Literatura de Viagens – O (Re)Conhecer de um Outro Corpo Travelogues – (Re)Encounters with Other Bodies

June 5, 2017 | Autor: Claudia Faria | Categoria: Travel Writing, History of Madeira Islands
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Centro de Estudos de História do Atlântico 2015

Literatura de Viagens – O (Re)Conhecer de um Outro Corpo Travelogues – (Re)Encounters with Other Bodies

Cláudia Faria

Anuário do Centro de Estudos de História do Atlântico 2015, N.º 7 ISSN: 1647-3949 Funchal – Madeira

pp. 175 - 185

Região Autónoma da Madeira

Anuário do CEHA 2015, N.º 7

Literatura de Viagens – O (Re)Conhecer de um Outro Corpo Travelogues – (Re)Encounters with Other Bodies

Cláudia Faria

Natural de Santa Luzia, Funchal, nascida a 12 de Maio de 1971, professora de Inglês/Alemão no ensino Secundário na Escola Básica do 2.º e 3.º Ciclos de S. Roque, Funchal, ilha da Madeira. Tem o Bacharelato em Técnicas de Turismo (ISAL) e licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas pela Universidade da Madeira (UMA). Frequentou o curso de mestrado em Cultura e Literatura Anglo-americanas (UMA) onde defendeu a tese intitulada Phelps, Percursos de uma família britânica na Madeira de Oitocentos, sob orientação do Professor Doutor João Adriano Ribeiro, trabalho que foi alvo de publicação em 2008 na coleção Funchal 500 anos. É doutoranda na Universidade Nova de Lisboa na especialidade de estudos culturais com o tema o Diário de Mary Phelps (1839-1843): um retrato britânico da Ilha da Madeira, sob orientação da Professora Doutora Maria Zulmira Castanheira. Neste momento encontra-se destacada no Centro de Estudos de História do Atlântico (CEHA) e é membro do Centre for English, Translation and Anglo-Portuguese Studies (CETAPS) de Lisboa.

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RESUMO A Literatura de viagens, entendida como um corpus heteregoneo empresta ao leitor/invesigador a possibilidade de interpretações e discussões várias. Os travelogues dos forasteiros oitocentistas que aportaram na Ilha da Madeira não são excepção já que permitem perceber de que forma o visitante retratou as gentes locais e de que modo este confronto/encontro é interpretado e registado nas páginas destas narrativas de viagem. Palavras-chave: Travelogues; Forasteiros; Oitocentos; Encontro; Outro Corpo.

ABSTRACT Travel liteture is indeed a complex corpus capable of fowarding a wide variety of interpretations and discussion. The travelogues written by the travellers who during the 19th century called at Madeira Island are no exception and in fact they allow us to understand how local people were described and also make possible to see how this encounter/confrontation was portrayed in the narratives. Keywords: Travelogues; Foreigners; 19th Century; Encounter; Otherness.

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A

literatura de viagens é um corpus heterogéneo que empresta ao leitor/investigador a possibilidade de interpretações e discussões várias, já o dizia Peter Hulme. Sabemos, efetivamente, que, nos últimos tempos, as academias, por esse mundo fora, têm dado mais atenção a estas narrativas híbridas, inconstantes, intimistas que, apesar de oferecem uma perspetiva enviesada, não deixam de constituir uma rica e substancial fonte de investigação para as ciências humanas. No caso particular da ilha da Madeira, os travelogues maioritariamente escritos por Ingleses que, durante o século XIX, passaram ou se estabeleceram no Funchal, permitem completar a identidade madeirense, uma vez que, através do confronto entre o forasteiro e o residente, vai emergindo um perfil identitário que, embora carregado de preconceito e até de etnocentrismo, nos permite uma reflexão sobre quem fomos e até mesmo sobre quem somos. Anthony Disney faz notar, em jeito de aviso, que a literatura de viagens «is composed fundamentally of a hard core of “fact” surrounded by a soft pulp of imagining»1, pois, no seu entender, esta dualidade entre facts and fiction não só caracterizou toda a literatura de viagens dos séculos XVI e XVII, como lhes atribuiu significado já que «whether describing their own experiences or those of others, writers travelled “in imagination” and represented what they saw and experienced, within the contexts of their own cultures».2 No entanto, há que notar que, embora a partir do século XVIII se tenha assistido a uma ligação mais próxima entre o mundo e o eu [self], na realidade, «the hegemonic reflex posits the European, and therefore modern world, as superior both in time and space».3 Só no seculo seguinte, se assistiria à transformação da literatura de viagens, num processo de «self–discovery as well as record of the discovery of the others»4. Rui Carita relembra que o viajante regista precisamente o que mais o impressionou, salientando que «grande parte dos elementos sobre a forma de viver, de estar, etc só são perceptiveis nas descrições dos estranhos, ou seja, a quem chega, e com outra maneira de ver»5. O sublinhado é nosso e deve-se ao facto de acharmos interessante o adjetivo escolhido, já que nos permite refletir sobre quem eram os estranhos – os que chegam (forasteiros) ou os que estão (madeirenses)? A verdade é que este olhar derramado sobre as gentes locais ocuparam várias páginas das narrativas de viagens mas o nosso papel, enquanto leitores e/ou investigadores, é o de procurar entender estas representações do outro (lugares e pessoas), à luz da mentalidade que os reproduziu. Estamos, portanto, perante um enorme desafio – o de desvendar a verdade, despindo-a da imaginação, já que, no entender de Disney, «the poetry of history does not consist of imagination roaming at large but of imagination pursuing the fact and fastening upon it»6. Aliás, James Axtell defende que «the appeal of history to us all is in the last analysis poetic»7. 1 2 3 4 5 6 7

DISNEY, 1997, Navigating literary waters: truth, lies and representations in 16th adn 17th century Portuguese travel literature, p. 121. DISNEY, 1997, Navigating literary waters: truth, lies and representations in 16th adn 17th century Portuguese travel literature, p. 121. BLANTON, 2002, Travel writing – the self and the world, p. 12. BLANTON, 2002, Travel writing – the self and the world, p. 15. CARITA, 1997, Literatura de Viagens na Madeira, p. 72. DISNEY, 1997, Navigating literary waters: truth, lies and representations in 16th and 17th century Portuguese travel literature, p. 122. DISNEY, 1997, Navigating literary waters: truth, lies and representations in 16th and 17th century Portuguese travel literature, p. 122.

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Anuário do CEHA 2015, N.º 7 Ana Fernandes não tem dúvidas de que este olhar é um doce espanto que engloba toda a paisagem com encantamento mas nota, igualmente, que é também fonte de inquietação perante o desconhecido e que a imagem que se dá do Outro é conquistada e construida à medida que a busca se faz.8 Na realidade, o outro que se impõe a quem chega é diverso, múltiplo e descrito, com frequencia, atraves de analogias, ou seja, seguindo um processo de correspondência de semelhanças e diferenças entre o conhecido e o desconhecido, numa clara tentativa de preencher o vazio referencial e de fudamentar o (des)encontro. Ultramarine9, ao visitar o Funchal em final de oitocentos, confessa a impossibilidade de descrever o que os seus olhos estranham: «oh! How I wish I could describe all the strange scene that my gaze on landing on this foreign strand, so unlike anything I had ever seen before».10 Os seus desbafos permitem-nos perceber o desconforto que sente em estar fora de casa e conviver com gente que desconhece – com outros. Numa passagem, bastante elucidativa, a autora confesa que «I have not yet, you see arrived at calling it home and I rather doubt if I ever shall for I cannot feel for it the true home-feeling»11. Doroteia Pita, num artigo datado de 1997, sustenta que a leitura destas cartas permite identificar um pernamente desejo de regressar a casa, ao que é familiar, adiantando, mesmo, que a autora dá a sensação de que a sua estada na Madeira é apenas um sonho, já que, «between UltraMarine and the foreign land that she perceives, a pane of glass seems to exist, reflecting herself and her home, and interfering in her descriptions of the island.»12 Aliás, a maior parte do texto desta forasteira está repleto de “coisas novas e estranhas” que a autora confessa não poder descrever, justamente tal como sucedeu a Flaubert, no Oriente onde, ao visitante, é exigido não apenas verve mas também um forte espírito ou seja, «a sort of regiment antiquarianism by which the exotic and the strange get formulated into lexicons, codes and clichés»13, caso contrário «the mind could get lost in archeology».14 Passado o deslumbramento inicial da aproximação da embarcação à baía do Funchal, uma outra landscape, um outro selfscape, impõem-se. O recém-chegado busca, urgentemente, uma qualquer referência que o ajude a reposicionar-se, após vários dias em alto mar. A paisagem, massiva e imponente, não deixa, porém, de confinar o forasteiro – ao desconhecido e ao equívoco. Por outro lado, e seguindo Edward Said, sabemos que, os Ingleses «… for whom the pronoun “we” is used with the full weight of a distinguished, powerful man who feels himself to be representative of all that is best in his nation’s history»,15 em particular, tinham uma predileção em fazer notar a sua hegemonia civilizacional, sentido-se, efetivamente, superiores (mais civilizados). Por seu turno, Steve Clark vai mais longe, quando lembra que, quer a literatura de viagens, quer a ideologia imperialista «insist that their texts promote and confirm the exercise of imperial power»16, afirmando que, no geral, a literatura de viagens imperialista/colonialista «tells how Englishmen have looked upon the world, and inevitably it tells how they have acted in it».17 E a Ilha da Madeira, apesar de não pertencer ao espaço colonial Britanico, não foi exceção. Aliás, a comunidade aqui residente não só dominava o comércio da cidade, como se impunha social e culturalmente. Estamos convencidos de que esta hegemonia é determinante para melhor compreender este confronto entre o madeirense e o visitante de Além-Mancha, já que, e tal como sustenta Ana Fernandes, «é o outro que se pretende dominar para melhor se poder transformar»18. Um exemplo ilustrativo desta posição superior, encontramo-la em Utramarine, quando nos diz que as crianças vagueiam pelas ruas quase semi-nuas e que não seguem os preceitos do mundo civilizado, já que não têm sapatos, nem meias, nem cobrem a cabeça – «são bizarros, com olhos negros, pele escura e cabelo castanho»19. 8 FERNANDES, 1997, O outro que somos nós na Carta de Pêro Vaz de Caminha, p. 147. 9 Pseudónimo de Mrs Helena Beatrice Richenda Parham que visitou a Madeira em 1883 e escreveu um livro sobre a sua estada no Funchal. 10 ULTRAMARINE, 1883 The Contents of a Madeira Mail-Bag, p. 11. 11 ULTRA MARINE, 1883, The Contents of a Madeira Mail-Bag, p. 114. 12 PITA, 1997, Facts and Fancies in The Contents of a Madeira Mail-bag, p. 235. 13 SAID, 1977, Orientalism, p. 189. 14 SAID,1977 Orientalism, p. 189. 15 SAID, 1977, Orientalism, p. 34. 16 CLARK, 1999, Travel Writing and Empire – Postcolonial theory in transit, p. 3. 17 CLARK, 1999, Travel Writing and Empire – Postcolonial theory in transit, p. 3. 18 FERNANDES, 1997, O outro que somos nós na Carta de Pêro Vaz de Caminha, p. 148. 19 ULTRAMARINE, 1883, The Contents of a Madeira Mail- Bag, p. 68.

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Anuário do CEHA 2015, N.º 7 No século XVII, o reverendo John Ovington classifica as mulheres madeirenses como baixas, escuras e feias. Em 1772, Georg e Reinhold Forster passaram pelo Funchal, acompanhando James Cook na viagem à volta do mundo. Cedo se nota o quanto a ilha deixou de corresponder às expetativas míticas, já que o registo se foca, praticamente, em pormenores, tais como a falta de higiene, a escuridão das casas assim como a desproporção dos corpos e os pés excessivamente grandes, as faces longas, os cabelos negros encaracolados e os olhos escuros. As mulheres apresentam tez escura e são baixas, pormenores que estão longe do modelo europeu. Contudo, as mãos bem delineadas e os olhos vivos e grandes parecem compensar os defeitos anteriormente apontados. Estamos, novamente, perante um retrato mordaz, porque diferente, quando comparado com o padrão concetual ao qual o observador/narrador está habituado. Efetivamente, e tal como sustenta Manuela Ribeiro Sanches, «tudo o que não corresponde às expectativas (…) é rejeitado e submetido a uma critica implicita».20 Ainda no mesmo ano, Maria Riddel diz que os portugueses são escuros de pele, mas salienta a beleza dos dentes e dos olhos. Adianta ainda que as mulheres são formosas, embora as das classes mais desfavorecidas sejam pouco asseadas e indolentes. É evidente uma tendência de tomar a parte pelo todo, tecendo-se juízos de valor um pouco levianos, já que uma estada temporária na ilha jamais permitiria nem generalizações nem opiniões tão vincadas. O médico Gourlay, que esteve no Funchal entre 1792 e 1811 e que se debruçou sobre a história natural, o clima e as doenças, observou os habitantes da ilha e, em particular, o “temperamento do corpo”. Em traços gerais, explicou que os nativos são de cor escura, facto que atribui a uma origem mulata ou moura. No seu entender, a magreza e debilidade na constituição devem-se ao excesso de trabalho, situação que justifica, igualmente, a velhice prematura. Na realidade e no caso das mulheres, o Dr. Gourlay entende que o elevado número de filhos e a vida sedentária explicam quer a velhice precoce quer as doenças de que sofrem em maior número, quando comparadas com o sexo masculino. Em 1823, Thomas Edward Bowdich descreve uma visita a uma casa pertencente a uns morgados em Machico, onde se encontrou com a senhora da casa – «enorme, disforme, com cara amarelada, escura de sujidade e com o pescoço à mostra e o cabelo negro hirsuto tal como uma Medusa».21 O visitante vai mais longe e não disfarçando o seu espanto [e repugnância] pelo que lhe era dado a ver, explica que a dita senhora tentava alisar os cabelos encaracolados “de quatro esquálidas crianças”, com a ajuda dos dedos “repelentes”. Dias mais tarde, em visita ao Porto Santo, Bowdich, descreve novamente um encontro com as senhoras locais, nomeadamente a esposa do governador, a esposa do comandante e Dona Antónia, a sua filha, que era considerada a beleza da ilha, mas que, segundo o autor, apenas «disfarçava um corpo tolerável num vestido que lembrava um saco com mangas e escondia a bonita cara com o hábito frequente de livremente tomar rapé»22. Importa notar que estamos perante um caso raro de identificação de um outro corpo – a moça é a única a ser referenciada pelo nome próprio. Que motivos estarão por detrás desta exceção? Bowdich teve a oportunidade de frequentar algumas soirées no Funchal, que descreve com entusiasmo já que contrastam largamente com as do Porto Santo. Num desses convivios em que juntaram cerca de 60 pessoas, Bowdich aproveitou para observar as senhoras portuguesas das classes mais altas cuja figura baixa, mal proporcionada e sem graça não deixa de ser compensada por uma simetria agradável. Aliás, o visitante que afirma que, na Madeira, o estrangeiro deixa imediatamente de o ser devido à hospitalidade e afabilidade, confessa: «muitas vezes senti-me electrizado pelo olhar súbito e vivo de uns olhos escuros…».23 Alfred Lyall, autor a quem se atribui a obra Rambles in Madeira and in Portugal, ao ser convidado para um baile no Funchal, aproveitou para ponderar sobre a existência ou não de um padrão de beleza feminina e, no que diz respeito às portuguesas chegou à conclusão de que o traço comum é a tendência do corpo em engordar e a cor escura. No entanto, notou que o moreno da pele é atenuado pela cor negra do cabelos e dos olhos – grandes e negros – admitindo que «se o seu fogo fosse atenuado por pestanas mais longas e a sua expressão 20 SANCHES, 1997, Observar, descrever, restaurar. A Proposito das descrições de Georg e Johan Reinhold Forster das Ilhas da Madeira e de Taiti, p. 256. 21 Tradução de António Ribeiro Marques da Silva em Passaram pela Madeira, 2008, p. 90. 22 Tradução de António Ribeiro Marques da Silva em Passaram pela Madeira, 2008, p. 92. 23 Tradução de António Ribeiro Marques da Silva em Passaram pela Madeira, 2008, p. 94.

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Anuário do CEHA 2015, N.º 7 menos fixa, não se poderia resistir-lhes».24 Passados alguns dias, o visitante volta a insistir «numa certa falta de beleza entre os naturais de todas as classes, mas especialmente das inferiores»25, fazendo notar que nunca encontrou nenhuma rapariga do campo bonita pois são «todas de corpo cheio e desproporcionado, de feições de perfil liso e arrebitado e com pele muito escura»26. Explica que no norte, a situaçao melhora um pouco, apesar de nunca ter encontrado uma cara que lhe tivesse ficado na memória e conclui que «como todas as mulheres dos climas quentes atingem cedo a puberdade e em breve perdem a beleza da juventude».27 Lyall não disfarça o seu repúdio pelas camponesas «que quando velhas se tornam hediondas, calamidade a que parecem resignar-se com muita filosofia…»28 mas por oposição diz que os camponeses são uma bela espécie, «dotada de grande força, equilibrio de proporções…»29 e reparou a expressão viva e inteligente, salientando «os rapazes cujos olhos de fogo riem sob uma profusão de cabelo preto encaracolado, com um efeito de vivacidade que Murilo ou Renolds gostariam de ter pintado…»30. Não podemos deixar de notar no adjetivo “hediondo”, escolhido pelo autor para descrever as camponeses com quem se cruzou nas excursões que fez ao longo da ilha, nem tão pouco no facto deste considerar a falta de beleza uma calamidade. William White Cooper, ao passar pelo Funchal, em 1840, lamentou o facto das madeirenses sairem pouco à rua durante a semana e de serem demasiado sedentárias, explicando o seu aspeto “enbonpoint”, por esse sedentarismo e pela quantidade de comida que ingerem. Notou os olhos e os cabelos negros e considerou-as bonitas, e sobretudo alegres e de fácil trato. Por oposição, as mulheres de condição mais baixa são descritas como excessivamente desprovidas de beleza e envelhecidas antes do tempo. Aliás, Cooper afirma perentóriamente de que «when old, become actually hideous»31. Supreendemente, Cooper diz que os camponeses são muito bem parecidos, notando as suas proporções herculeanas, assim com a sua agilidade e elasticidade que constrata fortemente com os seus congéneres ingleses. Anotou igualmente a capacidade dos homens nadaram como peixes mesmo com mar revolto, capacidade que adquirem desde criança, sustenta o visitante. John Adam Dix que passou um verão no Funchal, em 1843 dá-nos uma imagem da azáfama da praia aquando da chegada dos navios, momento no qual um grande número de homens «bastante despidos, com insuficiente cobertura para baixo do meio do corpo e nenhuma para cima»32 manobram canoas, bagagens, passageiros e tripulantes. Dix reparou que, no geral, «são homens bonitos, com peito largo e braços musculados (…) e dotados de fortes pernas, como pilares, que os suportam sob as enormes cargas que transportam»33. Não podemos deixar passar esta analogia – as pernas como pilares – que, no nosso entender, se aplicará tanto aos homens do mar como aos da serra. O visitante notou que nas classes mais abastadas há uma especie de insígnia comum – o bigode. Quanto à classe feminina, Dix lamenta o facto desta sair pouco à rua, mas teve a oportunidade de se deparar com duas jovens «com olhos vivos e feições correctas…»34 embora «a pele delas não é das mais brancas, mas é enriquecida por uma bela cor que vai bem com os seus brilhantes cabelos negros e os dentes brancos»35. Em 1851, Harcourt previne o leitor de que não irá encontrar caras bonitas com mais de 30 anos na ilha, sobretudo nas classes mais baixas. Também ele notou o sedentarismo e a falta de intercouse mas refere que «the glory of the Madeira women are their hair, which is of the richest growth and blackest hue, and their eyes, which are dark and bright».36 Emmeline Stuart Worltey, que passou pelo Funchal em 1854, descreve o encontro com alguns campone24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36

Tradução de António Ribeiro Marques da Silva em Passaram pela Madeira, 2008, p. 105. Tradução de António Ribeiro Marques da Silva em Passaram pela Madeira, 2008, p. 109. Tradução de António Ribeiro Marques da Silva em Passaram pela Madeira, 2008, p. 109. Tradução de António Ribeiro Marques da Silva em Passaram pela Madeira, 2008, p. 109. Tradução de António Ribeiro Marques da Silva em Passaram pela Madeira, 2008, p. 110. Tradução de António Ribeiro Marques da Silva em Passaram pela Madeira, 2008, p. 110. Tradução de António Ribeiro Marques da Silva em Passaram pela Madeira, 2008, p. 110. COOPER, 1840, Invalid’s guide to Madeira, p. 25 Tradução de António Ribeiro Marques da Silva em Passaram pela Madeira, 2008, p. 130. Tradução de António Ribeiro Marques da Silva em Passaram pela Madeira, 2008, p. 130. Tradução de António Ribeiro Marques da Silva em Passaram pela Madeira, 2008, p. 130. Tradução de António Ribeiro Marques da Silva em Passaram pela Madeira, 2008, p. 134. HARCOURT, 1851, A sketch of Madeira, p. 91.

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Anuário do CEHA 2015, N.º 7 ses, apelidando alguns de «handsome good looking people»37. A visitante acaba mesmo por se deter num deles que descreve como um jovem sem beleza «with a pepper-and-salt complexion, a bit of nose like a little patch of putty, and two boiled gooseberries of eyes.»38 Em relação aos condutores dos carros de boi, Mrs. Wortley notou os gritos com os quais dominavam os animais para os guiar pela cidade e ao compará-los com os homens que transportam as redes, refere que estes são a «wonderfully hardy and enduring race»39 e menos preguiçosos. Notou igualmente um grupo de crianças de sapatos brancos e «transparent-looking, snowy frocks, and with their hair coquetrishly adjusted (…) and the precious darlings go tripping along in full fig, with their pretty uncovered heads and uncloacked forms, making the street bright as they pass».40 Ao deter-se nos pobres, descritos como “care-worn, haggard half-starved appearance”, explica que estes estão sujeitos a muitas privações, razão que justifica o seu aspeto pouco saudável, bem como a «cadaverous countenances and skeleton forms»41, adiantando ainda que, ao discutir este assunto com os seus amigos, chegou à conclusão de que o clima deverá ser responsável pelo «wretched and sickly looks of most of the country-people»42, lamentando a tristeza que qualquer um sente ao esbarrar com «these pallid, guant children, often without a trace of childhood, save its helplessness and weakness…»43 Em relação às mulheres do campo, Wortley espantou-se com os pesados fardos que carregam à cabeça e retratou-as como «poor creatures, looking old…»44 e insiste nas «wretched, squalid-looking, hollow eyed children»45. Emmeline vai ainda mais longe, quando descreve o encontro que teve num passeio pelo campo, com um grupo de camponeses semelhante a statues or wax figures. No mesmo ano, Isabella de França, além de ter notado a falta de higiene, reparou igualmente nos remadores – «selvagens nus, que só tinham a pele em cima de si»46, e de «cabelo preto e revolto»47 – que transportaram o casal da Ponta do Sol para Câmara de Lobos. Aliás, a palavra selvagem torna-se comum, quando a mulher do Morgado França se detém nos madeirenses, como é o caso do criado que servia numa casa que frequentou e que «se distingue do selvagem descalço e de barba crescida».48 Isabella, porém, não se detém na descrição do corpo, mas apenas na idumentária e nos modos que, regra geral, considera pouco civilizados quando comparados com a matriz europeia. Ellen Taylor, que nos visitou em 1882, abre o quinto capítulo da sua obra com umas linhas dedicadas aos habitantes da Madeira «… who at first sight would strike a stranger as being as a rule very much of the same type, and it is only na accustomed eye that perceives that there is a difference»49, que resulta, como explica a visitante, da variedade de nacionalidades que, desde os primórdios do povoamento, aqui se instalaram. A autora adianta que, enquanto no Curral das Freiras, predomina a herança mourisca, no norte da ilha, sente-se, pelo contrário, as características da raça negra. Explica ainda que, em Gaula, as faces ovais, as feições delicadas e os narizes aquilinos certificam a linhagem mais refinada oriunda do continente português. Já Isabella de França comparou a cor escura dos barqueiros com a cor dos Indios. Taylor reparou ainda «the children as a rule are pretty»50, realçando os olhos pretos mas confirmando que perdem os traços de juventude muito cedo. Um ano mais tarde, Lady Brassey, ao deamabular pelas ruas do Funchal, deparou-se com “such strange objects”, isto é, um grupo de mulheres que chorando, acompanhavam o funeral de uma criança. Por esta altura, 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50

WORTLEY, 1854, A Visit to Portugal and Madeira, p. 230. WORTLEY, 1854, A Visit to Portugal and Madeira, p. 231. WORTLEY, 1854, A Visit to Portugal and Madeira, p. 265. WORTLEY, 1854, A Visit to Portugal and Madeira, p. 229. WORTLEY, 1854, A Visit to Portugal and Madeira, p. 253. WORTLEY, 1854, A Visit to Portugal and Madeira, p. 254. WORTLEY, 1854, A Visit to Portugal and Madeira, p. 254. WORTLEY, 1854, A Visit to Portugal and Madeira, p. 268. WORTLEY, 1854, A Visit to Portugal and Madeira, p. 268. FRANÇA, 1853, A Visit to Portugal and Madeira, p. 124. FRANÇA, 1853, A Visit to Portugal and Madeira, p. 124 FRANÇA, 1853, A Visit to Portugal and Madeira, p. 175. TAYLOR, 1882, Madeira, Its scenery and how to see it, p. 57. TAYLOR, 1882, Madeira, Its scenery and how to see it, p. 63.

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Anuário do CEHA 2015, N.º 7 Helen Parham, a quem já nos referimos anteriormente, é parca em referências aos nativos, à exceção de alguns comentários em relação aos empregados domésticos, e alguns vendedores do mercados. No que diz respeito às crianças, descreve-as como «queerest little morsels, with their black-bed like eyes, and brown skin and browner hair».51 Estamos perante uma descrição que se baseia numa analogia entre homem-animal e é aqui que a deteriorização da imagem que temos do outro atinge um climax. E esta é uma imagem que acabar por perdurar. No dealbar do século XIX, a imagem estereotipada do madeirense continua a encher as páginas das narrativas de viagem e dos guias turísticos. Biddle descreve a chegada à baia do Funchal, no momento em que várias canoas se aproximam do navio com «individuos morenos, de cabelo preto, quase nus e com pele brilhante e de cor azeitona que flutuam e posam sobre as vagas (…) gesticulando e fazendo caretas como macacos»52. No que diz respeito às mulheres, Biddle elogia a sua beleza especial, «a estatura proporcional e o porte simples, livre e gracioso»53, notando igualmente «as feições regulares, a cor de pele, escura, e os seus olhos, lânguidos».54 Aliás, a parte do corpo que maior destaque mereceu foi, efetivamente, os olhos e Biddle acaba por resumir, de forma eficaz e eloquente, o quanto o olhar das mulheres madeirenses “alterou” o visitante. «Não há duvida que os olhos langorosos das beldades madeirenses nunca poderão ser esquecidas pelo estrangeiro que um dia deparou com o seu olhar penetrante. Uma caracteristica é o acto de baixar as palpebras de modo que as longas pestanas sedosas protegem discretamente os olhos femininos que só se levantam ocasionalmente quando cintilam, brilhantes e verdadeiros, como duas jóias radiosas. A madeirense bonita expôe os seus olhos como a inglesa as suas jóias – isto é, apenas em ocasiões próprias»55. Ao nos debruçarmos sobre este olhar forasteiro não podemos deixar de referir que a descoberta do Outro, além de multidimensional e fruto de contemplação emotiva, é muito pouco objetiva. Para Todorov56, esta afirmação da exterioridade do outro que acompanha o seu reconhecimento enquanto sujeito é um processo que apelidou de exotopia. Na realidade, o exótico, per se, atua como um tropos [técnica de simulacro], no sentido de tornar familar, quer o lugar, quer as pessoas, num esforço permanente de corresponder às expetativas criadas e numa incessante busca de significação. Consequentemente, estes textos estão repletos de analogias [conscientes e inconscientes] entre o aqui e o lá, entre nós e os outros, entre o conhecido e o desconhecido, entre o civilizado e o selvagem. É nesta linha que Pennycock sugere que a viagem em direção ao inesperado faz parte de um processo de identificação cultural e racial e Louise Pratt sustenta a existência de uma zona de contacto, uma espécie de “mnemotic traces” que surgem nestes lugares e que evocam histórias, emoções e lembranças dicotómicas [ou não]. Neste sentido, Rogério Puga explica que a oposição entre o eu civilizacional [forasteiro] e o outro [nativos] exige uma abordagem interdisciplinar capaz de captar toda a complexidade que a viagem [geográfica e imaginária] comporta.57. Aliás, já Bakhtin, que buscou a dimensão dialogante do mundo, notou que só o encontro [e o confronto] possibilitam a interação do ponto de vista humano, histórico, social e até mesmo cientifico, assumindo que «a diversidade que constitui o mundo resulta de um movimento interactivo da própria diversidade».58 De acordo com Said, os travelogues são uma narrativa natural, lógica e simples quer em termos de composição, quer em termos de utilidade, exatamente devido «of its human tendency to fall back on a text when the uncertainties of tavel in strange parts seem to threaten one’s equanimity»59.No caso particular destas narrativas dedicadas à ilha da Madeira, é possivel traçar uma coreografia, já que o olhar negro e intenso, a cor de pele escura e a velhice precoce são os traços físicos mais apontados. Há uma tendência para justificar o tom de pele com a origem africana dos primeiros colonos, razão que também explica os cabelos negros encaracolados e até mesmo alguma indolência. É também esta origem africana e mourisca que justifica a nudez das classes mais 51 52 53 54 55 56 57 58 59

ULTRA MARINE, 1883, The Contents of a Madeira Mail-Bag, p. 62 Tradução de António Ribeiro Marques da Silva em Passaram pela Madeira, 2008, p. 171. Tradução de António Ribeiro Marques da Silva em Passaram pela Madeira, 2008, p. 172. Tradução de António Ribeiro Marques da Silva em Passaram pela Madeira, 2008, p. 172. Tradução de António Ribeiro Marques da Silva em Passaram pela Madeira, 2008, p. 172. TODOROV, 1982, La Conquête de L’ Amerique: La question de l’Autre, p. 254. PUGA, 2012, A Vivência social do Género de Macau Oitocentista do Diário de Harriet Low, p. 613. MACHADO, 2010, A questão espaço-temporal em Bakhtin: cronotopia e exotopia, p. 1. SAID, 1977, Orientalism, p. 93

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Anuário do CEHA 2015, N.º 7 baixas. E há mais um traço comum neste (des)encontro com este corpos ilhéus – a sujidade. É importante notar, e tal como defende Jás Elsner e Joan-Pau Rubiés, que a literatura de viagens não só espelha as diferentes facetas da modernidade como o encontro com diferentes culturas, sendo decisivo para refletir sobre as questões de identidade. Todavia, esta dialética – o eu e o outro – não está completa, já que, na grande maioria dos casos, apenas temos acesso ao modo como os europeus veem os outros e falta-nos a visão do outro sobre os europeus. Steve Clark relembra e bem que os “Europeans mapped the world” e além do mais, a viagem foi, durante muito tempo, apenas acessivel a quem dispunha de meios financeiros e tecnológicos avançados. Sabemos que os estudos coloniais e pós coloniais, têm-se debruçado largamente sobre a problemática do encontro-cultural mas também sabemos que há uma tendência para se concentrar de um lado apenas. Brian Musgrove defende que é tempo de abandonar esta abordagem formalista, pois entende que «the art of travel is not straightfowardly, about the inscription of power over otherness, rather, it is underscored by an anxious sense that travel is to be “nowhere”»60 Este partir e estar em lado nenhum, este confronto com o imprevisto e com o diverso acarreta consequências. Não temos dúvida de que estes relatos de viagem acabam por se alicercar num permanente jogo de identidade-alteridade que apela, inevitavelmente, à cumplicidade do leitor. Admitindo que o outro rompe com a identidade do eu pois não só abala a segurança como desconcerta saberes e evidências, problematizando, em silmutâneo, as representações espaço-temporais e identitárias, somos levados a concordar com Bahktin quando sustenta que, para a construção dos sentidos, o importante é «alcançar uma dimensão do movimento [fluxos e projeções] »61. Sanches diz: “regressa-se outro”, uma vez que a alteridade acaba por impor uma escolha [nem sempre clara] entre o nomadismo ou o sedentarismo (parafraseando Michelle Onfray). É esta tensão identitária [e subjetiva] entre o viajante (forasteiro) e o estante (nativo) que deve ser reavaliada e entendida, trazendo, para o cerne da discussão, conceitos tais como o conflito, a incerteza, o desequilíbrio e a instablilidade. Aliás, e tal como tão bem anota Said, a aquisição de conhecimentos é um processo gradual e lento e «far from being merely additive or cumulative, it is a process of selective accumulation, displacement, deletion, rearragement, and insistence…»62. O mesmo se passa com o processo identitário, no nosso entender. Até que ponto a viagem e a estada na Ilha da Madeira mudou a vida destes viajantes oitocentistas? Que (in)corporação terá ocorrido entre o habitante local e o forasteiro? Não sabemos, claramente. Mas com certeza que fez diferença. Seja de que modo for, acreditamos em Sterne, quando nos diz que um livro de viagens «ought to teach us to love the world and our fellow creatures better than we do»63 e sobretudo acreditamos que os outros que também somos só fazem sentido quando refletimos em conjunto e libertos de qualquer dogma.

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