Linguagem e desvelamento na narrativa memorialista

May 25, 2017 | Autor: Ramon Diego | Categoria: Literatura, Filosofía, Literatura Comparada, Teoria da literatura, Zélia Gattai
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GOMES, Carlos Magno, et al.(Orgs.). Anais do VII SENALIC, Volume 2. São Cristóvão: GELIC, 2016.

LINGUAGEM E DESVELAMENTO NA NARRATIVA MEMORIALISTA

Ramon Diego Câmara Rocha27 Se Ferdinand Saussure, em seu Cours de linguistique Génèrale, é um dos primeiros pensadores a elevar os estudos da língua ao patamar de ciência, produzindo um discurso técnico-científico acerca da língua, no intuito de criar um método para que se pudesse estudá-la, sincrônica e diacronicamente, suas contribuições a outros teóricos, tanto da filosofia, quanto da linguística, firmaram-se no fértil território das reflexões sobre a linguagem. À luz do formalismo, valendo-se das contribuições de Saussure para um refinamento do pensamento comunicativo, tivemos uma valiosa produção teórica para pensarmos língua e linguagem. Roman Jakobson, famoso formalista russo, foi um dos primeiros a pensar o estudo do texto literário, para a linguística – ciência da língua – como um dever de “empreender a investigação da arte verbal em toda a sua amplitude e em todos os seus aspectos” (1995, p. 161). Tal afirmação norteou profundamente os estudos da linguagem em uma perspectiva técnico-científica, de modo que, outras vertentes dentro da própria linguística, a exemplo da semiótica, e da poética, se aprofundariam em suas categorias de análise, tendo em vista, por meio da ciência, a busca por verdades na linguagem. Roland Barthes, famoso crítico e teórico da literatura, em sua aula inaugural no Collège de France, chama-nos atenção para uma relação entre língua e linguagem, que permite pensarmos em uma perspectiva dialética, a partir da qual “A linguagem é uma legislação, a língua é seu código”, (2010, p.12). O pensamento estruturalista de Barthes toma a linguagem como uma interpretação do código que a língua impõe. O autor nos explica que a língua nos “obriga a dizer” por meio de certas estruturas que são fixadas com fins normativos, ou seja, que ela nos impõe como dizer certas coisas com fim à uniformidade. Essa uniformidade assegura um condicionamento da informação, de forma utilitária, em favor de uma comunicação.

Linguagem e literatura Ainda partindo dessas reflexões, debrucemo-nos sobre o pensamento Heideggeriano, em uma conferência proferida pelo filósofo alemão e, intitulada Língua de tradição e língua técnica, a partir da qual ele explica-nos que é preciso ter cuidado com a relação entre língua e técnica, falando-nos primeiro sobre a comunicação, de forma técnica, por meio da utilização da língua: Para que uma tal espécie de informação se torne possível cada sinal deve ser definido de maneira unívoca; da mesma maneira cada conjunto de sinais deve significar de maneira unívoca um enunciado determinado. O único caráter da língua que permanece na informação é a forma abstracta da escrita, que é transcrita nas fórmulas de uma álgebra lógica. A univocidade dos sinais e das fórmulas, que é necessariamente exigida por isto

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Mestrando em estudos literários pelo Programa de Pós-graduação em Letras pela Universidade Federal de Sergipe. Contato: [email protected] Anais do VII SENALIC de 2016. ISSN: 2175-4128

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assegura a possibilidade de uma comunicação certa e rápida. (HEIDEGGER, 1995, p. 36). A partir desse trecho podemos refletir como a linguagem, para fins de estrita comunicação imediatamente prática, por meio de um código (a língua), aproxima-nos tecnicamente de um modo de expressão mecanicista, objetivando toda abstração própria da língua, suprimindo o “inexprimível” que, segundo o mesmo autor, enriquece as relações entre língua e homem e, consequentemente, entre ser e ente, preenchendo-as de significados. Não se pode negar, no entanto, que há uma técnica implícita em todo processo comunicativo, contudo, reflete-se aqui sobre uma relação tecnicista do homem com a técnica, cujo pressuposto fundamental seria um meio para um fim e, não, para Heidegger, uma técnica 28 no sentido de techné , ou seja, um “conhecer-se no ato de produzir.”, (1995, p. 21). A língua, prenhe de sentidos, em contato com uma techné que possibilitaria um “conhecer-se no ato de produzir”, nos abre um diálogo para um legislar, um jogar com a língua e seu código, visando um reconhecer-se enquanto homem no ato de projetar-se na palavra, resignificando-se por meio dela, potencializando sua relação com os objetos. A literatura estaria implicada, portanto, na utilização da linguagem que não estaria comprometida, simplesmente, com uma aplicação instrumentalizada do código para um uso imediatamente prático: A literatura transforma e intensifica a linguagem comum, afastando-se sistematicamente da fala cotidiana. (...) sei disso porque a tessitura, o ritmo e a ressonância das palavras superam o seu significado abstrato – ou, como os linguistas diriam de maneira mais técnica, existe uma desconformidade entre os significantes e os significados. Trata-se de um tipo de linguagem que chama a atenção sobre si mesma (...). (EAGLETON, 2006, p. 6). Apesar de esclarecedora, deve-se ter cuidado com a afirmação acima, para que possamos compreender que, ao contrário do que pensavam os formalistas, não existiriam duas linguagens, a comum e a literária, mas sim, como nos diria Barthes, um “jogo” do código, articulado por meio do homem, de diferentes formas. A escrita do texto literário vale-se de uma articulação da linguagem em uso que diferese da articulação da linguagem no uso cotidiano. Nesta última existe uma valorização da utilidade prática da língua, já naquela um reconhecimento da inutilidade prática enquanto jogo. Linguagem e literatura estariam, então, intimamente ligadas. Ambas se articulariam através de um encadeamento no qual, o “jogar” (leitura e interpretação) do código – por meio da linguagem – no momento que se dobra sobre si, produz uma expressão verbal que tende a uma abertura polissêmica elevada ao limite. Para compreendermos melhor essas reflexões acerca dessa articulação da linguagem na literatura, é preciso, primeiro, entendermos o discurso acerca do que é útil e do que é inútil e, até que ponto podemos pensar a arte verbal nesse âmbito. Acerca desses discursos, voltemos a Heidegger: (...) na sociedade industrial moderna o potencial de consumo deve, para assegurar o seu fundo (Bestand), tomar a dianteira sobre o potencial de tratamento das matérias-primas e sobre o potencial de trabalho. Contudo, as necessidades definem-se a partir daquilo que é tido por imediatamente útil. (HEIDEGGER, 1995, p. 9).

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Heidegger busca a origem da palavra técnica. A partir de tal estudo ele mergulha etimologicamente na língua grega, na qual técnica origina-se a partir de techné, cujo sentido se adquire ao pensarmos a técnica como um “conhecer-se no ato de produzir”.

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Se, ao falar sobre aquilo que é útil, o filósofo nos explica a relação de utilidade em face de uma noção de consumo, noção fomentada por um pensar técnico-científico, não é difícil percebermos que, os discursos teóricos nos quais pensa-se uma utilidade da arte verbal, são também, perpassados por métodos cuja finalidade é aplicada como modo de produção. Em outras palavras, o conhecer ténico-científico compromete-se com uma verdade que tem de se tornar imediatamente prática. Ainda sobre a relação de utilidade agora em relação com o inútil: É por isso que a meditação que se aproxima do inútil não projecta qualquer utilização prática, e portanto o sentido das coisas é que se afigura como mais necessário. Porque se o sentido faltasse, o próprio útil ficaria desprovido de significação e por conseguinte não seria útil. (HEIDEGGER, 1995, p. 9-10). Quando Heidegger fala em “sentido das coisas”, é importante pensarmos no poder da linguagem para o enriquecimento de nossa percepção em relação com os objetos, ou seja, de como a língua e a linguagem significam as coisas para nós. Nesse sentido, a arte seria útil na medida em que preenche e amplia as relações do homem com as coisas no mundo, no entanto a mesma seria inútil em face de uma perspectiva do útil como modo de produção, o que acaba por mecanizar nosso dasein, ou seja, nossa forma de ser no mundo. Podemos concluir que, dentro desse âmbito, a arte verbal possui uma utilidade que faz oposição ao discurso do útil como imediatamente prático. A utilidade da arte verbal residiria, nesse caso, na sua inutilidade, afinal, “(...) é cometer um contra-senso aplicar ao inútil a medida da utilidade.” (1995, p. 12). Ainda partindo dessa argumentação, é possível, portanto, pensar o estudo da literatura em relação à ontologia, sem cair em uma instrumentalização técnicocientífica de seu estudo? Ou seja, fora de uma lógica do “útil” como imediatamente prático? Acerca dessa perspectiva, vejamos o que Antônio Cândido nos diz dessa relação, entre o ser e a literatura, onde esta última: (...) confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. (1989, p. 117). Cândido vê, na arte verbal, a utilidade como possibilidade de abertura do ser, ou seja, como um exercício de compreensão do mundo. Ou, como ele mesmo nos diz “A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos à natureza, à sociedade e ao semelhante”. (p. 117). Partindo de tais considerações, acerca das quais a utilidade da obra de arte, especificamente da arte verbal (literatura), é uma utilidade que reside em uma perspectiva diametralmente oposta ao discurso do “útil” como imediatamente prático e, que tal utilidade da literatura pode ser pensada a partir de um processo de abertura do ser, em relação às coisas no e com o mundo, como essa abertura pode ser pensada? Como podemos identificar tal abertura a partir de como a literatura se estrutura através da narrativa de memória?

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Para pensarmos em qualquer tipo de narrativa, seja ela memorialista ou não, Tzvetan Todorov em As estruturas narrativas, nos explica que, se faz necessário, antes de tudo, pensarmos na diferença entre fala e história em face dos conceitos formulados por Benveniste: Esses planos de enunciação se referem à integração do sujeito da enunciação no enunciado. No caso da história, nos diz ele, "tratase da apresentação dos fatos ocorridos num certo momento do tempo sem nenhuma intervenção do locutor na narrativa". A fala, em contraposição, é definida como "toda enunciação que supõe um locutor e um ouvinte, e no primeiro a intenção de influenciar o outro de alguma maneira". (TODOROV, 2003, p. 38). Partindo dessa definição de fala e história, apoiando-nos, pensemos a narrativa memorialista enquanto uma fusão desses dois conceitos dentro de um espaço autobiográfico. A narrativa memorialista se daria, justamente na simbiose entre personagem, autor e narrador, metamorfoseados em uma única persona que se projeta na linguagem, tendo a memória como gatilho de seu enredo. Sobre esse tema nos diz Arfuch: “Parte-se, então, do reconhecimento imediato (pelo leitor) de um “eu autor” que propõe a coincidência na vida entre os dois sujeitos, o do enunciado e o da enunciação, encurtando assim a distância da verdade do si mesmo”. (2010, p. 52). A construção dessa narrativa ainda sim, pode diferir em certos aspectos, que vão variar estilisticamente, na forma como o autor/narrador/personagem constrói seu estilo na linguagem, bem como estruturalmente, ou seja, no formato que se vai escolher para, apoiado na memória desse sujeito que se projeta na linguagem, haver uma disposição adequada dela no texto. Os escritos memorialistas tendem, portanto, à memória, elemento catalisador de seu desenvolvimento. As narrativas na qual esse tipo de escrita se desenvolve, no entanto, são inúmeras, podem se dá em formato de diário, de cartas, romances, entre outros gêneros. Partindo dessas reflexões fundamentais sobre um modo de narrar que funde dois sujeitos, o do enunciado (sujeito do qual se fala) e da enunciação (sujeito que fala) a partir de um “eu autor”, criando um espaço autobiográfico que tem como ponto de partida, a memória, podemos pensar em uma relação entre memória e a literatura com vistas a uma narrativa memorialista. Em um de seus ensaios intitulados A literatura brasileira em 1972, Antonio Cândido nos oferece uma reflexão para pensarmos em uma “literatura feita de memórias” ou, uma “literatura memorialista”, a partir da articulação entre linguagem, literatura e memória: Em tais livros, os fatos narrados na primeira pessoa correspondem sem dúvida a biografia de um homem; mas tratados de tal modo que se lêem também como obras de ficção. Os valores antes procurados no romance, parece que agora estão sendo fornecidos cada vez mais por livros deste tipo, de que a literatura recente oferece bons exemplos. (CANDIDO, 1975, p. 13). Em uma meditação sobre as formas contemporâneas da literatura brasileira, Cândido reflete sobre como experiências vanguardistas no romance tradicional, a exemplo das realizadas por Clarice Lispector e Guimarães Rosa, levando o romance para outro patamar estético, influenciaram a criação dessa categoria, abalando as estruturas tradicionais da narrativa e a rigidez formal de seus elementos. Tal formato, na literatura, se valeria, contemporaneamente, da memória, desconstruindo a estrutura tradicional do romance, associando determinados elementos da narrativa, como narrador, autor e personagem e ordenando seu enredo através de um “tempo da memória”, suscitado por uma percepção do passado, na compreensão do presente. Criando novas possibilidades de se pensar a relação memória e linguagem para além do discurso cotidiano.

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A memória teria, dentro desse âmbito da literatura, uma roupagem estética, a partir da qual, a perspectiva em contar o fato por meio de uma projeção e modelação desse fato na linguagem, se faria mais necessária do que a tentativa de narração do fato tal qual ele é, essa seria, portanto, a base para pensarmos em uma “literatura memorialista”. Sabendo, portanto, das relações entre memória e literatura e, onde estas se inserem na narrativa contemporânea, é preciso voltarmos às questões iniciais sobre a abertura do ser para entendermos, posteriormente, como este se desvela/revela na literatura. Para isso, veremos o que Heidegger nos diz, sobre a ideia de abertura do ser na linguagem: Esta aparição da coisa, enquanto cobre (mede) um âmbito para o encontro, se realiza no seio de uma abertura cuja natureza de ser aberto não foi criado pela apresentação, mas é investido e assumido por ela como campo de relação. A relação da enunciação apresentativa com a coisa é a realização desta referência; esta se realiza, originalmente e cada vez, como um desencadear de um comportamento. (HEIDEGGER, 1999, p. 159). Para o filósofo alemão, em sua conferência A essência da verdade, a enunciação estabelece uma relação de referência com a coisa apreendida, ou com a coisa que se tenta apreender. A realização da enunciação com a coisa intenciona ser uma relação de verdade, no 29 entanto, se por um lado a coisa se mostra, ela se re-vela a partir da linguagem. Isso fica mais claro quando o mesmo autor trata de uma enunciação sobre um objeto, como uma moeda, por exemplo, “Esta enunciação deveria então tornar-se uma moeda e desta maneira cessar absolutamente de ser ela mesma. Mas isto a enunciação jamais consegue.” (idem, 1995, p. 158). A relação da enunciação com a coisa enunciada tende à verdade como conformidade, aquilo que está de acordo. Ao enunciar por meio de uma coisa, outra, procuramos mostrar o que há de acordo, entre a coisa narrada e a coisa como se mostra. A constante tensão entre tal comportamento gera, na busca pela apreensão da coisa, na linguagem, um desvelamento dessas coisas para homem. Afinal, se enunciar ou dizer algo sobre alguma coisa ou alguém é mostrar e, se mostrar, para Heidegger, é “ver e entender qualquer coisa, levar a aparecer”, na medida em que enuncio o que aparece, o que não aparece permanece no território do não dito. Nesse aspecto a linguagem, no momento em que diz – mostra, faz aparecer – também esconde, ou re-vela a coisa sobre a qual se fala. A literatura teria neste sentido, um aspecto essencial para pensarmos o 30 homem-no-mundo em um constante processo de desvelamento por meio da arte verbal, que só se dá por meio de uma abertura do ser. Esse desvelamento, ou retirada do véu das coisas, possui uma correspondência direta com o processo de desautomação do homem, causado por meio de uma exposição ao mundo através da re-significação literária, cuja relação é potencializada pela linguagem fora de uma perspectiva tradicional de utilidade. A literatura aproxima-nos do ser, na medida que nos lança à linguagem como possibilidade de abertura, através da qual estamos dispostos a compreendermos nossa relação de diálogo com o mundo.

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Usa-se aqui o neologismo re-vela, pensando em um significado que intenciona dizer que algo volta a ser velado, ou seja, vela-se novamente. 30 Usa-se aqui o hífen para indicar uma relação entre homem e mundo de maneira indissociável. Anais do VII SENALIC de 2016. ISSN: 2175-4128

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Verdade, hermenêutica e narrativa literária Até agora pudemos entender as questões iniciais acerca das relações entre linguagem, literatura e memória partindo dos seguintes pressupostos: a) O uso da língua, em um âmbito imediatamente prático, possui um fim comunicativo, que difere do uso da língua no texto literário; b) A articulação da linguagem no texto literário vale-se de um uso da língua com vistas a um desvelamento que faz oposição à verdade enquanto uniformidade; c) Ao utilizar-se de uma linguagem que diz, não dizendo, a narrativa literária corrobora para uma abertura do ser em constante diálogo com o mundo e suas experiências com ele, algo que aparece-nos de forma ainda mais explícita, por meio da literatura de memória. Partindo dessas respostas às perguntas iniciais desse artigo, é importante ressaltarmos que tal leitura, possui seu aporte metodológico baseando-se na interpretação da obra de arte dentro de uma perspectiva hermenêutica, cuja contribuição filosófica seve-nos de arcabouço teórico para a contestação de uma verdade que se predispõe enquanto interpretação única. A hermenêutica ajuda-nos a entender a verdade como uma interpretação históricotemporal que pressupõe uma determinada forma de pensar dentro de determinadas estruturas. A contribuição de Heidegger nesse ponto faz-se importantíssima no que se refere ao questionamento da verdade enquanto aquilo que é construído de acordo com a contínua projeção existencial do homem no tempo. As teorias do filósofo alemão confirma-nos que a questão central da interpretação fundamenta-se em “compreender-se-em-vista-de-algo enquanto compreender-se como algo”. (GADAMER, 2010, p.94). A temporalidade da compreensão nos insere em uma pré-disposição às coisas no mundo, no momento que partimos dessa experiência histórico-temporal. É neste sentido que as interpretações acerca da obra de arte, tendo em vista não um discurso científico que objetive uma verdade a ser instrumentalizada, mas a potencialização de nossas relações com o outro e com o mundo, em contato com um desvelamento que nos significa, se fazem importantes na literatura. Ao interpretar, articulamos discursivamente o que compreendemos, e o que compreendemos, neste momento, compreendemo-lo temporalmente, mas tanto prospectiva quanto restropectivamente, à luz do passado, que permanece em certa medida no presente, e do futuro que naquele se projeta. Desta forma o círculo hermenêutico é um círculo histórico-discursivo. (NUNES, 2010, p. 81). Podemos dizer que, sempre havendo uma pré-compreensão, de um leitor que se dispõe ao texto com vistas a compreendê-lo, a articulação dessa compreensão por meio da interpretação é, essencialmente temporal. A obra projeta-se, a partir de sua compreensão, para um passado de sua produção, para o presente de sua recepção e para o futuro tendo em vista as leituras possíveis que residem nas interpretações e recepções vindouras. A memória adquire aqui, portanto, um importante papel na narrativa literária ao entendermos que “Experiência não é, portanto, a passiva aceitação de uma realidade exterior, e 31 sim uma “elaboração” ” . (LLEDO, 1991, p. 15) e, é a partir dessa elaboração da experiência por meio da linguagem, que a narrativa memorialista encontra-se ligada, portanto, a esse desvelamento do homem, pela memória materializada na literatura como elaboração do não dito. O processo de abertura do ser, portanto, relaciona-se à capacidade enriquecedora do ser/estar no mundo de reinventar-se a partir das múltiplas experiências com os objetos. Tais experiências seriam empreendidas na e por meio da linguagem, permeadas pelo tempo. Essa abertura no que concerne à interpretação da obra de arte nos possibilita uma leitura da mesma em uma perspectiva na qual, a compreensão da obra, ao mesmo tempo em

31 Tradução minha do trecho “Experiencia no es, por consiguiente, la pasiva aceptación de una realidad exterior, sino una “elaboración””.

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que nos fala dela, nos fala acerca do modo como a percebemos em determinados contextos e, de como a mesma se apresenta diante de nós, sempre a partir do que não é dito ao interpretar, mas que não é negado a uma futura interpretação. Considerações finais A projeção do homem na linguagem conduz-nos a uma reflexão acerca de sua existência como um contínuo devir interpretativo em relação aos objetos, situados temporal e historicamente. O lançar-se à compreensão desse mundo, sem a possibilidade de ser exterior a ele, faz com que, ao empreender-se na linguagem como tentativa de revelação de sua condição, ele re-vele sua existência por meio do não dito. A literatura, portanto, sem o compromisso de posicionar-se enquanto verdade com fim a uma utilidade imediatamente prática do relato, nem histórico, nem científico, conduz-nos, por meio da articulação da linguagem, ao não dito, que agora se desvela, por meio da pluralidade semântica que a obra de arte comporta. Não é à toa, portanto, que os estudos sobre autores como Graciliano Ramos com seu “Memórias do Cárcere”, o onde e o como do relato nos diz bem mais do que o relato em si, ou a fabulosa narrativa de Zélia Gattai em “Anarquistas graças a Deus”, que confessa-nos mais sobre o anarquismo, do que os conceitos ideológicos que o fundam, se façam tão necessários à luz da hermenêutica. Afinal, a narrativa memorialista teria uma contribuição importante para o processo de conhecer-se do homem na medida em que sua estrutura, através da qual tempo, ser e linguagem fundem-se de maneira indissociável, aprofunda a tentativa de apreensão dos fatos, por meio da elaboração de sua experiência com as coisas no mundo, não mais como verdade uniforme e unificadora, mas como uma interpretação de sua própria condição neste. Mais do que solidificar respostas e conceitos sobre o tema, tal artigo, no entanto, pretende lançar-se ao exercício crítico, por meio de indagações que nos ajudem, cada vez mais, a tentar compreender os empreendimentos do homem, na linguagem, mais especificamente, na literatura, como tentativa de entender a si mesmo e o mundo que o cerca, libertando-o de uma existência inautêntica. REFERÊNCIAS ARFUCH, Leonor. O espaço autobiográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Trad. Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2010. BARTHES, Roland. A aula. Trad. Leyla Perrone Moisés. 8ª ed. São Paulo: Cultrix, 2010. CANDIDO, Antonio. A Literatura Brasileira em 1972. Revista Iberoamericana, Pittsburgh, Universidade de Pittsburgh, vol. XLIII, n. 98-99, jan.-jun. 1977. ______. O direito à literatura. In: CANDIDO, Antonio. Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2011. EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Trad. Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 2006. GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica da obra de arte. Trad. Marco Antonio Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2010. HEIDEGGER, M. A essência da verdade. In: HEIDEGGER, M. Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1999. Anais do VII SENALIC de 2016. ISSN: 2175-4128

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