Livre iniciativa, livre concorrência e intervenção do Estado no domínio econômico

June 21, 2017 | Autor: Rogério Abreu | Categoria: Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Econômico
Share Embed


Descrição do Produto

LIVRE INICIATIVA, LIVRE CONCORRÊNCIA E INTERVENÇÃO DO ESTADO NO DOMÍNIO ECONÔMICO

Rogério Roberto Gonçalves de Abreu1

1. INTRODUÇÃO: O JULGAMENTO DO RE 422941 – DESTILARIA ALTO ALEGRE X UNIÃO.

No final do ano de 2005, o Supremo Tribunal Federal terminou o julgamento de um interessante caso que tratava da possibilidade de se responsabilizar a União por danos causados em razão da prática de atos de intervenção no domínio econômico. Tratava-se do Recurso Extraordinário n. 422941, interposto pela Destilaria Alto Alegre contra acórdão do Superior Tribunal de Justiça que deu provimento a recurso especial da União contra decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região. A Destilaria Alto Alegre promoveu uma ação de indenização em face da União, pedindo a reparação dos prejuízos que teria suportado em razão da fixação de preços do setor sucro-alcooleiro, por ato administrativo federal, em desacordo com os valores apurados e sugeridos pelo antigo Instituto do Açúcar e do Álcool – IAA. A promovente sustentou que o tabelamento feito pela União em desacordo com os critérios técnicos da apuração pelo IAA lhe teria causado danos indenizáveis, pedindo assim a respectiva reparação. O pedido foi julgado procedente em primeiro grau e a decisão foi mantida em grau de recurso no tribunal. A União interpôs recurso especial e, dando-lhe provimento, o Superior Tribunal de Justiça reformou o acórdão do TRF para afastar a condenação. O STJ reconheceu que a União teria agido 1

Mestre em direito econômico pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Especialista em direito fiscal e tributário pela Universidade Cândido Mendes (UCAM/RJ). Juiz federal substituto na Paraíba. Professor de direito penal do Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ).

2 dentro das prerrogativas que possui para intervir no domínio econômico, podendo legitimamente fixar os preços do setor sucro-alcooleiro em valores inferiores aos sugeridos pelo IAA. Do exercício legítimo da intervenção estatal na economia não poderiam decorrer danos indenizáveis à empresa promovente. Inconformada, a Destilaria Alto Alegre interpôs recurso extraordinário contra a decisão do STJ. No final de 2005, o Supremo Tribunal Federal julgou definitivamente a questão, confrontando dois grandes postulados da ordem econômica na Constituição. De um lado, colocou-se o poder que tem a União de intervir no domínio econômico. De outro, a garantia constitucional à liberdade de iniciativa, que seria frustrada se o poder público inviabilizasse a exploração econômica do negócio pelo particular. Do caso acima descrito, observa-se que não houve contestação da legitimidade de a União intervir no domínio econômico, inclusive através da fixação dos preços do setor sucro-alcooleiro (o que era permitido até que Resolução do Ministério da Fazenda, com autorização da legislação pertinente, houvesse determinado a liberação integral dos preços). A abordagem não procurou limitar o exercício da intervenção. A questão se resumiu à averiguação da ocorrência de prejuízo individual e concreto a um agente econômico privado como conseqüência da intervenção estatal na economia, bem como à correspondente possibilidade de responsabilização civil da entidade interventora. A natureza singular do conflito constitucional que se coloca na decisão do Supremo Tribunal Federal, em decisão que se apresenta paradigmática, nos inspirou na realização do presente trabalho. Seguindo na mesma esteira, e como forma de tornar mais clara a exposição do assunto, decidimos fazer a apresentação e a apreciação de outras situações concretas em que o conflito constitucional acima retratado toma lugar. O exame desses conflitos, principalmente, será o objeto do presente trabalho. A solução dada pelo Supremo Tribunal Federal ao RE 422941 e a exposição de outros problemas concretos com base constitucional econômica,

3 além de alguma proposta de solução aos casos apresentados (à guisa de uma simples tentativa de contribuição) serão apresentadas ao final. Até lá, é indispensável explicar as bases em que se assentam os cânones constitucionais em conflito.

2. A EXISTÊNCIA DE UMA “CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA” NO BRASIL

A partir do final da Primeira Guerra Mundial, com a Europa absolutamente devastada e o povo em situação de penúria, os Estados começaram uma mobilização pela alteração de suas bases constitucionais, revendo a posição liberal que assumia seu constitucionalismo até então. Era necessário garantir prestações positivas à população. As Constituições que surgiram a partir do grande conflito passaram a prever direitos sociais, típicos direitos de prestação2, fundados no princípio da igualdade (direitos de segunda dimensão)3. As Constituições que passaram a incluir em seu texto esses direitos de conteúdo prestacional positivo, de que são exemplos a mexicana de 1917 e a alemã de 1919, foram batizadas de “econômicas”. A primeira Constituição brasileira que positivou direitos sociais em seu texto, na linha da Constituição alemã, foi a de 1934, que incluiu um capítulo dedicado à disciplina da Ordem Econômica e Social, no que foi seguida por

2

“As Constituições elaboradas após o final da Primeira Guerra Mundial têm algumas características comuns – particularmente, a declaração, ao lado dos tradicionais direitos individuais, dos chamados direitos sociais ou direitos de prestação, ligados ao princípio da igualdade material que dependem de prestações diretas ou indiretas do Estado para serem usufruídos pelos cidadãos. Estas novas Constituições são consideradas parte do novo „constitucionalismo social‟ que se estabelece em boa parte dos Estados europeus e em alguns americanos. Em torno nestas Constituições, adjetivadas de sociais, programáticas ou econômicas, vai se dar um intenso debate teórico e ideológico.” (BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005). 3

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6.ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. pp. 56 e ss.

4 todas as constituições posteriores. A organização da ordem econômica deveria se pautar pelos princípios da justiça e pelas necessidades sociais4. A Constituição Brasileira de 1988 consagra seu Título VII (arts. 170 a 192) à disciplina da Ordem Econômica e Financeira, trazendo o Capítulo I princípios gerais da atividade econômica. Muitos dos fundamentos e princípios ali contidos encontram reflexo em outros setores da Constituição, a exemplo da soberania nacional e da livre iniciativa (fundamentos da República – art. 1º, I e IV), redução das desigualdades sociais e regionais (objetivo fundamental da República – art. 3º, III), função social da propriedade e defesa do consumidor (direitos e garantias individuais e coletivos – art. 5º, XXIII e XXXII), além de outros. Como se vê, a Constituição brasileira de 1988 contém normas que tratam do domínio econômico. Embora elas sejam muito mais direcionadas à atividade do Estado e a seu papel nessa área – que inclui a prerrogativa de intervir, direta e indiretamente, na economia5 – não se pode esconder a existência de normas constitucionais que se aplicam diretamente aos atores principais da ordem econômica: os agentes econômicos privados. Esse sistema normativo, sugerindo uma franca interação entre os setores jurídico e econômico, definindo as bases da atuação do Estado na ordem econômica, conduz à compreensão de que, no âmbito da própria Constituição, existe um sistema de normas que pode ser encarado como uma verdadeira Constituição Econômica6. No seio dessa Constituição Econômica, o legislador constituinte de 1988 previu regras e princípios que darão a forma definitiva da ordem econômica brasileira. Os fundamentos da ordem econômica são definidos pelo caput do art. 170 da CF: a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa. Os princípios de observação obrigatória estão contidos nos incisos do mesmo

4

BERCOVICI, Gilberto. Op. Cit. Pp. 17 e ss.

5

Conferir especialmente os arts. 173 a 175 da CF/88.

6

TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico. São Paulo: Método, 2003. pp. 71 e ss.

5 dispositivo e, dentre todos, interessa obrigatoriamente ao presente estudo o que se refere à livre concorrência (IV). No presente trabalho, temos a intenção de examinar a possibilidade da ocorrência de conflitos entre o exercício concreto da prerrogativa estatal de intervenção na ordem econômica e as garantias decorrentes da livre iniciativa e da livre concorrência, respectivamente fundamento e princípio da ordem econômica. Como se viu, todos encontram previsão no seio da Constituição Econômica brasileira. Não existe hierarquia normativa que possa resolver, no plano abstrato, a gama de conflitos possíveis. Assim sendo, deveremos examinar mais pormenorizadamente cada um desses cânones constitucionais.

3. NOÇÕES SOBRE A LIBERDADE DE INICIATIVA

3.1 Idéia conceitual

A Constituição brasileira adota um modelo capitalista de economia, baseado na propriedade privada dos meios de produção (não obstante a necessidade do cumprimento de sua função social), na economia de mercado, na ampla (porém não ilimitada) liberdade de empreendimento, associação, contrato, trabalho etc. Com Eros Roberto Grau, pode-se dizer que vige, antes de tudo, a liberdade. A livre iniciativa apareceria, portanto, como um desdobramento da liberdade7. A idéia conceitual de livre iniciativa passa pela compreensão que se tenha sobre sua amplitude e seus limites. Por isso mesmo, não pretendemos dar, no presente trabalho, um conceito sólido e acabado de livre iniciativa. A noção de idéia conceitual, portanto, deve ser admitida como uma contribuição 7

GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 201.

6 para a compreensão do objeto estudado, ou seja, um passo na direção de um conceito em formação. A liberdade de iniciativa – assim diz a doutrina – não pode ser vista exclusivamente como a liberdade de iniciativa econômica. Considerando que a iniciativa econômica e a atividade de empreendimento privado (uma das formas mais simples de ver a iniciativa) constituem uma realidade ampla e multiforme, devemos atentar para os institutos que formam sua base estrutural e operacional. Numa visão prática, podemos dizer claramente que a garantia de livre iniciativa como liberdade de empreendimento seria nula de sentido se houvesse restrições à liberdade de associação. Da mesma forma, eventual legislação que viesse a restringir mais severamente a liberdade contratual inviabilizaria por completo a livre iniciativa. Destaque-se que uma das mais importantes facetas da livre iniciativa encontra-se na liberdade de trabalho, em todas as suas formas. Daí a própria norma constitucional (art. 170, caput) colocar, lado a lado, a livre iniciativa e a valorização do trabalho humano como fundamentos da ordem econômica brasileira. Uma das principais regras trazidas pela Constituição sobre a livre iniciativa encontra-se no caput do art. 170, quando estabelece limitações à atuação direta do Estado no domínio econômico. De fato, a CF procura deixar a iniciativa econômica direta ao alcance dos agentes econômicos, somente permitindo a interferência estatal em hipóteses excepcionais. A regra, portanto, é a iniciativa privada. Como todas essas dimensões que compõem a ampla liberdade de iniciativa serão examinadas nos tópicos seguintes, maiores pormenores serão deixados para o lugar oportuno. Procurando formular, desse modo, uma simples idéia conceitual acerca da liberdade de iniciativa, podemos dizer que se trata da liberdade garantida aos agentes econômicos de manejarem, nos limites constitucionalmente

7 garantidos, os instrumentos econômicos disponíveis em busca dos fins inerentes a uma sociedade de base capitalista.

3.2 Fundamentos constitucionais

A liberdade de iniciativa, conforme se viu no tópico anterior, encontra suas bases normativas previstas diretamente na Constituição Federal de 1988. De forma expressa, a CF elege os valores sociais da livre iniciativa8 como fundamento da República Federativa do Brasil no art. 1º, IV, ao lado da soberania (I), da cidadania (II), da dignidade da pessoa humana (III), dos valores sociais do trabalho (IV, 1ª parte) e do pluralismo político (V). Da mesma forma, a Constituição destaca, de forma direta, a livre iniciativa como fundamento da ordem econômica em seu art. 170, caput, reforçando-a no parágrafo único do mesmo artigo quando assegura a liberdade de exercício de qualquer atividade econômica. Outras disposições que se aplicam à livre iniciativa, definindo-a quase como uma garantia dos particulares contra eventuais anseios estatais de atuação direta, encontram-se no art. 173 da CF, estabelecendo como excepcional a atuação direta do Estado no domínio econômico. Contudo, entendida a livre iniciativa como algo mais amplo do que a simples liberdade de empreendimento, torna-se necessário apontar que a Constituição traz regras e princípios diretamente ligados à liberdade de associação (arts. 5º, XVII e 8º), ao direito de propriedade privada (art. 5º, XXII), à liberdade do exercício e escolha de trabalho, ofício ou profissão (art. 5º, XIII) etc.

8

“Daí por que o art. 1º, IV do texto constitucional – de um lado – enuncia como fundamento da República Federativa do Brasil o valor social e não as virtualidades individuais da livre iniciativa e – de outro - o seu art. 170, caput coloca lado a lado trabalho humano e livre iniciativa, curando contudo no sentido de que o primeiro seja valorizado.” (A ordem econômica na constituição de 1988. Obra citada. p. 206).

8

3.3 Características

Considerando a estreita relação que existe entre a ordem jurídica e a ordem econômica, a Constituição Federal não poderia deixar de estabelecer a posição do Estado brasileiro no contexto da economia. Diríamos que, no caso do Brasil, o papel do Estado em face da economia e dos agentes econômicos deve ser buscado diretamente no texto constitucional. Ao definir como fundamentos da ordem econômica a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa, ao garantir a propriedade privada dos meios de produção como direitos individuais fundamentais, ao estabelecer a livre concorrência como princípio da ordem econômica e, finalmente, ao fixar como principal base da economia nacional a liberdade de atuação, a CF de 1988 adotou um modelo econômico de feição nitidamente capitalista e liberal. No entanto, a própria Carta faz a previsão de limites ao exercício dessa liberdade econômica. Assim, ao mesmo tempo em que garante a propriedade privada dos meios de produção, estabelece que o direito de propriedade não pode ser utilizado de forma abusiva e antieconômica, devendo, em todo caso, cumprir sua função social. Na mesma linha, embora sejam livres os agentes econômicos para atuarem na economia, devem suportar os limites impostos pela Constituição e pelas leis. Segundo o modelo econômico traçado pela Constituição, o Brasil adota uma economia de mercado de natureza capitalista, preconiza a liberdade de atuação econômica, a propriedade privada dos meios de produção e o liberalismo econômico. Contudo, estabelece disposições restritivas à ampla liberdade, de modo que o Estado resguarda a si próprio os instrumentos necessários para atuar no domínio econômico e evitar que os agentes privados, abusando de suas prerrogativas, possam violar os fundamentos e princípios constitucionais.

9

3.4 Abrangência

Como dissemos linhas acima, a liberdade de iniciativa abrange diversas dimensões, não se resumindo na simples liberdade de atividade econômica. No contexto de uma visão mais ampla da livre iniciativa, para nos limitarmos

ao

mais

importante,

podemos

apontar

a

liberdade

de

empreendimento, a liberdade de associação, a liberdade do exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão e a liberdade contratual.

3.4.1 Liberdade de empreendimento

A liberdade de empreendimento é a garantia de que os agentes econômicos podem explorar livremente determinados setores econômicos, independentemente de autorização dos poderes públicos (ressalvadas as exceções constitucionais e legais). Envolve a liberdade de escolher a atividade a desempenhar, o lugar e o tempo em que será desenvolvida etc. Essa assim chamada liberdade de empreendimento encontra-se implícita no princípio da livre iniciativa, mas é diretamente garantida pelo art. 170, parágrafo único, da Constituição Federal e tem uma nítida ligação com o princípio constitucional da legalidade, impedindo que eventuais restrições constitucionalmente autorizadas sejam implementadas e executadas por instrumento diverso da lei.

3.4.2 Liberdade de associação

10 A liberdade de associação9 é garantida na Constituição através de uma série de normas previstas nos incisos do art. 5º, começando pelo inciso XVII, que garante como plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedando associações de caráter paramilitar. O inciso XVIII restringe a interferência estatal na criação e no funcionamento de associações e cooperativas. O inciso XIX estabelece que a dissolução das associações e o encerramento de suas atividades dependem de decisão judicial, exigindo-se o trânsito em julgado no primeiro caso. O inciso XX consagra a liberdade associativa em sua vertente negativa e, finalmente, o inciso XXI confere às associações a prerrogativa de atuar em nome de seus associados, aumentando-lhes a relevância. A liberdade de associação, em conjunto com a liberdade contratual, exerce um importante papel no contexto da livre iniciativa, pois a reunião de esforços em busca de um objetivo comum constitui uma das mais importantes ferramentas de atuação dos particulares no domínio econômico. Se a liberdade de associação e contrato (sociedade) não fosse permitida, a liberdade de empreendimento não poderia contar, dentre outras coisas, com a participação de grandes capitais, formados principalmente pela reunião de pequenos investidores. O melhor exemplo está na expressão que assumem as sociedades por ações na economia mundial, representativas do acúmulo de um enorme capital a partir da reunião de, por vezes, pequenos e médios investidores.

9

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL – Ação de anulação de normas estatutárias e de eleição de diretoria de entidade associativa. Antecipação dos efeitos da tutela. Cerceamento de defesa. Decisão extra petita. Liberdade associativa. A antecipação dos efeitos da tutela concedida no bojo da sentença de mérito, ainda que inexistentes seus requisitos específicos, não configura cerceamento de defesa a ensejar a nulidade da decisão definitiva. Não é extra petita a decisão que, arrimada na exposição dos fatos alegados pelo autor, anula dispositivos de normas estatutárias impugnadas, indicando os artigos a que se reporta a nulidade, mesmo que estes não tenham sido grafados na petição inicial. Por expressa determinação constitucional, é plena a liberdade de associação de pessoas para fins lícitos, não dependendo a sua criação de qualquer tipo de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento, inafastável, porém, a apreciação, pelo poder judiciário, de lesão ou ameaça a direito. A liberdade associativa abrange a autonomia e independência administrativa, funcional e organizacional da entidade, as quais devem ser exercidas sobre o primado da vontade soberana dos seus associados manifestada em assembléia geral, que se constitui no seu órgão máximo de deliberação, respeitada, porém, a ordem constitucional e infraconstitucional vigente. Recurso conhecido e provido. (TJMA – AC 018353/2001 – (42.367/2002) – 4ª C.Cív. – Rel. Des. Jamil de Miranda Gedeon Neto – J. 03.12.2002) (grifado).

11

3.4.3 Liberdade de trabalho

A liberdade do exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão 10, prevista na Constituição Federal no art. 5º, inciso XIII, encontra no atendimento às qualificações profissionais previstas em lei seu mais relevante limite constitucional. Defende-se que a liberdade profissional encontra suporte também no parágrafo único o art. 170, de modo que também seria possível condicionar tal liberdade à necessidade de autorização estatal, mas sempre nos casos e limites previstos em lei. A liberdade de trabalho confere ao indivíduo, principalmente, o direito de escolher o que quer fazer, ou seja, de definir qual a atividade profissional que desempenhará. O trabalho humano é expressamente valorizado pela Constituição Federal, de modo que não se pode defender como atividade lícita a escolha pelo não exercício de qualquer profissão. A tanto não chega a garantia constitucional da liberdade prevista no art. 5º, inciso II, da Constituição. A CF não contempla, desse modo, a liberdade negativa ao trabalho, como um suposto direito de não trabalhar11.

3.4.4 Liberdade contratual

10

MANDADO DE SEGURANÇA – NEGATIVA DE AUTORIZAÇÃO PARA IMPRESSÃO DE DOCUMENTOS FISCAIS – AIDF – IMPOSSIBILIDADE DE CONDICIONAR A IMPRESSÃO DE BLOCOS DE NOTAS FISCAIS AO PRÉVIO PAGAMENTO DE DÉBITOS COM O FISCO – INCONSTITUCIONALIDADE DECLARADA PELO STF – REMESSA DESPROVIDA – O Supremo Tribunal Federal em voto proferido pelo ilustre ministro Marco Aurélio no recurso extraordinário nº 413.782-8, declarou a inconstitucionalidade da norma estadual que proibia a impressão de documentos fiscais para as empresas que estivessem em débito com o fisco, pois esta estava a contrariar os textos constitucionais da garantia do livre exercício do trabalho, ofício ou profissão (art. 5º, inciso XIII, da CF) e de qualquer atividade econômica (art. 170, parágrafo único, da CF). (TJSC – AC-MS 2002.007447-6 – Urussanga – 1ª CDPúb. – Rel. Des. Nicanor da Silveira – J. 06.10.2005). 11

A Lei de Contravenções Penais prevê, em seus artigos 59 e 60, as contravenções de vadiagem e mendicância.

12

A liberdade contratual12 é fundamental para a livre concorrência. O contrato é o meio jurídico por excelência para a circulação de riquezas, bens, mercadorias e serviços. É o meio através do qual podem os sujeitos da ordem econômica concertar sua atuação em prol do desempenho satisfatório das atividades econômicas a que se dedicarem. O respeito à liberdade contratual assume foros de indispensabilidade como instrumento da economia, sendo certo que não existirá liberdade de iniciativa privada na economia onde não se conceder aos particulares efetiva liberdade contratual e eficácia à autonomia da vontade. Como toda liberdade jurídica é sempre relativa, também a liberdade contratual e a autonomia da vontade encontram limitações na ordem jurídica. Assim, sempre que o abuso se manifestar no exercício da liberdade, a atuação privada será antijurídica e, portanto, passível de invalidação e controle pelos órgãos competentes do Estado13.

12

CONTRATO BANCÁRIO – EMPRÉSTIMO/FINANCIAMENTO – CRÉDITO ROTATIVO – DESCONTO EM FOLHA DE PAGAMENTO – Não é abusiva a cláusula inserida no contrato de empréstimo bancário que versa autorização para o banco efetuar o desconto em folha de pagamento do mutuário, seja por não ofender o princípio da autonomia da vontade, que norteia a liberdade de contratar, seja por não atingir o equilíbrio contratual ou a boa-fé (TRF 4ª R. – AC 2002.71.02.009383-5 – 3ª T. – Relª Juíza Fed. Vânia Hack de Almeida – DJU 01.02.2006 – p. 413) (grifado). CIVIL – RESPONSABILIDADE CIVIL – CONTRATO DE MÚTUO – DESCONTO EM FOLHA DE PAGAMENTO – MOVIMENTAÇÃO DE CONTAS PELA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA – AUSÊNCIA DE DANO MATERIAL E MORAL – Prestigiados os princípios da liberdade de contratar e da boa-fé, uma vez que o contrato de empréstimo firmado pelas partes continha cláusula prevendo o desconto em folha de pagamento.. Não se configura abusiva a cláusula que permite à instituição financeira a movimentação das contas de seus correntistas, posto que a parte autora o firmou de livre vontade, prevalecendo, pois, o princípio pacta sun servanda. Ausência de dano moral e material.. Sucumbência mantida, fixada na esteira dos precedentes da turma.. Prequestionamento quanto à legislação invocada estabelecido pelas razões de decidir.. Apelação improvida. (TRF 4ª R. – AC 2001.71.00.004050-0 – 3ª T. – Relª Desª Fed. Sílvia Goraieb – DJU 15.02.2006 – p. 495) (grifado). 13

“Essa liberdade de contratar pode ser vista sob dois aspectos. Pelo prisma da liberdade propriamente dita de contratar ou não, estabelecendo-se o conteúdo do contrato, ou pelo prisma da escolha da modalidade do contrato. A liberdade contratual permite que as partes se valham dos modelos contratuais constantes do ordenamento jurídico (contratos típicos), ou criem uma modalidade de contrato com suas necessidades (contratos atípicos). Em tese, a vontade contratual somente sofre limitações perante uma norma de ordem pública. Na prática, existem imposições econômicas que dirigem essa vontade. No entanto, a interferência do Estado na relação contratual privada mostra-se crescente e progressiva.”

13

3.5 Limites

A noção de liberdade como garantia constitucional deverá ser sempre uma noção relativa. De fato, é ponto comum na doutrina e na jurisprudência que os direitos e liberdades previstos na Constituição nunca são absolutos, devendo sempre ceder espaço diante de outros direitos e liberdades que, no caso concreto, segundo postulados de aplicação conformativa 14, adquiram maior eficácia e normatividade no caso concreto. A livre iniciativa, desse modo, jamais se apresentou como plena em qualquer momento15. Um hipotético reconhecimento pleno da liberdade de iniciativa, em todas as suas vertentes, implicaria na necessidade de o Estado se abster completamente de disciplinar os instrumentos utilizados no desempenho da atividade econômica. Não poderia existir qualquer regulação estatal das relações de trabalho, principalmente de caráter protetivo dos direitos dos trabalhadores. As relações de consumo não poderiam ser tuteladas pelo Estado. A liberdade de contratar teria que ser absoluta e, finalmente, todas as variáveis do mercado, incluindo preços, oferta, demanda, consumo e emprego, encontrariam no mercado seu exclusivo fator de definição16. Seria o caos. A liberdade de iniciativa não é colocada na Constituição como uma verdade, como algo retirado do mundo do ser. Ao contrário, traduz um

(VENOSA, Sílvio de Sálvio. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 375. 14

Valiosa é a lição de Humberto Ávila sobre os princípios. O autor diferencia com maestria três conceitos de fundamental interesse no estudo das normas constitucionais e sua interpretação: regras, princípios e postulados. Para detalhes, conferir: ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2006. Na mesma linha, cf. GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. 15

A ordem econômica na constituição de 1988. Obra citada. p. 203.

16

Direito constitucional econômico. Obra citada. p. 245 e ss.

14 compromisso do Estado com a sociedade, de modo que deve adotar os comportamentos necessários para tornar a livre iniciativa uma realidade permanente. Desse modo, a atuação do Estado deverá ser, por vezes, de total abstenção. Outras vezes, deverá se mostrar completa e permanente, como na adoção de políticas públicas para promover o desenvolvimento da economia. Sendo assim, a Constituição estabelece limites à plena liberdade de iniciativa, alguns deles a depender de complementação por legislação infraconstitucional e outros a exigir uma atuação direta e positiva do aparelho do Estado. É importante frisar que tais limitações encontram no princípio da legalidade seu mais importante ponto de referência, funcionando este último como uma auto-limitação à atuação interventiva estatal. Como claros exemplos da necessidade de se imporem limites à plenitude da liberdade de iniciativa, destacam-se a proteção à livre concorrência (prevista na Constituição como um princípio da ordem econômica) e a regulamentação do exercício profissional (legítima prerrogativa estatal).

3.5.1 Proteção à concorrência

Antes de tudo, esclarecemos que o princípio constitucional econômico da livre concorrência será mais fielmente examinado no capítulo seguinte. Na livre iniciativa, vigem as regras que consagram a liberdade dos agentes econômicos que iniciam empreendimentos privados na busca pelo lucro, colaborando, assim, para o desenvolvimento econômico pessoal e do próprio Estado. Com as ressalvas já feitas sobre a amplitude do conceito, podemos dizer que a livre concorrência pressupõe um Estado em que a atuação econômica direta seja livremente acessível aos particulares. Sendo livre a todos os particulares esse acesso ao domínio econômico, é natural que inúmeros atores econômicos procurem exercer as atividades que

15 lhes sejam mais convenientes, multiplicando-se os sujeitos que exploram cada um dos setores da economia. Com a multiplicidade de fornecedores, surge a necessidade de lutar pelos espaços no mercado e pela obtenção de uma clientela que viabilize a circulação da riqueza produzida. Surge, desse modo, a concorrência. Ocorre que essa liberdade de iniciar um empreendimento e mantê-lo em atuação no domínio econômico pode ser confrontada pelo Estado ou pelos demais agentes econômicos. Quando o Estado atua direta ou indiretamente no domínio econômico, diz-se que está intervindo na ordem econômica, e seus objetivos não podem ser outros que não a promoção do equilíbrio da economia e do bem comum. Sendo a livre iniciativa fundamento da ordem econômica, ao Estado é constitucionalmente proibido concorrer com os particulares sem motivos baseados no interesse público. De outro lado, quando são os demais agentes econômicos que atuam contra a livre iniciativa, mediante condutas que procuram alijar do mercado os demais exploradores da mesma atividade econômica, tem-se o abuso do poder econômico e a afronta à livre concorrência, com tendência ao oligopólio ou ao monopólio. Ao Estado, nessas hipóteses, protegendo a livre concorrência entre os agentes econômicos, cabe intervir para reprimir os abusos, limitando o exercício da liberdade de atuação no domínio econômico.

3.5.2 Exercício das profissões

A liberdade do exercício das profissões é garantida a todos como direito econômico fundamental de base constitucional. A liberdade de trabalho envolve prerrogativas como a escolha do trabalho, ofício ou profissão, o lugar de sua prestação, a possibilidade de mudança de ramo, dentre outras. Não

16 abrange, contudo, em termos absolutos, a liberdade de escolher simplesmente não trabalhar17. A conjugação do art. 5º, XIII, com o art. 170, parágrafo único, ambos da Constituição, fornecem a tônica da amplitude que essa liberdade apresenta no ordenamento jurídico constitucional. A escolha da profissão, ofício ou trabalho é absolutamente livre ao sujeito, que poderá, querendo, ser médico, advogado, empresário, contador, servidor público etc. A escolha é sua. Trata-se de um direito seu. A restrição está em que, para o exercício de determinadas profissões, a lei deverá estabelecer requisitos mínimos a serem preenchidos pelos pretensos exploradores. Assim, o exercício da advocacia requer colação de grau em curso de Bacharelado em Ciências Jurídicas e Sociais, aprovação em Exame de Ordem etc. Da mesma forma, a atuação como servidor público requer a comprovação do grau mínimo de escolaridade, habilitação acadêmica específica (se for necessária), aprovação em concurso público prévio etc. Tudo previsto em lei, conforme autorização constitucional. A necessidade de autorização estatal para o exercício de determinadas profissões se deve ao fato de que seria absolutamente nocivo à sociedade que as pessoas pudessem praticar quaisquer atividades independentemente de qualquer habilitação ou preparação. O melhor exemplo ocorre com a medicina, onde um mínimo erro, dependendo do caso, significa morte certa para o paciente. O Estado controla tais atividades e exige que os pretensos titulares da exploração comprovem sua aptidão (técnica, operacional, jurídica etc.) para o exercício da profissão.

17

A restrição não se aplica àquelas hipóteses em que a pessoa disponha de imenso patrimônio e, embora não trabalhe, ganhe a vida através de investimentos (em bolsa de valores, por exemplo). Quando se diz que a liberdade de trabalho na CF não abrange a liberdade de não trabalhar (ao contrário do que ocorre com a liberdade de associação, que inclui a liberdade de não se associar), está-se querendo dizer que a Carta não protege sujeitos economicamente inativos por puro abuso de liberdade. Daí a tipificação dos delitos de vadiagem e mendicância, os quais pressupõem que haja a aptidão para o trabalho e a vontade livre e consciente que, ainda assim, não trabalhar (Lei das Contravenções Penais, arts. 59 e 60).

17 Como podemos facilmente observar, também aqui o objetivo exclusivo do poder público em sua atuação restritiva da liberdade de iniciativa encontrase na promoção do bem comum e na defesa da sociedade.

4. NOÇÕES SOBRE A LIVRE CONCORRÊNCIA

4.1 Idéia conceitual

A Constituição Federal consagra a livre concorrência como um princípio da ordem econômica (CF, art. 170, IV). André Ramos Tavares definea como “a abertura jurídica concedida aos particulares para competirem entre si, em segmento lícito, objetivando o êxito econômico pelas leis de mercado” 18. Para Eros Roberto Grau, com base em Canotilho, trata-se de princípio constitucional impositivo19. Discute-se sobre a relação que existiria entre a livre iniciativa e a livre concorrência, dizendo alguns que esta última seria corolário daquela e afirmando outros que seriam absolutamente independentes. Se a concorrência pressupõe a coexistência de diversos agentes econômicos em um determinado mercado e a livre iniciativa é o fundamento responsável pela viabilização do surgimento de cada um desses atores, então podemos dizer que a concorrência (como fato econômico) é decorrência da livre iniciativa. A livre concorrência, contudo, como princípio de base constitucional (indicação de objetivo a atingir), procura assegurar a eficácia da livre iniciativa. De nada valeria poder entrar no mercado, utilizando o fundamento da livre iniciativa, se nele não fosse possível se manter, dada a falta de efetividade do princípio da livre concorrência. Sendo assim, parece-nos adequado dizer que o 18

Direito constitucional econômico. Obra citada. p. 255.

19

A ordem econômica na constituição de 1988. Obra citada. p. 208.

18 princípio da livre concorrência alicerça e efetiva o fundamento constitucional econômico da livre iniciativa.

4.2 Fundamento constitucional

O fundamento constitucional normativo expresso da livre concorrência encontra-se no art. 170, IV, sendo trazido ao texto constitucional como um dos princípios que deverão ser observados na composição da ordem econômica. O princípio é instrumentalmente reforçado no art. 173, § 4º, da CF, estabelecendo que “a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”. A lei a que se refere o texto constitucional é a Lei n. 8.884/94, que trata da prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica. Quando a Constituição fala na livre concorrência, não está se referindo à mera constatação de uma realidade, retratada no texto constitucional. Ao contrário, o art. 170, IV, da CF, traduz um objetivo constitucional, um compromisso estatal a ser mantido e garantido permanentemente, devendo o Estado agir para restabelecer a livre concorrência sempre que houver condutas abusivas da parte dos agentes econômicos. Considerando que os agentes econômicos estão sempre fadados a cometer abusos no desempenho de suas atividades, o princípio da livre concorrência não pode ser encarado como norma que determine uma total abstenção do Estado, como se fosse possível deixar às leis do mercado toda a disciplina da produção, do consumo, do trabalho etc. A livre concorrência, como princípio constitucional, deve ser vista como um poder-dever atribuído ao Estado para manter as condições que viabilizem uma concorrência sadia entre os agentes econômicos, tudo em prol do desenvolvimento nacional e do interesse público.

19 4.3 Violação à concorrência: o abuso do poder econômico

O poder econômico reflete a concentração de bens de produção nas mãos de agentes do domínio econômico, como instrumento de atuação no mercado para o atingimento dos objetivos inerentes a uma sociedade de produção capitalista. A apropriação privada dos bens de produção e do produto do trabalho caracteriza como capitalista a sociedade instaurada por força das normas constitucionais econômicas contidas na CF. Desse modo, sendo o poder econômico instrumento legítimo dessa atuação, é reconhecido e deve ser protegido pelo Estado. O que a Constituição (inicialmente) e a lei (em seguida) combatem é o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros (CF, art. 173, § 4º). Como todo abuso de poder20, o abuso do poder econômico traduz um meio predisposto a uma finalidade que contraria a ordem jurídica e que, desse modo, deve ser repelida pela atuação do Estado. É a utilização ilícita de um instrumento lícito para a obtenção de resultados ilícitos21. Note-se que o abuso do poder econômico é retratado na Constituição como um simples instrumento a serviço do agente econômico infrator. Seus objetivos imediatos e acessórios podem ser a dominação dos mercados, a eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros. Seu objetivo mediato e principal será o afastamento da livre concorrência. A dominação dos mercados significa o poder de impor a própria vontade a uma significativa parcela de mercado relevante. Acompanha normalmente o poder de definir, de forma unilateral, todas as variáveis do 20

O novo Código Civil brasileiro define o abuso de direito da seguinte forma: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes” (CC/2002, art. 173). 21

“A Constituição reconhece a existência do poder econômico. Este não é, pois, condenado pelo regime constitucional. Não raro, esse poder econômico é exercido de maneira anti-social. Cabe, então, ao Estado intervir para coibir o abuso”. (SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 15.ed. rev. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 761.

20 mercado, as quais deveriam encontrar nas leis do mercado seu critério de autoregulação. Assim, o agente econômico que domina mercado relevante pode estabelecer os preços praticados, a produção, a oferta, o consumo etc. A eliminação da concorrência age através do afastamento dos demais competidores do mercado, resultando na formação artificial de monopólios e oligopólios. Se determinado empresário dispõe de uma imensa concentração econômica e passa a vender seus produtos em valores inferiores aos custos de produção, os pequenos empreendedores não terão condições financeiras de competição. As grandes empresas terão lastro financeiro suficiente para suportar a prática de preços subfaturados por algum tempo. Já os pequenos empresários certamente serão alijados do mercado. A livre concorrência não tolera a formação de monopólios e oligopólios de forma artificial por atuação dos próprios agentes econômicos. Não que os oligopólios e monopólios não existam ou sejam ilícitos em todo e qualquer caso. Na verdade, a CF contempla atividades econômicas a serem exercidas em regime de monopólio estatal, através da concessão de privilégios a operadores privados. O que se proíbe, na verdade, é a utilização abusiva do poder econômico (meio) para o afastamento artificial da concorrência (fim acessório) e a completa eliminação da liberdade (fim principal). O aumento arbitrário dos lucros é também proibido pela Constituição. O Estado deve, desse modo, combater os acordos entre empresários que visem ao aumento concertado e artificial dos preços praticados e, em conseqüência, dos lucros auferidos pelo empreendimento, sem vinculação alguma com os custos da produção. A liberdade de iniciativa confere ao agente econômico a prerrogativa de definir sua produção (qualitativa e quantitativamente) e seus preços, segundo as leis do mercado. Nesse caso, contudo, o fundamento da livre iniciativa seria fraudado pelo operador econômico, o qual abusaria da liberdade para alijar as leis do mercado e aumentar artificial e arbitrariamente seus lucros. O abuso do

21 poder econômico estaria no fato de que apenas o empresário dispõe da propriedade dos bens de produção e do controle da própria produção. São exemplos notáveis dessa hipótese os trustes e cartéis.

5. INTERVENÇÃO DO ESTADO NA ORDEM ECONÔMICA

5.1 Noções gerais

Em uma economia de mercado pura, todos os agentes econômicos seriam absolutamente livres para atuar segundo as leis do mercado. Essas mesmas leis definiriam integralmente todas as variáveis da economia, incluindo o número de agentes exploradores de cada setor econômico, a produção de cada um deles, os preços praticados, o consumo, as relações de trabalho etc. Ocorre que, se esse modelo puro nunca existiu efetivamente, a concentração econômica tornou definitivamente insustentável qualquer pretensão de liberdade absoluta. Fadados que estão os atores do domínio econômico a cometer abusos no desempenho de suas atividades, exige-se do poder público uma permanente vigilância em prol da manutenção da integridade do sistema.

22 Por esse motivo, compreende-se como indispensável viabilizar ao Estado os instrumentos de que necessita para intervir no domínio econômico, preservando as bases do sistema e garantindo aos agentes econômicos o exercício da liberdade de iniciativa nos estritos limites em que for reconhecida pela Constituição Federal. Isso implica dizer que essa liberdade deve se condicionar a todos os fundamentos, princípios e regras que a Constituição lhe impuser, e caberá ao Estado agir em prol do interesse público para reprimir os abusos, quando verificados22. A noção de atividade econômica encontra na doutrina duas acepções, sendo uma ampla e outra restrita. Considerando que o Estado também realiza atividades de fornecimento de bens e prestação de serviços, a atividade econômica em sentido estrito seria aquela constitucionalmente reservada aos particulares como essencialmente econômica. Esta seria, em regra, vedada ao Estado. Já a atividade econômica em sentido amplo incluiria, ao lado das primeiras, aquelas reservadas ao Estado para prestação sob regime determinantemente público. Em termos mais simples, a atividade econômica em sentido amplo abrange a atividade econômica em sentido estrito e o serviço público. Uma interessante distinção que Eros Roberto Grau faz em seu “A Ordem Econômica na Constituição de 1988” se refere aos conceitos de atuação do Estado e intervenção do Estado na economia. Para o autor, quando o Estado agir em área que lhe seja naturalmente acessível (através de serviços públicos, por exemplo), estará atuando no domínio econômico. Se, por outro lado, estiver agindo em área de titularidade da iniciativa privada, estará intervindo no ou sobre o domínio econômico. Costuma-se chamar esta última hipótese de intervenção propriamente dita.

22

“O que justifica a intervenção estatal no domínio econômico são circunstâncias conhecidas como falhas de mercado, impeditivas do equilíbrio das forças competitivas, e cuja experiência demonstrou não serem adequadamente sanadas por meio de auto-regulação. A estas falhas visa o Estado corrigir.” (TAVARES, André Ramos. A intervenção do estado no domínio econômico. In CARDOZO, José Eduardo Martins, QUEIROZ, João Eduardo Lopes e SANTOS, Márcia Walquíria Batista dos (orgs). Curso de direito administrativo econômico. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 176).

23 Também desse autor é a classificação que divide as formas de atuação/intervenção estatal no domínio econômico em a) intervenção por absorção ou participação, b) intervenção por direção e c) intervenção por indução23. As duas primeiras (item “a”) seriam formas de intervenção do Estado no domínio econômico, ao passo que as duas últimas (itens “b” e “c”) seriam formas de intervenção sobre o domínio econômico. A Constituição Federal contempla duas formas básicas de intervenção do Estado na economia. Trata-se da intervenção direta e da intervenção indireta, sendo a primeira fundada nos artigos 173 (atividade econômica em sentido estrito) e 175 (serviços públicos), e a segunda no artigo 174, todos da Constituição Federal.

5.2 Intervenção direta

A intervenção direta do Estado no domínio econômico se dá quando o poder público atua no mercado como agente econômico, por si ou através de pessoas que cria para tal finalidade (entidades da administração indireta), especialmente empresas públicas e sociedades de economia mista. Na intervenção direta o Estado age empresarialmente, utilizando-se dos mesmos instrumentos predispostos aos demais atores do cenário econômico. Conforme a classificação de Eros Roberto Grau a que nos referimos linhas acima, a intervenção direta assume a forma de intervenção por absorção ou intervenção por participação. No primeiro caso, o Estado toma para si a exploração de determinada atividade econômica, vedando-a para todos os demais agentes econômicos. Atua, dessa maneira, em regime de monopólio, podendo, contudo, conceder privilégios para um ou mais agentes econômicos privados.

23

A ordem econômica na Constituição de 1988. Obra citada. p. 93.

24 Já no segundo caso – intervenção por participação – o Estado atua empresarialmente no domínio econômico com os mesmos instrumentos dos demais agentes privados e em concorrência com eles, explorando atividade econômica em regime de competição com a iniciativa privada. Não há monopólio nesse caso. A entidade da Administração Pública deverá atuar em igualdade de condições com os demais participantes, não podendo usufruir das prerrogativas inerentes ao poder público.

5.2.1 Fundamento constitucional

A intervenção direta do Estado no domínio econômico encontra sua base no próprio texto constitucional. De fato, o art. 173 da Constituição Federal de 1988 estabelece as bases em que se insere a intervenção estatal na economia através da exploração direta de atividade econômica. Trata-se, aqui, de intervenção do Estado no domínio econômico, tomado este último termo em sua acepção mais estrita, significando uma atuação em moldes empresariais. Mais do que simplesmente conferir ao Estado a prerrogativa de intervir empresarialmente no domínio econômico, o caput do art. 17324 restringe a atuação estatal direta na economia. Ao conferir a prerrogativa, deixa claro que se trata de uma competência excepcional, sendo a regra o respeito à livre iniciativa dos agentes privados. Por isso mesmo diz que, ressalvados os casos expressos em seu texto, a exploração direta de atividade econômica só é permitida por questões de segurança nacional ou relevante interesse público, conforme definição em lei25.

24

Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. 25

Celso Antônio Bandeira de Mello entende que deve ser complementar a lei a que se refere o art. 173, caput, da CF. Sustenta o autor que, admitindo-se que a definição dos imperativos da segurança nacional e do interesse público seja feita através de lei, toda lei que autorizar o Estado a intervir no domínio econômico já poderá incluir no seu texto a hipótese em questão como sendo de segurança nacional ou interesse público. A referência à necessidade de

25 O art. 175, caput, faz a previsão da intervenção do Estado no domínio econômico, tomada a expressão em seu sentido amplo (abrangente dos serviços públicos) e, dessa vez, não em termos excepcionais. Aqui, a atuação estatal é a regra, excepcionada apenas quando a prestação do serviço for descentralizada, o que pode ser feito a entidades da administração indireta por meio de lei (outorga mediante lei) ou a agentes econômicos privados através de concessões ou permissões (delegação mediante contrato)26.

5.2.2 Subsidiariedade

Conforme dissemos acima, a exploração direta de atividades econômicas pelo Estado somente será permitida em três hipóteses: a) quando houver expressa previsão no texto constitucional; b) quando, não havendo expressa permissão na CF, a intervenção for necessária aos imperativos da segurança nacional, conforme definição em lei; e c) quando, não havendo expressa permissão na CF, a intervenção for necessária para acorrer a relevante interesse coletivo, conforme definição em lei. A ordem econômica encontra na liberdade de iniciativa privada um de seus fundamentos constitucionais. Sendo assim, é absolutamente lógico que a Constituição tenha reservado aos agentes econômicos privados a primazia na exploração das atividades econômicas de produção e comercialização de bens e prestação de serviços. Sendo assim, a atuação do Estado nessa área deve ser excepcional, suprindo as deficiências do setor privado. Trata-se de uma atuação eminentemente subsidiária da atuação privada. Por esse motivo, a Constituição somente admite que o Estado intervenha diretamente no domínio econômico em uma das três hipóteses que previsão em lei no caput do art. 173 perderia completamente sua eficácia. Cf. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 18. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 742. 26

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2003. pp. 349 e ss.

26 enumera no caput do art. 173. Mesmo assim, tal atuação deverá, quando autorizada, seguir fielmente as balizas que lhe traçam os parágrafos e incisos do mesmo artigo. A Constituição Federal garante expressamente ao Estado, por exemplo, a exploração das atividades previstas nos incisos do art. 177 em regime de monopólio27, sendo-lhe permitido contratar com empresas estatais ou privadas a realização das atividades previstas nos incisos I a IV, observadas as condições definidas em legislação própria28. Fora das hipóteses expressa e especificamente autorizadas na Constituição Federal, a intervenção direta do Estado no domínio econômico deverá atender aos imperativos de segurança nacional ou de relevante interesse público, os quais deverão encontrar em lei (complementar) um embasamento mínimo primário. Tais expressões (segurança nacional e interesse público), segundo crítica da doutrina, são excessivamente amplas e vagas, encerrando o perigoso atributo da volatilidade, podendo sofrer modificações ao sabor de eventuais e sucessivas modificações na orientação da ordem política ou econômica. Tratam-se de conceitos jurídicos indeterminados, inerentes à necessária discricionariedade que deve servir de instrumento legítimo à atuação da

27

Art. 177. Constituem monopólio da União:

I - a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarburetos fluidos; II - a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro; III - a importação e exportação dos produtos e derivados básicos resultantes das atividades previstas nos incisos anteriores; IV - o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de derivados básicos de petróleo produzidos no País, bem assim o transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto, seus derivados e gás natural de qualquer origem; V - a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados, com exceção dos radioisótopos cuja produção, comercialização e utilização poderão ser autorizadas sob regime de permissão, conforme as alíneas b e c do inciso XXIII do caput do art. 21 desta Constituição Federal. (Redação dada ao inciso pela Emenda Constitucional nº 49, de 08.02.2006, DOU 09.02.2006). 28

Art. 177. § 1º. A União poderá contratar com empresas estatais ou privadas a realização das atividades previstas nos incisos I a IV deste artigo, observadas as condições estabelecidas em lei. (Redação dada ao parágrafo pela Emenda Constitucional nº 09/95).

27 Administração29, atribuindo ao legislador (primeiro) e ao administrador (em seguida) a prerrogativa de conferir ao conceito a densidade necessária para sua aplicação, cabendo ao poder judiciário, por fim, o controle quanto a eventual abuso cometido por qualquer dos poderes.

5.2.3 Formas de intervenção

A intervenção direta do Estado no domínio econômico pode se dar, principalmente, de duas maneiras: através da exploração de atividade econômica privada ou mediante a prestação de serviços públicos. Na hipótese de intervenção direta pela exploração de atividade econômica em sentido estrito, o Estado atua no domínio econômico por si mesmo (pessoa jurídica de direito público interno) ou através de uma pessoa jurídica de direito privado, integrante da Administração Pública indireta, criada especificamente para tal finalidade. Segundo José dos Santos Carvalho Filho, quando o Estado atua diretamente na exploração de uma atividade econômica, haveria exploração direta. Já quando atua por intermédio de uma entidade da administração indireta, haveria exploração indireta. Para esse autor, portanto, a exploração direta ou indireta da atividade dependerá de sua realização pela pessoa jurídica de direito público criadora ou pelas entidades criadas. Em ambos os casos, tratar-se-ia de intervenção indireta do Estado na economia30. A exploração estatal de atividade econômica pode ser feita em regime de concorrência, ou seja, de competição com os demais agentes privados, bem como em regime de monopólio. No primeiro caso, o Estado deve atuar através de entidades da Administração indireta com personalidade jurídica de direito 29 30

Curso de direito administrativo. Obra citada. pp. 882 e ss.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 15. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2006. pp. 747 e ss.

28 privado (empresas públicas e sociedades de economia mista), bem como seguir rigorosamente os parâmetros traçados pelos parágrafos do art. 173 da Constituição. O § 1º prevê a elaboração de um estatuto (lei) das empresas estatais que explorem atividade econômica, destacando a sujeição dessas entidades ao regime jurídico próprio das empresas do setor privado, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários (II), e a necessidade de licitação e de observância dos princípios da administração pública em suas contratações de obras, serviços, compras e alienações (III). O § 2º estabelece restrições relativas a privilégios fiscais, vedando o acesso dessas entidades a benefícios não extensíveis às empresas do setor privado. A lógica do sistema está na seguinte idéia: se fosse permitido ao Estado conferir a suas empresas públicas e sociedades de economia mista prerrogativas e privilégios próprios ao poder público (v.g., imunidade tributária), as demais empresas do setor privado ficariam em franca desvantagem, com manifesto prejuízo para a livre concorrência. A intervenção estatal, assim, incidiria nas mesmas patologias que deve reprimir: o abuso do poder como forma de eliminação da concorrência, dominação dos mercados e aumento arbitrário dos lucros. A atuação empresarial do Estado em regime de monopólio faculta ao Estado a adoção de um regime próprio às entidades do setor público. Não havendo concorrência, quaisquer privilégios concedidos à entidade da Administração indireta que exerça a atividade monopolizada não estarão prejudicando outros agentes privados. O regime de monopólio faz presumir que não haverá qualquer agente econômico – exceto o Estado – explorando aquela atividade. Vale frisar que o único monopólio artificial legítimo é aquele decorrente de previsão constitucional, em benefício do próprio Estado 31.

31

Nada impede que ocorram monopólios no setor privado. Desde que o regime de monopólio tenha sido conseqüência de uma atuação absolutamente legítima do agente privado no domínio econômico, não se o pode tachar de ilegítimo. Tratar-se-ia de monopólio natural. É o que ocorreria se determinada empresa descobrisse ou inventasse uma técnica revolucionária que tornasse seu produto tão atrativo a ponto de alijar do mercado todos os demais

29 Por fim, pode o Estado intervir no domínio econômico através da prestação de serviços públicos, nos termos do que dispõe o art. 175 da Constituição Federal. Se a exploração de atividades econômicas em sentido estrito é em princípio vedada ao Estado, a prestação de serviços públicos é conferida ao poder público em caráter de exclusividade, facultando a CF sua execução através de delegados (mas sempre mantendo a titularidade do serviço). Ainda não há concordância entre os doutrinadores sobre o conceito de serviço público32. A doutrina aponta pelo menos três acepções para a conceituação de serviço público, sendo uma subjetiva (orgânica), uma objetiva (material) e uma formal, conforme o critério escolhido. A primeira leva em conta o prestador do serviço como sendo o Estado. A segunda toma em consideração a atividade prestada. A terceira, por sua vez, destaca a natureza pública das regras que disciplinam a prestação do serviço. Diante

desse

problema

conceitual

(ainda

não

definitivamente

resolvido), uma interessante questão se coloca, com total pertinência ao objeto de nosso estudo. Poderia o Estado – sem que sua atitude significasse burla à restrição contida no art. 173 da CF – eleger como serviço público uma atividade até então considerada como atividade econômica em sentido estrito? Se a resposta for negativa, ter-se-á que admitir como verdadeira e correta a acepção material de serviço público, com exclusão das demais. A natureza da atividade, portanto, passaria a determinar a divisão entre as atividades econômicas stricto sensu e os serviços públicos, sem a possibilidade de interferência legislativa superveniente que lhe alterasse a natureza jurídica. A aplicação exclusiva do critério material exigiria uma compreensão apriorística (um catálogo) das atividades que seriam econômicas ou públicas, em empreendedores. O que veda a CF é a obtenção do monopólio por práticas anticoncorrenciais, como o dumping, tendentes à formação de um monopólio artificial. 32

“Não é fácil oferecer a noção de serviço público, como se depreende do expendido nos números anteriores. A doutrina toma essa locução nas mais variadas acepções e com isso dificulta a obtenção da almejada uniformidade conceitual. Tal verificação levou Waline a dizer, sobre a busca desse desejado conceito, tratar-se de um „diálogo de surdos‟, e a preconizar-se, na França, a „crise da noção de serviço público‟” (GASPARINI, Diógenes, Direito administrativo. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 289).

30 manifesto prejuízo à versatilidade que deve ter a Administração, nos limites da legalidade. Se a resposta, ao contrário, for positiva, então bastaria ao Estado adotar os critérios subjetivo e formal para transformar em serviço público qualquer atividade econômica que queira absorver. A norma do art. 173, tratando como excepcional a atuação direta do Estado no domínio econômico, perderia completamente sua eficácia uma vez que ao Estado fosse permitido, de forma arbitrária, transformar em serviço público qualquer atividade econômica privada. Podemos, assim, facilmente constatar que nenhuma das duas respostas, tomadas em caráter absoluto, solucionaria o problema. Por esse motivo é que se sustentamos a posição de que a melhor definição de serviço público deverá reunir quanto possível os três critérios disponíveis (subjetivo, objetivo e formal), sem lhes exigir coexistência em todos os casos. Trata-se de, casuisticamente, examinar quando determinada atividade poderá – conforme o direito positivo mas sem desconsiderar radicalmente a natureza das coisas – ser enquadrada como serviço público. Para ilustrar, tomemos como exemplo a prestação de serviços médicohospitalares. Sabe-se que tal atividade pode ser desempenhada em hospitais públicos ou privados, ou seja, por pessoas jurídicas de direito público e por agentes econômicos privados. Entendendo-se que se trataria de serviço público, então os agentes privados somente poderiam prestá-lo mediante delegação do poder público (contrato de concessão ou permissão33), vindo seus prestadores a gozar de prerrogativas próprias da fazenda pública (imunidade tributária, impenhorabilidade dos bens aplicados ao serviço etc.). Por outro lado, entendendo-se a mesma atividade como econômica em sentido estrito, o Estado não poderia desenvolvê-la a não ser nas hipóteses excepcionais contidas na Constituição.

33

Não obstante a classificação clássica da permissão como ato administrativo, entendemos que, quando se trata de delegação de serviços públicos, a permissão deve ser instrumentalizada por contrato administrativo.

31 Tudo gira em torno, portanto, de evitar a arbitrariedade e respeitar, em determinados casos, a natureza das coisas. O Estado jamais poderá abrir mão da prestação direta de atividades educacionais e de saúde, ao passo que não deverá criar restrições inconstitucionais à exploração das mesmas atividades pelos agentes econômicos privados. Tais atividades serão públicas ou privadas conforme sejam prestadas ou não pelo Estado, valendo, aqui, o critério subjetivo34. Já a atividade de comércio no varejo (supermercados, por exemplo) jamais poderá, sem violação ao art. 173 da CF, ser considerada pelo Estado como um serviço público, nem mesmo através de lei.

5.3 Intervenção indireta

Na intervenção direta, o Estado age como um dos agentes econômicos privados, assumindo a posição de ator da economia no mesmo cenário das entidades privadas. Desceria à arena econômica e participaria do “jogo” segundo as mesmas regras existentes aplicáveis a todos os demais gladiadores. Trata-se de uma verdadeira atuação empresarial. O Estado se vale, para tanto, das chamadas empresas estatais (empresas públicas, sociedades de economia mista e subsidiárias) como instrumentos de atuação direta na ordem econômica. Na intervenção indireta, diferentemente, o Estado age através de instrumentos diversos e não ingressa na arena econômica ao lado dos demais agentes econômicos privados. Em vez disso, procura influenciar a vida econômica através de normas jurídicas e atividades de regulação, incentivando ou não atividades, fiscalizando o cumprimento das normas de regulação e, finalmente, traçando planos para a economia em prol do desenvolvimento nacional. 34

Alguns autores, a exemplo de André Ramos Tavares, incluiriam os serviços educacionais e de saúde na categoria de serviços de interesse público, a meio caminho dos serviços públicos e das atividades econômicas. Nesse sentido, Direito constitucional econômico. Obra citada. p. 291.

32

5.3.1 Fundamento constitucional

A Constituição Federal embasa o modelo indireto de intervenção estatal no domínio econômico em seu art. 174, caput, estabelecendo que, “como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”. Dos sucessivos parágrafos constam regras que permitem uma clara identificação dos valores que o constituinte pretende preservar. Podemos citar, como

exemplos,

o

desenvolvimento

nacional

equilibrado



1º),

o

cooperativismo (§ 2º) e a atividade garimpeira (§§ 3º e 4º).

5.3.2 O Estado como agente regulador da economia

Há até bem pouco tempo, o Estado era proprietário de empresas que, bem ou mal, exploravam atividades eminentemente econômicas (em sentido estrito), em concorrência ou não com as empresas do setor privado. Entendiase que a administração da maioria dessas entidades era nitidamente deficiente, sendo que algumas das atividades eram prestadas como serviços públicos de péssima qualidade. A idéia de que o Estado, incompetente e deficitário como agente econômico privado, seria muito mais eficiente como agente regulador e fiscalizador da economia fixou as bases do Programa Nacional de Desestatização, criado pela Lei n. 8.031, de 12 de abril de 1990, dando um passo decisivo na formação do perfil que deveria assumir o poder público diante do domínio econômico a partir de então.

33 Nessa linha de pensamento, ensina André Ramos Tavares que “Estado regulador é o novo perfil do Estado contemporâneo, que se afastou da prestação diversas atividades (sic), transferindo-as aos particulares, sem, contudo, abandonar totalmente os setores que deixava, já que permaneceu neles regulando e acertando a conduta privada”35.

5.3.3 Funções

O art. 174, caput, da Constituição Federal atribui ao Estado regulador o exercício, na forma da lei, das funções de fiscalização, incentivo, planejamento vinculativo ao setor público e planejamento indicativo ao setor privado. O principal instrumento de atuação do Estado como agente normativo e regulador, portanto, deverá ser a lei, obedecendo-se, dessa forma, ao princípio da legalidade (arts. 5º, II, 37, caput, e 170, parágrafo único). A lei, contudo, não deverá ser o único instrumento direto de atuação indireta do Estado na economia, como veremos adiante.

a) Fiscalização

Como ente normativo e regulador, deve o Estado traçar regras e impor limites à atuação dos agentes privados, tolhendo-lhes os abusos e evitando que sua conduta demasiado livre venha a corromper a própria ordem econômica. A liberdade de iniciativa, como fundamento/prerrogativa relativa que é, não chega ao ponto de permitir aos agentes privados a utilização de práticas ilícitas lesivas à livre concorrência. Ao poder público incumbe fiscalizar a conduta desses agentes, mantendo-a nos limites da legalidade.

35

Direito constitucional econômico. Obra citada. p. 299.

34 A prerrogativa de estabelecer regras que evitem a destruição do sistema pela atividade lesiva e anticoncorrencial dos agentes privados confere ao Estado o dever-poder de fiscalizar o respectivo cumprimento. A intervenção indireta do Estado funciona aqui como uma forma de limitar a liberdade de um em prol da liberdade de todos e da própria perpetuação da ordem econômica.

b) Incentivo

Acreditar que a conduta do empresário que utiliza seu poder econômico em benefício próprio na busca pelo lucro é ilícita ou lesiva constitui, antes de tudo, um erro. A Constituição Federal reconhece como perfeitamente lícitos o poder econômico e seu uso, bem como a atuação em busca do lucro e do

aumento

do

próprio

poder

econômico.

Veda,

contudo,

práticas

anticoncorrenciais que traduzam abuso dos direitos econômicos de base constitucional ou legal. Não havendo abuso, a atividade econômica privada lucrativa deve ser incentivada pelos poderes públicos. É a partir do êxito da iniciativa econômica legitimamente exercida que se poderá buscar o desenvolvimento nacional, o pleno emprego, a dignidade da pessoa humana, dentre outros valores eminentemente econômicos. Não é tolhendo a iniciativa privada em moldes arbitrários que estará o Estado trabalhando em prol da sua população. A atividade normativa e reguladora do Estado deve incentivar a atuação legítima dos agentes econômicos privados. Quando o desempenho de determinada atividade pela iniciativa privada interessar diretamente ao Estado, este poderá se utilizar, inclusive, de benefícios fiscais e creditícios, ou mesmo da concessão de assistência técnica (como na agricultura).

c) Planejamento

35

O planejamento pode ser compreendido como um método de racionalização e otimização das diversas formas de atuação do Estado no domínio econômico. Não representa propriamente um dos meios de intervenção, mas traduz a opção estatal pela ordenação racional dos meios de intervenção. De fato, a intervenção (ou atuação) do Estado na economia pode se dar com ou sem o planejamento. Por outro lado, o planejamento deve servir de base para a adoção ordenada dos métodos de intervenção que, não utilizadas, tornaria o planejamento absolutamente inútil. Fazendo uma comparação com a engenharia e a arquitetura, poderíamos dizer que o planejamento seria a idealização da obra pelo arquiteto, ao passo que sua realização através dos métodos de intervenção traduziria a execução da obra pelo engenheiro. Sobre o ponto, é oportuna a transcrição do pensamento de Eros Roberto Grau: “O planejamento, assim, não configura modalidade de intervenção – note-se que tanto intervenção no quanto intervenção sobre o domínio econômico podem ser praticadas ad hoc ou, alternativamente, de modo planejado – mas, simplesmente, um método a qualificá-la, por torná-la sistematizadamente racional.”36 Considerando a adoção do sistema capitalista de produção pela República Federativa do Brasil, a Constituição Federal define o planejamento como uma das funções do Estado na qualidade de agente normativo e regulador da economia, mas estabelece que dito planejamento seja vinculante para o setor público e meramente indicativo para o setor privado. Na prática, isso quer dizer que o Estado detém a prerrogativa de definir planos e metas para guiar a economia nacional, os quais deverão ser irrestritamente obedecidos pelas entidades do setor público. Quanto às 36

A ordem econômica na constituição de 1988. Obra citada. p. 151.

36 entidades privadas, terão liberdade para seguir ou não as balizas traçadas, cabendo ao poder público a utilização dos instrumentos de intervenção para incentivar tais agentes econômicos, indicando-lhes o melhor caminho segundo o plano econômico estatal. Não se pode perder de vista que a natureza meramente indicativa do planejamento estatal para o setor privado não significa que não possa o Estado adotar medidas de coerção indireta dentro dos limites de atuação que lhe garante a Constituição. Por isso mesmo, se determinado setor da economia deve ser reforçado, nada obsta que a União possa elevar alíquotas de importação dos produtos importados, fortalecendo a indústria nacional. Os particulares continuam livres para a aquisição dos produtos no exterior. Contudo, o negócio torna-se visivelmente mais atrativo (por conta da maior rentabilidade) quando adquiridos insumos nacionais.

5.3.4 Formas de intervenção

Há diversas formas de intervenção estatal no domínio econômico catalogadas pela doutrina brasileira. Dada a amplitude e pretensão do presente trabalho, abordaremos aqui as figuras da regulação e da regulamentação econômica, com ênfase na distinção entre as duas figuras, e teceremos alguns comentários sobre a atuação fiscal e financeira do Estado, formas bastante utilizadas de intervenção indireta.

a) Regulação e regulamentação econômica

A regulação econômica é apresentada por André Ramos Tavares como um instituto que se caracterizaria “pela imposição, por meio de lei, de determinações acerca do desenvolvimento de atividades econômicas visando

37 ao interesse público37.” Destacam-se, portanto, no conceito fornecido pelo autor, os elementos formal-instrumental (lei formal), modal (determinações, mandamentos, ordens e imposições), material (desenvolvimento de atividades econômicas) e finalístico (interesse público). Na mesma obra, o autor cita conceitos mais amplos formulados por outros autores, dentre os quais Floriano de Azevedo Marques, para quem regulação seria toda atividade estatal que, incidindo no domínio econômico, não envolvesse a assunção direta da exploração de atividade econômica em sentido amplo. Outra posição, também referida pelo autor, defende a tese de que mesmo atividades materiais de cunho econômico pertenceriam ao campo da regulação, embora se afirme que tais categorias devam ser excluídas, adotando-se o conceito mais restrito. De forma plenamente coerente com o conceito adotado para regulação, André Ramos Tavares define regulamentação econômica como o próprio exercício do poder regulamentar (através de normas complementares à lei, a exemplo do decreto) pelo Chefe do Poder Executivo, quando orientado à disciplina do domínio econômico. O autor adota uma visão estrita e formal de regulamentação, associando-a ao poder regulamentar como estudado no direito administrativo. Observamos que os conceitos acima transcritos, principalmente aquele adotado para regulamentação econômica, são eminentemente formais. Procurando afastar os conceitos mais amplos de regulação econômica, André Ramos Tavares parece esquecer que a atuação regulatória pode ser feita ou não através de normas jurídicas. Daí dizer Alexandre Santos de Aragão que há “três poderes inerentes à regulação: aquele de editar a regra, o de assegurar a sua aplicação e o de reprimir as infrações”38.

37

TAVARES, André Ramos. A intervenção do estado no domínio econômico. Obra citada. p. 181. 38

ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 24.

38 Se é verdade que o poder de editar a regra se enquadraria perfeitamente no conceito de regulação dado por André Ramos Tavares, o mesmo não se pode afirmar quanto aos poderes de assegurar a aplicação das mesmas regras e de punir as infrações. Os dois últimos traduzem o exercício de competências inerentes ao poder executivo de polícia, que é instrumento de intervenção indireta do Estado na economia. O próprio André Ramos Tavares diz que “figura o poder de polícia como modo de intervenção estatal quando, por seu intermédio, há possibilidade de aplicar sanções a qualquer errônea atuação de particulares no exercício da atividade econômica”39. A restrição do conceito de regulação econômica às atividades realizadas por meio de leis que imponham determinações aos agentes econômicos em prol do interesse público deixa ao largo as condutas estatais que influenciam (sem determinar) o domínio econômico, conduzindo a economia

nacional

pelos

caminhos

traçados

e

incluídos

no

plano

(planejamento). A amplitude do conceito de regulação se mostra perfeitamente visível quando examinamos a classificação de Alexandre Santos de Aragão sobre o que seria a regulação lato sensu: a) regulação estatal, b) regulação pública não estatal, c) auto-regulação e d) desregulação40. Daí a preferência do autor pela adoção de um conceito mais amplo de regulação econômica, “excluindo tanto a sua assimilação à desregulação, como apenas à regulação coercitiva” 41, e identificando nos critérios de grau e estratégia interventiva a diferença entre regulação e regulamentação42.

39

A intervenção do estado no domínio econômico. Obra citada. p. 185.

40

“Condensando o exposto até o momento, podemos enumerar como possibilidade de regulação lato sensu da economia, (a) a regulação estatal, feita pelas regras emitidas por órgãos do próprio Estado, mesmo que deles participem representantes de organismos intermédios da sociedade; (b) a regulação pública não-estatal, feita por entidades da própria sociedade, mas por delegação ou por incorporação das suas normas ao ordenamento jurídico estatal; (c) auto-regulação, levada a cabo autonomamente por instituições privadas, geralmente associativas (auto-regulação associativa), sem qualquer delegação ou chancela estatal; e (d) a desregulação, consistente na ausência de institucionalizada, pública ou privada, ficando os agentes sujeitos apenas ao livre desenvolvimento do mercado.” (ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras... Cit. p. 33). 41

Ibidem. p. 29.

42

Ibidem. p. 28.

39 Dados os limites da proposta do presente trabalho, não nos será possível tecer considerações mais aprofundadas sobre os conceitos de regulação e regulamentação da economia. Deixamos, contudo, registrada a enorme controvérsia que, sobre o tema, remanesce na doutrina.

b) Atuação fiscal e financeira

O Estado pode intervir no domínio econômico através do competente e racional manejo de instrumentos fiscais e financeiros, nos termos daquilo que lhe permitirem a Constituição Federal e as leis. A utilização interventiva do chamado poder de tributar confere função extrafiscal43 aos tributos cuja imposição é assim realizada. Há tributos que são inerentemente extrafiscais, a exemplo dos impostos de importação e exportação, previstos no art. 153, incisos I e II 44, da Constituição Federal. O adequado manejo de suas alíquotas pelo Poder Executivo45 pode incentivar ou tornar inviável a exploração de determinados setores econômicos, fazendo de tais impostos poderosos instrumentos de intervenção do Estado no domínio econômico pela regulação indutiva do fluxo de mercadorias no comércio com o exterior. 43

Os tributaristas classificam as funções dos tributos em três categorias básicas: fiscal, parafiscal e extrafiscal. Função fiscal é aquela que orienta o tributo para arrecadação de receitas aos cofres do Estado (ex.: Imposto de Renda). Na função parafiscal, os tributos servem ao fim de arrecadação de receitas dirigidas ao financiamento de entidades diversas do Estado (ex.: Contribuições Parafiscais). Por fim, na função extrafiscal o tributo não serve ao fim de arrecadação, mas ao incentivo ou inibição de determinada atividade (ex.: Imposto de Importação cuja alíquota é elevada, inibindo a importação do produto e tornando o similar nacional mais atrativo). Sobre parafiscalidade e extrafiscalidade, cf. TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 10. ed. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. pp. 166167. 44

“Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:

I - importação de produtos estrangeiros; II - exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados;” 45

O art. 153, § 1º, da CF, confere ao Poder Executivo a prerrogativa de, atendidas as condições e os limites previstos em lei, alterar as alíquotas dos impostos de importação e exportação. Essa característica, havida como exceção ao princípio da legalidade tributária, caracteriza os impostos aduaneiros como nitidamente extrafiscais.

40 O imposto de importação é utilizado como forma de tornar mais elevados os custos da importação, tornando esses produtos mais caros no mercado nacional. Com isso, incentiva-se o consumo do similar produzido no Brasil. Da mesma forma, o imposto de exportação pode ser utilizado para inibir a remessa de determinados produtos ao exterior, aumentando a oferta no mercado nacional. Este último tributo tem suas alíquotas normalmente reduzidas para viabilizar uma maior competitividade dos produtos nacionais no mercado internacional, evitando-se a exportação de ônus tributários. Há tributos que apresentam nítida função fiscal (arrecadatória), mas que são também utilizados de maneira extrafiscal (interventiva), como forma de regular o consumo de certos produtos. Um grande exemplo é o Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI, com alíquotas elevadas para produtos supérfluos (cigarros, bebidas etc.) e bem reduzidas para produtos essenciais (alimentos de primeira necessidade). Outra importante forma de utilização do poder estatal de tributar para atuação do Estado no domínio econômico está na previsão constitucional de um tratamento privilegiado a ser conferido às microempresas, empresas de pequeno porte e cooperativas (art. 146, III, “c” e “d” e parágrafo único)46.

46

“Art. 146. Cabe à lei complementar:

(...) III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: (...) c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas. d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239. (Alínea acrescentada pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003, DOU 31.12.2003, com efeitos a partir de 45 dias da publicação) Parágrafo único. A lei complementar de que trata o inciso III, d, também poderá instituir um regime único de arrecadação dos impostos e contribuições da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, observado que: I - será opcional para o contribuinte; II - poderão ser estabelecidas condições de enquadramento diferenciadas por Estado; III - o recolhimento será unificado e centralizado e a distribuição da parcela de recursos pertencentes aos respectivos entes federados será imediata, vedada qualquer retenção ou condicionamento;

41 Ligada à utilização interventiva do poder de tributar está a atuação financeira do Estado, também poderosamente exercida como meio de intervenção no domínio econômico. São exemplos de instrumentos dessa atuação financeira estatal na economia os investimentos públicos em infraestrutura aeroportuária e de transportes, bem como as concessões de créditos e assistência técnica a pequenos produtores rurais. Vale lembrar que a legitimidade da atuação financeira do Estado depende de autorização do Poder Legislativo nas chamadas leis orçamentárias (Lei do Orçamento, Lei de Diretrizes Orçamentárias e Plano Plurianual).

6. CONFLITOS (REAIS OU APARENTES)

O

princípio

da

livre

concorrência,

associado

ao

fundamento

constitucional econômico da livre iniciativa, tem como base conceitual o princípio maior da liberdade. A concessão de uma liberdade irrestrita, contudo, teria como conseqüência inevitável a autodestruição da própria liberdade. Liberdade duradoura, portanto, é liberdade regrada, condicionada, limitada. Sendo assim, só existe conflito real entre liberdade e autoridade quando são examinados conceitualmente. Na prática, a liberdade depende da autoridade como o ser humano depende de oxigênio. A autoridade do Estado é a base da liberdade dos indivíduos. Sem ela, só haveria liberdade até onde cada um pudesse garanti-la pela força cega, irracional e arbitrária. Os conflitos que se apresentam a seguir sobre a liberdade de iniciativa e concorrência e a autoridade do Estado para intervir na economia são meramente aparentes no plano prático e, como se verá a seguir, a liberdade depende, em todos os casos, da autoridade para manter-se viva e operante.

IV - a arrecadação, a fiscalização e a cobrança poderão ser compartilhadas pelos entes federados, adotado cadastro nacional único de contribuintes.” (NR) (Parágrafo acrescentado pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003, DOU 31.12.2003, com efeitos a partir de 45 dias da publicação)

42 Comecemos pelo tabelamento oficial de preços.

6.1 Tabelamento oficial de preços

Em uma sociedade onde vigore o princípio da liberdade de concorrência e de iniciativa, as diversas variáveis inerentes à economia – produção, oferta, preço, demanda, consumo etc. – devem ser dimensionadas de acordo com as leis do mercado, sem interferências externas artificiais, ou seja, provenientes do Estado. A aplicação absoluta da liberdade de iniciativa e concorrência garantiria aos agentes econômicos privados a prerrogativa de estabelecer seus preços de forma livre e autônoma, independentemente de quaisquer condicionamentos ou recomendações estatais. O abuso da prerrogativa tornaria a fixação do preço algo fora do alcance do controle do Estado. Nenhum princípio, contudo, é absoluto. De acordo com a Constituição Federal de 1988, o Estado tem a prerrogativa de intervir direta ou indiretamente no domínio econômico, desde que se mantenha dentro dos limites estabelecidos pela própria CF. Deve atender aos fins previstos, utilizar os meios legítimos e nunca ir além daquilo que seja essencialmente necessário ao atingimento da proposta constitucional. Aqui se coloca o problema do tabelamento ou congelamento de preços que, na prática, significa uma imposição feita pelo Estado aos agentes econômicos privados para que comercializem seus produtos pelo chamado preço oficial, podendo a venda por preço superior ser punida civil, administrativa e até penalmente. A crítica que se faz ao expediente do tabelamento oficial é que representaria clara violação a uma das mais importantes prerrogativas conferidas pelo princípio da livre concorrência: a fixação do próprio preço

43 segundo as leis do mercado. André Ramos Tavares diz que tanto o tabelamento quanto o congelamento “são medidas intervencionistas que afetam a economia de mercado e não podem subsistir válidas perante a ordem constitucional brasileira”47. O tabelamento/congelamento seria, dessa forma, inconstitucional por violação à liberdade de iniciativa e (principalmente) concorrência. Aqui surge a questão dos monopólios naturais. O monopólio será artificial quando se formar a partir da utilização de recursos que traduzam abuso do poder econômico, como a prática de preços inferiores aos custos da produção pelo tempo necessário à eliminação de todos os demais concorrentes (dumping). O monopólio será natural quando advier da utilização lícita do poder econômico, como no caso em que um industrial desenvolve uma técnica que torna seu produto muito melhor e mais barato que os similares, alijando os concorrentes do mercado. O Estado tem a função de reprimir os abusos cometidos pelos agentes privados na utilização do poder econômico. Ao passo que a formação de monopólios artificiais deve ser duramente combatida, os monopólios naturais são decorrência legítima da liberdade de iniciativa e concorrência. Sua formação, portanto, não é conseqüência de um ato abusivo que visava à eliminação da concorrência ou à dominação dos mercados. O problema surge quando, formado um monopólio natural em razão da exclusividade do fornecedor, venha o agente econômico monopolista a praticar um preço excessiva e abusivamente superior aos custos da produção. Piorando o problema, considere-se que o produto fornecido é um medicamento comprovadamente eficaz no combate a uma doença infecto-contagiosa mortal sem cura até então conhecida. Seria possível o tabelamento oficial do preço praticado? A par da discussão sobre a possibilidade ou constitucionalidade do tabelamento oficial, o que parece certo é que a conduta do agente privado 47

Direito constitucional econômico. Obra citada. p. 271.

44 exclusivo que pratica preço extorsivo é nitidamente um abuso do poder econômico que visa ao aumento arbitrário dos lucros, figura prevista no art. 173, § 4º, da Constituição Federal como motivadora de uma atuação estatal repressiva a ser realizada com base em lei. Parece-nos claro que o Estado não poderia ficar inerte diante dessa situação, assistindo passivamente à prática de tal abuso. Como alternativa ao tabelamento, o poder público poderia responsabilizar o agente privado por infrações à ordem econômica (o que teria caráter punitivo), além do que lhe seria possível utilizar o poder de polícia de modo a forçar um retorno da atividade empresarial aos lindes da legalidade. Os instrumentos iriam desde as multas administrativas até medidas de cunho punitivo por infrações contra a ordem econômica. E o tabelamento? Não nos parece que, nesse caso, o tabelamento oficial fosse inconstitucional. A

Constituição

Federal

consagra

a

liberdade

de

iniciativa

e

concorrência respectivamente como fundamento e princípio inerentes à ordem econômica, valores que devem ser protegidos em razão de suas funções para a manutenção da proposta constitucional de garantir uma economia de mercado de base capitalista sem prejuízo do desenvolvimento nacional, da dignidade da pessoa humana, dos valores do trabalho e da proteção ao consumidor. As liberdades, portanto, não são finalidades em si. Existem para que os agentes privados possam contribuir com o Estado na implementação dos valores abraçados pela Constituição. Se essa mesma liberdade, no caso concreto, é utilizada contra os valores que deveria ajudar a proteger, deve o Estado, com autoridade, intervir para fazer retornar à legalidade o estado de coisas. A conclusão a que se chega é que a liberdade de iniciativa e concorrência – intocadas no plano normativo constitucional – não protege o sujeito que, em concreto, abusa no exercício do poder econômico para afastar

45 a concorrência, dominar mercados ou aumentar arbitrariamente seus lucros. Não existe garantia constitucional que sobreviva no ambiente do abuso e proteja o agente econômico privado contra uma atuação estatal interventiva dotada de proporcionalidade e razoabilidade. A idéia, portanto, é a de que o tabelamento oficial de preços constitui, em princípio, violação ao princípio da liberdade de concorrência no plano conceitual e abstrato. De fato, o conceito de liberdade de concorrência é incompatível com o conceito de imposição oficial de preços. Contudo, se no plano (caso) concreto determinado agente econômico atuar com abuso do poder econômico para aumentar arbitrariamente seus lucros, considera-se que abandonou o manto protetor da garantia constitucional e se expôs à sorte de medidas interventivas estatais razoáveis e proporcionais, dirigidas à repressão contra o abuso e à restauração da normalidade. Se a medida de intervenção age,

concretamente,

como

veículo

de

efetiva

restauração

da

constitucionalidade, não poderá haver inconstitucionalidade. É a autoridade do Estado atuando como oxigênio da própria liberdade.

6.2 Benefícios fiscais e lesão concreta à livre iniciativa

Uma interessante questão em que se coloca a necessidade de compatibilização entre a função estatal de intervenção do domínio econômico e o respeito à livre iniciativa e livre concorrência está na outorga de benefícios e incentivos fiscais a determinados agentes econômicos privados, gerando com isso a redução da clientela dos agentes não beneficiados. A Constituição Federal estabelece, como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, a) a garantia ao desenvolvimento nacional (art. 3º, II), b) a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como c) a redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III). A redução das

46 desigualdades regionais e sociais está igualmente prevista como princípio da ordem econômica (art. 170, VII). Em razão desse compromisso constitucional, a União tem a excepcional

prerrogativa

de

instituir

tributos

de

forma

regionalmente

diferenciada, com vistas à promoção do objetivo fundamental de reduzir desigualdades regionais. Pode, por exemplo, reduzir a carga tributária de empresas que vierem a se instalar em áreas menos populosas ou mais carentes de recursos e empregos, a exemplo do que ocorre nas Regiões Norte e Nordeste. É o art. 151, I, da CF/88 que, estabelecendo o princípio da uniformidade tributária, prevê a excepcional prerrogativa de instituição diferenciada de tributos segundo a necessidade de redução das desigualdades regionais o recomende48. Uma crítica bastante pertinente que se faz à utilização dessa prerrogativa tributária extrafiscal dirige-se à concessão de benefícios fiscais a determinadas empresas venham a se estabelecer em determinado lugar do País, negando-se a extensão do benefício àquelas que, explorando o mesmo ramo de atividade, já se encontrassem sediadas há algum tempo na mesma região. É absolutamente lógico que, com menores custos para produção e circulação de sua mercadoria, as empresas beneficiadas estarão em muito melhor condição de produzir e comercializar seus produtos do que as demais. A situação fica ainda mais ilógica quando se atenta para o fato de que a empresa recém chegada não tinha a vontade de investir naquela região até a proposta de concessão dos incentivos fiscais e, por isso, sai extremamente beneficiada. As empresas que ali se instalaram antes resolveram investir no lugar independentemente de qualquer benefício e, a partir de agora, vê o poder 48

“Art. 151. É vedado à União:

I – instituir tributo que não seja uniforme em todo o território nacional ou que implique distinção ou preferência em relação a Estado, ao Distrito Federal ou a Município, em detrimento de outro, admitida a concessão de incentivos fiscais destinados a promover o equilíbrio do desenvolvimento sócio-econômico entre as diferentes regiões do País;”

47 público financiar parte dos custos operacionais de uma empresa concorrente, saindo sensivelmente prejudicada. Intervenções assim são manifestamente inconstitucionais por violação à livre iniciativa e livre concorrência, pois prejudicam o agente econômico privado que, desprovido dos mesmos benefícios, tem mais custos operacionais para a produção e a circulação de seus produtos do que a empresa beneficiada, e poderá ver-se obrigada a fechar suas portas naquela localidade. Antes de promover redução de desigualdade regional ou aumento do emprego, tal atuação gera instabilidade econômica naquela região e afasta novas empresas. O fantasma de serem alijadas do mercado por outras concorrentes beneficiadas estará sempre lá para afugentar novos investimentos. Não obstante essas considerações, parece lógico que a concessão de incentivos ou benefícios fiscais a prazo certo e extensível às empresas já localizadas na região beneficiada, preservando-se as condições de livre concorrência, poderá bem e fielmente servir aos objetivos constitucionais de redução das desigualdades regionais. Em assim procedendo, o Estado eliminar a possibilidade do surgimento de um conflito real e concreto entre intervenção e liberdade, mantendo-o, como propomos acima, exclusivamente no plano abstrato e conceitual.

6.3 A disciplina de preços no setor sucro-alcooleiro em desacordo com o Instituto do Açúcar e do Álcool (RE 422941)

Através do Estatuto da Lavoura Canavieira (DL n. 3855/41), como forma de incentivo aos produtores rurais ligados à agricultura canavieira e exemplo de atividade estatal de intervenção indireta no domínio econômico, o Estado adotou uma política de tabelamento do preço da tonelada da cana, disciplina que se manteve vigente até o advento da Portaria MF n. 275/98.

48 De fato, a Portaria MF n. 275, de 16 de outubro de 1998, pondo fim ao tabelamento oficial de preços até então vigente, estabeleceu, em seu art. 5º, que “os preços da cana-de-açúcar, inclusive os fretes, fornecida às usinas e destilarias autônomas de todo o País, os do açúcar cristal standard, os do álcool hidratado para fins carburantes, os do álcool para fins não carburantes de todos os tipos e os do mel residual, na condição PVU ou PVD, serão liberados em 1º de fevereiro de 1999”. O Instituto do Açúcar e do Álcool – IAA, até sua extinção em 1990 pelo Decreto n. 99.288/90, tinha um importante papel no contexto da intervenção exercida pela União sobre a atividade econômica de produção e circulação da cana-de-açúcar e seus derivados, a exemplo do álcool hidratado para fins carburantes e do açúcar cristal. Com a extinção do IAA, suas atribuições foram transferidas ao Ministério da Fazenda e à Secretaria do Desenvolvimento Regional da Presidência da República. No caso que interessa ao presente trabalho, ocorreu que a União teria fixado os preços a serem praticados na circulação da produção canavieira em valores inferiores aos sugeridos pelo Instituto do Açúcar e do Álcool, com o que não teria concordado a Destilaria Monte Alegre. Alegando a ocorrência de prejuízos de ordem patrimonial, a destilaria ajuizou ação de indenização em face da União. Tomando conhecimento da causa em caráter originário, a Justiça Federal de primeira instância julgou procedente o pedido, sendo mantida a decisão pelo Tribunal Regional Federal diante da apelação interposta pela União. Com a interposição do recurso especial, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que seria válida a fixação dos preços em valores inferiores aos propostos pelo IAA, uma vez que decorreria do poder estatal de intervenção no domínio econômico, não gerando, por tal motivo, direito a indenização. Contra essa decisão foi interposto recurso extraordinário. O julgamento da questão pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (em sede de recurso extraordinário) se deu em 06 de dezembro de 2005 e a

49 decisão foi publicada na edição do dia 24 de março de 2006 do Diário da Justiça. O acórdão ficou assim ementado: “EMENTA:

CONSTITUCIONAL.

ECONÔMICO.

INTERVENÇÃO

ESTATAL NA ECONOMIA: REGULAMENTAÇÃO E REGULAÇÃO DE SETORES ECONÔMICOS: NORMAS DE INTERVENÇÃO. LIBERDADE DE INICIATIVA. CF, art. 1º, IV; art. 170. CF, art. 37, § 6º. I. – A intervenção estatal na economia, mediante regulamentação e regulação de setores econômicos, faz-se com respeito aos princípios e fundamentos da Ordem Econômica. CF, art. 170. O princípio da livre iniciativa é fundamento da República e da Ordem econômica: CF, art. 1º, IV; art. 170. II. – Fixação de preços em valores abaixo da realidade e em desconformidade com a legislação aplicável ao setor: empecilho ao livre exercício da atividade econômica, com desrespeito ao princípio da livre iniciativa. III. – Contrato celebrado com instituição privada para o estabelecimento de levantamentos que serviriam de embasamento para a fixação dos preços, nos termos da lei. Todavia, a fixação dos preços acabou realizada em valores inferiores. Essa conduta gerou danos patrimoniais ao agente econômico, vale dizer, à recorrente: obrigação de indenizar por parte do poder público. CF, art. 37, § 6º. IV. – Prejuízos apurados na instância doutrinária, inclusive mediante perícia técnica. V. – RE conhecido e provido.” A decisão do STF traz à tona aquilo que procuramos demonstrar como sendo o ponto central do presente trabalho: a coexistência entre o poder estatal válido e efetivo de intervenção do domínio econômico e a necessidade de respeito ao fundamento da livre iniciativa e ao princípio da livre concorrência. A compatibilização entre as duas grandezas constitucionais – autoridade e liberdade – fica bastante clara na conclusão a que chegou o tribunal.

50 Começando pela própria demanda, atentemos para o fato de que o pedido foi de indenização por danos em razão da ocorrência de prejuízos materiais a partir do ato de intervenção, de modo que a decisão judicial não precisaria considerar inválida a atuação estatal, mas apenas reconhecer que, embora válida, ela teria sido lesiva de direito subjetivo legítimo. Exatamente por esse motivo que a parte autora fundamentou seu pedido na responsabilidade civil objetiva do Estado, com o que eliminaria quaisquer defesas que se baseassem na licitude da atuação estatal. O julgamento do STJ incidiu exatamente nessa questão quando reconheceu a legitimidade da atuação interventiva da União, afastando a indenizabilidade dos danos alegados em razão exatamente dessa legitimidade. Uma atuação estatal legítima, representativa do poder de intervenção no domínio econômico, não poderia ser ao mesmo tempo geradora de danos indenizáveis e, por isso mesmo, a União teria a prerrogativa de, exercendo esse poder, definir preços em valores inferiores aos sugeridos pelo IAA, mesmo que isso causasse danos materiais. Em seu julgamento, o Supremo Tribunal Federal eliminou a legitimidade da intervenção estatal como causa excludente da responsabilidade civil e adotou a teoria da responsabilidade civil por atos lícitos. A própria teoria objetiva da responsabilidade civil, afastando a necessidade de apuração de culpa, prega a responsabilidade civil por atos lícitos. A licitude da atuação estatal, portanto, não pode ser encarada por si mesma como uma causa eficiente de exclusão da responsabilidade civil do Estado49. Desse modo, o STF entendeu que as duas grandezas deveriam coexistir no mesmo ambiente. Não se pretendeu, em momento algum (e isso 49

Em trabalho anterior, desenvolvemos a idéia de que a licitude da conduta não pode ser admitida como causa eficiente da exclusão de responsabilidade civil. Sendo, por um lado, ato ilícito aquela figura definida no art. 186 do CC, dependente da existência de culpa lato sensu a permear a conduta e, por outro, não havendo necessidade de culpa para a responsabilidade objetiva, concluímos que a responsabilidade objetiva é uma forma de responsabilidade civil por atos lícitos. Em nosso trabalho, contudo, procuramos afastar da conduta e das teorias da culpa e do risco o fundamento da responsabilidade civil, concentrando-o no dano. O critério unificador da responsabilidade civil seria, dessa forma, a ilicitude do dano. (Cf. ABREU, Rogério Roberto Gonçalves de. Teoria do dano ilícito. In DELGADO, Mário Luiz e ALVES, Jones Figueiredo. Questões controvertidas: responsabilidade civil (Série Grandes Temas de Direito Privado). São Paulo: Método, 2006. v.5. pp. 507-528).

51 ficou claro na decisão do STF), invalidar os atos praticados pela União que fixaram os preços do setor sucro-alcooleiro em valores inferiores aos sugeridos pelo IAA. Por outro lado, com a indenização dos danos suportados pelo agente econômico privado, reconheceu-se a este último o direito a não se permitir imolar por essa mesma atuação legítima estatal interventiva, a qual deverá sempre respeitar os direitos fundamentais, especialmente aqueles de índole constitucional-econômica. Dessa maneira, ao mesmo tempo em que se resguarda a legitimidade do poder estatal de intervenção ativa no domínio econômico, fica igualmente protegida a integridade da liberdade de iniciativa e da livre concorrência.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde o início, a proposta principal do presente trabalho era a realização de um estudo casuístico sobre os conflitos existentes entre o fundamento da livre iniciativa, o princípio da livre concorrência e a prerrogativa estatal de intervenção do domínio econômico, pondo relevo ao necessário equilíbrio de forças entre autoridade e liberdade. A base do estudo seria o já comentado julgado do Supremo Tribunal Federal que, dando provimento a recurso extraordinário da Destilaria Monte Alegre, reformando decisão do Superior Tribunal de Justiça, entendeu que o poder do Estado de intervir no domínio econômico teria que respeitar o fundamento constitucional-econômico da livre iniciativa. Como um exame específico do julgado demandaria, por amor à clareza, a construção de bases teóricas mais sólidas, procuramos tecer algumas considerações acerca das “grandezas constitucionais” envolvidas: livre iniciativa, livre concorrência e intervenção do Estado no domínio econômico (autoridade e liberdade). Daí as linhas sobre cada um desses assuntos. Registramos também que a proposta do trabalho não permitia (e não permitiu) um aprofundamento nos temas em questão, mas o êxito da

52 empreitada passava por um exame, ainda que superficial, dos institutos em conflito. Assim procuramos fazer. Na redação do trabalho, uma idéia surgiu como muito clara. É interessante notar como as liberdades mal utilizadas se tornam fatores de cerceamento da própria liberdade: inicialmente por parte dos beneficiários e, em seguida, pela entidade garantidora da liberdade. Com o exame casuístico de situações em que a liberdade conflita com a autoridade do Estado, o que se viu foi a constatação de que a última está para a primeira como uma forma de efetivação e preservação. Utilizada na medida certa, a autoridade do Estado é a única forma de perpetuar a liberdade. Por outro lado, não utilizada a autoridade estatal mediadora, a própria liberdade se encarrega de sua destruição. Exatamente por esse motivo é que sustentamos a idéia de que, partindo-se do ponto de que liberdade e autoridade devem ser utilizadas e usufruídas sempre e tão somente nos limites do que dita o racional (razoável, proporcional), só se pode identificar um conflito entre ambas no plano puramente conceitual, quase virtual. Na prática, a liberdade confere legitimidade à autoridade do Estado. Esta, por sua vez, confere perenidade à liberdade. Nisso reside, portanto, a compatibilização entre a autoridade do Estado quando intervém no domínio econômico e a liberdade dos agentes econômicos quando atuam no mesmo domínio.

8. BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

ABREU, Rogério Roberto Gonçalves de. Teoria do dano ilícito. In DELGADO, Mário

Luiz

e

ALVES,

Jones

Figueiredo.

Questões

controvertidas:

responsabilidade civil (Série Grandes Temas de Direito Privado). São Paulo: Método, 2006. v.5. pp. 507-528.

53 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2002. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2006. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 18. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005. BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 15. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2006. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2003. GASPARINI, Diógenes, Direito administrativo. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2006. _____. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6.ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 15.ed. rev. São Paulo: Malheiros, 1998. TAVARES, André Ramos. A intervenção do estado no domínio econômico. In CARDOZO, José Eduardo Martins, QUEIROZ, João Eduardo Lopes e SANTOS, Márcia Walquíria Batista dos (orgs). Curso de direito administrativo econômico. São Paulo: Malheiros, 2006.

54 _____. Direito constitucional econômico. São Paulo: Método, 2003. TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 10. ed. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. VENOSA, Sílvio de Sálvio. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.