Linguagem e discurso: reflexões contemporâneas

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LINGUAGEM e

discurso: reflexões contemporâneas

JULIO CESAR MACHADO & JOCENILSON RIBEIRO [Organizadores]

LINGUAGEM e

discurso: reflexões contemporâneas

Pedro & João Editores

Copyright © dos autores Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida ou arquivada, desde que levados em conta os direitos dos autores. MACHADO, Julio Cesar & RIBEIRO, Jocenilson Linguagem e discurso: reflexões contemporâneas. São Carlos: Pedro & João Editores, 2011. 232p. ISBN 978-85-7993-???-? 1. Linguagem e Discurso. 2. Análise do Discurso. 3. Semântica Histórica da Enunciação. 4. Estudos Bakhtinianos. 5. Autores. I. Título. CDD – 401 Capa: Marcos Antonio Bessa-Oliveira. Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito & Valdemir Miotello & Hélio Pajeú. Conselho Científico da Pedro & João Editores: Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/Brasil); Roberto Leiser Baronas (UFSCar/Brasil); Nair F. Gurgel do Amaral (UNIR/Brasil) Maria Isabel de Moura (UFSCar/Brasil); Dominique Maingueneau (Universidade de Paris XII); Maria da Piedade Resende da Costa (UFSCar/Brasil).

Pedro & João Editores Rua Tadão Kamikado, 296 Parque Belvedere www.pedroejoaoeditores.com.br 13568-878 - São Carlos – SP 2011

sumário APRESENTAÇÃO .................................................................................................... p. 09 Jocenilson RIBEIRO & Julio Cesar MACHADO CAPÍTULOS PARTE I: ANÁLISE DO DISCURSO, HISTÓRIA E REFLEXÕES SEMIOLÓGICAS

1. Discurso, semiologia e história .........................................................................

p. 15

Vanice SARGENTINI

2. A produção de espaços simbólicos durante a ditadura militar brasileira: lugares da luta e da memória .............................................................................. p. 21 Israel de SÁ

3. Por uma leitura do texto sincrético em exames nacionais de avaliação: reflexões à luz da teoria do discurso .................................................................. p. 35 Jocenilson RIBEIRO

4. Análise do discurso & vitimologia: memória(s) de tráfico de drogas .......... p. 51 Lucas do NASCIMENTO PARTE II: ESTUDOS DO DISCURSO E REFLEXÕES ANALÍTICAS

5. Por uma vida melhor da/na mídia: uma leitura discursiva ........................... p. 71 Roberto Leiser BARONAS & Samuel PONSONI

6. Discurso constituinte na mídia: algumas possibilidades ............................... p. 83 Andreia Beatriz PEREIRA

7. A originalidade nos textos saussurianos: uma questão de leitura? .............. p. 97 Fernando Curtti GIBIN

8. A cenografia discursiva de «O homem que perdeu as letras do livro» ............. p. 107 Samuel PONSONI

PARTE III: SEMÂNTICA HISTÓRICA DA ENUNCIAÇÃO E REFLEXÕES TEÓRICAS

9. O memorável na relação entre a língua francesa e a língua karipuna ....... p. 125 Soeli Maria Schreiber da SILVA

10. Língua, enunciação e história ....................................................................... p. 131 Adriana da SILVA

11. Ilegalidade legal e legalidade ilegal: um estudo enunciativo de inseparabilidade semântica ........................................................................... p. 145 Julio Cesar MACHADO PARTE IV: ESTUDOS BAKHTINIANOS E REFLEXÕES DIALÓGICAS

12. Estilo e autoria no orbe da criação colaborativa: o teatro narrativo de Luís Alberto de Abreu .............................................................................. p. 163 Hélio Márcio PAJEÚ & Valdemir MIOTELLO

13. Discursos e hegemonia: embates sígnicos no contexto do agronegócio ...... p. 179 Camila Caracelli SCHERMA

14. A colonização da memória no discurso historiográfico............................. p. 193 Eduardo Eide NAGAI

15. A contemplação erótica dos sujeitos estéticos da “infância”, de Manoel de Barros ....................................................................................... p. 207 Marina Haber de FIGUEIREDO & Valdemir MIOTELLO

16. O mito do eterno retorno na construção da segurança pública: aportes linguísticos e cinematográficos ...................................................... p. 219 Sidney de PAULO

comissão científica

Roberto Leiser Baronas - UFSCar Soeli Maria Schreiber da Silva – UFSCar Valdemir Miotello - UFSCar Vanice Sargentini – UFSCar

Antenor Rita Gomes - UNEB Anderson Jacob Rocha – FAFIPA/UEMG Adilson Ventura da Silva – FAFEM/UNIFEG Cleudemar Alves Fernandes – UFU Dirceu Cleber Conde - UFSCar Denise Gabriel Witzel - UNICENTRO Girlene Lima Portela - UEFS Luciana Salazar Salgado – UFSCar Luiz Francisco Dias - UFMG Mônica Baltazar Diniz Signori - UFSCar Mónica Zoppi-Fontana - UNICAMP Sheila Elias Oliveira - UNICAMP

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apresentação

P

ara melhor significar este livro, é bom que conheçamos algumas partes de um processo (bem) seletivo do PPGL/UFSCar. Ele possui uma memória anterior: muitos livros e parco entendimento! Um acontecimento: uma prova escrita de Mestrado. Uma estrutura: a lista de aprovados de alguns nomes de sujeitos desconhecidos e isolados que, tendo em comum o interesse pelos estudos da linguagem e do discurso, se inscreviam no campo vasto da linguística. Uma data: outubro de 2008. Um texto: entrevista de Mestrado. Pelo menos um sentido certo: tensão. Se ouro bom é aquele provado no fogo, foi esse fogo seletivo, exigente e criterioso, a voz que nos forjou e nos tornou sujeitos bem particulares. E é bom que se diga: nunca mais fomos os mesmos! Mesmo que na evidência isso seja só a descrição de uma etapa para nossos interlocutores, para nós autores, esse processo é precioso porque é a história (ainda por se escrever) de uma turma de Mestrado bem peculiar, por razões que não estão (somente) em nossa produção acadêmica, mas estão inscritas discursivamente em cada um de nós. Aos seus modos. Nosso passado de tensão atualizou-se sempre: vários enunciados de aulas, congressos, palestras, debates e reuniões, produziram efeitos de amadurecimento, crescimento e companheirismo, significando uma boa amizade! De lá pra cá foi um pulo: de uma boa amizade, embasada em boa formação, só poderia sair bons trabalhos! Esse livro é um sentido concreto de um processo histórico, é a tensão de um passado (processo seletivo e muito estudo), amizade de certo presente (o curso de Mestrado), e futuro profissional (nosso livro!). Nosso momento conjunto de carnavalização! De modo descritivo, essa coletânea de artigos são frutos de dois anos de estudos de pós-graduação stricto sensu desenvolvidos entre os anos de 2009 e 2011 na linha de pesquisa Linguagem e discurso do PPGL. Cada autor apresenta um texto cuja reflexão teórico-analítica foi engendrada durante sua pesquisa e, aqui, se evidencia como um recorte no qual estão concentrados os elementos básicos que configuram seu projeto, a saber: o objeto de estudo, a filiação teórica, a abordagem metodológica e seus procedimentos analíticos, o corpus, suas conclusões etc. O leitor iniciante ou já |ix|

com uma considerável trajetória no campo dos estudos linguísticos, de modo geral, ou do discurso, de modo particular, notará que a diversidade das questões que aqui se apresentam se deve basicamente a três razões fundamentais: (i) trabalhamos com o conceito de linguagem no interior da qual a língua se constitui como um dos sistemas semiológicos capazes de produzir sentidos frente às condições de produção em que esses sistemas funcionam. Aliada a essa concepção de linguagem, institui-se uma segunda razão em função daquela primeira que dela é indissociável, isto é, (ii) a diversidade do corpus, que se evidencia por meio de textos verbais e nãoverbais, oral e escrito, imagético e sincrético, imagem fixa e/ou em movimento; textos oficiais, científicos, acadêmicos, pedagógicos, políticos, midiáticos, literários, fundadores, jurídicos etc. Finalmente, e do mesmo modo importante, (iii) a língua é o lugar de materialização das ideologias instauradas nas interações sociais mais ou menos conflitantes e concretizadas dialogicamente. Essa diversidade material que destacamos como segunda razão nos faz perceber que analisar linguagens na relação com seu funcionamento e com os significados produzidos em textos é observar como a língua e, por extensão, a linguagem servem aos sujeitos como lugar de constituição, produção e circulação de sentidos; como a linguagem é terreno em que diversas lutas ideológicas se travam e as identidades se constituem e reconstituem num movimento heterogêneo e descontínuo; como a linguagem é espaço de materialização de saberes que, em um dado tempo e condições sócio-históricas, constituem verdades, criando nos sujeitos o efeito de que as coisas, os fatos, os acontecimentos no mundo são naturais, um dado já dado, apagando a própria condição histórica de produção de sentidos. Aqui o leitor terá a oportunidade de compreender diferentes modos de analisar a língua na contemporaneidade, reconhecendo em cada parte desse livro um modo particular de olhar para ela, lançado por nós, pesquisadores brasileiros nos últimos anos. Estruturalmente, o livro é dividido em quatro partes caracterizadas pela abordagem teórico-metodológica no interior da qual as pesquisas foram desenvolvidas. A Parte I: Análise do discurso, história e reflexões semiológicas – congrega artigos oriundos das pesquisas orientadas pela Profa. Dra. Vanice Sargentini; a Parte II: Estudos do discurso e reflexões contemporâneas – evidencia, do mesmo modo, estudos de pesquisadores orientados pelo Prof. Dr Roberto Leiser Baronas; a Parte III: Semântica Histórica da Enunciação e refle|x|

xões teóricas – apresenta artigos de pesquisas orientadas pela Profa. Dra. Soeli Maria Schreiber da Silva (Soila). Por fim, a quarta e última parte, intitulada Estudos bakhtinianos e reflexões dialógicas, fecha essa coletânea com textos oriundos de estudos orientados pelo Prof. Dr. Valdemir Miotello. Eis nossa obra conjunta: com muito orgulho, tanto da história que ele carrega quanto dos resultados de pesquisa que aqui se apresenta, colocamos na sua mão, distinto leitor, este acontecimento – a concretização de uma história em papel, da qual você leitor agora faz parte, para dialogar conosco e nos constituir de novo!

BOA LEITURA!

Em nome da Turma de Mestrado Linguagem e Discurso 2009-2011, Jocenilson Ribeiro Julio Machado [Organizadores]

São Carlos, 30 de novembro de 2011.

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PARTE I

ANÁLISE do

discurso,

HISTÓRIA e reflexões

semiológicas

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PARTE I

DISCURSO, semiologia e

HISTÓRIA1

INTRODUÇÃO

O

objetivo deste artigo é apresentar alguns dos trabalhos desenvolvidos junto ao grupo de pesquisa que coordeno na UFSCar – Laboratório de Estudos do Discurso (LABOR) –, em especial, introduzir as preocupações de trabalhos sob nossa orientação nos anos de 2009 a 2011, período em que estivemos voltados a preocupações relativas ao estudo da linguagem multimodal, explorando o conceito de semiologia histórica, conforme proposto por J-. J. Courtine, em algumas das suas obras (1988, 2006, 2009). O Grupo de Pesquisa LABOR congrega pesquisadores da UFSCar, como Carlos Piovezani e Luzmara Curcino, pesquisadores de outras instituições, alunos de pós-graduação em Linguística e alunos de graduação dos cursos de licenciatura em Letras e de bacharelado em Linguística da UFSCar. O objetivo do grupo é discutir teórica e analiticamente questões relacionadas ao campo teórico da Análise do discurso, como o contexto epistemológico de constituição da teoria, a organiza-

Mestre e Doutora em Linguística - UNESP -Araraquara. Pós-doutorado Paris 3 - Sorbonne Nouvelle. Professora do Departamento de Letras da UFSCar. São Carlos - SP. Coordenadora e pesquisadora do Labor. [email protected] 1

Vanice SARGENTINI1

um

Vanice Sargentini

ção do corpus de análise, considerando as multimodalidades e as articulações entre discurso e história na constituição dos enunciados. As investigações organizam-se em dois eixos temáticos: (i) a inseparabilidade entre a construção histórica dos discursos e o processo de produção de identidades, e (ii) o papel da multimodalidade na produção dos discursos na contemporaneidade, em especial na produção do discurso político. No primeiro, analisam-se as construções de processos históricos discursivos operados em discursos sobre a resistência política, sobre textos do campo jurídico, sobre os textos midiáticos divulgados em revistas e jornais, todos eles, enfim, caracterizando-se como discursos que são espaços de encontro da língua com a história e, consequentemente, âmbito ideal para a produção de identidades locais e nacionais. No segundo eixo, investigam-se as transformações no discurso político, considerando a intervenção das novas tecnologias nos programas de governo, nas propagandas políticas eleitorais, nos discursos de posse. Observa-se, então, a necessidade de análise da multimodalidade a que o discurso político está sujeito, estudando-o não somente em sua organização verbal e imagética, mas em seu caráter semiológico a ser analisado a partir de sua inscrição na história. As pesquisas desenvolvidas no grupo LABOR orientam-se, portanto, na busca de respostas às questões postas na contemporaneidade como: É possível, com o quadro teórico da Análise do discurso, analisar o texto misto? Qual é a importância de se estudar as imagens como operadoras de memória social e quais são as contribuições desse estudo para o quadro teórico dos estudos do discurso? Em que nos interessaria o conceito saussuriano de semiologia e o que se pode conservar desse conceito numa abordagem discursiva e, portanto, histórica? São essas, com efeito, as motivações que regem os encontros semanais e as produções bibliográficas do grupo.

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A CENTRALIDADE DA HISTÓRIA NA ANÁLISE DO DISCURSO Teoricamente, nossas pesquisas apoiam-se na noção de discurso proposta por M. Pêcheux (1995, 2007, 2008), considerando os movimentos teóricos pelos quais a Análise do discurso passou do final dos anos de 1960 aos anos 1980. Os distanciamentos e as aproximações da Análise do discurso aos conceitos formulados por M. Foucault em diferentes períodos e obras oscilam ao longo desses anos, entretanto, a centralidade dos conceitos de dis-

Discurso, semiologia e história

curso e história, bem como a articulação entre eles e que pode ser apreendida na língua são preocupações sempre presentes em nossas pesquisas. Tomamos como princípio que as bases teóricas da AD, agora e desde sempre, oferecem-nos um quadro conceitual (noções de interdiscurso, memória discursiva, rede de formulações discursivas, formações discursivas...) capaz de sustentar as análises e de responder às questões de pesquisa. Entretanto, é possível incorrer na armadilha fácil de recitar conceitos, aplicálos a um exemplo da mídia, reduzindo a análise a um tratamento pontual que pode deixar escapar o forte vínculo entre o discurso e a História. Sensíveis a essas questões, sobretudo relativas à transformação do discurso político e a um apagamento do histórico no estudo dos discursos, J-. J. Courtine, em alguns de seus trabalhos, cunha o termo semiologia histórica. A proposição desse termo despertou nosso interesse para essa dimensão de articulação entre discurso, semiologia e história.

Pesquisas desenvolvidas por pesquisadores do grupo objetivam discutir a pertinência da noção de Semiologia Histórica para a análise. Pautamo-nos nas reflexões de J-. J. Courtine (2011), que reconhece duas vertentes de surgimento da noção de semiologia: aquela de proposição saussuriana e aquela de raiz ainda mais antiga, indo-europeia, originária da noção de sintoma, sinais, pistas, indícios, que auxiliam a interpretação. E será a vertente dos sinais, estes materialmente inscritos no interior das produções e transformações históricas dos discursos, que talvez seja a aquela da semiologia que venha a se articular de modo significativo com uma proposta de estudo dos discursos em um processo histórico de formação do enunciável. Nessa direção, Courtine (2009), já em seu trabalho de 1981 (Analyse du discours politique: le discours communiste adresse aux chrétiens), ao aproximar da Análise do discurso alguns conceitos foucaultianos como o de enunciado e de arquivo, construídos no interior de uma metodologia arqueológica, antecipa uma questão teórico-metodológica que irá se organizar, posteriormente, em outros trabalhos, em torno de uma preocupação com as transformações históricas no campo do discurso, uma preocupação da natureza histórica dos processos discursivos.

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A CONTRIBUIÇÃO DA SEMIOLOGIA HISTÓRICA PARA A ANÁLISE DE DISCURSOS

Vanice Sargentini

Em sua tese, e em trabalhos posteriores, J-. J. Courtine já coloca em foco as condições de possibilidade dos discursos, em detrimento das condições de produção, considerando que as condições de formação do discurso são aquele conjunto de condições historicamente pertinentes que determinam a produção, a circulação e a recepção dos enunciados em uma formação discursiva. Trata-se de considerar o processo histórico de formação do que é enunciável. Eis aqui posta, neste quadro teórico, a justificativa para se compreender o termo ‘histórico’ ao lado daquele de semiologia2. Poderíamos, com isso, compreender a Semiologia histórica como uma questão teórico-metodológica? E essa pode responder aos nossos anseios de análise das diversas materialidades sem deixar de lado o processo histórico? Cremos que sim, e ponderamos que é preciso considerar que, no campo de estudos do discurso, o corpus de análise pode ser recortado levando em conta uma longa, média ou curta duração. No caso, a noção de arquivo, conforme proposta por M. Foucault (1986) em A arqueologia do Saber, poderá nos trazer grande contribuição. ALGUNS RESULTADOS DE PESQUISA Neste artigo, com o objetivo de introduzir alguns resumos ou fragmentos de pesquisas sob nossa orientação no período de 2009 a 2011, destacamos o fato de esses estudos centrarem suas análises na relação discurso e história, considerando, de acordo com as proposições foucaultianas, o ‘a priori-histórico’ que rege os estudos do discurso. É o caso da pesquisa de mestrado de Lucas do Nascimento – Análise do Discurso e Vitimologia: memória(s) de tráfico de drogas – sobre um processo jurídico envolvendo o tráfico de drogas. Para análise, ele busca, na materialidade linguística, a memória discursiva sobre o tráfico, observando distintas posições-sujeitos, que alimentaram o discurso do suposto criminoso ou da suposta vítima. A pesquisa de Israel de Sá – Da repressão à abertura política: processos de espetacularização do discurso político –, em nível de mestrado, aborda a espetacularização do discurso político, mostrando como ela já se inicia no período final Uma versão ampliada desta reflexão foi publicada em: SARGENTINI, V. M. O. Análise do discurso político: semiologia e história. In: XVI Congresso Internacional de la Asociación de Lingüística y Filología de la América Latina (ALFAL), 2011, Alcalá de Henares. Documentos para el XVI Congreso Internacional de la ALFAL. Alcalá de Henares: UAH Obras Colectivas de Humanidades, 2011. v. 1.

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Discurso, semiologia e história

da ditadura. Desenvolve rica análise sobre matérias de revistas semanais que apontam alguns lugares como espaços de memória e de resistência. A dissertação de Jocenilson Ribeiro dos Santos – A constituição do enunciado nas provas do Enem e do Enade: uma análise dos aspectos semiológicos da relação língua-imagem sob a ótica dos estudos do discurso – trata da análise, em provas nacionais, de questões que apresentam o texto sincrético na composição do enunciado. Observando a significativa ocorrência de textos ao mesmo tempo verbais e imagéticos, dedica-se a analisar o funcionamento desse texto misto, destacando, sobretudo, o papel da imagem como operadora de memória. As pesquisas desenvolvidas no LABOR seguem abordando, como eixo central, as relações entre discurso e história. Observa-se, nos estudos em andamento, que a natureza semiológica do objeto de análise dos estudos do discurso exige que os enunciados sejam compreendidos não unicamente como enunciados linguísticos, mas como semiológicos sem que se descuide do caráter histórico que os constituem. Assim, as noções de discurso, de história e de semiologia histórica regem nossas pesquisas.

REFERÊNCIAS COURTINE, J-. J. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. São Carlos: EdUFScar, 2009 ______. Metamorfoses do discurso político: derivas da fala pública. Trad. Nilton Milanez e Carlos Piovezani Filho. São Carlos, SP: Claraluz, 2006. COURTINE, J-. J.; HAROCHE, C. Histoire du visage: exprimer et taire ses émotions (XVIe – debut XIXe siècle). Paris, Payot et Rivages, 1988. FOUCAULT, M. A arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1986. PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Orlandi et al. 2.ed. Campinas, SP: EdUnicamp, 1995. ______. Papel da memória. In: ACHARD, P. et al. Papel da memória. 2.ed. Campinas, SP: Pontes, 2007, p. 49-57.

SARGENTINI, V. M. O. Análise do discurso político: semiologia e história. In: XVI Congresso Internacional de la Asociación de Lingüística y Filología de la América Latina (ALFAL), 2011, Alcalá de Henares. Documentos para el XVI Congreso Internacional de la ALFAL. Alcalá de Henares : UAH - Obras Colectivas de Humanidades, 2011. v. 1.

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______. O discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. 5. ed. Campinas, SP: Pontes, 2008.

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Vanice Sargentini

a PRODUÇÃO DE espaços

SIMBÓLICOS durante A

ditadura MILITAR:1 lugares da luta e da memória?2

A

construção e a produção de identidades se dão e são verificadas pela própria forma de enunciar e, com isso, é possível dizer que é no interior do discurso que se legitimam e se constituem as negociações identitárias. É por meio de uma análise propriamente discursiva que é possível observar que a construção de uma identidade está sempre em processo e nunca se dá de maneira acabada. Foi, portanto, por meio de sua produção discursiva, como também pela busca de um lugar de resistência, que a esquerda que se consolidava, à época da Ditadura Militar no Brasil, fracionada em inúmeros grupos, procurou construir-se e constituir-se identitariamente. Mestre pelo PPGL/UFSCar. Doutorando pelo PPGL/UFSCar. Bolsista FAPESP. São Carlos - SP. Pesquisador do Labor. [email protected] 2 Este artigo trata-se de um recorte da dissertação de mestrado orientada pela Profa. Dra. Vanice Maria Oliveira Sargentini (PPGL/UFSCar) e intitulada Da repressão à abertura política: processos de espetacularização do discurso político, que teve apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP – processo: 2009/02761-3). 1

Israel de SÁ1

dois

Israel de Sá

A formação de uma identidade dessa nova esquerda, que propunha uma ruptura com a tradição da esquerda brasileira sustentada pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), sempre esteve ligada à produção de espaços simbólicos registrados por meio da luta contra o regime militar. No período mais repressivo, aquele da ditadura escancarada iniciada no pós-AI5 (Gaspari, 2002), no qual se sobressaiu a resistência armada, verificou-se, por um lado, o espaço da luta, da clandestinidade, da desterritorialização – tanto no que diz respeito às guerrilhas urbanas quanto às guerrilhas rurais –; por outro lado, com os relatos realizados por antigos participantes das organizações de resistência à ditadura, feitos por meio da mídia e dos romances memorialistas, durante o processo de abertura lenta e gradual, já no final da década de 1970 (Gaspari, 2002), esses espaços simbólicos receberam uma nova construção filtrada pelo imaginário. Tem-se, assim, como nos mostra Giddens (apud Hall, 2003, p. 72), que ‚o ‘lugar’ é específico, concreto, conhecido, familiar, delimitado, o ponto de práticas sociais específicas que nos moldaram e nos formaram e com os quais as identidades estão estreitamente ligadas‛. Ao mesmo tempo em que as identidades eram negociadas – isto é, construídas – pelas organizações de esquerda, por meio da aproximação com as classes mais sofridas da sociedade, eram também construídas na relação com o meio, o espaço concreto – a cidade ou a selva – onde se estabelecia a luta e se transfigurava em um espaço simbólico com a marca da própria resistência. A partir do que propõe Foucault, Gregolin (2003, p. 102) aponta três formas de lutas pela construção da identidade:

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[...] a) aquelas que denunciam as formas de dominação (étnicas, sociais e religiosas); b) aquelas que denunciam as formas de exploração que separam o indivíduo daquilo que produz; e c) aquelas que combatem tudo o que liga o indivíduo a ele mesmo e asseguram assim a submissão aos outros (luta contra a sujeição, contra as diversas formas de subjetividade e de submissão).

No contexto da luta armada no Brasil naquele período, a resistência se dava também contra as formas de exploração social – basta que observemos alguns dos argumentos, ainda hoje retomados pelas esquerdas, dos grupos que constituíam a Nova Esquerda: combater o capitalismo e o imperialismo, os grileiros, os grandes proprietários de terras etc. –, mas, mais precisamente, contra a ‚sujeição, às diversas formas de subjetividade e de submissão‛, na medida em que o poder repressor do Estado autoritário eliminava as

A produção de espaços simbólicos durante a ditadura militar brasileira: lugares da luta e da memória

liberdades individuais. Para resistir contra essa repressão que, simbolicamente, suspendia as subjetividades em nome da segurança do Estado, era preciso buscar um lugar, fora do plano simbólico do Estado e, por extensão, da ditadura militar, em que se constituísse uma nova identidade e dali emergissem novas construções subjetivas – da utopia à heterotopia.

A construção de uma guerrilha rural, que possibilitasse emergir do campo um espaço de resistência próximo de uma população desfavorecida e por vezes oprimida e fizesse dali surgir uma revolução antiimperialista e anticapitalista, sempre foi um dos ideais das esquerdas em países onde as desigualdades eram escancaradas e onde a repressão era instrumento de controle. No Brasil das décadas de 1960 e 1970, a construção dessa resistência fazia parte do imaginário das organizações armadas, que buscavam na guerrilha urbana subsídios para sua instalação na selva. Poucos foram os grupos que de fato conseguiram efetivar esta empreitada, mas, dentre eles, apenas um obteve algum sucesso: a Guerrilha do Araguaia, braço armado do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Já em 1967, apenas três anos após a instalação do regime militar, o partido começou a enviar alguns homens para o sul do Pará, onde se aproximaram da comunidade local, desenvolveram trabalhos próprios daquela região e também estudaram o território, verificando a possibilidade de criação de uma guerrilha naquele lugar (Gorender, 1987). Porém, foi somente em 1971 que o foco guerrilheiro estabeleceu-se nas matas do alto Araguaia e criou, ali, um espaço próprio para a resistência e a efetivação da igualdade, um espaço que, para os militantes da guerrilha, se tornaria o modelo para o país que emergiria com a derrota da ditadura. Ao tratar dos espaços, Foucault (2009) afirma que, enquanto a mania do século XIX foi a história, a época atual seria a época do espaço, que se verifica por meio de relações de posicionamento, uma vez que ‚é definido pelas relações de vizinhança entre pontos ou elementos; formalmente podemos descrevê-las como séries, organogramas, grades‛ (p. 412). Assim, o tempo, hoje, aparece no jogo que recobre o espaço. A partir dessa ideia, Foucault propõe dois tipos de posicionamentos que estão, por assim dizer,

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A RESISTÊNCIA ENTRA NA MATA: a emergência de uma heterotopia

Israel de Sá

ligados a todos os outros espaços, contradizendo, no entanto, todos os outros posicionamentos. São eles a utopia e a heterotopia. Em primeiro lugar, Foucault apresenta o conceito de utopia: [...] os posicionamentos sem lugar real. São posicionamentos que mantêm com o espaço real da sociedade uma relação geral de analogia direta ou inversa. É a própria sociedade aperfeiçoada ou é o inverso da sociedade, mas, de qualquer forma, essas utopias são espaços que fundamentalmente são essencialmente irreais (2009, p. 414 - 415).

Em segundo lugar, Foucault afirma que existem, provavelmente em qualquer cultura, os posicionamentos heterotópicos, que são uma espécie de utopias efetivamente realizadas. São eles,

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[...] lugares reais, lugares efetivos, lugares que são delineados na própria instituição da sociedade, e que são espécies de contraposicionamentos, espécies de utopias efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos reais que se podem encontrar no interior da cultura estão ao mesmo tempo representados, contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis (2009, p.415).

Há ainda o que Foucault chamaria de experiência ou posicionamento misto, que seriam os espelhos. Ou seja, seria, ao mesmo tempo, uma utopia, posto que é um lugar sem lugar na medida em que podemos nos ver onde não estamos e uma heterotopia, uma vez que o espelho existe na realidade e apresenta uma espécie de efeito retroativo no lugar em que ocupamos. Podemos inferir que os espaços simbólicos produzidos pelas organizações de esquerda durante a fase da ditadura escancarada se enquadram, num primeiro momento, na utopia, ainda na formação da luta – a selva que emerge no ideário dos movimentos de resistência, em especial daqueles de esquerda que optam pela luta armada e se inscrevem claramente na utopia, ali, onde poderia se estabelecer o caminho da sociedade justa e igualitária. Num segundo momento, de combate e de realização das guerrilhas, em especial as rurais, inscrevem-se no espaço heterotópico que permeia as sociedades modernas; isto é, são as heterotopias de desvio, pois o comportamento desses grupos desviava em relação à média ou à norma exigida, mas ainda com a sombra da utopia, na medida em que há, tam-

A produção de espaços simbólicos durante a ditadura militar brasileira: lugares da luta e da memória

bém, a projeção para ‚outros espaços‛, o ‚vir-a-ser‛. É o que veremos pelas análises de discursos do movimento guerrilheiro do sul do Pará. Os guerrilheiros, aqueles que resistiam ao regime, procuravam em outros lugares condições de resistência, lugares nos quais era possível a construção de uma identidade que não aquela imposta, construída pelo Estado. Dessa forma, seriam lugares heterotópicos de desvio na medida em que se buscavam condições para resistir, lugares fora das ‚vontades de verdade‛, mas efetivamente realizados, no momento efetivo de constituição da luta. Há, sem dúvida, uma relação intrínseca com a chamada ‚crise do pertencimento‛ apontada por Bauman (2005), ao afirmar que ‚a idéia de ‘identidade’ nasceu da crise do pertencimento e do esforço que esta desencadeou no sentido de transpor a brecha entre o ‘deve’ e o ‘é’ e erguer a realidade ao nível dos padrões estabelecidos pela idéia‛ (p. 26). Assim, buscava-se em um lugar que não aquele da vida cotidiana, do espaço urbano, em que se encontravam as imposições, o ‚deve‛, a representação de suas ideias, das ideologias da esquerda, lugares heterotópicos, em que se criassem e construíssem novos posicionamentos identitários, uma identidade própria ao ‚é‛ ou, ainda melhor, ao que propomos discursivamente como ‚somos‛. De início, tomamos para a análise o seguinte excerto retirado do Comunicado nº 1 dos guerrilheiros do Araguaia:

Nota-se que o enfrentamento dá visibilidade à própria crise de pertencimento – o urbano como representação simbólica do Estado e, conse-

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(1) Diante do criminoso ataque das Forças Armadas governamentais, muitos habitantes das zonas de São Domingos das Latas, Brejo Grande, Araguatins, Palestina, Itamirim, Santa Isabel, Santa Cruz e São Geraldo resolveram não se entregar. Armaram-se com o que puderam e enfrentaram corajosamente o arbítrio e a prepotência do Exército e da polícia. Com tal objetivo, internaram-se nas matas do Pará, Goiás e Maranhão para resistir com êxito ao inimigo muito mais numeroso e melhor armado. Afim de desbaratar as operações militares da ditadura, defender suas vidas e desenvolver sua luta pela posse de terra, pela liberdade e por uma existência melhor para toda a população, decidiram formar destacamentos armados, criaram as Forças Guerrilheiras do Araguaia. Tomaram, também, a iniciativa de fundar ampla frente popular para mobilizar e organizar os que almejam o progresso e o bem-estar, os que não se conformam com a fome e a miséria, com o abandono e a opressão (In: Vários autores, 1996, p. 34-45).

Israel de Sá

quentemente, da opressão e das desigualdades é contraposto à selva, o lugar da luta e da resistência. O enunciado (1) apresenta já aspectos desse contraponto que se materializa no discurso: contra os ataques do regime, os habitantes da região resistem, internam-se na mata, lugar próprio para a luta pela liberdade (melhores condições de vida, a posse de terras etc.). O espaço construído nos documentos da guerrilha do Araguaia é, portanto, uma utopia efetivamente realizada: a selva que, simbolicamente, constitui o contraposicionamento e estabelece a possibilidade da não sujeição. Ali é o espaço da luta armada, da resistência efetiva, no interior do qual se manifestam outros discursos, outras ideologias. Sendo assim, esse espaço de resistência é heterotópico, pois está em relação de inversão e tensão: seu objetivo é produzir a revolução a partir do espaço selvagem (utópico, portanto) a fim de desconstruir os espaços localizáveis (urbanos, do poder), os posicionamentos tradicionais. Observemos o excerto seguinte, ainda do mesmo comunicado emitido pelas Forças Guerrilheiras do Araguaia, em 1972:

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(2) Deste modo, surgiu a União Pela Liberdade e Pelos Direitos do Povo (ULDP), onde podem ingressar os moradores da região e de outros Estados, muitos dos quais vêm tendo suas terras roubadas por gananciosos grileiros e são perseguidos, presos e espancados pelos agentes da ditadura. Nela há lugar não só para os pobres como também para todos os patriotas, seja qual for sua condição social, que desejem pôr abaixo a ditadura e instaurar no Brasil um regime verdadeiramente democrático (In: Vários autores, 1996, p. 35).

O discurso guerrilheiro propõe a utopia (criação de um mundo-outro, aperfeiçoado – ‚pôr abaixo a ditadura e instaurar no Brasil um regime verdadeiramente democrático‛) a partir de um espaço localizado, da selva descrita em seus acidentes geográficos, esquadrinhada nas estratégias de guerrilha. Vale dizer que esses documentos foram produzidos quando a guerrilha já está formada, interiorizada nas matas da região do Araguaia, portanto, ali se tratava de um espaço heterotópico, cujo modelo de ‚sociedade‛ tentava se diferenciar em relação àquele do Estado autoritário. Mas será que não havia ali também um espaço utópico? A projeção para um país diferente, com o fim do regime ditatorial, evidencia um ‚vira-ser‛, uma organização social igualitária, tal como a desenvolvida ali naquele espaço físico da selva. Há, ainda, uma fronteira que separa o ‚agora‛ (o momento da guerrilha), seu espaço na selva, heterotópico, e o

A produção de espaços simbólicos durante a ditadura militar brasileira: lugares da luta e da memória

São palavras de ordem que aparecem, em quase todos os documentos, como menção à luta que realizam, caracterização das injustiças e chamamento para que o povo integre a resistência. É possível relacioná-las aos slogans nacionalistas empregados pelo regime militar, uma vez que trazem em si aspectos de autovalorização. 3

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‚futuro‛ (a derrota da ditadura e a emergência da democracia), utopia. A selva, dessa maneira, como ainda veremos, não se estabelece mais como um espaço utópico tal como a viam os movimentos guerrilheiros ainda no início de sua formação, mas as marcas da utopia estão ali presentes. Ao mesmo tempo, como espaço simbólico de resistência, a selva se materializa por meio da luta guerrilheira e se constitui como espaço heterotópico justamente por estar em relação contrária, por estabelecer uma relação de tensão entre o discurso oficial (o da política – aquele produzido pelos órgãos oficiais do regime militar e reproduzido pela maior parte das instituições da sociedade) e o discurso-outro, da resistência, investido nesse lugar – o campo, a selva. Por outro lado, essa tensão se caracteriza pela luta e, como consequência, por mudanças na sociedade, portanto a projeção – voltemos aos enunciados (1) ‚desenvolver sua luta pela posse de terra, pela liberdade e por uma existência melhor para toda a população‛; e (2) ‚instaurar no Brasil um regime verdadeiramente democrático‛. É um espaço heterotópico por ser o contraponto idealizado-realizado, mas ainda aparece a utopia, uma vez que o povo e o ideal revolucionário (a liberdade e o fim das injustiças) estão ainda despossuídos. Esse tipo de discurso do campo frequentemente instaurado pelos documentos, de representação da vida no campo, é percebido na tentativa de aproximar a luta dos guerrilheiros à luta daqueles que vivem naquela região, o que evidencia um espaço de luta já consolidado, mas também o espaço que propõe ainda mudanças, como nos seguintes enunciados-slogans3 (In: Vários autores, 1996): ‚Abaixo a grilagem‛ (p. 35), ‚Terra e liberdade para o lavrador viver e trabalhar‛ (p. 39), ‚Fora os grileiros‛ (p.41), ‚Morte aos que atacam e perseguem os moradores e combatentes do Araguaia‛ (p. 50). Do mesmo modo, também há uma inversão em relação ao espaço da política, que é eminentemente o da cidade, urbano, da ‚civilização‛, para o espaço da resistência, que é o da natureza, a selva, que retrata a purificação e o nascimento do novo. É também por esse motivo que a guerrilha rural é, na maior parte das vezes, mais mitificada que a guerrilha urbana, pois se configura simbolicamente como o espaço da oposição.

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Nossa análise nos encaminha, então, para as relações entre espaço e produção de identidades, a partir do que afirma Hall: [...] as identificações são as posições que o sujeito é obrigado a assumir, embora ‚sabendo‛ (aqui, a linguagem da filosofia da consciência acaba de nos trair), sempre, que elas são representações, que a representação é sempre construída ao longo de uma ‚falta‛, ao longo de uma divisão, a partir do lugar do Outro e que, assim, elas não podem, nunca, ser ajustadas – idênticas – aos processos de sujeito que nelas são investidos (2000, p. 112).

Nos documentos da Guerrilha do Araguaia podemos observar que o contraposicionamento heterotópico é também realizado pelo distanciamento do guerrilheiro de seu lugar de origem (a cidade) e que essa ‚desterritorialização‛ produz uma nova identidade para os combatentes. No seguinte trecho, em que se comemorava um ano de luta nas selvas do sul do Pará, o narrador comenta as dificuldades enfrentadas do lugar em que estão combatendo, estranho à maioria deles:

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(3) Há precisamente um ano os guerrilheiros combatem com firmeza os soldados do governo e toda a corja de bate-paus da ditadura. Não temendo a vida difícil na mata e a falta de alimentos, nem as doenças e a morte, resistem, dando provas de valentia, a um inimigo cruel e armado até os dentes (In: Vários autores, 1996, p. 40).

É nesse deslocamento do urbano para o campo que se constitui o espaço simbólico da luta e a emergência de uma heterotopia, que, claramente, não é constituída na perfeição, mas no contraponto e na possibilidade do novo no diferente. Se o ambiente selvagem traz consigo as dificuldades (vida difícil e falta de alimentos), traz também a emergência simbólica de um outro governo, governo este que é modelo para a nação que seria construída com o fim da ditadura. Ainda que a luta nas cidades, a guerrilha urbana, a resistência política nas cidades, seja também valorizada, como se vê no trecho que se segue, retirado de uma Carta de quatro guerrilheiros ao bispo de Marabá, a luta no campo, a resistência na selva é mais valorizada justamente por ser esse contraposicionamento, isto é, o lugar da inversão e do surgimento do novo:

A produção de espaços simbólicos durante a ditadura militar brasileira: lugares da luta e da memória

(4) Há pessoas de diferentes matizes políticos e religiosos, inclusive católicos. Todos eles poderiam viver comodamente, desfrutar a paz, o conforto e o bem-estar em seus lares. Fiéis, porém, à sua consciência, escolheram o caminho da luta, preferiram passar fome, morar na selva, dormir ao relento e, se necessário, sacrificar a vida, a se calar diante de um regime que infelicita o país a mais de oito anos. Os que se portam desse modo agem como milhares e milhares de brasileiros – entre os quais se incluem muitos padres católicos – que, nas cidades, combatem o jugo dos generais e de um punhado de ricaços internacionais e estrangeiros. Vão ao encontro dos mais legítimos anseios de nosso povo que aspira à liberdade e não quer viver sobre o tacão da ditadura (In: Vários autores, 1996, p. 42).

A selva, portanto, se desenvolve e se estabelece como espaço da luta e do sacrifício, mas luta e sacrifício para que a construção da liberdade possa se efetivar – ‚Vão ao encontro dos mais legítimos anseios de nosso povo que aspira à liberdade e não quer viver sobre o tacão da ditadura‛ – e a desterritorialização seja completa com a derrota do regime militar. Há, portanto, no espaço da selva, heterotopia – é sem dúvidas um espaço heterotópico –, mas também aspectos da utopia, que motiva a luta, o combate. Para Foucault (2009, p. 418) as heterotopias têm profunda relação com o tempo, pois elas:

No espaço simbólico da selva – aquele de uma desterritorialização – os guerrilheiros lutam pela revolução e pela própria sobrevivência. Há aí uma heterocronia que mescla o tempo do cotidiano (o ‚agora‛ das pequenas atividades necessárias à sobrevivência) e a grande temporalidade que retoma, em diferentes tempos, o ideal de luta e de revolução, difundido pela esquerda em diferentes épocas, acumulado com o transcorrer do tempo. Essa percepção retrata o que há pouco foi mostrado, que no espaço heterotópico da selva há um acúmulo de discursos-outros que se consolidam como resistência àquele da política oficial. Esse acúmulo de discursos incide em um acúmulo de tempos: heterotopia e heterocronia. Desse modo, a interdiscursividade é fator constitutivo desse discurso do espaço hetero-

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[...] estão ligadas, mais frequentemente, a recortes do tempo, ou seja, elas dão para o que se poderia chamar, por pura simetria, de heterocronia; a heterotopia se põe a funcionar plenamente quando os homens se encontram em uma espécie de ruptura absoluta com seu tempo tradicional [...].

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tópico, uma vez que toma vários discursos em dispersão e os organiza no relato a fim de inserir o dizer tanto na temporalidade do ‚agora‛ quanto naquele da grande temporalidade da História das revoluções. Mas, também, tal interdiscursividade alimenta as projeções para o futuro de um país livre do regime opressor, incidindo aí a utopia. Ao mesmo tempo, a marca dessa heterotopia é um dispositivo de constituição da identidade do combatente. Um dos lugares discursivos em que isso pode ser observado é na relação que o ‚eu combatente‛ estabelece com a população. Para pontuar essa análise, retornamos ao conceito de heterotopia desenvolvido por Foucault, quando afirma que:

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[...] [as heterotopias] se desenvolvem em dois polos extremos. Ou elas têm um papel de criar um espaço de ilusão que denuncia como mais ilusório ainda qualquer espaço real, todos os posicionamentos no interior dos quais a vida humana é compartimentalizada [...]. Ou, pelo contrário, criando um outro espaço, um outro espaço real, tão perfeito, tão meticuloso, tão bem arrumado quanto o nosso é desorganizado, mal-disposto e confuso. Isso seria a heterotopia não de ilusão, mas de compensação [...] (2009, p. 421).

Os discursos dos combatentes buscam criar esses espaços perfeitos, em contraposição aos espaços reais. Todavia, a imperfeição ainda é própria da luta, na medida em que o ambiente é, muitas vezes, desfavorável. Esse fato é perceptível nos documentos da Guerrilha do Araguaia destinados aos habitantes da região, ao afirmarem um ideário de construção de um novo ‚mundo‛ para eles, mais ambiciosamente, a construção de um novo Brasil muito diferente do espaço corrosivo que se verificava naquele momento. Esse espaço perfeito na sua imperfeição e meticuloso, contrário ao espaço real da política do regime militar, é criado pela materialidade discursiva, pela linguagem que incita a população a pegar em armas e a lutar. Assim, pela palavra convocatória, o combatente coloca-se na posição do líder revolucionário, aquele que tem competência para tornar real o espaço prometido pela palavra. Portanto, a selva é, de fato, um espaço heterotópico, ali o contraposicionamento em relação ao urbano (local do Estado) se realiza e consolida novas estruturas, mas é também marcado pela utopia, pois sem ela a luta não teria sentido, ou já estaria acabada.

A produção de espaços simbólicos durante a ditadura militar brasileira: lugares da luta e da memória

NA MEMÓRIA, HETEROTOPIA E UTOPIA SE ENTRELAÇAM Quando ocorre a transformação na ordem do discurso, que passa dos textos doutrinários produzidos no calor da luta para os relatos dos exmembros daquelas organizações de esquerda, as identidades se conferem por meio do espaço produzido pela memória, que tem na reestruturação da mídia o lugar de emergência dos relatos, trazendo consigo a emergência de uma história que, ao mesmo tempo em que é construída, está também em curso. Assim, Gregolin afirma que:

Nesse sentido, a reconstrução do passado por meio dos relatos, dos espaços de memória produzidos na mídia – que contempla também a edição de inúmeros relatos memorialistas, romanceados –, confere um estatuto de história em curso, de história do tempo presente. No momento da abertura política, lenta e gradual, mais do que antes, as práticas discursivas apresentavam papel essencial para a construção desse espaço simbólico, pois não há mais relação direta com o espaço físico como havia no momento da luta efetiva, no momento em que os guerrilheiros pegavam em armas nas cidades ou no campo para lutar contra o regime militar. No calor da luta, criavam-se falas de resistência, mas na fase posterior, de abertura política, por meio dos relatos, aparecem as falas de consolidação. Consolidação do passado, da memória, mas também consolidação da história. No momento em que os relatos, tanto daqueles que participaram diretamente do regime quanto daqueles que resistiram ao governo ditatorial, começam a circular incessantemente nas arenas midiáticas, o espaço simbólico da memória assume papel de destaque. Assim, com a volta daqueles que participaram da luta armada no final dos anos 1960 e início dos anos 1970 e o grande boom dos romances memorialistas, muda-se da negociação por uma identidade brasileira (ou da esquerda) para um discurso de consolidação de ex-integrantes dos grupos da esquerda. Ainda relacionando esse espaço da memória com o espaço da selva, notamos outra diferença: o espaço simbólico da memória oscila, igualmente, entre a heterotopia e a utopia. É heterotópico na medida em que os relatos

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[...] a mídia produz sentido por meio de um insistente retorno de figuras, de sínteses-narrativas, de representação que constituem o imaginário social. Fazendo circular essas figuras, ela constrói uma ‚história do presente‛, simulando acontecimentos-em-curso que vêm eivados de signos do passado (2003, p. 96).

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de algo que aconteceu no passado justapõem diferentes espaços e tempos (Foucault, 2009, p. 418). No entanto, justamente por organizar, selecionar, dar coerência aos fatos do passado (isto é, reinventá-lo), o espaço da memória é utópico, um posicionamento sem lugar efetivamente localizável, cambiante, movente – a diferença se dá na medida em que a selva era um espaço heterotópico com presença da utopia (mas não um espaço utópico), enquanto a memória é um espaço ao mesmo tempo heterotópico e utópico. A seguir, um excerto retirado do romance memorialista Os carbonários, de Alfredo Sirkis:

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(5) [...] pro Brasil o negócio era um stalinismo adequado às nossas necessidades. Nisso o pessoal do colégio concordava. Eu sabia que eles não eram da linha Moscou nem da linha Pequim (na época nem sequer sabia o nome das organizações). Eram de outra linha. A linha do exemplo do Che, aquela coisa bonita. Porque o Che mostrava o pau de matar a cobra. Explicava como fazer a coisa. Ela não ia explodir de uma hora pra outra. Tinha que ser preparada. Depois, não ia ser pacífica, a ditadura tava ali pra impedir. Impunha a lei a ferro e fogo. O povo ia se revoltar. Tinha que se revoltar... Na mesma época, saiu na revista Realidade uma matéria sobre a vida e morte do Che, que me impressionou muito. Era notável o gesto daquele homem, que chegara a ministro do governo cubano: largar tudo para ir combater pela liberdade de outros povos. Isto, sim, é que era coragem (1998, p. 78).

Na memória, portanto, o cruzamento de diferentes temporalidades sobrepõe, também, diferentes espaços ao mesmo tempo em que incorpora o idealizável – aí remissão às figuras ‚exemplares‛ da resistência e aos lugares de sua efetivação. Talvez possamos afirmar que, justamente por ser ao mesmo tempo heterotópico e utópico, o espaço da memória produz uma consolidação do que foi constantemente construído pela luta efetiva contra o regime, e que, ainda que as organizações de esquerda tenham saído derrotadas dessa luta, a construção de uma memória em torno delas se deu por meio de uma mitificação da luta, que se estabeleceu até mesmo na construção de um herói da esquerda que passou por transformações e movimentos, do trágico ao tragicômico, mas que permaneceu como uma figura idealizada, uma construção utópica4, ainda no interior desse discurso de resistência, mas que seria toNesse sentido, basta nos lembrarmos de figuras símbolos do movimento de resistência no mundo, em distintos tempos, e que foram elevados à figura de heróis: Ernesto ‚Che‛ Gue4

A produção de espaços simbólicos durante a ditadura militar brasileira: lugares da luta e da memória

mado pela grande mídia no contraponto da depreciação, do rebaixamento desta identidade guerreira, ainda que pela memória. As utopias são ‚a própria sociedade aperfeiçoada ou é o inverso da sociedade mas, de qualquer forma, essas utopias são espaços essencialmente irreais‛ (Foucault, 2009, p. 415). A fala de consolidação que aparece por meio dos relatos e da construção da memória é, desse modo, eminentemente utópica. UMA BREVE RETOMADA Notamos, com isso, que na fase de maior repressão por parte do regime, houve a constituição de espaços heterotópicos institucionalizados pelos locais de resistência, os locais de atuação das guerrilhas, no caso da Guerrilha do Araguaia, a selva, o lugar da natureza, contraposição ao lugar efetivo da política, do Estado ditatorial, o meio urbano, mas que possibilitava a projeção de uma sociedade diferenciada, demonstrando aspectos de utopia. Em contrapartida, com a derrota da luta armada e a possibilidade de retorno dos exilados políticos, o espaço real da luta, a selva, deu lugar ao espaço simbólico da memória, um lugar que oscilava entre o heterotópico e o utópico e que era permeado pela busca de consolidação de um ideal revolucionário e de uma identidade construída pela esquerda no momento da luta armada, principalmente no interior dos relatos, mas na desconstrução dessa identidade calcada no radicalismo quando apareciam, na mídia, traços de espetacularização da política e, também, da memória.

REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. FOUCAULT, Michel. Outros espaços. In: MOTTA, Manoel Barros da (Org.). Estética: literatura e pintura, música e cinema (Ditos & Escritos III). Trad. Inês Autran Dourado Barbosa. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p. 411-422.

GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo: Ática, 1984. vara (Argentina/Cuba), Augusto César Sandino (Nicarágua), Emiliano Zapata (México) etc., para ficar apenas na América Latina.

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GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

Israel de Sá

GREGOLIN, Maria do Rosário. O acontecimento discursivo na mídia: metáfora de uma breve história do tempo. In: ______. Discurso e mídia: a cultura do espetáculo. São Carlos, SP: Claraluz, 2003, p. 95-110. HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da. (Org). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000, p. 103-133. ______. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 7ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. SIRKIS, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. 14.ed. Rio de Janeiro: Record, 1998.

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VÁRIOS AUTORES; DOCUMENTOS DO PCDOB. Guerrilha do Araguaia. 3ed. São Paulo: Editora Anita Garibaldi, 1996.

POR uma

LEITURA do TEXTO

sincrético em EXAMES nacionais de AVALIAÇÃO:1 reflexões à luz da teoria do discurso2 A imagem está ali num momento único, no instante seguinte, já se foi – perdida para sempre. (Margaret Bourke-White, 1904-1971)

INTRODUÇÃO

A

epígrafe com a qual introduzimos este artigo conduznos a pensar no papel da imagem em seus mais diversos usos na sociedade, de modo geral, e, em particular, no ensino e nas práticas avaliativas no Brasil. Nos dizeres da fotógrafa americana Margaret Bourke-White, só se pode capturar uma imagem numa única vez, num instante singular, pois cada cliMestre pelo PPGL/UFSCar. Doutorando pelo PPGL/UFSCar. Bolsista FAPESP. São Carlos - SP. Pesquisador do Labor. [email protected] 2 Neste artigo, apresento uma breve abordagem das questões levantadas na pesquisa de mestrado intitulada “A constituição do enunciado nas provas do ENEM e do ENADE: uma análise dos aspectos semiológicos da relação língua-imagem sob a ótica dos estudos do discurso” com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). 1

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três

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que da câmera captura um novo instante, um novo gesto, um olhar, um microfragmento do mundo que já não existe. A relação do fotógrafo com o objeto fotografado e a câmera é, decerto, tão sincrônica que se evidencia na foto: mais do que a captura fidedigna do mundo, um trabalho de arte. Não há arte sem a leveza das mãos do artista, e sem a singularidade do acontecimento que lhe serviu de alvo para a contemplação. A arte não produz sentidos sem aqueles que a produzem e a contemplam, sem estes dois grupos de sujeitos. A imagem é lida e se faz vista no instante histórico do acontecimento que a singulariza, a apaga ou a monumentaliza nas práticas discursivas. Se o caráter referencial da imagem (seja fotográfica, cinematográfica, plástica etc.) pode aproximar-se da tentativa de pontuar um sentido, fixarse no imaginário do sujeito que a contempla, por outro lado, seu caráter histórico pode expandir a possibilidade de aquisição de sentidos diversos, que não negam sua iconicidade, mas dependem da relação com outras vistas antes, noutros lugares, ou que estão por ainda ser lidas e contempladas no futuro. Mas isso se deve apenas à imagem artística? Qualquer imagem está passiva à multiplicidade de sentidos dependendo da ordem de produção em que se inscreve? É evidente que não é tão fácil responder a essas questões, pois as imagens produzem sentidos e funcionam não somente no instante em que foram criadas, mas no instante em que são contempladas, lidas, postas em circulação no curso da história. Na medida em que constroem novos saberes, trazem de volta um acontecimento até então esquecido e atualizam a memória de um povo, fazem ressignificar um outro acontecimento na ordem das discursividades. E quando a imagem aparece relacionada sintática e semanticamente com outra materialidade semiológica? Como essa relação funciona já que ambos (verbo e imagem, por exemplo) são interdependentes? Estamos, portanto, diante de um problema que, longe de apresentar respostas prontas, nos direciona para reflexões mobilizadas mais recentemente pelo campo teórico da análise do discurso (doravante, AD). Este campo convoca para si um conjunto de conceitos e noções a fim de compreender o funcionamento de novas materialidades do discurso numa perspectiva histórica e semiológica. Por ora, mobilizamos o conceito de enunciado tal como foi cunhado por Foucault (2001a, 2008) e discutido por Courtine (2009), que o trouxe como unidade de análise no interior do arquivo para a esteira dos estudos discursivos.

Por uma leitura do texto sincrético em exames nacionais de avaliação: reflexões à luz da teoria do discurso

Neste artigo, apresentamos um recorte de análise desenvolvida na pesquisa de mestrado em que nos debruçamos sobre textos de dupla natureza semiológica presente em questões do ENEM e do ENADE (Santos, 2011)3. O objetivo desse trabalho, em específico, é apresentar uma breve reflexão sobre o funcionamento de uma imagem presente na prova do ENADE, edição de 2008 (curso avaliado: Química) e avaliar a pertinência da noção de enunciado para analisar texto misto. UMA LEITURA DO TEXTO MISTO: reflexões analíticas Para melhor situarmos a discussão que ora mobilizamos acima, passemos à análise de uma questão da parte geral4 da prova do ENADE, edição 2008. Façamos aqui três trajetos de leitura: um primeiro – descrição empírica - observando apenas o texto enquanto construção composicional5 sem levar em conta sua procedência, o estilo, o conteúdo temático; um segundo - situação funcional - estudando sua inserção no exame de avaliação ainda sem levar em conta o texto como enunciado e unidade das práticas de discursos; e um terceiro trajeto – funcionamento discursivo - levando em conta sua natureza enunciativa sem perder de vista o texto misto enquanto materialização dos discursos e o deslocamento do texto nas diversas instâncias de enunciação, cuja circulação e manipulação permitem efeitos de sentidos autorizados pelas condições de produção do discurso. Dito de outro modo: para esse terceiro

Cf. SANTOS, J. R. A constituição do enunciado nas provas do ENEM e do ENADE: uma análise dos aspectos semiológicos da relação língua-imagem sob a ótica dos estudos do discurso. Disponível em:< http://200.136.241.56/htdocs/tedeSimplificado/tde_busca/ arquivo.php?codArquivo=4085>. Acesso em: 21 jun. 2011. 4 Os cadernos de provas do ENADE são organizados em duas partes: uma que avalia os conhecimentos gerais dos graduandos, e todos têm acesso às mesmas questões dessa parte; e outra parte que apresenta questões cujos conhecimentos fazem parte de uma grade de conteúdos específicos à sua área de formação. Para nosso estudo, serviram apenas as questões da primeira parte. 5 O conceito de gênero, nesse sentido, comporta tipos relativamente estáveis de enunciados, o que o define. O enunciado na visão bakhtiniana corresponde às condições específicas e às finalidades das esferas de comunicação oral e escrita. Os gêneros, por sua vez, caracterizam-se por sua natureza primária e secundária. Estes se definem pela natureza dos primeiros (mais simples), organizados pelos discursos do cotidiano, pouco elaborados. Já o gênero secundário apresenta-se mais complexo e mais evoluído como no caso dos romances, textos científicos, artísticos, tratados, leis etc. Cf. BAKHTIN, M. Os gêneros do Discurso. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 3 ed. Trad. Maria Ermantina Galvão. G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 277-326.

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momento, pensamos o funcionamento do texto em análise em sua espessura histórica, sem a qual seria impossível perceber os discursos que o povoam e, ao mesmo tempo, projetam outros novos. Descrição empírica - A imagem (Figura 1) é composta, em sua materialidade sígnica, por dois sistemas semiológicos distintos (o verbal e o icônico). Na foto, percebemos duas classes de sujeitos em situações sócio-históricas, temporais e materiais bem diferentes: no primeiro plano, destaca-se um grupo de pessoas enfileiradas, com suas faces monótonas - algumas com vasilhames nas mãos - cujo comportamento nos sugere uma situação de aguardo na retirada de alimentos. Tal grupo contrasta com outra imagem ao fundo em que aparecem quatro personagens sorridentes e um cão em um veículo em trânsito. A composição sugere uma família feliz fazendo uma viagem prolongada. Das inscrições verbais, distinguimos com Figura 1: World's Highest Standard of living/ Fonte: ENADE 2008_Curso Química muita clareza dois enunciados: a) um em caixa alta com a inscrição no topo WORLD'S HIGHEST STANDARD OF LIVING; e b) outro enunciado com o dizer There's no way like the American Way6. Situação funcional - Para compor a questão do ENADE, esta imagem foi destacada do livro Arte comentada, dos historiadores de arte Strickland e Boswell - conforme aparece no rodapé da figura, a partir da qual se apresentam algumas informações ao estudante, a saber: o gênero em análise (foto), nome da autora (Margaret Bourke-White) seguido de data de nascimento e morte (1904-1971), contextualização histórica da imagem (crise americana de 1929 ou Grande Depressão), destaque da composição artístiA) O mais alto padrão de vida do mundo. B) Não existe um modo de vida melhor do que o dos americanos. (tradução nossa). 6

Por uma leitura do texto sincrético em exames nacionais de avaliação: reflexões à luz da teoria do discurso

Cf. BELTING, Hans. Médium, image, corps – Une introduction au sujet. In: Pour une athropologie des images. Traduit de l’allemand par Jean Torrent. Paris: Gallimard, 2004, p. 17-76. 7

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ca da foto, créditos da obra de onde se recortou a imagem e a lista de alternativas da questão. A imagem foi produzida para o ENADE, haja vista o modo como se apresenta na prova, a quem ela se dirige, o objetivo de sua utilização, a razão de se ter escolhido essa e não outra em seu lugar etc. Dito de outro modo, é preciso levar em conta que esta imagem se dirige a estudantes de nível superior em início ou fim de graduação (cf. regimento político-pedagógico e matriz do ENADE), circulam na internet e, possivelmente, em materiais didáticos, mantém-se viva no arquivo, circulando desde a Grande Depressão americana, metamorfoseia-se e, ao mesmo tempo, se mantém em diversos médiums-suportes7 (Belting, 2004) sobre os quais acrescentamos: livros, fotos, outdoor, desenho, charge etc. Após esses dois primeiros trajetos, passemos àquilo que chamamos de funcionamento discursivo. Esse sintagma não se trata de um conceito, uma noção ou aspecto similar; trata-se somente de um modo de ler a imagem que trazemos para análise. O que o aluno deveria saber para responder à situação problema na prova do ENADE? Era preciso que ele soubesse ler em língua inglesa tendo em vista que os enunciados verbais apresentavam-se neste idioma ou isso era apenas um detalhe acessório? As informações postas no interior da situação-problema são suficientes para a garantia da resposta correta ou o aluno deveria trazer conhecimentos de análise desta imagem desenvolvidos durante sua formação? Algumas destas interrogações podem-nos parecer simples de responder, porém elas põem em evidência o papel da escola enquanto lugar de formação de leitor das multiplicidades de linguagem na contemporaneidade, não apenas de textos verbais. Não basta que o aluno saiba ler em inglês, em língua portuguesa, domine conhecimentos de história internacional (primeira grande crise americana) ou apresente “conhecimentos de mundo”. É preciso saber como se dão os processos de letramento da imagem fotográfica, publicitária, fílmica, plástica etc. no ensino médio e, por extensão, na educação básica, quando não no próprio ensino superior; é preciso também saber quais dispositivos são mobilizados para que se leia uma imagem dessa natureza.

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Ao recorrermos à história desta foto, notamos que não se trata de uma imagem qualquer. Ela foi produzida no auge da Crise de 1929, nos Estados Unidos, num período em que a fotografia passava a adquirir uma função primordial na história do jornalismo, isto é, servira de documento factual das coberturas de grandes acontecimentos que se inscreveram na história. Nesse sentido, a fotografia poderia ser produzida por via de dois processos de criação (dependendo do fotógrafo): um estético e outro informativo/referencial, o que não significa dizer que as duas características não possam se apresentar numa mesma foto. Obviamente, o tratamento dado à foto depende de quem estava - ou ainda está - por trás da objetiva (câmera). Para entendermos melhor o valor que adquiriu a foto em diferentes momentos, devemos voltar à história da fotografia de imprensa com Souza (2004). Segundo esse autor,

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a história do fotojornalismo se divide em três evoluções. A primeira, que abrange o período da Primeira Guerra Mundial, da Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria, quando se deu a identidade fotográfica para o mundo; a segunda revolução abarca o período em que as agências de notícia voltaram seu interesse para a fotografia, época em que as cores adentraram os veículos de comunicação junto ao movimento de deslocamento das verbas publicitárias para a televisão; a terceira revolução, por sua vez, deu-se com o imediatismo da notícia, momento em que o jornalismo caminhou para a velocidade na produção e divulgação de notícias (Souza, 2004 apud Guimarães, 2010, p. 39).

A fotografia de imprensa – com existência já há mais de 80 anos – veio adquirindo valores distintos, e seu caráter estético acabou, muitas vezes, perdendo espaço para a informação impactante do mundo, já que o impacto confere estímulo ao leitor de um jornal, muitas vezes preocupado com a venda de notícia (Lima, 1988 apud Guimarães, 2010). Contudo, mesmo depois da Segunda Guerra, a fotografia já vinha perdendo seu caráter “objetivo”, passando para uma subjetivação que envolvia fotógrafo e câmera. Portanto, para esse novo estilo introspectivo, “mais do que apresentar informação objetiva em forma documental, a câmera expressa sentimentos e manipula a realidade para criar símbolos e fantasias” (Strickland, 2002, p. 184). Segundo Strickland (2002), Bourke-White tentava ao máximo incluir o caráter verídico da situação fotografada na composição da foto, porque esta era produto estético e informativo ao mesmo tempo.

Sem entrarmos nas discussões mais atuais acerca das características constitutivas deste gênero e os pressupostos que distinguem uma fotografia como imagem estética de outra como imagem referencial, já que não é esse nosso objetivo aqui, podemos ler a foto de Bourke-White (cf. Figura 2) a partir do conceito foucaultiano de enunciado, destacando as propriedades que o definem (Foucault, 2008). Se tomarmos a imagem de Burke-White como uma simples foto tal como foi feita no ano de 1929, diríamos que seu “sentido único” e informativo não se sustenta no plano do visível apenas, em que pessoas abatidas pela crise daquele ano, em sua maioria negra, buscavam por alimentos. A riqueza do texto Figura 2: Fotografia American dreams está justamente na composição – artística, que lhe confere um caráter polissêmico, cultural e conotado (Barthes, 1990a, 1990b). A autora da foto capturou um evento talvez único por ter notado um contraste entre os sujeitos vitimados pela crise estadunidense e um outdoor enorme (cf. billboard, na Figura 2) ao fundo, anunciando um modo de vida promissor aos americanos e aos imigrantes. Não se trata de uma foto em que, no primeiro plano, aparecem os sujeitos e, ao fundo, uma simples paisagem. Ao contrário, há aí a ironia estampada em dois enunciados em confronto, retratando um modo de vida paradoxalmente publicizado e outro efetivamente vivenciado. O processo antonímico observado entre as duas formações discursivas foi registrado pela fotógrafa, que destacou, em um clique, as contradições de um país líder de um sistema capitalista injusto que, de um lado, evidencia(va) um discurso de desenvolvimento e promessas inscrito no famoso sintagma inglês American dreams; de outro, eis um país que não conseguia conter as consequências daquele sistema econômico excludente. A diferença se acentua mais ainda ao se notar a desigualdade socioeconômica entre aqueles que estão de pé e os que viajam num veículo ameaçando passar por cima de suas cabeças. Tal leitura é feita na ordem das discursividades, porque é a partir deste lugar que podemos compreender os

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efeitos de sentido concebidos na enunciação entre interlocutores. De fato, não há somente este sentido porque o enunciado dialoga com outros, ele está sempre eivado por outros enunciados, já que os discursos são sempre heterogêneos, mesmo que se queira uma unicidade, mesmo que se apele por uma homogeneidade do dizer e do mostrar; os enunciados beiram sempre outros que estão na ordem do dia, mas também latente por ter sido dito antes, noutro tempo e lugar já passados. Trabalhar com a noção de enunciado põe em cena o caráter histórico e ideológico de que os discursos são sempre reféns, porque estes respeitam a uma ordem que determina o que pode (ou não pode) ser dito/mostrado/lido (Foucault, 2001). Mesmo assim, há também aquilo que escapa a essa ordem, pois, sendo condição do discurso, os sentidos não se fecham na materialidade nem estão soltos alhures; ao contrário, os efeitos de sentidos do(s) enunciado(s) manifestam-se na discursividade. Então,

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se a noção de enunciado utilizada por Foucault é próxima àquela tomada pela AD (atividade de produção de um discurso por um sujeito enunciador em uma situação de enunciação), o enunciado encontra-se, em compensação, ligado à noção de repetição. A existência do enunciado é da ordem de uma materialidade repetível que “se dirige, segundo uma dimensão, de algum modo vertical, às condições de existência dos diferentes conjuntos significantes”*...+. A oposição enunciado/enunciação permite aqui pensar o discurso na unidade e na diversidade, na coerência e na dispersão, na repetição e na variação. Tal oposição reparte esses modos contraditórios de existência do discurso como objeto nos dois níveis, o do enunciado e o da formulação, que a descrição das FD põe em jogo: a existência vertical, interdiscursiva de um sistema de formação dos enunciados assegurando ao discurso a permanência estrutural de uma repetição, corresponde à existência horizontal, intradiscursiva da formulação, onde o enunciado pode produzir uma variação conjuntural (Courtine, 2009, p. 91-92, grifos do original).

Com a foto em análise tomada como enunciado, e na esteira das discussões de Courtine (2009) acima acerca da formulação e da circulação do enunciado, podemos estudá-la observando os usos que se fazem dessa imagem e as condições enunciativas que conferem novos sentidos, mesmo que se tenha repetido durante muito tempo em diversas instâncias de enunciação. Resta-nos saber também: o que a tornou recorrente em todo esse tempo? Como os sujeitos a recebem, a lêem, nos lugares em que circulam? A

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fotografia de Bourke-White mantém as mesmas condições de produção de sentidos se variados os médiums-suportes em que passam a circular? A permanência desta foto ao longo da história é mantida, portanto, pela historicidade de seu discurso que não permite seu apagamento dado a força da memória, que lhe serve de pano de fundo. Como destaca Guimarães (2010, p.32), “o texto fotográfico traz em si um discurso que, muitas vezes, inserido nas mídias, conduz o olhar e o pensar do receptor em direção a caminhos muitas vezes já pré-determinados pelas empresas de notícias”. De uma forma ou de outra, “as fotos fazem parte de um tesouro, que é o tesouro da memória. É preciso conservá-lo e distribuí-lo. Preserválo para o futuro, para sempre. Até o fim dos tempos.” (Production/Arte, 1999, apud Guimarães, 2010, p. 32). Respondendo a umas das questões acima, poderíamos dizer que a linguagem é o terreno da memória, é o solo fértil no interior do qual os sentidos germinam com o adubo desta memória que os faz permanecer na história; por fim, a linguagem é este espaço onde se materializam os discursos que fazem das práticas individuais e coletivas, modos de subjetivação do homem. Nesse lugar de reflexão acerca da relação entre tempo, linguagem e história em que se dão estas práticas de subjetivação, Foucault (2001b) nos chama a atenção para o fato de que:

Nessa perspectiva, uma fotografia ou qualquer outra forma de texto que se sustenta no tempo não traz a história de outros acontecimentos deixados no passado, esquecidos, enterrados; ao contrário, a irrupção de um novo acontecimento faz com que haja efeitos, efeitos de sentidos para

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Durante muito tempo, considerou-se sem dúvida por várias razões, que a linguagem tinha um profundo parentesco com o tempo, visto que a linguagem é essencialmente o que permite fazer uma narrativa e, ao mesmo tempo, uma promessa. A linguagem é essencialmente o que lê o tempo. Além disso, a linguagem restitui o tempo a si mesmo, pois ela é escrita e, como tal, vai se manter no tempo e manter o que diz no tempo. A superfície coberta de signos é, no fundo, apenas o ardil espacial da duração. É, portanto, na linguagem que o tempo se manifesta a si mesmo e, além disso, vai se tornar consciente de si mesmo como história. Pode-se dizer que, de Herder a Heidegger, a linguagem como logos sempre teve a nobre função de guardar, de vigiar o tempo, de se manter no tempo e de manter o tempo sob sua vigilância imóvel. (Foucault, 2001b, p. 167)

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diferentes leitores e interlocutores. Não é porque os enunciados postos em circulação hoje dependem unicamente deste “assopro enunciativo” vindo de outro lugar, mas porque sua existência significativa só é possível quando há encontro entre este passado latente e o agora; é a inauguração do acontecimento, que depende da memória discursiva da imagem, do leitor da materialidade verbal, do leitor da linguagem de sintaxe mista, como é o caso em questão.

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A IMAGEM OPERADORA DE MEMÓRIA No ano de 2008, quando os Estados Unidos começaram a manifestar os primeiros sintomas da crise econômica, alguns enunciados passaram a circular em diversos suportes midiáticos. Entre eles, a internet sem dúvida foi um dos meios em que se viu circular uma regularidade de textos em diferentes materialidades. Quase três anos depois, notamos um recorrente número de enunciados com Figura 3: Charge American dreams (internet) os sintagmas “grande crise”, “crise econômica”, “crise americana”, “crise financeira internacional”, “crise no setor imobiliário” etc. do ponto de vista verbal. Estamos falando de sintagmas vinculados a cadeias sintáticas de enunciados produzidos dentro de (ou em relação a) uma mesma formação discursiva tal como pensava Foucault (2008); não estamos tratando de outras FDs que passaram a ter enunciados com a palavra crise, ou termos similares, provocados pelo enunciado origem “crise americana”, como por exemplo, “crise aérea”, “crise política *brasileira+”, “crise na família” etc. Por outro lado, em volume tão expressivo quanto aquele dos enunciados verbais de que tratamos há pouco, circulou também um expressivo número de desenhos, pinturas, charges, cartuns, mobilizados pelo mesmo acontecimento. Nessa conjuntura em que milhares de novos enunciados surgem compondo uma rede interdiscursiva – já que cada um vem contagiado por outros enunciados já postos à circulação –, emerge uma charge

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Blog: Disponível em: . Acesso em: 20 set. 2010. 9 O que há de errado? 8

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publicada em um blog8 para compor o inapreensivo arquivo de tudo aquilo que pôde ser dito e ser mostrado sobre a crise econômica internacional. O mais curioso é que os mesmos enunciados verbais e icônicos com alguma relação à fotografia de Bourke-White voltam a circular, compondo o eixo sintagmático do texto misto presente na charge (Cf. Figura 3). A atualização da fotografia de 1929 traz outros signos, como uma lancha em vez de um carro, três pessoas brancas idosas com face derrisória no veículo, a paisagem urbana ao fundo em vez de campesina, a fala do condutor What’s to go wrong?9, a bandeira americana na proa da lancha e os sujeitos em fila quase totalmente submersos em um rio. As próprias cores vermelha, azul e branca reforçam os símbolos estadunidenses já presentes na bandeira. A contradição presente no discurso da charge se evidencia entre os sujeitos da fila e os que viajam na lancha como se estes estivessem a passar por cima daqueles (tal como na foto de BourkeWhite); mas não percebendo a condição em que se encontram, questionam “o que há de errado com eles?” Quase 80 anos depois, os enunciados WORLD'S HIGHEST STANDARD OF LIVING e There's no way like the American Way reaparecem mantendo sua mesma estruturação sintática. O que mudou? A formulação, decerto, em nada mudou, mas seus efeitos de sentido já não são mais os mesmos por algumas razões: a) as condições sócio-históricas que possibilitaram seu reaparecimento não são mais as mesmas, ainda que se tratasse de uma crise de ordem aparentemente semelhante à do ano de 1929; b) os sujeitos do discurso também já não são os mesmos; c) a relação que estes enunciados mantêm com outros sistemas semiológicos no conjunto da materialidade também é distinta daquela vista na fotografia, até porque aqui já não se trata da mesma materialidade por ser uma charge; e, finalmente, d) pelo fato de a enunciação ser singular a cada momento em que um enunciado é posto em funcionamento. Podemos ainda exemplificar com as próprias palavras de Foucault (2001b), ainda que ele esteja tratando de uma frase como enunciado produzido diferentemente no interior de um outro discurso – o literário – este é também constituídos por diversos enunciados igualmente heterogêneos, por diversos saberes de uma cultura:

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As duas frases “Durante muito tempo deitei cedo” e “Durante muito tempo deitei cedo”, a primeira sendo uma frase que eu digo e a segunda sendo a que leio em Proust, embora verbalmente sejam exatamente idênticas, são, na realidade, profundamente diferentes. A partir do momento em que ela é escrita por Proust no limiar de Em busca do tempo perdido, pode ser que, em última análise, nenhuma dessas palavras tenha exatamente o sentido que lhes damos quando as pronunciamos cotidianamente, pode ser que as palavras tenham suspenso o código de onde foram retiradas (Foucault, 2001b, p. 159).

Do mesmo modo que o filósofo concebe o enunciado para a análise do discurso na literatura e o difere da enunciação, aqui podemos olhar para os enunciados verbais nas duas situações históricas de uso e compreender as razões porque manifestam outras leituras. Conforme Courtine (2009), a formulação difere da enunciação justamente no que diz respeito à historicidade. O enunciado tem uma espessura histórica, a formulação não, já que é próprio do sistema semiológico, e só concebemos seus efeitos se o analisamos a partir do interdiscurso, da relação estabelecida com outras formulações. Se antes a promessa de um mundo melhor – um modo de vida único e promissor sem o qual nenhum outro sujeito estaria feliz e seguro senão vivendo nos EUA – faz parte do discurso publicizado no outdoor contraposto com as condições subumanas daqueles que esperavam por alimentos, na charge, a contradição se evidencia com mais destaque, uma vez que outros sujeitos, na contemporaneidade, vitimados pelos efeitos da crise e, por extensão, do capitalismo já não somente esperam por melhores condições de vida, mas clamam por salvação pelo fato de estarem afundando. Os signos visuais do enunciado (lancha, água, homens afundando) sugerem, dentre tantas, duas possíveis leituras em conflito: de um lado, a tentativa de salvamento de pessoas a ponto de perderem a vida; de outro, o veículo que ameaça passar por cima delas, afundando-as ainda mais. Os signos linguísticos em relação aos signos icônicos definem a ironia da charge, pondo em questão a ideia de mais alto padrão de vida do mundo, o que reduz o saber posto em anúncio a uma espécie de piada.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS... para não concluir Ainda um outro ponto que merece uma reflexão diz respeito à materialidade textual das imagens que acabamos de analisar, já que suas características fogem aos padrões mais recorrentes de uma fotografia. Embora

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Ele [o sistema de signos] faz parte de uma rede de outros signos que circulam em dada sociedade, signos que não são apenas linguísticos, mas que

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esteja nas cores preto e branco, dadas as condições materiais, físicoquímica da época, a composição em que as pessoas aparecem na fila diante de um outdoor (Figuras 1 e 2) nos faz pensar que se trata de uma montagem em desenho ou foto-montagem. Logo, a depender do lugar de circulação e do acontecimento que a fez emergir, seu conceito de texto vai também variar, porque este atende às condições de circulação e aos sujeitos a partir dos quais produz sentido. Obviamente, é de se estranhar a constituição fotográfica da imagem na prova do ENADE se o candidato nada ou pouco conhece da história dessa foto e muito menos do que os enunciados em língua inglesa podem significar por si só. O que queremos defender aqui é o fato de que a produção de sentido múltiplo independe menos da natureza referencial, factual, imanente da linguagem, e mais dos processos de constituição da leitura do texto – seja ele constituído por uma ou mais de uma natureza compósita. Isso põe em jogo vários elementos exteriores à constituição material do texto em análise. Logo, é preciso levar em conta os sujeitos envolvidos com a linguagem, os interlocutores a partir dos quais e para os quais a materialidade significa diferentemente; a historicidade por meio da qual tal imagem foi posta à produção de significados, face às condições de produção que permitem fazer sentido(s), bem como o diálogo que uma determinada imagem mantém com outras, postas em circulação antes, noutros lugares como dissemos acima. Carece-nos então pensar a materialidade por meio de alguns percursos metodológicos: compreender a história de emergência da imagem, estudar o funcionamento dos sistemas semiológicos que constituem o todo da imagem e o que a relação estabelecida entre estes sistemas produz do ponto de vista semântico-discursivo. Por fim, cabe estudar as possibilidades de sentidos na cadeia dos acontecimentos que a trazem de volta num gesto interpretativo. Nesse viés, estaremos atendendo ao que Pêcheux (2008) nos apresenta para compreender os discursos, isto é, interpretar o discurso é um processo que se faz descrevendo a estrutura, as regras de funcionamento do sistema semiológico, mas também interpretando o acontecimento que é da ordem das discursividades, das práticas de constituição de saberes, das regras que devemos respeitar no jogo da história e em relação aos sistemas internos da linguagem, os signos linguísticos e não linguísticos.

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podem ser econômicos, monetários, religiosos, sociais etc. A cada momento da história de uma cultura corresponde um determinado estado dos signos, um estado geral dos signos. Seria preciso estabelecer quais elementos atuam como suporte de valores significantes e a que regras obedecem esses elementos significantes em sua circulação (Foucault, 2001b, p. 163).

Em última análise, podemos depreender das discussões engendradas acima a importância daquilo que Foucault (2001b) estabelece para a constituição dos discursos: os enunciados determinados pelos signos que circulam na sociedade e que adquirem valores significantes por conta de sua circulação, por conta das condições de sua emergência. Estes signos obedecem à regularidades, estão em repleta relação com outros. Isso só nos leva a pensar que estes valores é que possibilitam que os enunciados não encerrem um sentido em si mesmo, mas estejam sempre em relação de aliança com sentidos plurais, dado o equívoco, a não completude da linguagem. É para essa discussão que devemos estar abertos (nós professores), munindo-nos de saberes teóricos e analíticos para a leitura do texto sincréticos, a fim de levar à escola um projeto de interpretação do texto com base nos aspectos semiológicos e históricos do texto, porque é dessa forma que se materializam os discursos, e nestes, as ideologias, tal como já pensava Pêcheux (1995, 2007, 2008). Não basta apenas olhar para a imagem como uma mera ilustração; assim como não basta analisar os aspectos linguísticos em busca do sentido único e afixado na sintaxe... Comecemos, pois, por pensar também nas relações que ambas as materialidades produzem nessa interrelação com vista aos efeitos de sentidos que se põem em causa.

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ANÁLISE do discurso &

VITIMOLOGIA:1 memória(s) de tráfico de drogas2 Há sempre no conhecimento alguma coisa que é da ordem do duelo e que faz com que ele seja sempre singular (Michel Foucault).

INTRODUÇÃO

C

onsiderar o Direito como discurso, a partir da afirmação de Orlandi (2002, p. 210-11) de que ‚não há ciência que não seja discurso‛, responsabiliza o Direito em uma ciência localizada no campo das sociais, ‚pois seu objeto alcança as condutas do homem‛, que necessita do discurso (Coelho, 2001, p. 51). O discurso jurídico vem, de longa data, sendo corpus de trabalho de pesquisa Mestre em Linguística pelo PPGL/UFSCar. Doutorando pela USP. São Paulo - SP. Pesquisador do GEPPEP. [email protected] 2 Resultado da pesquisa orientada pela Profa. Dra. Vanice Sargentini e financiada pela Capes: NASCIMENTO, L. Análise do Discurso e Vitimologia: Memória(s) de Tráfico de Drogas. 2011. 132 p. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Programa de Pós-Graduação em Linguística, Universidade Federal de São Carlos, UFSCar, São Carlos, SP, 2011. 1

Lucas do NASCIMENTO1

quatro

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de muitos estudiosos, entre outros, psicólogos, advogados, magistrados, jornalistas. Acredito que, pelo viés da Análise do Discurso de linha francesa, o artigo3 que ora se realiza, tanto sobre a posição-sujeito do defensor público em processo de (des)construção discursiva de defesa na tentativa de absolvição penal, quanto da posição-sujeito do(s) réu(s) criminoso(s), possa contribuir para a análise das práticas sociais e judiciais. Nesse contexto, examinar a posição-sujeito no discurso de defesa do advogado, na tentativa de absolvição dos réus envolvidos no crime de tráfico de drogas e na orientação dada a eles, como instrução criminal, implica analisar a construção de um processo discursivo4 que visa à liberdade, fincado, muitas vezes, em dada filosofia, ideologia e práticas jurídicas. Assim, o objetivo geral da pesquisa é analisar os enunciados de um processo jurídico, tendo como hipótese que eles concorrem para uma prática de suavização do tráfico de drogas (visto como criminoso pela legislação), que se dá pelo discurso de vitimização do usuário, cada vez mais fortalecido pelos enunciados que circulam na sociedade (livros, filmes, reportagens, etc.). Dentre os elementos constitutivos do discurso, serão analisadas especialmente as formas de representação do sujeito, a formação discursiva, o interdiscurso. A análise será desenvolvida a partir da reflexão sobre a materialidade da linguagem e da história inscritas no corpus de análise, cuja composição é dada pela peça ‚acórdão‛ de um processo penal, concedida pelo Tribunal de Justiça de Porto Alegre, Estado do Rio Grande do Sul. Tendo como pressupostos teóricos as formulações da Análise do Discurso de linha francesa, principalmente as teorizações de Michel Pêcheux e os postulados de Michel Foucault, e da teoria do Direito, sob a perspectiva conflituosa do Direito Positivista e da Jurisprudência, esta pesquisa tem como objetivos específicos:

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a) analisar como e quais efeitos de sentido entram em jogo no momento da produção e da circulação do discurso do defensor público, assim como dos denunciados, após a seção Memoriais e Apelação do Acórdão, no processo penal crime de tráfico de drogas; b) verificar como se dão o apagamento e/ou o deslizamento do acontecimento do fato, das histórias e do vivido relatados pelos envolvidos no Ver NASCIMENTO, L. Análise do Discurso: Acontecimento & Memória de Tráfico. Curitiba: Appris, 2011. 4 Processo discursivo no sentido de produção de enunciados no decorrer do processo penal. 3

Análise do discurso & vitimologia: memória(s) de tráfico de drogas

crime, com vistas a produzir uma inversão na construção de suas identidades, vitimizando-os, a partir da Apelação, Preliminar e Pretensão à absolvição. Tais objetivos específicos são traçados a partir de questões, como as seguintes, que nos inquietaram na leitura do processo em questão: a) como funciona o discurso do defensor e qual a representatividade da sua argumentação no discurso a favor dos réus envolvidos no processo, considerando que no resultado final do julgamento dois réus foram condenados e um absolvido, sendo os três acusados clientes do mesmo defensor público?; b) pode-se considerar que o sujeito advogado busca uma ordem social ao defender como vítimas sujeitos denunciados de prática de tráfico de drogas?; e c) com isso, há possibilidades do Poder Judiciário e da Defensoria Pública lutarem ideologicamente por objetos ‚verdade‛ diferentes? Essas questões norteiam o dispositivo analítico deste trabalho.

Por meio de alguns pontos teóricos centrados particularmente nas discussões dos franceses Pêcheux e Foucault, procuraremos encaminhar-nos em direção aos entornos da História e do acontecimento observados em enunciados do discurso jurídico. Para tratar do acontecimento e da memória no arquivo é preciso tratar, primeiramente, da espessura histórica do objeto discurso. Essa espessura inerente à análise da discursividade permite pensar pontos de contato do trabalho de historiadores, linguistas e analistas. Sargentini (2010), em seu artigo, apresenta o cerne de tal preocupação, demarcadamente a discussão sobre a relação discurso/história. A partir de Régine Robin, da célebre obra Histoire et Linguistique (Paris, 1974), traduzida já em edição brasileira, Robin (cf. Sargentini, 2010) avalia a existência de recalcamentos tanto do linguista quanto do historiador, em que este ‚recalca o significante, a materialidade da linguagem‛, e aquele, ‚o sujeito e a história‛. Aludir a esse ponto, consoante a autora, já é para analistas e historiadores um ponto de encontro para frutíferos avanços em trabalhos: situar história ‚no domínio do exterior linguístico, que, por sua vez, passa a estabelecer relação com o linguístico para o estudo do discurso‛ (Sargentini, 2010, p. 96). M. Pêcheux (1983) apresenta essa articulação história e discurso também em comunicação no Colóquio Marxism and the interpretation of culture:

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ANÁLISE DO DISCURSO E A PERSPECTIVA COM A NOVA HISTÓRIA

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limits, frontiers, boundaries, em julho de 1983. Assim, ‚os novos direcionamentos indicados por Courtine (1981) e as reflexões de Pêcheux (1983b) inscrevem a história no interior dos discursos e não mais na exterioridade linguística‛ (Sargentini, 2010, p. 98). Com isso, a história comporta-se como ‚regularidade específica‛ de todo e qualquer discurso, legitimando-o, e, mais, possibilita a posição identitária dos sujeitos (Foucault, [1969]2008, p. 145). O ensinamento de Foucault [1969], enfim, exige, ao fazer científico, tratar – como método – o aparato histórico em toda análise, para, assim, ela ter identificação singular, original, autêntica, veraz na dispersão da materialidade discursiva. Em outro artigo, Sargentini (2004, p. 84) aponta que Foucault ‚questiona na história o estudo dos longos períodos, os encadeamentos e seqüências necessárias entre os acontecimentos‛ e ‚opõe-se [...] a toda continuidade irrefletida‛. Nesse estudo, destacam-se as reflexões de Foucault acerca da descontinuidade e a Escola dos Annales, com a sua importância. A Nova História, pelos seus postulados sobre o rompimento da cronologia e da sucessão temporal, por intermédio de termos como ‘momento’, ‘singularidade’, ‘acontecimento’ fortalecem sua renúncia com a História Tradicional. Deu-se, também, com base na evolução da física, da matemática e da química quânticas, o rompimento da exatidão absoluta dos resultados quantitativos. Por exemplo, a teoria quântica demonstrou, nas ciências exatas, o fato da probabilidade e de aproximações de resultados sobrepor-se à tendência de determinar com exatidão os resultados quantitativos. Além disso, ao lado de outros conceitos, como de velocidade, de espaço, de aceleração, de distância, etc. ‚A época atual seria talvez de preferência a época do espaço. Estamos na época do simultâneo, época da justaposição, do próximo e do longínquo, do lado a lado, do disperso‛ (Foucault, 2001, p. 414). Nesse contexto, a exatidão é superada pelas descontinuidades e pelas somas inexatas de aspectos, assim permitindo mudanças não só entre a totalidade e o relativo, o equilíbrio e a oscilação, a lembrança e o esquecimento, mas também entre a força do tempo e a força do espaço, ainda, entre a forma do homem e a forma do animal. Para isso, os percursos teóricos e metodológicos para análise do processo serão estudados, a partir de Foucault (apud Gregolin, 2004), obedecendo à seguinte abordagem:

Análise do discurso & vitimologia: memória(s) de tráfico de drogas

a) o crime tráfico de drogas se produz em um emaranhado de descontinuidades históricas e em determinada duração; b) a memória (ir)rompe-se na História; e c) as (micro)relações de poder cristalizam sujeitos em determinados sujeitos (religiosos, midiáticos, jurídicos, civis, militares, etc.). Os percursos estudados se darão em alianças entre corpo e olhar, escuta e voz no relato5 do acontecimento de traficância em uma cidade ‚dos pampas‛, atravessada pela jovialidade, em noite estrelada de novembro de 2003. PROCESSO PENAL: criminologia ou vitimologia?

Lembrar os relatos como orais e monumentalizados no documento processo-crime ou processo penal. Disso, sublime-se que cada sujeito fala de um lugar e posiciona-se de determinada forma-sujeito, rememorando termo de Pêcheux ([1975]1995). 5

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Ao tratar de processo penal crime tráfico de drogas, aponta-se uma questão instigante a ser feita, pela razão da especificidade desse campo do direito penal. Pelo funcionamento discursivo-jurídico da Defensoria Pública Brasileira hoje, os sujeitos envolvidos no crime das drogas, seja em tráfico ou em situação de uso, são eles vítimas ou criminosos? Usuários ou traficantes? Dependentes, consumidores, viciados ou comerciantes? Entre tratar a vitimologia ou a criminologia, a mudança no paradigma interpretativo é para dois aspectos centrais, o da norma e o da razão. Dois pontos principais para argumentos, defesas, acusações e sentenças. Ainda que se admita, por muitos profissionais do direito, não haver diferenças entre as espécies normativas, alguns, porém, afirmam a necessidade de envidar esforços para a aplicabilidade e a efetividade das normas, sem conflitá-las, razão relevante à delimitação dos critérios estabelecidos já em Códigos, Constituição, etc., e a não contradição em práticas processuais. Com isso, o tratamento interpretativo no processo jurídico envolve a avaliação. Avaliar pessoas, crianças, famílias, comércios, energia elétrica, utilidades públicas, saneamento básico, lugares como o morro, a casa, o ‚barraco‛, as ruas e avenidas, as rodovias, a escola, etc. que estão presentes à prática de tráfico de drogas. Para leigos ou para especialistas, a situação é agravar a punição. É tirar cidadãos criminosos do meio social. Todavia, a legislação penal brasileira apresenta-se em seu quadro problemático. O que ainda não é percebido é a dimensão social exercida quando se concebe o tráfico como fonte de trabalho e de sobrevivência econômica. Tanto essa

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realidade é existente que duas constatações daí resultam: (i.) a defesa do denunciado de tráfico de drogas se pauta no direito de liberdade, de sobrevivência, de responsabilidades civis; e (ii.) a inexistência de legislação severa frente a crime de tráfico de maconha. Por não se tratar de produto químico, causando menos danos ao indivíduo, segundo estudos das ciências da saúde, a acusação sofre dominação de argumentos de tal ordem, pela defesa, levando ao enfraquecimento processual e punitivo, o que acarreta abertura para o aumento substancial da prática de tráfico de maconha. O FATO DELITUOSO E A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA A seguir, faremos análises de enunciados da memória construída do crime, descrevendo-os por sequências discursivas (sdr) materializadas pela produção escrita do escrivão. As sdr constroem a memória do acontecimento6 tráfico de drogas em que três denunciados serão incitados aos depoimentos, momentos para a confissão, ou não, da prática criminosa. Levaremos em consideração, desde já, o flagrante dado nessa prática por policiais em serviço. O enunciado (1) insere-se no interior da sdr construída intradiscursivamente em contexto de formulação do Fato Delituoso, após relato dos réus presos em flagrantes e dos policiais autores da prisão, pelo escrivão. A formulação tem uma relação particular uma vez dada em situação de diálogo, de depoimento, momento em que sujeitos são interrogados pelo acontecido (podem ser os policiais, ou até mesmo os denunciados, que, geralmente, só serão depoentes posterior consulta/contato com o advogado7). Os policiais e os sujeitos denunciados respondem às questões formuladas pelo Delegado de Polícia e o escrivão registra em forma escrita o oralizado. Como demonstra (1), enunciado extraído do corpus ‘Fato Delituoso’:

Aqui, acontecimento será compreendido como um acontecido inscrito na história do cotidiano, um fato, uma prática criminosa, um ato como tráfico; diferentemente da noção de acontecimento discursivo – de Pêcheux – que trabalhamos nesta pesquisa. 7 O contato/consulta é de direito de todo sujeito em situação de denunciado, preso, réu. É de opção do sujeito a escolha entre representante público (defensor público) ou particular (advogado/procurador).

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[FATO DELITUOSO] (1) Em data não precisada, mas anterior a 18 de novembro de 2003, em cidade tal/RS, os denunciados ‚X‛, ‚Y‛ e ‚Z‛ associaram-se para o fim de praticarem, reiteradamente, o crime previsto no artigo 12 da Lei nº 6.368/76, congregando esforços e vontades na obtenção e distribuição onerosa de ‘Cannabis sativa‛ entre usuários e outros fornecedores desta cidade, sendo que, no transporte das substâncias entorpecentes comercializadas, serviam-se, usualmente, de um veículo marca tal, com placas tal, transitando com ele na calada da noite, para não gerarem suspeitas. (grifos meus em negrito).

Nesse recorte [R1], temos a memória discursiva do sujeito escrivão sobre o tráfico de drogas na cidade, cuja interferência se materializa na construção do texto – seção Fato Delituoso – do processo penal. Assim, desde o início da produção escrita, há um trajeto dado para a fabricação dos sentidos. O texto construído aponta direcionamentos discursivos. Nas formulações do enunciado (1), que se inserem nas sequências discursivas constituídas pelo texto/seção (rito/auto processual), temos uma situação de enunciação determinada: combinação para a realização do tráfico. Em (1), as formulações abaixo localizam a formação discursiva (FD) dominante no processo discursivo na FD ‚tráfico‛:

Dessa situação, visualiza-se o efeito de memória do escrivão sobre dois eixos do discurso: o eixo horizontal e o eixo vertical, segundo Courtine ([1981]2009). No primeiro, a relação do intradiscurso estabelece o trabalho da estrutura, do sistema, dos elementos léxico-sintáticos disponíveis paradigmaticamente (elementos de um estado de língua [classes gramaticais, sinonímia, etc.]), materializados em uma cadeia sintagmática. No segundo, a relação interdiscursiva está no eixo da história, do acontecimento, no lugar de possíveis atravessamentos (inter-)discursivos específicos, de mesmas ou distintas formações discursivas, na própria FD dominante. Dos dois eixos deriva o discurso como relação da língua com a história.

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(1.1) associaram-se para o fim de praticarem, reiteradamente... (1.2) congregando esforços e vontades na obtenção e distribuição onerosa de ‘Cannabis sativa‛ entre usuários e outros fornecedores (1.3) transitando com ele na calada da noite

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Há, assim, para Pêcheux ([1983]2002), a ordem da língua (a estrutura) e a ordem do discurso (o acontecimento). O efeito de memória é materializado na atualização do acontecimento. A cada efeito, resultado de um processo de formulações, evidenciam-se sentidos de memória que significam, representam-se como efeito no intradiscurso. O efeito resulta, ainda, de espaços discursivos que autorizam a circulação do dizer, que têm em comum alguns pontos relativamente estáveis (aqueles evidenciados por certa área, domínio de saber8). Circulam os sentidos implicados desse ‚efeito‛. Em (2) (fragmento exposto a seguir), o efeito de memória está inscrito novamente na transição de verbo (cf. 1.1) para substantivo feminino no termo ‚a associação‛, como os denunciados terem se organizado para ocorrer em tráfico, sendo-os um grupo de traficantes. Soa, assim, de tal forma o efeito que os sentidos de tráfico cristalizam-se na formulação (2.3) da sdr ‚transportavam, para vender a terceiros [...]‛. Se considerarmos, uma vez mais, os enunciados (1.1) e (2.1 – em destaque no recorte (2)), como a produção de um efeito de memória que atravessa a enunciação do escrivão, percebemos a formulação (1.1) associaram-se para o fim de praticarem, reiteradamente... reformulada em Inspirados por tal associação (2.1) como forma de repetição de enunciação determinada pelo sentido de tráfico:

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(2) Inspirados por tal associação (2.1), no dia 18 de novembro de 2003, por volta da 01h10min, na BR-386, Km 366, em cidade tal/RS, os denunciados ‚X‛, ‚Y‛ e Z‛ (2.2), sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar, transportavam, para vender a terceiros (2.3), no interior do veículo marca tal, placas ‚tal‛ (RJ), de cor tal, 32 (trinta e dois) tijolos prensados e embalados em filme plástico, contendo, no total, 116,900Kg (cento e dezesseis quilos e novecentos gramas) de ‚Cannabis sativa‛, vulgarmente conhecida como ‚maconha‛, substância entorpecente, que causa dependência física e psíquica, por conter tetraidrocanabinol (2.4), consoante laudo de constatação preliminar da fl. (grifos meus em negrito).

Na formulação (2.4) das sdr do enunciado (2), o contexto intradiscursivo demonstra o encaixamento de uma oração relativa que governa um préconstruído na oração principal. A formulação da conjunção integrante [que],

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Noção de Michel Foucault em Arqueologia do Saber.

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acompanhada de verbo e mais complementos [causa [+] dependência física e psíquica, por conter tetraidrocanabinol], registra a estrutura que indica o campo de saber circulado socialmente por informações de profissionais da saúde em que atesta determinada dependência ao sujeito ser humano. Os complementos nominais [física] e [psíquica] são pré-construídos da área da medicina, conclusão de interdiscurso da farmacologia [da substância tetraidrocanabinol] como discurso transverso, que regem na ordem discursiva do enunciado (2.4) uma FD em defesa de um discurso contra a legalização das drogas no Brasil. Com essa defesa, a FD fortalece discursos da Promotoria Pública e do Poder Judiciário em situação de avaliar os denunciados como criminosos, portanto, réus. Além do mais, a rede discursiva está em emaranhado de formulações como a de que [32 (trinta e dois) tijolos prensados e embalados em filme plástico, contendo, no total, 116, 900 Kg (cento e dezesseis quilos e novecentos gramas) de ‚Cannabis sativa‛, vulgarmente conhecida como ‚maconha‛...+. Assim, os kilogramas são considerados pesados, demonstrando a quantidade como tráfico e não como para mero uso dos denunciados. Dessa forma, automaticamente o caráter de denunciados passa a exercer outro, o de réus. O INTERROGATÓRIO E O ACONTECIMENTO DISCURSIVO Leremos, a seguir: [RECEBIMENTO DA DENÚNCIA, INTERROGATÓRIO E INSTRUÇÃO CRIMINAL] Os réus foram regularmente citados (fl. 78 vº) para o oferecimento de resposta à acusação. Por meio de seu defensor, o réu ‚Z‛ alegou que não praticou os delitos que lhe são imputados (fls. 81/90) (sdr 1); os réus ‚Y‛ e ‚X‛, também por seu defensor, alegaram ser inocentes (fls. 157/158) (sdr 2). O Ministério Público manifestou-se pelo indeferimento dos pedidos defensivos, postulando o recebimento da denúncia (fl. 99 vº e 159 vº).

O réu ‚Y‛ foi interrogado (fls. 228/236), momento em que alegou ser verdadeira em parte a imputação que lhe é feita (sdr 3). Na mesma oportunidade, fo-

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A denúncia foi recebida em 18/12/2003 (fl. 162).

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ram interrogados os réus ‚X‛ e ‚Z‛ (fls. 236/248) que afirmaram não ser verdadeira a imputação que lhes é feita (sdr 4). (Os destaques são nossos).

A partir das sequências discursivas no Interrogatório, verificamos, primeiramente, pela sdr 1, que o réu ‚Z‛ alegou que não praticou os delitos que lhe são imputados, negando o acontecido e até mesmo tracejando o sentido de anulação; os réus ‚Y‛ e ‚X‛ também alegaram ser inocentes – sdr 2, tendo a mesma posição frente ao acontecido. De fato, essas sdr iniciais são declaradas no momento do Recebimento da Denúncia, isto é, antes da instrução criminal dada aos denunciados pelo defensor público. No caso, a decisão por tal defensor foi opção dos três sujeitos denunciados. Dessa maneira podemos notar que, primeiramente, o discurso, pelas sequências discursivas dos réus ‚X‛, ‚Y‛ e ‚Z‛, orienta para a mesma estrutura léxico-sintática: todos os réus serem não praticantes do delito ou inocentes. Essa discursivização como acontecimento discursivo não-delitivo torna opaco o acontecimento histórico criminal [o acontecido], tentando os réus trabalhar novos sentidos a partir dos sentidos produzidos no Fato Delituoso do processo penal, ou seja, tentando materializar o sentido de ‚não delito‛. Assim é tecido um novo e outro sítio de significância, pelos acontecimentos discursivos (tendo em vista suas construções e o regime de seus funcionamentos), fazendo soar novos sentidos, como o de não delito, os quais fazem ressoar os sentidos já-postos: sujeitos não delitivos e, por isso, inocentes. No entanto, em segundo momento, posterior a Instrução Criminal, conforme sdr 3, o réu ‚Y‛ foi interrogado, momento em que alegou ser verdadeira em parte a imputação que estava sendo feita, assim considerando em parte o ‘fato delituoso’. Na mesma oportunidade, foram interrogados os réus ‚X‛ e ‚Z‛, conforme sdr 4, que afirmaram, mais uma vez, não ser verdadeira a imputação que lhes estava sendo feita. Diante do confronto de alegações, portanto, o réu ‚Y‛ optou pela não-repetibilidade da estrutura léxicosintática – alegou que não praticou os delitos que lhe são imputados, enunciando ser verdadeiro em parte o delito. Com base nisso, verificamos que o réu ‚Y‛, quando interrogado, primeiramente, alegou ser inocente. Em segundo momento, o mesmo alegou ser ‚verdadeira em parte a imputação que lhe era feita‛, enquanto os demais réus mantiveram-se com seus discursos: ‚ser não praticante do delito ou inocente‛. Esse segundo momento do réu ‚Y‛ já vem mostrar que há,

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no jogo enunciativo dos réus, efeitos de sentido distintos, assim efeitos de verdade também distintos, consequência das condições de produção diferentes. Condições, estas, em que afetam a repetibilidade ou a nãorepetibilidade do dizer. O deslize na posição sujeito do referido réu põe em encontro, de forma parcial, uma atualização da memória do crime ocorrido, isso pela sdr 3 ter trabalhado discursivamente atravessado por uma suposta transparência de sentido.

Essas sequências discursivas estão em consonância ao que disse o sujeito réu ‚Z‛, no Interrogatório, o que vem beneficiar o resultante na absolvição, dada pelo Juiz. Falar e proliferar os discursos põe o funcionamento enunciativo sob o regime de contar o acontecido. A tarefa de contar algo a alguém ou, ainda, declarar, narrar fatos está para a formulação de algumas proposições aparentemente verdadeiras. Há um combate ‚pela verdade‛ ou, ao menos, ‚em torno da verdade‛ – entendendo-se, mais uma vez, que por verdade não queremos dizer ‚o conjunto das coisas verdadeiras a descobrir ou a fazer aceitar *...+‛, mas ao distinguir o verdadeiro do falso se ‚atribuir efeitos específicos de poder‛ (Foucault, *1979+ 2005, p. 13). Na situação criminal, o ‚aparentemente verdadeiro‛ deve distinguir-se efetivamente do falso, no sentido não de coisas a serem aceitas, mas de coisas oferecidas para experiências ou provas futuras. Para isso, efeitos de poder próprios do jogo enunciativo precisam entrar em cena a fim de que o pensável, as estruturas, e o acontecimento possibilitem a interpretação pela ‚inteligibilidade das lutas, das estratégias, das táticas‛ (Foucault, *1979+ 2005, p. 5). Ao passo de percebermos uma forma de história do fato tráfico de drogas nos possibilita identificarmos a constituição dos saberes e dos discursos sobre tal prática. Assim, é resultante a constituição do sujeito na trama histórica. Por exemplo, o sujeito réu ao enunciar o argumento da carona para resistir à acusação de crime de tráfico, imputando-lhe a identificação de traficante, constitui-se em uma verdade que funciona o mecanismo de saber-poder valer a ideia ‚de carona‛. Em torno dessa verdade, as técnicas e os procedimentos para sua produção é o que fazem formular o estatuto de verdadeiro. Esse estatuto é o responsável por ‚dizer o que funciona como verdadeiro‛ (Foucault, *1979+2005, p. 12).

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O RELATO COMO VOZ DE ESTRATÉGIA

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Entender que o conjunto de enunciados proferidos posterior a sdr – Não, eu peguei carona, tava na praça, ali no chafariz [...] – regula essa produção enunciativa como verdadeira, é entender que o que se torna regime de verdade, a partir do enunciado visto, são as formações de outros discursos povoados em filiações de saberes possíveis por ele mesmo. De modo também que pô-la para circular e funcionar como enunciado induz à reprodução de efeitos de poder. Nesse contexto, o quadro reconstituído da História é memória de verdades. O tudo verdade, como efeito, lá onde aparecem as distinções de tempo, de modo e de pessoas, coloca a verdade em questão de maneira a relativizar determinado ângulo do acontecido. A tentativa é neutralizar a aparência do passado, do próprio fato como já um passado. Os sintagmas nominais e verbais tornam-se encarregados de apagar na estrutura léxicosintática a não-verdade. Logo, temos no processo penal, o réu ‘Z’ como apenas pegara uma carona. No relato, o réu ‘Z’ continua [...] Saiu pra fora do carro e eles nos prenderam, foi isso que aconteceu. [...] Eu acho que sim, não sei, deve ter feito, eu não vi nada. Me prenderam e me trouxeram pra Lajeado. Só isso. Não vi (indagado se viu os policiais fazerem uma revista no veículo). No banco da frente (quanto ao banco em que estava sentado). Não, não vi. Eu entrei no carro, no que já entrei, não deu nenhuma quadra e a Polícia já tava atrás (quando indagado se viu algum pacote dentro do carro). Conheço ele, de vista e conheço ele assim também, ele trabalha num negócio de placa, ele trabalha junto com um primo do meu padrasto (quanto a ‘Y’ *S+). Tava conversando com ele, dei uma parada (quanto a ‘X’ *R.C.+). Conheço ele de vista. Várias vezes eu, de noite eu, de vez em quando eu dou uma caminhada. Não, caminhar, é costume já. [...] Eu queria uma carona, só queria uma carona, eu tava cansado já, e eu queria uma carona pra ponte seca, só isso. [...] Não (quando indagado se é dependente químico). Não, eu bebo bastante, bebo bastante (quando indagado se costuma usar drogas). Droga, às vezes eu fumo um baseado.

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[...] Duas portas (quanto ao Palio em que embarcou). O ‘X’ *R.C.+ ingressou atrás, e eu ingressei na frente do veículo. [...] Ninguém fugiu, nós paramos na hora em que foi parado, nós fomos presos. Ninguém fugiu...‛

O relato de ‚Z‛ argumenta fortemente em direção a ser vítima do fato ocorrido, sustentado pela repetição da afirmação de só queria uma carona, aliás, observa-se que o Juiz seleciona essa mesma sdr no texto de Insurgência: ‚soou como mais verossímil sua alegação de que apenas pegara uma carona‛. O emprego dos advérbios só, e apenas fortalecem, por sua vez, a argumentação de que não houve intenção premeditada de estar naquele carro ou naquela situação, muito menos intenção de dolo9. APELAÇÃO COMO PODER DE DEFESA Pelos enunciados abaixo, o sujeito advogado ativa saberes locais, descontínuos, contra o saber dominado, a cristalização da ciência, do conhecimento verdadeiro, alegando a absolvição de ‚Z‛. Assim, ele demonstra a sua relação com as FDs e a oposição contra a coerção de um discurso teórico, unitário, formal e científico: Recorte 1: [APELAÇÃO] 1. (...) argúi não haver nos autos qualquer elemento de provas para condenar o réu, requerendo a sua absolvição; 2. (...) postula pela revisão da pena imposta, no que diz respeito ao regime integralmente fechado, bem como pelo afastamento da majorante prevista no artigo 18, inciso III, da Lei nº 6.368/76.

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A seguir, vejamos a Insurgência do Ministério Público, em caráter de absolvição ao réu ‚Z‛, sobre a sua condenação pronunciada na Sentença:

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Intenção de realizar a ação criminosa ou delitiva.

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Recorte 2: [INSURGÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO] III) provimento da apelação interposta por DEFENSOR PÚBLICO [M.B.C.], modificando a sentença combatida no que a ele diz respeito, na medida em que resta absolvido com base no artigo 386, inciso VI, do Código de Processo Penal, devendo ser posto imediatamente em liberdade se por al não estiver preso, com a retirada de seu nome do rol dos culpados, sem a incidência de custas;

Em (1) do R1, o sujeito defensor requer a absolvição de seu cliente por declarar não haver provas para condenar o réu, e, em (2), requer a revisão da pena imposta em regime integralmente fechado e o afastamento da majorante. A produção de (1) e (2) e a circulação de seus elementos significantes, ligados à formação de discursos, têm efeitos de poder pelas três especificações: (i.) não há provas; (ii.) pede-se para revisar a pena, e (iii.) pede-se para afastar a majorante. Essa produção e circulação apresentam a dominação dos meios de coação e a rejeição de atitudes impostas pela Sentença, entendidas como o efeito de um consentimento. Tal relação de poder é um modo de ação que age sobre essa própria ação enunciativa (Foucault, 1995). Nesse contexto, (1) e (2) são enunciados estratégicos para se chegar a um fim, a um objetivo: a absolvição. Esse fim é a ação de vantagem sobre o outro, podendo ser uma vitória. No caso do defensor, as três especificações acima funcionam como mecanismos argumentativos, haja vista o efeito imperativo: revisar a pena e afastar a majorante por não haver provas. Desse modo, vemos que cabem, ao ritual jurídico, formas jurídicas em que haja estratégias de confronto, a ser encaminhada pelo defensor, por exemplo, com o objetivo da não condenação do seu cliente, mais, a não reclusão carcerária.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS A construção para o sucesso de absolvição penal se dá pela materialidade da linguagem, pelo linguístico e pelo histórico, inseparáveis no campo do discurso, resultando em amostragem de sujeitos réus determinados por sentidos de inocência. O que determina um sentido e não outro, ou o que determina uma dada significância e não outra, nas relações discursivas de defensoria modernas, é o atenuante da vitimologia. Discursivizar o sujeito traficante como vítima da esfera social, de acentuada problemática brasileira pela intensificação do consumo de drogas, estabelece a existência de sujeitos drogados, dependentes, usuários, consumidores. Essa foi a

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1) Em R1 do Fato Delituoso, o enunciado demonstrou os sentidos e o interdiscurso acionados pela memória discursiva do escrivão, influenciando a construção enunciativa do fato delitivo em tráfico de maconha; 2) As sdr dos réus confrontaram-se no segundo momento do Interrogatório, evidenciando os sentidos da Instrução Criminal dirigida pelo Defensor Público; 3) A sdr do réu ‚Z‛ construiu, ao menos, duas declarações que construíram o tracejo de sentidos em prol da absolvição: a) pegara apenas/só uma carona até o local de acesso ao Alto do Parque, local em que o réu queria ir; e b) ‚verdadeira em parte a imputação que lhe estava sendo feita‛, assim, a formulação funcionou como efeito de verdade;

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forma de deslizar o SENTIDO DE TRAFICÂNCIA para o SENTIDO DE USUÁRIO, com a consequência de apagar a identidade de traficantes dos três sujeitos envolvidos no crime de tráfico de maconha. Do trabalho do sentido, o deslizamento e o apagamento da história e do crime vivido pelos envolvidos, soou como uma inversão na construção de suas identidades, vitimizando-os. Pelo emprego de atenuadores linguísticos como ‘apenas’, ‘só’, ‘em parte’ se deu essa prática de suavização. Ainda pela associação com uma memória discursiva que circula na sociedade atual sobre o que é ser usuário de drogas em oposição ao ser traficante. Tal fato coloca o usuário e o traficante em FDs de oposição. A significação discursiva das novas formas do discurso jurídico (imperar revisões de pena, elaborar argumentos que fragilizam a objetividade e a razão, elaborar estratégias de confronto com efeito de verdade, construir sentidos sobredeterminando outras FDs) tem êxito pela enunciabilidade, formulada por conjunto de enunciados, de um sujeito defensor estratégico. Emaranhado em diversas estratégias, ele atomiza a precisão de que as palavras já signifiquem para que elas façam sentidos. Diante do simbólico e do imaginário, o sujeito defensor é instado a dar sentido, a significar, não por se tratar simplesmente das regras pelas regras em mesmo ritual jurídico, mas por advir passos estratégicos, elucidar seu papel profissional que envolve o confronto das acusações, o desacordo com a sentença, o direito de apelação. Elencamos, em síntese, algumas das contribuições consideradas no decorrer do trabalho:

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4) A sdr na Insurgência do Defensor Público e na sua Apelação [R1] demonstrou a FD que levou à autorização da absolvição do réu ‚Z‛ *R2+ e impediu discursos de culpabilidade e punição, elencados na determinação de condenação na Sentença; 5) A posição identitária de caroneiro acionou sentidos relativos à representatividade de drogado, usuário, dependente, consumidor; 6) A Defensoria Pública Brasileira formulou discursos constituindo sentidos de vitimologia, dessa forma, enfraquecendo mecanismos de criminologia. Por fim, destacamos o movimento da noção de memória discursiva para mostrar a relação de interdiscursos presentes na materialidade linguística, registrando-os na estrutura sob a(s) (des)ordem(ns) discursiva(s). A enunciação da escrita do escrivão construiu o fato do crime de tráfico de maconha sob a ótica da significação da memória discursiva. Ela é constituída por imagens, argumentos, críticas, exemplos, discursos veiculados no cenário midiático e cultural. Sabemos, sobretudo, do acionamento da memória para lembrar fatos e torná-los discursivizados. Diante disso, vimos o funcionamento das sdr de acusação e de defesa em embate.

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Lucas do Nascimento

PARTE II

ESTUDOS do e reflexões

discurso

ANALÍTICAS

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PARTE II

POR uma VIDA

melhor da/na MÍDIA:12 uma leitura discursiva3 Há histórias tão verdadeiras [na mídia] que às vezes parece que são [re]inventadas [pela própria mídia]... Manoel de Barros

NOTAS PROMISSÓRIAS...

E

xistem alguns aspectos que nos parecem importante de mencionar antes de adentrar de fato os objetivos desse artigo. A discussão acerca do livro, Por uma vida melhor, em que uma das mãos que esquadrinham a pena autoral pertence à Heloísa Ramos, tal como foi posta a circular, permite relatar dois extratos importantes. Um para o bem e outro para o mal.

Doutor pela UNESP (Araraquara). Prof. Dr. do Departamento de Letras e do PPPGL/UFSCar. [email protected] 2 Mestre pelo PPGL/UFSCar. Doutorando pelo PPGL/UFSCar. Bolsista FAPESP. Ribeirão Preto - SP. Pesquisador do LEEDIM. [email protected] 3 Uma versão bastante modificada deste texto foi objeto de comunicação oral durante o I Ateliê de Estudos Discursivos da UFMT, realizado no período de 19 a 20 de agosto de 2011 no Campus da Universidade Federal de Mato Grosso em Cuiabá – MT. 1

Roberto Lesier BARONAS1 & Samuel PONSONI2

cinco

Roberto Leiser Baronas & Samuel Ponsoni

A parte boa trata de trazer à superfície discussões sobre educação, movimentações político-sociais em palestras, mesas-redondas, atos públicos, artigos de especialistas em ciência da linguagem (linguistas) e em ensinoaprendizagem(educadores) – embora possam coincidir ambos os sujeitos teóricos – e, principalmente, a contribuição de teoria e pesquisadores da línguística para a pedagogia de ensino de línguas, pois, de maneira geral, a inserção social de grande alcance, seja pela mídia, seja pelo conhecimento escolar ou pelo conhecimento cotidiano, é bastante dificultosa, ainda que nos meios acadêmicos a linguística tenha grande alcance e relativa estabilidade, no Brasil e no mundo. A parte ruim é o tratamento que comumente é dado pela mídia a alguns fatos que acontecem em nossa sociedade. Sobre essa segunda parte, ergueremos nossa argumentação neste texto. Todavia, nos alinhando ao cavaleiro das causas perdidas de Borges ou enfrentando, quixotescamente, os moinhos de ventos, insistiremos um pouco mais na parte boa, ao debater em alguma medida questões tributárias a essas, mas não deixando de sulcar a parte ruim, com seu direcionamento nocivo a um debate mais franco, justo e necessário. FUNDAMENTAÇÃO E JUSTIFICATIVAS

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Para levar a cabo nossas hipóteses e objetivos com este singelo artigo, apresentaremos alguns aspectos atinados à argumentação, organização e construção de certo trajeto4 interpretativo deôntico, a partir dos conceitos de destacabilidade, de sobreasseveração e de aforização, forjados majoritariamente por Dominique Maingueneau (2006), que tentaremos apreender dos enunciados que foram postos a circular para os espectadores de um telejornal brasileiro de grande circulação, qual seja, o Jornal Nacional (adiante, vez ou outra, JN), transmitido pela Rede Globo de Televisão, no horário nobre do sistema televisivo. Ainda sobre o material de análise, admitimos que a escolha se deve ao acaso ou não somente à grande circulação que ele tem – outros veículos também tiveram –, mas a uma certa regularidade no tratamento editorial que foi feita em diversos telejornais da emissora globo. Cremos que o JN O sagaz leitor pode se indagar acerca dos estudos conduzidos brilhantemente por Jacques Guilhaumou com o consagrado caso do trajeto temático feito em corporas retirados de textos jornalísticos tratando das temáticas linguísticas que compõem a Revolução Francesa, como a clássica observação sobre os sintagmas Pão e Liberdade, Pão e Ferro etc. 4

se constituiu numa espécie de representação metonímica do que a mídia brasileira produziu a respeito do livro didático Por uma vida melhor. Ao prosseguir, esbarramos num primeiro problema para perscrutar, pois, em nosso entendimento, há duas maneiras básicas de pesquisar sobre a questão da leitura. Uma tem a ver com decifração, em outras palavras, técnicas, métodos, teorias que permitiriam a um leitor ter acesso aos sentidos dos textos elencados para compreensão – verdadeiros, profundos, corretos ... –, dependendo das crenças teóricas ou do que se busca, considerando, ainda nesse sentido, o campo – jurídico, religioso, filosófico, literário, técnico, comercial, publicitário et cetera– e o tipo de texto. Outro problema que se coloca concerne à circulação. Disso, poderia resultar perguntas tais como: quais textos circulam em quais lugares? Quem os lê ou lê o quê (nos diferentes séculos, nas escolas, na Internet; o que se vende em bancas, em livrarias de aeroporto etc.)? Uma subdivisão desse tema põe outra pergunta: como certos textos circulam – inteiros, aos pedaços, adaptados, em edições originais, traduzidos? E mais: por que, de um texto integral, frequentemente circulam apenas partes – estrofes, versos, finais, começos, pontos culminantes? E como isso interfere na produção de determinados percursos interpretativo-compreensivos deônticos. De todo o imbróglio, há de se ressaltar a mobilização dos linguistas ao ensejar suas vozes contra as críticas pouco fundamentadas acerca do trabalho do livro, bem como da contribuição da ciência da linguagem para o ensino de línguas. Todavia, a maior parte dos trabalhos busca, pelo menos em sua parte principal de argumentação, a compreensão e a explicação para o porquê de o livro didático abordar tais questões de língua em seu conteúdo. Portanto, há trabalhos que abordam mais de um ponto de vista sociolinguístico, cognitivista entre outros. Os trabalhos que buscam uma compreensão mais discursiva do fenômeno, praticamente não foram realizados. Assim, nosso trabalho evocará o campo epistemológico da Análise do Discurso de orientação francesa (adiante AD). Para isso, nosso trabalho se valerá sobre tudo dos elementos linguísticos que permeiam o terreno teórico em que está fundado a AD. Nelson Rodrigues indagava a necessidade de saber enxergar o óbvio, logo a pergunta que se segue pode parecer, mas parece-nos primordial: Afinal, para AD, o que significa discurso? Então, respondendo a essa pergunta, diríamos que discurso para a AD está ligado à manifestação e à materialização ideológica dos modos de

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Roberto Leiser Baronas & Samuel Ponsoni

produções e organização sociais na materialidade linguística, textual. E isso se marca por meio de e como os efeitos linguísticos se inscrevem na história e no mesmo processo como a história se materializa no linguístico. No entanto, essa história vem de longa data, iniciando-se com os trabalhos fundadores de Michel Pêcheux, em seu texto Análise automática do discurso, no final dos anos 1960, em que as pesquisas linguísticas de base estrutural já não mais atendiam aos anseios científicos de se (re)conhecer sujeitos e ideologias que falavam nos textos por meio da linguagem. Pode-se dizer que dessa fase tática inicial a AD se desdobrou em três vertentes basicamente: 1) Linguístico-enunciativa a qual busca compreender a presença/ausência do alhures, do já dito, do interdiscurso no fio do discurso, no intradiscurso. Parece-nos que aqueles que melhor representam essa vertente são Michel Pêcheux e Jacqueline Authier-Revuz. 2) Histórica em que se tenta compreender as condições de emergência dos discursos. Apontaríamos aqui pensadores tais como Michel Foucault, Jacques Guilhaumou, Jean Marie Marandin e Jean-Jacques Courtine. 3) Pragmática perscruta em compreender as razões pelas quais determinadas interpretações e não outras circulam na sociedade. Destacaríamos, aqui, pesquisadores como Simone Bonnafous, Dominique Maingueneau, Sophie Moirand e Alice Krieg-Planque. É, portanto, dessa terceira vertente que inscrevemos nosso artigo, pois a circulação que se sucedeu acerca do livro Por uma vida melhor foi crucial para um trajeto interpretativo-compreensivo, dado de maneira deôntico, aos espectadores do Jornal Nacional em matéria que mobilizamos para análise.

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QUESTÕES SOBRE CITAÇÃO, DESTACABILIDADE, SOBREASSEAVERAÇÃO E AFORIZAÇÃO A questão de se utilizar de discursos citados para representar em algumas instâncias a fala de um outro que não o próprio locutor encontra grande alcance heurístico, se preferirem, no escopo de estudo da linguística. A noção tripartite de discurso direto, discurso indireto e discurso indireto livre não são suficientemente esclarecedoras, uma vez que, com as diversas frinchas

teóricas criadas pelas pesquisas da linguística moderna, foi possível notar outras formas de trazer a voz de outros locutores ao cerne das enunciações. Entre as múltiplas formas teórico-metodológicas de se pesquisar em linguística – sobretudo em estudos de texto e discurso – dois autores se destacam: a) Bakhtin, que mobiliza os casos de citação (direta, indireta, indireta livre etc.) para pensar a compreensão do outro na construção das palavras de um eu, a partir do embate enunciativo-ideológico da vida cotidiana; b) Jacqueline Authier-Revuz, que, em muito tributária às teorias de Bakhtin, porém entrecruzando outros elementos linguístico-psicanalítico, fundamenta por meio das citações diretas e indiretas, alusões, glosas, comentários, a presença do outro/Outro na concepção de eu/Eu do discurso. Em Maingueneau (2006; 2008; 2010a), a problemática da citação é tratada de forma bastante diferente tanto da visada bakhtiniana, a qual se inscreve em suas problemáticas da filosofia da linguagem, quanto da abordagem discursiva de Authier-Revuz, em que a compreensão do Outro interdiscursivo que emerge ou se apaga nos fios discursivos dos sujeitos é bastante importante, pois, para esse autor francês, tratar da citação implica notar também a questão da destacabilidade de enunciados. O “destacamento” dos enunciados não se dá somente a partir das sequências “destacadas”, mas sim ao se considerar as condições que permitem que enunciados sejam “destacáveis”. Ainda no entendimento de Dominique Maingueneau (2010a), poucas pessoas atualmente contestariam a ideia de que o texto constitui a única realidade empírica sobre a qual se debruça o linguista: unidades como a frase ou a palavra são necessariamente retiradas de textos. O texto é, com efeito, no entendimento do pesquisador francês, a contraparte do gênero do discurso, que é o quadro de toda a comunicação pensável. Maingueneau mobiliza o termo “gênero do discurso” para atividades como registrar o nascimento, o debate televisivo, o sermão, entre outros. Todavia, alguns problemas se põem quando é preciso tratar de enunciados curtos que se apresentam fora do texto, geralmente constituídos de uma única frase. Dominique Maingueneau chama essas pequenas frases de “enunciados destacados”, sendo eles de tipos muito diversos: slogans, máximas, provérbios, títulos de artigos da imprensa, intertítulos, citações célebres etc. Para o estudioso francês, devem-se distinguir duas classes bem diferentes, segundo o seu “destacamento”: a) os constitutivos: trata-se do caso em particular das fórmulas (provérbios, slogans, divisas) que, por sua própria natureza, são independentes de um texto particular; b) os que

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Roberto Leiser Baronas & Samuel Ponsoni

resultam da extração de um fragmento de texto: neste caso, são os que se encontram em uma lógica de citação. Essa extração não se exerce de maneira indiferenciada sobre todos os constituintes de um texto, pois, frequentemente, o enunciador sobreassevera alguns de seus fragmentos e os apresenta como destacáveis. A sobreasseveração é uma modulação de enunciação que habilita formalmente um fragmento como candidato a uma destextualização. Trata-se de uma operação de colocação em relevo por relação ao desenvolvimento textual que se efetua com a ajuda de marcadores diversos: de ordem aspectual (genericidade), tipográfica (posição saliente em uma unidade textual), prosódica (insistência), sintática (construção de uma forma pregnante), semântica (recurso aos tropos), lexical (utilização de conectores de reformulação) etc. No entendimento do teórico do discurso, as divergências entre o enunciado fonte e o enunciado destacado são reveladoras de um estatuto pragmático específico para os enunciados destacados. Esses últimos revelam, com efeito, um regime de enunciação que Maingueneau propõe chamar “enunciação aforizante”. Entre uma “aforização” e um texto não existe uma diferença de tamanho, de forma, de sistematicidade linguística, mas de ordem enunciativa. O esquema a seguir exemplifica as duas ordens discursivas propostas por Maingueneau: ENUNCIAÇÃO

Aforizante

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Destacada por natureza

Textualizante

Destacada de um texto

Figura 1: Esquema vetorial das ordens discursivas proposto por Maingueneau.

Por uma vida melhor da/na mídia: uma leitura discursiva

Para Maingueneau, a enunciação se organiza em duas ordens do enunciável: a enunciação textualizante e a enunciação aforizante. Esta última, por sua vez, se organiza em enunciação aforizante destacada por natureza e enunciação aforizante destacada de um texto. No entendimento de Dominique Maingueneau, por meio da aforização, o locutor se coloca além dos limites específicos de um determinado gênero do discurso: O « aforizador » assume o ethos do locutor que fala do alto, de um indivíduo em contato com uma Fonte transcendente, ele não se endereça a um interlocutor colocado no mesmo plano que ele e que pode responder, mas a um auditório universal. Ele é instado a enunciar a sua verdade, que prescinde de toda a negociação, exprimindo uma totalidade vivida: seja uma doutrina ou uma certa concepção de existência. Por intermédio da aforização vemos coincidir sujeito da enunciação e Sujeito no sentido jurídico e moral: alguém que se coloca como responsável, afirmando valores e princípios diante do mundo, se endereçando a uma comunidade para além dos locutores empíricos que são seus destinatários. (MAINGUENEAU, 2010a, p.14-15)

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Sendo assim, para Maingueneau (2010a), este é o ponto central do problema, “o aforizador não é um locutor, o suporte da enunciação, mas uma consequência do destacamento”, isto é, não se trata apenas de outra instância enunciativa, distinta tanto da do locutor/alocutário quanto da do enunciador/enunciatário. Desse modo, quando se extrai um fragmento de texto para fazer uma aforização, um título de uma matéria na imprensa, por exemplo, converte-se ipso facto seu locutor original em aforizador. Tomemos agora a polêmica acerca do livro didático Por uma vida melhor, de autoria de Heloisa Ramos et. al., destinado aos alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA), no que se referia ao conteúdo de Língua Portuguesa. Aqui, vamos nos deter mais especificamente ao trabalho de destaque realizado pela mídia sobre fragmentos do livro didático, mais especificamente mobilizamos o trabalho realizado pelo Jornal Nacional da Rede Globo de Televisão em reportagem exibida em maio de 2011. Fizemos tal opção pelo fato de o JN ter se constituído numa espécie de representação metonímica do que circulou na grande mídia brasileira acerca desse acontecimento.

Roberto Leiser Baronas & Samuel Ponsoni

Figura 2: Imagem que circulou no Jornal Nacional para representar o livro Por uma vida melhor

Nota-se que o enunciador-jornalista faz o trabalho de destaque em seis enunciados que, retirados de seu cotexto e contexto mais amplo, além de terem sido modificados em relação livro, são postos a circular em outro lugar:

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1: Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado.(igual ao livro p.14); 2: Na variedade popular, basta que (os) esse primeiro termo esteja no plural para indicar mais de um referente. (diferente ao livro p.15); 3: A língua portuguesa admite essa construção(criado pela reportagem); 4: Mas eu posso falar “os livro?”(igual ao livro p.15); 5: Claro que pode. (igual ao livro p.15); 6: Mas fique atento porque, dependendo da situação, você(a pessoa) corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico (diferente ao livro p.15).

Esses enunciados passam a figurar em primeiro plano, em um livro virtual criado computacionalmente, em que o restante do texto é apagado, permanecendo apenas os elementos destacados. Dessa forma, constitui-se um trabalho de aforização, pois nem todos os leitores do JN terão ou tiveram acesso prévio ao conteúdo total do livro. Mais ainda, o que está destacado nos itens 2 e 3 de nosso exemplo não existe, respectivamente, integralmente no material didático Por uma vida melhor. Os enunciados não estão lá, como comprova uma busca simples pelo texto do livro. Ademais, em 2, o pronome pessoal “você” é substituído por “a pessoa”; neste caso, retira-se qualquer marca dêitica que aproxime do trabalho textual completo, algo a parecer estritamente referido a um dado termo anterior, fazendo

uma referência de retomada ou a substituição de um termo já existente. Com efeito, esse movimento de trajeto interpretativo parece inferir que o livro generaliza o uso de uma suposta “forma errada do português”, autorizando essa competência específica não mais um determinado contexto, mas a todas as pessoas que recebem tal texto, em indiferentes tempos e contextos. Em 3, não há em nenhum lugar do capítulo do livro em si a afirmação de que a língua portuguesa admite tal construção, o que marca ainda mais o ato de aforização na edição jornalística. Assim, esse trajeto interpretativo demonstra que não há apenas o trabalho de citação, como no caso dos outros exemplos (1,2,4,5,6), em que os enunciados citados são colocados a circular em outros espaço e podem ganhar alguma marca de distanciamento, como, por exemplo, aspas, uma oração intercalada introduzida por um verbo dicendi mais “que”. Há, sim, nesse caso do livro Por uma vida melhor, o trabalho de aforização que corrobora com o percurso deôntico interpretativo numa dada direção de sentido, qual seja, jogar as asseverações do posicionamento do editorial jornalístico para a responsabilidade da autoria do livro e o quem mantém em seus auspícios. Ainda que isso possa ser dito também em outros casos de citação, quando o enunciador marca seu distanciamento de alguma maneira, no caso da aforização, existe apagamento de elementos para a compreensão “real” do acontecimento. O cotexto e o contexto em que os enunciados foram produzidos, a prévia leitura do material pelos leitores do jornal, a não criação de dados a ser colocados a circular em outro tempo e em outro espaço e, sobretudo, a voz a quem de fato participou da elaboração do material e a clara fronteira de onde entram elementos do editorial e elementos do próprio livro. Por seu turno, o enunciador jornalista se constitui num aforizador que se sobrepõe tanto ao seu leitor quanto ao outro cuja fala recorta, mostrando uma imagem de si, do jornal, bem como um posicionamento. Algo da ordem de um sujeito autorizado a realizar o trabalho de destaque da fala da outro. Trabalho esse que é realizado sob a validação da instituição midiática, no caso, JN, que estabelece valores para além das interações e das argumentações. Trata-se de um trabalho de direcionamento de sentidos, de constituição de subjetividades em que, sem que se dê conta, o leitor é levado a aderir à interpretação do enunciador jornalista e, por extensão, ao posicionamento do veículo midiático no qual esse jornalista está inscrito.

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Por uma vida melhor da/na mídia: uma leitura discursiva

Roberto Leiser Baronas & Samuel Ponsoni

(IN)CONCLUSÕES... Do ponto de vista dos estudos da mídia, o estudo empreendido neste artigo demonstra que atualmente os suportes midiáticos têm um papel de protagonistas na definição dos debates que circulam nos espaços públicos. São esses suportes que efetivamente modelam, definem a pauta do que pode e deve circular enquanto já-dito, dito ou o que ainda vai ser dito, numa determinada sociedade. Assim, por meio da mobilização do conceito de aforização, foi possível “apreender as práticas dos atores políticos e sociais através das diferentes formas de cristalização que seus discursos modelam e põem em circulação” (KRIEG-PLANQUE, A. 2011, p. 2), compreendendo dessa forma a mídia não apenas na sua dimensão interindividual, mas, sobretudo, na sua dimensão institucional e organizacional.

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Por uma vida melhor da/na mídia: uma leitura discursiva

Marcel Burger, Jérôme Jacquin, Raphaël Micheli (éds). Tradução brasileira Roberto Leiser Baronas. “A fórmula desenvolvimento sustentável: um operador de neutralização de conflitos”. In: Revista de Popularização Científica em Ciências da Linguagem – Linguasagem nº 18, São Carlos, SP: www.letras.ufscar.br/linguasagem 2011c. (no prelo para publicação). MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Trad. de Sírio Possenti. Curitiba : Criar Edições, 2005. _______. Les énoncés détachés dans la presse écrite. De la surassertion à l'aphorisation. In: BONHOMME, M. ; LUGRIN, G. (Éds.). Interdiscours et intertextualité dans les médias. Travaux Neuchâtelois de Linguistique, n. 44, septembre 2006. _______. Citação e destacabilidade. In: MAINGUENEAU, D. Cenas da enunciação. Org. Sírio Possenti e Maria Cecília Perez de Souza-e-Silva (Org.). Curitiba: Criar Edições, 2007. _______. Aforização: enunciados sem texto? In: MAINGUENEAU, D. Doze conceitos em análise do discurso. Sírio Possenti e Maria Cecília Perez de Souza-e-Silva (Org.). São Paulo: Parábola Editorial, 2010a. _______. Aphorisations politiques, médias et circulation des énoncés. 2010b. (no prelo para publicação. HELSLOOT, N. et HAK Tony. La contribution de Michel Pêcheux à l'analyse de discours, Langage et société, 2000/1 n° 91

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Roberto Leiser Baronas & Samuel Ponsoni

discurso CONSTITUINTE na MÍDIA:1 algumas possibilidades

INTRODUÇÃO

I

niciaremos este artigo como uma advertência: o objetivo que se propõe é fornecer ao leitor uma amostra do que se pretende desenvolver em uma dissertação de mestrado. O projeto, a saber, procura compreender os discursos sobre o Abuso Sexual Infantil (ou pedofilia) na contemporaneidade. Ancorados pelo entendimento de Donzelot, no livro A polícia das famílias, e de Ariès em História Social da Criança e da Família, notamos que a preocupação com a natureza das relações (principalmente sexuais) entre crianças e adultos teve início nos séculos XVI e XVII juntamente com o conjunto de regras sobre os cuidados durante a infância. Portanto, nosso entendimento é que os textos fundadores da temática se encontram também nesta época. Trabalharemos sobre a perspectiva de que os textos midiáticos constroem enunciações de ‚verdades‛ sobre a pedofilia a partir de Mestre pelo PPGL/UFSCar. São Carlos - SP. Pesquisadora do LEEDIM. [email protected] 1

Andreia Beatriz PEREIRA1

seis

Andreia Beatriz Pereira

textos anteriores, que legitimam esses dizeres. É justamente este movimento de legitimação que tentaremos compreender. Ressaltando este artigo como apenas uma amostra da dissertação, elegemos o conto Chapeuzinho Vermelho por ser um dos textos que primeiro se inscreveu na temática da regulação das relações entre crianças e adultos. Sendo assim, compreenderemos como alguns discursos constituem este conto, e como ambos estão em relação com campanhas publicitárias do XXI. Partindo de conceitos da Análise do Discurso e levando em consideração o estudo da obra de Dominique Maingueneau, especificamente alguns caminhos trilhados por esse autor, nos auxiliariam para desenvolver a pesquisa. Conceitos como discurso constituinte, discurso tópico e discurso atópico forneceram uma compreensão sobre como uma Formação Discursiva sobre a pedofilia pode ser composta tanto por textos científicos quanto por peças publicitárias. Já o estudo das Práticas Intersemióticas nos proporcionou um entendimento sobre a constituição da Formação Discursiva por diversas materialidades textuais. DISCURSO CONSTITUINTE O termo discurso constituinte é, na obra Discurso Literário, de Dominique Maingueneau, como uma propriedade de determinados discursos de administrar as condições de sua própria existência. Os principais representantes dessa modalidade textual são os discursos literário, religioso, filosófico e científico. A proposta de Maingueneau para o estudo dos Discursos Constituintes possibilita um novo olhar sobre os textos com que a Análise do Discurso trabalha em seu corpus de pesquisa:

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Interessar-se pelos discursos constituintes é ir de encontro a uma certa rotina de trabalhos em Análise do Discurso, onde se tem a tendência de privilegiar as interações conversacionais, ou então tipos de discursos como o do discurso publicitário, midiático, político, escolar (Maingueneau, 2008a, p. 37).

Agora será operado um deslocamento nos estudos do discurso. Os tipos de textos citados por Maingueneau terão que compartilhar espaço com os textos que antes eram estudados por outras disciplinas das ciências humanas, como os textos literários e religiosos.

Discurso constituinte na mídia: algumas possibilidades

Notamos ainda que outra característica marcante dos discursos constituintes é sua relação com a comunidade que o produz. Eles são, na maioria das vezes, reflexos de uma organização social em torno de uma prática determinada. Nas palavras de Maingueneau Uma análise da ‚constituência‛ dos discursos constituintes deve concentrar-se em mostrar o vínculo inextricável entre o intradiscurso e o extradiscursivo, a imbricação entre uma organização textual e uma atividade enunciativa (Maingueneau, 2006, p. 62).

Uma hierarquia se instaura entre os textos ‚primeiros‛ e os que se apóiam sobre eles para comentá-los, resumi-los, refutá-los, etc... O discurso constituinte supõe essa interação de regimes diversos, que têm, cada um, um funcionamento específico. (Maingueneau, 2008a, p. 44, grifo nosso)

A dúvida a qual tentaremos trabalhar no próximo tópico se atêm a um fato que não fica claro nas obras consultadas do autor: se um discurso

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Então, se há uma estreita ligação entre a produção dos enunciados e a comunidade que o produz, sempre que o objeto de nosso estudo for um discurso constituinte deveremos levar em conta que ‚todo estudo que se pergunta sobre o modo de emergência, circulação e consumo de discursos constituintes deve dar conta do modo de funcionamento dos grupos que os produzem e gerem‛ (Maingueneau, 2006, p.69). Também não devemos nos esquecer de que nem sempre os discursos constituintes se posicionam em lados opostos de uma formação discursiva. Isso pode acontecer mesmo que eles tenham sido produzidos em grupos sociais diferentes. Ocorre que grupos distintos, como aqueles que produzem enunciados científicos e religiosos, podem se posicionar de forma semelhante no que diz respeito a determinados assuntos e de forma diferente no que tange a outros. Isso nos leva ainda a mais uma conclusão: sempre que se levar em conta o estudo de discursos constituintes, não devemos tomar como ‚já dito‛ que suas enunciações partem de pontos de vista antagônicos. Ainda, os discursos constituintes, além de constituir a si próprios, são participantes da constituição de outros discursos. Assim, um texto religioso, além de criar as condições de sua própria existência, que tornarão seus enunciados legítimos, deve também legitimar outros textos, que, partindo dele, serão postos em circulação na mesma comunidade discursiva, pois

Andreia Beatriz Pereira

constituinte é comentado, resumido, refutado, as produções que se derivam dele não pertenceriam mais ao quadro dos discursos constituintes, pois, tendo um caráter dependente dos mesmos, não são capazes de criar as possibilidades de sua própria existência. Poderíamos, então, considerálas como discursos tópicos? Os discursos constituintes são discursos que conferem sentido aos atos da coletividade, sendo em verdade os garantes de múltiplos gêneros do discurso [...] são a um só tempo, autoconstituintes e heteroconstituintes, duas faces que se pressupõem mutuamente: só um discurso que se constitui ao tematizar sua própria constituição pode desempenhar um papel constituinte com relação a outros discursos (Maingueneau, 2006, p. 61).

Dessa forma, encontramos duas possibilidades de conclusão: na primeira, os textos que refutam, resumem, etc., os discursos constituintes seriam também discursos constituintes; na segunda, eles seriam aquilo a que denominamos discursos tópicos. No próximo tópico, tentaremos definir o que entendemos por discurso tópico. DISCURSO TÓPICO E OS TROPISMOS Trata-se aqui de tentar elaborar algumas considerações sobre o modo de funcionamento dos textos que a análise do discurso primeiro trabalhou como corpus de pesquisa: os discursos publicitário, midiático, político, escolar. Nas obras pesquisadas, encontramos algumas orientações acerca dos discursos que não se enquadram na categoria de discursos constituintes. No artigo intitulado Além da paratopia, Maingueneau aborda três outras variantes discursivas: a Atopia (que será tratada no próximo item), o Tropismo e aquilo que é chamado de Mimotópico. Nas palavras deste autor,

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somos naturalmente levados a fazer uma distinção implícita entre os discursos paratópicos – os discursos constituintes – e os discursos ‚tópicos‛, ou seja, o resto da produção discursiva da sociedade (Maingueneau, 2008b, p. 13).

Compreendemos que ‚resto da produção discursiva da sociedade‛ é uma expressão complicada, pois não é possível compreender por meio dela quais são as características mais particulares desses discursos. Entretanto, podemos começar a delinear o que seriam os tropismos por meio das

Discurso constituinte na mídia: algumas possibilidades

observações feitas sobre o discurso político: ele nos mostra que este discurso não pode pertencer ao quadro dos discursos constituintes, uma vez que suas características não o autorizam a se firmar enquanto um discurso que se autolegitima. Ainda para definir esses discursos não constituintes, Maingueneau discorre sobre um conjunto de práticas chamado ‚sombras‛: tem-se pela frente um conjunto de práticas discursivas que implicam uma distinção essencial entre discursos primeiros [...] e discursos segundos assumidos pelos especialistas que os comentam [...] me parece que uma teoria dos discursos constituintes deveria levar em conta esse tipo de fenômeno, que seria preciso elaborar o que se poderia chamar de uma teoria das ‘sombras’ dos discursos constituintes (Maingueneau, 2008 b, p. 15-16).

Logo, compreendemos que algumas práticas discursivas que não são constituintes estão orientadas em direção aos discursos constituintes. Essa orientação, a nosso ver, seria como uma dependência, pois a existência do discurso constituinte é primordial para que exista um outro discurso que se apóie nele. Por esses dois conjuntos de fenômenos – as praticas discursivas atadas ao político ou às ‘sombras’ – poderíamos falar de relação ‘tropismo’ com relação aos discursos constituintes. Mas pode-se distinguir o tropismo global do discurso político, que tem a pretensão te tocar o conjunto da coletividade, e os tropismos restritos das ‘sombras’ (Maingueneau, 2008 b, p. 16).

Esta pequena exposição que agora fizemos não deve ser estendida à publicidade. Para ela, Maingueneau coloca uma outra categoria, a dos discursos Mimotópicos, palavra que imaginamos derivar de mimetismo, ou seja, a capacidade de adaptar-se a condições determinadas e passar despercebido. Para o autor, a publicidade é um discurso que tem a capacidade de se camuflar em outras formas de textos, que não necessariamente aparentam ser propagandas. Após as pequenas definições que fizemos sobre os discursos constituintes e tópicos, resta-nos, agora, fazer sobre o discurso atópico.

No discurso constituinte, a principal característica era a paratopia, ou seja, o seu pertencimento ao conjunto das práticas enunciativas era pro-

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DISCURSO ATÓPICO

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blemático, visto que seu autor deveria tentar posicionar-se ao mesmo tempo dentro e fora da sociedade. Tendo em vista que por associação definimos que o discurso tópico encontra seu pertencimento sempre dentro da sociedade, o discurso atópico assume uma outra característica: ele está sempre fora da sociedade, uma vez aqueles que se envolvem em sua produção e em seu consumo estarem sempre às margens da sociedade. Nesse sentido, Não têm dependência funcional problemática no espaço social: é uma produção tolerada, clandestina, noturna, que se insinua nos interstício do espaço social. A produção pornográfica é superabundante, o consumo não é menor, mas os produtores ou os consumidores são sempre os outros (Maingueneau, 2008b, p. 16).

Fazendo um paralelo entre os três tipos de discurso, podemos concluir, pelo ponto de vista do pertencimento, que o primeiro deles é o mais problemático, por ter que se situar dentro e fora ao mesmo tempo. Quanto aos outros dois, estão de um lado ou do outro desta fronteira imaginária.

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AS PRÁTICAS INTERSEMIÓTICAS Pretendemos observar se estes textos se inscrevem em uma prática discursiva determinada. Isto por que, como vimos, ‚convencionaremos chamar de ‘textos’ os diversos tipos de produções semióticas que pertencem a uma prática discursiva‛ (Maingueneau, 2008, p. 139). Assim, deveremos pensar que os textos que circulam em nossa sociedade, quando tratam de um mesmo tema e independente de sua materialidade e de seu suporte, podem se inscrever nas mesmas formações discursivas. Nas palavras do autor, ‚Os diversos suportes semióticos não são independentes uns dos outros, estando submetidos às mesmas escansões históricas, às mesmas restrições temáticas, etc...‛ (Maingueneau, 2008, p. 138). meio Haveríamos de compreender, então, como encontrar os elementos que pertencem à mesma semântica global de uma formação discursiva determinada, para as materialidades que são diferentes da escrita e da fala. Como a imagem se constitui em uma linguagem própria, é por dela que trabalharemos os elementos de pertencimento à Formação Discursiva. Parece-nos que o próprio autor nos dá uma resposta no que diz respeito à imagem. No capitulo 6 do livro Gênese do Discurso, ele diz que:

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O que faz imagens enquanto texto é que, para comunicar algo, muitas vezes, elas são o produto de uma composição, o fruto do trabalho de seus autores. Seja pela escolha do tema, dos objetos, das cores, tudo na imagem é pensado para fazê-la significar. Sendo assim, torna-se necessário, para analisar o texto imagético, que consigamos entender os elementos do texto: o plano, a montagem e o enquadramento, por exemplo. Tendo posto isto, procuraremos (algumas vezes por meio de analogias) demonstrar como compreendemos o que deve ser a Análise do Discurso de um arquivo imagético. A análise do discurso de textos escritos pressupõe que se demonstre a utilização de um adjetivo, de um tempo verbal, etc., como responsável por poder provocar determinados efeitos de sentido, poder ativar efeitos de memória e determinar certas significações. Por agora, devemos explicitar que um texto imagético não é apenas um aglomerado de imagens ou apenas uma imagem sozinha: um texto imagético é um conjunto de elementos que somados produzem o efeito ‚imagem‛: são as cores, as formas, as texturas, os enquadramentos, os ângulos que, no texto imagético, tomam o lugar que no texto escrito é ocupado pela palavra. Trata-se de não mais analisar apenas a utilização da palavra no texto imagético (por meio de um slogan, por exemplo), mas de saber como a própria composição da imagem pode ativar determinados efeitos de sentido. Considerando a circulação de textos em nossa sociedade, mesmo que sejam de materialidades diferentes, que podem pertencer a uma mesma formação discursiva, e, ainda, que, como vimos anteriormente, os textos podem ser constituintes, tópicos ou atópicos, tentaremos compreender de que modo os textos do arquivo sobre o Abuso Sexual Infantil enunciam (em partes) uma mesma estória, qual seja o conto Chapeuzinho Vermelho. Buscaremos compreendê-lo enquanto discurso constituinte, para, em seguida, observar de que forma outros textos se utilizaram deste para validar suas enunciações e de que forma essa relação aparece na imagem.

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A depender de se tratar de obras destinadas a tais instituições, a tais lugares, a tais funções [...], o formato, o tema, a escolha das cores, etc... serão afetados, não a título de parâmetros acessórios, mas porque isso se inscreve nas próprias condições de funcionamento da prática discursiva, tanto quanto o didatismo [...]. O texto pictórico, por mais solitário que pareça, pelo simples fato de pertencer a prática discursiva supõe tacitamente um conjunto virtual daqueles com os quais pode ser legitimamente associado (Maingueneau, 2008, p. 141).

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ANÁLISES A partir do texto fundador de combate à pedofilia, o conto A Chapeuzinho Vermelho, entenderemos como um discurso constituinte também se inscreve nas estórias infantis, o que justifica a necessidade de cuidados que deveriam ser tomados nas relações entre crianças e adultos. Nesse sentido, entende-se que O caráter constituinte de um discurso confere a seus enunciados um estatuto particular. Mais que de ‘texto’, e mesmo de ‘obra’, poderíamos falar aqui de inscrições, noção que desfaz toda distinção empírica entre oral e gráfico: inscrever não é forçosamente escrever (Maingueneau, 2006, p. 63).

Em nota de rodapé do livro A psicanálise dos contos de fadas, de Bruno Bettelheim, quando Perrault ‚publicou sua coleção de contos de fadas em 1697, Capinha Vermelha já era uma história antiga, com elementos que remontavam a tempos atrás‛. Ainda segundo o autor, ‚a coleção de contos de fadas dos Irmãos Grimm, que continha a estória de Chapeuzinho Vermelho, apareceu pela primeira vez em 1812 – mais de cem anos depois da publicação de Perrault‛. A versão dos Irmãos Grimm é a mais conhecida, no entanto, trabalharemos com a versão de Perrault, por ser mais antiga, neste artigo. Poderíamos destacar ainda que a popularização do conto Chapeuzinho Vermelho possui características de discursos constituintes, uma vez que

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Todo estudo que se pergunta sobre o modo de emergência, circulação e consumo dos discursos constituintes deve dar conta do modo de funcionamento dos grupos que os produzem e gerem [...] mas, em todos os casos, o posicionamento supõe a existência de comunidades discursivas que partilham de um conjunto de ritos e normas (Maingueneau, 2006, p. 69, grifo nosso).

A comunidade discursiva que encontramos aqui é a mesma comunidade que consome os discursos médicos e religiosos acerca da criança. Assim, o gesto de escrever um conto que já estava inscrito nas práticas sociais da contação de estórias e a forma que este conto ganha na versão de Perrault são um reflexo direto da sociedade daquela época de suas novas práticas: trata-se de uma forma de ensinar o certo e o errado às crianças. Uma vez que conseguimos compreender a inscrição do conto como participação de um conjunto de outros enunciados que visavam a instruir

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tanto adultos quanto crianças dos perigos das práticas sexuais entre ambos, tentaremos, por meio de uma breve análise de nosso corpus, observar de que modo esse mesmo conto é utilizado em peças publicitárias dos anos 2005 a 2008, cuja abordagem ainda é a questão da proibição das práticas sexuais chamadas de pedofilia. Em trecho do livro, vemos a seguinte passagem: – Ponha a torta e o potezinho de manteiga sobre a caixa de pão e venha se deitar comigo. Chapeuzinho Vermelho tirou o vestido e foi para a cama, ficando espantada de ver como sua avó estava diferente ao natural.

Ainda do conto de Perrault, destacaremos o encerramento. Trata-se de um texto chamado MORAL, que explica o conto aos leitores (O conto dos Irmãos Grimm não possuí este trecho):

Destacando estes dois momentos do conto, e tendo o cuidado de não os perder como ponto de orientação, passamos à análise da imagem de divulgação do filme Menina má.com (Hardy Candy, 2005). Consideramos o primeiro texto que conseguimos entender como tópico, perante a um texto constituinte.

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Vimos que os jovens, Principalmente as moças, Lindas, elegantes e educadas, Fazem muito mal em escutar Qualquer tipo de gente, Assim, não será de estranhar Que, por isso, o lobo as devore. Eu digo o lobo porque todos os lobos Não são do mesmo tipo. Existe um que é manhoso Macio, sem fel, sem furor. Fazendo-se de íntimo, gentil e adulador, Persegue as jovens moças Até em suas casas e seus aposentos. Atenção, porém! As que não sabem Que esses lobos melosos De todos eles são os mais perigosos.

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A imagem possuí o fundo cinza, sem margens, delimitando o conteúdo. No alto, centralizado e escrito em vermelho, encontramos o subtítulo do filme: ‚Quer teclar comigo?‛. Abaixo, no centro do cartaz, vemos, em primeiro plano, a foto de uma menina de costas. Ela usa uma jaqueta vermelha, cujo capuz cobre o rosto. Saia listrada, calça leg vermelha, chinelos pretos e bolsa completam a vestimenta da garota. Ela se encontra parada sobre uma armadilha, redonda, de ferro ou outro metal resistente, com as bordas dentadas (para que a presa não consiga escapar). A imagem da armadilha extrapola os limites do quadro, sendo que não é possível ver toda a armadilha. Quanto à parte que podemos ver, notamos a armadilha muito maior que a menina e entendemos que a menina não é a presa, mas, sim, a isca. Sendo que não há obviedade nas relações entre os dois textos (o contrário do que acontece com os dois outros que serão analisados), entendemos que os elementos plásticos que compõe esta imagem são o que mais obviamente a inscrevem numa prática intersemiótica com o conto Chapeuzinho Vermelho. O figurino da personagem possui um chapeuzinho vermelho em seu agasalho, além disso, no conto, vemos que Chapeuzinho tem um duplo papel: ela é a presa do lobo, ao mesmo tempo em que é (uma espécie de) isca para que o lobo fosse detido pelo lenhador. Na imagem analisada, vemos exatamente isso: não é possível saber se a menina está caindo em uma armadilha ou se ela é a armadilha. Logo, a proposta do conto vê seu papel cumprido também na imagem: a advertência de que a natureza de relações sexuais não é saudável para crianças, nem conveniente aos adultos. Ainda a questão do saudável para a infância se manifesta em mais um texto, onde a ambiguidade do primeiro desaparece: trata-se de Caperucita Roja (2007), um cartaz integrante da campanha Con que cuentos estan cresciendo nuestros n nõs?. A imagem é composta por camadas (de tecido?), que formam um quadro. O fundo é vermelho, assim como a renda colocada nas margens. No alto, centralizado, há um quadro, fazendo às vezes de letreiro, que apresenta qual é aquele conto. Abaixo deste quadro, há um quadro menos preso no primeiro por um bordado de paetês roxos. O fundo da segunda imagem é formado por cartazes onde se vê o rosto de uma menina triste. No alto e à esquerda, um letreiro em azul e amarelo indica qual lugar é aquele (motel). É possível ver também que há um hi-

drante vermelho, e pequenos tijolos, sugerindo que a personagem esteja em uma calçada. Quanto à Chapeuzinho, aparece na figura de uma menina de cabelo preto, preso por presilhas vermelhas, usando blusa curta e saia curta vermelhos. Além de meia 7/8 e botas (também vermelhas). É retratada de frente, escorada em uma parede, com uma perna no muro e um braço atrás do corpo. No rosto, é possível ver dois olhos grandes, que olham para algo que está fora do quadro. Há uma lágrima escorrendo de um de seus olhos. Em relação a esta imagem, sua ligação com o conto é mais próxima, mais óbvia e mais direta. O título é o grande responsável por isso, entretanto, mesmo sem ele seria possível uma aproximação entre as duas estórias: os elementos que compõe a personagem na imagem são os mesmos que a descreve em palavras. No entanto, com relação à Menina Má.com há algumas divergências na estória: não há na campanha colombiana a dupla advertência que há no cartaz americano, ou seja, na campanha não é possível compreender a ideia de que o adulto também corre um certo risco (penal?) ao se aproximar de crianças. Já na campanha publicitária Contos de Melissa (2008), pertencente ao catálogo de produtos da marca Melissa, que por sua vez possuí capa e contra-capa douradas, tem o seguinte texto explicativo: ‚Não existe paixão sem pecado. E é isso que você vai encontrar na nova coleção Contos de Melissa. Uma mistura de ingênuo com o sexy, do recatado com o provocante, e do bem com o mal. A nova campanha foi inspirada nas fábulas dos contos de fadas. Histórias sensuais e ousadas que nenhum pai contaria para a filha dormir‛. Este texto antecede a imagem. Nele já podemos encontrar pistas de que há algo de diferente nos ‚Contos de Melissa‛. A fotografia analisada é em primeiro plano. O cenário, uma floresta, há um caminho por onde passa uma moto. Na moto, o lobo veste uma jaqueta de material que parece ser couro e usa óculos escuros. Chapeuzinho Vermelho, sentada de lado, usa laço de cabelo, blusa e capa vermelhas, meia 7/8 na cor branca. Na cesta de Chapeuzinho encontramos uma garrafa de espumante. A posição dos pelos do lobo e da capa da Chapeuzinho sugere que, no momento da foto, a moto estava em movimento, além disso, encontramos também folhas em suspensão no ar, naquele que seria o caminho deixado pela moto; outro elemento como movimento. Outro texto que possui uma ligação notável com o conto, também intitulado pelo mesmo nome, tem divergências com a estória original. Não há

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lenhador, e Chapeuzinho Vermelho, já crescida, foge da floresta com o lobo. A moral de que meninas boazinhas não devem dar ouvidos a estranhos é apagada: Chapeuzinho cresceu e agora pode escolher seus próprios caminhos. Entretanto, o amadurecimento da personagem não retira o texto de seu pertencimento original, nem elimina dele o caráter educador do conto, pois se Chapeuzinho teve de crescer para poder fugir com o lobo, é por que continua sendo escandaloso e proibido que Lobos Maus levem Pequenas Chapeuzinhos para um lugar desconhecido. A ausência da criança na imagem é a responsável pela dupla ideia que a pedofilia não é ruim somente para a criança, mas também o é para o adulto. CONCLUSÃO Este breve estudo (amostra de um estudo maior) tornou mais real e próxima a ideia de que os discursos – usualmente chamamos de tópicos (mimotópicos e tropismos, nas palavras do autor) – parecem sempre se fazer valer de uma enunciação que ocupe um lugar constituinte com relação à enunciação deles mesmos, ainda que essa constituência advenha de um conto infantil. Logo, percebemos que o texto midiático é um suporte onde se inscrevem diversos textos constituintes e é heterogêneo por excelência. A ideia de que o discurso atópico seria um discurso isolado dos outros não pode, no momento, ser plenamente questionada visto que o corpus selecionado para a análise não pertencia a esferas do discurso desta natureza. Portanto, deixaremos apenas uma interrogação registrada: Não seria a campanha Contos de Melissa uma forma de heterogeneidade entre aquilo que é da ordem do atópico, do tópico e do constituinte? Pois, num só texto, podemos ver a constituência do conto, a publicidade de uma sandália e o erotismo que envolve a utilização de lingeries por mulheres maduras?

REFERÊNCIAS

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ARIÈS, P. História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. BETTELHEIM, B. A psicanálise dos contos de fada. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. CONTOS de Melissa. Agência: BorghiErh/Lowe. Cliente: Melissa. Direção de Arte: Erh Ray e Rodrigo Rodrigues. Brasil, 2008.

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DONZELOT, J. A polícia das famílias. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986. HARD Candy. Direção: David Slade. Roteiro: Brian Nelson. Estados Unidos: Vulcan Productions; Launchpad Productions, 2005. (104 min) MAINGUENEAU, D. Discurso Literário. São Paulo: Contexto, 2006. MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Tradução de Sírio Possenti. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. MAINGUENEAU. D. Cenas da enunciação. Organização de Sírio Possenti e Maria Cecilia Pérez de Souza Silva. São Paulo: Parábola Editorial, 2008a. MAINGUENEAU, Dominique. Além da paratopia. In: NAVARRO, Pedro. O discurso nos dominios da linguagem e da história. São Carlos: Claraluz, 2008b. p. 9-20. GURP, M. V. Which are the stories our children are growing with? Disponível em: . Acesso em: 04 mai. 2010.

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PERRAULT, C. Contos de Perrault. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989.

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A

originalidade nos

TEXTOS

saussurianos:1 uma questão de leitura?

INTRODUÇÃO

C

omo caminho para desenvolver algumas reflexões sobre o pós-estruturalismo, propõe-se refletir sobre: (1) como o Curso de Linguística Geral (CLG), publicado em 1916 e organizado por Charles Bally e Sechehaye, pode ser considerado uma obra cuja autenticidade não se provou, ou seja, como esse Curso pode ser considerado um apócrifo, uma vez que seria ilegítimo considerar Ferdinand de Saussure autor original dessa obra; e (2) como é possível estabelecer uma posição ou uma postura teórica estruturalista de Simon Bouquet frente a esse assunto a partir de sua leitura em seu recente texto De um pseudo-Saussure aos textos saussurianos originais (2008). O Curso de Linguística Geral (CLG), publicado em 1916 e organizado por Charles Bally e Albert Sechehaye, é uma obra de suma importância dentro dos estudos linguíticos, j{ que ‚se constituiu numa obra que Mestre pelo PPGL/UFSCar. Fernandópolis - SP. Pesquisador do LEEDIM. [email protected] 1

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fundou a Linguística e serviu de modelo de cientificidade para as demais Ciências Humanas‛ (Bouquet, 2008). Segundo Sargentini e Baronas (2007), a legitimidade científica poderia ser garantida quando se considerava e usava ‚o modelo analítico da linguística a partir do qual é possível descrever as sistematicidades da língua ou de qualquer outra estrutura, sistema testado e comprovado nas mais diversas Ciências Humanas *
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