Lições do passado bandeirante no “Curso de Bandeirologia”: Taunay e Sérgio Buarque de Holanda (1946)

August 14, 2017 | Autor: D. Zioni Ferretti | Categoria: Historiografia, Historiografía
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Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-288-0061-6

Lições do passado bandeirante no “Curso de Bandeirologia”: Taunay e Sérgio Buarque de Holanda (1946) Danilo J. Zioni Ferretti1

No ano de 1946 Affonso d´Escragnole Taunay, aos 70 anos de idade, se aposentou. Passou a direção do Museu Paulista, à frente do qual ficara trinta anos, a Sérgio Buarque de Holanda, então com 44 anos. Trata-se de um ato que pode ser tomado como dotado de um forte caráter simbólico, uma verdadeira transmissão de posto no universo historiográfico paulista, com repercussões no brasileiro. Ainda que não tenha deixado de trabalhar e publicar, Taunay passava a Sérgio Buarque a direção de uma das mais prestigiadas instituições guardiãs da memória regional. Contudo, não era a primeira vez que suas trajetórias se encontravam. De fato, Sérgio Buarque de Holanda, quando criança, havia sido aluno de Taunay no prestigioso ginásio São Bento, na capital paulista. Da mesma forma, Taunay, quando fazia parte do grupo de intelectuais do Correio Paulistano, fora responsável por intermediar a primeira publicação de um texto do jovem Sérgio Buarque, “Originalidade literária”, de 1920. Não seria exagerado supor que o interesse no tema das bandeiras tenha sido despertado no autor de Caminhos e Fronteiras pelo velho professor do ginásio São Bento. De Taunay, pesquisador do bandeirismo calcado no paradigma metódico e cultor de um discurso identitário paulista que remetia ao ambiente político-intelectual da Primeira República, a Sérgio Buarque de Holanda, o modernista entusiasta da renovação da historiografia pelo diálogo com as ciências sociais de corte weberiano, nota-se vários indícios de mudanças no universo historiográfico. Mas se, de fato, os estudos normalmente tendem a ressaltar os inegáveis traços de ruptura entre esses autores, não se pode menosprezar as fortes permanências existentes. A continuidade entre ambos é tema ainda muito pouco estudado, talvez porque questione as imagens de pioneirismo que atribuímos a nossos heróis intelectuais. Essa complexa combinação entre ruptura e permanência faz-se também presente em todos os aspectos de um evento ocorrido no mesmo ano de 46, que juntou os nossos dois autores e sobre o qual buscaremos aqui nos concentrar: o Curso de Bandeirologia. Ainda que nosso interesse resida na forma como foi então concebido o caráter pedagógico da história, faz-se 1

Doutor, professor de História Moderna e Contemporânea da Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ).

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Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-288-0061-6

necessário compreender o contexto político-cultural que condicionou a realização do encontro. O Curso de Bandeirologia constitui-se de uma série de 12 conferências públicas sobre as bandeiras, realizadas entre 16 de maio e 12 de dezembro de 1946, na cidade de São Paulo, em sua maior parte no salão de honra da Escola Normal “Caetano de Campos”. O evento, na realidade, foi a culminância de uma série de iniciativas tomadas pelo Departamento Estadual de Informação (DEI), órgão cultural do governo paulista, reformulado sob a direção do jornalista Honório de Sylos. Substituindo o antigo DEIP, sessão estadual do DIP, o novo órgão pretendia acabar com o caráter de censor e propagandista do governo do seu antecessor, adequando-o aos novos tempos democráticos. Tratava-se de uma redefinição política encaminhada pela interventoria de José Carlos Macedo Soares, governo de transição indicado pelo presidente Dutra, que assumiu em dezembro de 45 e que deveria gerir o estado até a posse do novo governador eleito, em 1947. De modo geral, as conferências foram resultado da confluência de dois movimentos: por um lado a busca de avançar no processo de institucionalização dos estudos sobre as bandeiras e, por outro, o reinvestimento no discurso da paulistanidade, em um novo contexto político, pós-Estado Novo. O movimento de instituição da história e geografia, e em especial do tema das bandeiras, onde ambas se encontravam, coadunava-se com a trajetória do idealizador do curso. Macedo Soares destacou-se, acima de tudo, como figura chave da institucionalização do saber geográfico, que nos anos 30 avançou sob a dupla direção da abertura dos primeiros cursos universitários de geografia (USP e UDF) e da criação de instituições estatais de atividades e pesquisa geográficas (MORAES, 2002, p.164). Dessas últimas, Macedo Soares foi um dos maiores incentivadores. Não somente está na base da instalação, em 1936, da Comissão Nacional Estatística, da qual foi o presidente, como organizou, neste mesmo ano, a Convenção Nacional de Estatística. Mais importante, reuniu o primeiro grupo de profissionais em geografia, recém-formados pelo prof. Pierre Deffontaine na Universidade do Distrito Federal (UDF), inserindo-os na discussão e criação de um organismo estatal de geografia, consolidado em 1937 no Conselho Brasileiro de Geografia (OLIVEIRA, 2005). Todas essas iniciativas confluíram com a criação, em 1938, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

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(IBGE), órgão oficial de implementação da política territorial do Estado Novo, cuja primeira direção ficou a cargo do próprio Macedo Soares. Além de implementar o programa da “Marcha para Oeste”, fruto da interpretação varguista do mito bandeirante, ainda assumiu a presidência de instituições que veiculavam um saber mais aos moldes tradicionais, como era o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), que presidiu de 1938 a 1941, e da Academia Brasileira de Letras, a partir de 1942, tornadose figura chave do ambiente intelectual durante o Estado Novo. Ao longo desse processo, incentivou a criação de ciclos de discussão, conferências e simpósios sobre temas geográficos, como etapas de divulgação de conhecimentos e articulação de profissionais, fundamental para a disciplinarização da geografia. O Curso de Bandeirologia, portanto, pode ser inserido no conjunto de iniciativas organizadas por Macedo Soares, com a originalidade de ser voltado à temática específica das bandeiras, que o acompanhava ao longo de sua trajetória. Os estudos sobre o tema cresciam desde o último quartel do séc. XIX, sob a iniciativa de Capistrano de Abreu e de uma série de diplomatas e eruditos (muitos concentrados nos Institutos Históricos, brasileiro e de São Paulo) empenhados em escrever uma “historia territorialista” (FERRETTI, 2004. ARAÚJO, 2006). No contexto dos anos 40, o próprio título “bandeirologia” dado ao curso, ainda que nunca explicitamente justificado, sugere a intenção de levar a um novo patamar as pesquisas sobre essas expedições coloniais, instituindo assim um campo de estudos específico, quase uma nova “ciência das bandeiras”. Mas além da busca em avançar na institucionalização dos estudos das bandeiras, o Curso de Bandeirologia parece ter desempenhado um importante papel político. Antes de tudo, convém lembrar a trajetória de Macedo Soares como pertencente à elite política paulista, membro do Partido Democrático, da Chapa Única por São Paulo Unido (1933) e do Partido Constitucionalista de São Paulo (1934). Em todos eles, sempre desempenhou o papel de negociador entre os interesses de setores da elite paulista e o governo Vargas, do qual participou ativamente como ministro das relações exteriores (1934-1936) e da justiça (1937). Esse mesmo papel de mediador parece tê-lo orientado no período em que foi interventor de São Paulo. Pois a sua administração seria necessariamente de transição entre um Estado Novo em que vários paulistas participaram, e outros tantos se indispuseram, e os novos tempos democráticos.

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O primeiro passo tomado nessa transição foi a transformação do DEI, no sentido acima descrito de anulação do que era visto como “entulho autoritário” do antigo regime. Mais do que acabar com a censura, era necessário avançar e propor medidas efetivas que indicassem a mudança de postura. Isso foi feito com o incentivo ao estudo de temas paulistas, à divulgação de uma imagem radiante do estado, além da reabilitação e apoio às instituições culturais que a sustentavam antes do Estado Novo. Pode-se considerar que a interventoria, por meio do DEI, no espaço do ano de 1946, capitaneou uma breve política identitária de reabilitação do paulistanismo, após o período sentido por muitos como tendo sido de ocupação “militar” e “estrangeira” de São Paulo. Neste sentido, quanto ao incentivo a estudos de temas paulistas, o DEI prestou auxilio financeiro a uma série de pesquisas, realizadas por diferentes departamentos da USP e da Faculdade Livre de Sociologia e Política, naquilo que pode ser considerado um embrião do financiamento público estadual da pesquisa acadêmica. Foram contemplados pesquisadores como Roger Bastide (sobrevivências africanas no vale do Paraíba e Ilha Bela), Paulo Hugon (economia do vale do Paraíba), Pierre Mombeig, Aroldo de Azevedo e Dias da Silveira (estudos de geografia em Rio Claro e Baixada de Iguape), Emilio Willems (cultura caiçara e aculturação de indígenas em Iguape), Otávio da Costa Eduardo (estudos do negro em São Paulo), dentre outros2. Houve a tentativa, aparentemente frustrada, de “realização de notável obra, já em execução, de divulgação do progresso paulista nos últimos 25 anos”, tendo como coordenador ninguém menos que Oswald de Andrade3. A interventoria ainda auxiliou o fortalecimento de instituições há muito dedicadas ao cultivo do discurso da paulistanidade; doando um novo prédio para servir de sede à Academia Paulista de Letras; concedendo-lhes um auxílio pecuniário de Cr$50.000,004; instituindo a “casa de Euclides da Cunha” em São José do Rio Pardo; ou mesmo fazendo cumprir a restituição à família Mesquita da direção do OESP, retirada anteriormente pelo Estado Novo. Também aproveitou a permissão concedida pela nova 2

Carta de Honório de Sylos ao diretor do jornal O Estado de São Paulo (OESP) respondendo às críticas feitas na edição do dia 12/05/46 à atuação do DEI. Arquivo do Estado de São Paulo (AESP). “DEIrecortes de jornal”. E 11701. 3 “A nota do Dei” In Jornal Trabalhista, 21/12/46. AESP, Idem. 4 Revita da Academia Paulista de letras (RAPL),São Paulo, n. 34, junho 1946. Respectivamene, p. 183, e p. 168.

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Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-288-0061-6

constituição de 1946 para reabilitar os símbolos regionais. Mais especificamente, prontamente empenhou-se em restabelecer, pelo decreto 16.349, o uso da bandeira do Estado de São Paulo, tornada símbolo político da resistência federalista em 32 e proibida pelo Estado Novo, que a incinerou, junto com as demais bandeiras estaduais, na célebre cerimônia de 1937. O referido decreto anulava o ato atentatório à identidade regional, mas buscava-se evitar a reabilitação de uma perspectiva exclusivista de regionalismo, pois no texto que o informava, frisava-se a perfeita compatibilidade entre culto nacional e culto regional. O centralismo do Estado Novo conseguia conquistar terreno, limitando a virulência do discurso regionalista, fazendo com que seu retorno se desse em outras bases, com mais acentuado centralismo. Nesse contexto, realiza-se o Curso de Bandeirologia, culminação desta obra restauradora de um discurso de identidade regional que se afirmava agora menos pelo seu caráter de exceção e mais de construção do todo nacional. Afonso de Taunay tomou parte destacada no evento. Coube-lhe proferir a conferência de abertura, com o tratamento do tema “O bandeirismo e os primeiros caminhos do Brasil”, abordado em duas partes principais: uma metodológicohistoriográfica e outra em que aborda propriamente a temática em questão. Nos concentraremos na segunda parte. Assim, a maior parte da conferencia se concentra no tratamento do tema das “estradas” bandeirantes. Trata-se de um tema tornado clássico em nossa historiografia a partir da renovação apresentada por Capistrano de Abreu, na década de 1880. Sobre influxo das teorias de Buckle e da antropogeografia ratzeliana, o ilustre cearense propunha então que o historiador redirecionasse seu olhar para o processo de embate do colonizador com o meio natural e a lenta conquista do interior do território, o que implicava em traçar os roteiros de penetração. A referência a Capistrano se faz presente no texto de Taunay, que também apresenta as principais características de sua versão historiográfica. Se a perspectiva territorialista condicionava a abordagem, essa se concentrava no tratamento de um caso específico: o de um grande caminho dos paulistas que ligaria o lagamar santista, na costa, subiria a Serra do Mar e se direcionaria para o interior da América, atingindo, por fim, Cuiabá. Parte terrestre, parte fluvial, a via era desmembrada em duas para a explanação: a parte terrestre, identificada como o

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“Caminho do Mar”, de Santos à vila de São Paulo, já a parte predominantemente fluvial formaria o “caminho do Tietê”, de Araritaguaba (atual Porto Feliz) até Cuiabá, no coração de Mato Grosso. Sobre ambas Taunay aplicou um esquema narrativo semelhante, em que à linearidade espacial do trajeto dos rios e caminhos, adicionou uma linearidade temporal da trajetória histórica que representavam. Sua apresentação dá-se na forma de uma viagem exploratória, específica do historiador, que desenrolava a série de personagens e acontecimentos mais importantes que viveram e ocorreram em suas margens. Escavados pela minuciosa crítica documental, esses eram dispostos narrativamente num crescendo constante e necessário, das agruras das primeiras expedições às suas vantajosas conseqüências e gloriosos desdobramentos. A forma narrativa adotada reproduzia a linearidade ascendente da própria idéia de progresso, num tom o mais sublime e otimista possível. Mas à diversidade das etapas e “fases” da história dos caminhos, contrapõe-se ainda a sugestão da unidade de uma força orientadora do movimento, que podemos identificar na “mais evidente demonstração da energia do aventureirismo paulista”(p. 23), este povo “acostumado a fazer mais do que promete a força humana”(p. 22). No que toca ao “Caminho do Mar”, esse esquema linear ascendente era apresentado, inicialmente, pela descrição dos personagens que o percorreram. Narra-se o início, em que era simples trilha indígena, sua transformação em via do colonizador e jesuítas, em tronco bandeirante, a posterior passagem dos governadores gerais do século XVIII, dos tropeiros do XIX, até o advento da era do café, no séc XX, entendida como base para a criação da riqueza presente. A essa desenrolar de personagens da história paulista corresponderiam fases de avanço das técnicas viárias: de um dos mais difíceis caminhos existentes, passando a calçada empedrada, até tornar-se estrada carroçável com as obras do governador setecentista Bernardo Lorena. Taunay então não deixa de reconhecer que esse movimento ascendente sofreu importante recuo com o abandono do velho caminho, após a construção da estrada-de-ferro, a partir dos anos 1870. Mas o movimento ascendente é retomado com mais vigor pela recuperação do velho trajeto e sua transformação em rodovia adaptada ao automóvel, operada pelo muito elogiado governo de Washington Luís, até atingir o ponto culminante do presente, representado pela Via Anchieta, ainda não de todo concluída.

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Aqui podemos começar a compreender a forma como Taunay equacionava a questão do caráter pedagógico da História, de sua possibilidade e pertinência em apresentar ensinamentos para o presente, que mais diretamente nos interessa. O nosso trabalho é dificultado pelo fato do autor em nenhum momento fazer referência explícita à questão. Contudo, isso não significa que o autor tenha deixado de veicular uma forma própria de conceber essa relação, forma predominante no universo intelectual paulista do início do séc.XX e que parece ter incorporado acriticamente. Como vimos, a dimensão de progresso estava presente não somente na estruturação da narrativa mas na forma de conceber o processo histórico analisado, o que de antemão já descarta a possibilidade de Taunay representar uma sobrevivência temporã do Antigo Regime de Historicidade e seu apego restrito ao gênero da Historia Magistra Vitae (HARTOG, 2003). Nesse sentido, Taunay estava em pleno Regime Moderno de Historicidade o que não o impedia de apresentar uma perspectiva pedagógica para sua atuação historiográfica. Não parece ter-se dedicado a traçar prognósticos visando definir os desdobramentos futuros, mas em nenhum momento deixou de analisar a experiência passada tendo em vista definir não somente o sentido ascendente do movimento histórico, que possibilitaria a outros traçar prognósticos, como indicar as forças constantes e diretoras desse movimento. Precisamente aí, na identificação da força orientadora do movimento ascendente e do sentido desse mesmo movimento, que me parece estar a missão pedagógica do trabalho historiográfico de Taunay. E essa perspectiva parece ter sido incorporada a partir da prática vigente no meio intelectual e político paulista, conforme indica o tratamento do Caminho do Mar acima apresentado. O autor muito se aproxima da forma como o mesmo tema foi tratado por ninguém menos que o presidente e historiador Washington Luis Pereira de Sousa. Taunay transpõe para seu texto a mesma perspectiva de um didatismo eivado de sentido político, que Washington Luis aplicou na construção, a partir de 1920, dos Monumentos da Serra do Mar. Essa série de construções ladeando a estrada construída pelo governador paulista, e que seria o marco inaugural de seu ambicioso plano rodoviarista, foram dispostas seguindo um prévio plano simbólico, contendo explícitas referencias históricas, definidas inclusive com ajuda de historiadores como Capistrano de Abreu e Paulo Prado (FERRETTI, 2004). Elas representariam momentos da política viária dos

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governos de São Paulo e indicavam uma clara lição: o progresso de São Paulo foi fruto do investimento de seus filhos e governantes na abertura e melhoria de caminhos. Tratava-se, claramente, da apropriação do velho tema da história territorialista – a formação do Brasil pela abertura de caminhos - para legitimar uma prática específica, no caso, a política rodoviarista de Washington Luis. Esse ensinamento era possibilitado pela adoção de um mecanismo em que se diferenciava o sentido do movimento da força que o impulsionava. Enquanto o primeiro era variável, insconstante (crescente até) e por isso não poderia ser previamente perceptível ao historiador, o segundo tendia a ser constante, sempre o mesmo, e por isso identificável pelo historiador e, quando se tratava de virtudes e valores coletivos, passível de ser cultivado e defendido por toda a sociedade. Em outros termos, a missão pedagógica da história estaria em identificar essa força constante e protege-la, o que implicava em transformar esse aspecto do passado em exemplo. No caso de Taunay, e dos historiadores paulistas do início dos séc XX, a força impulsionadora do progresso regional era identificada exatamente nas virtudes da energia, iniciativa, destemor e trabalho de sua gente. Taunay buscava, através de sua prática historiográfica ensinar que havia uma continuidade indissociável entre o passado, o presente e o futuro de São Paulo ou, como explicitava à página 27, “a glória do passado reúne a utilidade do presente a caminho das conquistas inevitáveis de esplendoroso futuro”. E, o mais importante, que essa continuidade era proporcionada pelas virtudes inerentes ao seu povo, que haviam surgido no passado colonial, um passado que, por esse motivo, merecia ser tomado como exemplo para um presente e um futuro que necessariamente o superaria. Por sua vez, a conferência de Sérgio Buarque de Holanda (SBH) nos interessa por apresentar um tom geral marcadamente continuista em relação à de Taunay e à tradição historiográfica regional de louvação da herança bandeirante. Continuísmo esse menos facilmente identificável em seus livros Monções e Caminhos e Fronteira e talvez por isso pouco reconhecido pela historiografia atual, ainda voltada a ressaltar somente os inegáveis traços inovadores apresentados na obra do autor. Ainda que o espaço nos impeça de desenvolver minimamente o tópico, o continuísmo pode ser percebido, primeiramente, na tentativa de aproximar os fenômenos da bandeira e das monções, logo no início da conferência. Ambos os

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processos seriam expressões da mesma “força expansiva que parece ser uma constante histórica da gente paulista” (p.127), que “determinaria”(o termo é de SBH) ainda a continuidade do processo pelo tropeirismo no séc. XIX e a atividade cafeicultora até o séc. XX, constituindo uma mesma constelação de eventos. SBH, a seu modo, convergia com Taunay ao identificar uma linha evolutiva da história paulista e de apresentar explicitamente referencias àquilo que seria uma identidade regional marcada pela energia, iniciativa e movimento. Contudo, diferente da tradição historiográfica regional e de Taunay, SBH se esforçava em mostrar que juntamente à continuidade havia uma serie de rupturas que diferenciavam significativamente o movimento das bandeiras do das monções. Essas últimas eram apresentadas como um momento especial no processo de paulatina supressão de um espírito turbulento de irrefreada ambição individual e aventura que marcara as bandeiras. Com as monções teria início uma mudança de comportamento nos colonos paulistas, que ficavam cada vez mais disciplinados, marcados por “ambições resignadas e submissas”, “metódicas” (p.129), ainda que não perdessem a coragem e mobilidade originais. Trata-se de uma ruptura que, como bem mostra Richard Wegner, para SBH representaria um passo importante na adequação de nossa herança colonial ibérica a uma lógica de trabalho constante, metódico e planejado, própria de uma ética capitalista moderna (WEGNER, 2000). Mas os pontos de convergência com a tradição historiográfica regional e mesmo com a vertente territorialista iniciada com Capistrano, continuavam na conclusão da conferencia, em que SBH inicia uma reflexão sobre a importância do evento das monções para a história nacional.

Em franca proximidade com a conferencia de

Taunay, o autor identifica duas importantes contribuição das monções: a) na construção da unidade nacional, pela criação da uma grande linha de comunicação que ligando o Planalto paulista à região amazônica” abraça quase todo o Brasil” e b) ao assegurar a posse definitiva, pelo povoamento, de vasta área de território agora brasileiro. Uma terceira contribuição também é apresentada, momento em que SBH faz referência explícita às lições da história, tema que aqui nos interessa. Tratar-se-ia de uma “lição para o presente e também para o futuro, mas que pertence igualmente à História, na parte em que a História é mestra da vida”. A referência explícita ao tropo ciceroniano da Historia magistra vitae, não deve, contudo, nos iludir. Pois o que

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apresenta a seguir é exatamente um chamado não a continuar, tal e qual, a obra das bandeiras, mas à realização de uma clara ruptura com esse passado, no que diz respeito à ética da aventura que o orientava. “O que resta fazer, porém, para completar esse esforço, não poderá ser obra de aventura. Exigirá, provavelmente, o trabalho atento de algumas gerações de homens pacientes, modestos e metódicos”(p.146). Dessa forma, SBH se apropriou do tropo ciceroniano para reverter e anular o caráter de exemplaridade do passado. SBH apresentou no Curso de Bandeirologia uma das primeiras manifestações, ainda na forma de um esboço, da concepção do trabalho do historiador como sendo de exorcismo do passado. Como bem mostra Thiago Nicodemo, essa concepção remetia a Goethe e apresentou-se de forma explícita em suas obras dos anos 50, principalmente Visão do Paraíso, em que o trabalho do historiador é percebido como um meio de identificar o passado para que dele nos libertemos (NICODEMO, 2008). Seria o contrário da perspectiva de Taunay de identificação da força diretora do passado, visando sua louvação e continuidade. A perspectiva “exorcista” de SBH lançaria o historiador no campo da transformação, da criação do novo. BIBLIOGRAFIA: ARAÚJO, Karina Anhezini de. “Um metódico à brasileira. A história da historiografia de Afonso de Taunay (1911-1939)”. Franca, Unesp (tese de doutorado) 2006. FERRETTI, Danilo “A Construção da paulistanidade. Identidade, historiografia e política em São Paulo (1856-1930)” São Paulo, USP (tese de doutorado); 2004. HARTOG, François. Régimes de historicité. Présentisme et experiences du temps. Paris: Seuil; 2003. MORAES, Antonio Carlos Robert de. Território e História no Brasil. São Paulo: Hucitec, Anablume; 2002. NICODEMO, Thiago Lima. Urdidura do vivido. Visão do Paraíso e a Obra de Sérgio Buarque de Holanda nos Anos 1950. São Paulo: Edusp; 2008

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OLIVEIRA, Regina Célia Acioli. “O Instituto Brasileiro de Geografia no projeto político-cultural do Estado Novo.” Dissertação (mestrado em História Política e Bens Culturais - CPDOC) Rio de Janeiro: 2005 TAUNAY, Afonso (et alii). Curso de Bandeirologia. São Paulo: Departamento Estadual de Informações; 1946. WEGNER, Robert. A conquista do oeste. A Fronteira na obra de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: UFMG, 2000.

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