LIMITES E CONTRIBUIÇÕES DO USO DA EME PARA PESQUISAS DE CUNHO QUALITATIVO NA AQUISIÇÃO DO PB

May 23, 2017 | Autor: Rosângela Hilário | Categoria: Languages and Linguistics, Language Acquisition, Research Methodology
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LIMITES E CONTRIBUIÇÕES DO USO DA EME PARA PESQUISAS DE CUNHO QUALITATIVO NA AQUISIÇÃO DO PB  

Alessandra Del Ré57 Rosângela Nogarini Hilário58

RESUMO Este trabalho tem por objetivo responder à seguinte questão: como colocar em paralelo, no momento da análise dos dados, crianças que estão em momentos diferentes do processo de aquisição da linguagem e/ou que pertencem à populações diferentes (crianças monolíngues, bilíngues, com distúrbios de linguagem etc.)? Para responder a essa questão, discutiremos as vantagens e limitações de se adotar uma medida como o MLU, do inglês Mean Length of Utterance, ou EME como foi nomeada no Brasil, proposta por Roger Brown (1973), bem como de outras similares, verificando a efetiva contribuição das mesmas para os estudos na área e levantando uma proposta de adaptação para os estudos de natureza qualitativa.Em um primeiro momento, retomamos o estudo dos critérios propostos por Brown (1973), Scliar-Cabral (1976), Parker e Brorson (2005), Parisse e Le Normand (2006) e Araújo (2007), e de estudiosos da morfologia do PB, como Câmara Jr (2009), Monteiro (2002) e Kehdi (1990), entre outros, para, em seguida, partindo de um ponto de vista dialógico-discursivo (BAKHTIN, 2006; BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1992, 1981), trazermos um exemplo de pesquisa que trata do plural no processo de aquisição da linguagem (HILÁRIO 2010, 2011b, 2012). As reflexões apontam para o fato de que a EME pode ser uma medida útil para as pesquisas em aquisição da linguagem, feitas as devidas adaptações e levando-se em conta todos os problemas que lhe são inerentes, especialmente se somada a outros fatores – como a idade, o número de tipos/ocorrências, o limite máximo de itens por enunciado etc. –, porém não como único parâmetro de análise. Visto que a EME pode variar de acordo com as condições de produção e não refletir as mudanças qualitativas no discurso infantil, outros fatores devem ser analisados, como o contexto discursivo, os participantes envolvidos etc. PALAVRAS-CHAVE: EME. Pesquisas qualitativas. Aquisição da linguagem. Abordagem dialógica. ABSTRACT The main objective of this paper is to answer the following question: how can we draw a parallel, during the analysis of the data, between children who are at different moments in the language acquisition process or who belong to different populations (children that are monolingual, bilingual, with language disorders, etc.)? In order to answer this question, we are discussing the advantages and limitations of adopting a measure like MLU, from English Mean Length of Utterance, or EME as it was named in Brazil, proposed by Roger Brown (1973). We intend to verify the effective contribution of these measures to the studies in the area and propose an adaptation in the studies that use a qualitative approach. Firstly, we recall the study of the criteria proposed by Brown (1973), Scliar-Cabral (1976), Parker & Brorson (2005), Parisse & Le Normand (2006), and Araújo (2007), and by scholars of Brazilian Portuguese morphology, like Câmara Jr (2009), Monteiro (2002), and Kehdi (1990), among others. Secondly, from a dialogic-discursive point of view (BAKHTIN, 2006; BAKHTIN/ VOLOSHINOV, 1992, 1981), we provide as an example the research on the plural in the language acquisition process (HILÁRIO, 2010, 2011b, 2012). The reflections made indicate that EME may be a useful measure for the researches on language acquisition. Nevertheless, adaptations should be done and its inherent problems should be taken into account, especially if other factors are considered – like the age, the number of types/occurrences, the maximum limit of items per utterance etc. – although it is not the only parameter of analysis. Considering that EME may vary according to the conditions of production and may not reflect the qualitative changes in the children’s discourse, other factors should be analyzed, like the context of the discourse, the participants involved etc. KEYWORDS: MLU. Qualitative researches. Language acquisition. Dialogical approach.

Introdução Este trabalho é resultado de uma reflexão iniciada em trabalhos anteriores (DEL RÉ, no prelo; MELLO, 2011; HILÁRIO, 2010) e que tem por objetivo responder à seguinte                                                                                                                         57 Professora da UNESP-FCLAr, Departamento de Linguística. 58 Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Linguística e Língua Portuguesa.

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questão: como colocar em paralelo, no momento da análise dos dados, crianças que estão em momentos diferentes do processo de aquisição da linguagem? Tal indagação decorre de um problema que enfrentamos quando se trata de observar dados de crianças pequenas, em processo de aquisição da linguagem, mas que pela singularidade (DEL RÉ, HILÁRIO, VIEIRA, 2012) que lhes é peculiar, encontram-se em momentos diferentes desse processo, seja para produzir condutas argumentativas (VIEIRA, 2011), humorísticas (DEL RÉ, 2011), seja para expressar como entendem a noção de plural (HILÁRIO, 2010, 2011b, 2012) etc. A dificuldade pode ser ainda potencializada quando o paralelo que se tenta estabelecer envolve diferentes tipos de população: crianças monolíngues, bilíngues, com distúrbios de linguagem etc. Apesar das controvérsias, na Europa e nos EUA, ainda é bastante comum, nesses casos ou em situações que envolvem apenas um tipo de população, a adoção da medida MLU, do inglês Mean Length of Utterance (ou EME como foi nomeada no Brasil), proposta por Roger Brown (1973). Em termos de PB (português brasileiro), uma importante discussão sobre o tema foi feita por Scliar-Cabral (1976) e mesmo depois de mais de 30 anos, considerando os trabalhos que se inspiraram nessa medida (cf. ARAÚJO, 2007, p.38-51) e o fato de ela permanecer, de certa forma, como sendo um parâmetro – talvez o único aceito pela comunidade internacional – utilizado em recentes estudos em Aquisição da Linguagem (PARISSE E LE NORMAND, 2006; PARKER E BRORSON, 2005), acreditamos que é necessário resgatar essa discussão, sobretudo pensando-se em pesquisas cuja abordagem é essencialmente qualitativa. Trata-se, portanto, neste trabalho, de refletir acerca das vantagens e limitações de tal medida, bem como de outras similares, verificando a efetiva contribuição das mesmas para os estudos na área e levantando uma proposta de adaptação para os estudos de natureza qualitativa. Para tanto, a fim de ilustrar nossas reflexões teóricas sobre os critérios para contagem da EME no PB, traremos o exemplo de uma pesquisa que trata do plural no processo de aquisição da linguagem59 (HILÁRIO 2010, 2011b, 2012). Considerando, como Saussure, que o ponto de vista determina o objeto, as discussões aqui empreendidas são limitadas na medida em que partem de um referencial que, certamente, excluirá possíveis reflexões de outras abordagens teóricas, embora, acreditemos que, de um modo geral, elas sirvam de base para trabalhos qualitativos desenvolvidos na área.                                                                                                                         59

Pesquisa de doutorado em desenvolvimento (FAPESP, processo 11/082032), com defesa prevista para agosto de 2013.

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Nosso ponto de vista parte, portanto, dos trabalhos de Bakhtin e do Círculo (BAKHTIN, 2006; BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1992, 1981) e de outros estudos que de alguma forma trataram do processo de aquisição da linguagem e com os quais se pode estabelecer um diálogo, a saber, os de Vygotsky (2005, 2007), Bruner (2004a, 2004b), Anne Salazar-Orvig (2010a,2010b,1999) e François (1994, 2006). Esse ponto de partida nos guiará na a) investigação e análise da postura tomada pelos pesquisadores que utilizaram a Extensão Média do Enunciado de várias formas, apontando os problemas e riscos da utilização de tal medida sem levar em consideração suas falhas e inadequações em certos níveis; b) reflexão sobre as vantagens e desvantagens de se utilizar a EME, verificando sua efetiva contribuição para a área de Aquisição da Linguagem e para outras áreas, dependendo do objetivo do pesquisador; c) reflexão sobre os critérios de que dispomos no PB para cálculo da EME, propondo algumas adaptações e a elaboração de novos, levando em consideração as particularidades da produção de cada criança, segundo nossa abordagem; d) pesquisa de crianças em fase de aquisição do plural no português brasileiro, a fim de fornecer novos dados relativos à EME, enriquecendo a discussão sobre a utilização de tais medidas para caracterizar o desenvolvimento linguístico de crianças durante esse processo.

Assim, esse trabalho se organiza da seguinte forma: em um primeiro momento, fazemos referência a algumas pesquisas que já fizeram e fazem uso da Extensão Média do Enunciado e analisamos a forma de sua utilização pelos pesquisadores que dela lançaram mão. Retomamos o estudo dos critérios propostos por Brown (1973), Scliar-Cabral (1976), Parker e Brorson (2005), Parisse e Le Normand (2006) e Araújo (2007), e de estudiosos da morfologia do PB, como Câmara Jr (2009), Monteiro (2002) e Kehdi (1990), entre outros. Em um segundo momento, refletimos sobre os critérios para o cálculo da EME no português brasileiro (PB), já que não existem normas estabelecidas para tal contagem nessa língua. A fim de ilustrar algumas de nossas discussões de cunho mais teórico, traremos dados de pesquisas por nós realizadas. Esses dados pertencem ao banco de dados do Grupo NALingua-CNPq e foram registrados em situações cotidianas de interação das crianças com os pais (refeições, banho, brincadeiras etc.), e transcritos no formato CHAT, através do programa CLAN (Computerized Language Analysis), seguindo as normas do banco mundial de aquisição da linguagem CHILDES (Child Language Data Exchange System). Trata-se, portanto, de um corpus de um estudo longitudinal, de cunho essencialmente qualitativo. A EME na literatura A medida que é objeto de nossa reflexão aparece na literatura sob diversas siglas. Originalmente do inglês, o MLU (Mean Length of Utterance, cf. BROWN, 1973) recebe, em

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francês, o nome de LME (Longueur Moyenne des Énoncés, cf. PARISSE e LE NORMAND, 2006) e, em português, EME (Extensão Média do Enunciado, cf. SCLIAR-CABRAL, 1976) ou ainda CME (Comprimento Médio do Enunciado, cf. ELLIOT, 1982), entre outras. A contagem da Extensão Média do Enunciado tornou-se mais conhecida a partir de 1973, quando Brown propôs seu cálculo em morfemas (EME-m ou MLU-m), a partir de um estudo longitudinal realizado com três crianças em processo de aquisição da língua inglesa. Segundo a proposta de Brown (1973), a EME-m consiste na média feita através da contagem de morfemas em 100 enunciados que se atendam a determinados critérios. Em trabalhos anteriores aos de Brown, conforme colocam Parker e Brorson (2005), pesquisadores interessados no desenvolvimento linguístico da criança já haviam proposto outros tipos de medida, como Nice (1925) que se valeu da “extensão média de resposta” (do inglês MLR – Mean Length of Response), calculada pela razão entre o número total de palavras e a quantidade de enunciados. Desde então, várias mudanças ocorreram na maneira de se calcular e descrever a extensão média do enunciado infantil, a começar pela MLU-w (Mean Length of Utterance in words), ou EME-p, ou seja, “extensão média do enunciado em palavras”, calculada dividindo-se o número total de palavras na fala da criança pela quantidade de enunciados. Posteriormente, surgiu a “extensão sintática média” (Mean Syntactic Length - MSL), obtida através do mesmo cálculo que a MLU-w, mas levando em conta apenas os enunciados que consistiam de duas ou mais palavras, ao contrário daquela, que se valia de qualquer comprimento de enunciado para contagem. Mas a maior mudança ocorreu mesmo em 1973, quando Roger Brown propôs o cálculo que ficou conhecido como “extensão média do enunciado em morfemas” (Mean Length of Utterance in morphemes – MLU-m ou EME-m, em português) e os trabalhos passaram a adotar muito mais essa medida do que a EME em palavras. A EME-m de Brown As pesquisas de Brown visavam a identificar uma ordem na emergência de 14 morfemas gramaticais do inglês. Sendo assim, segundo o autor, a progressiva aquisição desses morfemas poderia ser identificada pelo cálculo da média de morfemas produzidos em

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100 enunciados que se enquadrassem em critérios específicos. O cálculo deveria ser feito da seguinte forma60: 1. Começar com a segunda página de transcrição, a não ser que a página contenha uma recitação de qualquer tipo. Nesse último caso, começar com o primeiro trecho sem recitação. Contar os primeiros 100 enunciados que satisfaçam às regras seguintes. 2. Somente enunciados totalmente transcritos são usados; nenhum com espaços em branco. Trechos de enunciados colocados entre parênteses para indicar transcrição dúbia são usados. 3. Incluir todas as repetições de enunciados exatas (marcadas com o sinal + nas transcrições). Casos em que a criança gagueje são marcados como esforços repetidos de uma única palavra; contar a palavra em sua mais completa forma produzida. Nos poucos casos em que uma palavra for produzida para dar ênfase ou algo semelhante (no,no,no), contar cada ocorrência. 4. Não contar marcadores discursivos como mm ou oh, mas contar no, yeah, e hi. 5. Todas as palavras compostas (dois ou mais morfemas livres), nomes próprios e duplicações ritualizadas contam como vocábulos simples. Exemplos: birthday, rackety- boom, choo-choo, quack-quack, night-night, pocketbook, see saw. A justificativa é que não há evidência de que os morfemas constituintes funcionem como tal para essas crianças [analisadas]. 6. Contar como um morfema todos os passados irregulares de verbos (got, did, went, saw). A justificativa é que não há evidência de que a criança relacione essas formas às do presente. 7. Contar como um morfema todos os diminutivos (doggie, mommie) porque, ao menos essas crianças [analisadas], não parecem usar o sufixo produtivamente. Os diminutivos são as formas-padrão usadas pela criança. 8. Contar como morfemas separados todos os auxiliares (is, have, will, can, must, would). Também todos os catenativos: gonna, wanna, hafta. Esses últimos contam como morfemas simples e não como going to ou want to, porque há evidências que eles funcionem assim para as crianças. Contar como morfemas separados todas as flexões, por exemplo, possessivo {s}, plural {s}, terceira pessoa do singular {s}, passado regular {d}, gerúndio {iη}. 9. A contagem segue as regras acima, mas é sempre calculada para a transcrição total, não para os 100 enunciados.

Tal inovação feita pelo pesquisador se justificaria, pois, segundo Brown (1973, p. 53), a EME é um excelente indicador do desenvolvimento gramatical infantil visto que quase todos os novos tipos de conhecimento têm o efeito comum de aumentar o comprimento da forma superficial da frase (como o número de papéis semânticos expressados na sentença, a adição de morfemas obrigatórios e, no caso do inglês, a adição de formas negativas e auxiliares interrogativos etc.), especialmente se forem medidos os morfemas, que incluem as formas flexionadas, ao invés de palavras. Brown defende ainda que a EME-m seria também mais indicada do que a idade para comparar o desenvolvimento gramatical de duas ou mais crianças, já que crianças com a mesma EME têm mais chances de estarem no mesmo nível de desenvolvimento, ou seja, terem a mesma complexidade ao construir sentenças, do que crianças de mesma idade

                                                                                                                        60

Tabela 7 – Regras para cálculo da extensão média do enunciado e do limite máximo [de itens por enunciado], de Brown (1973, p.54), em tradução nossa. Como os critérios foram estabelecidos para o inglês, os exemplos foram mantidos como no texto original.

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cronológica. Assim, o autor propõe a segmentação do desenvolvimento linguístico infantil em cinco estágios, delimitados com base na Extensão Média do Enunciado em morfemas. A partir desse trabalho, muitas outras pesquisas se desenvolveram. De Villers & De Villers (1973), por exemplo, chegaram a resultados semelhantes aos de Brown em um estudo transversal sobre a aquisição dos morfemas gramaticais em inglês, a partir dos dados de 21 crianças entre 16 e 40 meses. Não apenas no inglês, mas em diversas línguas – finlandês, sueco, samoano, espanhol, português etc. – , pesquisadores de várias áreas, como a Fonoaudiologia (FENSTERSSEIFER, RAMOS, 2003; ARAÚJO, 2007; LOPES-HERRERA, ALMEIDA, 2008), e a Psicologia (BRAZ, SALOMÃO, 2002; AQUINO, SALOMÃO, 2005), além da Linguística (SCLIAR-CABRAL, 1976; CRAIN, LILLO-MARTIN, 1999), propuseram seus estudos a partir dessa medida. Assim, desde a proposta de Brown (1973), a EME-m tem sido um procedimento amplamente utilizado na análise de amostras da linguagem infantil, com aplicações diversas, como: determinar o estágio de desenvolvimento linguístico de crianças pré-escolares (ARAÚJO, 2003); diagnosticar ou identificar crianças com distúrbios de linguagem ao se comparar seu desenvolvimento linguístico com o de crianças sem distúrbios (ARAÚJO, 2007); identificar crianças que necessitem de avaliações de linguagem (MILLER E CHAPMAN, 1981), entre outras. No entanto, apesar da EME-m ser uma medida do desenvolvimento linguístico infantil ainda bastante utilizada, seu uso é discutível. Uma parte dos pesquisadores obteve os mesmos resultados de Brown e afirmou que a EME pode ser utilizada como um índice de desenvolvimento gramatical. Outros estudos, porém, já na década de 80, mostraram resultados controversos àqueles apresentados pelo autor: afirmaram que os valores da EME não podem ser utilizados como índice de desenvolvimento gramatical, uma vez que não refletem a qualidade e complexidade das sentenças produzidas, principalmente em crianças mais velhas (cinco anos) (ARAÚJO, 2007, p. 40). "Klee e Fitzgerald (1985) não puderam afirmar que a EME possa ser utilizada de forma precisa, como um instrumento para prever o desenvolvimento gramatical em crianças em desenvolvimento normal. Esta dificuldade foi observada, principalmente, em relação ao grupo de crianças com dois anos de idade". Mas, parece-nos que a maior dificuldade está na tarefa de segmentar a fala da criança pequena, já apontada por inúmeros trabalhos em Aquisição da Linguagem, como bem evidencia Aimard (1998, p. 21):

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[...] muitas vezes sentimos que a criança produz um ‘pedaço’ de discurso não-cortado e que não pode ser dividido em palavras. Não é fácil contar as palavras em formas como: apapapou que traduzimos como “Il n’y a pas de pantoufles” (Os chinelos não estão aqui) ou: “Je ne trouve pas mes pantoufles” (Não encontro meus chinelos);- ou télébé: “La chaise est tombée” (A cadeira caiu), ou : “Pourquoi la chaise est tombée?” (Por que a cadeira caiu?). A produção oral da criança impõe dificuldades em estabelecer os limites da palavra, como aponta Scliar-Cabral (2012). Segundo a autora, convencionou-se o critério chomskyano de classe sintática, porém o desafio permanece quando nos deparamos com enunciados como os citados por Aimard. Além disso, no caso de enunciados com apenas uma palavra, ele pode ter várias significações. Aimard (1998) exemplifica tal fato com o caso de uma criança de dois anos, que ao dizer “Ver” pode estar querendo dizer “Vamos ver, eu vou ver ou venha ver!”. Dessa forma, muitas vezes não é possível saber ao certo o que a criança disse ou quis dizer e, portanto, torna-se difícil para o pesquisador decidir que critério é pertinente para a delimitação de enunciados, de palavras e, consequentemente, de morfemas. E quanto mais jovem for a criança, maior a dificuldade de segmentar seu enunciado. Sabemos que a linguagem da criança é diferente da linguagem do adulto, não podendo ser analisada da mesma forma que se analisam as produções de falantes mais experientes. No entanto, é com base na linguagem do adulto que muitos critérios são estabelecidos. Assim, por exemplo, Brown (1973) estabelece como regra para o inglês contar como um morfema todos os passados irregulares de verbos, justificando que não há evidências de que a criança os relacione às formas do presente. No entanto, como ressalta Scliar-Cabral (1976, p.35), o autor não especifica o que considera a evidência de que esses morfemas não funcionem como tal para a criança. Por esse motivo, a autora afirma que os critérios para segmentar ou não os enunciados “se revestem, às vezes, de um tom impressionístico, carecendo de objetividade”. Todos esses problemas deveriam ser levados em conta quando da contagem da EME. Ademais, mesmo que nos baseemos nos critérios já estabelecidos por Brown (1973), não podemos nos esquecer de que esses parâmetros foram criados para a língua inglesa, necessitando, portanto, de que as outras línguas estabeleçam seus próprios critérios. Tem-se, assim, novos problemas, pois, ao se fazer a adaptação das regras de Brown para o cálculo da EME-m em outras línguas, vários pesquisadores relataram dificuldades, como o próprio autor havia advertido quando a propôs (BROWN, 1973, p.55):

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We know that we are going to run into serious inconsistencies and uncertainties with some foreign languages, and these are discussed in Stage I. However, the MLU may be effectively redefined or we may find some other, almost equally simple index, preferable61. Nesse sentido, além da necessidade de haver muitos estudos que descrevam o desenvolvimento gramatical na própria língua nativa da criança, como já ressaltado por Hickey (1991), destacamos a importância de se conhecer os interlocutores, a situação e o que foi dito antes, ou seja, que se faça uma análise detalhada do discurso da(s) criança(s) pesquisada(s), devido às especificidades de seus processos de aquisição da linguagem. A dificuldade de adaptação torna-se ainda maior quando lidamos com línguas altamente flexionadas, caso do português e do espanhol. Como bem observado por GutiérrezClellen et al (2000, p.89), é importante ter em mente que há diferenças significativas na morfologia flexional dessas línguas com relação ao inglês. Para exemplificar, ela cita o que ocorre com os verbos em espanhol, que podemos estender para o português: são flexionados em número e pessoa, tempo, modo e aspecto, flexões que também variam de acordo com a raiz dos verbos (1a, 2a ou 3a conjugação). No inglês, diferentemente, as flexões verbais não mudam para pessoa (com exceção da 3a pessoa do singular -s), modo ou aspecto (que é marcado por meio de auxiliares verbais), e o tempo tem apenas uma marca flexional para passado (-ed), enquanto que tanto o espanhol quanto o português marcam os tempos passado, presente e futuro com flexões distintas. Nesse mesmo estudo, Gutiérrez-Clellen et al (2000) chamam a atenção para os problemas da não padronização dos critérios de contagem, já que cada pesquisador faz sua própria adaptação das normas de Brown (1973) para o cálculo de tal medida em seus dados. Isso porque a autora realizou a contagem da EME-m em amostras de duas crianças falantes do espanhol, valendo-se de três procedimentos diferentes (ECHEVERRÍA, 1979; LINARES E SANDERS, 1977; E GARCÍA, 1978, apud GUTIERREZ-CLELEN et al., 2000), e obteve resultados de EME-m muito díspares. Outra colocação importante é o fato de o MLU ser calculado automaticamente através do programa CLAN, no caso das línguas que possuem a gramática MOR62. Esse cálculo é feito a partir do CHAT (Codes for the Human Analysis of Transcripts), uma ferramenta que fornece normas para transcrições de dados de fala. Sendo assim, qualquer falha nessa transcrição pode interferir diretamente na contagem automática dos morfemas. Para                                                                                                                         61

Nós sabemos que vamos incorrer em sérias inconsistências e incertezas com algumas línguas estrangeiras, e estas são discutidas no Estágio I. No entanto, o MLU pode ser efetivamente redefinido ou podemos encontrar algum outro índice, quase igualmente simples, que seja preferível. (tradução nossa). 62 Banco de dados para análise morfológica automática, descrita na linha %mor das transcrições.

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exemplificar, trazemos três pequenos trechos63 do corpus de uma pesquisa longitudinal (HILÁRIO, 2012): o primeiro de Madeleine, uma criança monolíngue francesa, cujos dados foram coletados e transcritos pelo grupo francês COLAJE64; e os dois outros de Melissa; uma criança monolíngue brasileira, cujos dados foram coletados e transcritos pelo grupo GEALin. Nesse caso, o foco é a produção do plural nominal. Exemplo 1 Madeleine, 2;01.0265, limpa uma banqueta com a esponja: *CHI: c'est sale le@fs tabouret . %pho: se saləә le tabuʁɛ Exemplo 2 Melissa, 2;02.05, aponta para uma das peças de um jogo de memória: *CHI: o avião tudos ! %com: gesticula sobre as peças do jogo *MOT: dois aviões ! Exemplo 3 Melissa, 2;02,05, monta um quebra-cabeças com a mãe *CHI: e o o(u)t(r)o joguinho hein@i ? *MOT: qual ? *CHI: o o(u)t(r)o joguinhos . No enunciado de Madeleine temos a pronúncia exata do determinante no plural les, porém a transcrição é feita usando o símbolo @f, indicando a presença de um filler (som preenchedor). É possível que esse recurso tenha sido usado pelo fato de a produção da criança despertar dúvidas no transcritor, já que o plural não era esperado neste contexto. Com isso, o plural não seria contado para o cálculo automático do MLU/EME, embora tenha sido produzido pela criança. Já nos enunciados de Melissa temos duas situações diferentes. No primeiro exemplo o morfema de plural é usado em uma palavra invariável e, portanto, não seria flexionada em número de acordo com a gramática MOR. No segundo exemplo, para a transcrição foi considerado exatamente o que a criança efetivamente produziu. As construções “o outro joguinho” e “o outro joguinhos” se distinguem apenas pelo emprego do morfema de plural em um elemento do sintagma; no entanto, a transcrição poderia ser feita colocando em elipse os plurais não realizados: o(s) o(u)t(r)o(s) joguinhos. Nesse caso, o programa faria automaticamente a contagem de 3 morfemas de plural no sintagma. Com isso, a transcrição                                                                                                                         63

Nas transcrições, *CHI corresponde à linha de transcrição dos enunciados da criança, *MOT, à linha de transcrição dos enunciados da mãe, %pho à linha de transcrição fonética dos enunciados. Os fillers são marcados com @f, as interjeições com @i e os segmentos não pronunciados (elipses) são transcritos entre parênteses. 64 http://colaje.scicog.fr/ 65 A idade da criança é citada em anos;meses.dias. Sendo assim, 2;01.02 corresponde a 2 anos, 1 mês e 2 dias.

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dos dados, especialmente no caso do plural em português e em francês, poderia interferir significativamente na contagem do MLU/EME. Apesar dos inconvenientes a que nos referimos, uma das vantagens do uso da EME comumente citada é a possibilidade de comparar crianças que estão adquirindo a mesma língua. Entretanto, para que seja possível confrontar tais resultados, é preciso que haja, primeiramente, uma padronização dos critérios de contagem em cada língua. Curiosamente, durante esta pesquisa observamos que isso é um problema mesmo no inglês, já que os próprios autores americanos estudados valeram-se de critérios um pouco distintos dos de Brown (cf. PARKER E BRORSON, 2005, p. 374). Com relação à contagem da EME em morfemas, no PB, não podemos deixar de mencionar o trabalho pioneiro de de Scliar-Cabral (1976). Nele, a medida foi utilizada como parâmetro para auxiliar na avaliação de dois modelos linguísticos, o da Gramática GerativoTransformacional de Chomsky e o da Gramática dos Casos de Fillmore. Para tanto, a autora reproduziu o estudo de Brown (1973), utilizando, portanto, os mesmos critérios estabelecidos por ele e sua equipe para a língua inglesa. No entanto, como já afirmamos, consideramos a importância de cada língua estabelecer seus próprios critérios, devido às especificidades de suas estruturas. Por isso, nos propusemos a refletir sobre os critérios para cálculo da EME de que dispomos no PB, propondo algumas adaptações aos critérios já existentes e a elaboração de novos, levando em consideração as particularidades da produção de cada criança, segundo nossa abordagem. Assim, por exemplo, a primeira diferença que podemos observar com relação aos critérios de contagem de morfemas refere-se ao grau dos substantivos. Em seu estudo original, como vimos, Brown (1973, p.54) estabeleceu como regra contar como um morfema todos os diminutivos (como no inglês doggie, mommie), porque, para ele, as crianças não parecem usar o sufixo produtivamente, afirmando que os diminutivos são as formas básicas usadas pela criança. Baseando-se nessa afirmação, Scliar-Cabral (1976, p. 33) transpôs tal norma para a língua portuguesa, estendendo-a para o aumentativo. No entanto, a reflexão que propusemos acerca do tema (HILÁRIO, 2011a) com base nos dados de uma criança monolíngue brasileira entre 1;11.03 e 2;7.27 indica que, mais do que formas básicas, o uso do diminutivo e do aumentativo é um recurso importante na construção de sentidos, que ocorre de forma compartilhada e negociada na interação entre a criança e seu interlocutor. Essas formas, ao menos no corpus em PB, são muito produtivas e as crianças parecem explorá-las de forma bastante interessante, como vemos também em Silva (2007, p. 125).

Por esse motivo

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consideramos necessário contar tais sufixos de grau, tanto de diminutivo quanto de aumentativo, como morfemas separados. Outra diferença refere-se à contagem dos verbos. De acordo com as normas estabelecida por Brown (1973) e utilizadas por autores como Scliar-Cabral (1976), os verbos irregulares no passado também devem ser contados como um só morfema. Alguns autores, como Parker e Brorson (2005, p.374), julgam que usos incorretos de flexões não devem ser contados como morfemas separados. Entretanto, quando esses mesmos verbos irregulares são regularizados pela criança, em analogia aos verbos regulares, como no caso de fazi para fiz, temos, então, a produção clara de dois morfemas. A forma regularizada, apesar de ser considerada como um "erro" se comparada à produção do adulto por se desviar da norma padrão, evidencia um movimento da criança frente a certas construções linguísticas, já que ela aplica a esse verbo uma regra gramatical pertencente aos verbos regulares. Além disso, nesses casos fica evidente que a criança relaciona tais formas com o verbo em questão, no presente, o que justificaria a contagem de dois morfemas ao invés de um. Como estamos analisando a fala infantil, é importante considerar se o que se conta como morfema é realmente um morfema para a criança, se aquilo é ou não algo produtivo para ela. No entanto, como sabê-lo? Para Scliar-Cabral (1976, p. 35), “é necessário muita cautela no sentido de não descartar itens que, aparentemente, possam parecer muletas, ou seja, mero recurso articulatório de atuação, mas que, na verdade, funcionem produtivamente na gramática da criança”. Os critérios para contagem de morfemas no PB trazem, ainda, outro ponto discutível: as flexões de gênero nos substantivos e adjetivos. A primeira questão a ser destacada nesse sentido refere-se à visão da morfologia a ser adotada, já que o gênero em português é descrito de duas formas diferentes. Assim, Câmara Jr. (2009, p. 89- 90) defende que "a flexão de gênero é uma só, com pouquíssimos alomorfes: o acréscimo, para o feminino, do sufixo flexional –a (/a/ átono final) com a supressão da vogal temática, quando ela existe no singular: lob(o)+ a = loba; autor+a = autora.", sendo o masculino uma forma geral, não marcada. De forma semelhante, Monteiro (2002, p.79) descreve o masculino como sendo marcado pela desinência zero (Ø) que se opõe ao morfe [a] dos femininos. Por outro lado, Kehdi (1990, p.30-31) considera que "a flexão de gênero não se reduz a uma oposição Ø / -a, e, sim, a uma oposição -o / -a. A desinência –o apresenta as variantes Ø (peru/perua, autor/autora) e u semivocálico (europeu/europeia, mau/má)". Sendo assim, dois critérios distintos seriam possíveis: o primeiro seria considerar que o gênero masculino é a forma básica dos substantivos e, portanto, apenas as flexões no feminino contariam como morfemas;

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o segundo seria contar como morfemas separados a desinência {-o} para masculino e {-a} para feminino, o que, por sua vez, não permitiria diferenciar o momento do uso sistemático de um item flexionado em gênero. Essa indagação pode ser feita também com relação ao número dos sintagmas nominais, já que, no português, o singular é caracterizado pelo morfema Ø, ao passo que o plural é marcado pela desinência –s, sendo este um ponto de concordância entre todos os autores. A questão da variação na marcação de plural, como já apontamos no início desse artigo, é um ponto crítico a ser considerado. Em pesquisa acerca da aquisição e emprego do plural nominal (HILÁRIO, 2010, 2011b, 2012), pudemos observar o uso incomum do morfema {-s} em sintagmas nominais compostos por mais de um elemento: além de ter sido observado o uso das marcações padrão (Ds+Np) e não-padrão (Dp+Ns), constatamos ainda ocorrências de sintagmas do tipo Ds+Np. Curiosamente, em um corpus naturalístico que privilegiava situações informais de interação mãe-criança e que supostamente teria mais ocorrências de marcação de plural não padrão, verificou-se que os sintagmas do tipo Ds+Dp e Dp+Np eram mais recorrentes que os do tipo Dp+Ns. Assim, a variação no uso da marca de plural pela criança poderia acarretar, ao longo do tempo, uma diminuição na ocorrência do morfema {-s} nos enunciados que apresentassem mais de um elemento, visto que na marcação padrão haveria no mínimo duas ocorrências do morfema (determinante e nome) e na marcação não-padrão apenas uma ocorrência (determinante). Além disso, as construções menos previsíveis como issos, tudos, pertinhos etc., poderiam também trazer dúvidas com relação à inclusão ou não destas ocorrências no cálculo da EME. Como contornar tal situação? Como demonstrar através desta medida as mudanças qualitativas no discurso da criança, sem desprezar a especificidade da linguagem no período de aquisição? No caso do francês, a transcrição ortográfica dos enunciados da criança prevê a inserção do morfema de plural em todos os elementos do sintagma, ainda que na produção oral esse morfema seja silencioso. Com isso, um enunciado composto pelo sintagma nominal les livres apresentaria 4 morfemas, enquanto um enunciado composto pelo sintagma o livros (ou os livro) apresentaria apenas 3 morfemas. Uma transcrição que apagasse a presença da variação no PB não nos parece, num primeiro momento, a mais adequada, embora pudesse minimizar o problema da contagem de morfemas com relação ao plural nominal, num paralelo entre o PB e o francês. Os verbos, por sua vez, trazem também suas particularidades. Como já evidenciamos aqui, as diferenças morfológicas entre o inglês e o português são muitas, o que dificulta a adaptação das regras de Brown (1973) para o PB. Assim, por exemplo, Araujo (2007, p.74)

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estabelece como norma contar um ponto para os morfemas que designam número e pessoa e um ponto para cada modo e tempo verbal expresso (presente, passado e futuro; indicativo, subjuntivo e imperativo), já que, no português, tempo e modo são marcados no mesmo morfema, assim como número e pessoa. Se estivéssemos analisando a fala adulta, tal regra não seria discutida. No entanto, quando se trata da análise da produção de linguagem infantil, alguns pontos merecem ser destacados. Em primeiro lugar, parece ser um consenso entre os autores, assim como para o próprio Brown (1973), que a contagem da EME leva em conta aquilo que seria um morfema para a criança. Essa é a justificativa para, por exemplo, contar como um morfema os verbos irregulares conjugados no passado. Mas e nos outros casos de flexões verbais? Como saber exatamente a noção que a criança tem de cada flexão produzida? Por outro lado, em uma língua com tantas possibilidades de flexão como o PB, por exemplo, se fôssemos considerar todas as flexões possíveis para todas as palavras, obteríamos uma EME-m muito alta. É o que fica claro através da comparação feita por Gutiérrez-Clelen et al (2000, p. 94) entre a EME obtida através de três procedimentos distintos, à qual já nos referimos, para falantes da língua espanhola. Em uma criança de 2 anos e 7 meses, a EME resultante foi de 2.7, segundo o critério 1 (ECHEVERRÍA, 1979, apud GUTIÉRREZCLELEN et al., 2000); 5.3, segundo o critério 2 (LINARES e SANDERS, 1977, apud GUTIÉRREZ-CLELEN et al., 2000); e 3.8, segundo o critério 3 (GARCÍA, 1978, apud GUTIÉRREZ-CLELEN et al., 2000). Já para uma criança de 3 anos e 7 meses, a EME obtida foi de 5.4, 10.9 e 6.9, segundo os critérios 1, 2 e 3, respectivamente. Esses procedimentos referem-se às seguintes contagens: o primeiro, à EME em palavras; já o segundo e o terceiro, à EME-m, baseada em critérios para determinar o número de flexões morfológicas de dois autores diferentes. A partir dos resultados expostos, podemos perceber que os valores de EME-m calculada com base no segundo critério são os maiores, chegando mesmo a passar de 10 no caso de uma criança de 3 anos. Isso ocorre porque os autores que elaboraram tais critérios (LINARES e SANDERS, 1977 apud GUTIÉRREZ-CLELEN et al., 2000) determinaram a norma básica de contar separadamente todas as flexões presentes nas palavras produzidas pela criança, numa análise morfológica completa de seu enunciado, como faríamos no caso de um adulto. Apesar de tal norma parecer bastante sensata, observamos que os valores da EME obtidos segundo ela são consideravelmente mais altos que os valores resultantes de outros critérios, mais próximos dos originalmente propostos por Brown (1973), o que geraria conclusões bastante díspares acerca do desenvolvimento gramatical da criança. Nesse caso,

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parece-nos que a melhor saída seja contar os verbos conjugados como dois morfemas (um para o radical e outro para a flexão). As flexões verbais não são o único caso de formas não contempladas nos critérios de contagem de alguns autores; na verdade, algumas categorias de palavras não são sequer citadas. É o caso dos pronomes, que, no português, são flexionados em gênero, número e caso. Eles não são mencionados nas regras de Scliar-Cabral (1976), assim como nas de Brown (1973), ficando a dúvida de quantos morfemas devem ser considerados. Com relação aos pronomes, Araújo (2007) relata que em seu trabalho cada ocorrência desses elementos recebeu um ponto, o que valeu também para as preposições e conjunções. Com base no que foi exposto, podemos perceber o quão complexa é a adaptação dos critérios de contagem de morfemas para línguas como o português. Muitos desses critérios carecem de objetividade, por isso, são necessários mais estudos sobre o processo de aquisição e desenvolvimento morfológico em português, a fim de se conseguir uma descrição mais adequada de tal processo. A adoção do EME-m pelos pesquisadores, portanto, exige que sejam feitas adaptações; o maior desafio, no entanto, é minimizar as possibilidades de variação na contagem de morfemas, pois isso resultaria em inadequações na análise. Nesse sentido, cabe-nos lembrar que a contagem da EME em morfemas pode ser feita automaticamente através de um comando específico do programa computacional CLAN, da plataforma CHILDES, ao qual já nos referimos. Para tanto, é preciso que haja a análise morfológica automática da língua em que os dados foram transcritos (no formato CHAT), construída a partir de uma gramática MOR e anexada ao programa. Atualmente, estão disponíveis, no sítio do CHILDES, gramáticas MOR de 13 línguas diferentes: inglês, espanhol, francês, italiano, cantonês, dinamarquês, holandês, alemão, hebraico, japonês, chinês, norueguês e sueco. Para o português, contudo, tal ferramenta não está disponível e, portanto, a contagem da EME-m ainda deve ser feita manualmente. Destaca-se, nesse sentido, a grande contribuição que trará, às discussões aqui empreendidas, o programa para análise automática dos morfemas do PB (SCLIAR-CABRAL, 2008, 2005; SCLIAR-CABRAL, MACWHINNEY, 2005), bem como a gramática MOR para o PB (SCLIAR-CABRAL, 2012a, 2012b), ambos em desenvolvimento pelo Grupo de Pesquisa Produtividade Linguística Emergente. Com a contagem automática da EME-m, o problema da padronização dos critérios seria parcialmente resolvido, visto que o mesmo procedimento seria adotado pelos pesquisadores que se valessem do CLAN para a transcrição de seus dados. Isso traria um

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parâmetro mais seguro de comparação entre crianças falantes da mesma língua. Todavia, ainda que se utilize a contagem automática dessa medida, o problema da delimitação dos morfemas continuaria posto, pois muitas produções individuais e específicas de cada criança, produtivas em sua gramática, seriam deixadas de lado numa análise automática66. A EME-p (Extensão Média do Enunciado em palavras) Pensando em todas essas questões levantadas, uma alternativa à problemática da EME em morfemas seria a de se realizar a EME em palavras. Como já afirmamos, antes do trabalho de Brown (1973), os pesquisadores valiam-se da EME-p (no inglês MLU-w) em seus trabalhos; porém, após a publicação dos resultados de sua pesquisa, a EME-m (MLU-m) passou a ser muito mais utilizada, e o cálculo da média de palavras por enunciado foi praticamente deixado de lado. No entanto, notando as várias inconsistências inerentes à medida em morfemas, trabalhos mais recentes realizaram comparações entre a contagem da EME das duas formas e os resultados obtidos revelaram uma preferência pela medida em palavras. Dentre esses trabalhos, destacam-se os de Hickey (1991), para crianças falantes de irlandês, Gutiérrez-Clellen et al (2000), para a aquisição do espanhol, além dos trabalhos mais recentes de Parker e Brorson (2005) e Parisse e Le Normand (2006), que compararam tais medidas na aquisição do inglês e do francês, respectivamente. Todos esses autores encontraram, ao compararem os valores obtidos da EME-m e da EME-p, além da alta correlação entre elas, maior eficiência e confiabilidade da medida em palavras, sugerindo, assim, que esta última seria preferível em relação à primeira, pela facilidade de se executar seu cálculo e por ser menos sujeita a erros e diferenças de contagem decorrentes das especificidades de cada língua. Por isso, como concluíram os pesquisadores acima citados, que compararam ambas as medidas em línguas diferentes, evidenciou-se também uma maior eficiência e confiabilidade da medida em palavras. Além disso, através do cálculo do coeficiente de Pearson, encontramos uma correlação quase perfeita entre elas, já que r = 0,985, de forma semelhante ao encontrado para o francês: r = 0,991 (Parisse e Le Normand, 2006) e ainda para o inglês: r = 0,998 (Parker e Brorson, 2005). Tais resultados e observações sugerem que a EME-p é uma medida do desenvolvimento linguístico infantil tão útil quanto a EME- m, sendo preferível por sua maior simplicidade e menor arbitrariedade de cálculo.                                                                                                                         66

Maiores reflexões poderiam ser feitas nesse sentido; no entanto, não nos aprofundaremos na análise da contagem automática da EME, pois nosso foco nesta pesquisa são questões anteriores, concernentes mesmo à sua origem, envolvendo, portanto, sua contagem manual.

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Como evidenciado por Gutiérrez-Clelen et al (2000, p. 95), a EME-p é também a mais indicada em pesquisas sobre o desenvolvimento de crianças bilíngues. Os enunciados com code-switching, por exemplo, não poderiam ser considerados para o cálculo da EME-m; para a EME-p, entretanto, eles não apresentariam problemas. A contagem em palavras também seria mais indicada no caso de se comparar crianças de dialetos diferentes dentro da mesma língua, pois a análise em morfemas poderia ser prejudicada por diferenças morfológicas existentes entre esses dialetos, como mostrado por Gutierrez-Clelen et al (2000) através de enunciados de falantes de espanhol, comparando-se dialetos do México e de países caribenhos. No que se refere especificamente à nossa pesquisa sobre a aquisição de plural por crianças monolíngues e bilíngues, podemos confirmar que o cálculo da EME-p é uma alternativa interessante se comparada à EME-m, pois a contagem do número de palavras no PB é relativamente mais simples do que a segmentação em morfemas, considerando, como já expusemos, a dificuldade de se adotar parâmetros precisos para realizá-la. A EME, a idade cronológica e as situações discursivas que abrangem a produção verbal da criança Além das relações encontradas entre desenvolvimento gramatical e valores da extensão média do enunciado, muitas pesquisas procuraram investigar possíveis correlações da EME com a idade cronológica de crianças com e sem alterações de linguagem. Assim, por exemplo, em uma pesquisa realizada com crianças de 3 anos, falantes de inglês, em desenvolvimento normal de linguagem, Parker e Brorson (2005) obtiveram correlação positiva entre a idade cronológica e a EME, sendo r = 0,69 tanto para a medida em morfemas quanto para a em palavras. De forma semelhante, para crianças falantes de francês (THORDARDOTTER, 2005), verificou-se correlação de r = 0,763 entre a idade e os valores da EME-m e de r = 0,787 entre EME-p e idade; para crianças falantes de inglês, ainda nesse mesmo estudo, as correlações verificadas foram de r = 0,672 entre idade e EME-m e r = 0,701 entre idade e EME-p. No português brasileiro, Fensterseifer e Ramos (2003), em um estudo feito com crianças pré-escolares com idade entre 1 ano e 6 meses e 5 anos, verificaram alta correlação entre a idade cronológica dos sujeitos e os valores da EME obtidos (r = 0,85). Outras pesquisas evidenciaram que, a partir de 42 meses de idade, a EME não consegue diferenciar desempenhos, mostrando valores muito semelhantes entre si, como as de Miller e Chapman (1981). Além disso, como afirma Aimard (1998, p. 21), “Desde as primeiras publicações, Brown ressalta que a idade dessas etapas é muito variável (por

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exemplo, uma criança chega ao primeiro nível aos 16 meses, outra aos 26, chegando aos 42 meses algumas vezes)”. Em nossos dados, outra variante parece influenciar de maneira significativa o cálculo da EME-p. As categorias do discurso, tais como situação, sequência discursiva e tipo de enunciado que elencamos em nossa pesquisa67 podem explicar a variação na EME-p de uma mesma criança – podendo, portanto, também explicar a variação de uma criança em comparação com a outra. O gráfico a seguir traz a EME-p dos três sujeitos da nossa pesquisa.

6 5 4 3 2 1 0

Madeleine

1;11

2;01

2;02

2;03

2;04

2;05

2;06

2;07

2;08

2;09

3

3,3

3,1

3,1

3,9

4,3

4,1

4,9

4,6

4,2

1,5

1,7

2

1,9

2,6

2,5

3,1

2,9

Marina Melissa

2,2

2;10

2;11

2,1

2,5

3;01 2,7

3,6

Gráfico 1. Progressão da extensão média dos enunciados

Ainda que a linha de tendência (em preto) aponte a progressão da EME das três crianças, o que observamos efetivamente é uma variação na média de palavras por enunciados. No caso de Melissa, há uma diminuição da EME de 3,1 para 2,9 aos 2;08 anos e de 3,6 para 2,1 aos 2;10 anos. Madeleine apresenta uma diminuição da EME em três momentos: de 3,3 para 3,1 aos 2;02 anos, de 4,3 para 4,1 aos 2,06 anos, de 4,9 para 4,6 aos 2,08 anos e de 4,6 para 4,2 aos 2;09 anos. Marina, por sua vez, apresenta queda na EME de 2 para 1,9 aos 2,08 anos. Isso não significa, obviamente, que houve um retrocesso na aquisição. O que observamos é que em atividades como a leitura compartilhada de uma história, por exemplo, que envolve a suspensão dos enunciados pela mãe para que sejam completados pela criança, a extensão média dos enunciados da criança é menor. É o caso de Melissa, aos 2;10 anos, cuja EME é a mais baixa se comparada às demais sessões de gravação da criança. Uma atividade de jogo, entretanto, envolveria tanto a produção de enunciados descritivos quanto argumentativos, resultando em enunciados de maior extensão, como vemos em Madeleine aos 2;07 e EME 4,9, a mais alta no conjunto de dados. Sendo assim, o cálculo da média de                                                                                                                         67

Tese de doutorado em desenvolvimento, a ser defendida em agosto de 2013, no Programa de pós-graduação em Linguística e Língua Portuguesa da UNESP/FCLAr.

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palavras por enunciado estaria submetida também às categorias do discurso, já que determinadas situações discursivas potencializariam a produção de enunciados maiores se comparadas a outras. Para refletir... Diante do exposto, acreditamos que uma análise do grau de desenvolvimento linguístico da criança não deveria restringir à EME todo o conhecimento gramatical que a criança possui, já que, além de ser uma medida que varia bastante de acordo com o momento em que foram coletados os dados etc., os dados quantitativos nem sempre equivalem aos dados qualitativos. Evidencia-se com isso que mudanças qualitativas no discurso da criança não podem ser demonstradas unicamente através do cálculo da extensão média do enunciado, pois ela não dá conta de suas especificidades. Por essa razão e partindo de um ponto de vista diferente do qual partiram trabalhos anteriores, consideramos ser necessária uma análise discursiva dos enunciados, análise esta que não leva em conta apenas o uso de formas linguísticas e gramaticais, mas que considera elementos tais como o próprio diálogo onde esses morfemas (e palavras) são produzidos, os enunciadores envolvidos no discurso, a situação de comunicação etc. De um lado, esse tipo de análise confronta-se com uma revalorização dos dados quantitativos (Del Ré, no prelo) nas pesquisas em Aquisição da Linguagem, cada vez mais cobrados em congressos científicos internacionais da área. De outro, uma análise quantitativa pode trazer contribuições para as reflexões, dependendo, obviamente, das perguntas que se colocam para a pesquisa em questão. Embora, de nosso ponto de vista e considerando que estudamos o discurso da criança, esse tipo de análise seja insuficiente para medir o desenvolvimento linguístico infantil, desde que se façam as devidas adaptações, é possível, valer-se, por exemplo da EME-p para colocar em paralelo crianças que supostamente não estariam no mesmo nível de desenvolvimento linguístico, pensando-se no caso de estudos que envolvam, em um mesmo trabalho, crianças monolíngues e bilíngues. Além da EME-p, uma outra medida da qual pouco se fala poderia ser igualmente produtiva nesses casos: trata-se do upper-bound. Essa medida, descrita por Brown (1973), corresponde ao limite máximo de itens por enunciado e deve ser atingido na amostragem de 713 enunciados. Segundo Scliar-Cabral (1976, p.39), é uma competência incipiente e pode ser bastante reveladora. Consideramos que ele seria um dado importante a ser utilizado

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conjuntamente com a EME. O upper-bound seria então um dado a ser composto com a idade, o número de palavras (EME-p) diferentes em "tipos" e "ocorrências", entre outros. Com a padronização dos critérios para cada língua, a EME pode ser usada também para se ter uma medida, um ponto de comparação entre crianças falantes de uma mesma língua, ou ainda para indicar por que certas crianças são comparadas entre si e não outras, mesmo que para mostrar que há enormes diferenças interindividuais e nos ritmos de aquisição. Como observado por Crain e Lillo-Martin (1999, p.28): It should be kept in mind, however, that MLU is probably not an accurate measure of a child’s gramatical competence. Occasionally, a child will produce sentences that exceed her MLU considerably. In our view, such sentences may provide a more accurate assessment of grammatical competence. But, MLU can be used as a guide; it provides us with approximate information about a child’s stage of language development, relative to other children. 68 Por fim, podemos reconhecer a utilidade da EME para pesquisas como as da área da Fonoaudiologia, em que é possível detectar crianças com distúrbios de linguagem ao comparar seu desenvolvimento com o de crianças sem distúrbios, quando usada como um auxiliar em tal diagnóstico. Vale lembrar que, como bem advertido por Gutiérrez-Clellen et al (2000), qualquer instrumento de avaliação de linguagem deve ser utilizado em conjunto com outros testes, para que os resultados obtidos possam ser comparados e complementados, nunca como uma ferramenta de diagnóstico final. Considerações Finais Essa tentativa de por em discussão os critérios de contagem de morfemas e/ou palavras na produção oral da criança pequena, por meio de uma análise mais apurada da EME, demonstrou que vários problemas podem ser levantados com relação a ela, a começar pela dificuldade de segmentação da fala infantil, o que acaba por comprometer a objetividade na delimitação de critérios de contagem. Ademais, como tais critérios foram estabelecidos ad hoc para o inglês, tem-se a necessidade de sua adaptação para outras línguas, o que não é fácil por causa das diversas diferenças morfológicas existentes entre elas, ainda mais no caso de línguas altamente flexionadas, como o português.

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Deveríamos ter sempre em mente, no entanto, que o MLU provavelmente não é uma medida exata da competência gramatical de uma criança. Ocasionalmente, uma criança produzirá enunciados que excederão seu MLU consideravelmente. Em nossa opinião, estes enunciados podem nos dar um retorno mais confiável da competência gramatical. Contudo, o MLU pode ser usado como um guia, nos dando informações aproximadas sobre o estágio de desenvolvimento linguístico de uma criança em relação à outra. (tradução nossa).

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A discussão acerca da elaboração dos critérios para o cálculo no português, evidencia a complexidade de tal processo, que se dá pelas diferentes descrições morfológicas da língua e ainda pela necessidade de se considerar os morfemas produtivos na gramática da criança, o que depende, portanto, da posição teórico-metodológica do pesquisador. Alguns critérios demonstraram ser particularmente problemáticos, como é o caso dos verbos e dos sintagmas nominais pluralizados. Nesse sentido, apontamos a necessidade de mais estudos sobre a aquisição morfológica do português para auxiliar em tais questões. A falta de padronização das normas de contagem é outro fator que diminui a eficácia da EME-m. Uma possível solução para esses problemas seria apostar no cálculo da EME-p, por ser comprovadamente mais fácil e simples, além de menos sujeito a erros, e possuir alta correlação com o cálculo em morfemas. A EME em palavras também é a mais indicada para certas pesquisas, como as que envolvem crianças bilíngues e para comparações entre crianças falantes da mesma língua, mas de dialetos diferentes. Embora alguns autores o façam, neste trabalho, não pudemos fazer afirmações conclusivas sobre a relação entre o desenvolvimento linguístico explicitado pela EME e a idade cronológica dos sujeitos de nossas pesquisas. Entretanto, evidenciamos que a EME não pode ser o único parâmetro de descrição do desenvolvimento gramatical infantil, já que, por exemplo, ela varia de acordo com as condições de produção e não reflete as mudanças qualitativas em tal discurso. Por isso, outros fatores devem ser analisados, como o contexto discursivo, os participantes envolvidos etc. Com isso, concluímos que a EME pode ser uma medida útil para nossas pesquisas, feitas as devidas adaptações e levando-se em conta todos os problemas que lhe são inerentes, especialmente se somada a outros fatores – como a idade, o número de tipos/ocorrências, o limite máximo de itens por enunciado etc. –, porém não como único parâmetro de análise. Considerando-se a ampla utilização e a importância que a EME tem recebido nas últimas décadas em pesquisas de diversas áreas sobre a linguagem da criança, esperamos que as reflexões aqui trazidas tenham contribuído para se pensar criticamente questões metodológicas que são de extrema importância para a área de Aquisição da Linguagem.

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Este livro retoma, com algumas modificações, a tese de doutorado, de mesmo título, defendida em 2003, na Universidade de São Paulo.

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