Literatura marginal e os processos de reprodução e figuração sociais

June 7, 2017 | Autor: Andrezza Richter | Categoria: Sociology, Literature, Literatura Marginal
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Literatura marginal e os processos de reprodução e figuração sociais

Andrezza Mieko Richter Lourenção São Paulo, 2015 Podemos pensar o funcionamento da ordem social por meio de suas rupturas e continuidades que ocorrem por meio da reprodução e da figuração social. É fato que os processos sociais possuem uma estrutura que opera possibilitando as continuidades e previsibilidades. Porém, outro processo que é tão forte quanto o de reprodução é o de figuração, que é onde estão expostos os embates e as contradições da ordem social. Assim, pensaremos em como esses processos se desenvolvem no âmbito da arte da chamada “LITERATURA MARGINAL”. Os movimentos literários e de poesia no Brasil sempre foram uma atividade principalmente voltada às elites e classes intelectualizadas. Vide a palavra “sarau”, que remete às festas aristocráticas do período imperial. No século XIX, esses encontros eram restritos a um público privilegiado que seguia à risca os modos de vida dos salões franceses. No entanto, a partir dos anos 70 do séc. XX surgiu no Brasil um movimento literário chamado literatura marginal, proposto por grupos de classe média que buscavam uma autonomia na editoração e publicação de suas obras. Já no final dos anos 80 e, principalmente nos anos 90 e 2000, começaram a brotar iniciativas nas periferias em relação a saraus e reuniões para criação e declamação poética e se contrapunham aos saraus burgueses e até mesmo à literatura marginal dos anos 70. Esses movimentos periféricos fizeram uso do termo “literatura marginal” para exaltar a condição de margem (social e literal) em que esses grupos se encontravam. Esses movimentos e encontros de poesia romperam paradigmas na estética da periferia, se estendendo para além desta. Houve um empoderamento dos grupos que pertenciam à periferia no momento em que surgiu uma literatura que falasse “da periferia, pela própria periferia” e não mais “das elites, sobre a periferia”.

Gosto do termo literatura periférica porque diz de onde viemos. Antigamente falavam pela gente. Hoje, falamos por nós mesmos [...] Essa é a literatura dos pobres e oprimidos, o povo se assanhando a contar sua própria história. Não é uma literatura melhor que a acadêmica – muito pelo contrário. Mas é carregada de emoção e verdade” - Sergio Vaz

Houve uma apropriação do fazer poético para expressar a vida “marginal”, fazer este antes utilizado principalmente pelas classes altas para expressar as próprias práticas inerentes a essas classes. Nessa apropriação, recusou-se os valores burgueses e, por meio da poesia, buscou-se a própria identidade da periferia, lançando mão de elementos próximos da realidade das periferias brasileiras, como a cultura do hip-hop, do rap, do funk e do samba. Além da exaltação da própria realidade vivenciada: de um lado, questões como o preconceito racial, a desigualdade social, a violência e as drogas; e de outro lado o sentimento de coletividade, resistência e luta cotidiana muito presente na vida destes grupos. Um exemplo da utilização de recursos negativos transformados em arte, de modo a se constituírem até mesmo como incentivo à aproximação com a coletivo e o fazer poético é um projeto de micronarrativas do rapper Renan Inquérito, onde suas poesias com temas relacionados com a vida na favela são distribuídas dentro de embalagens usualmente utilizadas em drogas. O projeto se chama: “pinos poéticos” e tem como objetivo a compreensão e aproximação dos jovens com a arte. É possível verificar nesse movimento conduzido por grupos na periferia frente aos historicamente legitimados saraus burgueses, a figuração social deste processo em andamento. A literatura marginal se constituiu assim perante a literatura tradicional como maneira de distinção dos dois grupos que as formam. Foi importante estabelecer essa oposição para que a periferia tenha um espaço e uma referência para pensar as próprias diretrizes e a própria identidade. É através de saber “o que são os outros”, que se descobre “o que não somos nós” e, por conseguinte, “o que somos, então”. É neste choque que ambas as identidades são construídas e fortalecidas. Esta é uma interação social amplamente estudada e aprofundada pelo sociólogo alemão Norbert Elias, principalmente em seu estudo sobre a ordem social como reprodução ou figuração e o uso dos conceitos de outsiders e estabelecidos. Sobre a figuração, este conceito surgiu “para superar a confusa polarização das teorias sociológicas em teorias que colocavam o ‘individuo’ acima das sociedades e outras que colocavam a ‘sociedade’ acima do individuo” (ELIAS, 2001 p.148). Ademais, a figuração expressa que a sociedade se constitui pela interdependência entre indivíduos e grupos, e esta interdependência pode supor o conflito ou a solidariedade. Por meio da figuração que se estabelecem jogos de poder e de força social.

Pode-se então supor que a posição dos mais fracos, sobretudo quando estes se encontram em condições de lutar pela melhoria de sua situação, cria uma maior disposição para perceber as diferenças de poder (ELIAS, 2001 p.157) Quanto aos outsiders e os estabelecidos, o estudo de Elias se fez em uma vila onde os moradores que estavam ali há mais tempo eram os estabelecidos, pois eram os portadores da identidade dominante e consideravam-se mais legítimos na cidade, enquanto os outsiders eram os vizinhos de outro bairro cuja condição social era a mesma e que, no entanto, eram considerados menos legítimos por terem se mudado há menos tempo para a cidade. O mesmo acontece – e aconteceu mais fortemente no início do movimento – com os grupos literários periféricos, que foram estigmatizados como grupos outsiders na poesia e na literatura. E foi justamente neste enquadramento desses grupos como à margem da “verdadeira poesia” que eles incorporaram esta denominação de maneira a torná-la um impulso e uma marca identificadora ao próprio movimento. Para se pensar no estigma, há uma série de reflexões de Erving Goffmann, que analisa como as normas sociais são incorporadas e como a não-sujeição dessas normas gera constrangimento e o estigma. No entanto, ao contrário do que afirma Goffmann em relação ao estigma - onde o estigmatizado inserido nas normas e convenções sociais se esforça para esconder ou contornar o estigma e se enquadrar na ordem social - os grupos de poesia da periferia se apropriaram do estigma e se fortaleceram através dele e da distinção que ele propiciou. Norbert Elias, em seu livro “O processo Civilizador” mostra de que maneira se constituíram os conceitos Civilisation francês e o Kultur alemão. Ele mostra como nos séculos XVII e XVIII havia uma nítida divisão entre a nobreza e a classe média na Alemanha, onde a aristocracia (classe dominante) negava as criações alemãs como a língua, as artes, a literatura, a filosofia, e reivindicava para si os modos de vida das sociedades de corte francesas, de Luís XIV. A sociedade de corte alemã estabelecia um conceito de civilização proveniente da França e recusava a participação da intelligentsia alemã burguesa (intelectual). Deste modo, os pensadores alemães estavam isolados na sociedade alemã, e não eram reconhecidos pela aristocracia de seu país. Por causa disso, estabeleceram para si a noção de Kultur em oposição à Civilisation francesa, afirmando que este tem base nas aparências e boas maneiras, enquanto, por meio do Kultur, os pensadores alemães buscavam cultivar o espírito de modo profundo por meio de uma educação sólida e de virtudes.

Por um lado, superficialidade cerimônia, conversas formais; por outro, vida interior, profundidade de sentimento, absorção em livros, desenvolvimento da personalidade individual (ELIAS, 1990 p. 37)

Nesta oposição, a intelligentsia alemã pôde se fortalecer, juntamente com o conceito de Kultur, que se transformou posteriormente no símbolo de identidade alemão e se consolidou como a antítese da civilisation francesa.

Assim, através dos exemplos dos movimentos literários na periferia, e do movimento da intelligentsia alemã, é possível localizar uma analogia entre os dois casos, que se estende ao se pensar o funcionamento da ordem social como um todo. Nos dois casos, a distinção se faz necessária como uma marca identitária e de resistência dos grupos, além de mostrar a existência do conflito e de como este é o que figura e promove a manutenção e existência da sociedade.

DA CONDIÇÃO EXISTENCIAL HUMANA OU PUTA QUE PARIU PRECISO TRAMPAR DESPERTADOR DESPERTA

PRECISO OSTRAR MINHA COMPETÊNCIA

ESTADO DE ALERTA

PARA OS INCOMPETENTES

SONHOS RESPINGAM NO TRAVESSEIRO

ESSA GENTE...

CORPO SEM GPS

QUE DIZ, MANDA

BREVEMENTE ADORMECE

E DESMANDA

E SE VAI ARRASTANDO PARA O CHUVEIRO

LEI MAIOR: OFERTA E DEMANDA

POR DINHEIRO? MUITO POUCO, NÃO COMPENSA

MAS Ó! SOZINHO NÃO ANDA

POUCO OU MUITO, A GENTE NEM PENSA

PRECISA DAS MINHAS PERNAS E BRAÇOS

TEM A VITRINE E A DISPENSA

NUNCA DA MINHA OPINIÃO

E NO MEIO, UMA FERIDA

E GOSTO DO QUE FAÇO

ALGUNS CHAMAM DE VIDA

ME REALIZO

É ENORME, IMENSA

TEM EFEITO DE ABRAÇO

TODO DIA A GENTE FAZ TUDO IGUAL

SABOR DE SORRISO

WORK SONG BY CHICO IN COTIDIANO

UNIVERSO EM CONTRADIÇÃO

QUER FICAR RICO MEU MANO?

CONTRA A ADIÇÃO

ENTÃO CUIDADO

DE QUEM NOS SUBTRAI

O CAMINHO INDICADO

BABY NO CRY

PODE SER UM ENGANO

BABILÔNIA CAI

MAS NÃO ME ATREVO

A VIDA SE ESVAI

QUEM SE ATREVE?

AI, AI, AI

A LUTA NÃO É UM TREVO

POR QUE RECLAMO?

O SENTIDO É A GREVE

É NECESSÁRIO?

JUSTIÇA? É O DIREITO À PREGUIÇA!

É O QUE EU AMO

VIRAR PARA O LADO

E AINDA RECEBO SALÁRIO

FAZER AMOR DEMORADO

TENHO UM EMPREGO, UM CARRO, UMA CASA

TOMAR CAFÉ E ASSISTIR DESENHO ANIMADO

E A SENSAÇÃO DE QUE UM DIA EU TIVE ASAS.

ATRASADO? ME PERDI NOS DEVANEIOS COMI O PÃO SEM RECHEIO, MAS COM RECEIO POIS ESTOU DE SACO CHEIO TÔ UM CACO, NÃO CREIO QUE ESSE SEJA NOSSO PADRÃO DE EXCELÊNCIA

MANO

JR

JORNADA DE OITO: DEPRIMENTE

Júnior)

(Antonio

de

Azevedo

Referências Bibliográficas

ELIAS, Norbert. O processo Civilizador. Zahar: Rio de Janeiro, 1990 ELIAS, Norbert. Norbert Elias por ele mesmo. Zahar: Rio de Janeiro, 2001. JÚNIOR, Mano. Da Condição Existencial Humana Ou Puta Que Pariu Preciso Trampar. Casa Rosa Editora: O Marginal #2. São José do Rio Preto, outubro/2015

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