Lisboa e o Discurso sobre as suas Populações Imigrantes no Feminino

June 5, 2017 | Autor: P. Santos Pedrosa | Categoria: Gender Studies, Urban Studies, Feminism, Women and Gender Studies, Urban Design
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Doutoramento em Estudos Feministas | 2015/2016 Mulheres, Raça e Etnicidades | Março de 2016

Lisboa e o Discurso sobre as suas Populações Imigrantes no Feminino Patrícia Santos Pedrosa

Resumo A observação empírica da vivência da cidade de Lisboa faz qualquer passeante perceber que, mesmo sem recorrer aos números, a cidade está transformada crescentemente em muitas cidades. Geográfica ou culturalmente as diferenças e as populações, mesmo em proximidade de bairro, são diversas. As proveniências múltiplas de quem chega, com a óbvia diversidade de culturas e línguas, cruza-se igualmente com as especificidades de género. As políticas municipais deverão ter a capacidade de ver esta realidade da imigração melhor do que ninguém e, com ela, terão necessariamente de lidar. Mas que visibilidade têm as mulheres imigrantes nos discursos oficiais? Reduzindo só a estas duas questões – imigrantes versus géneros –, será num conjunto de documentos diplonibilizados pela Câmara Municipal de Lisboa (CML) e por alguns dos seus organismos específicos, num contexto de uma ideia de cidade, por um lado, e os especificamente dirigidos à população imigrante, por outro lado, que se perguntará se e como é realizado estre cruzamento: o de ser-se imigrante e mulher? Terá o discurso oficial a capacidade de se constituir, nesta amostra, como interseccional?

Palavras-chave: Câmara Municipal de Lisboa; Mulheres imigrantes; Políticas; Invisibilidades.1 Entre outros enfoques, o tema dos que chegam, dos que não sendo daqui escolhem ou são escolhidos para viver em Portugal, tem nas vindas paulatinas dos refugiados ao país, escancaradas nos jornais, uma subjacente questão da relação necessária a estabelecer com o/a outro/a (Cordeiro & Rocha, 2016). Sendo o enquadramento o contexto urbano, chama esta nova velha novidade à atenção para uma questão prévia: quem consideramos como outros e como os pensamos institucionalmente enquanto parte da cidade. O objectivo deste texto é, especificamente, através dos documentos produzidos e da responsabilidade da Câmara Municipal de Lisboa, perceber qual o tipo de discurso e visibilidade dado à questão particular das mulheres imigrantes. Ou seja, tentar compreender os graus de normatividade colocados na leitura destes sujeitos, os e as imigrantes, e o espaço para a diversidade do que são, especificamente neste contexto, estas referidas outras. Como base teórica deste trabalho estarão presentes algumas das questões e reflexões levantadas por Gayatri Spivak, sobre a voz do subalterno e, como a ausência de fala, de presença, resulta numa ausência

1

Este texto foi escrito recorrendo ao formato bibliográfico APA, na sua sexta edição.

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de valor num alargado mapa de existência e visibilidades (2010, p. 126). Ou seja, o que nos interessa é, sempre conscientes do lugar de onde escrevemos, nos questionarmos sobre as ausências e presenças que os textos oficiais oferecem às mulheres imigrantes que chegam, partindo do princípio que as designações neutras absorvem e eclipsam. Outra questão associada a esta última é a dos conceitos de essencialismo e interseccionalidade que são fundamentais para perceber os silêncios e as vozes anteriormente referidas. Assim, por um lado, o uso de estratégias discursivas que se poderão chamar de essencialistas, ou seja, referir ou relatar as experiências de um grupo independentemente de outros aspectos dos indivíduos que o compõem, assumem uma estabilidade – “through time, space, and different historical, social, political and personal contexts” (Grillo, 2006 [1995], p. 32) – que dificilmente existe e que é injusta e perigosa na sua uniformização dos indivíduos em causa. Por outro lado, a compreensão dos indivíduos como soma de identidades fragmentadas – por exemplo, ser mulher ou ser emigrante ou ser paquistanesa ou ser mãe ou ser desempregada, etc. – considera as características resultantes de cada parte como autónomas. O parcelamento da identidade, como refere Grillo, segmenta em probabilidades a vida concreta destes indivíduos enquanto seres complexos (2006 [1995], p. 31) e que os reduz a seres lineares. A leitura sitemática dos três conjuntos de documentos escolhidos, produzidos em diferentes escalas da estrutura da Câmara Municipal de Lisboa e analisadas do geral para o particular, procura lançar-lhes esta pergunta2: têm direito a existência, a visibilidade e algum tipo de reconhecimento como particulares as emigrantes mulheres? Será esta a pergunta lançada aos seguintes documento escolhidos: Programa do Governo da Cidade de Lisboa. 2013/2017, Pelouro dos Direitos Sociais – Plano de Acção 2014-2017 e Plano de Integração dos Imigrantes de Lisboa.

1. Das grandes linhas orientadoras Começaremos pela leitura do documento que enuncia as grandes linhas estratégicas para o período de 2013/2017, o Programa do Governo da Cidade de Lisboa. 2013/2017. Lisboa uma cidade para as pessoas. Neste documento (2013, pp. 2-7), depois de uma rápida introdução ao que foram as prioridades dos anos anteriores, sublinhando primeiro a consolidação do funcionamento da autarquia, em geral, e depois passando a referir algumas linhas de trabalho genéricas e prioritárias, é encerrado este capítulo com a referência à tentativa de tornar a cidade “mais próxima, participativa e rigorosa”.3

2 Estamos

conscientes que mesmo a designação “mulheres imigrantes” é muito incompleta na sua complexidade. As origens e os percursos que as trazem cá transformam cada mulher numa história única. Fica a anotação desta auto-limitação deste texto. 3 A autora gostaria de agradecer a Miguel Graça e João Almeida (Câmara Municipal de Lisboa) como facilitadores no acesso à documentação utilizada e no esclarecimento de algumas dúvidas surgidas no decorrer do trabalho. 2 | 10

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A parte mais relevante para a nossa reflexão surge na segunda parte do documento – “Uma visão e um modelo de governo para a cidade” – onde são apresentados os “5 grandes eixos para o governo de Lisboa”: Lisboa 1) mais próxima; 2) empreendedora; 3) inclusiva; 4) sustentável e 5) global. Estes pontos são, para este programa de governo municipal, apresentados como: “continuidade de uma atitude – rigor com responsabilidade social”. Nestes eixos, os que se poderão atravessar em especial com o nosso infoque são os pontos 1), 3) e 5) antes referidos. Tentaremos aprofundar e cruzar a questão que lançamos com o que é defendido pela CML: “Promover a cooperação entre todos os agentes de intervenção social; Aumentar e reforçar a Rede Social e Partilhar recursos e criar respostas sociais expeditas, dignas e solidárias.” (Câmara Municipal de Lisboa, 2013, pp. 18-20) A ideia de uma cidade “mais próxima” apela a um crescendo de acção das e com as comunidades locais. Curiosamente, o exemplo dado, a Mouraria – “em que a revitalização comunitária andou a par com a reabilitação urbana” – seria, só por si, um excepcional estudo de caso a aprofundar. (Câmara Municipal de Lisboa, 2013, p. 22) As leituras críticas a que este território e as suas alterações dizem respeito são complexas e a dimensão de convivência de residentes e de turistas são uma vertente que ultrapassa largamente esta visão de sucesso apresentada pela CML, não cabendo, no entanto, a este trabalho desenvolvê-lo e problematizá-lo. (Ver, por exemplo: Menezes, 2011 & Alberto, 2015) Neste contexto parece-nos muito relevante que sobre a questão da “cidade segura”, assim como no que à “Cidade do trabalho e da criação de emprego” diz respeito, não surja nem uma referência específica às mulheres, imigrantes ou não. (Câmara Municipal de Lisboa, 2013, pp. 29-33) Causa alguma estranheza que tal falta de diversidade de cidadãos e cidadãs seja referida, até porque são contextos muito relevantes para a vida das mulheres no âmbito das grandes cidades, pela reconhecida vulnerabilidade socialmente construída, em particular nestas áreas. O quinto eixo, dedicado à “Lisboa Inclusiva”, organiza-se em 5 pontos4. As populações imigrantes são, em geral, referidas no que às carências habitacionais respeitam (ponto 1) e numa qualificação – supõe-se a aprendizagem da língua portuguesa – que ajude a integrar esta mesma população (ponto 2) (Câmara Municipal de Lisboa, 2013, pp. 42-47). É no ponto 3, “Direitos Sociais”, que se dedicam isoladamente mais algumas palavras aos imigrantes. Finalmente, também uma linha é dedicada às questões de igualdade de género. Assim, em alíneas separadas é afirmado, por um lado, que os direitos sociais incluem entre outras políticas “6. Promover, apoiar e participar em programas ou iniciativas de integração das comunidades imigrantes, minorias étnicas, culturais e religiosas” e, por outro lado, “7.

4 1.

Direito à habitação; 2. Direito à Educação; 3. Direitos Sociais; 4. Direito à Saúde, ao Desporto e ao Bem-Estar e 5. Cidade Solidária, Intergeracional e Coesa. 3 | 10

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Promover, apoiar e participar em programas ou iniciativas de defesa da igualdade de género.” (Câmara Municipal de Lisboa, 2013, p. 50) Na leitura geral do documento é clara a intenção de se intervir amplamente junto da população sénior. Mas, no ponto “Cidade Solidária, Intergeracional e Coesa” esta vertente é deixada muito clara. Como é afirmado: “Especial atenção será dada à população sénior, que representa cerca de um quarto dos lisboetas.” Se, por um lado, há consciência deste envelhecimento da população da cidade e um assumir da atenção dada à mesma, por outro lado, quase de modo paradoxal, os dados importantes que apontam para um aumento das famílias em Lisboa, depois de 40 anos de descida, não aparenta idêntico grau de atenção particular. O olhar prestado à transversalidade geracional surge definitivamente incompleta. Mas, mais ainda, existe comparativamente uma invisibilidade óbvia e flagrante das transversalidades de género, cultura e étnia. (Câmara Municipal de Lisboa, 2013, pp. 55 e 57) A fechar o documento, no capítulo designado por “Lisboa Global”, o ponto-chave é a afirmação de Lisboa como “cidade cosmopolita […] leal à identidade de sempre da nossa cidade, ponto de chegada e de partida dos muitos mundos do Mundo.” Neste âmbito, é referido o sentido de cidade do diálogo, de amplo e múltiplo alcance: “intergeracional, inter-religioso e intercultural”. Contornando a designação de imigrante, num contexto onde a cultura e a sua plural produção é o tema base, é afirmado o benefício de Lisboa em ter acolhido (e continuar a acolher?!) e integrado “povos de diferentes culturas e origens”, sendo esta uma “população que contribui para o seu rejuvenescimento e dinamismo económico”. Terminando este capítulo, apela-se à continuação da “convivência harmoniosa” e as “vantagens da interculturalidade”, aqui definida enquanto “processo capaz de promover a interação entre os vários grupos presentes na sociedade.” (Câmara Municipal de Lisboa, 2013, pp. 78-82) Parece-nos que a estratégia de discurso escolhida aponta para uma romantização do outro, onde, sublinhamos, nem sequer surge a palavra imigrante. Esta ideia de uma cidade feita de múltiplas gerações, religiões e culturas, debaixo de convivências referidas como harmoniosas, retira a espessura dos processos complexos, diversificados e múltiplos em causa, transformando a suposta cosmopolitização da cidade num adereço turístico e publicitário. Como acções concretizadoras propostas pela CML são sublinhados, neste contexto, o reforço do trabalho do Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural (ACIDI), a continuação do festival “TODOS - Caminhada de Culturas”, a aposta na aquisição de competência por parte de jovens e crianças com vista a uma continuação do diálogo intercultural vida fora, o facilitar do acesso à aprendizagem da língua portuguesa e, por fim, o apoio ao “empreendedorismo e a criatividade económica das populações residentes estrangeiras, facilitando assim o crescimento da cidade.” (Câmara Municipal de Lisboa, 2013, 4 | 10

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p. 84) É interessante como esta questão das diferenças – que reclamam o tal diálogo – seja tratado como uma mais-valia para a cidade sem verdadeiramente se olhar para a questão da imigração em profundidade. Este ponto do documento consegue não referir, nem uma só vez, as palavras “imigrante” ou “imigração”, utilizando expressões como interculturalidade ou população estrangeira de um modo que nos parece um eufemismo embelezador da tal realidade complexa e nem sempre higienizável, já anteriormente referida nós por. Como também foi afirmado antes, os temas geracionais – principalmente os que se dedicam aos séniores – estão muitíssimo presentes, ao contrário das questões de género ou de imigração. Na verdade – em modo de nota final – o documento Programa do Governo da Cidade de Lisboa. 2013/2017. Lisboa uma cidade para as pessoas, compreendido mais além da dicotomia mulher imigrante, encontra-se em todo o texto uma essencialização pseudo-neutra do cidadão, do imigrante, do jovem ou do idoso que assume uma invisibilidade relativa às questões específicas associadas às visões mais amplas de género, especificamente no caso das mulheres. Por isso, nada surpreende que, quando os imigrantes são abordados, as questões particulares das mulheres imigrantes não surjam apontadas. No fundo, existe uma consistência de invisibilização de especificidades inultrapassáveis. As imigrantes, as jóvens, as séniores, resumindo, as cidadãs estão na sombra da neutralidade do discurso.

2. Do Pelouro dos Direitos Sociais – Plano de Acção 2014-2017 No contexto da Câmara Municipal e da sua orgânica5, o Pelouro dos Direitos Sociais é o espaço onde as intervenções que, entre outras, respeitam as populações imigrantes se enquadram. O plano de acção relativo a 2014-2017 está organizado em três eixos – Participação, Coesão e Intervenção –, dentro dos quais surgem 15 áreas6. Abordaremos principalmente as áreas 7 e 9, respectivamente, “Igualdade de Género” e “Diálogo Intercultural e Inter-religioso” por serem aquelas que teoricamente contêm preocupações e objectivos que se cruzam com a nossa questão: a imigração no feminino. Antes de olharmos para as anteriormente referidas, deixamos uma nota para outros dois pontos que, ainda que fora destes âmbitos, se cruzam transversalmente com o tema em causa e estão, de certo modo isolados dos mesmos. Por um lado, na área 2: “Direitos Humanos”, o ponto 2.a.3.3. que se refere à 5

A CML encontra-se organizada, para lá dos gabinetes do Presidente e do Vice-presidente, nos seguintes nove pelouros: Habitação / Desenvolvimento Local; - Planeamento / Urbanismo / Reabilitação Urbana / Espaço Público / Património / Obras Municipais; - Estrutura Verde / Energia; Cultura; - Direitos Sociais; - Educação; - Sistemas de Informação / Desporto / Relação com o Munícipe; - Segurança / Protecção Civil / Relações Internacionais / Mobilidade de Proximidade e - Recursos Humanos / Finanças. (Câmara Municipal de Lisboa, 2016) 6 São estes: Cidadania, Direitos Humanos, Economia e Inovação Social, Qualidade de Vida e Saúde, Gestão, Planeamento e Cooperação Transversal, Juventude, Igualdade de Género, Deficiência, Diálogo Intercultural e Inter-religioso, Orientação Sexual e Identidade de Género, Envelhecimento Activo, Infância, Família, Pessoas Sem-Abrigo e Acessibilidade Pedonal. (Câmara Municipal de Lisboa - Pelouro dos Direitos Sociais, 2014, p. 2) 5 | 10

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necessidade de “Criar um serviço de apoio a vitimas de descriminação em função do sexo, idade, raça ou origem étnica, deficiência, religião, orientação sexual e identidade de género” e, por outro lado, o ponto 3.a.3.5. que aponta para o “Desenvolvimento de competências profissionais e programas de dinamização de redes colaborativas e empreendedorismo voltadas para as mulheres”, na área 3: “Economia e Inovação Social”. (Câmara Municipal de Lisboa - Pelouro dos Direitos Sociais, 2014, pp. 10-11) Parecemnos pontos muito relevantes mas que são colocados nestas áreas mais genéricas e que assim se dissolvem de uma ideia específica e a trabalhar mais em profundidade com as áreas da construção da autonomia profissional e económica das mulheres – imigrantes ou não –, assim como da sua proteção face às diversas descriminações de que são alvo, num sentido interseccional essencial à acção efectiva expectável do poder local. Os pontos referidos no início deste capítulo interessam-nos nos seus objectivos, considerando que as missões e pontos só em alguns casos poderão ajudar a esclarecer visões estratégicas. Assim, o ponto 7, é dedicado exclusivamente à “Igualdade de Género” e organiza-se em dois objectivos: a) Promover uma participação equilibrada de mulheres e homens na sociedade e b) Prevenir e combater a Violência de Género. (Câmara Municipal de Lisboa - Pelouro dos Direitos Sociais, 2014, pp. 16-17) Curiosamente, no texto introdutório a “igualdade” é apontada como principio constitucional mas, aquando da enumeração do primeiro dos objectivos, a estratégia política recua para a “participação equilibrada”, muito mais abstracta e difusa. De qualquer modo, e focando no cruzamento imigração e mulheres, não surge nenhuma referência neste primeiro objectivo. O segundo objectivo, relativo à violência de género, é todo ele muito impositivo face a estratégias de orientação internacional e aplicabilidade local de elevada importância. No entanto, no contexto deste trabalho queremos sublinhar o ponto 7.b.2.2. “Desenvolver uma estratégia para o combate ao Tráfico de Seres Humanos” (Câmara Municipal de Lisboa - Pelouro dos Direitos Sociais, 2014, p. 17). Aqui, neste ponto, ser-se mulher e imigrante cruzam-se efectivamente. As vítimas destes crimes são principalmente mulheres e crianças e, também maioritariamente mas não só, a finalidade é o mercado do sexo. Saber mais sobre a realidade lisboeta no que a este ponto diz respeito é essencial para uma acção efectiva e conjunta das diversas instituições envolvíveis. O ponto 9 é, como já se disse, dedicado ao “Diálogo Intercultural e Inter-religioso” e tem como objectivo “Valorizar a diversidade cultural e religiosa da cidade” (Câmara Municipal de Lisboa - Pelouro dos Direitos Sociais, 2014, pp. 18-19). Sublinha-se o ponto que visa promover o “acesso à educação com igualdade de oportunidades para as crianças e jovens migrantes e minorias”, por se saber, empiricamente, que existem comunidades imigrantes onde as jovens e as raparigas estão proibidas de frequentarem a escola

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por condições das próprias comunidades a que pertencem7. Também aqui existirá um verdadeiro tema por trabalhar junto das populações imigrantes. Parece-nos relevante e causador de alguma perplexidade, sendo Portugal um país laico, que exista este enfoque duplo sempre que se falam das diversidades culturais, colando-lhes e ao mesmo tempo separando-lhes as religiosas. Ou seja, a nossa perplexidade advém de, com elevada consciência das diversidades religiosas existentes nas comunidades imigrantes, estas não serem assumidas como parte das diversidades culturais e terem uma autonomia talvez contraditória com a própria natureza republicana e laica do país.

3. Do Plano de Integração dos Imigrantes de Lisboa O Plano Municipal para a Integração de Imigrantes de Lisboa 2015-2017 (PMIIL 2015-2017) é um documento alargado, efectuado sob a orientação do Pelouro dos Direitos Sociais (PDS), em resposta ao ponto 9 do Plano de Acção 2014-2017, com o recurso à colaboração de diversas instituições e entidades e que se organiza em dois volumes: o primeiro, Enquadramento, Síntese do Diagnóstico e Estratégia de Intervenção (2015, pp. 661-782) e, o segundo, Diagnóstico da População Imigrante Residente em Lisboa (2015, pp. 783-1003), ambos publicados em suplemento ao Boletim Municipal, em Junho de 2015. Trataremos, neste texto, somente o 2.º volume, relativo ao diagnóstico, para verificar se os dados particulares apresentados, como matéria-prima base, preparam ou não um caminho de visibilização da mulher emigrante. Dos dados relevantes e gerais, sublinhamos a subida na taxa de variação da população estrangeira residente, em 2013, no Concelho de Lisboa (1,1) por contraponto às taxas de variação nacionais (-3,8) e da Área Metropolitana de Lisboa (-2,9). Também, segundo os dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), se verifica no país um considerável aumento do número de mulheres imigrantes face aos homens mas “ao contrário do que ocorre no global nacional, a população estrangeira em Lisboa mantém-se ligeiramente sobre-masculinizada”. Outra característica interessante e que faz Lisboa ter alguma diferenciação face ao restante território, é a sua maior diversidade no que se refere à nacionalidade de população estrangeira, com cerca de 25% a ter origem asiática (China, Índia, Nepal e Bangladesh). A análise detalhada destes dados, ainda que interessante, ultrapassa os objectivos deste trabalho mas estes apontamentos parece-nos importantes, por permitirem um enquadramento genérico da questão. (Câmara Municipal de Lisboa, 2015, pp. 795-796).

7 Referiremos

esta questão mais à frente. 7 | 10

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Se no capítulo dedicado à habitação não há relevante olhar sobre a questão das mulheres imigrantes em particular, no que repeita à saúde e, apesar de uma situação que é lida como “um dos países com melhores condições de integração dos imigrantes”, situações de descriminação são efectivas. Referindo o “Plano de Desenvolvimento de Saúde e Qualidade de Vida da Cidade de Lisboa”, da responsabilidade da CML, de 2015, é destacada a referência específica à prática da Mutilação Genital Feminina (MGF) por parte de alguns grupos culturais ou étnicos sobre mulheres imigrantes. (2015, pp. 867-868) Esta questão, ainda que complexa e não menosprezável nas práticas efectivas e reais que ultrapassaram já a supeita, assim como na discussão ao seu redor, não deixa de ser redutora por ser praticamente o único momento em que o sujeito “mulher imigrante” – pertencendo “maioritariamente a comunidades muçulmanas” – é palco de preocupação alargado. (2015, pp. 875-877) Não queremos retirar a importância destas práticas e a necessidade de serem questionadas, enquadradas e trabalhadas em profundidade. No entanto, consideramos muito relevante, o que é afirmado no documento, sobre as “maiores disparidades [que] foram encontradas entre a saúde de homens e mulheres, dentro de grupos étnicos minoritários”. Mais especificamente é dito que ainda que elas apresentem um perfil etário mais baixo, são quem surge mais vezes com questões de saúde efectivamente graves (2015, p. 872). Neste sentido, seria expectável uma mais alargada atenção a estas mulheres imigrantes, muçulmanas ou não, para se perceber mais efectivamente esta maior exposição à doença grave em geral. No que à Educação diz respeito o relatório é totalmente omisso sobre às diferenças de género. Assim, o que empiricamente se intui por grupos trabalhando no terreno8, com alguns grupos com menos abertura em colocar as raparigas na escola, são completamente impossíveis de serem aferidas nestes dados (2015, pp. 880-889). No que ao Emprego e Formação se refere, o relatório também é, em termos de género, omisso ficando só como referência o dado de que os “estrangeiros não comunitários apresentarem níveis de escolaridade bastante inferiores soa níveis apresentados pelos comunitários” (2015, p. 917). Relativamente à exclusão social dois pontos merecem a nossa atenção. Por um lado, a óbvia e consternante constatação de que todos os imigrantes que se encontram em situação irregular estão automaticamente mais expostos a situações diversas de risco e exploração – também aqui as diferenças de género não são avaliadas – e, por outro lado, a questão do tráfico humano. Como é afirmado, e sem grande surpresa, estas situações implicam habitualmente mulheres, de países pobres e aliciadas por melhorias gerais das condições de vida. O único caso relatado refere mulheres nigerianas traficadas com

8 Por

exemplo, referências efectuadas, em 2015, por Marta Silva, do Largo Residências, sobre algumas raparigas que viveriam ao Largo do Intendente, e que não frequentariam a escolaridade obrigatória, apesar da idade e dos irmão frequentarem. 8 | 10

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destino a Portugal para prestar serviços sexuais e a que a Obra Social das Imãs Oblatas dá assistência. Ironicamente, onde habitualmente trabalharavam, o Largo do Intendente, com a sua nova limpeza urbana e as rusgas policiais a ela associadas, acabou por afastá-las da cidade, diminuindo o apoio e o controle que tinham, expondo-as a mais riscos. (2015, p. 952) Falando de exclusão social, o facto que resulta deste sumatório complexo identitário de se ser mulher imigrante extra-comunitária está muito superficialmente observado. Espera-se que CML e PDS venham brevemente a perceber estes outros modos de se ter vidas lisboetas.

Notas Finais Como breve fecho, a leitura efectuada dos documentos anteriormente referidos deixa clara a invisibilidade das mulheres imigrantes no contexto da cidade de Lisboa. Como se verificou, só em casos muitos particulares como a MGF ou o tráfico humano se tem em consideração específica e detalhada a realidade de se ser mulher e imigrante. A redução a estas duas situações extremas, muitíssimo delicadas e graves, consolida a invisibilização para todas as outras questões, que poderão ser igualmente graves e complexas e a que estas mulheres estão sujeitas. Neste cruzamento entre cultura de origem, cultura de acolhimento e as suas particularidades e especificidades de invisíveis entre-mundos as mulheres imigrantes são desconhecidas e vivem na sombra da cidade. Não podemos também voltar a referir a perplexidade da atenção dada às questões religiosas apartadas dos contextos étnico-culturais em que se enquadram. Esta autonomização pode, no caso da mulheres, ser um modo indirecto de controle e de aumento de dificuldade de chegada ao que são a multitude de mulheres residentes em Lisboa e imigrantes de diversas proveniências. As religiões tendem a ser um filtro mais apertado sobre as mulleres do que a própria cultura ou étnia a que elas pertencem. Mas também esta questão necessitaria de outro artigo e de outros dados para ser avaliada com rigor.

Bibliografia Alberto, C. F. (2015). Largo do Intendente em Lisboa. Apropriação e vida do espaço público [Dissertação de Mestrado]. Lisboa: ULHT. Câmara Municipal de Lisboa - Pelouro dos Direitos Sociais. (2014). Plano de Acção 2014-2017. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa. Obtido em 18 de Março de 2016, de http://lisboasolidaria.cmlisboa.pt/documentos/1422547210W1vZN0ou3Wu74CY0.pdf

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Câmara Municipal de Lisboa. (2013). Programa do Governo da Cidade de Lisboa. 2013/2017. Lisboa uma cidade para as pessoas. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa. Obtido em 18 de Março de 2016, de http://observatorio-lisboa.eapn.pt/ficheiro/Programa_Gov_Cidade_de_Lisboa.pdf Câmara Municipal de Lisboa. (16 de Julho de 2015). Plano Municipal de Integração de Imigrantes de Lisboa. Vol. 1 - Enquadramento, síntese do diagnóstico e estratégia de intervenção. Boletim Municipal - 5.º suplemento, n.º 1117, 661-782. Obtido em 17 de Março de 2016, de http://bm-pesquisa.cmlisboa.pt/pls/OKUL/app_bm.download_my_file?p_file=2244#search= Câmara Municipal de Lisboa. (16 de Julho de 2015). Plano Municipal de Integração de Imigrantes de Lisboa. Vol. 2 - Diagnóstico da população imigrante residente em Lisboa. Boletim Municipal - 5.º suplemento, n.º 1117, 786-1003. Obtido em 17 de Março de 2015, de http://bm-pesquisa.cmlisboa.pt/pls/OKUL/app_bm.download_my_file?p_file=2244#search= Câmara Municipal de Lisboa. (2016). Executivo. Obtido em 18 de Março de 2016, de Câmara Municipal de Lisboa: http://www.cm-lisboa.pt/municipio/camara-municipal/executivo Cordeiro, A., & Rocha, D. (7 de Março de 2016). Chegada de 64 refugiados é uma forma de Portugal “dizer não ao fecho de fronteiras”. Obtido em 8 de Março de 2016, de Público: http://www.publico.pt/sociedade/noticia/chegada-refugiados-em-dia-de-cimeira-representasimbolicamente-a-solidariedade-de-portugal-1725416 Grillo, T. (2006 [1995]). Anti-essencialism and intersectionality: Tools to dismantle the Master's House. In E. Hackett, & S. Haslanger, Theorizing Feminisms (pp. 30-40). Oxford: Oxford Univ Press. Menezes, M. (2011). ‘Todos’ na Mouraria? Diversidades, desigualdades e diferenças entre os que vêm ver o bairro, nele vivem e nele querem viver. In Anais eletrônicos [recurso eletrônico] [do] XI Congresso LusoAfro-Brasileiro de Ciências Sociais (pp. 1-16). Salvador: UFBA. Obtido em 17 de Março de 2016, de http://www.xiconlab.eventos.dype.com.br/resources/anais/3/1306516109_ARQUIVO_MARLUCIMENEZE S_TEXTO_CONLAB_2011.pdf Spivak, G. C. (2010). Pode o Subalterno Falar? Belo Horizonte: UFMG.

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