Livro \"Astronomia das constelações humanas: reflexões sobre Claude Lévi-Strauss e a história\". Apresentação de Sara Albieri e Prefácio de François Hartog. São Paulo: Ed. Humanitas, 2016. 424 páginas. (Sumário + Introdução)

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Descrição do Produto

astronomia das constelações humanas Reflexões sobre Claude Lévi-Strauss e a história

Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Diretor Sérgio França Adorno de Abreu Vice-Diretor João Roberto Gomes de Faria Editora Humanitas Presidente Ieda Maria Alves Vice-Presidente Mário Antônio Eufrásio

Este trabalho recebeu o Prêmio História Social de Teses e Dissertações da USP/CAPES 2012.

Apoio financeiro: CAPES/PROEX – Brasil (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior)

HUMANITAS

Rua do Lago, 717 – Cidade Universitária 05508-080 – São Paulo – São Paulo – Brasil Telefax: (11) 3091-2920 e-mail: [email protected] http://editorahumanitas.commercesuite.com.br

Proibida a reprodução parcial ou integral desta obra por qualquer meio eletrônico, mecânico, inclusive por processo xerográfico, sem permissão expressa do editor (Lei nº. 9.610, de 19.02.98).

Foi feito o depósito legal Impresso no Brasil / Printed in Brazil Agosto 2016

Francine Iegelski

astronomia das constelações humanas Reflexões sobre Claude Lévi-Strauss e a história

São Paulo, 2016

HUMANITAS

Copyright©2016 Francine Iegelski

Catalogação na Publicação (CIP) Serviço de Biblioteca e Documentação Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

I22

Iegelski, Francine. Astronomia das constelações humanas : reflexões sobre o pensamento de Claude Lévi-Strauss e a história / Francine Iegelski. -São Paulo : Humanitas, 2016. 422 p. Originalmente apresentada como Tese (Doutorado) -- Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2012. ISBN 978-85-7732-308-1 1. Antropologia cultural e social. 2. História social. I. Lévi-Strauss, Claude. II. Título. CDD 301.2

Serviço de Editoração e Distribuição Tel: (11) 3091-2920/4593 [email protected]

Coordenação editorial e Capa Maria Helena G. Rodrigues – Mtb n. 28.840/SP Projeto Gráfico e Diagramação Walquir da Silva – Mtb n. 28.841/SP Capa Víctor Ivanon

Para Ícaro e Jango, todas as minhas estrelas

Agradecimentos

À professora Sara Albieri, por ter me incentivado e orientado com inteligência e sensibilidade. Esse livro jamais seria possível sem seu acompanhamento e sem as conversas que regularmente mantivemos sobre história intelectual e teoria da história. Seguir seus cursos no Programada de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo foi fundamental para minha formação e para a escolha do campo de trabalho que verdadeiramente me interessa e instiga como historiadora. Ao professor François Hartog, que me acolheu generosamente por duas vezes em meus estágios de pesquisa na École des hautes études en sciences sociales, em Paris. A primeira, no período do doutorado-sanduíche, entre os anos 2010-2011 e, a segunda, entre 2014-2015, quando fiz meu pós-doutorado com a intenção de realizar uma retomada crítica da tese. A oportunidade de assistir seus seminários foi determinante para a conclusão desse trabalho. Além disso, o contato com suas reflexões sobre as relações entre tempo e história e o campo da historiografia abriu, para mim, um novo leque de questões que espero poder aprofundar a partir de agora. Aos professores Ricardo Benzaquen de Araújo, Marcio Goldman, Modesto Florenzano e Miguel Soares Palmeira, pela leitura atenta e criteriosa do trabalho, pelas sugestões enriquecedoras feitas a propósito da defesa da tese.

À professora Cicilian Luiza Löwen Sahr, por mais de uma década de aprendizado, inspiração, parceria e amizade. Ao professor Mamede Mustafa Jarouche, que me conduziu em meus primeiros estudos sobre crítica literária e literatura brasileira durante meu mestrado em Letras, no Programa de Língua, Literatura e Cultura Árabe da USP. Aos professores Edson Armando Silva e Rosângela Petuba, pelo apoio e incentivo desde os primeiros anos da minha graduação no curso de História da Universidade Estadual de Ponta Grossa, no Paraná. Ao amigo Felipe Brandi, pelas conversas que tivemos sobre Lévi-Strauss, a história e tantas outras coisas. Aos amigos de todas as horas Gislaine Kalinowski, Luana Bife, José Helder Severo, Edison Cardoni, e a todos aqueles com quem convivi no Programa de Pós-Graduação em História Social da USP e no Grupo de Pesquisa em História Intelectual. Aos colegas que conheci no CRUSP, com os quais convivi e compartilhei preocupações e esperanças. À Francisca da Silva Iegelski. A Tiago Almeida, por tudo o que fizemos e faremos juntos. À Capes, pelo auxílio financeiro durante a pesquisa de doutorado (2008-2012) e o estágio-sanduíche (2010-2011), e à FAPESP pelo auxílio financeiro durante as pesquisas de Pós-doutorado na USP (2013-2015) e na EHESS (2014). À Comissão Editorial do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo, pelo Prêmio de Publicação de Teses 2012 que tornou possível esse livro.

“e por isso escrevo e por isso escravo roo a unha do tempo até o sabugo” Galáxias, Haroldo de Campos

Sumário

Apresentação, por Sara Albieri

13

Prefácio, por François Hartog

17

Introdução

25

Capítulo I A antropologia estrutural é um humanismo - O encontro com o pensamento selvagem

53



1. A descoberta da América

64



2. O terceiro humanismo lévi-straussiano

90



3. O sensível e o inteligível

100



4. O humanismo para além do homem

109

Capítulo II As duas faces de Janus - História e Etnologia

121



1. Fundamentos teóricos e metodológicos da antropologia



estrutural 2. As estruturas

123 132



3. Braudel e as cem faces da história

146



4. Os limites da história

176

astronomia das constelações humanas

Capítulo III O espetáculo dos outros -Formas (d)e temporalidade e crítica da ideia de progresso 1. Marx e as causas das descontinuidades culturais 2. Crítica da ideia de progresso

187 193 215



3. Raça, história e cultura

234



4. O binômio quente-frio

249

Capítulo IV A história reencontrada - "Quando o mito se torna história”

269



1. Apologia do Japão

272



2. Ásia, Europa, América

285



3. A história dos mitos

316



4. A outra face da lua

324

Capítulo V Experiências do tempo - Lévi-Strauss e a historiografia contemporânea

355



1. Lévi-Strauss na historiografia

357



2. História e Etnologia (1983)

365



3. Experiências do tempo, regimes de historicidade

373



4. À guisa de conclusão ou porque Lévi-Strauss agora

399

Bibliografia 409

12

Apresentação Sara Albieri

No ambiente da pesquisa acadêmica em história via de regra o nome de Lévi-Strauss não é bem acolhido. De imediato, levantam-se as barreiras disciplinares: que tem a contribuir um antropólogo para a seara dos historiadores? Os campos de atuação acadêmicos têm fronteiras ciosamente guardadas: na falta de melhores critérios, ao fim e ao cabo elas definem a identidade mesma de áreas e de seus pesquisadores. Mas, no caso da historia, a resistência a Lévi-Strauss tem também outra origem. Por volta dos anos de 1950, a obra do antropólogo crescia em importância, dentro e fora das fronteiras de seu campo disciplinar. Ele havia entrado em contato com os cursos de Jakobson na New School for Social Research em Nova York, ambos expatriados pelas circunstâncias da Europa às vésperas da Segunda Guerra. A apropriação de conceitos inovadores da linguística para a interpretação dos códigos sociais e culturais conferiu à então jovem antropologia social um padrão interpretativo ao mesmo tempo rigoroso e frutífero, em pouco tempo celebrizado como método estrutural. O sucesso da nova antropologia a torna o modelo a ser seguido pelas ciências do homem, sempre carentes de certificação para seus conhecimentos. Afinal, os conhecimentos sobre o homem e o universo simbólico em que habita são os últimos a abandonar relutantemente

13

Prefácio François Hartog

Nos anos 1950-1960, Claude Lévi-Strauss havia aberto a questão da antropologia e da história. Mais de meio século depois, Francine Iegelski decidiu retomar a matéria. Por três razões, diferentes e de importâncias desiguais. Primeiro, nunca é inútil, quando se pratica a história intelectual, retornar às controvérsias. Elas exibem e põem em tensão as posições respectivas dos protagonistas; elas também trazem à luz do dia toda a parcela inevitável de quiproquós que circundam, obscurecem mas que também revelam os desafios verdadeiros ou duradouros dos debates. Ora, o estruturalismo, e aquele que geralmente foi reconhecido, na França, como seu inspirador, senão seu inventor, Claude Lévi-Strauss, foi quase imediatamente notado, ou seja, criticado e brutalmente recusado por alguns, em nome de uma defesa da história, de uma história conduzida pelo engajamento, uma das grandes palavras de ordem da época. E isso, apesar de Lévi-Strauss ter sempre dito e repetido que tinha a história em alta consideração. Assim, compreender como e porque a controvérsia foi forjada, no contexto dos anos 1960, permite melhor compreender, com o distanciamento, aquilo que foi a grande virada das ciências humanas e sociais, que foi vista retrospectivamente como a sua idade de ouro e, quando elas foram retomadas de maneira seletiva nos Estados Unidos, passou a ser chamada de French

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Introdução1

O antropólogo Claude Lévi-Strauss foi acusado de desconhecer, menosprezar e recusar a história. No entanto, nunca deixou de afirmar que a história sempre ocupou um papel importante em seu pensamento: “Nada me interessa mais do que a história. E há muito tempo”2. A maior parte das críticas endereçadas a Lévi-Strauss na década de 1960 vinha do julgamento de que suas análises não dariam atenção às contingências da vida social e abstrairiam o tempo. Para os críticos mais severos, a antropologia estrutural correspondia a uma espécie de sociologia ra1

Apesar dos cortes, reparos e adições substanciais, esse livro conserva as ideias e as motivações de minha tese de doutorado, defendida em 2012 junto ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo. Em 2014-2015, durante meu estágio de pós-doutorado na École des hautes études en sciences sociales, em Paris, sob a supervisão do professor François Hartog e com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, dei início a uma retomada crítica das questões presentes sobretudo no último capítulo desse livro. Esse exercício resultou no artigo intitulado “Resfriamento das sociedades quentes? Crítica da modernidade, história intelectual e história política”. No prefácio, o professor Hartog também dialoga com as ideias apresentadas no artigo mencionado, ao qual remeto o leitor interessado em seguir a discussão sobre o problema das experiências do tempo nas sociedades contemporâneas, um tema que não aparece senão em germe nesse livro.

2

Claude Lévi-Strauss e Didier Eribon, De perto e de longe, trad. Léa Mello e Julieta Leite. (São Paulo: Cosac & Naify, 2005), 171.

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astronomia das constelações humanas

refeita em que os fenômenos apareciam como que descolados de seu suporte histórico. Se Lévi-Strauss sempre se interessou pela história, ao mesmo tempo, como bem notou François Hartog, “ele nunca escondeu que sua tarefa era outra: a elaboração de uma antropologia estrutural”3. A história, no pensamento de Lévi-Strauss, aparece, portanto, a propósito da reflexão e da análise na antropologia estrutural, não em oposição a elas. Trabalhos recentes de historiadores e antropólogos mostram que aquelas antigas objeções à postura lévi-straussiana foram parar na “lixeira da história”4. No Brasil, Estados Unidos e França, a antropologia estrutural tem reconquistado sua atualidade nas ciências humanas, de um lado, graças à sua compreensão das relações entre história e estrutura e, de outro, pela crítica que fez à ideia de progresso formulada pelo pensamento moderno. O trabalho do próprio Hartog, por exemplo, é coerente com essa perspectiva, pois retoma as questões fundamentais colocadas por Lévi-Strauss acerca da historicidade e da história escrita pelos historiadores. A retomada das discussões sobre a história promovidas pela antropologia estrutural não nos oferece apenas elementos para entendermos um capítulo notável da história intelectual francesa do século XX. O pensamento de Lévi-Strauss é uma importante referência para os historiadores que colocam a questão da possibilidade, ou da impossibilidade, das ciências humanas alcançarem um ponto de vista mais geral sobre o conjunto da vida social e do homem. Sabe-se que a antropologia es-

3

François Hartog “O olhar distanciado. Lévi-Strauss e a história”, trad. Temístocles Cezar, Topoi, [vol.] 7, 12 (2006): 10 (9-24).

4

C. Lévi-Strauss e D. Eribon, op. cit., 174. Essa expressão é empregada por Oscar Calavia Saéz para classificar como ultrapassadas as antigas objeções feitas ao pensamento supostamente anti-histórico de Lévi-Strauss. Oscar Calavia Sáez, “A história pictográfica”, In: Lévi-Strauss. Leituras brasileiras, orgs. Ruben Caixeta de Queiroz, Renarde Freire Nobre (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008), 125.

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introdução

trutural pretende atingir tal ponto de vista voltando sua atenção para a qualidade diacrônica e sincrônica dos fenômenos culturais. Mas como compreender esse objetivo? Como Lévi-Strauss poderia apreender a estrutura sem virar as costas para a história? A explicação não é evidente. Sobre esse problema inúmeros autores manifestaram seus pontos de vista. Maurice Merleau-Ponty chamou a atenção para o empenho de Lévi-Strauss em estabelecer relações de complementaridade entre tudo o que a filosofia e as ciências ocidentais apresentaram como pares dicotômicos: a sensibilidade e a razão, as coisas e a consciência, o objeto e o sujeito, o particular e o universal e, acrescentamos nós, a história e a estrutura, a vida cotidiana e as leis psicológicas universais. Para Merleau-Ponty, essa “grande tentativa intelectual” de Lévi-Strauss deve-se à sua determinação em tomar o homem tal “como ele é, em sua situação efetiva de vida e de conhecimento”5. Para o filósofo francês, o objetivo final da antropologia seria atingir “um sistema de referência geral onde podem encontrar lugar o ponto de vista do indígena, o do homem civilizado, e os erros de um sobre o outro”6. Para Jean Pouillon, a antropologia estrutural tem como objetivo principal a compreensão do outro, o que o leva a explorar aquilo que considera a originalidade da obra lévi-straussiana: a fundação da alteridade como a descoberta de uma relação, não de uma barreira. A compreensão do outro não significaria nem a simples identificação, o que o tornaria familiar, reduzindo a diferença a uma espécie de ilusão, nem a negação da possibilidade de apreensão, como se fosse um objeto insondável, o que tornaria a diferença incomunicável. Nas palavras de Pouillon, Lévi-Strauss procuraria “manter o outro na sua especificidade”7. 5

Maurice Merleau-Ponty, “De Mauss a Lévi-Strauss”, trad. Marilena Chauí (São Paulo: Editora Abril, 1975), 393. – (Os Pensadores, vol. XLI)

6

Idem.

7

Jean Pouillon, “A obra de Claude Lévi-Strauss”, trad. Inácia Canelas, In: Raça e história, C. Lévi-Strauss (Lisboa: Editorial Presença), 73.

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astronomia das constelações humanas

Essa atitude diante da diferença seria a marca mais notável da antropologia estrutural. A investigação do outro, realizada por Lévi-Strauss, não aboliria, então, a distância entre o sujeito e o objeto; permitiria, antes, percorrer a diferença, “mas sem suprimi-la ou dissolvê-la em uma vaga simpatia, sob pretexto de descobrir a humanidade profunda, destruindo tudo o que faz dos homens o que eles são, quer dizer, seres profundamente diferentes uns dos outros”8. Lévi-Strauss pretendia realizar uma análise objetiva e totalizante de cada sociedade estudada. Desse modo, esperava alcançar formulações sobre a vida cultural que fossem válidas para todos os observadores possíveis e também atingir uma explicação em que todos os aspectos da vida social estivessem organicamente ligados. Entretanto, antes de chegar a essa explicação generalizadora, sublinhava que toda pesquisa antropológica deveria começar pelo contato direto com seu objeto de estudo. No período que passasse em campo, convivendo com sociedades exóticas e estrangeiras, o antropólogo deveria observar e descrever minuciosamente todos os fatos. Os modelos formais da análise estrutural, as estruturas, deveriam partir da reunião e verificação de todos os dados (históricos, sociológicos, geográficos, climáticos, ambientais) referentes à vida da sociedade estudada. Para Lévi-Strauss, a antropologia era, acima de tudo, “uma ciência empírica”9. Nunca o antropólogo poderia perder de vista que “cada cultura representa uma ocorrência única, à qual é necessário consagrar a mais minuciosa das atenções”10. Primeiro, seria necessário descrevê-la para, somente depois, compreendê-la. Dito de outro modo, o estudo empírico deveria condicionar o acesso à estrutura. Ao final da investigação, o antropólogo não encontraria nem ele mesmo, nem o outro. Ele atingiria as leis de ordem que explicariam o 8

Ibidem, 73-74.

9

C. Lévi-Strauss, “Estruturalismo e Ecologia”, trad. Carmem de Carvalho, In: O olhar distanciado (Lisboa: Edições 70, 2010),155.

10 Idem.

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introdução

funcionamento geral da cultura e que corresponderiam ao nível inconsciente da vida mental, isto é, alcançaria as condições de possibilidade da vida social. Eduardo Viveiros de Castro, de seu lado, sublinhou o fato de que, para compreender a obra de Lévi-Strauss, é preciso se libertar de uma falsa ideia, a saber, a de que a análise estrutural visaria uma espécie de estrutura das estruturas, no sentido de um nível de totalização final no qual todas as estruturas levariam a uma única estrutura fundamental fechada11. Isso dito, é preciso também mencionar que Lévi-Strauss jamais deixou de afirmar, mesmo após os anos de glória do estruturalismo, que o grande desafio, a tarefa final das ciências humanas – para o cumprimento da qual a etnologia jogaria o papel de vanguarda – seria “reintegrar a cultura na natureza e, finalmente, a vida no conjunto de suas condições físico-químicas”12. Essa tarefa, ele bem o sabia, estava longe de poder ser executada. Assim, talvez o objetivo final das ciências humanas desenhado por Lévi-Strauss em La pensée sauvage (1962) tenha assumido o lugar de horizonte, de um ponto de chegada sempre móvel que organizou de modo não estrito as ideias centrais da antropologia estrutural13. 11

Eduardo Viveiros de Castro, “Claude Lévi-Strauss, fundador do pós-estruturalismo”, Tempo Brasileiro, [vol.] 175 (2008) (5-31).

12 C. Lévi-Strauss, O pensamento selvagem, trad. Tânia Pellegrini (Campinas, São Paulo: Papirus, 1997), 275. 13

Em 1998, a revista Mana publicou uma edição em homenagem ao 90o aniversário de Lévi-Strauss. Dentre os textos que compuseram aquele número, consta a tradução de um artigo de Lévi-Strauss publicado em Les temps modernes ([vol.] 598, março/abril de 1998), intitulado “Voltas ao passado”. O texto foi escrito em resposta a Christian Delacampagne e Bernard Traimond e seu artigo “A Polêmica Sartre/Lévi-Strauss Revisitada. Nas Raízes das Ciências Sociais de Hoje” (Les temps modernes, [vol.] 596, novembro/dezembro de 1997). Delacampagne e Traimond pretendiam responder às críticas feitas por Lévi-Strauss a Sartre no último capítulo de O pensamento selvagem para, mais de 30 anos depois, afirmar o triunfo final da filosofia sartriana contra a antropologia estrutural. Assim, em um trecho de “Voltas ao passado”, Lévi-Strauss explica da seguinte maneira aquela célebre passagem de O pensamento selvagem em

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astronomia das constelações humanas

De fato, para a antropologia estrutural, não existe nenhum princípio ou categoria a priori que sirva de guia para a investigação da vida mental e cultural. Em outubro de 1949, Simone de Beauvoir, na sua clássica resenha para Les temps modernes sobre o então recente livro de Lévi-Strauss, Les Structures élémentaires de la parenté (1949), percebeu que o autor supõe as instituições humanas dotadas de significação, mas também procura a chave de sua interpretação na própria humanidade. É como se Lévi-Strauss tentasse se equilibrar entre dois movimentos: de um lado, ele conjuraria os fantasmas da metafísica, mas, de outro, não aceitaria, “tampouco, que esse mundo seja apenas contingência, desordem, contradição”14. Seu segredo seria “tentar pensar o dado sem recorrer a um pensamento que lhe seja estrangeiro: no coração da realidade ele descobrirá o espírito que a habita”15. Em vez de colocar questões de ordem metafísica para os fatos estudados pela antropologia, Lévi-Strauss decide procurar as leis de ordem presentes nos fenômenos sociais, ou seja, ele busca entender a lógica que fala da integração final da cultura à natureza e da dissolução do homem: “(...) não podemos perder de vista que se tivermos a menor crença em nossa capacidade de conhecer alguma coisa do mundo (se não, não se pode dizer mais nada), sabemos que o homem faz parte da vida, a vida da natureza e a natureza do cosmos. Daí minha asserção de que as ciências do homem têm por objetivo último ‘reintegrar a cultura na natureza e, finalmente, a vida no conjunto de suas condições físico-químicas’, cuja ‘feição voluntariamente brutal’ (...) me apressei em salientar. Para prevenir a crítica de querer explicar o superior pelo inferior, acrescentei que se tal unificação pudesse se realizar, ela revelaria, à medida do seu progresso, que alguma coisa que se parece com o pensamento já existe na vida, e que alguma coisa que se parece com a vida já existe na matéria inorgânica. Não acredito, aliás, que se chegue a isso daqui a séculos ou mesmo milênios, pois isso suporia que, sem contradição, fosse possível a um sujeito pensante e vivente apreender o pensamento ou a vida enquanto objeto”. C. Lévi-Strauss, “Voltas ao passado”, trad. Eloisa Araújo Ribeiro, Mana, [vol.] 4, 2 (1998): 110 (107-117). 14 Simone de Beauvoir, “Les Structures élémentaires de la parenté par Claude Lévi-Strauss”, Les Temps modernes, [vol.] 7, (1949) (943-49). 15

30

Idem.

introdução

interna de cada objeto estudado. Contudo, essa lei de ordem só pode ser encontrada quando os objetos são postos em relação. A antropologia estrutural explora os objetos por meio das relações diferenciais que eles mantêm uns com os outros, o que levaria sempre a compreendê-los a partir de redes de relações. A estrutura de um objeto permaneceria sempre aberta a novas reconfigurações, uma vez que as relações que ela mantém com as outras estruturas deixariam lugar para essa possibilidade. Esse método torna-se claro quando Lévi-Strauss realiza suas análises dos mitos. Os mitos, em particular os ameríndios, se assemelham a códigos cifrados ao observador ocidental e, por isso, muitas vezes foram tomados como manifestações da irracionalidade dos indígenas. Se o investigador tomasse um mito separadamente e restringisse a análise aos dados fornecidos apenas pela sociedade da qual o mito é oriundo, seria possível encontrar sentido para certos aspectos dos mitos, mas não para muitos. Para ampliar seu campo de entendimento, o investigador precisaria analisar outros mitos do mesmo grupo ou de grupos vizinhos. Esses outros mitos resolveriam alguns enigmas levantados pelo mito inicial, mas levantariam novos problemas, o que exigiria a mobilização de outros mitos para esclarecê-los, gerando mais problemas, e assim por diante. Marcio Goldman lembra que esse procedimento básico da análise dos mitos, que consiste em remeter um mito a outro para esclarecê-los, foi chamado por Lévi-Strauss de levantamento em rosácea: “conforme novos mitos adensam o centro da figura que se está esboçando, mais e mais dúvidas e confusões são criadas na periferia”16. Goldman acrescenta que “a análise só se detém de fato – pois de direito ela é infinita –, no momento em que o analista acredita que atingiu uma inteligibilidade suficiente ou razoável”. A análise comparativa dos mitos, procedimento de

16 Marcio Goldman, “Lévi-Strauss, a ciência e as outras coisas”. In: Lévi-Strauss. Leituras brasileiras, orgs. Ruben Caixeta de Queiroz, Renarde Freire Nobre (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008), 73.

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base de Lévi-Strauss, faz da decifração dos mitos um trabalho sem fim. Ao mesmo tempo em que apreende um sentido para um conjunto de mitos, um outro conjunto se forma e se apresenta de maneira obscura ao mitólogo. É preciso, então, tudo recomeçar. De acordo com Lévi-Strauss, os fatos sociais não seriam coisas nem ideias, mas estruturas. Toda cultura poderia “ser considerada como um conjunto de sistemas simbólicos, à frente dos quais situam-se a linguagem, as regras matrimoniais, as relações econômicas, a arte, a ciência, a religião”17. A estrutura das estruturas, se é que ela existe, seria a própria cultura, o modo como uma sociedade estabelece a troca, isto é, a interação entre os sistemas simbólicos. Lévi-Strauss segue explicando que todos esses sistemas visariam “a exprimir certos aspectos da realidade física e da realidade social, e, mais ainda, as relações que esses dois tipos de realidade mantêm entre si e que os próprios sistemas simbólicos mantêm uns com os outros”18. A tarefa principal do etnólogo seria entender como cada sociedade realiza uma “retomada sintética”19 e sempre original do conjunto de elementos que a constitui e que são, basicamente, os mesmos para todas as sociedades. Para Lévi-Strauss, como notavelmente percebeu Merleau-Ponty, “há um conhecimento a tirar dessa síntese que somos nós, pois vivemos na unidade de uma só vida todos os sistemas de que é feita nossa cultura”20. Ora, os estudos culturais colocam o problema do inato e do adquirido, pois, em uma cultura, as instituições sociais, as relações de parentesco, os mitos e os outros sistemas que a constituem, obedeceriam tanto a determinações de ordem estrutural quanto históricas. Os 17 C. Lévi-Strauss, “Introdução à obra de Marcel Mauss”, In: Sociologia e antropologia, Marcel Mauss, trad. Paulo Neves (São Paulo: Cosac Naify, 2003), 19. 18 Idem. 19 Claude Lévi-Strauss, “O etnólogo perante a condição humana”. In: O olhar distanciado, 63. 20 M. Merleau-Ponty, op. cit., 389.

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introdução

estudos de Lévi-Strauss sobre as manifestações culturais das sociedades sem escrita apontam para uma relação de complementaridade entre a ordem sincrônica e a ordem diacrônica. Assim, o conjunto de sua obra pode ser entendido como um esforço contínuo para conseguir correlacionar adequadamente essas duas ordens de realidade. E, no entanto, como apontou Pouillon, “a questão de saber como unir a análise estrutural e a análise histórica, como conceber ao mesmo tempo uma ordem sincrônica e uma ordem diacrônica, continua pois em aberto”21. Como, enfim, compreender a presença da história na obra de Lévi-Strauss? Examinamos este problema pela abordagem da história intelectual, domínio emergente que começa a ter um impacto sobre os estudos históricos interdisciplinares de ideias no Brasil22. Em Lévi-Strauss, a história apareceu já em seus primeiros livros programáticos e foi constantemente retomada ao longo de toda sua produção intelectual. Contudo, ao considerarmos o conjunto de sua obra, notamos que a

21 J. Pouillon, op. cit., 99. 22 A emergência da história das ideias e da história intelectual no Brasil, embora não sejam abordagens ou domínios exclusivos da história, está relacionada ao interesse dos historiadores pela historiografia antiga, moderna e contemporânea e pela teoria da história, mas também pela história política e pela literatura (ver, por exemplo: Francisco Falcon, “História das Ideias”, In: Domínios da História, orgs. Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas (Rio de Janeiro: Elsevier, 1997); José Murilo de Carvalho “História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura”, Topoi, [n.] 1, (2000) (123-152) e Marcelo Gantus Jasmin, “História dos conceitos e teoria política e social”, RBCS, [vol.] 20, 57 (fevereiro 2005) (27-38). Esses interesses são claramente percebidos nos esforços coletivos de professores da Universidade de São Paulo, reunidos em torno do Laboratório de Teoria da História e História da Historiografia (LabTeo), que, regularmente, têm publicado, orientado dissertações de mestrado e teses de doutorado, e oferecido disciplinas com a abordagem da história intelectual, como Sara Albieri, Miguel Palmeira e José Antônio Vasconcelos. Falaremos, mais adiante, sobre a proposta de François Hartog de abordar a historiografia pela história intelectual.

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astronomia das constelações humanas

história assume diferentes funções ou significados. Podemos elencar algumas razões para esse fato: o avanço de seu trabalho como antropólogo e mitólogo (erudição); os debates e controvérsias sobre seus escritos na França e no exterior e as incidências que tiveram em seus textos posteriores; o olhar crítico sobre textos do passado. Nesse livro tentamos levar em consideração todas essas modulações. A história, aquela vivida pelos homens, mas também aquela outra, escrita pelos historiadores, perpassa, em todos os sentidos, os problemas mais fundamentais da antropologia estrutural. Entendemos que a história aparece no pensamento de Lévi-Strauss ora como um objeto de reflexão para esclarecer o princípio de diferenciação das culturas, ora como um contraponto ao próprio campo da antropologia, ora como uma tarefa da antropologia estrutural. Para Lévi-Strauss, a abertura ou o fechamento das sociedades para a história serviu como o critério de inteligibilidade que lhe permitiu diagnosticar como os grupos humanos desenvolveram princípios de organização que repercutem em suas instituições sociais e em seus sistemas de pensamento. A distinção teórica elaborada por Lévi-Strauss entre sociedades quentes (sociedades que se abririam para a história e fariam dela o motor de seu desenvolvimento) e frias (sociedades que teriam preferido recusar a história, fazendo de tudo para se manter impermeáveis às mudanças) serviu para mostrar que o modo como as sociedades reagem à história não corresponderia a um dado de sua natureza intrínseca, mas diria respeito às maneiras pelas quais os grupos humanos representam o seu grau de historicidade. Desse modo, para Lévi-Strauss, os mitos, nas sociedades indígenas, teriam a função de ajudar a criar a ilusão de que seus membros conseguiram conservar a coerência das relações anteriormente concebidas pelos seus antepassados. É como se essas sociedades tivessem conseguido se proteger da história. Em outras palavras, os mitos seriam a melhor expressão da elaboração subjetiva da historicidade das sociedades frias. Já a história, nas sociedades quentes, teria a função de dar sentido aos fenômenos

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sociais e à experiência subjetiva, e, justamente por isso, na modernidade, foi eleita como o princípio de inteligibilidade fundamental para a compreensão do próprio Ocidente. As sociedades quentes passaram a acreditar que a história seria um lugar privilegiado em que o homem encontraria a sua verdade. A partir do século XIX, as ciências humanas e sociais começaram a se organizar seguindo o critério da historicidade intrínseca dos seus objetos, isto é, foi estabelecido que os objetos científicos só poderiam ser conhecidos levando-se em consideração a sua história. Nesse sentido, como observou Michel Foucault, a história não seria apenas a coleta e a narrativa dos fatos segundo uma cronologia, mas também o modo de ser dos objetos dados ao conhecimento23. No início, o programa lévi-straus-

23 Cf. Michel Foucault, As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas, trad. Salma Tannus Muchail (São Paulo: Martins Fontes, 1999). – (Coleção tópicos). Não podemos menosprezar o subtítulo do livro de Foucault, que só poderia ter sido escrito a partir de seu próprio diagnóstico sobre o significado do estruturalismo para o conjunto das ciências humanas. José Otávio Guimarães, em sua introdução à entrevista que realizou com Jean-Pierre Vernant, sublinha esse aspecto do livro de Foucault: “Vernant nunca escondeu seu desconforto com certas teses de Les mots et les choses, livro que, segundo François Furet, sistematizou, no calor da hora, o ‘corte epistemológico’ representado pela etnologia estrutural face à ‘idade ideológica’. Por outro lado, Vernant foi menos resistente ao Foucault dos últimos volumes de Histoire de la sexualité, reconhecendo na postura do classicista neófito ecos da démarche historiográfica de sua antropologia da Grécia antiga”. José Otávio Guimarães, “Experiência e método. Introdução a uma entrevista com Jean-Pierre Vernant”, In: Antigos e modernos: diálogos sobre (a escrita da) história, org. Francisco Murari Pires (São Paulo, Alameda, 2009), 372. No livro Structuralime et marxisme, resultado dos debates promovidos pela revista Raison présente, às vésperas de maio de 1968, Jean-Pierre Vernant diz: “Primeiramente, acredito que exista em Foucault uma recusa da historicidade e uma recusa do homem, no sentido de que, para ele, o homem não pode ser objeto de uma ciência particular. No campo das disciplinas científicas tal como ele o desenha, há uma psicologia que se redobra em uma ilusão psicológica. Há uma economia política que se redobra em uma ilusão de psicologia da necessidade. E há aquilo que ele chama de linguística, no sentido mais geral, e que abarca a ciência dos mitos, dos ritos e de todos os fatos significativos, quer dizer,

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siano para a antropologia estrutural buscava descobrir regularidades e formular leis, o que levou o antropólogo a se deparar com o problema do lugar que a antropologia deveria ocupar e das relações que deveria manter com as disciplinas que se abrigam no heterogêneo campo das ciências sociais e humanas. Assim, foi “quase natural” que o principal contraponto da antropologia estrutural fosse a história. Como observou Oscar Calavia Sáez, “a história parece seduzir a Lévi-Strauss como o faz um outro irredutível; não porque exiba regularidades que se aproximem de seu ideal de conhecimento, mas porque, com a sua complexidade e seu teor aleatório, são imagens de todo o contrário”24. Sáez, e nisso ele não está sozinho, aponta para uma descontinuidade, “ou uma torção, entre o Lévi-Strauss programático [aquele que estabelece os fundamentos teóricos e metodológicos da antropologia estrutural nas décadas de 1950 e 1960] e o Lévi-Strauss que elabora suas obras primas da maturidade”25. Em seus escritos programáticos, Lévi-Strauss sustentava que os sentidos alcançados pelo historiador em seus trabalhos seriam sempre provisórios porque não corresponderiam a verdades de fato, mas apenas a verdades de situação e dependeriam, portanto, da confirmação (ou do consenso) de um grupo. Já em seus escritos de maturidade, depois de uma longa experiência como mitólogo, Lévi-Strauss parece ter generalizado essa condição. O que antes parecia ser uma característica exclusiva da história, depois se tornou, para ele, o traço comum de todas as outras ciências, inclusive da antropologia. Segundo Lévi-Strauss, as ciências teriam passado de uma perspectiva atemporal, a busca por leis eternas, para uma perspectiva histórica, a finalmente, todo o homem. Mas ele está persuadido de que uma démarche científica, não existe um momento propriamente antropológico, onde entrariam em jogo as configurações psicológicas e a história de suas transformações”. In: Victor Leduc (et al.) Structuralisme et marxisme (Paris, 10/18), 306-307. 24 O. C. Sáez, op. cit., 137. 25 Idem.

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convicção de que as teorias e aparelhos científicos que os homens de hoje julgam produzir verdades, amanhã estarão caducos26. Em textos como “Pensée mythique et pensée scientifique” (2003), ele sustenta, quem poderia imaginar, que o progresso do pensamento científico teria empurrado as ciências para o lado da história27. Mas a história também é uma tarefa da antropologia estrutural, ela estaria presente no início da análise antropológica. No início porque, para realizar a análise formal de um dado fenômeno cultural, o investigador deveria sempre partir dos dados empíricos da sociedade estudada com a tarefa de reabilitar até a menor história. Nesse sentido, a história apareceria como um “dado irredutível”28, ela seria a eterna comprovação de que “nenhuma construção do espírito pode substituir a maneira imprevisível como as coisas realmente aconteceram”29. Os dados históricos seriam a matéria prima por meio da qual o investigador construiria os modelos formais, as estruturas. Assim, para Lévi-Strauss, o método estrutural consistiria em “distinguir um dado puramente fenomenológico, fora da alçada da análise científica, de uma infraestrutura mais simples que ele, e a qual ele deve toda a sua realidade”30. Apenas após o analista construir os modelos e os colocar em relação, criando critérios de classificação para agrupá-los em conjuntos significantes, a história reapareceria. Mas essa história não seria mais a história do dado irredutível. Ela corresponderia à ordenação das estruturas de acordo com uma genealogia. Assim, Lévi-Strauss sustenta que a análise estrutural pode ser colocada a serviço de uma reconstrução 26 C. Lévi-Strauss, “Testemunhas de nosso tempo”, In: Antropologia estrutural dois, trad. Chaim Samuel Katz (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976), 293. 27 C. Lévi-Strauss, “Pensée mythique et pensée scientifique”, In: Lévi-Strauss, org. M. Izard (Paris: L’Herne, 2004), 40-42. 28 C. Lévi-Strauss e D. Eribon, op. cit.,179. 29 Idem. 30 C. Lévi-Strauss, “Introdução à obra de Marcel Mauss”, 31.

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histórica, pois, na realidade, “em níveis de pesquisa diferentes, a inspiração [que move os historiadores e os antropólogos] é a mesma”31. Para ele, a busca pela genealogia e aquela pelas estruturas profundas dos fenômenos seriam dois procedimentos diferentes, mas complementares. O papel da análise estrutural seria o de submeter à história “uma lista de encaminhamentos concebíveis”32. Dito de outro modo, caberia à história verificar a validade das estruturas propostas pelo antropólogo e seus itinerários. Por essa razão, a pesquisa estrutural não poderia prescindir da história. De outro lado, para Lévi-Strauss, a história não poderia dirigir os rumos da antropologia. Ela apareceria sempre a posteriori. Hartog, em seu artigo “Le regard éloigné: Lévi-Strauss et l’histoire” (2004), estima que as reflexões de Lévi-Strauss sobre a história colocam problemas, se não originais, ao menos muito pertinentes para a disciplina. Para nós, o estabelecimento de um diálogo entre história e antropologia traz a vantagem de instigar a pensar para além dos horizontes tradicionalmente estabelecidos como próprios das duas disciplinas. Assim, julgamos que o estudo sobre a presença da história no pensamento de Lévi-Strauss leva os historiadores a operarem um descentramento dos problemas que estão acostumados a tratar. Mas, nas reflexões comumente consideradas como afastadas da história, encontramos uma maneira inédita de pensá-la. Segundo Hartog, para se interrogar sobre a história, “não somente aquela dos historiadores e não unicamente aquela dos últimos cinquenta anos, poderia ser um bom método, não apenas abrir espaço para as questões, objeções, críticas enunciadas por autores externos à disciplina ou ao domínio, mas a partir delas”33. Desse modo, “os outsiders contam, às vezes, mais que os insiders”. Haveria mesmo casos em que outsiders teriam “pesado mais que gerações de insiders”. Nessa corte, “o

31 C. Lévi-Strauss, “História e Etnologia” (1983), trad. Wanda Caldeira Brant, Textos didáticos, [n.] 24 (2004): 28 (7-38). 32 Idem. 33

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F. Hartog, “O olhar distanciado. Lévi-Strauss e a história”, 10.

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nome de Lévi-Strauss teria seu lugar” e, acrescenta Hartog, se não há razão para “pensar que essa sugestão seja válida somente para a história, ela se aplica particularmente bem a ela”34. Em seus seminários na École des hautes études en sciences sociales (EHESS) nos primeiros anos da década de 1990, Hartog sustentou que a abordagem da história intelectual leva os historiadores a refletirem sobre as fronteiras de sua disciplina35. Inquieta consigo mesma, a história intelectual, domínio ou abordagem em que esse trabalho se inscreve, abre a possibilidade de ter como objeto o pensamento de não-historiadores. Entender a presença da história no pensamento de Lévi-Strauss foi, para nós, um modo de pensar a nossa disciplina a partir de perspectivas diferentes, muitas vezes originais, o que nos obrigou a seguir problemas que tornam ainda mais complexa a prática historiográfica e a reflexão sobre as bases do conhecimento histórico. Esse livro se situa, então, na tradição dos problemas que marcam as relações entre história e antropologia. São “questões de fronteira”36, expressão empregada por Lilia Moritz Schwarcz, que ocuparam e ocupam tanto antropólogos quanto historiadores brasileiros, alimentando trabalhos instigantes que mobilizam diferentes objetos, problemas e abordagens – para retomar uma tríade famosa entre os historiadores. Ao fazer recurso à expressão “questões de fronteira”, dando ênfase às tensões e repercussões deste debate, Schwarcz deixa perceber que o pensamento de Lévi-Strauss e a oposição entre sincronia e diacronia foram fundamentais para “a delimitação de modelos, perfis e recortes”37 para a antropologia. Assim, no artigo “Questões de fronteira. Sobre uma antropologia 34 Ibidem, 11. 35 F. Hartog, “Historiographie”, In: Annuaire de l’École des hautes études en sciences sociales. Comptes rendus des cours et conférences, 1990-1991, 128. 36 Lilia K. Moritz Schwarcz, “Questões de fronteira. Sobre uma antropologia da história”, Novos estudos do Cebrap, [n.] 72 (julho de 2005): 119 (119-135). 37 Idem.

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da história”, avalia que, em seu próprio trabalho, essas questões foram importantes para, por exemplo, tratar de conceitos nativos mediante o recurso à história: “estudei instituições científicas do século XIX e retomei noções – como raça e cidadania”38. Ou seja, via um enfoque de antropologia histórica39, o recurso à história pode se constituir num modo privilegiado para abordar noções, conceitos e relações que circulam nas sociedades complexas. Uma edição especial da Revista de História da Universidade de São Paulo, de 2010, tratou das relações entre história e antropologia tendo como corte temático as relações entre antigos, modernos e selvagens. A publicação congrega textos apresentados no II Congresso Internacional “Antigos, Modernos, Selvagens: diálogos franco-brasileiros de história e antropologia”, realizado em 2009 por iniciativa conjunta do Departamento de História e do Departamento de Antropologia da USP e também do Museu Paulista da mesma instituição. De acordo com Francisco Murari Pires, o evento conferiu destaque para a obra de Hartog que, há mais de uma década, “mantém regularmente nexos de pesquisa com o Brasil em várias instituições universitárias, lembrando-se ainda as orientações de Doutorado de vários professores brasileiros por ele conduzidas na

38 Ibidem, 131. 39 Schwarcz se apoia nos trabalhos de Jean Pierre-Vernant e Marshall Sahlins, entre outros historiadores, antropólogos e sociólogos para conduzir seus trabalhos de fronteira entre história e antropologia, via a abordagem da antropologia histórica: “Estou me referindo a uma antropologia histórica da nossa própria sociedade, terreno onde situo minhas investigações. Trata-se de, à semelhança do que a etno-história realiza para outras culturas, recuperar um trabalho de ‘tradução das sociedades complexas’. Esse tipo de antropologia nos levaria a ser capazes de nos espantar diante de formas de representar nossa própria sociedade e, por que não?, o tempo e a história”. Ibidem, 134. Cf. L.M. Schwarcz, “Questão racial e etnicidade”. In: O que ler na ciência social brasileira (1970-1995), org. Sergio Miceli (São Paulo: Editora Sumaré: ANPOCS; Brasília, DF: CAPES, 1999), 267-325.

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EHESS”40. Dessa maneira, as investigações apresentadas naquele Congresso se situam na “longa tradição das interações acadêmicas estabelecidas pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP com o mundo acadêmico das universidades francesas” e atualizam as conexões que originariamente foram promovidas “quer por Fernand Braudel no Departamento de História quer por Claude Lévi-Strauss no Departamento de Antropologia”41. Mesmo conjunto de preocupações que já havia aparecido um ano antes, no livro Antigos e modernos: diálogos sobre (a escrita da) história42, onde Murari Pires chama a atenção para a importância das tensões, correlações e múltiplas percepções sobre o fardo e o fio, quer dizer a tradição mais a autoridade, para pensar o tempo, sobretudo o tempo presente: “Que razões, ou pelo menos que motivações, ou ainda 40 Francisco Murari Pires, “Antigos e modernos, o fardo e o fio”, Revista de História da USP – edição especial (2010): 18 (09-18). Murari Pires sublinha as relações de colaboração acadêmica entre Hartog e o “Departamento de História da FFLCH-USP por meio de Francisco Murari Pires e Carlos Alberto de Moura Zeron; Departamento de História da UFRJ por meio de Manoel Luiz Salgado Guimarães; Departamento de História da UFRGS por meio de Temístocles Américo Correa Cézar; e Departamento de História da UnB por meio de José Otávio Guimarães”. Sobre historiadores brasileiros que foram orientandos de Hartog durante o Doutorado, Murari Pires destaca Carlos Zeron, Temístocles Cezar, José Otávio Guimarães, Teodoro Rennó Assunção e Felipe Brandi. 41 O número especial da revista contou com textos de François Hartog, José Otávio Nogueira Guimarães, Francisco Murari Pires, Fábio Duarte Joly, Stéphane Ratti, Laura de Mello e Souza, Armelle Enders, Rodrigo Turin, Cecília Helena de Salles Oliveira, Izabel Andrade Marson, Maria Stella Bresciani, Bertrand Binoche, Marcello Carastro, Carlos Severi e Marta Amoroso. 42 Os artigos deste livro resultaram, por sua vez, de um colóquio realizado em 2007 junto ao Departamento de História da Universidade de São Paulo. O colóquio congregou “uma plêiade de historiadores das mais importantes universidades brasileiras e alguns outros europeus e sul-americanos que expuseram os modos por que intentamos, em nosso presente histórico, equacionar modos de compreensão crítica sobre esse diálogo entre antigos e modernos que envolve a ideologia de nossas práticas científicas e acadêmicas”. F. M. Pires , Apresentação de Antigos e modernos: diálogos sobre (a escrita da) história, org. F. M. Pires (São Paulo: Alameda, 2009), 10.

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mesmo que apelos, teríamos, então, nós, já na virada do segundo para o terceiro milênio, para também louvar(mos) a história?”43 Lévi-Strauss escreveu durante quase sessenta anos. Em todo esse tempo, seus escritos não cessaram de ser interpretados, criticados, retomados e revalorados. Assim, a fortuna crítica de sua obra é enorme e não é exagero situar seu pensamento como um dos clássicos da história intelectual do século XX. É uma tarefa árdua retomar Lévi-Strauss depois de tudo o que já foi dito e escrito sobre ele. Justamente por isso, escolhemos nos somar aos esforços coletivos de compreensão da sua obra, sem a preocupação de fazer um balanço da sua fortuna crítica e mapear os diversos tipos de recepção, de acordo com diferentes países ou áreas de conhecimento. As redes de autores e comentadores evocadas no trabalho vieram, antes, a propósito dos problemas que levantamos no decorrer da leitura da obra de Lévi-Strauss. Desse modo, autores e comentadores aparecem mais como vozes que corroboram, destoam ou relativizam a nossa própria interpretação sobre temas e problemas lévi-straussianos. No primeiro capítulo desse livro, damos destaque para a importância da experiência americana – o encontro de Lévi-Strauss com os indígenas brasileiros e os anos em que viveu exilado em Nova York – no desenvolvimento ulterior de seus trabalhos antropológicos e de sua carreira profissional, assim como colocamos em relevo a importância do estruturalismo para as propostas teóricas da etnologia indígena contemporânea, a exemplo dos trabalhos de Eduardo Viveiros de Castro e Tânia Stolze Lima. Não parece exagero dizer que essa corrente da antropologia brasileira, pela apropriação crítica que faz da obra de Lévi-Strauss, cruzada pela leitura de autores pós-estruturalistas, como Gilles Deleuze e Félix Guattari, prolonga, com a marca da atualidade, as reflexões do estruturalismo. Mas esse capítulo visa também entender como a antropologia estrutural se inscreveu na tradição humanista e é Michel 43 Idem.

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Foucault quem nos ajuda a melhor compreender esse movimento. Lévi-Strauss chama “humanismo” a tendência geral dos grupos humanos de se pensarem a partir de grupos estrangeiros. Nesse sentido, seu trabalho pode ser situado na continuidade das reflexões de pensadores do Renascimento e do século XVIII, por isso a antropologia estrutural poderia ser considerada como um “terceiro humanismo”. Mas, também, os trabalhos de Lévi-Strauss sobre as populações indígenas assumem uma descontinuidade fundamental em relação aos dois primeiros humanismos, pois partem do princípio de que não existe uma diferença qualitativa entre as operações intelectuais realizadas pelo pensamento em estado selvagem (o pensamento simbólico) e aquelas efetuadas pelo homem moderno ocidental. Para Lévi-Strauss, a maior diferença entre essas duas formas de pensamento, a mítica e a científica, está na natureza das coisas a que elas se referem. O pensamento selvagem, escreveu, “não é uma estreia, um começo, um esboço, a parte de um todo ainda não realizado; ele forma um sistema bem articulado; independente, nesse ponto, desse outro sistema que constitui a ciência”44. Assim, ao invés de opor o pensamento mítico ao pensamento científico, Lévi-Strauss propôs que seria melhor colocá-los em paralelo, “como dois modos de conhecimento desiguais quanto aos resultados teóricos e práticos (...), mas não devido à espécie de operações mentais que supõem e que diferem menos na natureza que na função dos tipos de fenômenos aos quais são [aplicados]” 45. Segundo Lévi-Strauss, a antropologia estrutural deveria ser entendida sobretudo como um método de análise. Assim, para nós, foi necessário, além de situar seu pensamento na tradição humanista, entender também como o autor definiu as bases teóricas e metodológicas da antropologia estrutural. O que é a cultura? O que são as estruturas? O que legitima e exige que o investigador parta de um dado puramente fenomenológico para então construir modelos formais com o fim de ex44 C. Lévi-Strauss, O pensamento selvagem, 28. 45 Idem.

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plicar o funcionamento dos fenômenos culturais? Nosso segundo capítulo se debruça sobre todas essas questões. Ao elaborar as bases teóricas e metodológicas de sua disciplina, Lévi-Strauss estava inaugurando um campo de pesquisa. É justamente nesse momento que a história aparece em destaque, ajudando-o a delimitar o campo da antropologia. Nos escritos programáticos de Lévi-Strauss, a história e a antropologia podem ser definidas como dois pontos extremos de um mesmo conjunto de relações. Assim, se a história se opõe à antropologia, seria somente na medida em que essa oposição guarda, por fim, uma relação de complementaridade. Mas as propostas de conciliação e de colaboração entre história e antropologia feitas por Lévi-Strauss foram recebidas com desconfiança pelos historiadores. Talvez porque Lévi-Strauss nunca tenha cansado de dizer que a história serve como ponto de partida para toda a busca da inteligibilidade, mas não é, como propôs Jean-Paul Sartre, o meio privilegiado para a inteligibilidade das manifestações humanas. Para Lévi-Strauss, as análises históricas, por serem sempre parciais e descontínuas, nunca poderiam alcançar a objetividade e a generalização pretendidas pela antropologia. Procuramos entender, também, como essas ideias de Lévi-Strauss repercutiram na história, via o famoso texto de Fernand Braudel, “Histoire et Sciences sociales: La longue durée” (1958)46, bem como nos trabalhos de uma outra geração de historiadores franceses, dedicados ao campo da história das mentalidades. Já no terceiro capítulo desse livro, estudamos os significados da crítica lévi-straussiana da ideia de progresso. Segundo Hartog, ao transformar o progresso “‘de categoria universal’ em um modo de existência próprio à nossa sociedade, Lévi-Strauss não faz outra coisa, ao longo de suas intervenções, senão questionar fortemente o regime moderno de historicida-

46 Fernand Braudel, “A longa duração”. In: F. Braudel, Escritos sobre a história, trad. J. Guinsburg e Tereza Cristina Silveira da Mota (São Paulo: Perspectiva, 1969), 41-78.

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de (para retomar meu vocabulário)”47. Para Lévi-Strauss, a história não conseguiria atingir uma explicação geral sobre a vida social porque os historiadores estariam como que encastelados na compreensão de uma única modalidade do homem no tempo. A própria história poderia ser entendida como um tipo de encarnação de uma potente ideologia moderna, chamada consciência histórica. Lévi-Strauss considerou, em diversos momentos, que o homem moderno deveria se libertar da falsa ideia de que seu modo de pensamento fosse válido para todos os outros grupos humanos, em outras palavras, pudesse ser considerado universal: “é preciso muito egocentrismo e ingenuidade para crer que o homem está todo inteiro refugiado num só dos modos históricos ou geográficos de seu ser”48. Acrescenta: “quem começa por se instalar nas pretensas evidências do eu, esse daí não sai mais”49. Assim, acreditava ser preciso entender como as sociedades não-ocidentais organizavam sua experiência do tempo. Em outras palavras, seria preciso construir um inventário, o mais amplo possível, das maneiras pelas quais os homens se servem de sua história. Marcel Hénaff colocou a questão nos seguintes termos: como certas sociedades (tidas por a-históricas), “mergulhadas no movimento temporal, como todas as outras, podem se esquivar da codificação cronológica? Pois existe para elas um antes e um depois. Como evitar que essa relação não seja uma grade de interpretação de toda a vida da sociedade (como o é para nós)?”50. Lévi-Strauss elaborou a distinção teórica entre sociedades quentes e sociedades frias para propor uma resposta a essa questão. O 47 F. Hartog “Tempos do mundo, história, escrita da história”, trad. Temístocles Cezar, In: Estudos sobre a escrita da história, org. Manoel Luiz Salgado Guimarães (Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006), 20. O texto de Hartog, assim como outros importantes artigos de historiadores brasileiros publicados no referido livro, foi apresentado no “Encontro de Historiografia e História Política”, promovido em 2005 pelo Programa de Pós-Graduação de História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 48 C. Lévi-Strauss, O pensamento selvagem, 277. 49 Idem. 50 Marcel Hénaff, Claude Lévi-Strauss, (Paris: Belfond, 1991), 237.

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modo como uma sociedade toma partido da história ou o modo como ela se recusa a admiti-la serviu como critério para estabelecer os princípios de diferenciação das culturas. Em De près et de loin (1988), Didier Eribon perguntou: “(...) Numa pequena digressão inserida em Do mel às cinzas, o senhor pergunta por que alguns povos que possuem tal capacidade de abstração lógica não operaram a passagem para a razão científica e filosófica que, na Antiguidade, aconteceu em outras civilizações”51. Ao que Lévi-Strauss respondeu: “Não sei a esse respeito. Talvez seja necessário, para que o pensamento se transforme, que as próprias sociedades passem a ser de outro tipo”52. Talvez fosse necessário que elas se tornassem “quentes”, diríamos nós, com Lévi-Strauss. Sim, pois a maneira pela qual uma sociedade efetua uma “retomada sintética” do conjunto dos elementos que constituem todas as culturas mantém relação com o modo de representar seu grau de historicidade. No final da década de 1970, Lévi-Strauss conhece o Japão e esse encontro inusitado repercutiu profundamente nas suas reflexões sobre o homem e a cultura. No quarto capítulo desse trabalho vemos como o Japão e a América servem como contrapontos para a crítica lévi-straussiana ao chamado espírito ocidental de conquista. Para o autor, a Europa e a América representam os dois extremos de uma série de transformações cujo ponto de equilíbrio é o Japão. Dito de outro modo, o Japão seria uma espécie de termo médio que sintetizaria e esclareceria melhor os aspectos fundamentais do pensamento ameríndio e do pensamento indo-europeu. Para Lévi-Strauss, conhecer costumes, crenças e histórias repetidas em lugares distantes por populações distantes no tempo ou no espaço, seria um modo de instruir a razão sobre si mesma, a partir de fatos ou fenômenos que ela excluiu de seus domínios. O Japão, a América e a Europa teriam sido, desde tempos remotos, palco de movimentos de populações que estabeleceram trocas comerciais e culturais. 51

C. Lévi-Strauss e D. Eribon, De perto e de longe, 192.

52 Ibidem, 193 (grifos nossos).

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Seria preciso entender melhor como essas relações foram estabelecidas para que o homem não ficasse apenas com a versão ocidental de sua história. Por isso, em seus escritos sobre o Japão, Lévi-Strauss sublinha a importância dos trabalhos realizados por americanistas e japonistas. Os mitos seriam uma espécie de testemunho dessa história tão antiga, da qual, Lévi-Strauss sempre repetiu, seria possível retomar apenas alguns fragmentos. Mas, para além de seu valor histórico, os mitos seriam fundamentais para entender o modo como as sociedades frias se relacionam com o tempo. Precisamente por essa razão, Lévi-Strauss considera que, nas sociedades modernas ocidentais, a história tem a mesma função daquela desempenhada pelos mitos nas sociedades indígenas. Aqui, mais uma vez, podemos apresentar relações surpreendentes entre o pensamento de Lévi-Strauss e a história. Pretendemos mostrar em que medida as discussões que promove sobre os fundamentos do conhecimento histórico nos finais dos anos 1970 apresentam estreitas afinidades com o que passou a ser feito e pensado pela historiografia a partir dos anos 1980, quando a evidência da história, o fato de que “a contamos, escrevemos e fazemos”53 é colocada em questão pelos próprios historiadores. Por fim, no último capítulo, é a vez de analisarmos o impacto das reflexões da antropologia estrutural na história, mais especificamente na historiografia francesa. Procuramos desenhar o quadro da história da recepção do pensamento lévi-straussiano na revista dos Annales. Tentamos mostrar, também, como Lévi-Strauss reafirma, em sua última contribuição à revista, o texto intitulado “Histoire et ethnologie” (1983), a validade de seu antigo projeto (apresentado pelos idos de 1949) de realizar uma análise que articule a diacronia e a sincronia, a história e a estrutura, por meio do estudo das relações de parentesco das sociedades cognáticas (onde a linha paterna e a linha materna têm mais ou menos a mesma importância). Para nós, o ano de 1983 marca, também, um novo

53

F. Hartog, Évidence de l’histoire (Paris: Gallimard, 2007), 11.

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capítulo na história da recepção das ideias de Lévi-Strauss na historiografia francesa. Pois, nesse mesmo número da revista em que apareceu “Histoire et ethnologie”, Hartog publica uma resenha crítica de um texto de Marshall Sahlins, intitulada “Marshall Sahlins et l’anthropologie de l’histoire”. Nesse texto, Hartog considerou que a proposta de Sahlins de promover uma interrogação sobre a história e a historicidade a partir de Fiji corresponderia muito bem ao programa lévi-straussiano de “reabilitar a menor história, não por ela mesma, claro, mas como índice de um regime histórico diferente”54. Vinte anos após esse número memorável da revista dos Annales para o diálogo entre história e antropologia, surge o livro Régimes d’historicité. Présentisme et expériences du temps, também de Hartog55. O pensamento de Lévi-Strauss serviu a Hartog como uma referência importante para seu questionamento de historiador acerca das experiências que as sociedades têm do tempo. Mas a noção de regimes de historicidade se beneficia também do trabalho do historiador alemão Reinhart Koselleck sobre a semântica dos tempos históricos. A noção de regimes de historicidade é, então, também tributária das duas categorias meta-históricas elaboradas por Koselleck – denominadas “experiência” e “expectativa” – para explicar o tempo histórico da modernidade. Hartog sublinha que, para Koselleck, “a estrutura temporal dos tempos

54 F. Hartog, “Marshall Sahlins et l’anthropologie de l’histoire”, Annales, [vol.] 38, 6 (1983): 1261 (1256-1263). 55

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Esse texto foi escrito antes da publicação da tradução do referido livro de Hartog. Por essa razão, a tradução das passagens citadas é de nossa autoria. No entanto, remetemos o leitor interessado na obra de Hartog à edição brasileira do livro, resultado de um esforço coletivo, coordenado pela Profa. Eliana de Freitas Dutra e com revisão geral do Prof. Temístocles Cezar, sem dúvida uma importante contribuição aos nossos debates historiográficos: F. Hartog. Regimes de historicidade: Presentismo e experiências do tempo, trad. Andréa Souza de Menezes, Bruna Beffart, Camila Rocha de Moraes, Maria Cristina de Alencar Silva e Maria Helena Martins (Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014).

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modernos, marcada pela abertura para o futuro e pelo progresso, é caracterizada pela assimetria entre experiência e expectativa”56. De fato, no último capítulo do livro Futuro passado (1979), Koselleck procura dar inteligibilidade para o tempo histórico que julgava corresponder ao seu presente: a modernidade. Na vontade de construir um futuro, os homens modernos teriam dado cada vez menos importância às experiências passadas. O futuro guiaria a percepção e a ação dos homens no presente, a ruptura com a tradição seria um dos leitmotiv do pensamento moderno. Impelido pelo sentimento de aceleração do tempo, o homem moderno teria começado a ver, diante de seus olhos, a justaposição de coisas que antes considerava serem incompatíveis. A coexistência entre o novo e o antigo, o contemporâneo e o não contemporâneo, seria um dos aspectos mais notáveis da modernidade. Essas considerações de Koselleck sobre a modernidade ocupam um lugar importante nas reflexões de Hartog sobre o regime de historicidade moderno. Mas ele coloca a questão: “Ora, uma configuração notavelmente diferente não se impôs depois?”57. Assim como Koselleck, a interrogação de Hartog sobre o tempo também visa esclarecer problemas atuais. Mas, para Hartog, vivemos em outro tempo, diferente do da experiência moderna. A noção de regimes de historicidade serve a Hartog para explicar a experiência do tempo contemporânea, caracterizada por ele de “presentismo”: “esforçando-me para ser um historiador atento ao meu tempo, tenho observado, como muitos outros, a escalada rápida da categoria do presente até o que se impõe como a evidência de um presentismo onipresente”58.

56 F. Hartog, Régimes d’historicité. Présentisme et expériences du temps (Paris: Editions du Seuil, 2003), 28. 57 Idem. 58 Ibidem, 18.

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astronomia das constelações humanas

Para Hartog, a noção de regimes de historicidade é uma das “condições de possibilidade da produção de histórias”59. Isso porque a investigação sobre o tempo, segundo propôs, deveria se concentrar no modo como as três categorias temporais – passado, presente e futuro – se articulam. A questão fundamental seria entender como, de acordo com “os lugares, os tempos e as sociedades, essas categorias, ao mesmo tempo de pensamento e de ação, são acionadas e tornam possível e perceptível o desenvolvimento de uma ordem do tempo”60. A noção de regimes de historicidade corresponderia, então, a um “aquém” da história, entendida como gênero ou disciplina, uma vez que toda história, para existir, pressuporia uma experiência do tempo, pressuporia um tipo de articulação entre as três categorias temporais classificadas por Hartog de “universais”. Desse modo, a noção de regimes de historicidade seria uma maneira de o historiador empreender investigações sobre o tempo que seriam tanto históricas quanto estruturais. Históricas, pois encarnariam o momento e as particularidades do tempo, da sociedade e do indivíduo em questão. Estruturais, pois permitiriam um trabalho histórico atento às diferenças e às semelhanças das formas de temporalidades que existiram ou existem em solo europeu, ou alhures. A noção de regimes de historicidade, escreveu Hartog, não pretende ser o “coelho saído da cartola”, ela quer, antes, poder desempenhar o papel de uma “ideia reguladora”61, colocando em evidência a multiplicidade do tempo, das experiências do tempo. Assim, com a noção de regimes de historicidade, Hartog quer “articular, velho sonho, espaço e tempo”62. Do nosso ponto de vista, a busca do tempo de Hartog possui relações de afinidade com o pensamento de Lévi-Strauss. Na verdade, ela pode ser compre59 Ibidem, 28, grifos nossos. 60 Ibidem, 27. 61 F. Hartog, “De l’histoire universelle à l’histoire globale?”, Le Débat, [vol.] 2, 154 (2009): 66 (53-66). 62 Idem.

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introdução

endida como um desdobramento original da tradição inaugurada por Lévi-Strauss na metade do século XX. Mas, se, para usarmos de uma simplificação, Lévi-Strauss coloca o tempo a serviço da apreensão das estruturas, Hartog parece seguir um percurso simetricamente inverso, pois em seu trabalho o tempo assume papel de protagonista para a compreensão das mudanças na história e da história.

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