LINGO: O Cinema de Animação como crítica social

June 1, 2017 | Autor: Paula Tavares | Categoria: Animation
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#LINGO: O Cinema de Animação como crítica social Daniel Roque1, Paula Tavares2 e Jorge T. Marques3 [email protected], [email protected] e [email protected]

Abstract Desde a sua origem que a Animação é utilizada como um meio de representar a sociedade através de técnicas e expressões que o cinema tradicional não permite. Ao incorporar a sátira na sua representação social e política está a expor uma crítica a características negativas com o intuito de alterar percepções e estereótipos, motivando a sua vulgarização ou correção. O projeto #LINGO, desenvolvido no âmbito do Mestrado em Ilustração e Animação do Instituto Politécnico do Cávado e do Ave, consistiu na realização de uma curta-metragem de animação com recurso à sátira, incidindo sobre um dos problemas em expansão no século XXI, a dependência nos dispositivos digitais e redes sociais.

1. Introdução

À semelhança do cinema tradicional, a Animação teve um papel proeminente na representação evolutiva da sociedade, contribuindo com diferentes técnicas e expressões artísticas que a imagem real não permite. Autores e estúdios de animação inspiram-se nas suas tradições, vivências ou acontecimentos verídicos culminando num trabalho sobre, e para, a sua história, cultura e identidade sociopolítica [1]. A estereotipização racial, sexual e cultural, a objetificação da mulher, as respostas feministas e sua emancipação, a propaganda política e os ataques entre nações são alguns dos temas representados através do medium animado. Esta representação surge por vezes estimulada por uma crítica social com recurso à comédia. Da combinação de ambas desponta a sátira. Descrita como uma forma de discurso crítico acerca de problemas sociopolíticos com o riso como consequência, a sátira salienta características negativas de pessoas, entidades, organizações ou costumes, ridicularizando-as com o objetivo de as alterar.

2. O Cinema de Animação como crítica social

A crítica social através da imagem teve o seu crescimento no século XVIII quando o desenvolvimento da imprensa permitiu uma maior distribuição e diversidade de gravuras e ilustrações. Em Inglaterra, Thomas Rowland1, 2 e 3 Instituto Politécnico do Cávado e do Ave, Escola Superior de Design, Barcelos, Portugal.

Keywords

Animação; sátira; redes sociais; crítica social.

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Fig. 1. Mickey Mouse e Minnie Mouse de Walt Disney e Ub Iwerks

son representava membros da política em cenas de sexo e John Leech expressava-se através de personagens exageradas e grotescas, enquanto em França, J. J. Grandeville utilizava animais antropomórficos nas suas provocações políticas. No século XIX, a caricatura (ou cartoon impresso) era um elemento integrante nos jornais, começando a surgir as primeiras revistas dedicadas exclusivamente ao género. A representação da sociedade através da Animação surge com as primeiras experiências animadas, tendo Émile Cohl e Winsor McCay como principais impulsionadores. Fantasmagorie (1908) de Cohl mostrava através do cartoon em movimento personagens e cenas do quotidiano, enquanto McCay transpunha para o medium animado as suas tiras de comics sobre conflitos entre casais, fuga à autoridade ou a relação entre pais e filhos. Little Nemo, a sua personagem com maior distinção, foi levada para o ecrã em 1911. A partir deste ano muitos caricaturistas passaram para a imagem animada, produzindo curtas-metragens de animação de 5 a 10 minutos, ou cartoons, como eram denominados, que passavam nos cinemas antes ou no intervalo das longas-metragens. Embora direcionados para um público infantil, os cartoons deveriam entreter o espectador adulto, levando os produtores a procurar temáticas sérias que não fossem perceptíveis pelas crianças, como a noção de classes sociais, a diferença entre opressor e oprimido, medos irracionais, obsessão, sentimentos reprimidos, instinto de sobrevivência a qualquer custo, atração ou identidade sexual. Os estúdios de Animação começaram a desenvolver estereótipos de representação da sociedade, sendo a desigualdade de género um dos principais. Fisicamente díspares, as personagens masculinas evidenciavam força e soberania (Popeye, Superman) enquanto as personagens femininas teriam de parecer atraentes e vulneráveis (Betty Boop, Minnie Mouse). A nível da sua personalidade, “[...] ‘male’ characters are defined by what they are, and how they behave while ‘female’ characters are essentially understood by what they look like and through a vocabulary of stereotypical mannerisms” [1]. O antropomorfismo e a combinação de personagens humanas com personagens antropomórficas era frequente. Mickey Mouse, Bugs Bunny, Donald Duck ou Daffy Duck apesar de conterem características físicas de ratos, coelhos ou patos, a sua postura e personalidade humana assumia-os como pessoas. O antropomorfismo era utilizado como forma de atenuar situações que pudessem ser consideradas ofensivas se realizadas por personagens humanas. “The representation of animals also in some ways reconciles the problems of representing ‘adult’ behavior in animated human beings, especially in relation to sex and violence” [2]. A sátira homofóbica, racial e religiosa representava personagens como vilões ou o alvo da anedota. Nos cartoons da série Betty Boop, era frequente a presença de Bimbo, um cão antropomórfico amedrontado e

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de gestos efeminados que se esforçava em vão pela atenção de Betty. Em Betty Boop for President (1932), uma das reformas eleitorais propostas por Betty era transformar criminosos corpulentos em homens franzinos e efeminados, e posteriormente troçados pela sociedade. Nas décadas de 1930 e 1940, o estúdio Warner Brothers produziu uma série de cartoons com o racismo negro como foco principal. Adaptando clássicos literários sobre a escravatura com um tom humorístico em Uncle Tom’s Bungalow (1937), parodiando contos infantis com uma Branca de Neve afro-americana em Coal Black and the Sebben Dwarfs (1943) ou simplesmente representando o dia-a-dia da classe negra em Sunday Go to Meetin’ Time (1936), estes filmes contribuíam para a criação de estereótipos da raça negra: o dândi cantor de jazz, o criminoso e ladrão de galinhas, a mulher híper-sexualizada e de trajes curtos, sempre representados com lábios exagerados, nariz animalesco e tom de pele que servia de comparação jocosa ao carvão ou à sujidade. A violência e sexualidade presentes nestes onze cartoons era de tal forma explícita que a sua distribuição foi banida de várias salas de cinema, ficando conhecidos como Censored Eleven. No entanto, embora conotados ao racismo e alvo de críticas negativas, estes filmes contribuíram para a difusão da cultura negra, em especial para o jazz (utilizado como banda sonora de grande parte destes cartoons) e para uma maior tolerância à diferença racial nos EUA. Fig. 2. Coal Black and the Sebben Dwarfs (1943). Fig. 3. Der Fuehrer’s Face (1942) de Walt Disney

Face às contingências da Segunda Guerra Mundial muitos estúdios de Animação diminuíram significativamente a sua produção. Na Alemanha, EUA, Reino Unido e Itália, o governo aliou-se aos estúdios para financiar animações de propaganda política, com conotações explícitas ao racismo, xenofobia e/ou antissemitismo. A Animação norte-americana divergia em duas direções: o filme informativo para treino de tropas ou financiamento de guerra e o cartoon de entretenimento. Walt Disney apoiava-se em personagens já conhecidas do público como Mickey, Pinóquio ou Branca de Neve para aliciar na contribuição financeira de material bélico, erguendo cartazes com as frases “You save by serving” ou “Keep your money fighting until victory is won” na marcha de All Together (1941). A série Private SNAFU da Warner Brothers tinha como objetivo a instrução de tropas para o manuseamento de armas, ocultação de informação secreta ou cuidados de primeiros socorros, de forma simples, divertida e acessível a iletrados. Uma das principais características da animação norte-americana era a transparência no objeto satirizado, não se escondendo atrás

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de metáforas ou alegorias, representavam sem inibição os símbolos nazis e os seus líderes. Em Education for Death: The Making of the Nazi (1943) acompanhavam o crescimento de uma criança alemã até se tornar um soldado de guerra, satirizando as ideologias nazis. Aqui era caricaturado o romance atribulado entre Hitler e a Alemanha (personificada por uma valquíria). Hitler era também interveniente em cartoons de Bugs Bunny em Herr Meets Hares (1945), onde foge de um Bugs disfarçado de Estaline; Daffy Duck - The Commando (1943), agredido por um Daffy super-herói; ou Der Fuehrer’s Face (1942), o cartoon controverso que coloca Donald Duck no papel de soldado nazi ao serviço de Hitler. Na Europa destacavase a animação alemã que representava judeus como vilões ou monstros, levando o público infantil a temê-los. Em Nimbus Libéré (1944), produzido num estúdio francês tomado por nazis, personagens célebres como Mickey, Popeye ou Felix the Cat bombardeavam França. Com o final da guerra em 1945 grande parte dos estúdios suspenderam a sua produção de propaganda, procurando novos mediums de divulgação. A televisão começa a ganhar destaque na segunda metade do século XX como principal meio de entretenimento de massas, dedicando tempo de antena à transmissão de animação para o público infantil, enquanto as curtas e longas-metragens cinematográficas tentavam diferenciar-se a nível estético, temático e de público-alvo. John Halas e Joy Batchelor realizaram a primeira longa-metragem animada britânica baseada no comunismo e regime soviético, Animal Farm (1954) utilizando porcos como personificações de Lenine, Estaline e Trotski. No Japão, Osamu Tezuka criticava as políticas de tortura japonesas e a liberdade de expressão através de Mermaid (1964), utilizando o romance entre um homem e uma sereia como metáfora. Em Laziness (1979) de Yevgeniy Sivokon um homem sente demasiada preguiça para ajudar aqueles à sua volta: “My brain has become the brain of a fish. It’s in no state to think of anything... but why disturb the waters?”[3], satirizando a opressão sobre o povo russo e a sua falta de resistência. Em 1972, Ralph Bakshi lança a primeira longametragem de animação a receber a certificação X (proibida a menores de 17 anos) com Fritz The Cat. O filme satirizava a cultura nova-iorquina, o tráfico de drogas e a criminalidade através de animais antropomórficos que representavam os estereótipos sociais: prostitutas como éguas, polícias como porcos ou afro-americanos como corvos. A partir da década de 1970, o aumento de mulheres realizadores de Animação traz uma nova visão da sociedade para o cinema. A mulher enquanto autora coloca em perspetiva a sua representação por parte do homem, contradizendo as tradições que a caracterizavam como secundária à ação ou elemento erótico, modificando a sua representação de objeto para sujeito. Esta abordagem feminista está presente no trabalho de Joanna Quinn, que através da personagem Beryl de Girls Night Out (1987) e Body Beautiful (1991) retrata uma mulher comum da classe trabalhadora, independente e optimista com uma fisionomia aproximada da realidade. O êxito crítico e comercial de filmes de animação para adultos como Who Framed Roger Rabbit (1980) e o aumento dos canais por cabo levou ao aparecimento de séries animadas em horário nobre. Em 1989 surge

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The Simpsons satirizando o estilo de vida de uma família disfuncional americana. As temáticas abordadas na série eram diversas, caracterizando a classe trabalhadora, a relação entre pais e filhos, a diferença cultural e religiosa, ou o ensino, política e crime na América. Nas suas primeiras temporadas, a série gerou opiniões contraditórias: a crítica elogiava a originalidade e inovação enquanto grupos étnicos e religiosos criticavam a forma como eram ridicularizados. The Simpsons abriu portas a novas produções de animação para adultos: South Park e Beavis and Butt-Head mostravam o lado cruel e sarcástico da infância e adolescência; Family Guy e American Dad! satirizavam a atualidade política e social de forma violenta; Futurama criticava as sociedades passadas (e também a nossa presente, como vista do futuro); e Draw Together ridicularizava os reality shows através de caricaturas e estereótipos de personagens animadas. Fig. 4. Family Guy (1999 - ).

A partir do novo milénio deu-se um crescimento da produção de Animação, quer no cinema, televisão, publicidade ou internet com novas técnicas e estéticas e grande diversidade nos modos de representação da sociedade. Enquanto as séries de animação direcionadas ao público adulto tomaram uma posição crítica da atualidade social e política permitida pela sua divulgação e regularidade nos meios de comunicação de massas, o cinema voltou-se para uma crítica mais construída e alegórica. Os principais estúdios de animação de Hollywood procuraram acompanhar a sociedade representando aspectos que durante muito tempo foram omitidos das suas produções ao incorporar uma diversidade étnica, cultural, sexual ou de género. Na última década surgiram protagonistas de raça negra, supremacia no papel da mulher, personagens abertamente homossexuais, travestismo e transgenderismo em sucessos de bilheteira direcionados a toda a família. A representação da sociedade passa também pelos problemas ambientais e culturais. Wall-E (2008) retrata futuristicamente a inabitabilidade do Planeta Terra para os humanos devido ao excesso de poluição. Enquanto a narrativa base se desenrola à volta da relação entre dois robôs, o filme demonstra princípios morais acerca da reciclagem, riscos da poluição, sedentarismo e os efeitos das redes sociais. No cinema de autor a abordagem à sátira é mais direta. Les Triplettes de Belleville (2003) de Sylvan Chomet retrata França nos anos 1950 e o seu ponto de vista sobre os americanos, caracterizando-os como “obesos devoradores de hambúrgueres, amplificado a crítica ao engordar um dos seus símbolos, a Estátua da Liberdade. Em Mon Chinois (2008) de Cédric

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Villain são enumeradas características físicas dos chineses como os olhos em bico, a altura ou a pele amarelada. As diferenças culturais cómicas e despretensiosas vão dando lugar a questões controversas, entre as quais a gastronomia à base de cães, a política de natalidade ou a utilização de crianças chinesas como mão de obra escrava do homem ocidental. El Empleo (2008) de Santiago Bou Goffe mostra uma sociedade onde homens e mulheres são utilizados como objetos do quotidiano - portas, cabides, mesas ou elevadores - podendo ser entendido como uma crítica ao desemprego ou à exploração no mercado de trabalho. Happily Ever After (2013) de Yonni Aroussi e Ben Genislaw, mostra a vida agitada de um casal recém casado desde o momento em que se preparam para partilhar a mesma casa até ao final da relação, evidenciando problemas como a falta de tempo para os filhos, a disfunção eréctil ou a violência doméstica. Em I’m Fine Thanks (2011) de Eamonn O’Neill, um jovem vítima de bullying na infância torna-se um adulto psicologicamente transtornado e consequentemente também um agressor. But I’m a Nice Guy (2013) de Scott Benson foca-se na misoginia e antifeminismo por parte do sexo masculino, inspirado nos comentários online de homens a mulheres. Fig. 5. El Empleo (2008) de Santiago Bou Goffe Fig. 6. iDiots (2013) de Big Lazy Robot VFX

A internet e as redes sociais tiveram um papel fundamental na partilha de animações de carácter satírico da sociedade, tornando-as virais, e apesar de um medium recente - o boom das redes sociais deu-se à cerca de uma década - foram já alvo de crítica em filmes animados, encontrando-se variadas visões sobre as suas vantagens ou malefícios. Thomas Leung evidenciou em Sukki’s Story (2005) o lado positivo da internet, que, inspirado na sua própria experiência pessoal, retrata a relação à distância que mantinha com a mãe através das redes sociais depois de abandonar o país de origem. Connected (2009) de David Hoffmann e Camila Fernandes mostra uma conversa de chat entre duas pessoas que não se conhecem, iludindo-se uma a outra e fazendo-se passar por alguém que não são. ICU (2012) é uma sátira a anúncios de publicidade pretendendo vender uma cabeça humana cuja utilidade resume-se a observar quem a comprar (“I-see-you”), da mesma forma que se é observado a partir da exposição online. iDiots (2013) satiriza a sociedade de massas através de robôs que após comprarem um telemóvel divertem-se com vídeos, selfies ou apps que fazem referência à cultura pop online. Bow Life (2015) de Xie Chenglin retrata personagens que exercem várias profissões enquanto manuseiam os seus smartphones, culminando no declínio da sociedade. Também lançada em 2015, a animação para o videoclip da música “Carmen” do artista belga Stromae, realizado por Sylvain Chomet, satiriza a dependência na rede

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social Twitter, utilizando um pássaro azul como metáfora à popularidade online e realçando problemas como o bullying nas redes sociais ou a negligência face aqueles que o rodeiam por alguém dependente do telemóvel.

3. #LINGO

Da investigação sobre Animação enquanto crítica à sociedade surgiu a ideia, desenvolvimento e produção para a curta-metragem #LINGO. Realizada em animação 2D e tendo como temática a dependência nas redes sociais, #LINGO acompanha a história de uma personagem submergida no encanto e solidão das novas tecnologias, a relação com aqueles que a rodeiam e a repercussão do seu vício nestas. Para consolidar a representação da temática em estudo investigou-se a relação da sociedade com as redes sociais. A partir de documentários, notícias, artigos ou a própria observação de campo puderam-se distinguir, entre outros assuntos, que redes sociais eram mais utilizadas; de que forma eram utilizadas e através de que dispositivos tecnológicos; a diferença entre a identidade online e offline; os hábitos e vícios adquiridos; ou a influência que a privação das redes sociais tinha sobre alguém. Estes apontamentos deram lugar a pequenos sketches ilustrados, que por sua vez serviram de apoio ao desenvolvimento do argumento e storyboard. O mote para a história foi mostrar a evolução de alguém durante três estados: 1. o período de solidão antes do acesso a tecnologias e redes sociais, cuja tentativa de fuga à aborrecida rotina levaria ao; 2. primeiro contacto com as redes sociais, a sua aprendizagem e encantamento, uma falsa noção de companhia e consequente utilização excessiva que levaria à sua dependência; 3. o pós-redes sociais, quando se encontra viciado e não tem possibilidade de as utilizar, deparando-se com aquilo que perdeu na realidade física enquanto viciado nos ecrãs dos dispositivos electrónicos. Sem recurso ao diálogo verbal, esta diferença entre estados seria realçada através da rotina diária da personagem e das mudanças à sua volta. Fig. 7. Lingo

É a partir de Lingo, a personagem principal, que se desenrola a narrativa, percorrendo as suas experiências, desilusões, transformações e descobertas pessoais e sociais. O seu nome provem do anagrama para a palavra login, que para além de ser a forma abreviada do inglês “language”, é também uma linguagem de código informático, contrapondo com o facto de se tratar de uma personagem muda. Para acentuar a solidão que sente por ser ignorado pelos que o rodeiam, criou-se uma contradição no seu tamanho ao desenvolver uma fisionomia superior à das outras

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personagens, da mesma forma que o seu corpo volumoso contrastasse com os pequenos aparelhos electrónicos. Para acentuar o aspecto triste e solitário, Lingo anda curvado e de cabeça baixa. A sua cara é substituída por uma máscara, como metáfora às identidades geradas na internet. Ao criar um perfil online, o protagonista estaria a criar uma nova persona, simbolizada através desta máscara, que para os outros seria o seu verdadeiro “eu”. Esta máscara circular e amarela, inspirada nos emoticons (símbolos também conhecidos como smileys ou emojis), expressaria os estados de espírito da personagem através dos olhos e boca como se da sua própria cara de tratasse. A alteração da gama cromática nos ambientes foi essencial para transmitir o temperamento do protagonista. Na primeira parte da história, Lingo, solitário e cabisbaixo face ao mundo que o rodeia, insere-se em Fig. 8. Diferença cromática entre fases da narrativa.

cenários de tons cinzentos que enfatizam o seu estado de espírito. A partir do primeiro contacto direto de Lingo com as tecnologias, de sua cor rosa, os ambientes começam também a ganhar tons rosados. Quando o protagonista começa a evidenciar sinais de dependência a estes dispositivos, é ele próprio capaz de alterar as cores da realidade envolvente à semelhança dos filtros digitais utilizados para modificar a tonalidade das fotografias. Dá-se inicio a uma cena imaginária predominantemente rosa que se converte azul à medida que Lingo submerge num mar de likes - a apoteose do seu vício. Este universo, roxo e vazio, destaca-se dos restantes ambientes pela diferença expressiva da sua plasticidade e pela omissão do preenchimento cromático das personagens. Ao acordar sobressaltado, um azul escuro e sombras dramáticas preenchem a sala, pouco iluminada pelos três dispositivos - computador, tablet e telemóvel - esquecidos ligados. No último dia o ambiente volta à fusão entre azul e rosa ilustrada no céu. Com o intensificar da narrativa, o céu que outrora limpo e claro dá lugar à escuridão da tempestade, propagando-se pela casa de Lingo até ao desfecho da trama. Tratando-se de um filme sem diálogo, era fundamental que a banda sonora acompanhasse as diversas fases da história, recorrendo a uma melodia que se transforma de acordo com o temperamento de

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Lingo. Na primeira parte a melodia é repetitiva de forma a evocar rotina, utilizando instrumentos de corda num tom calmo e leve. Na segunda fase, esta assume uma dinâmica electrónica e sintética, pretendendo refletir a mudança na vida da personagem, agora utilizador de redes sociais. Na terceira e última fase e melodia torna-se mais melancólica, levando a um clímax de sons que são inesperadamente interrompidos pelo silêncio, quando Lingo se depara com o desfecho final. Realizada e animada inteiramente em computador, com recurso a texturas de grafite e carvão analógicas para trazer plasticidade e profundidade para as cores planas do formato digital, a curta-metragem #LINGO, realizada no âmbito do Mestrado em Ilustração e Animação, conta com a duração de 10 minutos e 30 segundos. Com um período de execução de cerca de um ano e meio, terminada em junho de 2015, tem desde então passado por festivais de cinema nacionais, europeus, americanos e asiáticos.

4. Conclusão

A sátira é uma forma de discurso crítico, onde se evidencia o carácter negativo de um aspecto com o objetivo de educar a sociedade a corrigi-lo. Na animação a sátira é frequentemente utilizada para representação social através de técnicas e expressões impossibilitadas no cinema de imagem real. “The satirical cartoon world is essentially a philosophical one because to work it needs to reflect reality accurately by abstracting it, distilling it and then presenting it back to us, illuminating it more brightly than realist fiction can” [4]. Através dos exemplos referenciados ao longo do último século de animação, averigua-se uma evolução nas formas de representação e estereotipização da sociedade, e uma diversidade social, cultural e política no sujeito satirizado. Desde autores ativistas, a grandes estúdios de animação, muitos foram os que a partir deste medium evidenciaram a sua visão das sociedades suas contemporâneas. A curtametragem #LINGO segue o mesmo exemplo de representar de forma satírica o contexto onde nasce, ao representar a dependência nas redes sociais e dispositivos electrónicos, acompanhando a atualidade cultural e social na qual vivemos. Não existe uma forma concreta de avaliar o efeito da animação satírica na sociedade, mas através da relação entre ambas é possível ver um espelho da progressão social.

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