Linguagem, Hermenêutica e a necessidade de revisitar Heidegger

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Coordenação Geral Cleyson de Moraes Mello Mauricio Jorge Pereira da Mota Vanderlei Martins Coordenação Acadêmica João Eduardo de Alves Pereira Vânia Siciliano Aieta Vladimir Vitovsky

O Direito em Perspectiva Prefácio Ricardo Lodi Ribeiro Apresentação Carlos Eduardo Guerra de Moraes Participação Especial Boaventura de Souza Santos

Autores Abel Fernandes Gomes Adriana Fernandes Carneiro Alberto Afonso Monteiro Alexandre de Castro Catharina Ana Mônica Anselmo de Amorim Antônio Pereira Gaio Júnior Boaventura de Sousa Santos Carla Sendon Amejeiras Veloso Carlos Alberto Lima de Almeida Christiano Fragoso Clara Maria C. Brum de Oliveira Clayton Reis Cleyson de Moraes Mello Danielle Riegermann Ramos Damião Douglas Estevam Silva Estefânia de Oliveira Gonçalves Eurico da Cunha Neto Fernando Amiel Junior Flávia Sanna Leal de Meirelles Gleyce Anne Cardoso Guilherme Sandoval Góes Horácio Monteschio Inês Lopes de Abreu Mendes de Toledo Italo Godinho Silva João Matheus Vianna Amiel

Julia Ribeiro Freihof Larissa Domingues Dibe Larissa Gabriela Cruz Botelho Larissa Leal Elias Lamblet Leonam Baesso da Silva Liziero Maíra Batista de Lara Marcella Alves Mascarenhas Nardelli Mariana Petersen Alonso Marta Rosa Vianna Amiel Matheus Guarino Sant’Anna Lima de Almeida Mauricio Mota Max Peter Schulvater Patrícia Silva Cardoso Priscila Andrade Dias Raquel Elena Rinaldi Maciel Sônia Guerra Tatiane Duarte dos Santos Thiago Jordace Ubirajara da Fonseca Neto Vanderlei Martins Vânia Siciliano Aieta Vinicius Figueiredo Chaves Vladimir Santos Vitovsky Wellington Trotta Yasmin Waetge

Editar Juiz de Fora- MG 2015

Conselho Editorial Prof. Dr. Antonio Celso Alves Pereira (UERJ) Profa. Dra. Bianca Tomaino (UERJ) Prof. Dr. Bruno Lacerda (Membro Externo – UFJF – MG) Prof. Dr. Cleyson de Moraes Mello (UERJ) Prof. Dr. João Eduardo de Alves Pereira (UERJ) Profa. Dra. Elena de Carvalho Gomes (Membro Externo – UFMG) Prof. Dr. Nuno M. M. S. Coelho (Membro Externo – USP) Profa. Dra. Núria Belloso Martín (Membro Externo – Univ. Burgos – Espanha) Profa. Ms. Patrícia Ignácio da Rosa (Membro Externo IBC) Profa. Dra. Theresa Calvet de Magalhães (Membro Externo – UNIPAC – Juiz de Fora/MG) Prof. Dr. Vanderlei Martins (UERJ) Conselho Editorial – CALC - Centro Acadêmico Luiz Carpenter Carolina Torres de Lima e Silva Michael Douglas Santos Teixeira Douglas da Silva Oliveira Philippe da Silva Souto Felipe do Valle Rodrigues Lima Rafael Francisco de Mendonça Gabriel Martins Cruz de Aguiar Pereira Raphaela Ramos Webering Gabriela Macedo Ferreira Sergio Cardoso Júnior Isabela Almeida do Amaral Tayane Caruso do Valle Loana Pessanha Saldanha Vinícius de Melo da Silva Luis Felipe Rodrigues Paranhos Vitor Lourenço Rodrigues Maíra De Luca Leal Wallace Moreira Ribeiro Coordenação Geral Prof. Dr. Cleyson de Moraes Mello Prof. Dr. Vanderlei Martins Prof. Dr. Mauricio Jorge Pereira da Mota Coordenação Acadêmica Prof. Dr. João Eduardo de Alves Pereira Profa. Dra. Vãnia Siciliano Aieta Prof. Dr. Vladimir Vitovsky

Dados internacionais de catalogação na publicação

O Direito em Perspectiva, Juiz de Fora: Editar Editora Associada Ltda, 2015.

1. Direito – Fundamentos – Brasil.

ISBN: 978-85-7851-110-4

A editora e os coordenadores desta obra não se responsabilizam por informações e opiniões contidas nos artigos científicos, que são de inteira responsabilidade dos seus autores.

Quão preciosa é, ó Deus, a tua benignidade, pelo que os filhos dos homens se abrigam à sombra das tuas asas. Eles se fartarão da gordura da tua casa, e os farás beber da corrente das tuas delícias; Porque em ti está o manancial da vida; na tua luz veremos a luz. (Salmos 36: 7- 9)

Linguagem, Hermenêutica e a necessidade de revisitar Heidegger Douglas Estevam Silva1 Italo Godinho Silva2 A teoria da linguagem surge, muito em resultado da crise do pensamento moderno no século XIX, servindo de alternativa para explicação da relação humana com a realidade enquanto relação de significação. Em sua natureza, procura tratar sobre problemas centrais na filosofia que emergiram na virada do século XX, associando diversas áreas do saber e sob diversas correntes teóricas distintas, mas que compartilham o ponto de partida comum da linguagem: dissertam sobre o ser, o real, o sentido dos signos e as proposições linguísticas. Na entabulação de “afinamento” dessas condições, aflora a filosofia hermenêutica na Alemanha, a partir da inspiração do teólogo e filósofo Friedrich Schleiermacher, que considerava a interpretação como forma de relação originária do ser humano com o real3. É desse caldo que bebe Martin Heidegger — o maior expoente filosófico da fenomenologia hermenêutica das Escolas de Marburgo (1923-1928) e Friburgo (a partir de 1928). Por seu arrimo lógico, alça tal movimento a estágio sem precedentes, o qual procurará se interpretar neste escrito. É certo que, ao tratar de Heidegger, significa se preparar, necessariamente, para interrogar a esfinge, já que muito se tem dito da saturada obscuridade que permeia suas obras; antes, sobretudo, em Ser e Tempo 4, aquela que é considerada sua obra magna, cujo trabalho para muitos o transformou no principal filósofo do século XX. Mas como? O que a faz uma especiaria de sabor e aroma distinta de todas as outras? O filósofo novelista e argumentista argentino, Feinmann5, assevera 1

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Graduando da Faculdade de Direito da UERJ. Membros do Grupo de Pesquisa Institucional em Teoria do Direito - Hermenêutica Filosófica nas Decisões Judiciais, coordenado pelo Professor Cleyson de Moraes Mello, Professor Adjunto da UERJ. Graduando da Faculdade de Direito da UERJ. Membros do Grupo de Pesquisa Institucional em Teoria do Direito - Hermenêutica Filosófica nas Decisões Judiciais, coordenado pelo Professor Cleyson de Moraes Mello, Professor Adjunto da UERJ. MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 13. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2010. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Rio de Janeiro: Vozes, 2006. FEINMANN, José Pablo. La sombra de Heidegger. Buenos Aires: Seix-Barral, 2005.

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que tal motivo é por Heidegger conceber la pregunta de las preguntas6, qual seja, ¿Por qué hay algo y no más bien nada?7 Esse é um embrulho lançado numa preleção por este cerebral personagem, em 14 de julho de 1929, como aula inaugural atendendo ao convite para ocupar a cátedra de Filosofia em Friburgo — que estava em vacância pela saída de seu mestre, Edmund Husserl. À vista da incômoda inquirição, temse revelada a função precípua da filosofia: remeter ao pensamento às questões essenciais e, logo, candentes da condição humana. É dizer, nesse caso, que se trata fundamentalmente da importância de se entender o nada negligenciado até pelas ciências e também pelo espírito humano; por isso, a retórica sufoca e faz sentir em carne viva o peso absoluto da filosofia, muito bem representada nessa pergunta fatal. Por sucesso, recuperar-se-á, mais à frente, o busílis da hermenêutica heideggeriana, porquanto é o cavalo-de-batalha8 deste escrito. Antes, porém, o exórdio quer fazer entender que é legítimo o interesse de explorar e pensar Heidegger, mesmo à sombra da crescente censura ideológica, maiormente com a publicação, no início de 2014, dos volumes 94-96 das “Obras Completas” contendo os infames “Cadernos Negros” (ou diários privados, ainda não traduzidos para o inglês). Destarte, seus críticos, apontando para uma prova irrefutável do antissemitismo de Heidegger, afirmam que sua filosofia é repleta de ideias totalmente censuráveis9. Consequentemente, os referenciados fustigadores, por obrigação, devem considerar que a legenda de antessemitismo pode servir como óbice e fazer cessar dissidências tão caras à Filosofia. Tampouco se deve sacralizar o autor, mesmo forjando um dos métodos filosóficos mais originais e intrincados do último século. Há, então, de se investigar as considerações que estão sendo levantadas antes de omitir ou invalidá-las, sem perder de vista lições históricas como Index Librorum Prohibitorum, que, se tivesse prevalecido em sua intolerância, poderia soterrar a mais cintilante tradição artístico-literária do ocidente (John Milton, Alexandre Dumas — pai e filho —, François-Marie Arouet, Victor Hugo ou Émile Zola, por exemplo). Ainda nesse sentido, “Platão e Aristóteles, como defensores da escravidão e do chauvinismo, ficariam de fora; Santo Agostinho seria banido por sua intolerância para com os hereges e os ‘pagãos’; Hegel seria eliminado por sua admiração incondicional por Napoleão Bonaparte, em quem viu o ‘espírito do mundo a cavalo’.”10 6

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FEINMANN, José Pablo. Canal Encuentro: Filosofía aquí y ahora - ¿Por qué hay algo y no más bien nada? Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2015. 7 HEIDEGGER, Martin. Que é metafísica? Tradução de Ernildo Stein. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2015. 8 No jargão teatral – lê-se, por sua vez, no Dicionário de Provérbios e Curiosidades, de R. Magalhães Junior (Editora Cultrix, São Paulo, Brasil, 1955) –, é o grande papel, a criação artística que celebrizou um ator ou uma atriz. “A Dama das Camélias” era o “cavalo-debatalha” de Sarah Bernhardt, por exemplo. 9 Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2015. 10 Idem.

Douglas Estevam Silva e Italo Godinho Silva

Em uma entrevista especial (junho de 2006) concedida ao Instituto Humanitas Unisinos, professor Ernildo Jacob Stein — aluno direto de Heidegger na Alemanha, abordando, já em sua Tese de Doutoramento (UFRGS, 1968) sob orientação do Prof. Dr. Miguel Reale, o pensamento do filósofo alemão: Compreensão e finitude – estrutura e movimento da interrogação heideggeriana –, arguiu que “o filósofo fez um juízo equivocado sobre o regime que estava começando, pensando que aceitando a reitoria, teria condições de criar a nova universidade que substituiria a universidade dos mandarins. Ao ver que caíra na armadilha, se demitiu no décimo mês dos quatro anos que tinha pela frente e, a partir daí, o regime pôs um de seus agentes para supervisionar as suas aulas. O filósofo foi ingênuo porque desconhecia as ciências humanas da sociologia, da política, da economia e pensava, contudo poder diagnosticar o futuro de um regime. Quem olha com atenção para a capa do meu livro Diferença e Metafísica verá que ela é feita com uma carta inédita de Heidegger que está em minhas mãos, em que ele se defende dizendo: ‘Ide a Munique e perguntai ao Pe. Karl Rahner que assistiu a minhas aulas de 34 a 36, para verem a crítica que se ousava contra o biologismo, o racismo do nacional-socialismo’. É verdade que os filósofos não foram feitos para serem heróis da resistência, Platão que o diga, preso pelo tirano de Siracusa a cujo regime tinha aderido. E mesmo Aristóteles não escapou do problema, indo asilar-se na sua fazenda de Eubeia, para que os gregos não praticassem um segundo crime contra Sócrates. O silêncio do filósofo sobre o gesto de que ele confessou a Jaspers que ‘se sentia envergonhado do passo dado’, deve-se o fato à convicção de que uma confissão pública não tinha sentido porque não apagaria nada.”11 Tendo em vista todo o acima exposto, é salutar deixar bem claro a distinção entre a posição política do autor e todo seu edifício filosófico, fugindo de uma ditadura do politicamente correto e caindo em aporias ad hominem12. O que realmente importa, para fins acadêmicos, é a real compreensão da conjuntura em que se dá o florescimento do pensamento filosófico e de que maneira tais inovações correspondem à seara jurídica. Mais precisamente, significa transpor preconceitos a fim de aclarar a concepção de mundo, e interpretar, mais originariamente, as relações de conhecimento no universo do Direito. 11

Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2015. 12 Ainda que haja qualquer grau de aproximação entre a filosofia heideggeriana e sua crença no nacional-socialismo, é importante rasgar o véu que cinge o preconceito de se ler um autor por conta das consequências dessa suposta crença política e ideológica. Assim como Locke foi considerado “o último grande filósofo a procurar justificar a escravidão absoluta e perpétua”, ninguém por isso o deixa de ler hodiernamente; tampouco o fazem, nem sequer deveriam, quanto a Carl Schmitt — autor tão caro aos cursos de pós-graduação nas academias de Direito — mais um banido, dado seu engajamento com o regime nacional-socialista, ou por assentar suas teses em conceito como violência e poder. No mesmo sentido, a lógica é ambivalente para as obras de Martin Heidegger, e escusar tal conhecimento é de uma estultice cavalar.

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A importância da Filosofia no Ensino Jurídico Desde o primado crítico legado por Sócrates séculos antes de Cristo, a questão do pensar está intimamente ligada àquilo que está acriticamente posto e de que forma o ser racional se posiciona perante indagações que nunca ousou perquirir. Aprofundadamente, representa a insurgência do homem à tradição13 que submete o pensamento ao dado14 e não permite que um horizonte de possibilidades se erija a partir dos questionamentos dos elementos à sua disposição. O próprio filósofo ateniense, ao buscar as respostas para suas suspeitas, concebia um método que procurou inspiração no ofício de sua mãe, que era uma parteira. A partir disso, concebeu a maiêutica, que nada mais é permitir a verdade vir à tona, nascer, parir — , “arte de partejar” — por meio do dilema15 entre proposições16. É nesse contexto que a Filosofia toma sua posição central na História do Pensamento Humano. Portanto, sabendo que a Filosofia é um campo do saber onde reina o dissenso, em que a divergência é seu signo mais originário, constate-se que a experiência do estudo filosófico é marca indelével da condição humana17, uma vez que pavimenta estrada para o pensamento próprio, todavia, cravando olhos no conhecimento da tradição dos sistemas de pensamento. Igualmente, devese recuperar a sensibilidade intrínseca à experimentação do conhecimento, que se produz a partir de postulados que buscam suprir anseios humanos que não podem, necessariamente, ser compreendidos com a entificação dos juízos. Para além disso, é impor a Filosofia como condição da expressão humana autêntica e não a tratar como mero objeto, vulgarmente entificável, operando-a de modo subordinado a serviço da Ciência que retalha o saber. Diferentemente, 13

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Aqui, em seu sentido gadameriano: “O que é consagrado pela tradição e pela herança histórica possui uma autoridade que se tornou anônima, e nosso ser histórico e finito está determinado pelo fato de que também a autoridade do que foi transmitido, e não somente o que possui fundamentos evidentes, tem poder sobre essa base [...]”. GADAMER, HansGeorg. Verdade e Método. Rio de Janeiro: Vozes, 1997. p. 421. 14 Tudo aquilo já previamente depositado no conhecimento e que ainda não passou pelo crivo crítico. 15 Um termo técnico de Retórica, do Grego dilemma, “dupla proposição”, formado por di-, “dois” e lemma, “premissa, algo aceito como verdade”. A noção correta é “ter que fazer uma escolha entre duas alternativas desagradáveis”. 16 “[...] ao tratar disso, longe de atuar como verdadeiro filósofo, comporto-me como um discutidor teimoso, como fazem esses ignorantes que, quando discutem, não se preocupam com o aprender a verdade, e cuja única finalidade é impor sua opinião a todos que os escutam. A única diferença que há entre eles e eu é que não pretendo apenas convencê-los, isto é, aos aqui presentes, ainda que, se isto acontecer, seja uma feliz consecução, mas que meu principal objetivo é convencer-me.” PLATÃO, Diálogos: Fédon. Curitiba: Hemus, 2002. 17 Cumpre sobrelevar o primoroso contributo dos diálogos com o Professor Doutor Marcello Raposo Ciotola, na cadeira de Filosofia do Direito na Faculdade de Direito da UERJ, que, com suas auspiciosas considerações, fez-nos entender o valor filosófico e sua dupla condição: paixão fidedigna à sabedoria e o dissentir.

Douglas Estevam Silva e Italo Godinho Silva

a Filosofia, por aporte de Ortega y Gasset, é autônoma e pantônoma, porquanto a Filosofia não pode cuidar senão daquilo que tenha sentido de universalidade18 e, conseguintemente, promover apreensão integral do objeto que permite a cosmovisão do saber. Aliás, já apregoara Karl Jaspers em 1964, a convite da Rádio Baviera na Alemanha, onde apresentou uma série de conferências, que a essência da Filosofia não é a posse do saber, mas sua constante busca19. Destarte, a permanência dessas posições conserva sua irredutível independência, afastando-se da equívoca análise comtiana de transmutar a Filosofia em uma enciclopédia do saber20. É nesse diapasão que o Direito se comunica, e urge a necessidade da intercontextualidade dos saberes, pois, por diversas vezes, subjugou-o a um reducionismo cientificista. Isto é, por reiteradas vezes, o Direito foi reduzido à instrumentalização sistemática e racional alinhada a uma lógica matemática. Em importante lição do prof. Ovídio Baptista, demonstra-se como ao longo da História diversos pensadores se preocuparam em, naturalmente, tornar a exatidão o principal elemento da Ciência do Direito, aproximando, entrementes, o rigor das ciências da natureza às ciências do espírito. Assim sendo, a título de ilustração, cabe expor o rigor metodológico já constante no século XVII: “Para Leibniz, assim como na matemática, também as verdades da metafísica, da moral e da ‘ciência natural do Direito’ podem ter a mesma clareza e poderão ser objeto de demonstração, com o mesmo rigor com o que se demonstra um postulado matemático.”21 Ainda nesse sentido, é preciso que se relegue outro papel à Filosofia no horizonte do Direito, eclipsada e friamente distanciada quando se trata da humanidade no pensamento crítico; fazendo menção ao cientificismo imiscuído no ramo jurídico, é de notável constatação que os juristas no último século mais se incomodaram em construir uma teoria impalpável do ordenamento jurídico22 18

JASPERS, Karl. Introdução ao Pensamento Filosófico. 3. ed., São Paulo: Cultrix, 1965. Ao molde do sinérgico apotegma do samiano, cabe então dizer, que o filósofo em sua “caça ao tesouro” é guiado pelo que enxerga de acessível e amável na sabedoria. É o que pode se denominar como imagem do sábio. Conquanto, a sabedoria não é algo que vá ser produzida, mas que, de algum modo, será encontrada. Dessa forma, existe uma sapiência que não está nele; tanto não está que não se diz portador dela. Não se pensa ser seu inventor nem mesmo seu arauto, porém é aquele que a ama e, sendo assim, persegue-a mesmo sabendo que não a possuirá completamente, pois a definição de filosofia é amor à sabedoria e não a conversão do filósofo em sábio. Subentende-se, com isso, que esta atividade de certo modo é contínua dada a impossibilidade do domínio total da mesma. 20 COMTE, Auguste. Curso de Filosofia Positiva. Coleção Os Pensadores: Auguste Comte – Obra e Vida. Traduções de José Arthur Giannotti e Miguel Lemos. São Paulo: Abril Cultural, 1978. 21 SILVA, Ovídio A. Baptista. Jurisdição e Execução na Tradição Romano-Canônica. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.107. 22 É claro que aqui não cabe uma hipócrita sustentação em singelo sentido de um descolamento da realidade de jusfilósofos ao trabalharem suas teorias; afinal de contas, consta sempre ressaltar a crise de normatividade que o Direito enfrentou no século XX, como exemplo, a influência da Escola do Direito Livre defendida por Eugen Ehrlich. 19

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do que voltar sua atenção à necessidade arrebatada e latente das demandas sociais.23 Portanto, é nessa razão que se sustenta a transdisciplinaridade no estudo do Direito, compreendendo a limitação deste em tentar conceber cabalmente todos os fatos sociais que se propõe a normatizar, reconhecendo o caráter suplementar de outras disciplinas, especialmente a necessária relação com Literatura e Direito Comparado, que proveem fundamento para uma leitura mais factível da realidade a qual os jurisconsultos estão submetidos24. Não mais importante, lapidar é ainda mencionar o contributo que Peter Häberle trouxe ao introduzir o conceito de Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição25, e o confronto que isso gera ao se contrapor com a concepção estritamente formalística e científica do Direito. De modo que, fica aqui propugnada uma ode necessária ao desenvolvimento de pesquisas que inspirem amparo a uma capacidade intelectiva calcada na boa crítica.

Da centralidade filosófica Expostas todas as considerações introdutórias que cabia aqui tecer, agora é o momento de enfrentar a questão mais cara a este artigo. De maneira ainda mais ousada, é procurar evidenciar que o fundamento filosófico sobre o qual se calca o Direito se encontra obsoleto e inutilizável dados os prementes giros pelos quais passou o Pensamento Humano. Ainda mais característico deste trabalho, peculiar é demonstrar que a nova proposta para a Filosofia do Direito, em vez de pretensamente fazer acreditar em mais uma forma de justificação ou validação da Ciência Jurídica que fique à mercê do jogo retórico e teórico tão valedouro no Direito, é fazer compreender o autêntico fundamento que põe em xeque elucubrações que, mormente, apresentam-se ao longo no Ensino Jurídico e que tão somente se prestam às abstrações, pouco se importando com as exigências que reivindicam um olhar mais humano em detrimento da matematização que assola essa Ciência do Espírito. 23

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Mais uma vez, é de eminente recordação que citamos as excelsas lições do prof. Flavio Galdino nas aulas de Teoria Geral do Processo na Faculdade de Direito da UERJ, e sua preocupação em ressaltar a fase instrumentalista pela qual passa o Direito Processual. 24 Nesse sentido, Arnaldo Godoy explicita que, já em 1883, o jurista sergipano Tobias Barreto fez um discurso inovador e provocativo: “[...] no centro das preocupações daqueles que refletem sobre a ação dos juristas no contexto dos arranjos sociais que herdamos, e que precisamos transformar. O mundo é um construído, e não um imaginário dado metafísico. Juristas, já o disse Roberto Mangabeira Unger, são técnicos a serviço da sociedade, e não sacerdotes detentores de verdades.” Disponível em: < http://www.conjur. com.br/2014-jul-20/embargos-culturais-discurso-paraninfo-jurista-tobias-barreto>. Acesso em: 10 out. 2015. 25 MENDES, Gilmar. Homenagem à doutrina de Peter Häberle e sua influência no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2015.

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Por conseguinte, é descriminar uma filosofia do século XVIII ainda impregnada no Direito, que, em contrassenso, deve acompanhar as mudanças ocorridas no seio social e buscar da maneira mais prática sua aproximação com o eixo axiológico humano, relegando o idealismo, o subjetivismo e o pensamento descolado da realidade a um plano sem considerações.

O Fundamento do Direito Por mais óbvio que possam parecer as asserções que a seguir serão apresentadas, é determinantemente importante fazer saltar aos olhos que a Filosofia se preocupa em compreender o mundo e o ser humano que nele está do modo mais racional, evidenciando o entendimento correto26 que está oculto por falsas pré-compreensões. E é nesse contexto que se desenrola a crítica ao Direito saturado por ideias quiméricas que se propõem a descrever a normatividade a partir de árdua especulação sem antes se atentar à realidade latente que molda e condiciona a compreensão humana. Sendo para preleção do fio condutor a ajustar esta pesquisa, por certo vem à tona salutar estudo sobre o qual Heidegger se dedica ao fundamento do fundamento27. Nesse ensaio, o filósofo se presta a perquirir ontologicamente como e por que se dá a fundamentação na linguagem humana e, nessa perspectiva, o homem ganha um caráter preponderante. Perfilhando a noção, é-lhe dado um novo papel no palco de atuações, sendo agora aquele que concede significado ao mundo — revelando, assim, um contraponto teórico, tendo em vista que Paulo de Tarso e Tomás de Aquino arguiam que, com a ausência total do homem na Terra, Deus e o mundo permaneceriam iguais. E é isso que transformará o contexto do pensamento filosófico contemporâneo, pois alvitra que o mundo pode até existir na pouquidade ou mesmo numa total apartação do gênero humano, porém, este mundo somente possui sentido com e na existência do homem28. É nesse sentido que aqui desponta o bom tom da analogia com a teoria kelseniana29. Deve-se, portanto, buscar na condição humana o autêntico fundamento para o Direito, e é na própria Constituição que se reconhece o estabelecimento do ordenamento jurídico brasileiro, sua pedra angular: a dignidade da pessoa humana30. Aqui no sentido de ´ como Heidegger desenvolve em sua análise sobre a Alegoria da Caverna, de Platão. HEIDEGGER, Martin. A doutrina de Platão sobre a verdade. Disponível em: < http://www.imagomundi.com.br/filo/heidegger_verdade.pdf>.Acesso em: 27 set. 2015. 27 HEIDEGGER, Martin. A Essência do Fundamento. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2007. 28 Para importante reflexão, insta salientar precioso contributo teórico proporcionado pela Universidade de Helsinque. BACKMAN, Jussi. The absent foundation: Heidegger on the rationality of being. P.O. Box 9 (Siltavuorenpneger 20 A), FI-00014 University of Helsinki, Finland. 29 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6.ed. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1998. Capítulo V. 30 BRASIL. Constituição (1988). Art. 1º, III, da Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. 26

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Em crítica ulterior, convém rechaçar a epistemologia aplicada no Direito eivada de Filosofia do ainda século XVIII31. Mal se sabe ao certo por que os estudiosos da área prestam-se a coadunar com uma teoria do conhecimento desacreditada no debate filosófico. Afinal, pouco sentido faz trabalhar com conceitos transpostos há tempo, pedantemente empregados por jurisconsultos justamente em temas que deveriam se harmonizar a um debate atual e democrático. Sendo mais pormenorizado, é deflagrar a carência que corrói a Ciência do Direito quando seus estudiosos cinicamente dão continuidade a um debate que não tem mais fôlego no meio acadêmico. É nesse sentido que o Ministro Eros Grau, insistentemente, lança sua análise sobre o estudo da interpretação do Direito32, apresentando o contexto em voga da hermenêutica filosófica e permitindo ao intérprete uma compreensão mais fidedigna da teoria da decisão e do discurso jurídico33.

Da sagacidade do conhecimento Desde o século XIX, von Ihering já se atentava ao dinamismo do Direito, já que este “existe em função da sociedade, e não a sociedade em função dele”34. De modo mais aplicado, tal função se opera a partir do diálogo de juristas e filósofos do Direito em sintonia com as inovações no campo do discurso filosófico, procurando sempre reformular conceitos adequando-os ao uso da linguagem jurídica contingencial, pois, revisitando o inigualável esteio teórico de Tobias Barreto, só assim o primitivo invólucro poético será, finalmente, quebrado, apesar da clara resistência do Direito em não querer sair de sua casca mitológica: a de “um filho do céu”35. É nesse compasso que se insere a crítica da filosofia hermenêutica, indo de encontro a uma epistemologia obsoleta que ainda concebe o intérprete como sujeito solipsista e endeusado, único capaz de extrair a essência da norma e aplicar o Direito de maneira pura e técnica. Mais incisivamente, é tornar vivo — aqui a pretensão deste escrito — a complexidade e condição ontológica do processo hermenêutico que circunda a interpretação e aplicação do Direito, compreendendo de maneira mais originária o processo decisório. Então, imerso nessa epistemologia candente que busca suas raízes em Heidegger já no século XX, e que posteriormente é complementado com as obras de Gadamer, levando em consideração o giro ontológico-linguístico do 31

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KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Fernando Costa Mattos. Rio de Janeiro: Vozes, 2012. 32 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso Sobre a Interpretação - Aplicação do Direito. 5.ed. São Paulo: Malheiros, 2009. 33 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 2014. 34 VON IHERING, Rudolf. A finalidade do direito. Tradução de José Antônio Faria Corrêa. Rio de Janeiro: Rio, 1978. 35 BARRETO, Tobias. Estudos de Direito. Ed. fac-similar. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004.

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pensamento filosófico, mostra-se aqui a pretensão de apresentar a Filosofia Contemporânea ao estudo do Direito, conglobando um debate atual e mais comprometido com as categorias da ação humana. Não mais além, é a exigência de explicitar a decadência de uma estrutura do pensamento que já vinha sofrendo críticas desde o fim do século XIX, e que não possui mais capacidade de formular uma teoria do conhecimento compatível com as exigências do ensino jurídico voltado às necessidades atuais. Portanto, é Heidegger que porta a chave para o descobrimento dessa estrutura do pensamento, preocupando-se, de sobremodo, em revelar a latente essência humana no ato de pensar. “De agora em diante, senhores filósofos, guardemo-nos bem contra a antiga, perigosa fábula conceitual que estabelece um ‘puro sujeito do conhecimento, isento de vontade, alheio à dor e ao tempo’, guardemo-nos dos tentáculos de conceitos contraditórios como ‘razão pura’, ‘espiritualidade absoluta’, ‘conhecimento em si’; — tudo isso pede que se imagine um olho que não pode absolutamente ser imaginado, um olho voltado para nenhuma direção, no qual as forças ativas e interpretativas, as que fazem com que ver seja ver-algo, devem estar imobilizadas, ausentes; exige-se do olho, portanto, algo absurdo e sem sentido.”36

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NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da Moral: uma polêmica. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 2009.

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