Literatura e crise nacional em Cidade de Deus de Paulo Lins e Yo maté a Simón Bolívar de Vicente Ulive-Schnell

July 3, 2017 | Autor: D. Márquez Arreaza | Categoria: Literary Representations of Violence, Brazilian Literature, Venezuelan literature
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Literatura e crise nacional em Cidade de Deus de Paulo Lins e Yo maté a Simón Bolívar de Vicente Ulive-Schnell Dionisio Márquez Arreaza, doutorando, ULA-Venezuela/UFRJ Nessa comunicação analiso breves passagens de dois romances latino-americanos: Cidade de Deus (1997) de Paulo Lins e Yo maté a Simón Bolívar (2010) do escritor venezuelano Vicente Ulive-Schnell. Estudarei, especificamente, a textualização da violência que vincula o personagem e o espaço urbano, o que sinala um tipo de Estado na sua crítica romanesca da nação fracassada. À diferença dos sofisticados recursos técnicos do regionalismo e do realismo do século XX (CÂNDIDO, 1989, p. 199-215) no contexto dos projetos nacionais de progresso alternando em regimes autoritários e representativos, a brutalidade da violência nas ruas (PEREIRA, 2015, p. 3) e o efeito da simplicidade expressiva dos narradores contemporâneos apontam para um novo tipo de realismo sem as utopias liberais ou populares que caracterizaram o mundo até a queda do muro de Berlim em 1989, no contexto da globalização intensificada tecno-comunicacionalmente e das crises econômicas na América Latina que intensificaram sua pobreza. Nesse cruzamento entre literatura, violência, política e contemporaneidade, pretendo argumentar, através da análise de passagens textuais, como o realismo literário contemporâneo renova a crítica ao discurso de nação no seu bicentenário de independência política. A textualização da violência nos romances se faz por meio de um realismo literário que se serve tanto de lugares existentes da cidade quanto de um certo lirismo, no caso carioca, e um certo tom de explicação, no caso caraquenho. Comecemos pelo romance brasileiro. A última sequência da primeira parte do romance narra a morte de Cabeleira, bandido da primeira geração do romance, com a qual o banditismo atravessa o primeiro ciclo de transformação (SCHWARZ, 1999, p. 166) quando começa incipientemente a se organizar em torno ao tráfico de drogas. Nessa sequência narrativa, depois de um assalto bem sucedido a uma gráfica, os malandros se “entocam” para evitar serem apreendidos em flagrante, mas Cabeleira, em contra do conselho do Dadinho, decide ir comprar maconha e volta ao bairro pobre onde todos eles moravam, Cidade de Deus, localizado na zona oeste do grande Rio de Janeiro. No caminho, ele é avistado pelo policial Touro que atira nele. A cena da morte é narrada por

um lirismo que pode ser segmentado em três partes marcadas pelo uso do termo “girassol” que correspondem ao momento prévio ao tiro, o próprio momento do tiro e o momento depois de morrer. O primeiro momento começa assim: Cabeleira atravessou a rua, ainda pensou em seguir direto pela Via Onze, mas preferiu descer pela Gabinal, entrar nos Apês, passar no Barro Vermelho. Um vento brando e frio arrepiava-lhe o corpo, a paz das ruas lhe causou temor [...]. Os girassóis dispostos nos jardins, o pião nas mãos das crianças, os carros que passavam na Edgar Werneck, [...] A qualidade da paz era superlativa também na rua do Meio e fazia crescer aquele temor, temor do nada. E o que é o nada? (grifos meus) (LINS, 1997, p. 203).

Seguido, continua o momento do tiro: O vento mais nervoso, o sol mais quente, o passo mais forte, [...] o silêncio inoperante, os piões rodando, os girassóis vergando-se, os carros mais rápidos e a voz de Touro agitando tudo: - Deita no chão, vagabundo! [...] Ao contrário do que esperava Touro, uma tranquilidade sem sentido estabeleceu-se em sua consciência, um sorriso quase abstrato retratava a paz que nunca sentira [...] O que é a paz? [...] Mas pode realmente haver paz plena para quem o viver fora sempre remexer-se no poço da miséria? (grifos meus) (LINS, 1997, p. 203).

E finalmente o corpo deita devagar no chão: Talvez a paz estivesse no voo dos passarinhos, na observação da sutileza dos girassóis vergando-se nos jardins, nos piões rodando no chão, no braço do rio sempre saindo e sempre voltando, no frio ameno do outono e no vento em forma de brisa. [...] Mas pode alguém enxergar o belo com olhos obtusos pela falta de quase tudo de que o humano carece? [...] [T]inha só de viver aquela vida que viveu sem nenhum motivo que o levasse a uma atitude parnasiana naquele universo escrito por linhas tão marginais (grifos meus) (LINS, 1997, p. 203).

A estrutura do tripla “girassol” integra, por um lado, o sujeito e o espaço urbano das ruas, e por outro, o lirismo e a violência (NAGIB, 2003, p. 184), todo o que parece encontrar a medida da significação na relação entre espaço urbano e exclusão social. No primeiro momento, o trânsito pelas ruas e lugares de Cidade de Deus (a Via Onze, a Estrada do Gabinal, a Rua Edgar Werneck, a Rua do Meio, os apartamentos e o Barro Vermelho) são as referências exteriores ao sujeito marginalizado apresentadas junto com seus pensamentos de medo, o que revela uma intimidade individual que humaniza o bandido como pessoa. As referencias espaciais são ainda qualificadas pelo clima-tempo e o entorno ambiental (o vento outonal, as flores, o brinquedo e os veículos circulantes) mostrando por contraste como essa “paz” “outonal” de “lugar pobre” causa paradoxalmente o medo do malandro que o narrador torna existencial. Depois do segundo momento, em que o policial Touro mata Cabeleira, no terceiro momento, o medo do ser

vivo na paz cede para a tranquilidade do personagem que, uma vez morto, se abre para os questionamentos do narrador em linguagem lírica sobre a situação de violência e supervivência no espaço do excluído social que, narrativamente, concluem com a morte como única libertação à vida miserável. O romance visibiliza, assim, os espaços sócio-econômicos invisíveis para a ordem da ideologia demográfica carioca construída na Zona Sul. Na passagem estudada, a escrita parece oscilar, de forma ambivalente, entre a violência urbana e a poesia, ou seja, entre o assassinato do bandido marginalizado pela autoridade policial corrupta e um instrumento da hegemonia cultural das classes abastadas. Roberto Schwarz (199, p. 167) sugere que enquanto o romance estetiza a violência como bem cultural massivo, ao mesmo tempo constitui uma denúncia engajada dado que utiliza as ferramentas da cultura literária para fazer conhecer ao público leitor sobre o mundo “inculto” da violência. Passemos ao romance venezuelano. No capítulo “Entre as favelas do oeste e as mansões de leste”, na primeira metade do primeiro dos dois volumes do romance, se narra o trabalho de uma jornalista, a personagem Mary Bastidas, que cobre a massacre do Puente Llaguno (ponte localizada muito próxima do palácio de governo) ocorrida em Caracas durante o Golpe de Estado de abril de 2002 na Venezuela que destituiu o presente Chávez por aproximadamente 48 horas. Nesse evento da história recente, 19 pessoas, divididas entre manifestantes opositores e chavistas, foram assassinados pela polícia militar controlada pelo prefeito opositor e por franco-atiradores avistados mas não-identificados, em circunstâncias até hoje não esclarecidas, o que aconteceu no centro da capital na ocasião de passeatas dos dois bandos: a favor de Chávez e a favor da sua destituição. Voltando ao romance, depois de visitar o lugar do crime e interrogar um policial, enquanto Mary se desloca de metro para ir até o apartamento na economicamente abastada zona leste onde mora com os pais cuja origem fora popular, ela também autoquestiona sua contribuição no processo político chavista através do ensino do materialismo dialético aos movimentos de base da classe pobre cuja vida de exclusão social e violência ela não conhece. Mas Mary reflete principalmente sobre a discrepância entre a linha editorial opositora do jornal que incrimina os manifestantes chavistas pelas mortes, por um lado e por outro, a observação da cena material do crime que parece negar

essa hipótese midiática, embora ela tampouco possa demonstrar a falsidade da linha editorial que é reiterada sem cessar nas imagens editadas e manipuladas dos jornais televisivos. O narrador nos explica que a interpretação dos fatos fica comprometida e para isso segue o raciocínio da jornalista: Mary subiu pela rua [a Avenida Baralt que atravessa a ponte] até encontrar os vestígios de uma troca de tiros, possivelmente entre dois grupos opostos. Era difícil interpretar as causas da morte em um país como a Venezuela [...]. Aqueles responsáveis de esclarecer os fatos, os juízes e as delegacias de pesquisa, se dividiam como um mar diante do Moisés histórico: havia que defender seu banda de saqueadores e irresponsáveis enquanto levantava o dedo acusador aos do outro bando. Não produziríamos explicações complexas, não haveria ponte de cordura para reconciliar aos cidadãos em pé de guerra. O aparato venezuelano era uma gato perseguindo seu rabo. A mídia acusava o governo, o governo acusava a mídia e os cidadãos encolerizados se gritavam e desafiavam mutuamente (ULIVE, 2010, e-book).

Como o cidadão venezuelano contemporâneo, Mary fica frustrada com a confusão interpretativa derivada do binarismo da retórica política, mas a angústia por interpretar as causas da massacre por parte da jornalista está mais precisamente na interligação entre a mídia e as forças políticas. Lemos: Observou o cursor intermitente na página digital do word pestanejando ao ritmo do tempo que esgotava para o governo convalescente. O locutor anunciou fervorosamente que o Presidente seria apresado e julgado pelo alto mando militar. A televisão explicava às pressas que o Presidente tinha violado os direitos humanos e que seria deposto do seu cargo. [...] Mary se perguntou como o governo podia ter sido tão lerdo. Com o controle de boa parte da milícia e horas de vantagem antes de que os manifestantes de oposição caminharam entre Chuao [bairro no leste] e a Ponte Llaguno [no centro], era surpreendente que tivessem jogado uma armadilha ao governo de tal magnitude, chegando a tirar do ar o canal estatal e a impor sua interpretação dos fatos. O cinzeiro ficou cheio de guimba esmagada enquanto Mary navegava em um mar de desacertos, dando pauladas de cego em uma folha virgem onde já não sabia o que dizer [...]. Foi então quando Mary achou o filão que iria explorar (ULIVE, 2010, e-book).

Por um lado, como dito acima, o narrador explica com cuidado o dilema de identidade de classe da jornalista (classe média com sensibilidade social) e ao mesmo tempo critica, na primeira citação, a lógica de oposição entre os bandos políticos. Por outro, com a situação de golpe onde o governo e seu canal estão “fora do ar”, na segunda citação, o cerco mediático fecha toda interpretação da massacre julgando, qual tribunal, como os culpáveis notórios Chávez e seus seguidores, assim segurando o monopólio sobre a verdade noticiosa que também age como poder judiciário de facto. Porém, as explicações do narrador sobre as reflexões de Mary põem em xeque a versão unilateral —

que transformava o golpe em governo de transição — através da identidade social ambivalente da jornalista e a sua vacilação em escrever o artigo encomendado dentro dessa linha editorial. O romance oferece, assim, uma formulação explícita e crítica à lógica binária como problema que precede e define, então, o conflito entre as forças políticas propriamente que, por sua vez, opera exacerbando a rixa partidarista até a violência. Na passagem estudada, a atitude crítica da jornalista aponta, partindo das explicações de um narrador tão crítico quanto ambivalente, à dificuldade de superar o binarismo dos políticos e da mídia para reconhecer a complementariedade dos dois bandos e, ainda, a heterogeneidade dos posicionamentos políticos da cidadania, como acontece na prática. Mas o sujeito crítico consegue superar a oposição falsa entre os bandos políticos através do ato da escrita jornalística, o que pode, também, ser aplicado ao próprio romance: em dois volumes, sub-titulados Yin e Yang, o ato da escrita romanesca é libertação literária da lógica binária política que ensaia a complementariedade social. Concluindo, a análise textual dos personagens, o carioca Cabeleira e a caraquenha Mary Bastidas, que transitam o espaço urbano, mostra a desigualdade social e a violência brutal que indutivamente conduzem a uma crítica do Estado. No caso brasileiro, fazer visível a demografia do abandono no mundo social fechado de Cidade de Deus (SCHWARZ, 1999, p. 166) delineia o estado ausente segregacionista, enquanto que no caso venezuelano, romper o binarismo entre governo e oposição na concorrência pela interpretação delineia o estado conspirador. Nesse sentido, a escolha da vida nacional como tema de romance no tempo contemporâneo parece apontar a um novo tipo de literatura nacional de traços particulares de realismo simultaneamente devidos tanto à história latino-americana, com sua herança da escravidão e o latifúndio, quanto à história da sua literatura, com suas idealizações utópicas e nacionalistas provenientes do distintos discursos de nação que hoje fazem seu bicentenário. Por isso, talvez seja possível pensar nesses textos como romances latino-americanos do fracasso nacional que trazem à memória aquela promessa constitucional de emancipação social para os segmentos marginalizados, por tanto tempo adiada, e ainda hoje não concretizada. Referências

CÂNDIDO, ANTÔNIO. A nova narrativa. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989. LINS, Paulo. Cidade de Deus. São Paulo: Cia das Letras, 1997. NAGIB, Lúcia. A língua da bala. Realismo e violência em Cidade de Deus. Novos Estudos CEBRAP, 67, pp. 181-191, nov. 2003. PEREIRA, Helena Bonito couto. Narrativas brasileiras no século XXI – tradição e renovação. Disponível em: . Acesso em 05 mai 2015. SCHWARZ, Roberto. Cidade de Deus. Sequências brasileiras. 1999. ULIVE-SCHNELL, Vicente. Yo maté a Simón Bolívar. [S.l.]: Masa, 2010.

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