Literatura e conhecimento

July 4, 2017 | Autor: F. Seixas Fernandes | Categoria: Knowledge, Literatura, Propositional Knowledge, Epistemology of Literature
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Literatura e conhecimento Palestra proferida a 25/nov/2010 durante a mesa-redonda Letramento, discurso literário e ensino, integrante da programação do II Fórum de Linguística Aplicada e Ensino de Línguas da UFC (II FLAEL)—Fortaleza, 24-6/nov/2010.

Fabiano SEIXAS FERNANDES1 Resumo: Parece haver consenso quanto ao fato de que o tipo de produção escrita a que chamamos literatura é intelectualmente benéfico: ler literatura é intelectual ou cognitivamente vantajoso. Mais que isso, é difundida a opinião de que, ao lermos literatura, aprendemos algo. Mesmo que essas asserções contem com nossa anuência, restariam ainda inúmeras incertezas acerca do modo como a literatura poderia ser intelectualmente benéfica, bem como da importância que isso teria para a leitura e o estudo literários. Em vista disso, realiza-se aqui um apanhado introdutório da relação entre literatura e conhecimento. São abordadas as seguintes questões: a literatura é uma forma de conhecimento? Pode gerar conhecimento semelhante ao científico-filosófico? Pode ensiná-lo? É possível afirmar que há conteúdos exclusivos à literatura, que não poderiam ser comunicados ou desenvolvidos de outra forma? Palavras-chave: Literatura; conhecimento; conhecimento proposicional. Abstract: It seems to be of general agreement that the type of written production which we call Literature is intellectually beneficial: reading literature brings intellectual and cognitive advantages. It is also widespread the opinion that, when we read Literature, we learn something. Even if we assent to these claims, there lingers a wealth of uncertainties concerning how this may be, and why it would matter to literary studies. The present article undertakes an introductory discussion of the relation between literature and knowledge. The following issues are addressed: is literature knowledge? Can it produce knowledge akin to that of Science and Philosophy? Can it teach it? Is it possible to claim that there are contents exclusive to literary formulation, which would be neither conveyed nor developed otherwise? Keywords: Literature; knowledge; propositional knowledge. Antes de mais nada, gostaria de iniciar a reflexão a seguir afirmando (e talvez me desculpando por) seu caráter experimental, processual e problemático. Trata-se de meu esforço inicial no sentido de compreender a literatura sob um ponto-de-vista epistêmico, e portanto tem a temeridade e possivelmente os erros comuns aos começos. Esse é um artigo problemático—ou seja, um artefato feito de problemas. Meu objetivo é tentar arrolar os potenciais problemas envolvidos na inquirição acerca da relação entre literatura e conhecimento. Começaremos justificando a relação entre literatura e conhecimento através de uma investigação de nosso senso comum epistêmico acerca de literatura; peço que respondam sinceramente para si mesmos(as) as perguntas abaixo; peço ainda que as respondam de um modo geral (ou seja: evitem pensar em exceções ou casos específicos; atenham-se ao que lhes parecer normal na maioria dos casos). (a) Você acredita que… (1) …conhecer é um estado desejável? (2) …conhecer é melhor que ignorar? (3) …a maioria das pessoas responderá “sim” a (1) e (2)?2 Pessoalmente, acredito que as chances de alguém negar (1) e (2) são pequenas. Ainda, porém, que nem todos os que anuiriam a (1) e (2) estejam sendo sinceros, suas respostas seriam válidas para nosso presente propósito; se de fato algumas pessoas simulam acreditar que o conhecimento é desejável, isso pode se dever ao fato de que negar (3) é mais difícil que negar (1) e (2): independentemente do que pensemos acerca de (1) e (2), estamos                                                                                                                           1 Doutor em Literatura pela UFSC (2004). Professor Adjunto de Língua Inglesa e Literatura pelo Departamento de Letras Estrangeiras— Centro de Humanidades, UFC. 2 Ao longo da exposição, perguntas serão identificadas por letras minúsculas em ordem alfabética (a, b, c…) e proposições por números arábicos em ordem crescente (1, 2, 3…). Conceitos, embora possam ser expostos proposicionalmente, serão identificados por numerais romanos em ordem crescente (I, II, III…).

 

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cientes do que parece pensar a maior parte das pessoas suficientemente instruídas; de que inteligente é um elogio e ignorante uma ofensa; de que inteligência e conhecimento parecem estar relacionadas, uma vez que ignorância é antônimo de ambas. Ninguém deseja passar por ignorante; seria necessária grande coragem para que alguém afirmasse que a ignorância de um modo geral é um estado superior e mais desejável que o conhecimento. O que essa breve recapitulação de nosso senso comum epistêmico nos mostra acerca do conhecimento em geral também pode ser atribuído, com maior ou menor prontidão, a instâncias particulares de conhecimento: não apenas a conhecimentos específicos, mas a atividades que, segundo acreditamos, exigem amplo conhecimento e grande esforço intelectual. Assim, peço agora que considerem as proposições abaixo: (4) Ler é uma atividade intelectualmente benéfica. (5) Ler amplia nosso conhecimento. (6) Ler é melhor que não ler. Novamente, suponho que a maioria das pessoas assentiria a (4), (5) e (6). A leitura é vista como uma “atividade cultural”; tudo quanto está relacionado à assim chamada alta cultura denota intelectualidade, e portanto partilha da valoração positiva atribuída ao conhecimento e à inteligência—embora o grau de unanimidade no caso de opiniões acerca destes seja possivelmente maior que o grau de unanimidade no caso de qualquer atividade intelectual específica, justamente porque não há um único modo de nos tornarmos pessoas “cultas” ou “inteligentes”. Para nos aproximarmos de nossos propósitos, (4), (5) e (6) poderiam ser reformuladas como segue: (4’) Ler literatura é uma atividade intelectualmente benéfica. (5’) Ler literatura amplia nosso conhecimento. (6’) Ler literatura é melhor que não ler literatura. Ainda que a unanimidade quanto ao valor de verdade desse grupo de proposições seja menor que no caso de (4), (5) e (6), considere esse novo grupo, contendo proposições novas e também algumas variações de grupos anteriores: (4”) Produzir literatura é uma atividade intelectualmente benéfica. (5”) Produzir literatura amplia nosso conhecimento. (7) Produzir literatura exige amplo conhecimento e grande esforço intelectual. (8) Literatura de excelente qualidade é normalmente produzida por pessoas ignorantes. Segundo me parece, dúvidas acerca do valor de verdade de (4’) e (5’) se tornam mais escassas quando ler é substituído por produzir; se produzir um artefato cultural exige conhecimento e esforço intelectual, parece-nos mais claro que o consumir partilharia, ao menos em certa medida, das mesmas exigências. (Objeções poderiam, contudo, ser encontradas: pense-se, por exemplo, na culinária. Saborear um prato é algo que faríamos independentemente de sabermos ler, escrever ou cozinhar, e no entanto algumas pessoas estudam muito a fim de se tornarem chefs. Mas, mesmo nesse caso, quanto maior nosso conhecimento culinário—ou seja, quanto maior a quantidade de temperos e alimentos que houvermos experimentado, e mais variadas as combinações destes a que houvermos sido expostos—, tanto maior nossa capacidade de verdadeiramente apreciar os sabores e texturas que formam os pratos finos preparados por um chef. Não parece descabido supor que uma pessoa com baixo grau de instrução gastronômica estaria menos apta a saborear pratos “de alta cultura culinária” que pratos simples e já estabelecidos.) Tudo isso fica mais evidente quando nos deparamos com (8); mesmo que não tenhamos a literatura em grande conta, e por pior que seja nossa opinião acerca dos escritores, julgaríamos raro que alguém os considerasse ignorantes. Até aqui, recapitulamos alguns julgamentos de valor importantes acerca da literatura e de sua relação com o conhecimento que estabelece a razão de ser de nossa presente inquirição. De fato, parece-me ser o caso que a literatura é costumeiramente considerada uma atividade que exige conhecimento e esforço intelectual para ser produzida e apreciada. Também me parece suficientemente estabelecido em nosso senso comum—e eis finalmente o ponto que nos interessa—que a literatura, além de exigir conhecimento em sua produção, também o promove no ato da leitura. O conjunto de proposições acima torna plausível que nosso senso comum considere (9) verdadeira: (9) Produzir e ler literatura promove conhecimento.

 

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Suponhamos que também consideramos (9) verdadeira. Suponhamos também que nossa anuência a (9) é, por assim dizer, inculcada e desorganizada: jamais estudamos formalmente o assunto, e, mesmo que a literatura em si não nos seja estranha e que lhe tenhamos apreço, inferimos seu benefício do fato de que é comumente afirmado, e jamais nos ocorreu questionar quais seriam ou como se dão. Suponhamos, enfim, que desejássemos testar ou organizar essa anuência; que desejássemos conhecer de modo consciente e suficiente as razões pelas quais se afirma que literatura é intelectualmente benéfica—que ao mesmo tempo exige e torna pessoas “cultas” e “inteligentes”. Como proceder? Comecemos com uma pergunta basilar: (b) Qual a relação entre literatura e conhecimento? Essa pergunta, que verdadeiramente inicia nossa inquirição, de modo algum a resume. Acredito que, ao perguntarmos (b), estamos, na verdade, fazendo a primeira de uma série de perguntas mais ou menos interrelacionadas; a seguir, buscarei esboçar essas perguntas, bem como algumas respostas, que devem ser encaradas como hipóteses de trabalho, não como afirmações categóricas. Algumas perguntas ou respostas talvez pareçam banais; outras poderão abrir caminho para rica discussão teórica acerca da literatura e de seu estatuto epistêmico. Antes, porém, de desdobrar progressivamente (b), cabe desdobrá-la regressivamente: em primeiro lugar, (b) pressupõe ou suscita duas perguntas que lhe seriam prévias. (b’) O que é literatura? (b”) O que é conhecimento? Definir literatura é tarefa até o momento inglória. De um modo geral, as artes desvelam sua natureza muito mais facilmente à intuição que à consciência teórica. Entre as dificuldades com que se depara o estudioso, destaco as seguintes: ! Não parece haver características exclusivas a textos literários que os poderiam diferenciar de outros tipos textuais, tampouco características universalmente empregadas em textos literários: metáforas, figuras de linguagem, narração de estórias, ironia—todos recursos que estaríamos dispostos a conceber como tipicamente literários—são abundantemente encontrados na grande maioria dos gêneros não-literários. Por outro lado, recursos como a rima—dificilmente empregado fora da literatura—não são encontrados em todas as obras literárias, sequer em todos os poemas. ! Não parece haver um acervo fixo de textos considerados literários, intencionalmente destinados a ser tratados como literatura: como o termo literatura é historicamente recente, boa parte da produção literária da humanidade não foi concebida sob esse nome. Ninguém negaria que As bacantes de Eurípedes ou que o Decamerão de Boccaccio são literatura—exceto, talvez, Eurípedes e Boccaccio, que, se deparados com o termo, não o reconheceriam. Além disso, existe o problema dos textos que “migram” para a literatura. A obra histórica de Gibbon, Decline and Fall of the Roman Empire, é hoje em dia lida mais por seu apelo literário que como tratado histórico. ! As duas primeiras dificuldades nos levam a concluir que nada impede que textos não-literários sejam apreciados literariamente. Tal é o procedimento do escritor argentino Jorge Luis Borges, que mais de uma vez afirmou ser a filosofia “um gênero da literatura fantástica” (veja-se, por exemplo, Obras completas vol.01, p.280). ! Não parece haver nenhuma função tipicamente literária, exclusiva a textos literários. Definir a função das artes em geral é tarefa extremamente árdua; aparentemente, não há função que desempenhem que não seja efetivamente exercida também por obras não-artísticas, ou por outras instituições, como a ciência e a religião. ! Finalmente, com o advento da Modernidade e, no campo específico da arte, das vanguardas do início do século XX, a novidade e a originalidade sofrem uma supervalorização; qualquer definição de arte ou literatura que parecesse satisfatória e por isso tivesse certa difusão estaria sujeita a ser, em virtude do valor da novidade, questionada sob a forma que obras de arte que delas conscientemente se desgarrassem. Todos esses problemas fazem com que definições-candidatas de literatura ou arte sejam ou tão específicas que deixem de fora inúmeras obras que nossa intuição classificaria como literatura ou arte, ou tão amplas que também englobem obras que nossa intuição não classificaria como tais; no caso mais geral da arte, também há o risco de as definições causarem confusão com outras instituições, como a religião ou a ciência. A grande contra-

 

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dição parece ser a de que conhecemos bem demais o que seria ou não artístico ou literário, mas que definições formais nos escapam. Não obstante, em meio a tantos empecilhos teóricos, há uma esperança prática. Salvo exceções deliberadamente confusas e perturbadoras, a maioria das obras de arte (boas ou más) é claramente “artística”; fora do âmbito da arte de vanguarda, não é comum termos dúvida quanto a quais artefatos seriam obras de arte, quais não. A literatura segue esse caminho, e portanto, uma vez que conseguimos reconhecer obras literárias com relativa facilidade, a dificuldade em se alcançar uma definição formal de literatura não impede que a estudemos. Assim, por hora, prefiro declinar de fornecer semelhante definição formal, pensando-a de modo concreto ou institucional: (I) Literatura é um acervo aberto de textos, que recebem um certo tipo de atenção esteticizante por parte de seus produtores e/ou leitores e/ou estudiosos. Como nosso propósito não é o de definir literatura, lanço mão apenas de uma definição que nos diga que há um conjunto de textos mais ou menos definido acerca do qual estamos falando, mas que de modo algum se compromete a propor características intrínsecas a todos os objetos literários. Também, a locução atenção esteticizante é intencionalmente ambígua: não desejo resolver qual seja o estatuto estético das obras de arte, nem penso que seja tarefa simples—mesmo porque não estou seguro de que todas as obras de arte hajam sido compostas com propósitos primordialmente estéticos, como parece ser o caso da arte militante—; mesmo assim, definir uma forma de manifestação artística fazendo referência a seu componente estético parece ser uma saída ao mesmo tempo suficientemente geral e plausível. Passemos a (b”). Definir conhecimento também tem seus problemas3, mas já há tentativas de formalização mais bem estabelecidas às quais poderíamos recorrer. A mais difundida definição de conhecimento é a que segue: (II) Conhecimento é a crença justificada em algo verdadeiro. Ou seja, conhecemos p quando: (II’) acreditamos que p é verdade; (II’’) temos razões que sustentam que p é verdade; (II’’’) p é verdade. Um dos problemas com esse conceito está na definição de crença. Esboço abaixo algumas das dificuldades do conceito: ! Não é exatamente claro que tipo de estado mental seria a crença. David Hume combate a idéia de que a crença seria uma idéia, propondo que se trata de um modo especial de conceber uma idéia: “An idea assented to feels different from a fictitious idea” (Treatise of Human Nature 1.3.7, apêndice, p.629); ele mesmo, contudo, não se satisfaz com a proposta, embora afirme não conseguir conceber outra solução. Porém, se a crença não é nem idéia nem sentimento, o que é? ! Não é exatamente claro que o estado mental que assinala nossa crença seja ativado única e exclusivamente quando verdadeiramente acreditamos em algo. Quando sonhamos algo com alto grau de nitidez, acreditamos, durante o sonho, experienciarmos algo em vigília—ou seja: a mesma sensação que me faz agora acreditar estar sentado em casa digitando em frente a meu computador me faz acreditar em coisas bem menos realistas enquanto durmo. Ademais, é ao menos concebível que algum tipo de droga poderia manipular quimicamente nosso cérebro, gerando o estado mental de crença em se tratado de coisas nas quais não acreditamos. Assim, essa droga poderia me fazer acreditar que estou andando pela rua quando estou, de fato, sentado em casa. ! Ao longo da história da filosofia, conhecer e acreditar foram por vezes tratados como estados distintos, ou relacionados a objetos distintos, de modo que a crença nem sempre foi considerada condição para o conhecimento. Por hora, essa dificuldade será resolvida do mesmo modo como resolvemos a dificuldade acerca de literatura: nossa intuição nos permite reconhecer quando acreditamos em algo, embora não nos diga o que exatamente acontece para que haja crença.                                                                                                                           3 A discussão a seguir acerca do conceito de conhecimento e seus problemas foi baseada em Luz (In: CASTRO, 2008) e Zagzebski (In: GREGO & SOSA, 2008).

 

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Um terceiro problema reside na definição de justificação. Embora não nos interesse aqui discutir aprofundadamente o conceito de conhecimento—apenas ter dele uma noção que nos permita seguir em frente—, é importante notar que um artigo seminal de Edmund L. Gettier, publicado em 1963, demonstrou que pode não haver relação necessária entre nossas razões para acreditar em p e o fato de p ser verdade; nesses casos, embora as três condições para o conhecimento se realizem, ainda assim não conheceríamos que p. Uma tentativa de solução para isso seria agregar duas outras condições: (II’’’’) deve haver uma relação necessária entre a justificativa e a verdade de p, de modo que p seja verdade em razão da justificativa; (II’’’’’) não deve haver algo além de meu conhecimento que contradiga eficazmente p. Ou seja: p é verdade pelas razões que me levam a crer que p seja verdade, e não por outras que desconheço, sendo que não existe, entre tudo quanto desconheço, algo que prove em definitivo que p é falso. De que modo exatamente se daria essa relação necessária ainda é ponto de debate, de modo que (I), embora amplamente difundido, ainda não passou por todos os testes para ser unanimemente estabelecido. Minha interpretação da discussão é que o problema levantado por Gettier não necessariamente invalida essa definição (embora haja apontado nela falhas importantes e contribuído para seu refinamento); indica apenas que, em última instância, não é possível à humanidade conhecer quando conhece. A diferença entre opinião (uma proposição candidata a verdade) e verdade não nos é clara, mesmo quando nosso grau de justificação epistêmica é o mais alto possível. Agora que resolvemos (b’) e (b’’) (tão bem quanto possível ou necessário para nosso presente interesse), podemos retornar a (b). Conforme (I), o termo literatura designa um certo conjunto de textos. Assim, a primeira coisa que se pode dizer acerca de (b) é que a literatura, sendo textual, é sempre sobre algo: a literatura é composta por nosso conhecimento acerca de algo. Mas isso ainda é dizer pouco. De que modo a literatura é composta por conhecimento? Tomemos o seguinte exemplo: To Electra (Robert HERRICK)4 I DARE not ask a kiss, I dare not beg a smile, Lest having that, or this, I might grow proud the while. No, no, the utmost share Of my desire shall be Only to kiss that air That lately kissèd thee.

Esse poema não só é composto sobre algo (as intenções românticas de alguém em relação a outrem), mas, mais fundamentalmente, também é composto de/por algo: compõe-no conceitos (beijo, sorriso, ar, suplicar receber, almejar) expressos em uma língua natural com a qual estamos familiarizados; nesse caso, a literatura é inicialmente composta por aquilo que reconhecemos—uma espécie de conhecimento experiencial, intransferível e nãoproposicional. Assim, uma primeira resposta a (b) seria que (10) A literatura se relaciona com o conhecimento na medida em que toma por base objetos cognoscíveis. Um desdobramento de (10) é que o próprio texto literário, a partir do momento em que travamos com ele contato, é algo que vivenciamos através da leitura, e que pode vir a fazer parte de nosso acervo mnemônico pessoal. Assim, (10) pode ser reescrita da seguinte forma: (10’) A literatura se relaciona com o conhecimento na medida em que os textos ditos literários são objetos cognoscíveis. Embora essas respostas não sejam talvez incorretas, podem soar banais; nossa intuição acerca do termo conhecimento espera dele algo mais complexo. Apesar de ser perfeitamente possível dizermos que (re)conhecemos a personagem mitológica Electra e o conceito de beijo ou que conhecemos (memorizamos) o poema “To Electra” de Robert Herrick, o termo conhecimento, quando usado como substantivo coletivo (o conjunto do que pode ser                                                                                                                           A Electra: UM BEIJO pedir não devo / Um sorriso não suplico / Pois se um ou outro recebo / Orgulhoso talvez fico. // Não, não; a mim tão somente / Caberá de quanto almejo, / No ar que recentemente / Te beijou dar eu um beijo. (Minha tradução.) 4

 

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conhecido), parece mais amplo do que nosso senso comum aceitaria; em um sentido mais restrito e mais altamente valorado, conhecimento parece apontar para certas características peculiares, não pertencentes a todos os objetos cognoscíveis: trata-se de algo especial, que de fato nos torna “cultos” ou “inteligentes”, seja porque é difícil de compreender e adquirir ou porque é uma informação nova acerca de algo. Assim, nosso poema pressupõe, por exemplo, que as pessoas beijam e almejam coisas. Nenhum de nós negaria que isso é verdade, tampouco agregaria grande valor epistemológico às proposições (11) As pessoas beijam. (12) As pessoas almejam (coisas). Assim, dado o alto valor intelectual agregado à literatura, (b) pode ser afunilada dos seguintes modos: (b’’’) Qual a relação entre literatura e conhecimento novo? (b’’’’) Qual a relação entre literatura e conhecimento científico? Note-se que nem todo conhecimento científico é encarado como novo, mas ainda assim, ao ser encarado como científico, pode assumir maior valor em nosso juízo. Banais como pareçam isoladamente, (11) e (12) talvez assumissem maior valor se comprovássemos sua validade científica. Assim, percebemos que um texto literário, ao ser composto por conhecimento (banal, científico ou novo), pode reproduzi-lo. O texto aceita o que já julgamos conhecer como verdade. Em um segundo nível, porém, a literatura pode demonstrar maior grau de consciência do que reproduz, expressando de algum modo sua anuência a determinadas proposições. Quando isso acontece, mais que reproduzir, a literatura divulga o conhecimento. (Pensemos no positivismo literário de Émile Zola.) Finalmente, pode demonstrar grau ainda mais elevado da consciência da presença de proposições candidatas a conhecimento, mostrando-se insatisfeita com elas e procedendo a problematizá-las. (Pensemos em Voltaire e sua crítica ao otimismo leibniziano.) Temos, desse modo, três novas respostas a (b): A literatura se relaciona com o conhecimento na medida em que… (13) …reproduz conhecimento (banal, novo, científico). (14) …divulga conhecimento (novo, científico). (15) …problematiza conhecimento (banal, novo, científico). Em cada um desses três casos—reprodução, divulgação, problematização—, o texto literário assume algum tipo de postura perante opiniões candidatas a verdade. Pois bem: de onde viriam essas opiniões? Devem se originar sempre e obrigatoriamente de fontes extra-literárias, ou poderiam acaso vir do próprio texto literário? Em outras palavras: (c) A literatura pode produzir conhecimento (novo, semelhante ao científico)? Essa nova pergunta pode nos auxiliar a ver que há outros aspectos a serem levados em conta. Para se produzir conhecimento, é necessário método; para estabelecê-lo, fundamentação. Assim, novas perguntas surgem: Caso seja verdade que a literatura pode produzir conhecimento… (d) …como o produz? (e) …como o fundamenta? Como no caso das respostas a (b), as respostas a (c), (d) e (e) poderiam apontar tanto para o fato de que a literatura empresta métodos de pesquisa e argumentos de outras áreas do conhecimento quanto para o de que emprega métodos próprios. Assim, (d) e (e) podem também ser refeitas: (d’) Haveria métodos exclusivamente literários de produção epistêmica? (e’) Haveria métodos exclusivamente literários de fundamentação epistêmica? Ora, se os métodos e a fundamentação poderiam, ao menos em tese, ser exclusivamente literários, por que não também o próprio conhecimento? Assim, chegamos a novas variantes de (d): (d’’) Haveria conhecimentos produzidos mais clara ou eficazmente pela literatura? (d’’’) Haveria conhecimentos produzidos exclusivamente pela literatura? (d’’’’) Se conhecimento é produzido exclusivamente pela literatura, isso ocorre contingente ou necessariamente? Como disse ao início, esse é um texto problemático; seu objetivo é desenvolver as implicações do problema inicial, para que tenhamos maior consciência daquilo porque indagamos quando indagamos acerca da relação entre literatura e conhecimento. Ao chegamos até aqui, já temos uma visão mais ampla de qual seria o problema a nossa frente, embora nada haja sido dito acerca de quão banais ou complexas seriam as soluções—supondo que as alcancemos. Resta ainda, contudo, perguntarmo-nos acerca da pertinência dessas perguntas para os estu-

 

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dos literários. Poderia esse quadro de questões e respostas-em-teste nos auxiliar a compreender ou estudar literatura? Como vimos, definir literatura é uma tarefa cercada de problemas. Definimo-la provisoriamente de modo institucional, como um conjunto de textos; preferiríamos sem dúvida alcançar uma definição formal, que percebesse no conjunto coincidências intrínsecas. Para podermos definir um conjunto, porém, é necessário que sua definição cumpra dois quesitos: universalidade (a definição deve exprimir algo que pertença ou seja conforme a todos os membros do conjunto, de modo que essa seja a razão pela qual foram agrupados) e exclusividade (a definição deve excluir a possibilidade de que haja outro conjunto com diferentes elementos e iguais características, ou igual combinação de características). Conforme evidenciam (d’), (d’’’) e (e’), a investigação epistêmica acerca da literatura também se interessa em descobrir se é possível encontrar uma definição de literatura que cumpra ambos os quesitos, ao especificá-la como forma sui generis de produção de conhecimento. Assim, a inquirição acerca das relações entre literatura e conhecimento constitui, sob um aspecto, uma tentativa de encontrar na epistemologia propriedades exclusivas e universais que definam formalmente a literatura. Infelizmente, porém, nenhuma das respostas elencadas a (b) cumpre esses dois quesitos; reproduzir, divulgar e problematizar conhecimento são prerrogativas primárias da ciência, que também podem ser encontradas em outras formas de discurso, como nos discursos mítico-religioso e moral. Se houver exclusividade, essa deve estar no modo como a literatura o faz, mas não foi meu objetivo ainda aprofundar-me nesse particular da questão. Em segundo lugar, a investigação filosófica, apesar de seu caráter geral, pode contribuir para a tarefa prática do crítico de explicar e comentar obras de arte específicas, se essa investigação gerar, direta ou indiretamente, um método de análise literária centrado nas peculiaridades epistêmicas das obras literárias. A inquirição epistêmica pode se aliar a outras formas conhecidas de estudos literários, como o Formalismo e as vertentes de análise literária psicológicas, feministas ou marxistas, de modo a nos auxiliar a compreender não somente os textos sob um ponto de vista específico, mas também nossas próprias metodologias de trabalho. Por exemplo, a constatação de Benedito Nunes, feita ao final de seu ensaio “Literatura e conhecimento”, de que caiu “na armadilha sedutora” de tentar perceber a influência existencialista na obra de Clarice Lispector nos mostra que encara seu próprio estudo da autora como exemplo de (13) ou (14): a obra de Clarice simplesmente reproduziria (e, ao fazêlo, divulgaria) os postulados sartreanos. Nunes considera essa forma de crítica inferior; não obstante o cuidado que devamos tomar para evitar reduções indevidas, não estou seguro de devamos excluir de todo a possibilidade de que (13) ou (14) sejam modos válidos de crítica: pode haver, sim, textos literários que simplesmente endossem formulações de outros pensadores, e seria trabalho do crítico, nesse caso, apontá-lo. Em linhas gerais, até aqui o campo de trabalho do investigador epistêmico da literatura está traçado. Se as perguntas e potenciais respostas esboçadas forem aceitas, saberemos por onde começar; caso contrário, a contribuição do trajeto que fizemos seria negativa—a de apontar por onde não começar. Seja como for, espero poder haver contribuído para introduzir e delinear esse campo de investigação literária, que me parece bastante promissor. Referências bibliográficas BORGES, Jorge Luis. Notas. In: Obras completas I: 1923-1949, 5.ed. Barcelona: Emecé, 1996. pp.275-81. GETTIER, Edmund L. Is Justified True Belief Knowledge? In: Analysis, vol.23, n.06. Jun/1963, pp.121-3. HERRICK, Robert. To Electra. In: http://www.bartleby.com/101/250.html. Último acesso 18/dez/2010. HUME, David. Of the nature of the idea, or belief. In: Treatise of Human Nature (ed. P. H . Niddich; índice analítico L. A. Selby-Bigge). 2.ed.rev. Oxford: 1978. pp.94-8, 628-9. LUZ, Alexandre Meyer. Epistemologia. In: CASTRO, Susana de (org.). Introdução à Filosofia. Petrópolis: Vozes, 2008, pp.177-93. NUNES, Benedito. Literatura e filosofia. In: No tempo do Niilismo e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1993. pp.191-9. ZAGZEBSKI, Linda. What is Knowledge? In: GRECO, John; SOSA, Ernest (orgs). The Blackwell guide to Epistemology. Blackwell, 2008. pp.92-116.

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