Literatura brasileira: um certo abuso de um tema e de uma forma

June 6, 2017 | Autor: F. Filho | Categoria: Literatura brasileira
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Literatura brasileira: um certo abuso de um tema e uma forma


Cunha e Silva Filho


CONSIDERAÇÕES GERAIS. Não obstante este artigo, a princípio, não tenha por
objetivo desenvolver uma discussão mais ampla da fase em que se encontra a
produção da literatura brasileira contemporânea, alguns tópicos me instigam
a fazer comentários que julgo pertinentes no que respeita aos gêneros
ficcionais - romance, novela, conto e, de passagem, à poesia, conforme
posso vislumbrar a partir do que tenho lido, notadamente quanto a
questões do tema e forma, entendida esta como linguagem e técnicas
narrativas.
Grande parte das melhores e mais recentes histórias da
literatura brasileira de que hoje dispomos, quando publicadas em
sucessivas edições, não têm dado conta, com maior amplitude e urgência, da
novíssima produção literária, aqui considerando o interregno dos anos
noventa até agora. Estou pensando particularmente nas mais famosas delas,
a obra coletiva, dirigida por Afrânio Coutinho, A literatura no Brasil,
em seis volumes, a História da literatura brasileira, de Massaud Moisés,
em três volumes, a História concisa da literatura brasileira, de Alfredo
Bosi, A literatura brasileira, de José Aderaldo Castelo, em dois volumes,
a também coletiva, dirigida por Sílvio Castro, História da literatura
brasileira, em três volumes. Ao que tudo indica, os seus autores , com
exceção talvez, de Sílvio Castro, parecem que deram por encerrada sua
missão.
Sabemos que Bosi, autor talvez da mais lida das
mencionadas acima, não deu continuidade, nas mais recentes edições, e
foram tantas, da produção literária daquele período, ou seja, final do
século 20 e primeira década do século atual. É uma pena que as coisas
assim tenham ocorrido. É bem verdade que a contribuição da historiadora
italiana, Luciana Stegagno-Picchio, autora de uma valiosa obra sobre
nossos autores, a sua História da literatura brasileira, cuja segunda
da edição, revista e ampliada, data de 2004, infelizmente não poderá
brindar-nos com uma nova edição, ainda mais atualizada, por haver
falecido. Há algum tempo, me confidenciaram que Eduardo Portella estava
preparando uma história da literatura brasileira, assim como Gilberto
Mendonça Telles teria dito que estava escrevendo um estudo abrangente
de nossa literatura. O poeta Carlos Nejar, tendo escrito sua recente
História da literatura brasileira: da carta de Pero Vaz de Caminha à
contemporaneidade, prometeu também dar-lhe continuidade enfocando
autores da década de sessenta do século passado até nossos dias.
Aguardo, pois, que nosso historiadores literários possam dar sua
contribuição necessária de, pelo menos, duas décadas para cá.
Convém salientar que, na ficção, felizmente, alguns passos já
se deram nesta direção, como é exemplo do pequeno ensaio Ficção brasileira
contemporânea (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, 174 p.) de
Karl Erik Schollhammer, docente da PUC-Rio. Neste livro o ensaísta
competentemente aborda as mais recentes produções ficcionais da literatura
de nosso dias, analisando alguns de nossos autores mais novos e
fazendo, alem disso, um mapeamento das últimas gerações, cobrindo não
somente os autores principais da chamada geração 90 como ainda da
chamada "geração 00" (não sei se a expressão foi cunhada pelo autor do
ensaio). Autores dessa "geração 00" entre outros, são Daniel Galera,
Santiago Nazarian, Michel Laub, Cecília Giannetti , Verônica Stigger, i.
e., um grupo de autores com livros editados já no século atual.
No ensaio, Karl Erik faz sua exposição tendo como premissa a
questão do conceito de autor "contemporâneo" e de todas as implicações
complexas e por vezes fugidias que o termo evoca provenientes da
dificuldade de lidar com aquele conceito, seja do ponto de vista histórico-
social, sejas do ponto de vista da situação dos autores em elaborar sua
produção diante das opções de visão atual ou não da realidade brasileira,
sobretudo quando ainda se tem em vista um outro conceito de alcance
também movediço, que é o de "pós-moderno".
Digno de acentuar no ensaio de Karl Erik é o seu sentido de
oportunidade e de atualização (veja-se-lhe a fundamental bibliografia de
ficção, no final do volume, onde estão relacionados, a par de autores
mais velhos e ainda plenamente produzindo, aqueles da "geração de 90" e da
'geração 00", bem como de obras teóricas e críticas), pondo o leitor
especializado, estudantes universitários e pesquisadores em sintonia com o
que de mais atuante existe agora no panorama heterogêneo da criação
literária do país.
Seu ensaio é positivo na medida da em que traz para o debate a
questão dos relações entre os novos autores e a realidade editorial
brasileira, assim como são prestimosos seus juízos acerca dos novos
meios eletrônicos em que a literatura se faz presente, como os blogs de
literatura, abrindo um vasto espaço virtual no campo da ficção e,
diria, da poesia. A produção literária hoje em dia não pode descartar a
interatividade entre autor, leitor, crítico e a atividade editorial, uns
e outros não dispensando, na ponta, todas as mídias de que dispomos nos
conturbados dias que vivemos.
No tocante ao gênero poético, não conheço ainda uma síntese em
livro, semelhante ao trabalho de Erik Karl, que, pelo menos, enfoque,
num mapeamento seletivo, os novíssimos poetas da "geração 90 e da
geração 00", para usar as duas classificações que aparecem no ensaio.
De certo tal mapeamento de conjuntos de autores mais representativos será
um trabalho que exigirá tremendo esforço devido à grande quantidade de
poetas novos e novíssimos espalhados pelo país inteiro e muitos,
provavelmente, de boa qualidade, a se ver pela leitura de alguns que nos
chegam ao conhecimento. O livro de Alexei Bueno, Uma história da poesia
brasileira, de 2007, já foi um bom passo nesta direção. Só assim dotar-se-
á o leitor ou leitor especializado de um lúcida visão em conjunto do que
se tem publicado no país nas duas últimas décadas. A própria Coleção
Contemporânea, da Civilização Brasileira, que tem Evando Nascimento como
organizador, bem poderia pensar num empreendimento cultural deste
porte.
O que se nos apresenta no momento atual é a constatação de que o
historiador literário, o crítico e o ensaísta têm pela frente uma tarefa
hercúlea dado que a copiosidade de autores de poesia, mais do que na
prosa, ou tanto quanto esta, não para de crescer, segundo o próprio
Erik Karl declara no estudo.
UM TEMA E UMA FORMA. Após essas considerações gerais, quero,
agora, me deter em dois aspectos importantes na construção das obras
ficcionais de nossos dias: 1) um certo excesso de personagens
desempenhando na narrativa o papel da figura de escritor ou de um professor
universitário de letras escritor; 2) um excessivo uso do recurso
metaficcional em romances, decorrente, muitas vezes, daquele papel do
personagem narrador às voltas com as vicissitudes de quem lida com a
criação literária. Uma das consequências disso seria um problema
conectado com a função do leitor, reduzindo este a um seleto e elitista
grupo de especialistas e teóricos da literatura, e afastando, por outro
lado, o leitor comum ou médio que não alcançariam, em geral, os
complexos e intrincados mecanismos ou estratégias metaficcionais. Seria
isso uma espécie de crise de assunto ou tema no âmbito da narratividade?
Posto sejam recursos explicitamente contemporâneos, segundo
aparecem em autores como Ítalo Calvino, Milan Kundera, Doris Lessing em
The golden notebook (1962), John Fowles, em The French lieutenant's woman
(1969) Guimarães Rosa, num bom exemplo que é o conto "Corpo fechado" da
obra Sagarana ou mesmo de remota data, como, entre outros, podem-se ver
em Lawrence Sterne, Machado de Assis, ou implicitamente já possamos
encontrá-los em Miguel de Cervantes, em Don Quixote de la Mancha. Esses
recursos, predominantemente focados no metatexto, de resto, notáveis como
elementos novos acrescidos às técnicas narrativas, na realidade, aprofundam
o conhecimento epistemológico do que sejam os fundamentos da criação
literária. No entanto, se empregado abusivamente, podem ter efeito
negativo na recepção do leitor médio, tendo-se em vista o pressuposto de
que a nenhum escritor interessas só o leitor ideal que esteja teoricamente
sintonizado com o escritor. Afastam por isso o interesse do leitor
comum, que frui e aprecia narrativas mais focadas em tramas da vida
humana e na perspectiva existencial como representação de mundos
possíveis.
Veja bem, a minha ressalva não se assenta absolutamente na
recusa desse tipo - o que seria de minha parte um reducionismo de
natureza conservadora -, de narrativa pela narrativa. O que me preocupa é o
emprego indiscriminado que alguns escritores de hoje têm feito desses
recursos internos tanto no país quanto no exterior, de tal sorte que chega
ao cansaço e este se afigura um meio caminho para a exaustão que a ninguém
positivamente interessa.
Até me parece, em algumas vezes, que o ficcionista, para ser
bem visto pela comunidade literária, o esprit de corps do meio acadêmico-
universitário, para dar prova de atualização, de modernidade, deva por
obrigação testar sua experiência de docente de literatura (em geral, tais
autores são professores de letras) a fim de mostrar-se, reafirmo, em
sintonia, ademais, com alguns autores do exterior. Lembro a este
escritor no entanto, que uma ficção bem articulada e sem fazer concessões
anacrônicas ao Romantismo, Realismo e Naturalismo ou a outros estilos
literários, muito bem pode explorar, em linguagem renovada e com
originalidade de composição, os velhos (eternos) e novos temas da
humanidade, sem que, com isso, possa ser rotulado de passadista. Recorde-
se que o antigo e o atual – haja vista o sucesso que têm tido bons autores
de romances históricos - podem ser temas do escritor de hoje, desde que a
habilidade do artista transforme o antigo em formas novas e até
transgressoras, e mais, sem prejuízo de legibilidade do leitor em contato
com a obra.
Se a literatura, em qualquer parte hoje, persiste na imitação da
imitação, no modismo pelo modismo, creio que chegará a impasses que
nenhum crítico ou leitor desejarão para o futuro da narrativa. Quanto mais
persistir na estratégia de expressar-se literariamente por hermetismos, a
condição literária vai seguramente perder leitores, os quais irão procurar
sem dúvida as leituras mais excitantes, como a ficção policial e os
apelos e facilidades dos bestsellers estrangeiros.
Ao girar em demasia sobre um mesmo eixo temático do
próprio ato de narrar e seus inúmeros percalços, o escritor de ficção
tenderá a perder contato com a realidade dos leitores, os quais dele
fugirão, uma vez pressentindo tratar-se de obras que para eles não passam
de quebra-cabeças ou charadas metaficcionais. O autocentramento, no campo
da literatura, não irá resolver todos os impasses epistemológicos sobre as
aporias de Sísifo, incapazes de responder plenamente e de vez aos enigmas
da criação literária, tal como os surrados problemas da origem da vida
ou da existência , ou não, de um Criador do Universo.
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