a arte

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Limites do estético: Arthur Danto e a arte Danto propõe uma espécie de legitimação filosófica daquilo que havia décadas era problematizado pela arte conceitual de Duchamp por filipe campello

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“o modo peculiar da produção artística e de suas obras não satisfaz mais nossas mais altas necessidades; estamos para além do ponto de poder adorar, endeusando, obras de arte e de orarmos diante delas. [...] O pensamento e a reflexão superaram a bela arte. Por isso nosso presente não é segundo o seu estado geral favorável à arte. Em todas essas relações a arte é e permanece, segundo o aspecto da mais alta determinação, algo passado para nós”. (Hegel, Lições sobre estética).

É

de algum modo intrigante que, após quase cem anos, o urinol de Duchamp ainda provoque um sentimento de estranheza ou até mesmo de repúdio. Não só do ponto de vista estético, mas principalmente filosófico, tais casos revelam como a arte pode se manifestar muito antes da reflexão. Hegel parece ter razão quando diz que a filosofia é como a coruja de minerva, que levanta voo somente com o início do crepúsculo: ela não é prescritiva tampouco profética, mas sempre chega depois, tentando apreender o seu tempo em conceito. No universo da arte fica ainda mais evidente como o potencial da filosofia não é tanto normativo — na pretensão de dizer o que a arte deve ser —, senão o de tentar explicar ou dar sentido ao que já antes é assumido pela própria arte. Se há algum potencial normativo de uma

abordagem filosófica, ele parece ser justamente o de “dar sentido”, autorizando ou justificando a arte. De inspiração hegeliana, a teoria proposta pelo filósofo e crítico de arte estadunidense Arthur Danto é um exemplo paradigmático desta complexa relação entre arte e filosofia. No seu influente artigo “O mundo da arte”, publicado em 1964, Danto busca propor uma espécie de legitimação filosófica daquilo que havia décadas era problematizado pela arte conceitual de Duchamp e, mais especificamente neste período da publicação do artigo, na pop art de Andy Warhol. Nesse trabalho, a tese central de Danto é a de que, desde Platão até o impressionismo, uma certa teoria dava conta do domínio da arte. Tal teoria, que Danto chama de “TI”, consistia basicamente na concepção da arte como imitação da realidade, remetendo ao sentido grego de mimesis. Já no centro da teoria platônica encontrava-se a diferenciação entre três níveis, expresso no paradigmático exemplo da cama: o primeiro enquanto ideia de cama; o segundo, a cama como objeto, feito pelo artífice (no caso, o carpinteiro), que seria uma cópia da ideia; e um terceiro nível representado pela pintura da cama, que consistiria em uma “cópia da cópia”. Deixando de lado a questão platônica em torno da relação entre arte e verdade, está presente, aqui, a concepção da pintura da cama enquanto representação, uma espécie de imitação da realidade. Este sentido, para Danto, correspondia a um amplo espectro da arte — ainda que a modernidade tenha assistido à reinvindicação da autonomia da arte (como no caso do romantismo), ou que a própria definição de arte como imitação tenha recebido diferentes interpretações ao longo de sua história. Um sentido diferente teria começado a surgir principalmente com o pósimpressionismo (Danto situa este momento com Van Gogh e Gauguin, mas outros teóricos, como Clement Greenberg, referem-se também a Manet e Cézanne). Ainda que seja possível problematizar esta historiografia tradicional e indicar contraexemplos, o que é importante observar

Esta mudança advinda do próprio universo da arte teria início com a ruptura da ideia da arte como representação, a partir da qual ela reivindica um status de realidade é que haveria um paradigma teórico que razoavelmente teria dado conta de um amplo conjunto de exemplos da arte, mais especificamente no que concerne às artes visuais. Semelhante ao sentido adotado pelo filósofo Thomas Kuhn, um paradigma seria suficiente até o momento em que um conjunto de contraevidências empíricas o colocaria em xeque, requerendo um novo modelo teórico. Esta mudança advinda do próprio universo da arte teria início com a ruptura da ideia da arte como representação, a partir da qual ela reivindica um status de realidade, como no exemplo de Os comedores de batata, de Van Gogh. Segundo Danto, uma vez que este quadro apresentaria “certas distorções inconfundíveis”, eles seriam uma não imitação, reivindicando o direito de ser chamado de “objeto real”. Com isso, o filósofo sugere a necessidade de uma nova teoria — denominada “TR” — para dar conta deste novo significado expresso pela arte. A sua conclusão é a de que “por meio dessa teoria (TR), as obras de arte reentraram na densidade das coisas, da qual a teoria socrática (TI) procurou lançá-las: se não mais reais do que os carpinteiros fizeram, elas eram, pelo menos, não menos reais. O Pós-Impressionismo celebrou uma vitória na ontologia”. De antemão, é importante destacar que, nesta mudança de uma TI (teoria da arte enquanto mimesis, representação) para TR (teoria da arte enquanto novas entidades “reais”), nada do que antes era considerado arte deixa de sê-lo. O que ocorre é uma ampliação do domínio da

arte, de modo que “nada tenha tido que ser retirado do musée des beaux-arts”. Um dos exemplos de Danto são os quadros de Lichtenstein, reproduções em larga escala de desenhos de histórias em quadrinhos. Eles consistiriam em algo novo justamente pela alteração da escala, de forma que “os objetos criados por Lichtenstein não são imitações, mas novas entidades”. É também nesse sentido que o sentido platônico é provocado ironicamente por Joseph Kosuth, em sua conhecida One and three chairs, e, ainda mais especificamente em torno do exemplo da cama, em obras como Bedroom ensemble, de Claes Oldenburg, e nas camas de Tracey Emin e de Rauschenberg. Trata-se de camas “reais”, mas que são deslocadas para o contexto de uma exposição, e, no caso da cama de Rauschenberg, modificada com tinta. Esta relação lembra o que Duchamp entendia como um “ready-made aided”, quando afirma de maneira provocativa: “desde que os tubos de tinta usados por um artista são produtos manufaturados e pré-fabricados (“ready-made”), devemos concluir que todas as pinturas do mundo são “ready-mades aided” e também obras de colagem”. E o que significa afirmar que este quadro (ou esta cama) é arte? A resposta de Danto consiste em compreender o significado específico deste “é”, que o filósofo estadunidense denomina de o “é” da identificação artística. Ele significa algo semelhante à afirmação de uma criança, quando ela, ao desenhar um círculo e um triângulo, aponta para o triângulo e declara: “isso sou eu”. Há um tipo de identificação que só é possível quando se compreende o significado “ontológico” do “isso sou eu” em referência a um triângulo, o que é evidentemente distinto de se apontar para uma cadeira e afirmar: “isto é uma cadeira”. Danto sugere que alguém que não apreenda este “é” da identificação artística poderia simplesmente querer deitar naquela cama transposta para uma exposição, e que nós não poderíamos repudiá-lo, pois a cama, de fato, também é um objeto, uma cama “real”. O inquietante é como esta cama, de algum modo, pode “tornar-se” arte.

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Para entender melhor essa questão, o filósofo ilustra com um exemplo hipotético de dois quadros intitulados, respectivamente, 1ª e 3ª lei de Newton. Ambos seriam idênticos: um retângulo com um traço que o divide ao meio. Ainda que seja possível especular e sugerir uma diversidade de explicações conceituais sobre o significado de cada quadro, sobre a intenção do artista, etc., não haveria problema se alguém afirmasse: “eu só vejo um retângulo com um traço que o divide ao meio”. Pois isso, de fato, é tudo o que qualquer pessoa pode ver, e não há nada além para ser visto. Mas a mudança do olhar se dá justamente por uma apropriação conceitual associada à impressão sensorial. Se formos radicais na desconstrução de nosso olhar, até mesmo uma pintura de Rembrandt — em torno da qual parece não haver dúvidas sobre o seu estatuto de arte e até mesmo de sua reinvindicação de beleza — poderia ser vista simplesmente como “tinta sobre tela”, sem qualquer significado. Aquilo que parece ser evidente na sua reinvindicação de obra de arte também requer, de algum modo, um processo de legitimação de sentido, ou o que o filósofo analítico Wilfrid Sellars denominou “espaço de razões”. Impressões e conceitos, mesmo aqueles mais evidentes em torno do que seja ou não arte, estão permeados por dimensões sociais, culturais e temporais, a partir dos quais eles são legitimados e justificados. É nesse sentido que, em outro lugar, Danto afirma: “Em A Transfiguração do lugar comum, imaginei uma galeria cheia de quadrados vermelhos, pertencentes a diferentes gêneros e com sentidos diferentes, mas de aparência totalmente semelhante. Isso me levou a propor uma rudimentar definição de arte que me foi bastante útil quando eu assumi a crítica de arte: algo é uma obra de arte se incorpora sentido”. É importante observar que, com essa interpretação, Danto não pretende distinguir a priori os critérios para definirmos o que é o que não é arte. O seu objetivo, antes, é o de mostrar que nossas concepções do que é arte, bem como os critérios para isso, são estabelecidos inter-

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subjetivamente. Pois, se há a desconstrução de uma função meramente mimética da arte e a reinvindicação de um estatuto de realidade, esta espécie de “vitória da ontologia” é, agora, pragmática, contextual: não há mais nada no próprio objeto que o defina enquanto arte, senão esta propriedade é reconhecida no interior de uma determinada comunidade linguística, que o justifica, o “vê” enquanto arte. Para exemplificar sua interpretação, o principal artista a quem Danto volta a sua atenção é Andy Warhol. A opção pelos desdobramentos da arte conceitual não se deve, portanto, apenas ao seu sentido estético (o que, aliás, poderia ser questionado), mas, sobretudo, por este movimento artístico impor uma importante reflexão filosófica. Pois, como é possível que um mesmo objeto (como

as conhecidas caixas de Brillo ou as latas de sopa Campbell) possa, dependendo do contexto, também ser arte? “Não importa”, afirma Danto, “que a caixa de Brillo possa não ser boa — menos ainda grande — arte. O que chama a atenção é que ela seja arte de algum modo. Mas, se ela é, porque não o são as indiscerníveis caixas de Brillo que estão no depósito? Ou toda a distinção entre arte e realidade caiu por terra?” Como procurei mostrar, a resposta para essa questão central dá-se não mais através de uma essência da própria arte que a diferencia do objeto, mas se refere a um contexto de legitimação. Nesse sentido, Danto conclui: “O que, afinal de contas, faz a diferença entre uma caixa de Brillo e uma obra de arte consistente de uma caixa de Brillo é uma certa teo-

Desde Duchamp, a arte, na persistência de autoafirmação, torna-se “filosófica” ao reivindicar para si mesma a própria questão e problematização sobre o que ela é e de suas fronteiras tênues com o real

ria da arte. É a teoria que a recebe no mundo da arte e a impede de recair na condição do objeto real que ela é. [...] a caixa de Brillo do mundo da arte pode ser exatamente a caixa de Brillo do mundo real, separada e unida pelo é da identificação artística”. É nesse sentido que não há problema se alguém não “compreende” ou não “vê” a Fonte de Duchamp ou a caixa de Brillo como sendo arte. A questão é qual a relevância dessa visão particular para a reflexão em torno deste objeto. Pois, no momento em que é descontruída a ideia de que há uma essência no próprio objeto que o defina enquanto arte, a definição não recai em um mero subjetivismo, senão em um tipo de reconhecimento legitimado em um contexto intersubjetivo. O que está em jogo, portanto, é qual opinião

pode ser recebida dentro de uma comunidade artística com maior reconhecimento ou credibilidade. A consequência disso é a relevância da teoria e do conhecimento da história da arte, como propõe Danto: “O mundo tem que estar pronto para certas coisas — o mundo da arte não menos do que o real. É o papel das teorias artísticas, hoje como sempre, tornar o mundo da arte e a própria arte possíveis. Nunca ocorreria, devo pensar, aos pintores de Lascaux que eles estavam produzindo arte naquelas paredes. Assim como não havia estetas no Neolítico.” E conclui: “Ver algo como arte requer algo que o olho não pode repudiar — uma atmosfera de teoria artística, um conhecimento da história da arte: um mundo da arte”. No entanto, certamente o diagnóstico de Danto pode recair na ênfase em um questionável discurso de autoridade. O risco é o de que a opinião do especialista seja transformada em toque de Midas em um debate por si só já excessivamente especializado. Mas tal problema já não é mais da teoria em si, mas do modo como o discurso é gerido no interior do circuito da arte, sendo pertinente encontrar mecanismos mais democráticos e inclusivos de formação e de acesso à arte. Tanto a arte chega antes, quanto a teoria abre um espaço de definições e justificações que ressignificam o que é desvelado pela própria arte. Desde Duchamp, a arte, na persistência de autoafirmação, torna-se “filosófica” ao reivindicar para si mesma a própria questão e problematização sobre o que ela é e de suas fronteiras tênues com o real. É desse modo que emerge o que Danto denomina de “arte pós-histórica”, em que ela própria não mais se deixa reduzir a uma historiografia definida. A filosofia, por sua vez, nada mais faz do que tentar fornecer parâmetros para essa compreensão, mas, de maneira paradoxal, é essa explicação que “torna a arte possível”. Ainda que Hegel tenha insistido que a filosofia é o seu tempo apreendido em conceito, ele parece ter tido razão ao prever que as fronteiras entre arte e filosofia, entre arte e real, apontariam para o próprio limite da esfera da arte.

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