LITERATURA FEMININA – UMA LITERATURA DE RESISTÊNCIA

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(BARRENO, Maria Isabel. HORTA, Maria Teresa. COSTA, Maria Velho., 1975)

(BOURDIEU, Pierre. 2012. P.30)
(BOURDIEU, Pierre. 2012. P.54)
(BOURDIEU, Pierre. 2012. P. 32)
(BARRENO, Maria Isabel. HORTA, Maria Teresa. COSTA, Maria Velho., 1975)
(Almeida, 2008).
(Almeida, 2008)

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS




LITERATURA FEMININA – UMA LITERATURA DE RESISTÊNCIA





Maria Izabella Souza De Lima






Docente: Tatiana Pequeno







Niterói, Julho de 2016


Literatura Feminina – Uma Literatura de Resistência
"Terminemos com mistificações e falsos pudores, quebremos até ao fundo toda água onde nos afundamos..." Novas Cartas Portuguesas (p.261)
O presente trabalho visa analisar a escrita feminina, considerada marginal, que está à procura de algum lugar, de ser alguém. É possível notar que é a marginalidade da mulher – e por consequência de sua poesia – será influência no livro Novas Cartas Portuguesas. Suas autoras, Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, construíram uma obra de ficção transgressiva, centrando a escrita em um diálogo ousado, que mostra a mulher em luta contra os valores patriarcais tradicionais na sociedade portuguesa.
O livro dá voz a mulher, um fato não muito recorrente na época, ele é enunciado pela mulher. O tempo era a busca de um discurso próprio, e as autoras em seu ato de coragem fizeram isso, denunciando as mazelas femininas nas mais de trezentas páginas do livro, que é composto ora por cartas, ora por poesias. A proposta é passar do amor (Sóror Mariana) para a história (a condição da mulher) e a política (a simpatia com todas as classes e grupos explorados) alargando a luta feminista à luta contra toda forma de opressão: " entre nós e os outros e não só intra-eus ou intra-nós" .
Ao construírem essa obra numa escrita coletiva, procuraram identificar a vil condição social da mulher portuguesa na sociedade tradicional e patriarcal da época. Ao publicarem a obra, em 1972, as autoras foram condenadas pelo regime salazarista por ofensa à moral vigente, dando origem a um processo judicial que movimentou cultural e politicamente a Europa, chegando a obter o apoio das francesas lideradas pela escritora Simone de Beauvoir de O Segundo Sexo, e participante ativa dos movimentos a consciência da formação de uma nova identidade.
Essa obra é composta por 25 cartas e 101 diferentes textos de classificação genérica (bilhetes, invocação, passamento, redação, extratos de diários). Dentre eles, encontram-se diversos poemas com nomes de mulheres, cantigas à moda medieval, dois textos albas e poemas atribuídos ao Marques de Chamilly, em Portugal.
Essas três mulheres de uma mesma geração reuniram-se e combinaram de escrever um simulacro de cartas, sem definição de autoria e sem preocupação em percorrer os caracteres essenciais que fazem parte da construção de uma mensagem. Organizando uma obra engajada em transgredir as regras sociais e políticas da época. Neste novo caminho, percebe-se que as autoras deram uma nova releitura as cartas de Sóror Mariana, ao utilizarem seus textos para promover a revolução feminina, fazendo assim uma releitura da identidade da mulher na época.
A formação da identidade feminina só adquiriu forças, após a segunda guerra mundial, segundo a leitura da obra de O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir. Por meio da força que o movimento feminista assume nesse período, a mulher se conscientiza de seu papel na sociedade e passa a construir uma nova identidade fortalecendo e alcançando níveis de igualdade em relação ao homem.
As autoras inseridas neste contexto de mudança, constroem uma obra repleta de histórias individuais de mulheres que sofrem injustiças familiares, políticas e religiosas, despertando-lhes desta forma uma consciência coletiva, descritas no texto como eco de uma luta que favorece a criação de uma nova identidade feminina.
Na união dessa escrita coletiva, as autoras dialogam com as Cartas Portuguesas atribuídas à freira Mariana Alcoforado, proporcionando um entrelaçamento entre o passado e o presente, revelando a submissão e a transgressão da mulher.
No exercício da escrita a três, as autoras subvertem o gênero epistolar tradicional. Se aproximando de uma linguagem mais interior, plena de emoções, com marcas das experiências pessoais das mulheres, o que se observa é uma tentativa constante de subverter a imagem atual da mulher, a busca por uma nova identidade, a busca pela liberdade, em circunstâncias difíceis vividas por essas mulheres no regime ditatorial que estava instaurado na época em Portugal.
Regime estabelecido quando Antonio de Oliveira Salazar assumiu, em1929, a chefia do governo. Estabeleceu-se como um sistema marcado pelo autoritarismo e pelas proibições que se estendiam aos partidos políticos, às áreas da cultura, às forças armadas e a todas as colônias e pessoas que viviam sob seu comando. Alterou-se após a Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974, uma revolução silenciosa, porém convicta da renovação e evolução da vida dos portugueses.
E foi durante esse período que o livro foi publicado, a de convir dizer que foi muito difícil achar uma editora disposta a publicar o livro das três autoras, devido à forte repressão, e o fato que a censura sempre vinha após a publicação e distribuição dos livros nas livrarias. A obra foi publicada pela editora Estúdios Cor, de propriedade da escritora Natália Correia, que aceitou correr o risco de publica-lo. É interessante informar que Natália Correia já tinha vivido – na condição de autora – experiência com a censura, inclusive no que tange ao aspecto moral de sua obra Comunicação. Livro proibido pela censura em 1959, sob o argumento de ser um livro de conteúdo sensual, libertino e falta de senso moral.
É interessante notar que a empreitada exigida pelo livro Novas Cartas Portuguesas contou com o apoio de outra mulher que embarcou nos riscos que o projeto representava, indicando a manifestação de resistência ao regime autoritário vigente em Portugal pelos escritores. Desta forma, o processo de resistência dos escritores não está só presente em seus escritos como também na solidariedade àqueles que de alguma forma sofrem repressão.
Além disso, em um momento da narrativa, surge a pergunta: Mas o que pode a literatura? Ou antes: o que podem as palavras? " (p.253). Em algumas páginas adiante, repete-se a pergunta: "o que é a literatura? E o que é esta experiência de três? Talvez mais nada do que o espremer dum furúnculo. Talvez mais nada do que o dizermos em alta voz – coragem? Necessidade? – os mals-estares, os ataques, as recusas e os medos. " (p.367). Através dessa citação percebe-se que a literatura pode ser compreendia como forma de interferência no destino coletivo da sociedade em que estavam inseridas e como um meio de transformação.
Desta forma, o livro esconde níveis de significação muito profundos, juntando modernidade e tradição. Ao estabelecer relações com as famosas cartas de Mariana Alcoforado, o texto moderno dispõe de palavras circulares que se compõem de dois tempos (passado – presente), de dois espaços (interior – exterior) e dois universos (real – imaginário). Nele as autoras criam várias gerações de "Marianas" vítimas da opressão patriarcal, da violência social, da discriminação e da injustiça. A mulher solteira é desprezada, trabalha para ganhar um salário inferior, ou a mulher transformada em objeto de consumo, vítima de seu destino biológico.
Através de sua escrita intertextual, fragmentada e totalmente livre de rótulos, as autoras revelam o processo de tomada de consciência da mulher, isto é, um processo de "desclausura".
"[...] Em salas nos queriam às três, atentas, a bordarmos os dias com muitos silêncios de hábito, muito meigas falas e atitudes. Mas tanto faz aqui ou em Beja a clausura, que a ela nos negamos, nos vamos de manso ou de arremesso súbito rasgando as vestes e montando a vida como se machos fôramos – dizem. [...]" (p.27)
Como também: "Que mulher não é freira, oferecida, abnegada, sem vida sua, afastada do mundo? Qual a mudança, na vida das mulheres, ao longo dos séculos? No tempo de tia Mariana as mulheres bordavam ou teciam ou fiavam ou cozinhavam, sujeitavam-se aos direitos de seus maridos, engravidavam, tinham abortos ou faziam-nos [...] O que mudou na vida das mulheres? Já não tecem, já não fiam, talvez porque se desenvolveram a indústria e o comércio; as mulheres bordam, cozinham, sujeitam-se aos direitos de seus maridos, engravidam, têm abortos ou fazem-nos, têm filhos, nados-mortos, nados-vivos, tratam dos filhos, morrem de parto, às vezes, em suas casas, onde apenas mudou o feitio dos móveis, das cadeiras e dos cortinados. " (p.177)
Neste trecho é possível notar o quão a mulher se sente presa no mundo que vive, enclausurada, e abnegada de seus próprios diretos, tudo legitimado pela tradição e pela cultura. Porém, está mesma mulher que se sente presa. Se questiona: Apesar de alguns avanços, o que mudou na vida das mulheres? E não consegue responder.
O amor se torna grande centro de atenções das narradoras, no entanto, elas dão um novo sentido para ele. Essa temática é bastante recorrente durante o livro. Uma passagem em questão, mostra a luta de uma mulher que no princípio do século XIX, se intitula como mulher sozinha e recusa a sujeição sentimental, como a extratos do diário de D. Maria Ana, descendente de Mariana Alcoforado.
"[...] Amor, eu só quereria na igualdade; por isso recusei marido, recusei homem. Deixarei meu diário a minha sobrinha. [...] Com Mariana sobrinha me identifico: sou mulher de palavra pesada; mulher de silêncio e diário, mulher que envelhece vivendo de esmola de seu irmão; ninguém teme mulher exposta ao amor. Mas quem aceita como saber que se difunda palavra de mulher que, ainda mais é pesada? " (p.180)
Nestes extratos vemos o discurso que afirma a escrita feminina como uma forma de transgressão, um ato de rebeldia. Mulher não escreve, a figura feminina desde a antiguidade existe para o lar, para os filhos e para o marido.
Deste modo, nos deparamos com figuras femininas marcadas referente a condicionamentos de várias ordens, maltratadas, enclausuradas, casadas à força, enganadas, exploradas e, apesar de tudo, surpreendentemente pacientes. Como no monólogo de uma mulher chamada Maria, com sua patroa. Em que a mulher pede perdão pelo desmaio em horário de trabalho, e em sua breve carta conta sua triste história. Seu marido era um bom homem, até ir para a guerra, e mudar, em algumas noites acordava sobressaltado e batia-lhe até não aguentar mais. Um dia ele chegou bêbado, e ela com fome perguntou aonde estava o dinheiro para comer, este lhe disse que ela deveria se calar, e num acesso de raiva começou a espanca-la, de modo que só parou quando seu filho pequeno lhe agarrou.
" [...] teve vergonha e abalou, deixando-me assim sem conhecimento, sozinha com a criança e voltou um mês depois, para me pedir desculpa com tão bons modos que o desculpei, o que quer que a senhora, são fraquezas que a gente tem e ao princípio tudo correu como dantes mas depois deu outra vez em beber, ter mulheres, não trabalhar e eu tive de continuar a andar a dias, pois graças a Deus não me falta onde trabalhar [...]" (p.210)
No final da carta ela reconhece que deveria ter dado ouvidos a mãe quando está lhe disse para não se casar, no entanto, do mesmo modo pensa no que pode fazer, visto que o homem pode se revoltar e fazer o que bem quer, enquanto ela tem filhos, e está presa ao marido. Reconhecendo que mesmo sofrendo não tem a quem recorrer, e muito menos com quem contar. O mesmo se repete no conto "O cárcere" na página 218.
A feira Sóror Mariana Alcoforado, serve de ponto de partida para o discurso indissociável das três autoras, funciona como o símbolo de todas as mulheres, como o arquétipo de alienação e da clausura feminina no seio da sociedade patriarcal, pois "[...] O seu diário é uma rocha; não é antes quebra de seu silêncio, único local possível para a sua palavra, mas por isso pedra. [...]" (p.179)
O estatuto da mulher no pensamento patriarcal foi sempre definido pela marginalização, pela estigmatização e pela domesticação. Dependentes, submissas, vítimas do amor ou da paixão. No decorrer do tempo, a epistolografia, gênero considerado "menor", conotado com o feminino, revelou-se um fértil espaço de interrogação e de reflexão. Também o convento funcionou como espaço de libertação, constituindo uma forma de escapar do casamento imposto pela família, ou um ambiente em que as mulheres eram enviadas quando os maridos iam viajar.
Assim, ao longo da obra é a partir da temática amorosa que se elabora a visão de um espaço feminino cuja passividade é neutralizada pela intensidade da escrita pelo cruzamento das vozes de mulheres de "palavra pesada", que impõe uma constante afirmação de identidade. Exercício que interroga incansavelmente o estatuto das mulheres através dos tempos num espaço tradicionalmente fechado.
Outra constante da escrita feminina se relaciona com a forma epistolar. Composta por mulheres e dirigida essencialmente a um público feminino, esta forma literária permite facilmente opor dois mundos: o convento e a sociedade, o espaço feminino e o universo masculino, a clausura e a aspiração de liberdade.
No livro encontramos cartas que são datadas. Estas cartas podem reunir-se em três grupo: as que são escritas pelas autoras, as que são atribuídas a Mariana Alcoforado e as suas relações (Chamilly, D. Joana de Vasconcelos, etc) e as que são assumidas por personagens contemporâneas e muitas vozes anônimas. Proporciona uma nova forma de pensar a história do poder, da propriedade e da dominação masculina.
Apesar de o livro recorrer a uma série de elementos tradicionais, a obra impõe-se como subversiva na medida em que acaba por denunciar espetacularmente o peso dessa tradição. A dimensão mais evidente da subversão se relaciona com a forma como as autoras falam abertamente de temas desde sempre ocultados. Como: o corpo e o desejo físico, a sexualidade, o prazer feminino, o fingimento enquanto forma de alimentar as ilusões masculinas, o estupro, de que é exemplo as seguintes passagens:
"[...] qual o sentido da liberdade, ou da sobrevivência, por que luta, se continuar a ser sexo de segunda ordem, à sombra da cultura do Homem, com letra grande, obrigada a serviços da manutenção do homem, último receptor das frustrações do homem, para quem o próprio erotismo, sua fictícia bandeira de libertinagem, é agressão à mulher. [...]" (p.104)
E aqui observa-se que não só se denuncia a vida da mulher, como também, o ato sexual como algo brutal e doloroso.
"E se acaso a mulher percebe a sua servidão, e a rejeita, como, a quem, identificar-se? Onde reaprender a ser, onde reinventar o modelo, o papel, a imagem, o gesto e a palavra quotidianos, a aceitação e o amor dos outros, e os sinais de aceitação e amor? Bem sei, antepassada Maria Ana, de que te queixavas, do que eras incapaz [...]" (p.255)
"Este prazer que abraço se te abraço e os teus dedos, devagar, me vão correr nos braços, nas coxas, pelos seios. – A que tontura me entrego e me demoro. Em que grito rasgado me debato e cresço, me acrescento e cresço, me enlouqueço e basto; ou não me basto e por isso te invento, reinvento, te faço, te desfaço em meu sustento. " (p.29)
"Quando entrou no quarto o homem hesitou, a olhá-la, a fixa-la no seu sono, mas logo avança, silencioso, e de manso pára junto à cama a hesitar novamente. Depois estende uma das mãos, desliza-a na curva suave do peito, na anca quente, doce, os dedos crispados a entranharem-se já nos pelos sedosos do púbis. Curva-se quando ela acorda e tapa-lhe a boca com força brutal, mantendo-a deitada, firmemente, debaixo do seu corpo agora ao comprido sobre o dela. [...] Indiferente, Mariana sente que ele sai de dentro de si, sujando-a de esperma também por fora. Depois vê-o que se levanta da cama, se veste à pressa e se vai embora, sem a olhar, todo o tempo mudo, mesmo enquanto a forçara, mudo mesmo quando a tivera, rendida, afundada naquele torpor, de onde não quer sair nunca mais, cada hora mais fundamente perdida. [...]" (p.166 p. 167)
Aqui vê-se claramente um mecanismo utilizado durante muito tempo pelos homens que é usar a relação sexual como ato de poder e dominação. Conforme pode-se ler no livro "A Dominação Masculina" de Pierre Bourdieu. "[...] o ato sexual é concebido pelos homens como uma forma de dominação, de apropriação, de 'posse'. " (Bourdieu, 2012). A relação, ultrapassa o nível de algo puramente carnal, e a fins de prazer. Ela chega em um ponto em que se é utilizada para auto-afirmar a posse sobre a pessoa, que neste momento é vista como mero objeto.
O mesmo acontece no "Texto sobre a solidão" narrado por Mónica o ato de relação com seu marido, que não consegue ou não quer respeitar o desejo da mulher em não ter o ato, e que mesmo quando enxerga a repulsa no olhar da mesma, não para, ao contrário quando ela grita pedindo que ele vá com calma. Ele se excita, e recomeça o ato de modo bruto e violento. A história se encerra da seguinte forma:
"Mónica esperou que ele adormecesse. Escutou-lhe o respirar, atenta, depois, lentamente, cuidando cada movimento, agarrou uma almofada, tapou-lhe a cara e com toda a sua força desesperada apoiou-se nela defendendo-se dos convulsivos braços do homem; [...] e assim estiveram unidos até deixar de o sentir mover e mesmo, desse modo, horas estirada no corpo já frio, a dormir, descansando a cabeça na almofada em cima da cara dele. " (p.248)
Provoca diversas discussões entre a relação homem e mulher, introduzindo um debate sobre questões tabu como o adultério e o aborto, ou propondo ironicamente uma definição das "tarefas" femininas, apresentadas sob forma de um exercício escolar, como a "redação de uma rapariga de nome Maria Adélia nascida no Carvalhal e educada num asilo religioso em Beja":
" As tarefas do homem são aquelas de coragem, da força e do mando. Quer dizer: serem presidentes, generais, serem tesoureiros, serem futebolistas e juízes, etc., etc. [...]. Depois há as tarefas das mulheres, que acima de todas está a de ter filhos, guardá-los e tratá-los nas doenças, dar-lhes a educação em casa e o carinho; é também tarefa da mulher ser professora e mais coisas, tal como costureira, cabeleireira, [...] Há também mulheres médicas, engenheiras, advogadas, etc., mas o meu pai diz que é melhor a gente não se fiar nelas que as mulheres foram feitas para a vida da casa, que é uma tarefa muito bonita e dá muito gosto ter tudo limpo e arrumado para quando chegar o nosso marido ele poder descansar do trabalho do dia que foi tanto, a fim de arranjar dinheiro para nos sustentar e aos filhos." (p.289)
Ainda sim, neste mundo de tarefas bem delimitadas, inscreve-se, todavia, uma retórica da emancipação, presente ao longo de todo o livro, e é capaz de conduzir a um equacionamento negativo do amor, entendendo como cristalização dos sentidos. E por que não, um modo de prendê-la, de domina-la.
"Me afasto – repito – de tudo o que me exige, me prende, ou simplesmente mesmo me pretende a atenção, o riso, a disponibilidade. Como disponível de mim ou de mim livre? " (p.91)
O discurso de Novas Cartas Portuguesas corresponde assim em exercício entendido como instrumento político, como revisitação da ordem simbólica que governa a sociedade, através da noção de "resistência feminina" que aponta para duas atitudes fundamentais: uma forte mobilização no sentido de conquistar direitos cívicos e liberdade de expressão; tenta promover uma relação feminina com o mundo, através do exercício de uma escrita ligada à condição das mulheres. Que passa pelo estatuto de tomada de consciência da mulher e depois, pela desmontagem dos mecanismos de dominação que persiste ainda nas mentalidades dos nossos dias.
Como pensar que tudo que faz e menor, e mal feito, há uma passagem no livro de Bourdieu, em que a mulher diz que se algum homem lhe disser que não pode carregar uma mala, rapidamente ela não consegue fazer mais aquilo, e isto passa para outros ambientes. Neste mesmo livro, Bourdieu diz que tudo isso ocorre por causa do que ele chama de "violência simbólica" que é compreendido como o poder que impõe significações, impondo-as como legítimas, que é justamente a manutenção de um poder que se mascara nas relações e se infiltra no pensamento e na concepção de mundo do dominado.
"[...] Pelo fato de o fundamento da violência simbólica residir não nas consciências mistificadas que bastaria esclarecer, e sim nas disposições modeladas pelas estruturas de dominação que as produzem, só se pode chegar a uma ruptura da relação de cumplicidade que as vítimas de dominação simbólica têm com os dominantes com uma transformação radical das condições sociais de produção das tendências que levam os dominados a adotar, sobre os dominantes e sobre si mesmos, o próprio ponto de vista dos dominantes." ( (Bourdieu, 2012)
Deste modo, se dar conta do sistema de dominação é o princípio para toda revolução que o livro provoca, que busca através das cartas desmitificar atos que podem ser considerados normais, mais do que isso, denuncia-los. Como por exemplo, essa passagem, onde a mulher se dá conta de seu destino.
" [...] sobre a mulher veio a cair, além de todas as angústias vivenciais e de todas as repressões sociais que são comuns ao homem e à mulher, sobre a mulher veio cair a angústia do seu destino biológico, feito drama seu e não mais experiência dramática da espécie, e veio cair a repressão de que seu destino biológico feito drama individual é instrumento. [...] no amor a mulher está no extremo do angustiante, repressivo e solitário destino que a sociedade lhe inventou. [...]" (p. 264)
Quando Bourdieu escreve que "A pior humilhação, para um homem, consiste em ser transformado em mulher. [...] 'o que significa o fato de estar sem cessar consciente de seu corpo, de estar sempre exposto à humilhação ou ao ridículo e de encontrar um reconforto nas tarefas domésticas ou na conversa fiada com os amigos'. " (Bourdieu, 2012)
Percebe-se que se assemelha, muito há uma passagem do livro que diz que a vida da mulher se assemelha a um parto, que se caracteriza por ser solitário e doloroso, escondido posto para o lado do olhar dos outros. (p.179) Significa dizer que a vida de uma mulher não é fácil, e que o homem não gostaria de estar na sua posição, já que do ponto de vista dominante, a posição ser-mulher é malvista e subalterna.
As cenas de masturbação, a evocação aos orgasmos ou do incesto inserem uma visão diferente do feminino e perturbam inegavelmente os códigos morais vigente nos anos 70, ao mesmo tempo, ousam ao inscrever a mulher como sujeito, como um ser ao qual deve ser dada a palavra.
"[...]. Devagar meu amor, devagar o nosso orgasmo que contornas ou eu contorno com a língua. Devagar te perco de súbito, te esqueço, não sendo tudo mais que uma enorme vaga de vertigem. E a noite devora, vigilante, o quarto onde Mariana está estendida. O suor acamado, colado à pele lisa, os dedos esquecidos no clitóris, entorpecido, dormente. A paz voltou-lhe ao corpo distendido, todavia, como sempre, pronto a reacender-se, caso queira, com o corpo, Mariana se comprazer ainda. " (p.50)
" [...] sendo assim uma atividade política de resistência e um acontecimento que produz singularidades, ao colocar em xeque as convicções e os hábitos, não só linguageiros, mas relacionados aos modos de existir. [...]"
Ainda é possível fazer um paralelo com o filme Vidas Cruzadas (The Help), adaptação de um dos livros mais comentados dos últimos anos. The Help, no Brasil, intitulado A Resposta, é o romance de estreia da escritora norte-americana Kathryn Stockett. O livro levou cinco anos para se escrito e foi rejeitado por vários agentes literários. Depois de publicado, virou um grande sucesso. A obra esteve por mais de 80 semanas na lista do New York Times, mais de 70 semanas na lista da Publishers Weekly, teve mais de cinco milhões de exemplares vendidos em todo o mundo e foi considerado um dos melhores livros de 2009.
A adaptação para o cinema é estralada por Emma Stone como Skeeter, a indicada ao Oscar Viola Davis como Aibileen e Octavia Spencer como Minny – três mulheres muito diferentes e extraordinárias que vivem em Mississipi nos anos 60 e que constroem uma improvável amizade em torno de um projeto secreto de escrita, que quebra todas as regras sociais e coloca todas elas em risco. Com sua improvável aliança, uma irmandade surge e inspira outras a terem coragem para transgredir as regras que são impostas, mesmo que signifique por uma cidade em confronto com as mudanças nos tempos.
Dar voz à aquelas mulheres, que além de empregadas eram negras num período de racismo pungente é um ato de ousadia e rebeldia. Um claro ato de valorização da subjetividade delas. E a Skeeter assim, como a autoras de Novas Cartas, tinha ciência do perigo que corria ao escrever sobre a vida das empregadas, que eram praticamente invisíveis e descartáveis naquela época.
Dar o poder de falar, o poder de contar suas histórias e com isso, serem elas mesmas, foi o mesmo que dizer que elas poderiam ser livres, que tinham escolha. Um ato de tomada de consciência, onde elas se deram conta que a vida que levavam poderia ser melhor, que do jeito que estava não poderia continuar. No entanto, no filme o livro delas é publicado anonimamente para que elas não sofram represálias por parte de suas patroas. Que assim, como o livro das autoras portuguesas tem o intuito de retratar as mazelas do sistema que Aibileen e Manny estavam inseridas.
Dessa maneira, o filme retrata de maneira emocionante o momento que Aibileen e Manny recebem o livro impresso e encadernado, e um pouco depois o sucesso que fazem. É importante ressaltar, que mesmo com muito sucesso, alguns hábitos denunciados nos livros demoraram anos para acabar, assim como nos dias de hoje. O mesmo acontece com Novas Cartas Portuguesas, que apesar de denunciar o infortúnio feminino, e que por isso algumas coisas foram melhorados, se nota que há muito que ser feito ainda.
E assim, Novas Cartas Portuguesas, se constrói como um livro que se posiciona frente a essas repressões, que resiste aos mecanismos de controle. Que visa algo novo, mudança de um estado. Funciona também como uma revelação e uma condenação da condição feminina no sistema patriarcal.
A escrita feminina constituída nesse livro, é a emergência de uma voz diferente, que veicula uma ideia de mudança que passa pela invenção de novos modelos, pela construção incansável de uma nova identidade. No exercício desta mudança, o livro apresenta o sujeito feminino consciente da luta, e decidido a buscar e estabelecer uma nova identidade.
A escrita coletiva de Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa mostra a preocupação de mostrar a mulher evoluindo historicamente, que tem em si o desejo de lutar pelos seus direitos e que traça novos caminhos na construção de sua própria identidade. E a medida que a mulher toma consciência de que ela mesma pode se igualar ao homem, em diferentes aspectos da vida, esta começa a denunciar essa opressão. E essa ruptura com o silêncio, faz nascer uma consciência de liberdade nas mulheres, que se erguem, e reivindicam o direito de serem ouvidas.
"[...] a liberdade é situada, conquistada, ela é fruto de uma ação. [...]. Ela passa a existir no próprio ato. [...] a liberdade se manifesta quando quebramos, mesmo que por um momento ínfimo, nossos padrões comportamentais e mentais"
As autoras de Novas Cartas Portuguesas trazem textos que denotam a situação desigual, de injustiça do trabalho da mulher, pois a dupla jornada de trabalho (casa/trabalho) não é valorizada, e não é vista como uma forma de libertação. Pois mesmo dividindo o sustento da casa com o marido, ele ainda é visto como o "senhor e proprietário". E essa luta de classe é também um processo de conscientização, que ao longo do tempo tem auxiliado a mulher a rever sua condição na sociedade.
E nesta obra, através da linguagem do corpo, todas as sensações da mulher são descritas, apresentando uma ruptura com a submissão, e mais uma vez transgredindo os valores morais da época, em que somente o homem escrevia textos com algum teor "erótico". No entanto, o que se nota, é que o corpo feminino é visto como vida, fertilidade, e principalmente como descoberta.
O diálogo com as cartas atribuídas a Sóror Mariana Alcoforado privilegia a retomada do tempo presente e passado, trazendo a tona a mulher cercada por muro institucionais que rompe todas as regras em nome de viver um amor.
Sendo assim, as autoras consolidam a transgressão a ousadia das mulheres como símbolo de libertação e emancipação feminina. Através da linguagem, das cartas, dos depoimentos, fazem de seu livro um instrumento de busca pela liberdade. Uma obra de grande expressão feminina, que numa dimensão histórico-cultural, transformou o engajamento político em um verdadeiro trabalho de constituição do sujeito feminino.
"As palavras também servem para dizer e consolar ou sofrer. Essas não são uma a uma, como as que eu escrevi antes, são em frases, isto é, todas de seguida. [...]" (p.295)




Referências
ALMEIDA, L. P. Literatura e Subjetividade: Reflexões sobre a linguagem e o exercício da liberdade. Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura. Universidade Federal da Bahia. Fonte: http://www.cult.ufba.br/enecult2008/14418.pdf
BARRENO, M. I. HORTA, M. T. COSTA, M. V. Novas Cartas Portuguesas. São Paulo: Círculo do Livro S.A, 1974
BOURDIEU, P. A Dominação Masculina. Maria Helena Kühner. Trad.11 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
STEINEM, Glória. Memórias da Transgressão: momentos da história da mulher do século XX. Claudia Costa Guimarães. Trad. 2 ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997.




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