Linguagem no Direito: aspectos estilísticos e organizacionais como \"preservação de faces\"

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Linguagem no Direito: aspectos estilísticos e organizacionais como “preservação de faces1”

Resumo Este trabalho tem como objetivo mostrar de que forma aspectos estilísticos e organizacionais constituem estratégias linguístico-textuais relevantes para a preservação de faces na prática jurídica. Situado em uma perspectiva sóciointeracionista-discursiva (Bronckart, 1999) para a análise de textos que circulam em práticas sociais diversas, considera-se, como hipótese de trabalho, que gêneros com alto grau de institucionalidade (Pinto, 2010), como os da atividade jurídica, apresentam características ritualizadas. Com isso, pressupõe-se que os indivíduos que atuem nesta devam respeitar normas institucionalmente reguladas e estabelecidas. É dessa forma que as faces dos juristas (incluindo as dos advogados e dos Magistrados) e da própria instituição serão preservadas. A título exemplificativo, foi selecionada, para análise, uma petição inicial da esfera cível, que circulou em Portugal, em 2002.

1.Introducão O Direito é um sistema normativo que tem como objetivo básíco regular a conduta humana2 e é através da linguagem que esta conduta é regulada e as normas utilizadas são decodificadas em função de eventos de natureza jurídica. O Direito é essencialmente um fenômeno linguístico3. Pode dizer assim que é pela linguagem (oral ou escrita) que um jurista, em seu exercício profissional, transpõe os fatos de natureza jurídica para os processos judiciais, fazendo incidir a norma sobre casos concretos. Além disso, o Direito, sendo gerido por sistemas prescritivos (normas) que têm como finalidade direcionar a conduta humana, é formalizado através de documentos com alto grau de institucionalidade (Pinto, 2010). Estes apresentam, prioritariamente, características ´reguladas´ pela própria instituição jurídica, mas também podem vir a ter algumas especificidades em função do agente social envolvido (jurista responsável pela produção do texto oral ou escrito). Na verdade, existem escolhas estilísticas (mais de caráter colectivo ou individual) e organizacionais perpetradas quando da produção dos documentos jurídicos. A partir deste contexto, esta contribuição, centrada em uma perspectiva textualdiscursiva (Bronckart, 1999: Maingueneau, 2002) objetiva, por um lado, mostrar alguns aspectos estilísticos e organizacionais presentes em textos produzidos por juristas 1

Para Goffman, em qualquer interação social, considerada um lugar de risco, os interactantes adotam determinada linha de conduta, selecionando atos verbais ou não-verbais através dos quais expressam certa visão da situação. Com isso, a face pode ser definida como o valor social positivo que uma pessoa reclama para si mesma através daquilo que os outros presumem ser a linha por ela tomada durante um contato específico. A face é, assim, uma imagem do self delineada em termos de atributos sociais aprovados- Cf. GOFFMAN (1980, p. 76-77). O conceito de face foi ampliado e reformulado por BROWN & LEVINSON (1987) que a subdividem em face positiva e negativa. 2 Conforme GABRIEL, I. (2014) – cf. http://www.ibet.com.br/download/Gabriel%Ivo(2).pdf. Consultado em 19 de Outubro de 2014. 3 Segundo GUASTINI, R. Le Fonti del Diritto – fondamenti teorici. Milano: DOTT.A. Giuffrè. Editore, 2010, p. 3.

portugueses e, por outro, demonstrar de que forma essas escolhas podem vir a ser estratégias relevantes tanto para preservar a face institucional quanto do próprio representante legal envolvido. Para atingir esses objetivos, serão apresentados, primeiramente, alguns conceitos que permearão este trabalho: os de texto, gênero, discurso. Em seguida, far-se-á um breve retrospecto das abordagens teóricas que trouxeram a questão do estilo do universo literário para outras manifestações da linguagem verbal. Os diversos autores – Bally (1965); Bakhtin (1997); Adam (1997, 1999), com as suas especificidades teóricas, contribuíram para o estudo de questões estilísticas em textos que circulam em contextos sociais diversos. Destes autores serão destacados os trabalhos do segundo autor que relacionam o estilo ao estudo dos géneros discursivos e os do terceiro que trouxeram, recentemente, o estudo do estilo para o âmbito da análise da linguística dos textos e dos gêneros discursivos. Por fim, analisar-se-á um exemplar de um gênero textual da prática jurídica: uma petição inicial4, salientando os aspectos estilísticos e organizacionais relevantes. Algumas perguntas permeiam este trabalho. Os textos inseridos na prática jurídica podem vir a apresentar aspectos estilísticos linguisticamente marcados? São estes individuais ou funcionais (voltados ao âmbito mais colectivo)? Estes, de certa forma, protegem a face do agente produtor face à instituição? E, em relação a aspectos organizacionais, quais seriam os evidenciados em documentos jurídicos? Seriam eles também responsáveis pela preservação da face dos interactantes? No intuito de se responder a estas perguntas, foram repertoriadas, primeiramente, algumas petições iniciais (doravante PI) que circularam na esfera cível em Lisboa (cerca de dez, no ano de 2002). Contudo, para este estudo, centrado sobretudo em uma análise qualitativa, foi selecionado um exemplar deste gênero textual5. Neste serão analisados os aspectos situacionais que influenciam a materialização linguístico-textual; os elementos estilísticos e organizacionais, prioritariamente. 2.Revisitação de alguns conceitos teóricos Nesta contribuição, os textos são definidos como unidades comunicativas globais, constituindo ações de linguagem contextualmente situadas – Bronckart (1999). Dessa forma, um agente produtor, em função das representações que tem de determinado contexto de produção (lugar, momento, finalidade da comunicação) e do contexto sóciosubjetivo em que se situa (papel dos interactantes), quando da produção de determinado texto, deve, por um lado, adotar modelos de textos sócio-historicamente estabilizados (gêneros textuais/discursivos) e, por outro, adaptá-los em função de questões contextuais diversas. Com isso, os textos, forçosamente inseridos em gêneros textuais6 são considerados objetos empíricos e apresentam três vertentes analíticas: a social (praxiológica); a 4

Todo indivíduo, ao se sentir lesado, tem o direito de agir, ou seja, invocar a tutela jurisdicional do Estado. Esse direito é exercitado a partir da formulação de uma petição inicial, que corresponde ao ato introdutório de um processo civil. Essa inicial (ou petição inicial), que é redigida e assinada por um advogado, representante legal do indivíduo lesado, corresponde ao pedido a um juiz de uma providência processual adequada. Sem a PI, nenhum juiz dá início a um processo . Tal peça processual é estruturada conforme o Código de Processo Civil (doravante CPC), no seu art. 467º. A não observância aos aspectos detalhados no CPC poderá implicar um indeferimento do pedido. 5 Devido à não autorização do escritório de advocacia, o documento não foi anexado a este trabalho. 6 Existem flutuações teóricas entre as denominações gênero(s) do discurso e de texto. Como será demonstrado, autores como Bakhtin e Adam utilizam a primeira denominação; já Bronckart, a segunda. Como trabalhamos, sobretudo, com uma análise linguístico-textual, optamos pela denominação defendida por BRONCKART (1999): gênero(s) de texto.

textual (plurissemiótica) e a psicológica (gnosiológica), sendo que todas essas dimensões interagem de forma dinâmica. Nesta colaboração, privilegia-se a dimensão textual e advoga-se que a materialização linguística (que será estudada no exemplar de gênero textual7) é condicionada pelas atividades/gêneros em que estes textos se veiculam. No caso, trabalha-se com a petição inicial, gênero textual com finalidade persuasiva e considera-se, à semelhança de Pinto (2010) que, ao descrever textos desta natureza, deverão ser considerados tanto os componentes externos (contextuais de natureza variada), quanto os internos (estilísticos, organizacionais e  enunciativos  “ampliados”)  dos textos em questão. Como centrar-se-á aqui, prioritariamente, no estudo dos elementos estilísticos utilizados no exemplar do texto em questão, responsáveis pela preservação das faces, far-se-á um breve retrospecto sobre a noção de estilo. Com isso, poder-se-á estabilizar o conceito atribuído a estilo neste trabalho. 3.Estilo – um breve retrospecto teórico8 Foram os estudos de Bally que procuraram deslocar o estudo da “estilística” da língua literária ou da genialidade individual de um escritor para a língua oral, corrente, de uma dada comunidade. Durante muitos anos, o autor tentou adotar o termo estilística linguística para o estudo da variedade de formas que poderiam ser adotadas em função de determinada ação e de determinado indivíduo. No entanto, sem nenhum sucesso, adotou em suas obras, mais frequentemente, o termo “enunciação”. Essa estilística linguística, “mascarada” de enunciação, poderia vir a estar associada, numa versão atual dos estudos linguísticos, àquilo que seriam considerados os aspectos interacionais da linguagem verbal: Si  vous  désirez  que  quelqu’un  vienne  vers  vous,  vous  ne  le  dites  pas  toujours  de   la même façon; votre expression se modifiera, selon les rapports existant entre vous et la personne interpellée, et surtout selon le degré de résistance ou d’acquiescement  que  vous prévoyez de sa part. (BALLY, 19654, p.21) Ou ainda, essa mesma estilística linguística estaria relacionada ao que atualmente seria considerada a dimensão acional   da   linguagem:   “La   stylistique   étudie   donc   les   faits   d’expression  du  langage  organisé  au  point  de  vue  de  leur  contenu  affectif,  c’est-à-dire l’expression  des  faits  de  la  sensibilité  par  le  langage  et  l’action  des  faits  de  langage  sur   la  sensibilité.”  – Bally (19513: 16). Com isso, pode-se afirmar que Bally teve um papel precursor nos estudos linguísticos. Por um lado definiu uma estilística linguística e por outro associou-a a aspectos pragmáticos e interacionais. Foi através do ciclo bakhtiniano que a questão do estilo foi integrada à problemática dos géneros. Em Estética da Criacção Verbal, Bakhtin ressalta a sua interação com os demais elementos que compõem o gênero discursivo. Na verdade, este, ao transitar por todas as atividades humanas, deve ser observado a partir dos três componentes: do estilo, das unidades comunicacionais e do tema. Segundo este autor: A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos); concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da actividade humana. O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, 8

Algumas destas reflexões foram previamente realizadas em: Pinto (2014)..

não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais –, mas também, e sobretudo, por sua construção composicional. Estes três elementos (conteúdo temático, estilo e construção composicional) fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação. (BAKHIN 19972, p.279) Com isso, foram delineados alguns princípios básicos para o entendimento da noção de estilo: a seleção dos recursos da língua deve estar em interação com os demais componentes do gênero e, ainda, essa mesma selcção sofre influências da esfera de comunicação em que o enunciado é produzido. É importante salientar que, além de definir com mais clareza a questão do estilo, ao integrá-la a aspectos que perpassam uma simples seleção lexical, fraseológica ou sintática, Bakhin, nessa obra, faz uma reflexão acerca da noção de estilo. Segundo este autor, o estilo apresenta duas vertentes: o individual e o linguístico ou funcional9. Cada esfera tem seus gêneros específicos, aos quais estão relacionados estilos peculiares. Em relação ao estilo funcional, Bakhtin o  define  como  “o  estilo  de  um  gênero peculiar a uma dada esfera da atividade e da comunicação  humana”  – Bakhtin (19972: 283). É importante mencionar que, para Bakhtin, a estilística tradicional tende a definir o estilo baseando-se unicamente no conteúdo do discurso e na relação que o locutor mantém com o mesmo, subestimando, assim, a relação que o locutor tem com o seu interlocutor10 e com seus enunciados (existentes e presumíveis). Com isso, Bakhtin reitera a importância do estudo do estilo linguístico, interligando-o à noção de gênero, afirmando que um estudo desvinculado dos dois acarreta uma série de problemas. Segundo o teórico, as mudanças históricas que ocorrem nos estilos da língua são indissociáveis das mudanças que se efetuam nos gêneros do discurso. No caso da petição inicial, gênero textual em análise, notam-se, evidentemente, enunciados mais elaborados, mas que seguem certos formatos já prescritos e estipulados pela tradição do próprio gênero11. Por outro lado, é Adam, em sua obra de 1997, inteiramente consagrada ao estilo, que resgata a questão para os estudos linguístico-textuais, mostrando que o estudo da estilística deve ser ampliado a qualquer texto12. O objetivo de Adam, nessa obra dedicada à dimensão estilística dos textos, não será de opor textos com ou sem estilo, mas de considerar que essa dimensão representa uma escolha e uma variação de recursos linguísticos e estará sempre presente nos enunciados – conforme Adam (1997:11). Em obra posterior, a de 1999, o autor procura reforçar o estudo do estilo numa perspectiva de género. Assumindo pressupostos teóricos anteriormente defendidos por Bakhtin, Adam considera que o gênero discursivo apresenta um núcleo normativo, relativamente estável, impondo coerções para o enunciador, no processo de produção. No entanto, apresenta-se flexível no que diz respeito às escolhas das formas da língua, dependendo da prática social em que se insere. Estabelecendo um paralelo entre a questão do estilo e a de gênero, Adam coloca-os em níveis diferentes. Enquanto 9

Para mais detalhes, ver BAKHTIN (19972: 283). A escolha de um estilo dependerá do modo como o locutor percebe e compreende o seu destinatário, do qual ele presume uma compreensão responsiva ativa. Cf. BAKHTIN (19972: 324). 11 Tais gêneros são denominados instituídos por Maingueneau (2004). Estes são pouco permeáveis a mudanças e apresentam características estruturais mais rígidas. 12 É de ser ressaltado, nos estudos em português europeu, o trabalho de Coutinho que partilha o ponto de vista defendido por Adam. Para detalhes, ver: COUTINHO (2002). 10

o estilo e a gramática estão no nível microlinguístico; o gênero juntamente com o texto estão no nível macrolinguístico. Para este autor, o estilo estaria para a gramática, como a texto para o gênero, O estilo e o texto estariam em uma zona de variação; enquanto os dois outros (a gramática e o género) integrariam o núcleo mais normativo. Nesse último núcleo também haveria o(s) estilo(s) no plural, que talvez se referisse à forma como a língua é mobilizada em cada gênero. Pelo que foi observado, o conceito de estilo para Adam pouco se aproxima à desenvolvida por Bakhtin. Primeiramente, Adam valoriza sobretudo o aspecto microlinguístico do estilo e leva pouco em conta a sua interação com as práticas discursivas em que esse microlinguístico se insere. Em segundo lugar, o autor não considera que o tema bakhtiniano (que para ele diz respeito ao nível semântico), as unidades composicionais (que constituem a estrutura composicional) e o estilo estão em constante interação dentro da perspectiva de gênero. Ademais, o teórico não salienta que as escolhas estilísticas também devem ser feitas de acordo com o grau de conhecimento que um destinatário tem de uma situação, seus pontos de vista, suas crenças. Tudo isso condicionará uma compreensão responsiva desse enunciado por parte desse destinatário. Em publicação posterior, de 2001, Adam ratifica que o estilo é um dos vários componentes do gênero por ele apontados.. E, ainda, insiste no fato de que esse componente estaria relacionado ao fraseológico, sendo que ambos comporiam o que o autor denomina textura microlinguística. Realizado este percurso teórico, é relevante estabilizar o conceito de estilo nesta contribuição. Considera-se aqui que ele corresponde às escolhas plurissemióticas (linguísticas e não linguísticas) perpetradas pelo agente produtor quando da produção de textos, sendo que esta seleção é coibida por fatores contextuais diversos. 3. Gênero textual – petição inicial Far-se-á, primeiramente, um detalhamento dos componentes externos do gênero em análise e, em seguida, far-se-á um levantamento dos componentes internos, de natureza microlinguística. Partindo de uma metodologia descendente de análise, como preconiza os princípios teórico-metodológicos do Interacionismo Sociodiscursivo (Bronckart, 1999), os elementos contextuais, de natureza externa, influenciam a semiotização dos diversos elementos plurisemióticos observados ao nível textual. 3.1. Componentes de natureza contextual No caso do gênero em questão, todos os componentes serão apresentados. Contudo, dois componentes infuenciarão mais notoriamente o universo textual: o metatextual e o situacional. Neste, destacam-se o papel das instâncias interlocutivas, o lugar de circulação e a finalidade, como será atestado. 3.1.1. Componente arquitextual A PI, como sabemos, está inserida no Código de Processo Civil que, por sua vez, faz parte do discurso jurídico. É sabido, dentro do meio jurídico, que este gênero segue uma tradição no seu formato textual que se mantém ao longo de séculos, não apresentando praticamente alteração, o que torna difícil termos um real conhecimento de sua origem. Tal questão nos parece remeter ao fato de esse género estar diretamente relacionado ao discurso constituinte jurídico.

3.1.2. Componente intertextual Podem ser pontuados dois níveis de intertextualidade, no caso da PI: - Relação da PI com outros textos do processo. - Relação da PI com o enquadramento legal que a sustenta legalmente. A PI é a peça que dá início a um processo, podendo ou não ser seguida de uma contestação do Réu. Como se trabalha aqui com documentos isolados, não se pode discernir com exatidão se, na continuação do processo, haveria uma contestação com a qual a PI estaria dialogando. Por outro lado, pode-se pensar na existência de outros documentos que estariam dialogando com a PI. Ao final da PI, consta a listagem desses documentos  que  são  descritos  no  item  “JUNTA”.  No  caso da PI utilizada como estudo de   caso,   são   afixados:   “documento   comprovativo   de   pagamento   da   taxa   de   justiça inicial, 2 documentos, procuração,  duplicado  e  cópia  legal”. Estes documentos afixados constituem argumentos de fato no documento em questão. Sem a existência dos mesmos, o pedido efetuado pelo agente produtor (o advogado do autor da petição inicial) não é aceito judicialmente. Ressalta-se, ainda, que a petição inicial faz menção às leis que enquadram legalmente o pedido. Dessa forma, pode-se considerar o enquadramento legal, relativo aos Códigos, como um aspecto intertextual da PI. Salienta-se que a seleção do dispositivo legal, por parte do advogado de uma das partes para fundamentação do pedido, é considerada também um argumento de direito. A petição inicial só é validada pela instituição jurídica quando o relato dos fatos e o dispositivo legal utilizados forem condizentes com o pedido. 3.1.3. Componente metatextual Este componente, neste gênero em particular, pode ser observado tanto a partir dos discursos próprios à atividade social em que se insere, quanto aos relativos aos textos de teor didático desenvolvidos sobre o gênero em análise Vale salientar que a forma de uma petição inicial é pré-definida pelo CPC em seu art. 467º. Reproduz-se, abaixo, na íntegra, os § 1º e 2º: 1. Na petição, com que propõe a acção, deve o autor: a) Designar o tribunal onde a acção é proposta e identificar as partes, indicando os seus nomes, domicílios ou sedes e, sempre que possível, profissões e locais de trabalho; b) Indicar o domicílio profissional do mandatário judicial; c) Indicar a forma do processo. d) Expor os factos e as razões de direito que servem de fundamento à acção; e) Formular o pedido; f) Declarar o valor da causa. g) Designar o solicitador de execução que efectuará a citacção ou o mandatário judicial que a promoverá. 2. No final da petição, o autor pode, desde logo, apresentar o rol de testemunhas e requerer outras provas. (NETO, 2014, p.637, 638)

O CPC estipula, assim, critérios rígidos para a elaboração de uma PI. Inclusive, a não adequação a este modelo pré-definido poderá ocasionar um indeferimento do pedido ou uma inépcia da petição inicial13. Quanto ao aspecto didático, rezam os manuais de redação jurídica que documentos processuais devem ser redigidos de forma objetiva, clara e precisa, evitando ambiguidades. Conforme menciona Xavier: Em linguagem forense, insista-se, há fórmulas consagradas pelo uso e pela praxe; tudo deve ser escrito de modo objectivo, claro, em obediência à lógica e à precisão dos conceitos, eliminando-se indesejáveis filigranas verbais, rebuscamentos de estilo, floreios literários, ambages desnecessários e períodos tortuosos. Dos usos individuais que se possam fazer da língua (idioletos), não há cabida para sequer a mais leve cogitação. Enfim, a redacção jurídica precisa ser correta, enxuta, limpa de exibicionismos e visar um só alvo: a comunicação técnica, imediata e direta. (XAVIER 2001, p. 231) – destaque nosso Vale ressaltar que essas regras são ensinadas aos alunos da Faculdade de Direito, nos cursos de Prática Forense e de Processo Civil, por exemplo, para a redação de PIs e para outras peças processuais que são metatextualmente coibidas. 3.1.4. Componente discursivo A PI insere-se na prática jurídica, fazendo parte do discurso jurídico. Considera-se inclusive que esse discurso, do qual a PI como outras peças processuais faz parte, é uma espécie de discurso constituinte – como o filosófico, o religioso, o literário. Para Maingueneau, este discourso é assim definido: [...] Discours d’Origine,  validés  par  une  scène  d’énonciation  qui  s’autorise  ellemême [...] discours limites, placés sur une limite et traitant de la limite, ils doivent gérer textuellement   les   paradoxes   qu’implique   leur   statut.   Avec   eux   se   posent  dans  toute  leur  acuité  les  questions  relatives  au  charisme,  à  l’Incarnation,   à la  délégation  de  l’Absolu:  pour  ne  s’autoriser  que  d’eux-mêmes ils doivent se poser comme liés à une Source légitimante. Ils sont à la fois auto- et hétéroconstituant, ces deux faces se supposant réciproquement. (MAINGUENEAU, 2004, p. 47,48) – destaque nosso Em relação aos discursos constituintes, pode-se considerar, de um lado, gêneros com enorme possibilidade de variação, como os correlacionados ao discurso literário; e do outro, gêneros com pouca probabilidade de mutação, como os relativos ao discurso jurídico. Parece que a PI se encontra no segundo caso, legitimando-se por ela mesma, sem se inspirar em outro gênero.

3.1.5. Componente peritextual

13

A questão da inépcia da PI é regulada pelo artigo 193º, no 2, do CPC.

Ao se considerar que o peritexto refere-se a todos os textos que circundam o objeto em análise, no mesmo suporte material, e com o qual não são observadas relações implícitas ou implícitas, pode-se afirmar que, no caso da PI, existe uma dificuldade do analista de identificar realmente esse componente. Sabe-se que, no espaço material em que circula a PI (o próprio processo), haveria sempre vários documentos que estariam forçosamente interligados à PI (implícita ou explicitamente) e constituiriam, como tal, um intertexto em relação a ela, como anteriormente foi salientado, em relação à descrição   da   “JUNTA”.   Todavia,   por   não   se ter acesso a todo o conjunto, não se consegue identificar quais as outras peças que deram continuidade ao processo e que não estariam relacionadas à PI. 3.1.6. Componente situacional Época Em relação à temporalidade, são vários os eixos que devem ser analisados num gênero de discurso. Estes serão demonstrados e explicitados no caso específico da PI analisada. 

Tempo empírico e de circulação – No caso da PI, o primeiro diz respeito à época em que ela foi produzida e o segundo, à época em que realmente circulou. No exemplar em análise, observa-se que a PI foi produzida no início do ano de 2002 e circulou no tribunal competente na mesma época.



Periodicidade – A petição inicial, em um processo jurídico, apresenta uma ocorrência singular para o autor de uma ação (não se supõe que este impetre várias ações). Contudo, para o advogado (responsável legal do pedido), pode ser iterativa. Afirma-se isso porque o jurista, ao longo da carreira, é responsável pela produção de várias petições iniciais em diversos processos. Embora já haja em alguns escritórios de advocacia modelos pré-definidos, competirá ao advogado responsável pelo pedido legal adaptá-los às exigências do seu cliente.



Duração de encadeamento – O tempo de leitura para cada gênero discursivo é variável. Neste gênero, como já foi mencionado, as diversas partes que o compõem, são prescritas pelo CPC. Esse fato possibilita uma espécie de leitura seletiva, principalmente, por parte de pessoas da área jurídica. Dessa forma, o Juiz de Direito, por exemplo, a quem o documento é endereçado, pode vir, com mais rapidez, passar diretamente da exposição dos fatos e das razões de direito para o pedido, observando se este último condiz com os fatos expostos.

Vale inclusive ressaltar que, tratando-se de um gênero mais ritualizado, a PI apresenta sinais demarcatórios facilmente observáveis14. Estes facilitam esta leitura seletiva por parte do leitor. Esses sinais podem ser materializados, formalmente nos documentos, pelo uso de ordinais ou algarismos romanos para a separação dos parágrafos. Tais sinais demarcatórios são observáveis na petição selecionada como estudo de caso. E funcionam tanto como elementos estilísticos funcionais (característicos deste gênero nesta prática social), quanto organizadores textuais, delimitando partes do texto). 14

Estes sinais demarcatórios são os números ordinais que delimitam os parágrafos na PI e funcionam como organizadores textuais nesse gênero.



Continuidade – Como já foi mencionado, é através da petição inicial que se inicia um processo jurídico na área cível. No caso da PI escolhida como estudo de caso, observa-se que ela desencadeia uma ação de condenação em processo sumário15, através da qual é solicitada a rescisão do contrato de locação, com despejo do Réu e pagamento das dívidas restantes. Este último, inclusive, poderá vir a impetrar contra os autores uma ação, no intuito de se opor à acusação e ao pedido feitos. Esta peça processual corresponderia a uma espécie de contestação indireta. Dessa forma, não é previsível de que forma o processo continuará e a petição inicial poderá ser indeferida pelo juiz, que pode considerá-la inepta .



Duração de validade – Não se pode considerar um tempo definido para a validade de uma PI. Essa duração vai interferir, apenas, na validade jurídica de um processo, uma vez que este último só começa a ter relevância jurídica quando ela é impetrada.

Lugar No caso da petição inicial, pode-se considerar a existência de uma espécie de lugar empírico de produção (o escritório de advocacia, por exemplo), onde a petição inicial é redigida, após algumas entrevistas do advogado com o seu cliente. Existe, ainda, um lugar (espaço) de circulação desta petição, que será o foro competente. A petição inicial, depois de pronta, é entregue ao tribunal competente. Este tem uma seção central que procede à distribuição dos processos. Terminada esta etapa, sabe-se a Vara Cível que o julgará e o Juiz de Direito responsável juízo. Evidentemente, esse espaço de circulação altamente institucionalizado e ritualizado criará coerções relevantes ao nível da materialização textual do documento, sendo que esta que se manifestará nas dimensões estilística, organizacional e enunciativa ampliada16. Embora defenda-se aqui uma inter-relação dinâmica entre estes três níveis, dar-se-á mais relevância aos dois primeiros níveis17. Estes estarão diretamente relacionados à preservação da face institucional e individual do próprio advogado responsável pela produção do documento jurídico.

Instâncias Interlocutivas No gênero em análise, esta questão parece pouco complexa. Com o PI é um gênero muito instituído e ritualizado, o papel dos participantes da interlocução é pré-definido e não sofre grandes alterações quando realmente se processa a produção textual. Poder-se-ia pensar na existência de uma única instância de produção. Esta é representada, judicialmente, por um advogado que é o agente produtor e também o 15

O processo declarativo pode ser, de acordo com o CPC, arts. 461º e 462º, ordinário, sumário e sumaríssimo. Emprega-se o termo ordinário se o valor da causa exceder a alçada do Tribunal da Relação, ou seja, se o valor da ação for superior a 14.963,94 Euros. Para valores inferiores ou iguais e este, ter-se-ia um processo sumário. O termo sumaríssimo é usado se o valor da ação não exceder os 3740,98 Euros e a ação tiver como objeto o cumprimento de uma obrigação pecuniária, ou uma indenização por dano calculada em quantia certa, ou ainda, a entrega de uma coisa móvel. 16 Para detalhes sobre estas noções, ver: PINTO (2010) 17 Esta escolha advém da própria limitação espacial desta colaboração.

responsável pela assinatura da petição inicial. Esse profissional transcreverá o pedido do seu cliente de forma a adequá-lo aos preceitos jurídicos e será o representante legal do autor da ação, durante todo o processo. Salienta-se que toda a produção textual implica, implicitamente, uma representação do público a que se destina. No caso do gênero em questão, pode-se imaginar a existência de dois pólos: o público genérico e o leitor evocado. No primeiro caso, seria importante definir o que Bakhtin (1984) define como sobredestinatário. Dessa forma, acredita-se que um advogado, ao redigir uma petição inicial, tenha em mente que está a escrevê-la para a justiça – que funciona como um sobredestinatário ou um público genérico. Essa instância abstrata é representada por juristas para os quais esta peça é inteligível e compreensível. Com isso, o advogado faz uso de terminologias jurídicas específicas, leis e até citações (inclusive em latim). De onde advém, muitas vezes, a dificuldade, para a grande maioria das pessoas, de compreender uma PI. No caso específico desta inicial, o leitor realmente evocado – a quem o documento se dirige explicitamente – seria um Juiz de Direito, responsável legal pela leitura desta ação e que deferirá ou não o pedido. Esse Juiz seria o representante legal desse sobredestinatário, com legitimidade de interpretar a inicial. Contudo, esse leitor não é diretamente reconhecível na petição, uma vez que não é identificável. A PI é endereçada a um dos Juízos de uma determinada Comarca. A definição do juiz se dará quando da distribuição da PI no Tribunal responsável. Na verdade, o profissional, ao redigir uma PI, deve preservar a sua face frente aos demais juristas que com ele atuam e também frente à instituição e aos superiores hierárquicos, como o próprio Juiz que irá deferir e/ou indeferir o pedido. Finalidade Como se sabe, o objetivo da PI é fazer com que um juiz defira o pedido que nela se insere. Neste gênero bem instituído e ritualizado, todas as informações devem ser bem claras. No caso, as escolhas estilísticas: repetição de estruturas, sinais demarcatários, utilização da voz passiva, serão estratégias linguístico-textuais utilizadas para que a finalidade do documento seja atingida e que não haja possíveis contestações da parte oponente Suporte material A PI circula dentro de um processo (espaço material). De acordo com a tradição, é datilografada em folhas de papel em um único lado. Contudo, atualmente, em muitos lugares, é digitalizada e arquivada em suporte de papel e em formato eletrônico.

3.2. Componentes internos Vale ratificar que estes dizem respeito aos aspectos plurissemióticos semiotizados em textos. Podem vir a se apresentar em três níveis: estilísticos, organizacionais e enunciativos ampliados. Todos em constante interação. Nesta contribuição, contudo, ressaltar-se-ão tanto os componentes estilísticos, quanto os organizacionais. Parte-se da hipótese de que esses componentes enfatizam a preservação das faces tanto do agente produtor quanto do Juiz de Direito e do sobredestinatário ao qual o documento realmente se dirige.

No caso específico da PI em análise, serão estudados alguns aspectos estilísticos, importantes no exemplar do gênero em análise e, do ponto de vista organizacional, mostrar-se-á a composição de uma PI, de acordo com regulação do CPC.

3.2.1. Componentes estilísticos Dentre estes, serão repertoriados as expressões negativas, os organizadores textuais, as anáforas, as modalidades epistêmicas e os construções verbais na voz passiva como elementos estilísticos relevantes no exemplar de gênero em análise: 3.2.1.1 Utilização de expressões negativas. Na petição inicial em análise, a expressão  “nunca  mais”  é repetida nos arts. 6º, 7º e 9º; já o advérbio de negação   “não”   é   usado nos arts. 11º, 16º e 17º, como demonstrado, respectivamente, a seguir: (1) E, nunca mais foi visto no andar qualquer roupa estendida no respectivo estendal (2) Nunca mais o R. foi visto a depositar o lixo no respectivo contentor do prédio em questão. (3) Nunca mais foi visto a realizar, nos estabelecimentos comerciais da zona, assim como a trazer para o prédio, as compras normais e decorrentes de uma vida centrada no locado em questão, nomeadamente as relacionadas com a alimentação (4) o R. já não reside lá quer pelo amontoado de correspondência na entrada do prédio, quer pela inexistência de limpeza. (5) A partir de Fevereiro de 2001 a EDP não teve sequer acesso ao locado para efectuar quaisquer leituras de electricidade. (6) Pelo acima exposto, conclui-se que o R. não reside com permanência e habitualidade no andar locado, pois, os factos decorrentes de uma vida social e doméstica centrada no arrendamento não se verificam. A recorrência de tais expressões pode ser considerada um indício da natureza dialógica da petição inicial. Embora não haja marcas de primeira pessoa – o que claramente marcaria o envolvimento do agente produtor naquilo que é dito –, o seu engajamento é demarcado, no gênero em análise, pelo uso de expressões negativas, que podem ser descritas a partir dos estudos polifônicos. 3.3.1.2. Presença recorrente de anáforas No texto em análise, existe uma larga incidência de anáforas nominais. Por exemplo, o sintagma  nominal  “o  Réu” abreviado  por  “o  R.”  e  o  grupo  nominal  os autores,  por  “os   A.A”, são utilizados como expressão anafórica em diversos momentos do texto. A expressão  “o  Réu”  ou  “o  R.”  é  recorrente  nos  arts.  2º,  4º,  5º,  7º,  10º,  11º,  12º,  13º, 17º, 19º,  20º,  21º  ;;  enquanto  que  “os  A.A.”,    nos  arts.  1º,  2º,  14º,  19º.

3.3.1.3. Existência de organizadores textuais

Os organizadores textuais (doravante OTs) verbais (temporais, metadiscursivos e com função anafórica) e não-verbais percorrem todo o texto, facilitando uma leitura seletiva e organizada do texto. Como salientou-se, o CPC determina critérios claros na organização da PI. Nesta três partes estão claramente demarcadas: dos fatos, do pedido, do direito. Para a delimitação destas, os organizadores textuais são de grande importância. Abaixo, alguns dos OTs são apresentados: - OTs temporais– “a   partir   de   Maio   2001”   (art.   15º);;   “a   partir   de   Fevereiro   de   2001”   (art. 16º); - OTs metadiscursivos – “isto  é”  (art.    4º);;  “com  efeito”  (art.  5º);; - OTs não-verbais – estes, na PI, são os sinais demarcatórios que correspondem a números ordinais que estabelecem a hierarquização dos articulados., ao nível textual, Por exemplo, observamos que, na PI, os artigos. que seguem o tipo de ação impetrada: “acção de   condenacção,   em   processo   sumário”   vêm   acompanhados   de   um   número   ordinal; - OTs com função anafórica – “pelo  acima  exposto”  e  “os  fatos  supra  referidos”  (art.17º     e  18º)  respectivamente;;  “por  isso”  (art.  9º);;  “em  conseqüência  [disso]  (art.  19º,  linha  2); “NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO”  (art.  20º,  linha  1);;  “para   tanto”  (art.  21º,  linha  1).  Tais  expressões  são  consideradas  OTs,  uma  vez  que  delimitam   unidades textuais de tamanho variável e demarcam, como veremos, uma responsabilidade enunciativa. Vale salientar que, apesar da existência de vários tipos de OTs, no exemplar do gênero em questão, os OTs com função anafórica também denotam certa responsabilidade enunciativa, uma vez que, ao retomar determinadas partes do texto, ´selecionam´ ou ´focalizam´ elementos específicos de interesse do advogado - responsável pela produção do documento. 3.3.1.4. Emprego de modalidades subjetivas epistêmicas. No texto em análise, observa-se uma asserção, reiterada em PIs em circulação em Portugal. (7) NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO Deve a presente acção ser julgada procedente por provada e o R. condenado no pedido, nas custas e procuradoria condigna. Em (7), observa-se o emprego instanciado de modalidade subjetiva epistêmica na parte final da PI. Salienta-se que  o  verbo  “dever”,  que  aparece  com valor deôntico em muitos enunciados, é utilizado aqui com valor epistêmico. Tal estratégia discursiva é uma forma de preservar a face do advogado junto ao próprio Juiz de Direito (seu superior hierárquico) a quem o documento é endereçado. 3.3.1.5. Utilização de verbos na voz passiva18

18

Para um estudo crítico da descrição da voz passiva por diversos gramáticos, em português do Brasil, ver: Oliveira (2004) - Cf. OLIVEIRA, L. A. O ensino pragmático da voz passiva. Calidoscópio. 2(1), p. 49-54.

No documento em análise, observam-se várias construções na voz passiva, como foram identificadas   em   (1),   (2)   e   (3),   com   a   repetição   da   expressão   verbal   “foi   visto”.   Tal   incidência repetitiva, de certa forma, atesta a não permanência do Réu no local e corrobora a tese defendida pelo advogado do Autor da ação: o Réu não reside mais no imóvel. Com isso, atesta-se que o contrato de locação pode ser dissolvido. No caso a forma passiva, com omissão do agente da passiva, reforça o enfoque dado no documento a acusar o Réu. 3.3.2. Componentes organizacionais Já é do conhecimento de todos - mas convém ratificar - que os tratados de retórica clássica dividiam tradicionalmente o discurso em cinco fases: a invenção – inventio – que correspondia ao processo cognitivo de busca e escolha de argumentos necessários para convencer/persuadir determinado auditório; a disposição – dispositio – referente ao agenciamento de provas ao longo do texto; a elocução – elocutio - relacionada à escolha de palavras ou expressões – uso das figuras de retórica, apropriadas à finalidade do discurso -; a memória – memoria - ou técnicas ou técnicas de memorização do discurso, preparatória à sua realização oral em público; e a ação – actio – correspondente às técnicas para a realização física do discurso (uso da voz e da expressão corporal). A dispositio podia ser definida como a organização do texto em partes e subpartes, cada qual com uma função específica. Uma das versões que nos chegou destas grandes partes foi a proposta por Cícero. Este, na obra Partições Oratórias (apud Declercq, 1992: 157), menciona quatro partes constitutivas da dispositio: exórdio, narração, prova e peroração. No caso de um gênero textual altamente ritualizado como a petição inicial, observa-se que há uma organização textual que segue os preceitos clássicos, como se descreve a seguir: 

Exórdio – identificação do juízo cível e das partes, com a caracterização profissional, domiciliar e documental das mesmas.



Narração – presente do articulado 1º até o 17º. Cita-se, como exemplo, o arto. 1º - contextualização dos fatos (exemplo 8, abaixo) e o 15º (relato dos fatos que constituem a causa do pedir, como no exemplo (9)).

(8) Os A.A. são comproprietários do prédio urbano, sito na .................................., descrito na ..................... Conservatória do Registo Predial de Lisboa. (9) A partir de Maio de 2001 deixou de haver qualquer consumo de electricidade no locado.



Prova - dispositivos legais que sustentam o pedido (articulados 18º - exemplo 10 abaixo) e todas as provas documentais anexadas à petição inicial (documento de comprovação da propriedade do imóvel, por exemplo.

(10) Os factos supra referidos integram falta de residência permanente constituindo fundamento de resolução do contrato (alínea i) do no. 1 do arto. 64º. do RAU).



Peroração – no gênero em análise corresponde ao próprio pedido efetuado pelo advogado de uma das partes envolvidas no processo, como se observa

em (11). No caso, o organizador textual  conclusivo  “por  isso”, com função anafórica   (uma   vez   que,   o   pronome   “isso”   focaliza   todos   os   fatos   e   argumentos legais pontuados anteriormente) e com certa responsabilização enunciativa (já que a focalização de partes do texto são de responsabilizado do agente produtor da petição inicial), introduz o pedido. (11) Por isso, os A.A. pretendem que seja declarado extinto, por resolução, o contrato de arrendamento em causa e, em consequência, o R. ser condenado a despejar imediatamente o locado e a entregá-lo livre e devoluto e ainda a pagar as rendas vincendas até integral desocupação. Em relação aos tipos de argumento encontrados, poder-se-ia considerar a existência, no exemplo (10) de um argumento a partir dos princípios gerais ou analogia iuris19. E, ainda, o relato dos fatos (articulados de 1º a 17º) apresenta uma função argumentativa, uma vez que sustenta a causa do pedir, na petição em análise.

Considerações finais Evidentemente, como este trabalho privilegia uma abordagem teórica textual-discursiva, advoga-se pela interferência de fatores contextuais na materialização dos elementos apontados acima. Com isso, foi feito todo um levantamento de fatores situacionais diversos antes de proceder-se à analíse do exemplar da petição inicial. A partir do levantamento dos aspectos estilísticos e organizacionais do gênero textual analisado, com alto grau de institucionalidade, observa-se a existência de diversas estratégias linguísticas responsáveis pela preservação das faces dos interlocutores. De um lado, a do advogado, agente produtor do documento e responsável legal do seu cliente; do outro, a do Magistrado/ a da Instituição Justiça (destinatários  “virtuais”  do   documento). A presença de aspectos estilísticos de caráter individual (uso de formas negativas, da voz passiva)  cria  uma  “espécie  de  salvaguarda”  ao  responsável  pela  produção  do  texto,   uma vez que este poderá com estas estratégias linguísticas evitar algum tipo de refutação e/ou contra-argumentação por parte do advogado da parte contrária. Do ponto de vista das estratégias funcionais, constata-se que o texto apresenta características estilísticas exigidas pela própria atividade jurídica, como a presença de organizadores textuais, as modalidades intersujeitos, a recorrência de anáforas. Do ponto de vista organizacional, a adequação do texto às coerções impostas pelo próprio Código de Processo Civil impõe um formato ritualizado da Petição Inicial que se enquadra também no modelo tradicionalmente descrito pela retórica clássica. A dispositio é bem demarcada no exemplar do texto em análise, em que o relato, o

19

Com numéro de tipificações distintas para os argumentos de natureza jurídica, Tarello (1980) e MacCormick (2008) e relevam a importância do argumento a partir de princípios gerais. Na verdade, se qualquer princípio geral de direito for aplicável à matéria de que trata uma disposição legal, deve-se favorecer a interpretação que esteja em maior conformidade com o princípio em questão. Para detalhes, ver: MACCORMICK,, N. Retórica e o Estado de Direito. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, 480 p. e TARELLO, G. L´interpretazione delle legge. Milão: Giuffrè, 1980..420p..

enquadramento legal e o pedido estão claramente evidenciados. Ademais, a utilização do argumento a partir da lei sustenta o pedido do documento jurídico. Pelo exposto, observa-se que existe, por parte do jurista (advogado de uma das partes) uma submissão às normas institucionais, às regras estipuladas por esta comunidade discursiva. Dessa forma, a face positiva do profissional é evidenciada. Por outro lado, também existe uma reverência implícita ao interlocutor ´virtual´ a quem o documento se dirige. Ao cumprir padrões já estabelecidos, existe por sua vez um respeito à norma imposta. Dessa forma, há uma espécie de construção da imagem positiva do interlocutor a quem o documento se dirige – este é valorizado e respeitado e sua face institucional é preservada. Evidentemente, nesta colaboração, centrou-se na análise de um texto. Outros exemplares do mesmo gênero textual deverão ser analisados de forma a atestar os resultados já obtidos.

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