Literatura como arma política do intelectual engajado

May 26, 2017 | Autor: Vinícius Moraes | Categoria: African Literature, Jean Paul Sartre, Luandino Vieira
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Vinícius Moraes Tiago (UFJF)

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LITERATURA COMO ARMA POLÍTICA DO INTELECTUAL ENGAJADO Ao longo dos anos, diferentes formas de percepção foram estabelecidas em relação à figura do intelectual e ao seu papel não só como analista de fenômenos sociais, mas também como agente transformador da sociedade. Compreendido como um artesão do campo ideológico, a figura desse intelectual, frequentemente, é ligada a um fazer artístico do qual se lança mão para a estruturação de utopias. Contudo, conforme nos lembra Said (2005), o intelectual moderno demonstra uma faceta para além desse próprio fazer ideológico: sua relação intrínseca entre o pensar e o agir. Presenciamos, assim, a formação do intelectual engajado, o qual busca não só expor as contradições das relações humanas, como também procura agir como um agitador e mobilizador da sociedade. Com o objetivo de permitir à sociedade cada vez mais uma ampla reflexão crítica, esse intelectual utiliza diversas formas de engajamento para cumprir seu papel de agente transformador do real, sendo a literatura – o texto – um de seus instrumentos para tanto. Nesse sentido, a partir da análise de um trecho da obra A vida verdadeira de Domingos Xavier do escritor angolano Luandino Vieira, este trabalho faz uma breve investigação acerca da relação do intelectual engajado com o fazer literário, enfatizando que este fazer se estabelece como uma das inúmeras ferramentas de sua participação na luta de transformação da sociedade. A partir do expansionismo ocidental sobre o continente africano e da insaciável sede do capitalismo, é possível constatar em Angola algumas das violentas armas utilizadas na exploração da então colônia pela metrópole portuguesa: a repressão política, a imposição de assimilações cultural e política, e a censura. Como destaca Sindra (2007), a sociedade angolana às vésperas da independência era pluriétnica e dividida em classes: de brancos privilegiados; de colonos brancos pobres; de mestiços; de negros assimilados; e de negros não assimilados, os quais eram maioria. Nessa perspectiva, era – e ainda o é – necessário restituir ao ato de colonização “a força de escândalo que lhe é inerente e que só o desgaste lhe retirou” (ARMANDO, 1986, p. 11). O motorista até já tinha espreitado, resmungando qualquer coisa. O operário, pedreiro ou caiador, trazia o fato coberto de nódoas de cal e os seus pés se escondiam nuns velhos quedes. Assim como estava, o cobrador achava que ele não podia viajar. Duas senhoras brancas concordaram, acrescentando que qualquer dia nenhuma pessoa decente podia andar nos maxibombos por causa o cheiro dos negros. Dois rapazes diziam ao cobrador: — Deixe lá ir o tipo. O gajo vai no lugar dele, ali no fundo. / Xico João já tinha visto muitas cenas destas. Todos os dias, em todos os sítios, era o pão quotidiano de todos os irmãos. Muito embora ensinado por Mussunda, sempre não podia ver essas conversas sem uma vontade de tomar a defesa do irmão ofendido e insultado, só mesmo com muito custo refreava o impulso natural contra a injustiça de que era espectador (...). Sabia que se ia falar, na discussão ia nascer com certeza a pancada e daí a polícia e a prisão durante dias ou semanas. Porque justiça de polícia é justiça de quem manda, ele e o operário iriam de certeza para a prisão. (VIEIRA, 1979, p. 39-40)

Juiz de Fora, novembro de 2016

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Vinícius Moraes Tiago (UFJF)

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A partir desse trecho, para além da própria transgressão da linguagem do colonizador que se faz de suma relevância, é possível constatar as diferentes formas de engajamento de Luandino Vieira a respeito das questões relativas à sociedade angolana. O autor lança mão da literatura para denunciar as relações de poder, o racismo e as assimilações cultural e política que foram impostas aos angolanos. O motorista e o cobrador, ao tentarem impedir o operário sujo de cal de viajar no ônibus, demonstram como essas assimilações foram enraizadas na sociedade, além, claro, de expor as próprias contradições acarretadas. Simultaneamente, a figura das duas senhoras brancas, endossando o posicionamento do motorista e do cobrador, denuncia uma outra faceta do preconceito sofrido pelo operário: o racismo. Além disso, o autor também realiza uma reflexão acerca do quadro reformista: o qual é representado pelo argumento do operário poder viajar por se colocar em seu lugar – o fundo do ônibus. Isso, claro, sem mencionar a questão da repressão e do abuso de poder representados na figura da polícia. Portanto, de uma maneira ampla, Luandino Vieira escancara por meio da literatura as contradições e os objetivos concretos do colonialismo, promovendo, assim, uma clara reivindicação de uma Angola livre e soberana. O autor se levanta a favor das identidades angolanas, que a partir da imposição das assimilações política e cultural promovidas pelo colonizador vinham – e ainda vêm – sendo massacradas. Além disso, conforme nos lembra Sartre em seu ensaio Orfeu Negro (2003, p. 89), “ei-los em pé, homens que nos olham e faço votos para que sintais como eu a comoção de ser visto”, essa nova posição de fala de uma elite intelectual negra não entoaria louvores aos seus carrascos. Nesse sentido, os textos de Luandino tinham tanta efetividade em interferir no real que a ditadura salazarista decretou sua prisão, condição da qual o autor escrevera boa parte de sua obra. Em última análise, no caso de Luandino, o fazer literário desempenha um papel muito mais relevante como forma de participação na luta anticolonial devido à sua prisão – que obviamente diminuía suas ferramentas de participação na luta pela libertação da Angola.

Referências & Bibliografia ARMANDO, M. L. C. As literaturas africanas em língua portuguesa. In: ______ Cadernos Luso-Africanos. Ijuí: Livraria Unijuí, v. 1, 1986. SAID, E. W. Representações do intelectual: as conferências Reith de 1993. Tradução de Milton Hatoum. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. SARTRE, J. P. Orfeu Negro. In: ______ Reflexões sobre o racismo. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 2003. p. 89-125. SINDRA, A. G. Intelectuais no contexto político e literário: o papel do angolano Luandino Vieira. Scripta, Belo Horizonte, v. 11, n. 20, p. 177-193, 1º sem. 2007. VIEIRA, J. L. A vida verdadeira de Domingos Xavier. São Paulo: Ática, 1979.

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