Literatura da Amazônia: a poesia de Vicente Franz Cecim. UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO DIRETORIA DE PESQUISA

June 3, 2017 | Autor: Vicente Franz Cecim | Categoria: Literatura brasileira, Literatura Latinoamericana, Literatura
Share Embed


Descrição do Produto

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO DIRETORIA DE PESQUISA

PROGRAMA INSTITUCIONAL DE BOLSAS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA – PIBC: CNPq, CNPq/AF, UFPA, UFPA/AF, PIBC/INTERIOR, PARD, PIAD, PIBD, PADRC E FAPESP

RELATÓRIO TÉCNICO-CIENTÍFICO

Período: ( ) PARCIAL (X) FINAL IDENTIFICAÇÃO DO PROJETO Título do Projeto de Pesquisa: Literatura Comparada e Estudos Culturais II: perspectivas teóricas para ler literatura, arte, cultura, sociedades e processos globalizantes na Amazônia, Brasil e América Latina. Nome do Orientador: Luís Heleno Montoril Del Castilo Titulação do Orientador: Doutor Faculdade: Faculdade de Letras – Fale Instituto/Núcleo: Instituto de Letra e Comunicação – ILC Laboratório Título do Plano de Trabalho: Literatura da Amazônia: a poesia de Vicente Franz Cecim. Nome do Bolsista: Rogério Alan Tancredo Tipo de Bolsa: PIBC/UFPA

INTRODUÇÃO Este relatório técnico-científico tem por objetivo descrever como se deu a execução das atividades referentes ao Plano de Trabalho Literatura da Amazônia: a poesia de Vicente Franz Cecim vinculado ao Projeto de Pesquisa Literatura Comparada e Estudos Culturais II: perspectivas teóricas para ler literatura, arte, cultura, sociedades e processos globalizantes na Amazônia, Brasil e América Latina. O Plano de Trabalho em questão tinha como principal objetivo pesquisar o acervo de Vicente Franz Cecim publicado em revistas especializadas, jornais e suplementos da época em que produziu até o momento o escritor e, assim, compor um corpus de pesquisa com a finalidade de mapear a produção de Vicente Cecim. Para isso, contou com um bolsista PIBC/UFPA autor do presente relatório. As atividades descritas neste relatório, corresponde ao objetivo do Plano de Trabalho que foram realizadas no período de setembro de 2014 a agosto de 2015 as quais compreendem: a) Pesquisa do Acervo de Vicente Franz Cecim: Fundação Tancredo Neves – Centur, sala Haroldo Maranhão – obra raras. b) Pesquisa em revistas especializadas, jornais e suplementos literários publicados na década de 80 até 2013 ano da última publicação do escritor. Para que fique claro como as atividades foram realizadas apresentar-se-á um breve resumo do Projeto de Pesquisa, pelo qual está vinculado o Plano de Trabalho, pontuando sua justificativa e objetivos. Este relatório contém igualmente apresentação dos resultados parciais obtidos com as análises empreendidas.

RESUMO DO PROJETO DE PESQUISA: O projeto busca recompor os campos da literatura e das artes na dinâmica da modernidade e contemporaneidade na Amazônia, no Brasil e na América Latina, em um estatuto contemporâneo da cultura. Pensar sobre os objetos artístico-culturais pesquisados que já não se sustentam unicamente na noção de culturas populares,

culturas de massa, alta cultura, baixa cultura e/ou cultura nacional, regional etc., com estruturas fixas. Processos globalizantes têm interferido nos sistemas culturais outrora bem distintos e demandado sistemas disciplinares de conhecimento sobre as transformações resultantes deles. Tais processos estão ativos na Amazônia, a ponto de deslocarem as noções uniformes e de senso comum de uma terra isolada, de ciclo da natureza a reger a cultura do homem. É claro que o rigor científico não se deixa colonizar, ao contrário, ele é capaz de pensar, sobretudo, a transformação da natureza no curso do desenvolvimento econômico a pautar a agenda cultural dessa região. Mas é hora de pensar também sobre a difícil tarefa de interpretar a cultura expandida em seus objetos artístico-culturais. É assim que a interdisciplinaridade já consagrada na Literatura Comparada vem somar-se aos Estudos Culturais para dar conta de uma cartografia de saber aberta e ampliada. ÁREA: Linguística, Letras e Artes. Palavras-Chave: Amazônia, poesia, Vicente Franz Cecim. JUSTIFICATIVA A modernidade, época que ainda não findou e que se desdobra com o contemporâneo por compartilhar com este costumes e características, advém de processos de modernizações que começam a transformar o espaço geográfico como as construções de ferro, a máquina a vapor, a luz elétrica, a chegado do automóvel, as construções de vidro, a cultura do trabalho implantado em nossos dias, ou seja, começa a partir de processos técnicos que se intensificam (devido a expansão da indústria e da produção em massa) junto à urbanização que se expande ao longo dos séculos XIX e XX. Filha da técnica, a modernidade traz consigo a carga dessa transformação natural – do ponto de vista evolutivo - que tirou o homem do campo para jogá-lo na grande cidade. Esse homem simples, que levava uma vida pacata, de subsistência, agora é obrigado a conviver com invenções mirabolantes que transformam a realidade, invenções que prometem, se não solucionar, amenizar seus problemas, melhorar a vida dentro da existência. Porém, o que se viu como resultado desse processo urbano industrial foi um homem mecanizado, afastado das relações humanas para se tornar peça da engrenagem em prol de uma produção incessante. Destituído dos esteios éticos que durante muitos anos sustentaram a civilização, o indivíduo torna-se solitário e angustiado apesar dos avanços tecnológicos. Esse é o espírito do homem moderno, a

carga que a modernidade traz consigo. Artistas herdeiros dessa cultura urbana da máquina e do ferro advindo do período entre guerras (que os lançara num vazio espiritual e a partir de então têm como missão recuperar a humanidade que se esvaíra nas trincheira) vão construir suas obras a partir desse sentimento, e do estado de solidão do indivíduo que vaga anônimo e se perde na multidão. Isso tudo nos remete, é claro, a relação do homem com a produção artística durante a História. A arte, com os eventuais processos técnicos na modernidade, se afasta da sua condição tradicional, a poíesis, e passa a condição desprestigiada da práxis, ou seja, da coisa obscura, capaz de trazer à luz algo próprio e originário, passa a estar ligada a um fazer continuo, prático, incapaz de superar a si mesma como objeto. Nesse contexto histórico-cultural o escritor e cineasta Vicente Franz Cecim nascido em Belém do Pará cria Andara, a cidade imaginária mito-poética que é o seu projeto literário moderno, que teve como uma de suas nascente – além do macrocosmos amazônico – a obra literária de sua mãe também escritora Yara Cecim que passou a maior parte da vida a margem do rio Tapajós, em Santarém, mudando-se para Belém onde publicou o livro Lendário – Contos Fantásticos da Amazônia.Vicente Franz Cecim é a Voz que se insurge contra o atraso cultural, político, econômico e o colonialismo imposto à realidade social e ao imaginário amazônico. Uma voz que se dirige ás vítimas deste estado de coisa, exigindo mudanças: “Vítimas de uma sociedade violentamente gerada pelos mais evidentes padrões de colonização, nossas chances de muda-la começam na visualização da face oculta de quem nos fez isso. Este esforço que precisa voltar bem atrás, e que deverá se espalhar, interrogativamente, em várias direções, para obter êxito” palavra de Vicente Cecim, Manifesto Curau(1983), lidas durante o primeiro Congresso da SBPC – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, realizado em Belém no mesmo ano do lançamento do livro. Uma literatura sagaz que mostra a força e poder de criação sob a forma ficcional e poética dando continuidade a uma tradição moderna de ruptura. Esse trabalho visa mostrar Andara como espaço moderno - irrupção poética - que vem para inovar a forma da narrativa. Projeto audacioso e inovador, que aproxima Cecim da geração de 45, movimento modernista que elegera a reflexão sobre a escrita um dos focos principais de seus trabalhos, recriando e dando uma nova roupagem a literatura brasileira a partir de paradigmas próprios, que iria nortear as obras daquele período. Criação de um universo paralelo ao real, que está em constante movimento, proposto por uma linguagem que se

desdobra em si e que fala por meio de alegorias que compõe o universo mítico. Andara estende a fronteira entre realidade e ficção se constituindo na poética, espaço do pensar, possibilitado pela criação. Por essas e outras inovações linguísticas e poéticas consideramos relevante as atividades aqui descritas, que compreende, nessa primeira etapa do Plano de Trabalho, em resultados parciais da pesquisa de corpus que, futuramente, será utilizado para a análise da produção poética de Vicente Cecim como possível intermediadora do processo de transfiguração da Amazônia na cidade mito-poética Andara, criação e suporte para a reflexão literária brasileira e Latino Americana. Com isso procuramos mapear a produção literária e artística contemporânea que movimenta Belém do Pará a partir dos anos 80 até os dias atuais. OBJETIVOS O Plano de Trabalho em questão tinha como objetivo principal, no período já informado, pesquisar o acervo de Vicente Franz Cecim, considerando nessa primeira etapa da pesquisa, de acordo com o cronograma, as seguintes etapas: a) Pesquisa do acervo de Vicente Cecim: revistas literárias, jornais e suplementos da época em que produziu o escritor. b) Pesquisar os processos formativos de literatura e de artes de Belém do Pará.

Nessa fase de pesquisa e coleta do corpus, as atividades diretamente ligadas ao Plano de Trabalho IC original foram realizadas com êxito absoluto, devido ao acesso do acervo do escritor, assim como o acesso ao material referencial que trata da questão do espaço poético, o que ajudou a explicar as fronteiras e a geografia de um lugar abstrato como a cidade de Andara que se constitui através da linguagem e da poética.

MATERIAIS E MÉTODOS

Todos os procedimentos metodológicos adotadas até o presente momento seguiram através das pesquisas de livros e dos textos publicados sobrea obra de Vicente Cecim; das revistas e suplementos literários à época em que Vicente Cecim produziu suas obras e atuou no circuito literário de Belém do Pará. Utilizou-se, também, o

método de pesquisa documental com a necessidade de utilização de material escaneado e fotografado permitidos para captar imagens relevantes na composição do corposda pesquisa a serem utilizados no futuro. A coleta dedados iniciou partindo do acervo de obra raras da Fundação Tancredo Neves – Centur, especificamente da investigação e busca do jornal “A Província do Pará”, onde Vicente Cecim colaborou com uma coluna que fala de cinema, literatura e política durante os anos 1982 até 1983 (material que está em anexo no final deste relatório). A coluna se chamava “Contexto” e tinha como colaboradores os poetas Age de Carvalho, Max Martins e o escritor e crítico José Paulo Paes. Através da coluna podemos saber das leituras consumidas da época e do filmes que circulavam pelo circuito alternativo de cinema. Registro importante para sabermos quais os escritores cultuados daquele período e quais os filmes assistidos nas salas alternativas – sempre presente em Belém – fora do eixo comercial. A partir de então procuramos reunir a obra do autor facilmente encontrada nos sebos e livrarias de Belém.

RESULTADOS DO PRIMEIRO MOMENTO DA PESQUISA A análise preliminar feita com o corpus coletado na Fundação Tancredo Neves – Centur, e o acervo do autor, diz que Vicente Franz Cecim, apesar de estar na contemporaneidade, ou seja, no momento presente, aproxima-se dos modernistas, e da geração de 45, por ter um projeto onde sua literatura se desenvolve e se amplia, projeto sob o qual o autor usa como suporte para criticar as atrocidades da modernidade, refletir sobre o ato da escrita e sobre sua produção. Isso caracteriza uma tradição moderna onde o ato de criar, a atividade poética, passa a ser assunto da narrativa. Tradição a qual Cecim está ligado - apesar de separado no tempo – por ter um projeto literário onde faz suas indagações sobre a escrita e que se amplia em torno do próprio eixo seguindo uma linha de criação. Outro dado que aproxima Vicente Cecim do modernismo é o narrador. Este por vezes toma forma de criador (demiurgo) e se dissolve em várias vozes engendrando uma polifonia, característica de muitos narradores modernos, que usam seus personagens para dizer como veem o mundo e a literatura. O narrador contemporâneo geralmente mantém distância de seus personagens, e age como um observador, descrevendo a partir do que vê. Não é costume do narrador contemporâneo se confundir com sua criação.

Como resultado material do primeiro momento da pesquisa temos a produção de um artigo (em anexo nesse relatório) intitulado Andara: o projeto moderno de Vicente Franz Cecim a ser publicado nos periódicos e apresentado no Seminário PIBIC 2015.

CONCLUSÃO

Os resultados apresentados são provenientes da pesquisa do corpus na Fundação Tancredo Neve e o acervo do autor. A análise feita com os dados coletados, até o presente momento da pesquisa, indica que Vicente Franz Cecim cria Andara a cidade mito-poética que vem a ser seu projeto literário moderno, onde a Amazônia surge (re)significada sob a forma da criação poética. Nesse espaço singular - onde o plano mítico e a realidade fundem-se para dar origem à ficção - o autor engendra uma escrita híbrida, inovadora, que vem para quebrar e pôr em xeque os gêneros textuais e inovar a forma da narrativa. A partir da leitura de textos como A Asa e a serpente (1979), livro que dá início a sua obra, podemos notar fatores decisivos na sua técnica de composição como a alegoria, a metáfora e a ressignificação do símbolo, da palavra num sentido mais amplo sem romper com uma tradição da palavra sacralizada, aproximando Cecim dos escritores de vanguarda da metade do séc. XX. Transfigurada – oniricamente - até a dimensão de uma região metáfora da vida, Andara é a Amazônia onde ele nasceu. Iniciando essa invenção Cecim renova e dá fôlego a literatura paraense que se moderniza a partir da década de 50 com o grupo dos novos formado por Max Martins, Mário Faustino, Haroldo Maranhão, Paulo Plínio, Dalcídio Jurandir entre outros. Com uma escrita transgressora que se mostra nos Livros invisíveis de Andara sob a forma mais radical literatura fantástica afirmando que a ficção é só um simulacro da vida, Cecim enriquece o campo da poética expandindo e renovando o imaginário amazônico e sua linguagem mítica.

PERSPECTIVAS FUTURAS

Em relação às atividades do Plano IC original, o bolsista avançará na pesquisa analisando filmes, desenhos e reportagens relacionadas a obra, investigando os processos de criação de Andara e o movimento da literatura e da arte em Belém do Pará a partir da década de 80 relacionando o período junto ao contexto contemporâneo.

Esperamos, assim, cumprir com o término desta pesquisa que vem contribuir para o entendimento da formação da literatura na Amazônia.

PARECER DO ORIENTADOR: O plano de trabalho: Literatura da Amazônia: a poesia de Vicente Franz Cecim, desenvolvido pelo bolsista de iniciação científica Rogério Alan Tancredo, constante do projeto de pesquisa Literatura Comparada e estudos Culturais II: perspectivas teóricas para ler literatura, arte, cultura, sociedades e processos globalizantes na Amazônia, Brasil e América Latina e integrante do Grupo de Pesquisa Literatura, história, arte e cultura na Amazônia, sob minha coordenação e liderança, desenvolveu-se conforme o conteúdo do presente relatório final em foco para o qual dou parecer plenamente favorável.

Belém, 05 de agosto de 2015

ASSINATURA DO ALUNO

ANEXOS Artigo

Andara: o projeto literário moderno de Vicente Franz Cecim

Rogério Alan Tancredo1

Resumo: Este artigo pretende mostrar Andara, a cidade imaginária criada pelo escritor paraense Vicente Franz Cecim que vem a ser seu projeto literário moderno, onde a Amazônia surge (re)significada sob a forma da criação poética. Nesse espaço singular - onde o plano mítico e a realidade fundem-se para dar origem à ficção - o autor engendra uma escrita híbrida, inovadora, que vem para quebrar e pôr em xeque os gêneros textuais e inovar a forma da narrativa. A partir da leitura de textos como A Asa e a serpente (1979), livro que dá início a sua obra, vamos apontar fatores decisivos na sua técnica de composição como a alegoria, a metáfora e a ressignificação do símbolo, da palavra num sentido mais amplo sem romper com uma tradição da palavra sacralizada, aproximando Cecim dos escritores de vanguarda da metade do séc. XX. Palavras-chaves: Andara, espaço, técnica, modernidade.

1.Introdução Sob forma transfigurada, a Amazônia aparece como espaço metafórico, transformada em verbo, estado constante de criação. Universo imaginário e fantástico onde homens, animais, seres alados e insetos, junto à seus significados, unem-se para celebrar a linguagem e a criação poética. Andara é o nome da Amazônia transfigurada, o espaço mito-poético criado pelo escritor paraense Vicente Franz Cecim para a realização de seu projeto literário moderno: a própria Andara. A cidade imaginária, 1

Graduando em Letras pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Este trabalho é resultado de uma pesquisa junto ao projeto Pibic/Ufpa.

criada segundo o autor sob a influência das histórias que sua mãe Yara Cecim, também escritora,contava2, surge a partir de um universo imaginário popular regional no primeiro livro A asa e a serpente (1979), obra que inaugura Viagem A Andara, O livro invisível (arcos narrativos que se sucedem e se voltam sobre si). Conquanto haja esse traço de imaginário da região, excede o regionalismo convencional transgredindo a tradição oral da narrativa. Nesse espaço enigmático e fantasmagórico, numa atmosfera de sonho e fantasia, Cecim cria histórias para refletir sobre a própria criação, denunciar as mazelas sociais de sua região, a Amazônia, e num campo mais exíguo, expor as obsessões e desejos do homem, ser ontológico, jogado num plano universal através da criação artística, ou seja, através da criação de Andara. Histórias que beiram a incompreensão e a loucura, que mostram o inconsciente dos personagens num plano onírico que se abre para a imaginação do leitor num jogo lúdico de linguagem. Uma literatura sagaz que mostra a força e poder de criação sob a forma ficcional e poética dando continuidade a uma tradição moderna. Esse trabalho visa mostrar Andara como espaço moderno - irrupção poética - que vem para inovar a forma da narrativa. Projeto audacioso e inovador que aproxima Cecim da geração de 45, movimento modernista que elegera a reflexão sobre a escrita um dos focos principais de seus trabalhos, recriando e dando uma nova roupagem a literatura brasileira a partir de paradigmas próprios, que iria nortear as obras daquele período. Criação de um universo paralelo, que está em constante movimento, proposto por uma linguagem que se desdobra em si e que fala por meio de alegorias que compõe o universo mítico. Andara estende a fronteira entre realidade e ficção constituindo-se na poética, espaço do pensar, possibilitado pela criação. Cosmogonia amazônica ou/e latino-americana que após os movimentos de vanguarda europeu do início do século emergiram com a força do seu imaginário mítico, valorizando e expandindo o universo ficcional latino. Espaços que se consolidaram na poética do novo continente como A biblioteca de Babel, de Jorge Luis Borges, a Macondo de Garcia Marquês e a Santa Maria, de Juan Carlos Onetti, a cidade fictícia que faz alusão à Montevidéu. Trago esses nomes não para ligar Cecim a esse movimento que ficara conhecido como realismo mágico, mas para dar exemplo de uma literatura que reagia contra essa realidade objetiva, concreta, e que propunha a criação de novos espaços – ou de outra realidade - através da linguagem. Uma literatura que consolidou uma estética e modernizou o universo poético do Novo Continente. 2

Revista PZZ ano 07, Ed. Resistencia, PA, 2013.

“Escrever, sonhar os livros de Andara, foi uma opção muito solitária, e do que havia sido escrito aqui na Amazônia, pelos escritores cultos, chamemos assim, eu não me nutri de quase nada. Meu único alimento foi a literatura oral, as lendas os mitos, que aprendi a admirar através da minha mãe, que nos contava, não os contos dos irmãos Grimm, de Perrault, que tem coisas geniais, de Andersen, que é todo ele um gênio, mas uma histórias delirantes da região amazônica, para nos fazer dormir, a mim e a meus irmãos Paulo e Elizabeth. O sono vinha, mas como um portal de acesso a todo esse mundo feérico. Não sabíamos mais o que era natural e o que era sobrenatural” (CECIM, 1979:12). Aqui, Cecim afirma o que seja talvez sua principal matriz poético-literária: o imaginário amazônico com suas lendas, crenças e mitos, marcado pela transmissão através da oralidade, características dos povos que tem uma forte ligação com a terra e com sua tradição. É desse universo que Andara surge, vai tomando forma até se constituir como tempo e espaço poético da linguagem. Neste trabalho vamos demarcar o espaço que tem suas fronteiras delineadas pela linguagem singular que se desenvolve envolta do próprio centro e sua estrutura física não-linear, mas que segue um padrão de criação.

2. Modernidade: filha da técnica A modernidade, época que ainda não findou e que se desdobra com o contemporâneo por compartilhar, com este, costumes e características, advém de processos de modernização que começam a transformar o espaço geográfico: como as construções de ferro, a máquina a vapor, a luz elétrica, a chegada do automóvel, as construções de vidro, a cultura do trabalho implantado em nossos dias, ou seja, começa a partir de processos técnicos que se intensificam (devido a expansão da indústria e da produção em massa) junto à urbanização que se expande ao longo dos séculos XIX e XX. Filha da técnica, a modernidade traz consigo a carga dessa transformação natural – do ponto de vista evolutivo - que tirou o homem do campo para jogá-lo na grande cidade. Esse homem simples, que levava uma vida pacata, de subsistência, agora é obrigado a conviver com invenções mirabolantes que transformam a realidade, invenções que prometem, se não solucionar, amenizar seus problemas, melhorar a vida dentro da existência. Porém, o que se viu como resultado desse processo urbano industrial foi um homem mecanizado, afastado das relações humanas para se tornar peça da engrenagem em prol de uma produção incessante. Destituído dos esteios éticos

que durante muitos anos sustentaram a civilização, o indivíduo torna-se solitário e angustiado apesar dos avanços tecnológicos. Esse é o espírito do homem moderno, a carga que a modernidade traz consigo. Artistas herdeiros dessa cultura urbana da máquina e do ferro advindo do período entre guerras (que os lançara num vazio espiritual e a partir de então têm como missão recuperar a humanidade que se esvaíra nas trincheiras) vão construir suas obras a partir desse sentimento, e do estado de solidão do indivíduo que vaga anônimo e se perde na multidão. E sob uma concepção de técnica - falo das inovações tecnológicas e de processos artísticos que vão revolucionar a linguagem como a colagem, o recorte, a fotografia e o cinema - que vai se confundir com o processo de composição da obra de arte. A técnica e a reprodução em grandes quantidades das obras, no primeiro momento, vão botar em questão o princípio de obra de arte, reduzindo a mesma a mercadoria, esvaziada de um sentido mais nobre (a perda da aura) produto descartável de cultura de massa, como aponta Walter Benjamin em A Obra de Arte na era de sua Reprodutibilidade Técnica: [...] o que se atrofia na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte é sua aura. Esse processo é sintomático, e sua significação vai muito além da esfera da arte. Generalizando, podemos dizer que a técnica de reprodução retira do domínio da tradição o objeto reproduzido. Na medida em que ela multiplica a reprodução, substitui a existência única da obra por uma existência massiva. E, na medida em que essa técnica permite a reprodução vir ao encontro do espectador, em todas as situações, ela atualiza o objeto reproduzido. Esses dois processos resultam num violento abalo da tradição, um abalo da tradição que constitui o reverso da crise e renovação atuais da humanidade. Eles se relacionam intimamente com os movimentos de massa, em nossos dias. (BENJAMIN, 2009)

Isso tudo nos remete, é claro, a relação do homem com a produção artística durante a História. A arte, com os eventuais processos técnicos na modernidade, se afasta da sua condição tradicional, a poíesis, e passa a condição desprestigiada da práxis, ou seja, da coisa obscura, capaz de trazer à luz algo próprio e original, passa a estar ligada a um fazer contínuo, prático e funcional, incapaz de superar a si mesma como objeto. Enquanto no centro da práxis estava, como veremos, a ideia de vontade que se exprime imediatamente na ação, a experiência que estava no centro da poíesisera a pro-dução na presença, isto é, o fato de que, nela, algo viesse do não ser ao ser, da ocultação à plena luz da obra. O caráter essencial da poíesisnão estava, portanto, no seu aspecto de processo prático, voluntário, mas no seu ser um modo da verdade, entendida como des-velamento. E era precisamente por essa sua essencial proximidade com a verdade que Aristóteles, na condição

mesma do homem, tendia a atribuir à poíesisumposto mais alto em relaçãoà práxis. (AGAMBEN, 2012, p. 118)

A técnica (agora falo da obsessão de alguns artistas de criar algo próprio, novo, que o identifique e o caracterize como tal), vista como vilã a priori, no século XX, também acaba sendo uma aliada para processos de composições complexos na modernidade.Artistas vão começar a compor sob estas perspectivas, e através de suas obras, espécie de máscaras por meio da qual vão anunciar e cantar seu tempo, vão desconstruir paradigmas estabelecidos, renovando a linguagem por meio de um processo de transfiguração, mostrando como veem a realidade e o mundo. A prosa e a poesia que agora vão ter como substância principal a solidão do indivíduo e a fratura desse mesmo indivíduo múltiplo e diverso, vão voltar-se para si, questionando-se enquanto gêneros, num processo de mutação tal qual as transformações da modernidade. Artistas vão produzir obras de difícil acesso, de difícil compreensão (para não dizer herméticas) fazendo jus a sua época e seu tempo. Muitos escritores vão criar narrativas e poemas enigmáticos - que refletem sobre a própria linguagem - e sob um formato, um projeto estético vão desenvolver suas obras. Assim fez João Cabral de Melo Neto na suspensão da lírica no verso, Guimarães Rosa na transformação da sintaxe e do léxico, Clarice Lispector com a epifania e desconstrução de seus personagens e Osman Lins na fragmentação e geometrização da narrativa,só pra citar alguns exemplos de composições complexas na modernidade. Vicente Franz Cecim se aproxima destes nomes quando também por meio de um trabalho com a linguagem, que envolve a reflexão da escrita, cria um lugar imaginário, em movimento constante, com leis e dinâmicas próprias que é o seu projeto literário moderno: Andara, a cidade mítica onde sua literatura se realiza.

3.Andara: o projeto Vicente Franz Cecim estreia em 1979 com o livro A asa e a serpente, escritura inclassificável que quebra os parâmetros de gêneros textuais trazendo para a cena da literatura brasileira o embrião de seu grande projeto: Andara, a cidade mito-poética, cenário e personagem d‟os Livros Invisíveis de Andara, que representa a Amazônia transfigurada, transformada em verbo, movimento, que ressurge e resiste com sua magia e tradição às atrocidades da modernidade. Andara consiste num espaço que surge do microcosmo mítico amazônico onde Cecim vai denunciar as atrocidades de seu tempo

usando como recurso a alegoria e a fusão da prosa com a poesia para a criação de uma atmosfera singular, própria, o que legitimará um espaço fantasmagórico, ou seja, ao misturar o plano narrativo realista ao lirismo metafórico da poesia, cria-se um clima de sonho e delírio, imagens do inconsciente do narrador-criador, que constitui uma das características principais das histórias de Andara. Foi como poesia que li “A asa e a serpente”, um poema líriconarrativo talvez, ou um poema dramático na terminologia de Fernando Pessoa, para dar nome a esse texto revolto, que se desdobra com seu autor – misto de sonho e alegoria, fábulado sacrifício do algoz impessoal, morrendo e renascendo, como num ato de expiação infindável, dos míticos desvão do inconsciente individual e coletivo. Mas toda fábula é o contorno imaginário exemplar de uma realidade possível que se intemporaliza. Esta de Cecim alude, parece-me, a uma realidade muito próxima que traumatizou sua geração: a época do grande medo, que se tornou assombração política fantasma histórico na cidade do Grã ou em qualquer outra parte do Brasil após 1964. Mais firmeza ganharia a fábula se maior contraste houvesse entre o plano prosaico da narração e o plano lírico da expressão poética, conciliando osonho e a alegoria. Com a dominância do lado onírico, ganhou por certo o lirismo, que transforma a narrativa numa assombração literária impetuosa. Sujeito e objeto de metamorfoses, o texto se interioriza, e o fantasma da História tende à história fantástica (Nunes, 2012, p. 327).

Além da referência à ditadura militar, tema implícito de A asa e a serpente, que aparece sob a figura do sargento Nazareno, que volta da morte para encenar sua patética existência, e da fúria de seu algoz disposto a matá-lo quantas vezes for preciso, é importante observar na fala de Benedito Nunes que as histórias de Andara devem ser lidas e pensadas como escritura de uma linguagem poética que se volta sobre si numa espécie de dobra, se refazendo a todo momento, e que tal lírica propõe uma abertura, o que nos leva a crer que a obra de Cecim tende para um outro plano dimensional, o plano do poético. O autor classifica o próprio texto como “escritura” - por fugir dos padrões textuais - mas principalmente por essa palavra anunciar algo que estar porvir, anunciar um desvelamento3, algo que vem à luz através da linguagem e que se vela em si enquanto obra, o que a aproxima da essência de seu audacioso projeto: a escritura da criação de Andara. Ora, o novo tende a romper com a tradição vigente e propor outras saídas e formas para a língua, neste caso, o que Andara traz de novo é a subversão da 3

Conceito heideggeriano para explicar a face obscura do ser “Mas o que se faz necessário é justamente o contrário: o esconder-se faz parte da pre-dileção do ser, isto é, daquilo em que consolida sua essência [...] Ser é o desvelar-se que se vela – em sentido inicial. O desocultar-se é emergir no desvelamento; e isto significa abrigar primeiramente o desvelamento como tal na essência” (HEIDEGGER, 2008, p. 313314).

escrita, a busca por uma autenticidade que remeta à própria criação, o que gera uma linguagem peculiar, linguagem esta que constitui suas fronteiras e sua geografia. Andara é a “ilha” Santa Maria do Grão, referência a Belém do Grão-Pará, cidade natal do autor, que este usa para dar verossimilhança a uma realidade absoluta, assim como o Sertão metafísico de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, que se amplia e transforma-se no mundo. No entanto, em Cecim, ao invés do sertão, temos a região amazônica, ou seja, a floresta se expandindo como metáfora da vida. Como nada em Cecim é gratuito, voltemos ao nome: Santa Maria do Grão, que traz no final a palavra Grão, ponto de partida de espécie de vida, que alude à semente, àquela que traz no cerne a essência do que virá: Andara, que aos poucos vai tomando a cidade de Belém até transformá-la numa floresta inefável. “Andara. Lá as ruas estão sempre vazias e aquilo, a floresta, vem avançando, vem cada vez mais para perto de nós” (Cecim, 1988:132). Este “perto de nós” não só no sentido de avançar, tomar a cidade, mas no sentido da floresta se mostrar como o é realmente, e que nós estamos desacostumados a vê-la. A própria palavra Andara faz jus ao projeto que está em constante movimento, construção. Ela nos remete a um movimento contínuo que parte do verbo Andar como mostra Karina jucá: Além de ressaltar pelo nome a essência da narrativa, o vocábulo também remete diretamente ao verbo Andar, avançar contínuo de passos, progressão. No passado mais que perfeito, o sentido do movimento concluído carrega ao mesmo tempo, conotativamente, a impressão de continuidade, de fluxo narrativo. Andara como movimento que se inscreve no passado em passos (presente) que levam / ou levarão à frente (futuro)? Como truque semântico, os modos temporais, passado, presente e futuro, se unem e ao mesmo tempo se anulam na figura poética, instalando a impressão de simultaneidade, ou da ausência de qualquer tempo. Andara em sua condensação metalinguística, assinala o nome próprio o conceito da narrativa do “devir como simultaneidade” (JUCÁ, 2010, p. 12).

Como Andara é a Amazônia transformada em verbo, isso tudo se dá na relação Livro, meio pelo qual se configura o projeto. Em 1988 é lançado Viagem a Andara, que traz como subtítulo O Livro invisível, onde Cecim propõe a leitura dos livros de Andara, ou seja, daquilo que está além de nossos olhos, incapazes de ver o absoluto, ofuscados pela neblina do mundo técnico científico funcional. Para Cecim, o invisível tem forma e se constitui paralelamente ao mundo visível, a esfera da dimensão do poético, esse entre-lugar, possibilitado pela criação através da linguagem. Ideia que norteará as histórias de Andara e justificará os personagens cegos que atravessam a

obra, pois estes são obrigados a olhar com outros olhos, um olhar imaculado, sem as marcas do mundo visível. Resultado de reflexão e busca profunda do fazer literário, do ato de criação através da escrita como meio de buscar o absoluto: forma soberana de ser. As sentenças, em Andara, tomam uma profundidade abissal devido a estranheza da forma com que são construídas, deslocando-nos em busca de seu sentido, para outro lugar: a cidade de Andara, onde a impossibilidade (o inverossímil) constitui a matéria prima, a própria possibilidade de criação. Território demarcado pela linguagem insólita, obscura, mãe criadora do espaço em questão, que no seio da palavra - fosso sem fim - abismo de sentidos e possibilidade, encontra seu lugar. Quando lemos: Do fundo da terra, a Obscuridade rugerreluz. É isso também a vida. Por baixo. Estranhos veios de ouro atravessando rochas ainda mais estranhas, fosseis Faces murchas Lagrimaspetreaspassadas estão buscando a superfície das coisascoisas (CECIM, 2006, p. 09).

já somos lançados na estranheza das sentenças, no mistério das palavras que calam, silenciam, o que nos leva à Andara, espaço construído por meio da desconstrução do processo sintático, que desloca ou coloca o leitor nessa fissura -proposta pela linguagem - e logo, o convida para A viagem a andara que está prestes a começar. Viagem pelos meandros da criação, que através de uma força imagética criada pelo universo das palavras nos leva ao pensar, a buscar o que está por trás e onde vai nos levar aquilo que se coloca como questão, enigma. “Buscando a superfície das coisas coisas”, diz a voz, ou seja, buscando a essência, o que realmente são as coisas por trás dos que os olhos veem, e lançado ao pensar pelo enigmático efeito da frase, se colocar em questão para pensar a si próprio como ser. Antes temos a sentença “Do fundo da terra, a Obscuridade rugerreluz”, que anuncia um acontecimento, surgindo na obscuridade da linguagem, que é a narrativa que está prestes a vir à luz. E o que implode da linguagem, esse acontecimento poético, é Andara. Em seu último livro Breve é a febre da terra, prêmio IAP de 2014, Cecim sentencia e afirma seu projeto literário: “Andara quer a Origem, o Antes do ponto em que tudo começou a se perder do todo, o ponto oculto de nós, que só se consente a nós em Relances, vislumbres. Andara busca o homem além de si, fora de si: no Umanoh.” É claro a proposta da leitura dos livros de Andara, a busca do que realmente é o homem através do belo, da linguagem poética. O Umanoh com h no final representa a origem, o verdadeiro, o que está latente no humano com h na frente, que caracteriza o homem moderno, distante da tradição mítica, poética, concepção que em outros tempos constituía um real mais belo, autêntico, onde esse Homem era integrado à

terra e por sua vez ao universo. Esse Umanoh se perdera quando o homem adotou a concepção técnico-científica como verdade incondicional e a partir de então se colocou como sujeito, e o mundo como palco e objetos de suas ações. O Umanoh, de Cecim, nos remete à civilizações “primitivas” que explicavam o real a partir da própria existência, para eles sagrada, e que mantinham a tradição que os caracterizava e dizia o que eram. Retomando Agamben: Estão distantes os tempos em que Dionísio, o Cartuxo, era arrebatado em êxtase pela melodia do órgão da igreja de S. João em „sHertogenbosch; a obra de arte não é mais, para o homem moderno, a aparição concreta do divino, que deixa a alma capturada pelo êxtase ou pelo terror sagrado, mas uma ocasião privilegiada para colocar em movimento o seu gosto crítico, aquele juízo sobre a arte que, se não tem para nós verdadeiramente, de algum modo, mais valor que a arte mesma, responde porém certamente a uma necessidade pelo menos igualmente essencial (AGAMBEN, 2012, p. 76).

Andara busca esse espírito perdido em relação à obra, relação para além de uma avaliação crítica e estética, assim como outra construção da realidade, menos objetiva, racional, e mais poética, possível somente numa retomada de consciência, na retomada do Umanoh, na retomada de nossa unidade.

4. Tradição e autorreflexão Além do espaço de criação, Andara é o espaço onde Cecim reflete sobre a escrita, essa busca constante por meio da palavra. A afirmação através desse signo bipartido e obscuro que não só dá sentido às coisas e diz o que somos, mas que também nos desloca para o silêncio. Atitude que começa ser adotada no processo de criação pela geração destruidora de 22 e aprofundada pelos escritores contemporâneos a partir de 45. O caos, portanto, não cessou com o aparecimento do universo; mas quando a consciência do homem, nomeando o criador, recriando-o portanto, separou, ordenou, uniu. A palavra, porém, não é o símbolo ou reflexo do que significa, função servil, e sim o seu espírito, o sopro na argila. Uma coisa não existe realmente enquanto não nomeada: então, investe-se da palavra que a ilumina e, logrando identidade, adquire igualmente estabilidade. (Lins, 2004, p. 98)

Osman Lins neste trecho de Retábulo de Santa Joana Carolina, reitera o poder da palavra -signo de luz nas trevas - instrumento e meio de criação que se apropria de algo até então indefinido e obscuro. Sobre esse tema, Clarice Lispector através de seu

personagem-máscara Rodrigo S. M. reflete sobre sua condição de escritora e sobre as dificuldade de narrar em A hora da Estrela. Antes, Paulo Honório, personagem de São Bernardo, de Graciliano Ramos também questiona-se sobre o ato de narrar, a busca pela palavra precisa, que diga o que acontecera de fato, sem arranjos e artifícios inúteis. Mário de Andrade com seu Prefácio interessantíssimo também usa o espaço de criação para refletir sobre a produção poética do começo do século, assim como o seu contemporâneo Oswald de Andrade travestido de Machado Penumbra critica a prosa parnasiana. Isso caracteriza uma tradição moderna onde o ato de criar, a atividade poética, passa a ser assunto da narrativa. No primeiro momento dessa catarse moderna temos a exigência de atualização de nossa literatura sob um projeto nacional, depois, a retomada de uma linguagem clássica e a descrição de conflitos sociais sob a perspectiva moderna, e finalmente experimentações linguísticas ligadas as representações metafísicas e ontológicas. Isso mostra que, na literatura brasileira, desde o início do século XX, o pensamento filosófico e literário se voltam para a questão da linguagem, para os problemas, soluções, e crises contingentes à sua história. Tradição à qual Cecim está ligado - apesar de separado no tempo – por ter um projeto literário onde faz suas indagações sobre a escrita que amplia-se em torno do próprio eixo seguindo uma linha de criação. Tradição multifacetada e ambígua que em seu caráter diverso tem na transgressão da forma e na autorreflexão da criação a sua unidade. E dessas multifaces transgressoras, Cecim alia-se à tradição metafísica (a geração de Clarice Lispector e Guimarães Rosa) sob a qual personagens mal delineados, obscuros, são jogados no plano ontológico para questionar a si mesmo como ser – e as questões que os envolvem como: amor, vida e morte – diante de um mundo que se mostra ao mesmo tempo receptivo e avessos à suas ações. Esse modo metafísico, voltado para o homem, de pensar literatura, vai influenciar e encantar as próximas gerações. Uma nova consciência da forma romanesca, enquanto escrita, trouxera nos anos 1960 o romance autorreflexivo, voltado para sua própria fratura, narrando o ato de escrever [...] É essa consciência que se apura, na década de 1970, no Avalovara (1973), de Osman Lins, aí sujeito o romance a um jogo ficcional, conforme regras preestabelecidas sobre temas recorrentes, elaborado como uma figura mágica, que permite deslocamentos no tempo e no espaço, de personagens se revezando no desenho cósmico e histórico do destino que lhes dita a arquitetura da obra, suas vozes autônomas suprindo a iniciativa do agente externo que os guia, e transpassando-se os pontos

de vista de cada qual, tomados sobre medidas temporais distintas, ora no passado ora no presente (NUNES, 2009, p. 153-154).

Aqui Benedito Nunes mostra a amplitude que toma a arte romanesca devido o apuro das resoluções estéticas e formais que foram se desenvolvendo ao longo dos anos da tradição moderna. Nunes traz como exemplo Avalovara, de Osman Linz, romance de 1973, que aglutina e sintetiza o espírito de criação desse período. O primeiro livro de Cecim, que vem à luz e abre o projeto Andara, é A asa e a serpente de 1979, seis anos depois do lançamento do monumental e misterioso livro de Linz. Isso mostra uma progressão e continuidade na tradição que se instalara, e o que esses autores têm em comum, além da transgressão da forma, é a fé na palavra, esse objeto obscuro a partir do qual se constrói mundos. [...] em Grande sertão: veredas a tônica revolucionária deslocava-se da estrutura fraseológica para a unidade da palavra [...] A palavra perdeu a sua característica de termo, entidade de contorno unívoco, para converter-se em plurissigno, realidade multisignificativa. De objeto de uma só camada semântica, transformou-se em núcleo irradiador de policonotações (COUTINHO, 2004, p. 477).

A palavra - a partir da modernidade - não está mais presa a um único sentido, ela se transforma e amplia sua capacidade de significação, começa a ser explorada também em sua dimensão sonora e gráfica, e quando sozinha, não basta para dizer o que quer, se funde à outras engendrando novas palavras, foi o que fez James Joyce inovando a prosa de língua inglesa, e mais tarde Guimarães Rosa, aqui no Brasil, seguindo uma tradição moderna. Em Breve é a febre da terra, Vicente Cecim começa o texto refletindo sobre a palavra, este signo que diz o que são as coisas mas que por vezes falha por não conseguir expressar alguns sentimentos em sua totalidade devido a fugacidade das sensações “Contaminada a pureza da Palavra. Oh. Escrever uma primeira vez da esquerda para a direita: falhar escrever uma segunda vez da direita para a esquerda, para falhar pior?” (CECIM, 2014). Neste pequeno trecho podemos notar a preocupação com a Palavra que o autor tem, a capacidade de mutação e ambivalência desta, do qual vai se nutrir, assim como o drama de narrar que vai tomar boa parte de suas reflexões. 5. As referências São muitas as referências implícitas e explicitas que Cecim traz em sua obra – desde Horderling a Cioran – e o amarram à modernidade, mas duas chamam atenção. Uma expressa o espírito e sentimento de Andara, a outra a obsessão pela forma e

construção. A primeira, distante de nós no tempo e no espaço, é Novalis, poeta alemão da geração rebelde de Jena4, que concebia a poesia como algo sagrado “A linguagem é a dinâmica do reino espiritual” (NOVALIS, 1991). Cecim comunga do mesmo pensamento dos românticos desse período, para quem a poesia ultrapassa o plano estético para se ligar à esfera filosófica e religiosa. “Suas diversas surtidas para tantos autores, de Novalis a Angelus Silesius, de Eckhart a Guimarães Rosa, que não levam para fora do campo poético, onde desejam permanecer, são como um contraponto ao pensamento religioso enlaçado ao filosófico” (NUNES, 2006). O romantismo é um dos primeiros movimentos a quebrar com os paradigmas impostos pelo Classicismo e trazer a concepção de que a poesia é algo essencial à vida: Octávio Paz observa, referindo-se aos românticos alemães e ingleses, que sua originalidade e preeminência se deveram à agudeza crítica e a concepção da experiência poética como experiência vital – uma totalidade que supões uma estética, uma linguagem, uma erótica, uma política, uma visão de mundo e uma ação; em suma um estilo de vida que no século XX seria retomado pelas Vanguardas (CHIAMPI, 1991, p. 16). Ora, é através de Andara que Cecim vai ver e interpretar o mundo. Para os escritores modernos a literatura é uma forma de conhecimento tão importante e vital quanto a ciência, e o meio pelo qual vão enfrentar o pragmatismo cotidiano imposto pelos novos tempos. A outra

referência, ao contrário da primeira, e que nos é mais próxima, é o argentino Júlio Cortázar “que saiba abrir a porta para ir brincar. Cortázar” (CECIM, 1988). Andara é como O Jogo de Amarelinhas, romance de 1964 no qual sua construção possibilita o leitor fazer seu plano de leitura como num jogo lúdico. O mesmo acontece na obra do paraense, não importa por onde começar, os livros visíveis estão situados no mesmo lugar - Andara – e tem o mesmo objetivo: levar à reflexão por meio da poesia. A “porta” é a passagem para a descoberta, aparece na sentença como alegoria de livro, é necessário abrir os Livros de Andara para se fazer a viagem pelos meandros da criação, a busca pela verdade por outro caminho, pelo caminho poético, pelo caminho da imaginação. Depois de abrirmos a porta e irmos brincar, cabe aqui uma pergunta tanto para leitores como para escritores, que mostra a fé na palavra e na poesia de toda uma geração: “encontraste a chave?” 4

O grande legado do círculo romântico de Jena, aqui representado por seus expoentes Friedrich von Hardenberg (1772 – 1801), que adotou o nome literário Novalis, e Friedrich Schlegel (1772 – 1829), é a recusa à reprodução mimética da realidade empírica e a concepção de obra literária como construção fechada. Em defesa da liberdade da fantasia, fazem suas as ideias do filosofo Johann Gottlieb Fichte (1776 – 1814), que via o Eu como instância suprema, o mundo objetivo como produto do espírito.

Por fim, a influência surrealista que encontramos em Andara, os elementos dessa estética vanguardista que podemos perceber na composição da cidade-palavra, entre eles, a atmosfera de sonho, que atravessa seus arcos-narrativos.O sono é o estado em que seus personagens vivem: Olham para nós na outra margem os animais do sono. Um vento forte começa a soprar, com a madrugada que chega. Sacode as redes dos que dormem, agita os cabelos do morto. Leva os ecos da sua voz para longe. Tenho sono (CECIM, 1988, p. 49).

É só quando estamos adormecidos que temos acesso ao inconsciente, quando nosso estado racional – que é o estado comum - adormece, para dar vasão as profundezas inacessíveis do eu, mundos do subconsciente, tão verdadeiro para os surrealistas quanto a realidade objetiva e concreta. Foi a título muito justo que Freud fez sua crítica ao sonho. É inadmissível, com efeito, que essa parte considerável da atividade psíquica (pois que pelo menos desde que o homem nasce até que morre pensamento não apresenta qualquer solução de continuidade, a soma dos momentos de sonho, do ponto de vista do tempo, considerando-se apenas o puro sonho, aquele do sono, não é inferior à soma dos momentos da realidade, limitemo-nos a dizer: momentos de vigília) tenha chamado tão pouca atenção. A diferença extrema de importância, de gravidade, que representam para o observador ordinário os acontecimentos da vigília e os do sono, sempre me espantou [...] O sonho encontra-se assim ligado a um parêntese como a noite. E não mais do que ela, em geral aconselha. Esse singular estado de coisas parece-me evocar algumas reflexões (BRETON, 2009, p. 227-228).

Os surrealista estavam interessados em alcançar, através da linguagem, uma realidade absoluta, síntese do que há de fugidio e impenetrável tanto no sonho quanto na realidade. E é neste mundo, da livre imaginação, com leis e dinâmicas próprias, que as histórias de Andara acontecem de fato “Por quase nada também isso de deixar o mundo por fora para ir viver num mundo por dentro, que quase existe”. Sonho e realidade se sobrepõem “Olham para nós na outra margem os animais do sono”, o personagem está no limiar do consciente/inconsciente, ou seja, observando acordado os animais abstratos do seu sonho. Na cena estão todos dormindo, e os sonhos entrecruzam-se, mostrando simultaneamente os dois espaços, resultando num lugar onírico, que supera a questão espaço/tempo, porque para Cecim, há uma realidade, porém, esta possui várias dimensões, e a de Andara é a do poético. Outro exemplo do entrecruzamento de espaços entre realidade e sonho em Andara, está na narrativa kafkiana menino sonha inseto sonha menino, presente no livro Silencioso como o Paraíso de 1994. Na história - por

sinal uma das mais breves e intrigantes do livro - um menino sonha com um inseto, e durante seu sonho um inseto adentra a casa atraído pelo o inseto do sonho do menino. Ali estava aquele menino e estivera sonhando com um inseto, e então, eis, acordando, o menino vira aquele outro inseto perto do seu olho, é fora, na vida, não só um sonho. Aquele inseto viera se arrastando até ali, até o olho do menino na casa [...] Ali estava o inseto de fora então e procurando um outro como ele, olhando mesmo através dos olhos fechados, antes, quando o menino ainda dormia, aquele inseto sonhado, e principalmente agora que o menino abriu os olhos, transparências, e acordou. Como olha para dentro do menino esse inseto. E o que vê? (CECIM, 1988, p. 73-74).

Aqui temos a fusão realidade/sonho se dando mais uma vez, portanto, o inusitado da história, além da interseção das dimensões, está ainda por vir: o inseto adentra a casa porque se apaixona pelo inseto do sonho do menino. É que o inseto, por fora, já havia visto o inseto lá dentro do menino, e aí dois homens se sonham insetos, e não sabendo para onde o inseto que vira antes havia ido, ele agora procurava, procurava aquele inseto por fora, o real, uns olhinhos de cego procurando [...] Veio vindo no inseto por fora do menino então uma paixão, e era a paixão imensamente de procurar dentro do menino, e achar, custasse o que custasse, aquele outro inseto. Enquanto o menino novamente adormecia

Cecim leva a história ao extremo da consequência atribuindo sentimento ao inseto, propondo não só a humanização das criaturas de Andara, mas propondo infinitas possibilidades através da criação. Quanto mais díspares as situações, em relação a espaços, e objetos distantes de suas colocações usuais e de seus significados, mais legitimidade e originalidade há para os surrealista. A linguagem se doando em prol da arte, quebrando as barreiras que nos prende à um pensamento lógico, propondo outras realidades, não somente esta, que nos limita como indivíduos. 6. Conclusão E o que queremos com isso? Mostrar que Cecim, apesar de viver na contemporaneidade, é um escritor moderno porque pensa e elabora sua obra a partir dos princípios dos construtores da modernidade. Em seus últimos trabalhos, mais precisamente em K O escuro da semente, de 2001, somente editado em Portugal, o autor inaugura em sua obra o que ele vai chamar de Iconescritura: imagens (fotografias, desenhos) que enchem às páginas desérticas de Andara e não só ajudam a contar, mas leva o leitor para uma experiência imagética de ler e ver, imagens e escrita se transpassam em prol da reflexão e do silêncio. Recurso contemporâneo usado por

exemplo pelo escritor alemão W. G. Sebald que morreu em 2001, mas, fora isso, o projeto Andara se constitui por traços modernos como mostramos aqui. O seu desenvolvimento e construção em volta do próprio eixo, constitui um desses traços, se não o principal. A obra de Vicente Cecim mostra como a modernidade está presente ainda hoje e de como é difícil uma separação. Para aqueles que acreditam no fim de um ciclo e no início de outro (pós-moderno ou contemporâneo) devido ao esgotamento da capacidade moderna de inovação, os livros visíveis de Andara mostram que é mais adequado usar o termo dobra para nos referimos a contemporaneidade, porque o moderno e o contemporâneo se trespassam, tanto na técnica como no sentimento, o que dificulta uma divisão plena.

Referências Bibliográficas: AGAMBEN, Giorgio. O homem sem conteúdo in: Poíesis e práxis. Ed. Autêntica, BH – 2012. BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas Vol. I in: A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica. Ed. Brasiliense, SP – 2012. CECIM, Vicente Franz. VIAGEM A ANDARA O LIVRO INVISÍVEL. Ed. Iluminuras, SP – 1988.  . SILÊNCIOSO COMO PARAÍSO. Ed. Iluminuras, SP – 1994.  . Ó Serdespanto. Ed. Bertand Brasil, RJ – 2006.  . Breve é a febre da terra. Prêmio IAP, Belém – 2014. HEIDEGGER, Martin. Marcas do Caminho. Ed. Vozes, RJ – 2008. NUNES, Benedito. A Clave do Poético in: Reflexões sobre o moderno romance brasileiro. Ed. Companhia das Letras, SP – 2009. . DO MARAJÓ AO ARQUIVO. Ed. Ufpa, Belém – 2012. Anexo 1: artigo referente à pesquisa produzido entre setembro de 2014 a agosto de 2015.

Anexo 2: arquivo de imprensa – Centur; jornal A Província do Pará, 02 de janeiro de 1983.

Anexo 3: arquivo de imprensa – Centur; jornal A Província do Pará, 30 de janeiro de 1983.

Anexo 4: arquivo de imprensa – Centur; jornal A Província do Pará, 16 de janeiro de 1983.

Anexo 5: arquivo de imprensa – Centur.

Anexo 6: revista Polichinello, n° 05, março de 2006.

Anexo 7: revista PZZ, ano 7, maio-junho 2013.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.