Linguagem, reflexividade e diálogo nos espaços organizacionais

June 12, 2017 | Autor: J. Oliveira | Categoria: Pragmatics
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Linguagem, reflexividade e diálogo nos espaços organizacionais

Jair Antonio de Oliveira (UFPR)

1 Introdução: o Infinito debate sobre "linguagem"

Inicio este texto com as palavras de Derrida (apud BRUNETTE, P; WILLS, D. 1994, p. 21): "Quando eu escrevo a coisa mais difícil, o que me causa mais angústia, principalmente no começo, é encontrar o tom correto". Qual é o tom a ser escolhido em uma "conversa" sobre a própria conversa? Que palavras têm a condição de criar um quadro tão vívido de um diálogo que dispensam o próprio interlocutor, que nem sempre está aqui, mas acolá, no mundo, nos rastros da cultura, da sociedade, das coisas ditas e feitas; das coisas não ditas e desfeitas. O tom é sempre uma incógnita, pois não existe previamente ao uso: o tom é um "clichê", um lugar comum, mas a sua repetição aponta para o "quase-conceito" de iterabilidade (que é a condição de uma marca, de um signo, se repetir sempre, sugerindo a própria existência e, simultaneamente, por não se deixar conter por nenhum contexto ou falante, ressalta uma inevitável contradição).
Essa contradição é a garantia de que as unidades discretas de sentidos serão legitimadas e constituídas enquanto linguagem exatamente pelo fato de serem reiteradas, na escrita, na fala, ou por outros meios. Mas a intensa repetição introduz uma diferença irredutível na estrutura da marca ou do signo: "a" e "A" são as mesmas letras, embora as suas diferenças não possam ser ignoradas. Obviamente, não é uma questão ortográfica, pois duas letras: "a" e "a" também não serão completamente idênticas entre si, unificadas. Embora seja uma simplificação, a frase atribuída a Heráclito: "Ninguém se banha duas vezes na água do mesmo rio" é um exemplo do que estamos falando.
A iterabilidade faz com que as marcas ou signos não pertençam a nenhum contexto; podendo ser extraídas de um conjunto particular de circunstâncias sociais e usadas, citadas, grafadas em quaisquer outros lugares, permanecendo, de certa maneira, as mesmas, enquanto são repetidas, em princípio, ad infinitum. Nenhuma marca ou signo pode ser confinado em um contexto único, original e essa aptidão, essa força de ruptura, também assegura que o uso de uma marca ou signo em certo contexto carregue os traços dos outros contextos em que são característicos. "Não há marca ou signo que seja válido fora de um contexto, pelo contrário, somente há contextos, sem qualquer centro absoluto de ancoragem" (DERRIDA, 1991, p. 25). Essas condições não têm um caráter transcendental, nos moldes do idealismo kantiano em que as experiências humanas somente seriam possíveis a partir de um conhecimento apriorístico articulado filosoficamente. São predicados essenciais numa determinação do que é linguagem ou dos atos de fala pragmáticos (uso).
A irredutibilidade total do ato a qualquer contexto ou autor não significa que as "coisas" não estão acontecendo no mundo. Diálogos estão acontecendo, casamentos estão sendo realizados, juízes emitem sentenças, clientes compram e empresas vendem etc. O que desejamos ressaltar é que o tema "linguagem" precisa ser tratado de outra maneira: é preciso abandonar os ranços do sistema abstrato proposto pelo estruturalismo, das idéias de que a linguagem representa o mundo, que é inata ou transcendental ou que é uma espécie de "meio" que se interpõe entre o Sujeito e a realidade que os realistas vêem como transparente e os céticos como opaco. A palavra é somente "(...) um estímulo nervoso, primeiramente transposto em uma imagem! Primeira metáfora. A imagem, por sua vez, modelada em um som! Segunda metáfora (NIETZSCHE, 1983, p. 47).

(...) assim acontece a todos nós com a linguagem. Acreditamos saber algo das coisas mesmas, se falamos de árvores, cores, neve e flores, e no entanto não possuímos nada mais do que metáforas das coisas, que de nenhum modo correspondem às entidade de origem (Idem).

A aptidão em transformar uma imagem em conceito é uma vantagem humana em relação à linguagem dos outros animais; "uma ferramenta que se deu o caso de funcionar melhor para certos fins do que qualquer ferramenta anterior" (RORTY, 1994, p. 42). No entanto, o vocabulário feito pelos seres humanos, ao invés de nos auxiliar a resolver problemas, tem servido para criá-los, numa infindável sucessão de dicotomias apresentadas como verdadeiras questões filosóficas.
Neste aspecto, o que nos interessa, não é elaborar uma noção de linguagem – se isso é possível; mas o processo pelo qual os indivíduos estão usando as metáforas e que tipos de efeitos resultam desses usos. Trata-se de uma perspectiva sobre o uso da linguagem (Pragmática) e nesse viés, o gênero diálogo é apenas mais uma maneira que os indivíduos dispõem para construir as representações de mundo que lhes são úteis; pois como dizia Austin (1990), dizer é fazer. Com isto, priorizamos o caráter deontológico de nossas ações e entendemos que não há uma dimensão no mundo em que se possa estar livre das questões éticas. Nessa perspectiva, as idéias de Jacques Derrida, Richard Rorty e John Austin, anteriormente citadas, são vitais para que possamos encontrar o tom correto para o diálogo que estamos realizando agora, ou seja: temos que considerar as noções de iterabilidade, performatividade, contextualismo, consequêncialismo e antifundacionismo como predicados indispensáveis para uma " boa prosa" entre-viventes numa sequência temporal.



2 Simpósio: Diálogos (In) Pertinentes

Em um simpósio, temos o grego symposion, em que também se fala de uma reunião: syn- ("união") + pósis ("ação de beber"). Beber juntos a sabedoria. É este o objetivo dos simposiastas: embriagar-se de conhecimento através dos diálogos. O que nos estimula a perguntar: que força contém o gênero diálogo para ser citado e usado após dois mil anos? Os socráticos escreviam diálogos e os atenienses, em geral, tinham por hábito, em sua vida pública, empregar uma forma "ajustada" de conversa dos tribunais para discutir os fatos do cotidiano.
Os diálogos gregos e depois os diálogos cristãos são capítulos de uma grande metanarrativa que se tornou responsável por uma filosofia, por tipos de vínculos e relações sociais que desenvolvemos nos últimos séculos e por uma ética que apela para a lógica da cooperação enquanto atributo intrínseco aos seres humanos. Parte dos diálogos gregos e cristãos são relatos de trabalho em comum, de parcerias, de auxílio mútuo. Obviamente, há uma infinidade de exemplos apontando para outra direção: a disputa, a competição como regra dos embates. Trásilo (PLATÃO, 1987, p.38) já classificara os diálogos em duas grandes classes: os zetéticos (de pesquisa) e os ifegéticos (de explicação), que foram desdobrados em diálogos de exercício maiêutico e diálogos polêmicos.
No entanto, temos apenas as descrições dos diálogos clássicos e nem podemos imaginar os diferentes atos performativos usados nesses encontros; atos que se realizaram uma única vez, num contexto que jamais se repetirá. Como enquadrar, por exemplo, um acontecimento que tanto nos afeta: aquele em que Jesus dialoga com a Samaritana, uma das mais belas passagens da bíblia (João:4). Ou o diálogo que Jesus travou com Ahasverus – O Judeu Errante que, segundo a lenda, impediu Cristo de se deter diante de sua tenda para descansar quando se dirigia para a crucificação. Ao dizer para o Cristo: "Vá andando!", transmutou-se na maldição de uma trajetória sem rumo. Ahasverus, o excluído, torna-se o seu inverso, um excluidor, tão logo emite o performativo: "Vá logo!" Ao que Jesus responde: "Eu vou e tu ficarás até a minha volta" (OLIVEIRA, 2010, p. 5).
A questão agora não é a de refutar os diálogos enquanto gêneros fundadores de uma maneira de ser/agir. Mas refletir e questionar os acontecimentos atuais resultantes dos usos da linguagem no mundo das organizações, cujas regras oscilam entre dois conceitos (in) compatíveis: o orgânico e o inorgânico. Em outras palavras, vivemos em um mundo em que as pessoas estão deslumbradas diante das performances das máquinas: a velocidade, a alucinação de um interlocutor automático que se apresenta sempre que pressionamos um botão, a tela, ou fazemos um movimento. Esse interlocutor sem "face" (apenas um "rosto", uma "cara") que se interpõe entre nós e algo que está ali, uma caixa preta que sabemos usar, mas não sabemos o que se passa no seu interior. Tudo isso é uma espécie de incógnita e do desconhecido resulta um gênero diferente e um desafio para o conceito de performatividade linguística.

A performatividade pura implica a presença de um vivente, e de um vivente que fale uma única vez, em seu nome, na primeira pessoa. De maneira, ao mesmo tempo, espontânea, intencional, livre e insubstituível. A performatividade exclui, portanto, em princípio, em seu momento próprio, qualquer tecnicidade maquinal (DERRIDA, 2004, p.38).

Isso nos obriga a pensar no "lugar" em que somos projetados pelas máquinas. Um lugar em que as perspectivas são guiadas pelos programas dos computadores, as relações são virtuais e a héxis corporal é simulada por imagens. O que importa é a rapidez em que os textos são produzidos e consumidos; embora a velocidade que une os interlocutores quase anônimos, também os separa, ou seja: a máquina permitiu a expansão infinita das conversas, mas também colocou uma clausura sobre os seus usuários. Há uma situação de "estranhamento" diante disso: somos instados a pensar que a quantidade de relações (amigos) que temos, por exemplo, nas redes sociais, é correspondente ao nível de aceitação dos nossos anseios e obsessões privadas. Na realidade, nos diálogos virtuais, estamos fazendo o que Austin (1990) previu: "usamos a linguagem para não dizer nada".
Obviamente, usar a linguagem para não dizer nada também produz efeitos. Austin (1990) chamou esses efeitos de atos perlocutórios. Em sociedades digitalizadas, onde parte das transações e diálogos ocorre em ambientes virtuais, os efeitos dos diálogos tornam-se imprevisíveis e estão forjando acontecimentos de forma ininterrupta. Como lidar com esses efeitos, com os diálogos nas organizações hoje em dia? É bom salientar que não existe um "fora" ou "dentro" de uma organização. Genericamente falando, todos nós pertencemos e participamos de uma ou de outra organização, seja a família, o grupo de amigos, o clube, a igreja, o trabalho etc.
As organizações têm objetivos comuns aos seus integrantes; mas tanto os objetivos como as próprias organizações são alterados em diferentes épocas, em grandes acontecimentos da história, na diversidade das culturas e, por isso, a própria função e tipologia dos agrupamentos se tornam difusas. A função genotípica das organizações na atualidade, isto é: "(...) o trabalho que é realizado pelas organizações" (KATZ & KAHN apud KUNSCH, 2003, p. 46) se tornou híbrido e poliforme e suas características estão centradas na interdependência que se construiu entre o indivíduo e a máquina.
Essas contradições não impedem a realização dos diálogos, que ganharam diferentes contornos na atualidade; mas a ideia grega de que os diálogos moveriam os interlocutores para uma parceria e elevação intelectual e, posteriormente, os diálogos cristãos levariam a um estado de elevação espiritual, desapareceu. As máquinas instauram uma dinâmica nas organizações em que os seus integrantes "parecem criaturas melhoradas", mas na verdade esses indivíduos são induzidos artificialmente a se modelar em outra forma de ser/estar no mundo! Uma Sociologia das Doenças Mentais (BASTIDE, 1967) não é suficiente para explicar os estados de "anormalidade" em que o cotidiano das conversações organizacionais se transformou.
O estado de anormalidade não quer dizer que as patologias tomaram conta das organizações; apenas nos lembra que a crise, a falha e o desvio são condições constitutivas da linguagem e os viventes têm que lidar com rupturas e efeitos não previstos sempre que dialogarem. É evidente que isso gera um nível de instabilidade diferenciada, pois a própria imagem de subjetividade humana, até agora associada ao projeto cartesiano de um sujeito racional que delibera de forma sistemática, é colocado em questão. A ideia de Sujeito não é mais de nenhuma interioridade, mas o resultado das múltiplas combinatórias linguísticas em que o indivíduo se envolver durante a sua existência.
Nessa perspectiva, a questão crucial para as organizações é refletir sobre as maneiras de lidar com as novas formas de subjetividade que produzem atos performativos não previstos ou pré- inscritos nos esquemas atuais. É possível observar que as organizações não encontraram, ainda, o tom correto para estabelecer o diálogo da tecnocultura entre os seus participantes; pois impuseram, de forma equivocada, o modelo dos circuitos integrados também para as falas humanas. Nessa perspectiva, é bom salientar o que diz Haraway (apud TADEU, 2009, p. 32): "A tecnologia não é neutra. Estamos dentro daquilo que fazemos e aquilo que fazemos está dentro de nós. Vivemos em um mundo de conexões – e é importante saber quem é que é feito e desfeito".
O fato é que o avanço tecnológico da humanidade é inexorável e não é preciso criar novos "luditas" no século XXI para alterar esse caminho. A crítica e as propostas de ação devem convergir para alterar o determinismo tecnológico aplicado para os diálogos que resultam em formas de comunicação exclusivamente centradas nas premissas do emissor e não do receptor.

(...) o que a empresa "fala" (com um de seus públicos) a respeito de algo (suas premissas) é hierarquicamente superior ao que os seus públicos "falam" (considerados como parte desse mesmo ambiente) sobre o assunto. A ideia de hierarquia supõe que, o que a empresa "fala" é o que "ela" decide como material adequado para a conversação. Embora a empresa busque os ganchos para tal colóquio no universo de seus interlocutores (sociedade), "ela" determina a seleção do assunto, a direção do intercurso, quando, onde e como o tema será aplicado (OLIVEIRA, 2001, p.6).

Não estamos defendendo a inversão do dualismo existente entre emissor e receptor, o que resultaria em outra hierarquia; mas, que as pessoas nas organizações incorporem a proposta de uma Pragmática Antecipatória para lidar com essa questão:

Se a Pragmática é sobre o uso da linguagem, uma pragmática emancipatória trata de como usar a linguagem em um caminho libertador e não opressivo. Olhando para o futuro, então, veremos que a nossa tarefa é promover de forma proativa um uso da língua que vai evitar que pessoas abusem dos "dons" da língua para seus próprios fins egoístas. A tarefa de uma pragmática antecipatório é, então, prever e prevenir tais abusos, e que os usuários possam neutralizar a linguagem abusiva, mesmo antes dessa linguagem começar a ser aceita como uma forma normal de lidar com o mundo (MEY, 2012, p.708).

Pode parecer utópica a ideia de antecipar os usos para evitar os abusos da linguagem; mas ao longo de nossas histórias nós já naturalizamos os conceitos de indivíduo, gênero, raça e tantos outros. Transformamos os vocabulários em partes constitutivas de nossa biologia, de nossas organizações e os usamos para representar a nossa perspectiva de mundo quando "comunicamos" algo para alguém. Educar para o uso pode parecer um velho clichê, mas funciona; desde que as premissas usadas nos argumentos dos gestores/educadores também sejam esclarecidas, pois cooperar (trabalhar em conjunto, operar com) deve ser precedido das seguintes questões: por quê? Como? Por que as pessoas cooperam? Como as pessoas cooperam?
Na realidade, ainda temos dúvidas em relação às organizações empresariais, por exemplo, adotarem a "ecologia linguística" proposta pela pragmática antecipatória, pois isso irá se chocar com as questões de hierarquia e cumprimento de tarefas. No entanto, esse debate já existe em outras formas de organizações e tem gerado benefícios para os participantes. O lucro não é financeiro, mas ético; e a ética nestas circunstâncias leva a uma compreensão mais ampla das diferentes formas de subjetividade que estão surgindo no contexto da tecnocultura.
Encerro este texto como um diálogo com outro vivente: com interrupções, transgressões e porque não dizer, com aborrecimento. Aborrecimento (afeto) causado pelo fato de que nunca sabemos precisamente onde começa ou onde termina uma conversa. O discurso, o acontecimento que liga o texto ao contexto, nunca tem fim. Obviamente, podemos falhar nesses intercursos, mas a falha não é um mal, é um resultado, um efeito. Efeito que é uma exclusividade humana, pois nenhuma máquina, por mais performática que seja, é capaz de produzir um acontecimento do tipo performativo. XXX





REFERÊNCIAS:

AUSTIN, J.L. Quando Dizer é Fazer: palavras e ação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
BASTIDE, Roger. Sociologia das Doenças Mentais. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967.
BRUNETTE,P.; WILLS,D. Desconstruction and Visual Arts. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.
DERRIDA, Jacques. Limited Inc. Campinas: Papirus, 1991.
_____. Papel Máquina. São Paulo: Estação Liberdade, 2004.
JOSEPH, John. Language and Politics. Edinburgh: EUP, 2006.
KUNSCH, Margarida Maria Krohling. Planejamento de Relações Públicas na Comunicação Integrada. São Paulo: Summus Editorial, 2003.
LOXLEY, James. Performativity. London: Routledge, 2007.
MEY, Jacob. Antecipatory Pragmatics. In: Journal of Pragmatics 44, p.705-708, 2012.
NIETZSCHE, F. Obras Completas. Rio: Victor Civita, 1983.
OLIVEIRA, Jair Antonio. A Ética da Exclusão. Disponível no site: WWW.psicopedagogionline.com.br/ consulta em: 03/11/2013.
_____. Não-Cooperação na Comunicação Organizacional. Texto apresentado ao Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – XXIV INTERCOM, Campo Grande, 2001.
_____. A Estratégia da Mentira na Comunicação organizacional. Texto apresentado ao Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – XXVI INTERCOM, Belo Horizonte, 2003.
PLATÃO. Diálogos: Menon, Banquete, Fedro. Rio: Ediouro, 1987.
PENNYCOOK, Alastair. Language as a Local Practice. London: Routledge, 2010.
RORTY, Richard. Contingência, Ironia e Solidariedade. Lisboa: Editorial Presença, 1994.
TADEU, Tomaz (Org.). Antropologia do Ciborgue. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.





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