«Linguagem, Memória e História nas ‘Viagens na Minha Terra’» (1999), in Ofélia Paiva Monteiro, ed., Almeida Garrett. Um Romântico, um Moderno, vol. I, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003, pp. 187-213.

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LINGUAGEM, MEMÓRIA E HISTÓRIA NAS VIAGENS NA MINHA TERRA

Pedro Serra

BIBLIOCLASTIA Num ensaio recentemente dado à estampa, sugestivamente intitulado Autobibliografias, Abel Barros Baptista conduz-nos pelas sendas várias do sentido, ou melhor, sentidos, da palavra livro. Mostra-nos, entre muitos outros aspectos, como qualquer uso metafórico ou literal do termo pressupõe uma qualidade – chamemos-lhe Livro – que antecede o próprio espaço de significação instaurador daqueles conteúdos vários do termo. Leia-se o seguinte passo: «A equivocidade do livro pressupõe, então, um livro que não seja nem objecto fabricado nem uma entidade natural, nem a obra nem o suporte que a veicula, mas a qualidade que o define antes de entrar na relação metafórica e como entidade destinada à relação metafórica: a que faz dele essencialmente reprodução, imitação, representação de algo que se situa fora dele e antes dele, ou seja, a qualidade de não ter qualquer qualidade própria» (1998: 37). Se recordo aqui estas reflexões – que nos mostram o Livro como metáfora do próprio processo de metaforização – é porque neste ensaio me proponho comentar um uso metafórico da palavra que encontramos nas Viagens na minha terra. Trata-se de Santarém como «livro de pedra». «Santarém – recorda o A. – é um livro de pedra em que a mais interessante e mais poética das nossas crónicas está escrita» (Obras, I: 128) (1). A monumentalidade da vila – urbe histórica por antonomásia – pauta o seu significado de depósito da memória da nação pelos atributos semânticos do

Livro: em Santarém, como esperado «livro de pedra», temos o trânsito sem trânsito do sentido, a junção da presença e da representação, a comunicabilidade que oculta a mediação (cf. Baptista, 1998: 40-41). Contudo, nas Viagens a semântica da metáfora do «livro de pedra» torna-se visível numa rede de relações. O livro «magnífico» não dura – deveria durar – sempre. A decepção da viagem a Santarém é, justamente, metaforizada por uma contra-imagem de agressão biblioclástica (2). Diz-nos o autor-narrador que «O povo de cuja história ela [Santarém] é livro, ainda existe; mas esse povo caíu em infância, deram-lhe o livro para brincar, rasgou-o, mutilou-o, arrancou-lhe folha a folha, e fez papagaios e bonecas, fez carapuços com elas» (Obras, I: 128). A metáfora do «livro de pedra» tem sentido na relação que estabelece com a do «livro rasgado folha a folha». Este último, na verdade, constitui a negação dos atributos semânticos do primeiro. Numa palavra, o «livro rasgado» não comunica ou transporta a memória: é, pelo contrário, signo da amnésia, do esquecimento. A metáfora do «livro de pedra» não é utilizada por primeira vez por Garrett nas Viagens na minha terra. Fizera-o na primeira leitura pública da História, na qualidade de cronista-mor do reino – cargo para que o monarca o nomeia em 1838 –, acontecimento que tivera lugar no Carmo, antiga igreja dos Terceiros. Recomponho a cena, que podemos considerar semelhante àquela outra no S. Carlos recordada em Rumo ao português legítimo (cf. Diogo-Silvestre, 1997: 109). Contudo, Garrett é já, na cena do Carmo, não o poeta da plateia geral, mas a figura pública que, «pelas oito horas em ponto» sobe a «um pequeno estrado» (Obras, I: 596). Eis a descrição que o autor de Folhas Caídas nos deixou do auditório que o ouviu falar da História pátria naquele décor monumental: «À noite já se achava um brilhante e numeroso concurso de espectadores – senhoras, ministros de Estado, ex-ministros, deputados eleitos, e ex-deputados, membros dos diversos tribunais e academias, e finalmente pessoas escolhidas, e de diferentes profissões e matizes políticos; – em tudo umas quatrocentas pessoas» (idem: ibidem).

Congrega-se, pois, a cour e a ville e, no final da intervenção de Garrett – em que reclama o estudo da história, da «nossa terra», «em todos os seus livros, tanto os impressos como os manuscritos, em prosa ou em verso, nos livros de pedra, que são os livros da memória dos povos; nas crónicas de frades, semanários velhos, etc.» (idem, ibidem: 597-598) –, o auditório irrompe num aplauso que significa o triunfo do orador: «[A] leitura durou duas horas, e, apenas terminada, o auditório luzido que estava, e havia assistido com religioso silêncio, e atenção, rompeu em vivos aplausos, e o ilustre orador recebeu numerosas abraços de muitos amigos e conhecidos seus, de todas as opiniões políticas, que o escutaram e o felicitaram pelo seu brilhante triunfo. Notou o público a singular coincidência desta gloriosa ovação com o apuramento do Sr. Garrett como deputado pelo círculo eleitoral de Lisboa.» (idem, ibidem: 599). Temos, pois, o autor das Viagens no lugar do historiador, não já o que culmina o cursus honorum obtendo um assento na Real Academia de História (cf. Mota, 1996: 178), como no século anterior, mas o que é ovacionado publicamente. Uma ovação que, por outro lado, confunde o sucesso do acto público com o êxito político.

AS CENAS DA MEMÓRIA E DA AMNÉSIA A intensidade semântica das duas metáforas que comecei por evocar, o «livro de pedra» e o «livro rasgado», pode ser alegorizada por duas urzenen que fazem eco em vários lugares da obra garrettiana. Refiro-me a títulos como Magriço, Camões ou O Arco de Sant’Ana, onde, com funcionalidade diversa, deparamos com a composição de uma cena da memória (3) que tem, nos antípodas, uma cena da amnésia. Nas Viagens na minha terra Garrett convoca, também, um lugar em que a memória se torna presença. Trata-se, na verdade, de uma cena da memória em que, como veremos, estão implicados a História e o Verbo. Dou

a palavra ao autor de Folhas Caídas: «a História, lida ou contada nos próprios sítios em que se passou, tem outra graça e outra força» (Obras, I: 119). Veja-se, em primeiro lugar, como esta compositio loci, no passo transcrito de desenho ainda incipiente, convoca uma cenografia em que pontua o espaço histórico, ao mesmo tempo que implica a palavra – a voz («contada») ou a escrita («lida»). Roma, nas Viagens na minha terra, pairará como exemplum universal desta cena. Oiçamos, uma vez mais, o nosso moderno que, em modo hipotético se auto-situa de viagem e com Tito Lívio e Tácito na mão: «Ali, [em Roma,] sentado naquelas ruínas imortais, sei que hei-de entender melhor a sua história, que o texto dos grandes escritores se me há-de ilustrar com os monumentos de arte que os viram escrever, e que uns recordam, outros presenciaram os feitos memoráveis, o progresso e a decadência daquela civilização pasmosa» (Obras, I: 116). Este passo das Viagens sublinha a convergência do ícone visual – o monumento, a ruína – e o ícone verbal – a palavra – como motores da memória (4), ou, por outras palavras, reconhece-se nessa convergência a activação da presença do passado (5). Mais ainda, chamo a atenção para o facto de a memória ser o télos da experiência da viagem (6), e de essa experiência culminar com a disponibilização do sujeito para a contemplação e para a leitura. Esta «versão» garrettiana do sentiment des ruines (cf. Macfarland, 1981: 14 e ss.), que o Romantismo glosou ad nauseam, tivera já uma primeira emergência no Camões, neste lugar bem mais de acordo com o pathos melancólico que lhe subjaz (7), e, evidentemente, enquadrado no trauma da errância e do exílio (8). Ora bem. Para a minha reconstituição da cena da memória importa-me destacar o ritual sacralizante que, aí, é recontado pelo sujeito poemático. Na cena da memória paradigmática, a pedra produz discurso, isto é, estabelece-se um espaço de comunicabilidade cuja felicidade é tropada pela simbólica do feitiço ou, ainda, como enuncia Garrett nas Viagens, do prestígio (cf. Obras, I: 118). Assim, a convocação

efectiva da memória é uma experiência de re-ligação entre o presente e o passado, entre o eu e o espaço histórico que o envolve. Romanticamente também, o discurso que as pedras falam é a poesia. Remeto, agora, para as Viagens, onde, à entrada de Santarém, no que constitui uma «grandiosa e magnífica cena», no A. convergem a imaginação e o real: «Fora-de-Vila é um vasto poema, largo, irregular e caprichoso como um poema romântico; ao primeiro aspecto, àquela hora tardia e de pouca luz, é de um efeito admirável e sublime. Palácios, conventos, igrejas ocupam gravemente e tristemente os seus antigos lugares, enfileirados sem ordem aos lados daquela imensa praça, em que a vista dos olhos não acha simetria alguma; mas sente-se na alma. É como o ritmo e medição dos grandes versos bíblicos que se não cadenceiam por pés nem por sílabas, mas caem certos no espírito e na audição interior com uma regularidade admirável.» (Obras, I: 121). Note-se, corroborando o que antes disse, como a imagem de um discursivismo poético de tipo bíblico mais não faz do que significar a pulsação uníssona do sujeito com o quadro antigo. Lugar imaginado da Memória, da integração do indivíduo na genealogia da Nação como biologia colectiva, da palavra como poesia, da suturação do presente e do passado – ou um passado que se torna presença e substantivação do presente – a cena que tenho vindo a descrever projecta-se negativamente, como um fantasma, nas Viagens na minha terra. Isto porque a concreção do programa da memória como télos da viagem falha – veremos que não completamente – pelo apocalipse que é o real. As palavras iniciais do A., em que se compromete a fazer crónica do que viu, ouviu e sentiu, no que têm de apetência realista («examinar de perto»), significarão a falência daquele topos da memória. A «geral impressão que me faz esta terra» de Santarém, afirma peremptório o narrador-autor, traduz-se numa outra cena, que direi agora da amnésia, do esquecimento. Nesta cena o décor é também o do monumentoruína, é a urbe histórica. Contudo, nesta cena falta o prestígio. Diremos, pelo

contrário, que esta cena da amnésia é sobredeterminada pelo «pardieiro interminável», pelo «entulho» e pelo «lixo». As ruínas estão lá mas não como iluminação da substantividade do espírito: se em Roma «Deus está nas ruínas escalavradas do Coliseu, como nos zimbórios de bronze de mármore de S. Pedro», em Santarém como que o ausentam: «Mas aqui!... nos pardierios de um convento velho, consertado pelas Obras Públicas para servir de quartel de soldados – aqui não habita espírito nenhum.» (Obras, I: 176). A ruína é, agora, um atributo adjectivo: é a ruína «profanada», a ruína que tem «um estado» (idem: ibidem). A psicologia desta cena é também outra. Se as ruínas da Memória infundem o triste pelo Belo, isto é, se são contempladas em modo melancólico, a ruína profanada carreia a «náusea», o «asco» e a «zanga» (Obras, I: 175) (9). Simultaneamente, o próprio verbo falha neste lugar (10), ou, dito de outro modo, o cordão umbilical que permitia o diálogo do sujeito com as pedras não existe aqui: «Mas em vão interrogo pedra a pedra, laje a laje: o eco morto da solidão responde tristemente às minhas perguntas, responde que nada sabe, que esqueceu tudo, que aqui reina a desolação e o abandono, e que se apagaram todas as lembranças de outro estado...» (Obras, I: 174). Por outro lado, esta cena da amnésia não sutura a cisão entre o presente e o passado. Antes pelo contrário, sublinha ainda mais a disjunção entre a «grandeza antiga» e a «desgraça presente». Claro está que se impõe, aqui, um do lugares das Viagens arqui-citados: «Entre a história maravilhosa do passado que todas estas pedras memoram e as profecias tremendas do futuro que parecem gravadas nelas em caracteres misteriosos, não há mais nada: o presente não é, ou é como se não fosse: tão pequeno, tão mesquinho, tão insignificante, tão desproporcionado parece a tudo isto!» (Obras, I: 135). Sem lugar para o tempo do prestígio – que é, na verdade, um alo-tempo, um tempo fora da temporalidade –, a cena da amnésia é, passe o pleonasmo, a irrupção da História verdadeiramente histórica. A ruína profanada, passe

agora o jogo conceptual, é mais histórica que a ruína-como-memória. A ruína profanada é o presente sem presença, ou se quisermos, o presente como ausência. Direi de outro modo ainda: as ruínas profanadas não são vestigia. De entre os vários exemplos que o A. nos fornece, escolho o do palácio de Afonso Henriques: «O palácio de Afonso Henriques está como a sua capela: nem o mais leve, nem o mais apagado vestígio da antiga origem» (Obras, I: 124). A contemplação da ruína profanada pressupõe, como pretendo demonstrar, uma diferente filosofia do devir histórico. A distinção que, do meu ponto de vista, esclarece esta diferença está na distância qualitativa infinita que vai da «catástrofe grandiosa» a um outro princípio de progressão traumática da história das nações a que chamaremos, aproveitando a imagética do próprio Garrett, o princípio da demolição. Nínive, Pompeia, Roma ou Palmira, as suas «ruínas escalavradas» constituem religião porque, na óptica garrettiana – e romântica – o cataclismo que as acometeu foi providencial. Como afirma o narrador-autor a páginas tantas, o apagamento delas tem por detrás a mão do Criador estendida ao mundo (cf. Obras, I: 128). Mesmo que produto de uma revolução, soleniza-as a passagem do tempo providencial da História (cf. idem: ibidem). Ora, o princípio da demolição, nos antípodas do providencialismo, parte da consciência do fim, da extinção sem pathos trágico. Neste sentido, atente-se nas seguintes palavras do A., que considero cruciais: « Morrer, não morre a terra, nem a família, nem as raças: mas as nações deixam de existir» (Obras, I: 135). Sublinho esta ideia do término das nações com outro passo em que o conceito de fim se agrega directamente a um Portugal de grandeza periférica. Diante da incúria do materialismo e, sobretudo, dos materialistas, assevera o narrador-autor: «Uma nação grande ainda poderá ir vivendo e esperar por melhor tempo, apesar desta paralisia que lhe pasma a vida da alma na mais nobre parte de seu corpo. Mas uma nação pequena, é impossível; há-de morrer» (Obras, I: 178).

A MEMÓRIA COMO TELOS DA VIAGEM Como já referi, a cena da memória é a culminação, ou melhor, o télos de uma experiência de viagem. Recordo que no passo das Viagens referente a Roma que comecei por comentar, o autor-narrador imaginava-se em viagem à cidade eterna. Ora, gostaria neste momento de fazer algumas observações sobre a ida a Santarém como concretização desse programa. Desde já, recordo o facto de a cena da amnésia que acabo de descrever ser uma consequência não já da imaginação mas sim da experiência da viagem. Começarei por dizer que a retina do autor-narrador em viagem pode ser definida, não apenas pela cena da memória, como pela imago de Lisboa e do próprio país. A visitação à urbe histórica por antonomásia que é Santarém, está marcada pela Lisboa que o autor de Folhas Caídas leva interiorizada. Mais ainda, como urbe esperada, como benjaminiano lugar do sonho (cf. Rodríguez de la Flor, s.d.: 127). a vila alteriza o Espírito ausente da cidade sobredeterminada pela ethos da Matéria. O texto tropa a sobreposição desses diferentes níveis imagéticos pela iconografia da deslocação (cf. Oliveira, 1998) (11) e do movimento que nele podemos reconhecer. O avanço lento, do vapor «cansado» e da mula «enfezada», duas das tecnologias que determinam a experiência do espaçotempo ainda em 1840, dizem-nos de uma Lisboa, e de um país, cujo tempo é de estagnação. Neste contexto, há que ter presente o pronunciamento final da obra. O significado da conclusão «enigmática» das Viagens, como lhe chamou Joel Serrão (1980: 121-122) (12), é iluminado pelas imagologias do movimento e do espaço-tempo nacional, de resto inextricavelmente relacionadas. Do meu ponto de vista, esse pronunciamento garrettiano – que o foi de outros intelectuais também – reverbera, ainda, a utopia de ordenamento

do território que o Iluminismo fez determinar por uma racionalidade fisiocratista (13). O programa das Luzes, e este é o aspecto que me importa destacar, foi a par de um olhar verdadeiramente topográfico sobre o espaço nacional que, por primeira vez, se quer orgânico. Esse olhar manifesta-se, no que é talvez a sua concretização mais estilizada, na imaginação do território como um «tabuleiro do jogo das damas» (14). Nos inícios das década de 40 de oitocentos a utopia vigora ainda, pois continua por cumprir. É, simultaneamente, um bom exemplo de um país que continuava a sonhar-se e cujo adiamento lhe conferia uma imagem de stasis mórbida. O efeito global de paralisia, de resto, é ainda sublinhado ou enfatizado pela face visível do espaço urbano da capital (15). Com a mutação crítica do fim do Antigo Regime e a implantação da nova ordem Liberal, não são apreciáveis mudanças como as que haviam sido determinadas, em tempos, pela Natureza e por Pombal. Na Lisboa que Garrett pode ver sobrevivem ainda os últimos restos do Terramoto e continua a ser vigente o programa arquitectónico da Restauração (cf. França, s.d.: 307). Não temos, pois, no período a que nos reportamos – isto é, até ao Fontismo fundamentalmente – um urbanismo novo a lavar o rosto da cidade. O novo, isso sim, circunscreve-se ao singular, não brota de um todo. O «romantismo» em nós era um exotismo no olhar de estrangeiros (cf. Pereira, 1995: 353), e a sensibilidade «ingénua» (cf. Sousa, 1974: 225), o bricolage (16), do Palácio da Pena não chega para compor um cenário urbano que torne visível a ordo social do Portugal Liberal. Lisboa, ao contrário de Paris em data idêntica, não podia ser habitat de um flâneur benjaminiano (17). A capital portuguesa produz tipos genuínos, como um Garrett ou um Farrobo e um dos décors que melhor define o modo de circulação humana na cidade é o espaço engaiolado do Passeio Público – outra ideia do tempo pombalino – recente e reticentemente revitalizado e a que, de resto, Garrett não aderiu com docilidade (cf. França, s.d.: 311).

Simultânea e paradoxalmente, as Viagens dizem-nos de uma resistência à Lisboa e a um País que, apesar de estagnado, se encontra já no umbral da aceleração. A verdadeira medida da rítmica do gesto mecânico e fúnebre da Avó, versão fantasmática dessa lentidão, é dado pelo contraste com uma cidade e um país que se movem – ou melhor, começam a mover-se – ao compasso de uma tímida mas inexorável Modernidade. Assim, a progressão do A. em clave lenta é mimese do tempo urbano e resistência ao tempo urbano futuro que começara já. E isto porque a opção por caminhos de pedra em detrimento de caminhos-de-ferro – os primeiros tornam efectivo o ritmo da locomoção tradicional – nos diz a resistência garrettiana – e romântica – à Modernidade. Garrett, como outros intelectuais, revela reticências a entrar nesse novo mundo em que se implantará no imaginário colectivo a figura da rede, de que fala Michel Pierssens (18). E compreende-se o porquê: a rede desvirtua qualquer viagem odisseica porque descentra pontos de partida e de retorno – acaba com eles tout court. A complexidade intrínseca da rede adapta-se mal à demanda de uma qualquer origem, ou à sobrevivência de corpos colectivos originais (19). Por outras palavras, na Modernidade que instaura o trânsito puro e simples, não são possíveis viagens na nossa terra porque não há nem viagem nem nossa terra. O enunciado, entre o desiderativo e o apelativo, com que Garrett termina as Viagens, na verdade, denuncia ameaças de extinção várias. Não se trata apenas de um mundo que se estava a fazer de ferro e se quer de pedra: trata-se também, e sobretudo, de um livro – as Viagens – que se faz não sobre um país que a pedra viabiliza(ria) como tal, mas sim de um livro que se faz sobre a ficção de uma terra com caminhos e que, por conseguinte, é nossa. Assim, as Viagens na minha terra, interpretadas no momento da sua abertura, lançam as suas raízes num solo temporal duas vezes ausente: nem idade da pedra nem idade do ferro. Este Portugal fantasmático tem na prosopopeia de Santarém – aponto uma de várias possíveis prosopopeias já

que todas as personagens da «Novela da Menina dos Rouxinóis» o são – um dos seus ícones mais conseguidos. Por outras palavras, a terra é nossa e somos nós na medida em que não somos, ou, como viu Eduardo Lourenço, somos imaginário (cf. Lourenço, 1978: 85). Numa outra formulação do autor de Labirinto da saudade, falha-nos o presente (cf. Lourenço, 1974: 109). A demanda expectante da solidez do livro de pedra que Santarém urbe histórica é, perfila-se, pois, como paradoxal resistência à rarefacção de um Portugal ainda mais topografia do que território.

O CAMARTELO E A POLÍTICA DA MEMÓRIA A imagem borgesiana de um corpo colectivo que é já só farrapos de um mapa tem uma pequena mas significativa tradução nas Viagens na minha terra. Já em Santarém, o narrador-autor, quando confrontado com o palácio de Afonso Henriques, diz-nos o seguinte: «Sabe-se que é ali pela bem confrontada e inquestionável topografia dos lugares, por mais nada...» (Obras, I: 124-125). O lamento diz-nos bem da decepção que sofre o investimento de Garrett na espera de um livro de pedra. Recordemos o lugar já citado em que o A. assevera que o infantil povo português brincou, rasgou e mutilou o livro escalabitano (cf. Obras, I: 128). A viagem a Santarém, assim, não culminará com a manifestação epifânica da memória. Diante da incúria amnésica das autoridades municipais – e das estatais –, diante de umas ruínas que separam ainda mais as grandezas relativas do passado e do presente, estimula-se não a melancolia mas a revolta. E a revolta é o motor de um outro pronunciamento. Efectivamente, nas Viagens estamos perante a reclamação de uma política da memória ou, melhor, de uma politização da memória (20). Por outras palavras, a visitação garrettiana pelo lugar histórico por antonomásia, mais não faz do que mostrar como os espaços da história se trata de um

capital cultural de que é gestora – ou deveria sê-lo, essa é precisamente a questão – a sociedade nova. As ruínas profanadas suscitam fundamentalmente a denúnica da ausência de uma consciência, por parte dos guardiões da polis, de conservação. É dentro de uma lógica de gestão da memória que devemos entender a peregrinatio, neste sentido bem mais ad loca infecta que ad loca sancta (cf. Monteiro, 1984: 573). A diatribe garrettiana coincide com aquela levada a cabo por um Herculano que, em O Panorama em 1838, denunciara alto e bom som que «O camartelo é o enlevo, o bezerro de ouro, o Moloch, o Baal da nossa burguesia» (Herculano, 1979: 78). Para o autor de Eurico a «febre demolidora» é um achaque activo – e por isso mesmo responsabilizável –, a contrastar com a negligência passiva dos antepassados. O ataque da pena do escritor dirige-se, fundamentalmente, ao poder municipal. Não apenas, de qualquer forma. Insurge-se igualmente contra ausência de um regime legal – uma legalidade – que puna os «modernos iconoclastas» (idem: ibidem). Governo e Parlamento são, pois, indigitados também, já que argumenta que a propriedade dos monumentos é nacional e não local. Gostaria de destacar alguns aspectos destes esforços, tanto por parte de Garrett como por parte de Herculano, de colocar os monumentos na agenda dos bens culturais da nova sociedade. Em primeiro lugar, vemos que, globalmente considerado, o gesto de ambos sublinha um desfasamento entre o Estado e a sociedade civil. É, recordemos, no e pelo espaço público que ambos os intelectuais se pronunciam, isto é, participam como indivíduos. São membros de uma burguesia que foi introduzida na condição de civil pelo próprio Estado, como recorda Habermas (cf. 1997: 11), mas sem capacidade efectivamente institucionalizada de intervir nas instâncias de poder (21). Com as Viagens, neste sentido, Garrett interpela as benévolas e benévolos leitores burgueses em nome de uma super-consciência colectiva. Esta superconsciência colectiva é seduzida pelo álibi da alma nacional, ou se

quisermos, da memória. É a memória que proporcionará o organicismo que falta a Portugal. Nos primeiros compassos do cabralismo, a nação e, há que dizê-lo, o próprio estado, são tudo menos realidades apriorísticas. Portugal, mais do que um corpo uno e são, lembra uma federação composta de disiecta membra. Na verdade, estado e nação pertencem, exclusivamente, ao imaginário urbano – isto é, fundamentalmente lisboeta e portuense. Ora, a reclamação de estradas de pedra, como o faz o A. no fim das Viagens, concorre para a invenção de ambos, estado e nação, que só existirão após a possibilidade de trânsito entre a cidade e o interior do país (22). Eis pois, o que me parece relevante: o pronunciamento garrettiano tem todo o aspecto de publicitação de um statu quo, isto é, não deixa de servir a legitimação do centro urbano como centro do poder (23). Que Portugal volte a ser Portugal – lembre-se, também aqui, a prosopopeia escalabitana – significa que o seja nos termos de uma nova ordem e de uma nova classe que o garanta. Sedimentar as trocas, materiais e simbólicas, entre o que poderemos simplificar pelo binómio cidade/campo, isto é, tornar Portugal um organismo, é aumentar o raio de acção dos corpos da sociedade com interesses materiais, reforçando-os evidentemente no poder. Ora bem, o ponto onde quero chegar é que o próprio apelo em prol de uma política da memória serve os interesses da centralização do poder em Lisboa (24). É bastante significativo que Herculano reclame um associação que controle e sancione a demolição dos monumentos e o faça em nome do «patriotismo» dos seus membros: dispersos pelo reino, deveriam subordinarse a uma junta de residentes na capital. Vemos, pois, como o álibi nacionalista, isto é, o Portugal organicamente estruturado em nação consciente de si própria, serve os interesses de um espaço social que deterá o capital simbólico da memória histórica. A nação colocada na agenda da burguesia reforça-lhe – ou legitima-lhe – o poder simbólico a uma escala, passe o pleonasmo, verdadeiramente nacional.

A Santarém histórica garrettiana, fantasmática, a-capitalista e aindustrial, convoca o passado morto e, na maioria dos casos que a pena de Garrett registou, morto duas vezes, isto é, profanado. De algum modo, a culpabilização entoada pela (ir)racionalidade do camartelo burguês deverá ter sido lida com grande ênfase pela memória ainda recente das devastações militares. O burguês que devém barão trai os mortos e trai-se a si próprio pois foi contra profanações como as perpetradas pelos exércitos franceses que se empenhara o país novo (25). Daí que, também, a responsabilização pública do vandalismo se deva fazer, como quer Herculano, e na ausência de uma legalidade proteccionista efectiva, no âmbito de uma moral pública a que poderemos igualmente, como se compreende, chamar nação. A reclamação de uma consciência histórica, a reclamação de um monumento que seja memória – isto é, o monumento protegido e conservado –, para além de móbeis de identificação da «alma nacional» são, também, uma cruzada pela salvação de almas burguesas.

A RELIGIÃO DO PASSADO OU PORTUGAL COMO CEMITÉRIO-MUSEU Convoco uma vez mais a palavra de Herculano a fim de introduzir uma outra reflexão. No lugar antes mencionado, o autor de Eurico, o Presbítero clama pela conservação monumental em nome do seu valor de troca. A monumentalidade é capital produtivo, é riqueza social, na medida em que é a base do turismo cultural (26). Ao reconhecer que numa lógica de produção global os monumentos são produzidos como bens, Herculano está também a apontar-nos uma antropologia nova: o homem é também já produto desta lógica de consumo. Na verdade, estimular o gosto por ruínas e monumentos é apenas o umbral. Talvez mesmo que a componente psicológica e antropológica da cena da memória ideal – em que o sujeito se cifra e frui em modo melancólico – mascare, naturalize, ou ainda, como quer

Baudrillard (cf. 1972: 172), seja álibi, da lógica – e quiçá ideologia – do valor de troca. O uso em modo subjectivo da ruína, o tempo que Garrett propõe para que se contemplem as ruínas, é já um efeito astuto da concepção do monumento-como-mercadoria. Contudo, é ainda essencialmente para inglês ver. Herculano pensava, sobretudo, no turismo cultural estrangeiro como fonte de proventos para o país. O consumo doméstico dos monumentos terá, sobremaneira, um outro valor simbólico. A defesa do património – o nascimento da consciência dele em moldes românticos –, da História, se é uma forma de legitimar a nova sociedade (cf. Catroga, 1993: 549), significa também a museificação da memória do passado. O périplo garrettiano faz-se, em palavras do próprio autor, pelo «museu de antiguidade» que é Santarém (27). Museificar Portugal – só assim se congela a sua anima – significa disponibilizar o país como bem cultural – que o é, evidentemente, apenas e tão só para um público que o saiba contemplar. O que pretendo argumentar – acrescentando algo à ideia do historicismo como acto de legitimação – é que disponibilizar Portugal como museu-de-si-próprio significa a instauração de um ritual social – a contemplação – de sacralização da nação (28). Recorde-se, uma vez mais, a apóstrofe de Santarém, em que a forma urbis nos é dada como forma animi (cf. Rodríguez de la Flor, s.d.: 132). Um dos pontos álgidos das Viagens, faz-se sob a égide de um trabalho de luto em que se encena o retorno do morto (29). Projecta-se sobre a invocação, «tremendo esconjuro» em «língua consagrada», o conteúdo substantivo da cena da memória. Ora, o que se me afigura relevante é o facto de que ela acontece depois de o A. constatar a urbe como «livro rasgado», espaço «profano», sem «prestígio», sem «feitiço». Estamos – e esta ideia, ainda que não exactamente colocada nestes termos, faz parte do consenso interpretativo da obra – diante de um resgate ressacralizador da monumentalidade escalabitana, imagem sinedóquica de uma nação que se quer animizar.

O que proponho, neste ensaio, é ver nesta apóstrofe a configuração de um ritual social. Num certo sentido, a «língua sagrada», a linguagem mágica da cena da memória, torna-se «retórica» socialmente útil, no que considero suscitar, entre outras coisas, a reverberação da simbólica romântico-liberal do culto dos mortos, que Fernando Catroga dilucidou num penetrante ensaio de suma importância para o âmbito do literário (30). Animizar Santarém – ou que Portugal volte a ser Portugal – significa dar sepultura ao «cadáver», ao «esqueleto colossal da nossa grandeza». Dou uma vez mais a palavra a Garrett: «Ergue-te, Santarém, e diz ao ingrato Portugal que te deixe em paz ao menos nas tuas ruínas, mirrar tranquilamente os teus ossos gloriosos; que te deixe em seus cofres de mármore, sagrados pelos anos e pela veneração antiga, as cinzas dos teus capitães, dos teus letrados e grandes homens» (Obras, I: 156). O que se propõe aqui é o culto do Portugal-cadáver com um fim cívico que não é outro que o da perpetuação da memória por via da rememoração (cf. Catroga, 1993: 601) (31), isto é, da contemplação das ruínas. Digamos que a racionalidade do Portugal-museu-de-si-próprio é homóloga da racionalidade do Portugal-jazigo-de-si-próprio (32). Ao Portugal que se rasga como livro e ao Portugal que cospe no próprio cadáver, por outras palavras, ao Portugal da incúria amnésica, quer legar Garrett os hypomnemata que lhe restituam a memória – i.e., monumentos e ruínas, aqueles que me interessa destacar neste ensaio. Se a utilidade e o proveito das Viagens na minha terra reside, entre outros aspectos, na reclamação de uma política da memória, à luz do que tenho vindo a argumentar a obra é útil e proveitosa porque leitores e leitoras benévolas em tempos de prosa – e nisto, de facto, a docilidade na leitura é fundamental – são agraciados com o bónus de o sentimento de re-ligação à memória ser apresentado sob a forma de rito, ou, por outras palavras, na forma cívica de religião do passado. Estamos ainda longe dos hiper-nacionalismos mórbidos finisseculares, mas talvez não tão longe da pregnância com que, como

mostrou Américo António Lindeza Diogo, um Oliveira Martins fala do «Portugal-póstumo» (cf. Diogo, 1996: 46). Nas Viagens temos uma «jeremíada nacional» (cf. Santos, 1996: 64) sem que, contudo, nelas o álibi da história seja uma cegueira. O que acabo de dizer sublinha apenas a seguinte interpelação ao leitor benévolo, a quem Garrett convida a «[passar] o mesmo que eu passei; chegue-me a Santarém, descanse e ponha-se-me a ler a crónica: verá se não é outra coisa, verá se diante daquelas preciosas relíquias, ainda mutiladas, deformadas como elas estão por tantos e tão sucessivos bárbaros, estragadas enfim pelos piores e mais vândalos de todos os vândalos, as autoridades administrativas e municipais do feliz sistema que nos rege, ainda assim mesmo não vê erguer-se diante de seus olhos os homens, as cenas dos tempos que foram; se não ouve falar as pedras, bradar as inscrições, levantar-se as estátuas dos túmulos, e reviver-lhe a pintura toda, reverdecerlhe toda a poesia daquelas idades maravilhosas!» (Obras, I: 117). Com generosidade romântica, o narrador-autor oferece a sua experiência deceptiva da viagem para que seja re-vivida pelo leitor, na e como reacção à leitura. Na posterioridade da escrita e da leitura, a decepção torna-se útil. No âmago deste proposta narcísica e exemplarizante encontrase o conteúdo do que para Garrett significa ser Portugal «uma nação de milagre»: apesar do camartelo, da prosa e da folha rasgada, a Nação continua a ser viável, ou, por outras palavras, o «livro de pedra» continua a ser poesia em potência (33).

DO «LIVRO INQUALIFICÁVEL» Américo A. Lindeza Diogo e Osvaldo Manuel Silvestre, autores do ensaio Rumo ao português legítimo, mostraram já como «as Viagens na Minha Terra reflectem (em sentido activo e passivo) aquele conflito entre a

folha e o livro que o século XIX, liberal e democrático, viria a agudizar» (1997: 114). Letras e Literatura, Toucador e Joaninha, nas Viagens «[o] periodismo, corrigido pelo Livro, redunda em romance» (idem, ibidem: 115). Na verdade, e ainda segundo os mesmos ensaístas, na obra de Garrett temos a emancipação tentada mas inconsequente do «romance» (idem, ibidem: 117). Ora bem. Sugiro, em jeito de conclusão, a seguinte reflexão em relação ao «livro inqualificável» que as Viagens são. Do mesmo modo que Garrett propõe a ritualização – i.e., o uso socialmente útil, ou turístico – da contemplatio das ruínas, leva a cabo, ainda, uma outra proposta. Oferece também as Viagens como livro-a-ser-romance que se contrapõe ao «livro rasgado». A natureza inqualificável da obra residirá, igualmente, na contradição em que assenta: é em simultâneo prosa (Letras) e poesia (Literatura) ou, por outras palavras, folha de jornal e livro. Abel Barros Baptista, para cujo ensaio Autobibliografias volto a remeter, revê a questão da concomitante emergência do livro e do género romanesco (cf. 1998: 46 e ss.). Direi que as Viagens, romance to be que inventa uma tradição que não tinha (cf. Diogo-Silvestre, 1997: 120), dizem precisamente querer ser romance ao se colocarem en abîme no apelo constante, que aí encontramos, da nostalgia futurizante de ser Livro. A metáfora do «livro rasgado» – Santarém sinédoque de Portugal – não diz apenas a ausência de um Portugal de/em pedra. Tem, ainda, a função fática de reclamar a sua reinvenção como Livro, isto é, como romance.

NOTAS (1) Como é sabido, a melhor edição das Viagens na minha terra é a de A. Costa Dias (cf. Garrett, 1992). Contudo, em virtude do facto de, ao longo deste trabalho, citar e remeter para outras obras de Garrett – como O Arco de Sant'Ana, Camões, o Romanceiro, entre outras – optei por utilizar a edição das Obras de Almeida Garrett, em dois volumes, da Lello & Irmão (cf. Garrett, [1966]). As referências a esta edição foram abreviadas por Obras (I e II). (2) Utilizo o termo a partir de um ensaio de Fernando Rodríguez de la Flor que tem por título Biblioclasmo. Por una práctica crítica de la lectoescritura (cf. 1997: passim). (3) O convencionalismo «romântico» desta cena foi por várias vezes apontado por Garrett. Fê-lo, por exemplo, em Camõesou, como recorda Ofélia Paiva Monteiro, no caso do Magriço: «O texto de Magriço, escrito sob a luz acre do desengano e nessa paradoxal Inglaterra, tão pragmática...e tão romântica, parece-nos acusar já a mentira da nova literatura, que as Viagens denunciarão também: formas convencionais a sugerirem o ideal, quando sob elas tartufamente se escondia o espírito prosaico e ganancioso do século» (1971: 300). O comentário da autora de A formação de Almeida Garrett é fundamental para a interpretação da funcionalidade das ruínas nas Viagens. Ofélia Paiva Monteiro identifica no Magriço a contradição entre uma sociedade materialista (a inglesa) que consome literatura espiritualista. O que, neste ensaio argumentarei, é que nas Viagens, a par da parodização do sentiment des ruines, Garrett utiliza este mesmo sentimento como forma de suscitar a benevolência de leitoras e leitores, absolutamente imprescindível para garantir a eficácia de um dos pontos do seu pronunciamento: o apelo à memória e à sua politização.

(4) Uma obra de arte espacial – como o é um monumento ainda que em ruínas – apesar do mutismo (aparente) é, como recorda Derrida (cf. 1994: 12-13) um discurso virtual ou em potência. (5) Garrett parece conceber o artefacto visual – o monumento, a ruína – como a congelação de um momento. Ao mesmo tempo, a palavra teria o poder de animar essa representação fria. Lessing abordou esta questão, superiorizando a ekphrasis homérica do escudo de Aquiles, à ekphrasis virgiliana do escudo de Eneias. Argumenta o autor de Laocoon que na Ilíada o poeta liberta o momento congelado do objecto artístico. (6) O passo transcrito é introduzido do seguinte modo: «Se eu for algum dia a Roma, hei-de entrar na cidade eterna com o meu Tito Lívio e o meu Tácito nas algibeiras do meu paletó de viagem» (Obras, I: 116). Para a minha reconstituição da cena ideal pouco importa o facto de a viagem nos ser dada em modo hipotético. Pelo contrário. Confirma o sentido programático deste modelo de activação da memória. Sobre esta questão voltarei mais adiante. (7) Thomas Macfarland mostra como o sentido das ruínas é acompanhado pelo sentimento melancólico. O ensaio de Macfarland – profusamente ilustrado com exemplos de românticos de diferentes espaços nacionais – mostra como a fragmentaridade está presente no Romantismo a vários níveis: nos trajectos existenciais, nas obras, na apentência pelas ruínas, na melancolia, etc. Define-a, ainda, em função do desejo (longing) do Ideal, fundamento do Romantismo: «Like longing, melancholy rejects the hereand-now as containing no fullfilment. Unlike longing, it is shorn of hope and therefore posits no otherness toward which to strive – no land where the lemon trees bloom» (1981: 17). A psicologia melancólica tem um bom exemplo nos seguintes versos do Canto VII: «– Doía-me alma / Na solidão das ruínas; e a lembranças / Mais gratas me fugia o pensamento» (Obras, II: 375). (8) É no Canto VII que o poeta, outronímico de Garrett, confessa: «[...] Errante / Pela terra estrangeira, peregrino / Nas solidões do exílio, fui sentar-

me / Na barbacã ruinosa dos castelos, / A conversar coas pedras solitárias, / E a perguntar às obras da mão do homem / Pelo homem que as ergueu. A alma enlevada / Nos românticos sonhos, procurava / Áureas ficções realizar dos bardos, / Murmurei os tremendos esconjuros / Do Escaldo sabedor; – falei aos ecos / Das ruínas a língua consagrada / Dos menestréis; – perfiz solenemente / Todo o rito; invoquei firme e sem medo / Os génios misteriosos, as aéreas / Vagas formas da virgem de alvas roupas / Que, as tranças de ouro penteado ao vento, / Canta as canções dos tempos que passaram / Ao som da harpa invisível que lhe tangem / Os domados espíritos que a servem, / Como o subtil Ariel, por invencível, / Encantado feitiço...» (Obras, II: 373-374). (9) Dito de outro modo, Garrett não se compraz, como Volney nas suas Ruinas de Palmira, na fruição do espectáculo das ruínas. (10) Confessa o narrador das Viagens: «Não chamem exagerado ao que vai escrito no fim do último capítulo; senti o que escrevi, senti muito mais do que escrevi. O que poderá haver é desacerto nas palavras, porque em verdade não sei explicar a impressão que me faz uma ruína neste estado. Desafinam-me os nervos, vibram-me numa discordância e dissonância insuportável.» (Obras, I: 176). Note-se como a ruína profanada influi negativamente sobre a palavra. (11) Utilizo aqui uma expressão feliz de Fernando Matos Oliveira. Num texto recentemente publicado em Ciberkiosk (nº 3, 1998) sobre O Delfim, intitulado «A ideologia da técnica na ficção de José Cardoso Pires: inspecção periódica ao Jaguar E-4.2 d’O Delfim», afirma: «Em ambos os romances [isto é, O Anjo Ancorado e O Delfim] se institui uma curiosa iconografia da deslocação, com manifesto interesse histórico. Distintamente, cavalos, bicicletas e automóveis carregam os Homens pelo espaço da ficção». É esta relação entre a imagética da deslocação, ou do movimento, e a História que me interessa também aqui destacar.

(12) O historiador interpreta esse enigmatismo como sendo um produto das contradições endógenas do programa liberal: «Os problemas com que Garrett se debateu, adentro das metamorfoses históricas do ideário liberal, são, afinal, as da antinomia – de ontem e de hoje também – instalada na prática socioeconómica entre a liberdade e a igualdade, identicamente proclamadas pela Revolução Francesa. O que o move não é, pois, a saudade do passado, que ajudou a desmontar, mas a apetência de um futuro que não jungisse ao carro triunfal de uns tantos um cortejo de vítimas imanes. E era isso, e esse, o capitalismo que se buscava impor, cuja vanguarda eram os entressonhados caminhos de ferro...» (idem, ibidem: 122). Recorde-se que, sobretudo a partir da instalação da oligarquia cabralista, um sector ilustrado da burguesia, onde para além de Garrett pontua também Herculano, luta por um progressismo de tipo moral. Uma utopia de progresso, diga-se de passagem, que é a ideologia possível para um país já assumido como periférico. O que me interessa recordar, neste momento, é a afirmação, dentro da ascendente classe burguesa, de um núcleo intelectual que vive a contradição de contribuir para a invenção da nação ao mesmo tempo que a assiste à sua marcha agonizante. E isto porque o mercado – o campo literário – que é o caldo de cultivo em que prosperam e que alimentam, é viável por aquele outro mercado económico cuja dinâmica tanto denostam. Consciência de crise, fundação da nação e nascimento da literatura implicam-se inextricavelmente. O Romantismo português diz-nos que a génese da literatura se fez a partir de uma consciência do periferismo da nação portuguesa. O programa cultural garrettiano – ou melhor, a imagem que dele se desprende nas Viagens na minha terra – espelha o lugar da nação na balança da Europa. Se, como creio, vêm entroncar neste facto, ideias como a de uma «uma ausência do Romantismo» (Lourenço, 1974: 106), não há que esquecer que o próprio alto-romantismo se opôs à Modernidade na sua feição capitalista e industrial (cf. Lowy-Sayre, 1992: 46 e ss.).

(13) Os esforços reformistas pombalinos, globalmente considerados, foram os responsáveis pela mudança na visão do território. Leia-se o seguinte passo da História da Arte Portuguesa, da responsabilidade de Paulo Pereira: «[A] relação economia-reformismo-urbanismo, cuja percepção na história deste período é imadiata, teve insuspeitada correspondência na escala global do território. A estruturação empreendida só me parece compreensível perante uma radical mudança da perspectiva macro-económica que, grosso modo, pode ser sintetizada da seguinte forma: ao Império litorâneo e marítimo de lida essencialmente comercial, correspondia desde o início da Expansão, o mercantilismo; ao Império de 'terra firme' que possibilitava o desenvolvimento dos sectores primário e secundário da economia, demandado a partir de D. Pedro II, mas materializado na época pombalina, tinha que corresponder ao primeiro estádio das teorias do capitalismo contemporâneo, o fisiocratismo» (1995: 312). Ora, a lógica fisiocratista implica a instauração de uma rede de circulação que active o transporte efica dos produtos. Daí, pois, a necessidade de ordenar o espaço territorial, necessidade que agencia o surto de uma nova topografia. (14) Refiro-me à imago sugerida por José Figueiredo de Seixas, no seu Tratado de Ruação, de motivação iluminista. Seixas ordena o espaço nacional a partir de módulos quadrados, de modo que o país se assemelha a um tabuleiro (cf. Pereira, 1995: 313). Temos, aqui, o desenho – bem cartesiano – de um Portugal orgânico. (15) A topografia da cidade de Lisboa é um bom exemplo da estagnação da capital. Recorda José Augusto França que «As plantas de Lisboa, sucessivamente traçadas, desde 1807 até 71, dão-nos conta desta estabilidade topográfica – e se a primeira, do capitão Fava, pôde ser litografada já em 31, uma planta inglesa de 1812 pôde ser reeditada até 55, com mínimas alterações» (s.d.: 308-309). (16) Sintetiza Paulo Pereira, no seguinte passo, a confluência de várias tendências no referido palácio: «O ecletismo da arquitectura do Palácio

revela a intenção de fazer dele como que um catálogo de formas neomedievalizantes e exóticas disponíveis na altura. Do neogótico ao neomourisco, passando por sugestões indianas e pelo inevitável manuelino, tudo ali aparece segundo um esquema de fascinante bricolage» (1995: 359). Recorde-se que Garrett considerava o manuelino – o «romântico» neomanuelino, inventado por Varnhagen – o estilo especificamente português. (17) Eis um dos lugares de «Paris, Capital do Século XIX» em que Walter Benjamin nos propõe uma definição de flâneur: «El 'flâneur' está en el umbral tanto de la gran ciudad como de la clase burguesa. Ninguna de las dos le ha dominado. En ninguna de las dos se encuentra como en su casa. Busca asilo en la multitud... Esta es el velo a través del cual la ciudad habitual le hace al 'flâneur' guiños de fantasmagoría. Tan pronto es paisaje como estancia. Uno y otra edifican el bazar que hace que el callejeo sea útil para la venta de la mercancías. El bazar es el último golpe del 'flâneur'» (1998: 184). Haverá que esperar por Cesário para encontrar a expressão poética de uma deambulação citadina análoga à desse tipo benjaminiano (cf. Diogo, 1996: 38 e passim). (18) Para Michel Pierssens o caminho-de-ferro opera uma tranformação no imaginário colectivo. A complexidade de uma rede que se universaliza gera ansiedade. Sobretudo, importa-me destacar aqui a ideia de um trânsito sem um início ou um fim (cf. 1988: 11). (19) Apelo aqui para a distinção entre o original e o diferente nos termos em que o faz Boaventura Sousa Santos (cf. 1996: 51). (20) Sobre a implicação da política e da memória, tenha-se presente a seguinte reflexão de Jacques Derrida: «Le fait qu'il y ait une politique de la mémoire pose déjà un problème. Il faut la mémoire, pense-t-on spontanément, et la mémoire vaut mieux que l'amnésie. Supposons un instant que ce soit inconditionnellement vrai. Cette mémoire étant finie, estce qu'on va déléguer cette responsabilité à une institution dite étatique, c'est-

à-dire à un dispositif de pouvoirs qui, en fait, sous le non d'État – et l'histoire nous a apris a penser cela -, représente toujours une fraction de la nation, sinon une classe, du moins quelque chose qui n'est pas la «volonté intégrale» ni souvent la «volunté générale» de tous les citoyens de cet État, les citoyens passés, présents et à venir?» (Derrida-Stiegler, 1996: 74). O argumento de Derrida conclui com a necessidade de vigilância crítica desta política da memória. Não é este apelo, contudo, o que me interessa destacar aqui. O que me importa é a relação que estabelece entre classe-estado-poder e memória, agentes da sua (inevitável) politização. (21) Recordemos que Garrett, à data da viagem, tem os olhos da Polícia Secreta no seu encalço. (22) Joel Serrão cita um longo passo retirado da Revista Universal Lisbonense, de 1842, onde se anuncia a criação da Sociedade Promotora dos Interesses Materiais da Nação. Desse passo, para que remetemos, permitimo-nos destacar as seguintes palavras, bem reveladoras: «É preciso que a população rural venha à cidade, e a urbana vá ao campo. Sem esta fusão, Portugal, não obstante ser tão pequeno, não há-de ser nação, nem o seu governo será senão Lisboa e alguma coisa do Porto; o resto do país não há-de ser nação, nem o seu governo será senão Lisboa e alguma coisa do Porto; o resto do país não há-de ter a consciência do que se entende por esse vocábulo, nem lhe há-de importar muito adquiri-la» (apud Serrão, 1980: 64). (23) Caberia perguntar-nos se será de todo abusivo ver neste gesto um seviço, malgré lui, aos interesses da oligarquia do baronato. Escaparão as Viagens à voragem do status in statu que denuncia? (24) Lisboa e Porto, mas sobretudo a capital, reforçam, com a marcha do século, a sua influência sobre o interior (cf. Serrão, 1988: 140-141). Únicos centros civilizacionais, a cultura e a economia burguesas reforçam cada vez mais o seu atractivo. O programa liberal, que já fora também iluminista, de estabelecer vasos comunicantes que dêem um cariz orgânico ao país,

desemboca, no mínimo, no reforço do centralismo. Crescimento urbano e centralismo terão o seu anti-clímax em manifestações como o spleen. (25) Recordo aqui, a título ilustrativo, a descrição que um oficial inglês, em 1811, fez do Convento de Alcobaça – um dos monumentos que viria a merecer especial atenção pelo ímpeto restauracionista. Trata-se do Tenentecoronel Tomkinson, do 16º regimento de Dragões, participante activo na guerra peninsular. Diz-nos: «O convento de Alcobaça excedia tudo o que já vi como obra de destruição. Tinham queimado tudo o que podiam e destruído o que ficara com grande esforço. Os reis e rainhas embalsamados tinham sido tirados dos seus túmulos e vi-os jazendo tão preservados como no dia em que tinham sido enterrados. O belo chão de mosaicos desde a entrada até ao altar tinha sido picado à picareta, os pilares de pedra destruídos quase até ao topo, para o que tinham montado andaimes» (citado por Pires, 1981: 78). Creio que este passo nos dá um bom índice da intensão – e intenção – psicológica envolvida na denúncia do gesto demolidor. (26) Ainda que extenso, leia-se o seguinte passo do opúsculo «Monumentos Pátrios» publicado nos números 69 e 70 de O Panorama: «Calculai quantos viajantes terão atravessado Portugal neste século. Decerto que não vieram cá para correrem nas nossas cómodas diligências pelas nossas belas estradas, ou navegarem nos nossos rápidos vapores pelos nossos amplos canais; decerto que não vieram para aprenderem a agricultar com os nossos agricultores, nem a fabricar com os nossos fabricantes; mas para admirarem os mosteiros da Batalha, de Alcobaça e de Belém, a Sé Velha de Coimbra, a catedral, a Igreja de S. Francisco e o templo romano de Évora, a matriz de Caminha e a colegiada de Guimarães, os castelos da Feira e de Almourol, e, enfim, tantas obras-primas de arquitectura que encerra este cantinho do mundo. Credes que esses romeiros da arte voltam da romagem aos seus lares sem despender muito ouro, e esqueceis que esse ouro ficou por mãos portuguesas? E falais de economia política, e aniquilais o capital dos monumentos? Adoradores do camartelo, por qualquer lado que se observe a vossa obra, não se descobre

senão o absurdo» (Herculano, 1979: 80-81). Herculano, como constatamos, diatriba o poder burguês com argumentos burgueses. (27) Eis o passo em que a pena de Garrett homologa a experiência da visita à urbe histórica à experiência de uma visita a um museu: «Apenas comecei a respirar o ar fresco da manhã nos olivais, senti desafogar-me a alma daquela constrição cansada que se experimenta na longa visita a um museu de antiguidades, a uma galeria de pinturas» (Obras, I: 180). Segue-lhe, imediatamente, o seguinte apontamento linguístico: «Perdoem-me que não diga «pinacoteca»: bem sei que é moda, e que a palavra é adoptável, segundo as mais estritas regras de Horácio, pois «cai da fonte grega», direitamente e sem mistura: mas soa-me tão mal em português que não posso com ela.» (idem: ibidem). O comentário insere-se no controlo do português de lei. Contudo, revela algo muito importante: a recente implantação de espaços públicos – que também são museus – de exposição pictórica. As Academias de Belas-Artes de Lisboa e Porto datam de 1836, e a primeira exposição em Lisboa teve lugar em 1840. Garrett, no contexto do setembrismo, jogou o seu papel nesta criação (cf. França, 1979: 31). (28) Neste passo remeto para a simbólica do museu que se encontra nas seguintes reflexões de Pierre Bourdieu: «El museo, que aísla y separa (frames apart), es sin duda el lugar por excelencia del acto de constitución, continuamente repetido con la constancia inalcansable de las cosas, a través del cual resultan afirmados y continuamente reproducidos tanto el estatuto de sagrado conferido a las obras de arte como la disposición sacralizante que éstas suscitan. La experiencia de la obra pictórica que impone este lugar exlcusivamente consagrado a la contemplación pura tiende a convertirse en la norma de la experiencia de todos los objectos pertenecientes a la categoría misma que se está constituyendo debido a su exposición» (1995: 430-431). Ao Portugal histórico como Portugal de museu não escapa, ainda que – especulo – disso se não aperceba Garrett, a memória do «povo povo». O interesse de Garrett pelo romanceiro – de que é pioneiro – é um interesse

estetizante. E não me refiro (apenas) a que o autor de Folhas Caídas romanceou o material recolhido. Refiro-me, sim, ao facto de descontextualizar esse mateiral, conferindo-lhe uma funcionalidade – literária – que não é a do romanceiro. Nas mãos de Garrett um romance é mais uma peça de museu, a memória que deixa de ser voz para passar a ser letra impressa... isto é, um bem cultural disponível para a leitura que, lembremos, é e cria um espaço de consenso «nacional». Atrevo: o estético oculta o político. Leia-se o seguinte passo da introdução do Romanceiro: «Pretendo suprir uma grande falta na nossa literatura com o trabalho que intentei nesta colecção. Não quero compor uma obra erudita para me colocar entre os filólogos e antiquários, e pôr mais um volume na estante de seus gabinetes. Desejo fazer uma coisa útil, um livro popular; e para que o seja, torná-lo agradável quanto eu saiba e possa. As Academias que elaborem dissertações cronológicas e críticas para uso dos sábios. O meu ofício é outro: popularizar o estudo da nossa literatura primitiva, dos seus documentos mais antigos e mais originais, para dirigir a revolução literária que se declarou no País, mostrando aos novos engenhos que estão em suas fileiras os tipos verdadeiros da nacionalidade que procuram, e que em nós mesmos, não entre modelos estrangeiros, se devem encontrar» (Obras, II: 680; os sublinhados são meus). (29) Um luto que, de uma forma ou de outra, a leitura histórica tem projectado sobre o oitocentismo português e, ainda – o que talvez seja o mesmo – sobre o nosso Romantismo Refiro-me à «ausência do Romantismo» (Lourenço, 1974: 106). Contraste-se esta visão interpretativa com a imagem do Romantismo como «glorioso cadáver insepulto» (Sena, 1981: 84). Eduardo Lourenço afere a inexistência de Romantismo em Portugal pela nossa situação histórica das primeiras décadas de oitocentos, enquanto que Jorge de Sena instabiliza o conceito de Romantismo em função de disjunções no tempo, no espaço e na configuração da Weltanschaung «romântica».

(30) Refiro-me a «Morte romântica e religiosidade cívica» (1993: 595-607). Afirma o historiador: «Dito de outro modo: somente quando o liberalismo entrou na sua fase de maior estabilidade política e prosperidade económica (Regeneração) e o poder ultra-romântico da cultura alimentada pela nova classe dirigente (dominada por burgueses enriquecidos e, muitas vezes, recentemente enobrecidos) se afirmou o novo culto dos mortos encontrou as condições mentais e materiais (financeiras) para se objectivar esteticamente. Bem vistas as coisas, o jazigo constituía um bem imóvel, privado e transmissível por herança, funcionando, assim, como uma espécie de garantia simbólica de que a eternização da memória do seu proprietário só dependeria da capacidade de os seus descendentes perpetuarem toda a propriedade familiar» (idem, ibidem: 601). (31) Distingo aqui, recorrendo a Hegel, Erinnerung e Gedächtnis, isto é, a memória como «intimidad de una interioridad», e a rememoração como «hipomnesis técnica y mecánica» (Derrida, 1998: 45-49). (32) Remeto, uma vez mais, para o ensaio de Fernando Catroga (1993: 600601) que mostra como a encenação romântica da necrópole se pauta pela ideia do «cemitério-museu». (33) Considero assaz iluminadoras as seguintes palavras de Fernando Rodríguez de la Flor, em texto recente sobre o significado da cidade histórica: «[La] condición a-capitalista/ a-industrial de la ciudad muerta, se convierte en un elemento central en su imaginario y en sus representaciones. La misma suspensión de la historia junto con el desplazamiento de los ejes y vectores de voracidad capitalista, crea así en ella un fantasma de centralidad cósmica; la fantasmagoria de pasado que asume la condición de la piedra vetusta trabaja en revelarla como una suerte de omphalos, de un sacra, de un centro magnético universal que contiene energías extintas.» (in Ciberkiosk, nº 4, 1998). Podemos reconhecer em Santarém a mesma pregnância magnética.

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