Livro Atualidades Jurídicas e Ensino.pdf

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Descrição do Produto

FUNDAÇÃO PRESIDENTE ANTÔNIO CARLOS (COORDENADORA)

TEMÁTICAS JURÍDICAS & ENSINO 1ª Edição

MARIANA,

FUPAC-MARIANA 2017

Ficha catalográfica

TEMÁTICAS JURÍDICAS E ENSINO

Fundação Presidente Antônio Carlos (coordenadora). Temáticas jurídicas e ensino. 1 edição. Mariana: FUPAC-MARIANA, 2017. 470 p.

ISBN: 978-85-98974-20-0

Coletânea de textos do 4º Concurso de Ensaios Acadêmicos da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana e de artigos científicos dos professores da instituição. Capa e diagramação: Magna Campos

1. Direito. 2. Atualidades Jurídicas. contemporaneidade e ensino.

2. Ensino Jurídico. 4. Direito:

* A revisão textual é de responsabilidade dos autores de cada ensaio ou artigo do livro.

Autores

Adimilson Cota Alissa Durkes Ana Flávia Delgado Oliveira Ana Paula Soares Anderson Stoppa Antônio César da Rocha Antonio Zacarias de Oliveira Filho Berenice Silveira Bruno César Teixeira Carlos Randel Crepalde Mafra Cícero de Assis Figueiredo Crovymara Elias Batalha Danúbia Gregório Dário Ferreira Déborah da Paz Elaine Castro Fabiano César Rebuzzi Guzzo Flávia Fabíola Francisco Gifone Guilherme Souza Irene Silva Israel Quirino Jaqueline Cota Jeane Costa Joana DArc Aparecida de Oliveira

Júnior Ananias Castro Lucas Maia Magna Campos Mara Lucia Pereira Carraro Márcia Auxiliadora Fonseca Márcia Machado Bento Marion Stahl Michele Aparecida Gomes Guimarães Micheline Nepomuceno Myong Kum Song Nordeci Gomes da Silva Palloma Silva Paola Rezende do Nascimento Pedrosa Rafael Ricardo Bohórquez Aunta René Dentz Ricardo José de Carvalho Rita de Cássia Melo Laport Robson Mendes Suelem Oliveira Thayane Maia Wesley Dias Yasmim Trindade

Prefácio A obra que ora apresentamos – Temáticas Jurídicas e Ensino – é mais uma ideia vitoriosa que encontrou terreno fértil na comunidade acadêmica e vai além dos seus propósitos meramente didáticos. Trata de uma série de publicações jurídicas que pretende divulgar a produção intelectual de professores e graduandos em Direito da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana (FUPAC). Ao propor a publicação de um livro de ensaios e artigos originários da produção dos seus discentes, docentes e exalunos, a FUPAC amplia os horizontes da convivência acadêmica, em um processo de aprendizado coletivo que ultrapassa as paredes da sala de aula. A publicação, que chega ao quarto volume, demonstra um cuidadoso desenvolvimento do alunado que tem se esmerado na produção cada vez mais consciente de material doutrinário. O livro traz ainda contribuições valorosas do professorado, que evidenciam o compromisso da FUPAC na formação plena de seus graduandos, no desenvolvimento da ciência jurídica e na socialização de conhecimentos produzidos no ambiente escolar. Com todo esse material disponibilizado em meio eletrônico, democratiza-se o acesso à informação, dá-se nova dimensão à cultura acadêmica e permite-se maior difusão de ideias, ampliando o alcance do debate jurídico que chega, gratuitamente, a uma gama infinita de leitores. Dedicada ao ensino do direito, a FUPAC tem que, por dever institucional, contribuir para o desenvolvimento da ciência jurídica, divulgar novos conhecimentos, interpretações e visões do direito. A intensão de compor uma obra multiautoral, ao mesmo tempo em que promove a exposição coerente de ideias, por parte dos discentes e docentes, populariza o saber jurídico, pois cria um ambiente de produtivo diálogo que se traduz em um exercício de mútuo ensino/aprendizagem. 6

A variedade dos temas abordados mostra a imensidão do universo jurídico em debate. São assuntos presentes, atuais e desafiadores, para os quais não existem respostas prontas. Ao contrário, propõe reflexão, abre caminho para a discussão, para a pesquisa, para a formulação de novas premissas e conceitos. O leitor poderá aferir que não é um livro dedicado apenas a estudantes de direito, mas uma obra de leitura acessível que se oferece aos mais variados intérpretes do direito, especialmente àquele cidadão que vive o dia a dia da sociedade atual e que, de posse da informação, se torna a cada dia mais consciente do seu papel na construção da sociedade justa, fraterna e solidária que almejamos. Israel Quirino Professor universitário, mestre em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local, especialista em Administração Pública, escritor membro efetivo da ALACIB.

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“A linguagem é o meio entre sujeito e o mundo, a perspectiva pela qual o sujeito olha e constrói o mundo e nele intervém.” (Magna Campos – Revista Presença Pedagógica -2011) 8

Sumário OS PRINCÍPIOS NO DIREITO DO TRABALHO BRASILEIRO

Berenice Silveira e Michele Aparecida Gomes Guimarães Resumo ...................................................................................... 18 Introdução .................................................................................. 18 2. Abordagem conceitual dos princípios ....................................... 20 3. Princípios do direito do trabalho .............................................. 22 Conclusão ................................................................................... 35 Referências ................................................................................. 37 DA CONSTITUINTE DE 1988 ÀS JORNADAS DE JUNHO DE 2013: A CRISE DE REPRESENTATIVIDADE DA POLÍTICA FRENTE AO PULSAR SOCIAL

Antonio Zacarias de Oliveira Filho e Magna Campos Resumo ...................................................................................... 39 1.Discussão inicial ........................... Erro! Indicador não definido. 2. As jornadas de Junho de 2013................................................. 64 Considerações: ............................................................................ 75 Referências ................................................................................. 77 ESTABILIZAÇÃO DA TUTELA DE URGÊNCIA SATISFATIVA NO NOVO CPC: PARADOXO ENTRE A ESTABILIDADE E A COISA JULGADA

Ana Flávia Delgado Oliveira Resumo ...................................................................................... 79 Introdução .................................................................................. 79 2. O regime jurídico das tutelas de urgência no cpc de 1973......... 80 3. A Tratativa Das Tutelas Urgência No Ncpc ............................... 83 4. Estabilização da tutela de urgência no novo CPC e o paradoxo entre a estabilidade e a coisa julgada ........................................... 91 4.1. Contornos gerais sobre a estabilização .................................. 91 4.2 Paradoxo entre a estabilidade e a coisa julgada ...................... 99 Considerações finais .................................................................. 102 Referências ............................................................................... 105

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O NOVO REGIME FISCAL E A PROPOSTA DE UM ESTADO MÍNIMO: DESAFIOS À EFETIVAÇÃO DO DIREITO SOCIAL À SAÚDE E À EDUCAÇÃO NO BRASIL PÓS-PEC 55/2016

Júnior Ananias Castro, Crovymara Elias Batalha e Fabiano César Rebuzzi Guzzo Resumo .................................................................................... 108 Introdução ................................................................................ 109 2. O déficit público e a austeridade fiscal proposta pela PEC 55/2016 ................................................................................... 111 3. A PEC 55/2016 e a efetivação dos direitos sociais à saúde e educação .................................................................................. 115 4. Alternativas à PEC 55/2016 .................................................. 119 Conclusão ................................................................................. 121 Referências ............................................................................... 123 ESTUPRO DE VULNERÁVEL: VIOLÊNCIA PRESUMIDA E CRIMINALIZAÇÃO DO AMOR JUVENIL

Israel Quirino e Márcia Auxiliadora Fonseca Resumo .................................................................................... 126 Introdução ................................................................................ 126 2. Prática Sexual e União Afetiva Precoce ................................... 128 3. Do Normativo Legal à Hermenêutica Jurídica ......................... 130 4. A formação precoce da unidade familiar ................................. 140 5. A lei e o tempo ....................................................................... 148 6. Criminalização do Amor Juvenil ............................................. 149 Considerações Finais: ................................................................ 153 Referências ............................................................................... 155 PROCESSO DE EVOLUÇÃO DO DIREITO FALIMENTAR NO BRASIL

Micheline Nepomuceno e Michele Aparecida Gomes Guimarães Resumo .................................................................................... 157 Introdução ................................................................................ 157 2. Trajetória Histórica Do Direito Falimentar Brasileiro .............. 159 2.1. Origem do significado da palavra “falência” e do Direito Falimentar ................................................................................ 160 2.2. Direito Falimentar no Brasil: das Ordenações Afonsinas à nova Lei de Falências ........................................................................ 162 Conclusões ............................................................................... 174 Referências ............................................................................... 176 10

JUSTIÇA, O SUJEITO DE DIREITOS E DA LEI: CONCEITOS DA FILOSOFIA POLÍTICA DE PAUL RICOEUR

Marion Stahl e René Dentz Resumo .................................................................................... 179 Introdução ................................................................................ 179 2. A abordagem fenomenológica e hermenêutica ........................ 181 3. Fundamento ético-antropológico ............................................ 182 4. Perspectiva teleológica ........................................................... 183 5. Perspectiva deontológica ........................................................ 186 6. Aporias da norma, filosofia prática ......................................... 188 7. Sujeitos de direitos ................................................................ 190 8. O Direito e o sistema jurídico ................................................. 192 9. A paz social e o reconhecimento mútuo .................................. 195 Conclusão ................................................................................. 199 Referências ............................................................................... 200 NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS: A PROEMINÊNCIA DA AUTONOMIA PRIVADA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Cícero de Assis Figueiredo e Magna Campos Resumo .................................................................................... 203 Introdução ................................................................................ 203 2. Negócios Jurídicos Processuais .............................................. 205 2.1. Negócio Jurídico ................................................................. 206 2.3 - Cláusula geral de negociação ............................................. 208 2.4 Eficácia dos negócios processuais ........................................ 210 2.5 Negócios processuais no NCPC ............................................ 211 Conclusão ................................................................................. 212 Referências ............................................................................... 213 ¿PUEDE LA FORMA DE GOBIERNO DEMOCRÁTICO CONTENER EL GERMEN DEL TOTALITARISMO?

Rafael Ricardo Bohórquez Aunta e René Dentz 1. Sobre el punto de vista de la Filosofía Política ..................... 218 2. La singularidad de la democracia. ........................................ 225 3. La naturaleza del gobierno totalitario. .................................. 232 Conclusión: experiencia de soledad y democracia ....................... 245 Referencias ............................................................................... 249

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LEI 13.146/2015 - ESTATUTO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: NOVA REALIDADE OU NOVO DESAFIO?

Nordeci Gomes da Silva e Magna Campos Resumo .................................................................................... 250 Introdução ................................................................................ 250 2. A Lei 13.146 de 2015 ............................................................. 253 3. Discriminação ....................................................................... 256 4. Sobre a educação .................................................................. 258 5. Acessibilidade Urbana ........................................................... 266 Considerações finais .................................................................. 268 Referências ............................................................................... 270 A VINGANÇA PRIVADA DA PSEUDOVÍTIMA NOS CRIMES DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR

Paola Rezende do Nascimento Pedrosa; Fabiano César Rebuzzi Guzzo e Carlos Randel Crepalde Mafra Resumo ........................................... Erro! Indicador não definido. Introdução ....................................... Erro! Indicador não definido. 2. Vitimologia ................................... Erro! Indicador não definido. 3. Tipologia Da Vítima ...................... Erro! Indicador não definido. 4. O Processo Penal .......................... Erro! Indicador não definido. 5. Princípios Constitucionais Norteadores ........ Erro! Indicador não definido. 6. As provas no processo penal ......... Erro! Indicador não definido. 7. Meios de prova em processo penal admitidos Erro! Indicador não definido. 8. O depoimento do ofendido e sua validade ..... Erro! Indicador não definido. 9. A Teoria Da “Síndrome Da Mulher De Potifar” .... Erro! Indicador não definido. 10. A Lei Maria Da Penha ................. Erro! Indicador não definido. 11. Aspectos relevantes e inovações .. Erro! Indicador não definido. 12. Dos procedimentos policiais e judiciais ...... Erro! Indicador não definido. 13. A palavra das partes no âmbito da violência doméstica e familiar ............................................ Erro! Indicador não definido. 14. O valor da palavra do homem e da mulher Erro! Indicador não definido. 12

15. A criminalização do homem e o abuso de direito pela mulher ........................................................ Erro! Indicador não definido. Considerações finais ......................... Erro! Indicador não definido. Referências ..................................... Erro! Indicador não definido. ANÁLISE ACADÊMICA DE JULGADOS JURÍDICOS: UMA PROPOSTA METODOLÓGICA

Magna Campos Resumo .................................................................................... 318 Introdução ................................................................................ 318 2. Proposta de roteiro metodológico para análise ........................ 324 3. Organização estrutural proposta ............................................ 327 4. Estrutura do texto ................................................................. 328 5. A avaliação da análise crítica elaborada ................................. 330 Considerações finais: ................................................................. 331 EMPREGO DA PERGUNTA NA JUSTIÇA: A HERMENÊUTICA JURÍDICA DE GADAMER

Anderson Stoppa; Antônio César da Rocha; Bruno César Teixeira; Elaine Castro e René Dentz Resumo .................................................................................... 332 Introdução ................................................................................ 332 3. O Limite da Consciência na História Efeitual .......................... 335 4. Experiência Hermenêutica e a História Efeitual ...................... 336 5. A Tradição da Pergunta e da Resposta ................................... 338 Considerações finais .................................................................. 341 Referências ............................................................................... 342 DESVENDANDO O CENÁRIO NA SISTEMÁTICA DA SAÚDE DO TRABALHADOR NO MUNICÍPIO DE OURO PRETO

Joana DArc Aparecida de Oliveira e Rita de Cássia Melo Laport Resumo .................................................................................... 344 Introdução ................................................................................ 344 2 A Problemática Atual ............................................................. 346 3 Consolidação Da Vigilância Em Saúde Do Trabalhador .......... 347 4 Cenário Da Vigilância Em Saúde Do Trabalhador Em Ouro Preto ................................................................................................. 348 5 Diagnósticos Situacionais Da Vigilância Em Saúde Do Trabalhador Entre 2013 À 2016 ................................................ 351 13

Conclusão ................................................................................. 352 Referências ............................................................................... 353

ÁLCOOL E AGRESSÃO: ESTUDO SOBRE AS CONSEQUÊNCIAS DESSE MAL E O AMPARO LEGAL ÀS VÍTIMAS

Mara Lucia Pereira Carraro e Israel Quirino Resumo .................................................................................... 355 Introdução ................................................................................ 355 2. Violência Doméstica e consumo de bebida ............................. 357 3. Violência derivada do uso de bebida alcóolica, uma questão de saúde pública ........................................................................... 362 4. A mulher vítima do alcoolismo ............................................... 364 Considerações finais .................................................................. 366 Referências ............................................................................... 368 RELIGIÃO E TERRORISMO: UMA ANÁLISE VIA DIREITOS HUMANOS

Márcia Machado Bento e Magna Campos Resumo .................................................................................... 371 Introdução ................................................................................ 371 2. Terrorismo e Estado Islâmico ................................................. 374 3. A via dos Direitos Humanos ................................................... 376 Considerações finais .................................................................. 381 Referências ............................................................................... 382 O DIREITO E O CONTEXTO PÓS-MODERNO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS

Irene Silva; Lucas Maia; Palloma Silva; Robson Mendes; Wesley Dias; Yasmim Trindade e René Dentz Resumo .................................................................................... 383 Introdução ................................................................................ 383 2. Modernidade e pós-modernidade ........................................... 384 3. O Direito na Pós-modernidade ................................................ 391 Considerações finais .................................................................. 397 Referências ............................................................................... 398 O CONCEITO DE JUSTIÇA EM PAUL RICOEUR 14

Ana Paula Soares, Danúbia Gregório, Dário Ferreira, Flávia Fabíola, Guilherme Souza e René Dentz Resumo .................................................................................... 399 Introdução ................................................................................ 399 2. Distinção sobre ética e moral ................................................. 402 Considerações finais .................................................................. 410 Referências ............................................................................... 411 PÓS-MODERNIDADE, FILOSOFIA E DIREITO

Adimilson Cota; Alissa Durkes; Francisco Gifone; Jaqueline Cota; Jeane Costa; Suelem Oliveira e René Dentz Resumo .................................................................................... 413 Introdução ................................................................................ 413 2. Zygmunt Bauman: fragilidade nos conceitos .......................... 414 3. Surgimento do conhecimento pós-moderno e a morte de Deus 416 4. Moral e ética no pós-positivismo e a importância do ensino do Direito na pós- modernidade ..................................................... 421 Considerações finais .................................................................. 425 Referências ............................................................................... 425 A PEC 241 - 55 E OS DIREITOS DOS CIDADÃOS

Crovymara Elias Batalha Resumo .................................................................................... 428 Introdução ................................................................................ 428 2. A proposta e o teto dos gastos públicos .................................. 431 3. A PEC e as limitações da CF de 1988 ..................................... 433 4. A PEC e os reflexos no financiamento dos serviços públicos .... 435 Conclusão ................................................................................. 440 Referências ............................................................................... 441 ÉTICA E DIREITO: ESTUDO SOBRE MORAL E JUSTIÇA EM NIETZSCHE

Antonio Zacarias Oliveira Filho; Déborah da Paz; Myong Kum Song; Thayane Maia e Magna Campos Resumo .................................................................................... 442 Introdução ................................................................................ 442 2. Moral em Nietzsche ............................................................... 443 3. Justiça e suas implicações .................................................... 446 15

Considerações finais .................................................................. 453 Referências ............................................................................... 454

ÉTICA JURÍDICA: NEM TUDO O QUE É LÍCITO É HONESTO, MAS TUDO O QUE É HONESTO É JUSTO

Ricardo José de Carvalho e Israel Quirino Resumo .................................................................................... 455 Introdução ................................................................................ 455 2. Ética geral ............................................................................. 457 3. Ética das profissões jurídicas ................................................. 464 Conclusão ................................................................................. 471 Referências ............................................................................... 473

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ARTIGOS CIENTÍFICOS

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OS PRINCÍPIOS NO DIREITO DO TRABALHO BRASILEIRO

Berenice Silveira1 Michele Aparecida Gomes Guimarães2 Resumo O presente estudo busca, por meio de análises doutrinárias e jurisprudenciais, apresentar alguns dos princípios específicos do Direito do Trabalho, analisando suas influências e importância na proteção do hipossuficiente na relação de trabalho, resguardando o trabalhador, bem como sua aplicabilidade pelos Tribunais Superiores e Regionais, sob o prisma da Constituição da República de 1988 no contexto contemporâneo. Palavras-chave: Princípios - Direito do Trabalho – Proteção – Primazia da Realidade.

Introdução O trabalho jurídico em epígrafe, sem pretensão de esgotamento das temáticas, visa primordialmente apresentar noções de alguns princípios inspiradores do Direito Laboral, iniciando pela caracterização dos mesmos e passando por tratativas sucintas de alguns julgados que evidenciam a

Berenice Silveira, aluna do Curso de Direito da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana- UNIPAC – Turma 2013. E-mail: [email protected] 2Mestre em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável pela Escola Superior Dom Helder Câmara. Advogada e Consultora Jurídica militante nas áreas do Direito do Consumidor, Civil, Trabalhista, Ambiental, Administrativo e Previdenciário. Assessoria Jurídica em órgãos da Administração Pública. Professora da Universidade Presidente Antônio Carlos de Mariana. Tutora do curso de Graduação em Administração Pública do Centro de Educação à Distância (CEAD) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). 1

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aplicação moderna dos mesmos na busca de adequada solução de dissídios trabalhistas. Alerta-se ao fato de que os princípios apresentados são suficientemente

bastantes

para

elaboração

de

trabalhos

gigantescos e defesa de teses aprofundadas. Mas, no presente momento, busca-se apontar alguns princípios desenvolvidos especificamente no campo do Direito do Trabalho e expor algumas formas de aplicação a fim de proporcionar ao leitor um noção geral acerca de entendimentos conceituais, e, por vezes, jurisprudenciais dos princípios da proteção, in dubio pro operario, da aplicação da norma mais favorável, da condição mais benéfica, da primazia da realidade sob a forma, da irrenunciabilidade,

da

continuidade

do

emprego,

da

irredutibilidade salarial e da imperatividade. Inicialmente apresentar-se-á uma breve conceituação dos Princípios do Direito do Trabalho, destacando sua importância para os aplicadores do Direito em geral e, na sequencia, são transcritas algumas decisões jurisprudenciais. Ao longo do desenvolvimento, um realce é dado às funções dos princípios quando da aplicação no caso concreto na medida em que são colacionadas jurisprudências no bojo do artigo. Analisam-se os princípios norteadores do Direito do Trabalho, quanto a sua aplicabilidade e efetividade na resolução do caso concreto, verificando principalmente como os princípios jus laborais podem contribuir para o Magistrado solucionar os conflitos trabalhistas de maneira mais justa, razoável e adequada, tomando como base as realidades vividas pelos 19

trabalhadores

que

acabam

por

aflorar

contextos

de

vulnerabilidade, hipossuficiência e necessidade de proteção pelo Estado. 2. Abordagem conceitual dos princípios

Na História do Direito, resta claro que os princípios jurídicos são o norte, a direção e os pontos de partida que se devem seguir quando da elaboração, interpretação e aplicação das leis. De fato, a norma jurídica emana de uma razão, de um fundamento que é seu princípio. Fazendo referência ao conceito de Manuel Alonso Garcia (1975, p. 106) citado por Alice Monteiro de Barros (2006, p. 168), vê-se que os princípios de Direito do Trabalho são “linhas diretrizes ou postulados que inspiram o sentido das normas trabalhistas e configuram a regulamentação das relações de trabalho conforme critérios distintos dos que pode encontrar-se em outros ramos do Direito”. Aliado a isso é relevante lembrar que o Direito do Trabalho surgiu da necessidade de se regulamentar e de tentar equilibrar as relações entre empregador e empregado, face às condições

desfavoráveis

do

trabalhador

nas

relações

empregatícias. Assim, buscou-se, inicialmente através de uma efetiva organização sindical, contornar essa situação, o que, por consequência,

gerou

grande

repercussão

entre

os

empregadores, que se mantinham divididos acerca das novas 20

propostas de condições de trabalho, forçando uma incisiva intervenção

estatal

a

fim

de

dirimir

os

conflitos

entre

empregador e empregado. Paralelamente,

insta

salientar

o

surgimento

dos

princípios na constante e maleável construção do Direito, no que tange ao direcionamento dos legisladores e juristas quando da elaboração, interpretação e aplicação das leis. Nas palavras de Bastos (1997, p. 144), princípios são “as ideias fundamentais sobre a organização jurídica de uma comunidade, emanados da consciência social, que cumprem funções fundamentadoras, interpretativas e supletivas, a respeito de seu total ordenamento jurídico”. Ainda neste diapasão, a partir das lições de Castro (2.012, p 18): Os princípios constituem-se nas ideias fundamentais e informadoras da organização jurídica, possuindo as seguintes funções: a) informadora, tendo em vista que, de forma direta ou indireta, inspiram o legislador, servindo-lhe como fundamento do ordenamento jurídico; b) normativa, dado o fato de atuarem de forma supletiva, no caso de ausência de lei, ou seja, funcionam como elemento de integração da norma jurídica; e c) interpretadora, eis que funcionam como um critério de orientação do juiz ou do intérprete da lei.

À vista disso, o Direito do Trabalho passou a se basear em diversas ideias fundamentais, com a função primordial de último elo disponível ao intérprete para a solução do conflito. Por conseguinte, na falta de disposições legais, as casuísticas são resolvidas com o auxílio da jurisprudência, analogia, 21

equidade e normas gerais do Direito e do Direito do Trabalho e também conforme os usos e costumes, prevalecendo a máxima que, nenhum interesse particular ou de classe deve se sobrepor ao interesse público.

3. Princípios do direito do trabalho O Direito do Trabalho possui uma série de princípios específicos que condizem com as realidades vivenciadas pelos trabalhadores e com as peculiaridades das normas trabalhistas. Posto isto, nos

tópicos

subsequentes

são estudas suas

principais bases fundantes.

3.1 Princípio da proteção

O princípio da proteção é aquele que estrutura em seu interior regras e institutos que buscam a custódia à parte hipossuficiente

na

relação

do

empregado

em

face

do

empregador, retificando ou atenuando no plano jurídico, o desequilíbrio inerente ao plano fático do contrato de trabalho. Nos ensinamentos de Hernandez (2007, p.115) citado por Alice Monteiro de Barros (2008, p.180), o Direito do Trabalho: É todo centralizado no princípio da tutela compensatória ao trabalhador subordinado, que consiste num conjunto de normas estabelecidas para contrabalançar a posição superior do empregador não apenas de fato, mas também juridicamente reconhecida e normativamente sustentada. 22

Por consequência, o princípio de proteção traz que o Direito do Trabalho, em seu interior, prioriza a tutela do trabalhador como uma forma de compensar a condição de hipossuficiência e de dependência na relação de trabalho. Paralelamente, de acordo com Alice Monteiro de Barros (2008, p.188), o princípio da proteção se perfaz na norma e na condição que se mostra mais favorável, cujo fundamento se liga à essência do Direito do Trabalho. Seu propósito consiste na tentativa de se corrigir desigualdades, criando, dessa maneira, uma superioridade jurídica em favor do empregado, tendo em vista sua condição de hipossuficiente na relação trabalhista. Também sobre o assunto, não se pode esquecer que segundo Américo Plá Rodrigues (1992, p.42-43), este princípio engloba três outros princípios quais sejam, o princípio do in dúbio pro operário (ou pro misero), o princípio da norma mais favorável e o princípio da condição mais benéfica, além de produzir efeitos nas regras trabalhistas, visando corrigir desigualdades no campo do trabalho.

Nesse compasso, vale a

pena traçar as principais premissas de tais princípios.

3.2 princípio in dubio pro operário (ou pro mísero)

A ideia do in dubio pro operário baseou-se naquela utilizada no ramo do Direito Penal, in dubio pro reo, com a

23

finalidade de proteger a parte mais frágil da relação jurídica, que no caso do direito do trabalho é o empregado. Destarte, deve o intérprete da lei escolher, entre duas ou mais interpretações viáveis, aquela que for mais favorável ao trabalhador, contanto que não afronte a clara manifestação do legislador, nem se relacione à matéria probatória, o que impõe limitações ao âmbito de aplicação do mesmo, tendo em vista o disposto nos artigos 333 do CPC e o 818 da CLT, que prescrevem a regra do ônus da prova que incumbe ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito no caso concreto e a prova das alegações cabendo à parte que as fizer. Nessa esteira, entende o Supremo Tribunal de Justiça, em julgado do ano de 2013, no qual prevaleceu o entendimento mais favorável ao empregado de uma cláusula existente na Convenção Coletiva de Trabalho relativa à função do obreiro. RECURSO DE REVISTA AUXÍLIO ALIMENTAÇÃO - NORMA COLETIVA - APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO IN DUBIO PRO OPERÁRIO. O Colegiado a quo, interpretando cláusula coletiva da categoria, decidiu que, diante da disparidade de interpretações, deve ser aplicado o princípio in dubio pro operário. Impertinente a invocação do art. 114 do Código Civil, uma vez que o Tribunal não ampliou a interpretação da cláusula normativa, não se havendo de falar em observância de interpretação restritiva. Os arestos não revelam similitude fática com a lide, incidindo a Súmula nº 296 do TST. O art. 7º, XXVI, da Constituição Federal, não foi violado, uma vez que o Tribunal a quo, longe de negar validade ao instrumento coletivo, interpretou a norma coletiva e concedeu-lhe plena validade. Recurso de revista não conhecido. (TST - RR: 807004320095170003 8070043.2009.5.17.0003, Relator: Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, Data de Julgamento: 12/06/2013, 7ª Turma, Data de Publicação: DEJT 21/06/2013) 24

Portanto, havendo no caso concreto possibilidade de se utilizar interpretações díspares e havendo dúvidas há se de conceder validade à norma mais favorável ao trabalhador, visto ser ele a paste técnica e econômica mais vulnerável.

3.3 Princípio da norma mais favorável

O princípio da aplicação da norma mais favorável encontra-se consubstanciado no artigo 7º da Constituição Federal de 1988 e dispõe que o operador do Direito do Trabalho deve optar pela regra mais favorável ao trabalhador, obreiro, no instante da elaboração da regra, no contexto de confronto entre regras concorrentes (hierarquia) e no contexto de interpretação das regras jurídicas. Corroborando com o referido princípio, por exemplo, o faz o Artigo 620 da CLT, ipsis litteris, “as condições estabelecidas em Convenção quando mais favoráveis, prevalecerão sobre as estipuladas em Acordo”. (Brasil, 1943). Ou seja, em aparente conflito de normas aplica-se a norma mais favorável ao trabalhador.

3.4 Princípio da condição mais benéfica

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O preceito da preponderância da condição mais benéfica ao trabalhador impõe que as condições mais benéficas previstas no contrato de trabalho ou no regulamento de empresa deverão prevalecer diante da edição de normas que estabeleçam um patamar protetivo menos benéfico ao empregado. Tal base fundante é reproduzida no dispositivo 468 da CLT, de modo que respeita os termos preconizados pela Constituição da República de 1988, em seu artigo 5º, inciso XXXVI, a saber: “nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia”. Por fim, sob o

prisma dos

Tribunais Superiores,

constata-se o entendimento da impossibilidade de pessoas jurídicas contratarem empregados domésticos. EMPREGADO DOMÉSTICO - CONTRATADO POR PESSOA JURÍDICA Impossibilidade. Aplicação do Princípio da Condição Mais Benéfica. O empregado contratado por pessoa jurídica, para trabalhar no âmbito residencial de pessoa física, tem o contrato regido pelas disposições da CLT, em face da aplicação do Princípio da Condição Mais Benéfica. Além disso, não é possível que pessoas jurídicas contratem empregados domésticos. (TRT 2ª Região - – Processo nº RO02496200306002000-SP – Ac. 20070079514 – 10ª Turma - Rel. Juiz José Ruffolo – Publ. DJSP em 06/03/2007).

26

Para muitos doutrinadores é a efetivação do direito adquirido, presente no artigo 5º, inciso XXXVI da Constituição Federal de 1988 e incorporado pela legislação trabalhista (CLT). 3.5 Princípio da primazia da realidade sobre a forma

O famoso princípio da primazia da realidade sob a forma se dá pela valoração dos fatos, o que ocorre na prática, em detrimento dos documentos, muitas vezes apresentados pelo empregador, ficando este vinculado aos princípios e proibido de induzir o empregado a laborar em condições degradantes. Para Maurício Godinho Delgado (2003, p.114), “tal princípio (chamado ainda de princípio do contrato de realidade), amplia a noção civilista de que o operador jurídico, no exame das declarações volitivas, deve atentar mais à intenção dos agentes do que ao envoltório formal do qual transpareceu a vontade”. É o principio que busca a verdade real, sendo os fatos mais importantes que os documentos, o que evita, assim, possíveis fraudes. Nessa esteira, os Tribunais Superiores, conforme julgado da 3ª Turma do Supremo Tribunal de Justiça, entendem: AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. ENQUADRAMENTO COMO PROFESSOR. REGRA DO ART. 317 DA CLT. PREVALÊNCIA DO PRINCÍPIO DA PRIMAZIA DA REALIDADE. Embora o art. 317 da CLT exija como requisitos para o exercício do magistério a habilitação legal e registro no Ministério da Educação, a jurisprudência atual desta Corte tem o entendimento de que a exigência do referido 27

dispositivo tem caráter meramente formal, prevalecendo o princípio da primazia da realidade, no qual se leva em conta se o trabalhador, de fato, exercia a atividade docente, para o seu enquadramento como professor. Agravo de instrumento conhecido e não provido. (TST AIRR: 5243420125220003, Relator: Alexandre

de

Julgamento:

Souza

Agra

01/10/2014,

Belmonte, 3ª

Turma,

Data

de

Data

de

Publicação: DEJT 03/10/2014)

Desta feita, conclui-se que as relações trabalhistas devem se basear em uma situação de fato, ou seja, como efetivamente se realizou os serviços e não o que dispõe os documentos.

3.6 Princípio da irrenunciabilidade dos direitos trabalhistas

Consoante artigo 9º da CLT, “serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos trabalhistas”, assim, os direitos jus laborais são irrenunciáveis pelo empregado, não sendo possível, por exemplo, a renúncia do direito a férias ou verbas concernentes ao contrato de trabalho. Nesse

diapasão,

Maurício

Godinho

(2008,

p.1100)

denomina esse princípio de Princípio da Indisponibilidade dos Direitos Trabalhistas e leciona que “traduz a inviabilidade técnico-jurídica de poder o empregado despojar-se, por sua simples manifestação de vontade, das vantagens e proteções que lhe asseguram a ordem jurídica e o contrato”. 28

Entretanto, poderá o empregado renunciar os efeitos patrimoniais dos direitos se estiver em juízo, diante do Juiz do Trabalho, nesse caso não se pode dizer que o trabalhador esteja sendo forçado a fazê-lo. Acerca

desta

questão,

os

Tribunais

vêm

julgando

procedentes os recursos de empregados que pleiteiam no Poder Judiciário a invalidade da transação ou renúncia feita pelos próprios empregados. No caso a seguir exposto, trata-se a invalidade de cláusula contrária à CLT, inserida no terno de adesão a programa de demissão voluntária.

ADESÃO A PDV. PRINCÍPIO DA INDISPONIBILIDADE DOS DIREITOS TRABALHISTAS. Mercê do princípio da indisponibilidade dos direitos trabalhistas, não se reconhece a validade de cláusula inserida em termo de adesão a programa de demissão voluntária, mediante a qual o trabalhador transaciona ou renuncia, amplamente, a direitos trabalhistas, dando, de forma genérica, plena e geral quitação ao extinto contrato de trabalho, desde que não tenha sido assistido pela Entidade Sindical respectiva, em cumprimento do disposto no artigo 477, § 1º da CLT. (TRT-7 - RO: 924000820035070002 CE 0092400-0820035070002, Relator: ANTONIO MARQUES CAVALCANTE FILHO, Data de Julgamento: 27/05/2008, PLENO DO TRIBUNAL, Data de Publicação: 23/07/2008 DOJTe 7ª Região)

Por fim, caso o empregador descumpra o princípio supracitado, cabe ao empregado ajuizar ação trabalhista 29

pleiteando a invalidade de sua renúncia ou transação de direitos.

3.7 Princípio da continuidade da relação de emprego

Para a doutrina e jurisprudência dominantes, o princípio da continuidade se liga à ideia de presunção de que os contratos são celebrados por prazo indeterminado, em face do interesse do trabalhador em permanecer na prestação de serviços que, por conseguinte, é a fonte de sua subsistência. Este princípio possibilita a inversão do ônus da prova em favor do trabalhador, presumindo de forma favorável a ele a continuidade

do contrato

de

trabalho, deixando para o

empregador demonstrar as razões e se realmente ocorreu o fim do mesmo. O

legislador

deixa

claro

sua

preferência

pela

continuidade do trabalho, ou como bem diz Alice Monteiro de Barros (2006, p.174) “visa a preservação do emprego, com o objetivo de dar segurança econômica ao trabalhador”. Os contratos por prazo determinado representam a exceção e demonstram a flexibilização que vem sofrendo este princípio, nas hipóteses, admitidos por lei, as previstas no Art. 443 da CLT, os casos de contratos provisórios estabelecidos pela Lei 9.601/98 e as regidas por leis especiais. De todo modo, a Súmula nº 212 do Tribunal Superior do Trabalho traz esse princípio dispondo que “o ônus de provar o término do contrato de trabalho quando negados a prestação de 30

serviço e o despedimento, é do empregador, pois o princípio da continuidade

da

relação

de

emprego

constitui

presunção

favorável ao empregado”. Desta forma tem-se o julgado do Tribunal Regional do Trabalho da 24ª Região e da 2ª Região, percebendo-se, ainda, que a aplicação do princípio da continuidade acaba por favorecer o empregado na distribuição do ônus da prova. PEDIDO DE DEMISSÃO – ÔNUS DA PROVA – O princípio da continuidade da relação de emprego vigente neste ramo especializado do Direito, induz a presunção de que o empregado ordinariamente não deixa a sua principal fonte de subsistência; o que impõe a quem alega tal circunstância, provar cabalmente o fato; não se desvencilhando do mister, há que se manter o julgado. Recurso improvido por unanimidade no particular. (TRT 24ª Região – Processo nº RO 310/2001 – (2353/2001) – Rel. Juiz João de Deus Gomes de Souza – Publ. DJMS em 14/09/2001 p. 27). ENCARGO PROBATÓRIO – RELAÇÃO DE EMPREGO – Ordinário é a manutenção do emprego, já que o contrato de trabalho tem como princípio a continuidade. Extraordinário, assim, é seu rompimento pelo empregado, ainda mais em tempos de crise da empregabilidade, segundo o jargão adotado pelos economistas neoliberais. A teoria das provas, num sistema de proteção ao mais fraco, que tem presente o fato de o empregador dirigir a prestação pessoal dos serviços (CLT, art. 2°), determina que o ordinário seja provado pelo autor e o extraordinário pelo réu. E extraordinário, no caso, é o rompimento do contrato por iniciativa do empregado, ônus do qual o recorrente não se desincumbiu. (TRT 2ª Região – Processo nº RO-RS 20010461285 – (20020027260) – 8ª Turma – Rel. Juiz José Carlos da Silva Arouca – Publ. DOESP em 01/02/2002).

31

Portanto, o fundamento do Princípio da Continuidade de Emprego é a natureza alimentar do salário, já que o trabalhador é subordinado jurídica e economicamente ao empregador e, do seu trabalho, retira o seu sustento.

3.8 Princípio da irredutibilidade salarial, da isonomia salarial ou da intangibilidade salarial

O princípio da intangibilidade salarial é protegido pela Constituição da República de 1988, em seu artigo 7º, inciso VI, que dispõe: “são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: inciso VI - irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo e inciso XXX- que consagra a isonomia salarial, determinando a proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critérios de admissão do trabalhador, por motivo de sexo, cor, idade ou estado civil”. Nesta corrente, Mauricio Godinho (2008, p.213), explica que, a irredutibilidade é interpretada referindo-se ao valor nominal, numérico, e não ao valor real do salário, aquele que reconstitui o poder de compra da moeda.

A ordem jus trabalhista, entretanto, não tem conferido a semelhante garantia toda a amplitude possível. Ao contrário, como se sabe, prevalece, ainda hoje, a pacífica interpretação jurisprudencial e doutrinária de que a regra da irredutibilidade salarial restringe-se, exclusivamente, à noção do valor nominal do salário obreiro (art. 468, CLT, 32

combinado com art. 7º, VI, CF/88). Interpreta-se ainda hoje, portanto, que a regra não assegura percepção ao salário real pelo obreiro ao longo do contrato. Tal regra asseguraria apenas a garantia de percepção do mesmo patamar de salário nominal anteriormente ajustado entre as partes, sem viabilidade à sua diminuição nominal. Noutras palavras, a ordem jurídica heterônoma estatal, nesse quadro hermenêutico, teria restringido a presente proteção ao critério estritamente formal de aferição do valor do salário.

Paralelamente, a jurisprudência é uníssona em condenar o empregador no caso de descumprimento do princípio da intangibilidade salarial, conforme julgado abaixo. AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. DIFERENÇAS SALARIAIS. RETORNO APÓS O GOZO DO AUXÍLIO DOENÇA. READAPTAÇÃO EM FUNÇÃO COMPATÍVEL COM AS LIMITAÇÕES. IRREDUTIBILIDADE SALARIAL. 1. O e. TRT manteve a sentença segundo a qual, considerando que a autora - recebia remuneração variável antes do afastamento, à base de comissões, (...) o salário da reclamante deve observar a média salarial dos últimos 12 meses que antecederam o benefício previdenciário, conforme os recibos acostados nos autos -. Aquela Corte ponderou que admitir a tese de que possível a redução salarial implicaria, - além de ofensa ao princípio da intangibilidade salarial consagrado no art. 7º, inc. VI, da Constituição, admitir a prática de discriminação em relação ao trabalhador readaptado por motivo de doença. Acrescenta-se a isso, que o art. 461, § 4º, da CLT, impede a equiparação salarial nesse caso, o que sugere, segundo a doutrina de Maurício Godinho Delgado, 'que a diminuição salarial não estaria sendo cogitada pelo diploma celetista' -. 2. No caso dos autos, o e. Colegiado regional decidiu com respaldo no princípio do livre convencimento motivado do juiz - artigo 131 do CPC -, com base nas provas e circunstâncias constantes dos autos. Além disso, o TRT não dirimiu a controvérsia à luz dos princípios disciplinadores da repartição do ônus da prova, vez que o litígio foi 33

solucionado com base na prova efetivamente produzida, notadamente na prova documental, não restando sequer prequestionados os artigos 818 da CLT e 333, I, e 389 do CPC, nos moldes da Súmula 297/TST. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. 1. O e. TRT consignou que - os honorários foram deferidos por aplicação da Súmula nº 219 e OJ nº 348, ambas do TST -, ressaltando que - [A] autora igualmente faz jus ao benefício da Gratuidade da Justiça, de vez que atendidos os requisitos legais para a sua concessão, nos termos da declaração de hipossuficiência -. 2. Estando a e. decisão regional em consonância com a atual jurisprudência desta Corte Superior, atrai-se o teor do art. 896, § 4º, da CLT e da Súmula 333/TST, que, afastando as violações e o dissenso pretoriano apontados pela parte, obstam o trânsito da revista. Agravo de instrumento conhecido e não provido. (TST - AIRR: 50089420115120039 , Relator: Hugo Carlos Scheuermann, Data de Julgamento: 14/05/2014, 1ª Turma, Data de Publicação: DEJT 23/05/2014)

Sendo

assim,

busca-se,

através

deste

princípio,

assegurar um valor de salário justo e que seja capaz de manter e afirmar o Princípio da Dignidade de Pessoa Humana, instrumento basilar de nossa Constituição, observado o padrão salarial do empregado.

3.9 Princípio da imperatividade das normas trabalhistas

Este princípio último determina que as regras do Direito do Trabalho não estão sujeitas a alteração por vontade das partes, salvo as exceções expressas na lei. As normas

34

trabalhistas não podem ser alteradas pela simples manifestação das partes. As normas dispositivas são exceção no Direito do Trabalho, valendo de exemplo o art. 472, &2º da CLT que dispõe que nos contratos por prazo determinado, o tempo de afastamento, se assim acordarem as partes interessadas, não será computado na contagem do prazo para a respectiva terminação. Em regra, como as normas trabalhistas versam sobre questões de interesse público, são de aplicação imperativa, cogente, não podendo, consequentemente, serem afastadas por mera liberalidade das partes. Conclusão

O Direito do Trabalho, frente às relações dinâmicas que se alteram, a partir das relações de trabalho, deve sempre ser interpretado de modo que possa corrigir as lacunas das leis ou até mesmo fazer com que estas sejam interpretadas de maneira condizente com a realidade, permanecendo atualizada. A partir das jurisprudências acima colecionadas é possível constatar que, de maneira geral, os princípios vêm sendo aplicados nas decisões trabalhistas, corroborando com a ideia de que a legislação contém falhas e que precisam ser atualizadas, como por exemplo, no tocante ao crescente uso de tecnologias nas relações trabalhistas e no correr do contrato de trabalho. 35

Os princípios que regem o ramo jus trabalhista, como o da proteção, in dubio pro operario, da aplicação da norma mais favorável, da condição mais benéfica, da primazia da realidade sob a forma, da irrenunciabilidade, da continuidade do emprego, da irredutibilidade salarial e da imperatividade, são de grande importância, na medida em que garantem a dignidade do trabalhador, demonstram as conquistas alcançadas por estes ao longo da história das relações trabalhistas. Dessa forma, cabe ao Juiz do Trabalho, por meio de sua atividade jurisdicional, adequar os princípios ao caso concreto, fazendo valer o artigo 8º da CLT, que diz respeito à aplicação dos princípios trabalhistas na falta de disposições legais ou contratuais, respeitando a dignidade do empregado, bem como, seus direitos fundamentais elencados na Constituição da República de 1988. Por fim, tomando como base a realidade vivida pelo Brasil e por inúmeros países do mundo modernamente não há de se esquecer da tendência de “flexibilização dos direitos trabalhistas”, sobre tal aspecto, é certo que esse caminho não pode

consistir, na pratica, em verdadeiro retrocesso às

construções principiológicas laborais que foram discutidas ao longo do presente texto, diga-se de passagem, fruto de muitas lutas e “espinhos” nas trajetórias dos trabalhadores.

36

Referências BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 3. Ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1997. BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. 4. ed. rev. e ampl. São Paulo: LTR, 2008. p.180. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. BRASIL. Decreto-lei 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação da Leis do Trabalho. Diário Oficial da União, Brasília, 9 ago.1943. BRASIL. Decreto-lei 5.869, de 11 de Janeiro de 1973. Aprova o Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, Brasília, Diário Oficial da União, Brasília, 17 jan. 1973. CASTRO, Federico de, apud RODRIGUEZ, “Princípios de direito do trabalho”, p. 18.

Américo

Plá.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 7. ed. São Paulo: LTr, 2008. p. 1100. GARCIA, Manoel Alonso. Derecho Del Trabalho. 27. Ed. S.L Livitas Ediciones, 2006. p.106. MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. São Paulo: Atlas, 2008. RECURSO DE REVISTA – AUXÍLIO – ALIMENTAÇÃO – NORMA COLETIVA – APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO IN DUBIO PRO OPERÁRIO. TST, disponível em http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/busca?q=In+dubi o+pro+operario, Acesso em: 16 Out.2015. EMPREGADO DOMÉSTICO CONTRATADO POR PESSOA JURÍDICA. Impossibilidade. Aplicação do Princípio da Condição mais Benéfica. TRT 2ª Região. Disponível em 37

http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/busca?q=EMPRE GADO+DOM%C3%89STICO+CONTRATADO+POR+PESSOA+JU R%C3%8DDICA, Acesso em: 16 Out. 2015. AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. ENQUADRAMENTO COMO PROFESSOR. REGRA DO ART.317 DA CLT. PREVALÊNCIA DO PRINCÍPIO DA PRIMAZIA DA REALIDADE. TST. Disponível em http://tst.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/143458063/agravode-instrumento-em-recurso-de-revista-airr5243420125220003, Acesso em: 16 Out. 2015. ADESÃO A PDV. PRINCÍPIO DA INDISPONIBILIDADE DOS DIREITOS TRABALHISTAS. TRT. Disponível em http://trt7.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/16868634/recursoordinario-ro-924000820035070002-ce-00924000820035070002, Acesso em: 16 Out. 2015. PEDIDO DE DEMISSÃO – ÔNUS DA PROVA. TRT 2ª REGIÃO. Disponível em. http://www.jusbrasil.com.br/topicos/2580432/onus-da-provano-pedido-de-demissao, Acesso em: 16 Out. 2015. AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. DIFERENÇAS SALARIAIS. RETORNO APÓS O GOZO DO AUXÍLIO DOENÇA. READAPTAÇÃO EM FUNÇÃO COMPATÍVEL COM AS LIMITAÇÕES. IRREDUTIBILIDADE SALARIAL. TST. Disponível em http://tst.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/120961194/agravode-instrumento-em-recurso-de-revista-airr50089420115120039, Acesso em: 16 Out. 2015.

38

DA CONSTITUINTE DE 1988 ÀS JORNADAS DE JUNHO DE 2013: A CRISE DE REPRESENTATIVIDADE DA POLÍTICA FRENTE AO PULSAR SOCIAL Antonio Zacarias de Oliveira Filho1 Magna Campos2 Resumo

Pensar as bases da Constituinte de 1988 no cenário político do Estado Brasileiro, bem como investigar os pontos de encontro e de desencontro dela com algumas das variáveis que atuaram nas manifestações e reinvidicações das jornadas de junho de 2013 figura com importante motivador para este estudo. Debate-se uma estrutura ortodoxa da política brasileira que se defronta, na atualidade, com um intento popular de reforma e de integração da participação social da população civil na agenda política, no encaminhamento da reforma do meio político, e num instauração de accountability do fazer político. Palavras-chave: Constituição. Representatividade Política. Crise de Representatividade. Direito. Política Brasileira.

1. Discussão inicial Do processo constituinte às jornadas de junho de 2013,

a

conquista

democrática

no

Brasil

vem

se

modelando, refletindo as reverberações dos pilares que se efetivaram em sua base, em uma incerteza de perpetuação e de corrosão gradual, apesar de todo esforço dos atores políticos que os moldaram e que lutam por suas

Graduando em Direito pela Universidade de Brasília (UNB). Mestre em Letras, professora universitária e escritora. Professora titular da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana. 1 2

39

continuidades. Após duas décadas da supressão do Estado

Democrático

pela

ditadura

civil-militar

que

imperou no Brasil nos anos de 1964-1985, a necessidade do país se reconstituir era pulsante e, para isso, a confecção de uma Nova Constituição era ponto unânime entre todos os setores políticos. Os apontamentos cruciais da estrutura a qual tenderia a Assembleia Constituinte de 1987, bem como as barreiras

a

apresentado

serem

superadas

por Ruy

Possibilidades

e

ou

impostas,

como

Mauro Marini, em seu

limites

da

Assembleia

texto

Constituinte,

espelham as tensões políticas pelas quais o país passava. Some-se também a nova composição global, destoante da conjuntura pós-golpe da década de 60, composição essa que conta com a queda da hegemonia norte-americana, nas relações político-econômicas do bloco capitalista, com a ascensão do Japão e do grupo europeu, remodelando as experiências

da

campanha

internacional

no

cenário

brasileiro. A questão das instituições requeria uma revisão constitucional,

posta

as

mudanças

pragmáticas

da

atuação dos poderes durante a abstenção democrática em solo

nacional. Mesmo

houvesse

sucumbido

que ao

o

golpe

processo político não de

1964,

o

cenário

constitucional caminhava para mudanças de base. O Estado

Social

começara

a

sofrer

pesados

ataques,

principalmente com as sucessivas quedas econômicas 40

promovidas pelas crises de 1970, no campo energético e na extração de petróleo, o que reforçaria se repensar a sustentação constitucional nas funções institucionais do relevo

político

brasileiro.

O

que

se

imputa

como

reverberação da ditadura no processo constituinte são os impulsos

à

fundamentais

segurança e

e

garantia

invioláveis

dos

de

preceitos

cidadãos,

na

materialização formal de preceitos abstratos de isonomia e equidade. As

peculiaridades

do

Estado

Brasileiro,

como

apontadas por Ruy Marini, entretanto, são essenciais para que

se

compreenda

a

fundamentação

pela

qual

a

constituinte de 1987 se desdobrou. Em primeiro ponto, a função do Estado como provedor, desde a colônia até a redemocratização. Segundo Marini (1995, p.20), “[...] a sociedade civil dependeu sempre, no Brasil, do Estado para constituir-se e subsistir”, logo, a imagem do Estado sempre

se

sobrepôs

as

organizações

sociais,

as

comunidades regionais e a população enquanto um todo. E a extrema função estatal de

manter uma

supressão social, pela disparidade social e uma dominação de classes, como apontado por Marini, fortificaram a semântica do Estado, como segurador da ação burguesa frente à economia mundial, garantindo a integridade de uma elite intrinsecamente enraizada na máquina estatal. Como afirma Nietzsche, a questão de justiça e moral não passa de uma criação antropomórfica utilizada por 41

aqueles que detêm a liberdade de agir e pensar – nobres – para subjugar e dominar uma massa de servos. Logo, a ação de tal minoria dominante, passa sua função, ou, melhor dizendo, atrela-a à função do Estado, que passa, este, a incidir sobre a massa servil – no período escravagista



e

a

operária



com o

advento

do

republicanismo em 1889 – a aderir como valores revelados do contexto existencialmente social às definições e aos mandos de uma elite que se apodera da máquina estatal.

O mais antigo “Estado”, em consequência, apareceu como uma terrível tirania, uma máquina esmagadora e implacável, e assim prosseguiu seu trabalho, até que tal matériaprima humana e semianimal ficou não só amassada e maleável, mas também dotada de uma forma.3

Assim, A ordem das castas e a regulamentação das classes não formulam senão as regras superiores da própria vida; a separação dos três tipos é necessária para conservar a sociedade, para tornar possíveis os tipos superiores e supremos – a desigualdade dos direitos é a primeira condição para a existência dos direitos. Um direito é um privilégio.4

Nesta correlação de fatos, passa-se à constituinte uma função de dinamizar a sinfonia política de modo a constituir uma efetiva cidadania da população, visto a 3 4

NIETZSCHE, Friedrich W. 2010, p. 69. NIETZSCHE, Friedrich W. 2007, p. 99-100.

42

supressão

de

duas

décadas

de

direitos

básicos

e

individuais do cidadão. Quebrar com o bloqueio a efetivação do voto, tendo por efetivamente universal o sufrágio, garantindo o direito à participação política a todos os brasileiros e, nesse mesmo aspecto, garantir também a pluralidade de representações políticas, em relação ao sistema partidário, permitindo a formação de partidos políticos para além do bipartidarismo entre situação e “oposição” do período ditatorial. Sobre

a

organização

do

sistema

eleitoral,

a

representação ainda necessitava de uma posição prévia à Assembleia Constituinte sobre a informação, ou seja, a propaganda, a liberdade de expressão, todas suprimidas, manipuladas e destoantes da realidade social nos vinte e um anos de repressão militar. A organização da imprensa era fator decisivo na formação e no acesso da opinião pública, tendo em vista a necessidade de se dissolver o aparelho repressor do Estado desse período, bem como o controle de informação pelo poder público. A quebra do Serviço Nacional de Informação – SNI – e a investigação das funções, ações, estrutura e orçamento do órgão, de modo a prestar contas à sociedade civil sobre os procedimentos instaurados no rechaço de duas décadas à democracia. Resolvidos tais entraves, a Assembleia Constituinte poderia então firmar-se como representante legitimada a conduzir o país à redemocratização e confeccionar uma 43

Constituição que se comprometesse em firmar um pacto entre a sociedade e as esferas estruturais do Estado. Marini (1995) aponta a necessidade de se expressar o caráter

constituinte

fundado,

excepcional

e

indiscutivelmente, na participação popular da sociedade civil brasileira.

Duvidar de que o povo brasileiro esteja maduro para discutir com entusiasmo o projeto de construção de uma nova sociedade, a partir dos escombros deixados pelo regime militar, é cerrar os olhos para coisas tão evidentes como a campanha em favor das eleições diretas, em 1984.5

Todavia, o anseio popular para com a representação dos interesses da classe operária defronta-se diretamente com a atuação do grande capital, no intuito da expansão de

uma

agenda

neoliberal

na

Constituição

a

ser

promulgada. A atuação dos componentes de esquerda que se associaram aos interesses dos trabalhadores, altamente reprimida

e

perseguida

nos

governos

militares

da

ditadura, encontra palco nas movimentações de cunho popular, no combate aguerrido contra a atuação da alta burguesia

no

implante

buscando

meramente

de os

um

concerto

adendos

de

normativo austeridade

econômica e um Estado mínimo nas tradições liberais. O interesse do grande capital era regular a atuação do 5

MARINI, Rui M. 1995, p.25

44

Estado

meramente

garantindo

apenas

às a

formalizações sobrevivência

do

mercado,

das

ações

empresariais. Esse combate segue firme pelos movimentos sociais organizados no operariado que via na constituinte a chance de uma expansão de garantias ao trabalhador e na segurança da unidade da atuação social frente à coerção do Estado. Através das forças sindicais, da presença dos sindicatos na efetivação da participação popular no processo constituinte, os contornos de esquerda da política efetivariam uma presença dos interesses e das pautas dos trabalhadores e da massa social na garantia constitucional. Nesse ponto, do sindicalismo atuante no processo constituinte de 1987, Marini pode ser complementado pelo texto de José Ricardo Ramalho (2008), Trabalho, direitos sociais e sindicatos na Constituição de 1988: duas décadas de acirrada disputa política, em que se

discute a

importância política das forças sindicais no movimento constitucionalista de 1988. Ramalho (2008) escreve que, com o advento do golpe de Estado em 1964, as forças sindicais sofreram uma real caça as bruxas pela ação do governo. As centrais sindicais foram aparelhadas pela submissão ao Estado e a fiscalização e monitoramento das atividades de tais entidades. O movimento sindicalista necessitou rever as ações pelas quais atuaria, deportando das intervenções na 45

política para um caráter mais assistencialista. Logo, as forças sindicais se remodelaram nos anos pelos quais a ditadura impetrou na história do Brasil. A certa força pelas quais os sindicatos se ungiram nos anos prévios ao golpe militar foi completamente tutelada pelo Estado e, no decorrer da quebra constitucional de 1964, os meios pelos quais os sindicatos reuniram forças para se expressarem teve que ser repensado estruturalmente. A resistência aos mandos autoritários do governo foi sendo construída no decorrer de toda década de 60 e, principalmente, 70. A contestação

dos

trabalhadores,

direcionados

na

voz

sindical, todavia, não se absteve nos anos que precederam a Constituição de 1988. Ao aproximar-se do fim do regime ditatorial, as centrais sindicais haviam se fortalecido na luta e na ação política de enfrentamento ao sistema, o que culminou na convergência dos sindicatos para uma central unificada, a Central única dos Trabalhadores (CUT). A centralização dos sindicatos em âmbito nacional, englobando todas as esferas

trabalhistas

e

representando

todos

os

trabalhadores, interveio de modo a manifestar-se contra a dominação sindical pelas mãos do governo, enfrentando a legislação sindical de verticalização obrigatória das forças sindicalista (RAMALHO, 2008, p.135). A CUT não apenas foi responsável por aglomerar as reinvindicações dos trabalhadores de diversas áreas, mas também foi a responsável por inserir na agenda política 46

dos anos 1980 e 1990, as demandas dos trabalhadores no contexto político, protagonizando a voz sindical nas decisões estatais junto ao empresariado. O Estado passou a

ter

na

representação

dos

trabalhadores,

pelo

sindicalismo, ator efetivo de consulta na elaboração e decisão de políticas públicas e medidas econômicas e sociais.

Da

CUT,

como

expressa

Ramalho,

surge,

extraparlamentarmente, o Partido dos Trabalhadores (PT), responsável por galgar pela classe trabalhadora, devido a sua

instauração

estrutural

de

base,

uma

inserção

significativa na agenda e no sistema político brasileiro. Como apontado por Marini (1995), as divergências entre o grande capital e a classe operária seriam de grande entrave

no

decorrer

da

confecção

da

nova

carta

constituinte. A intenção da alta burguesia não havia mudado, o foco ainda era a implementação de um Estado mínimo e um registro constitucional institucionalizado na prática liberal. Todavia, para tal intento se concretizar, a presença popular necessitava de uma desordem estrutural e uma falta de representatividade parlamentar.

As condições para a plena vigência do liberalismo são, com efeito, a relativa comunidade de propósitos e a unidade de ação da burguesia – sem o que a livre iniciativa de seus grupos implica a criação de um clima de competição exacerbada e, portanto, de conflito – e a desorganização do campo popular, de modo a permitir que a repressão seja pontual e seletiva,

47

dispensando o exercício maciço da violência. (MARINI, 1995, p.36)6

Todavia,

as

forças

sindicais

não



se

reorganizaram como também ampliaram sua atuação na esfera política no combate pelos direitos trabalhistas, toda a década de 1980 foi marcada por movimentos sindicais de luta e pressão sobre questões normativas do trabalho. Assim sendo, a lógica neoliberal pretendida pela burguesia não teve carta branca na constituinte e a força sindical emplacou boas vitórias na luta pela formalização de direitos na Assembleia. Os conquistas

avanços

na

vitoriosas

legislação

dos

trabalhista

movimentos

foram

operários

via

organização sindical. Mesmo com a crítica de que os direitos trabalhistas mantiveram-se na esfera legislada pela CLT – Consolidação das Leis de Trabalho – em 1943, as conquistas dos trabalhadores foi surpresa até mesmo para as centrais sindicais, e resultado direto da ação dos sindicatos

na

constitucionais

pressão de

trabalho,

popular e

a

por

garantias

independência

do

movimento sindicalista frente ao Ministério do Trabalho foi uma das grandes vitórias dos trabalhadores. Apesar de a Constituição ter mantido a unicidade sindical e isso representar a pressão do empresariado sobre a ação constituinte, mostrou a força da ação sindical 6

MARINI, Rui M. 1995, p.36

48

na luta organizada pela ampliação e formalização de direitos trabalhistas e a garantia da organização e reinvindicação como ferramenta constitucional de luta operária. Em sua análise, Ramalho (2008)

faz um balanço

entre a manutenção do pacto constituinte de 1988 com a garantia de direitos sociais formalizados e a vontade imperativa das forças de mercado. A abertura da economia brasileira para a atividade econômica internacional, com a injeção de capital multinacional na linha de produção brasileira, foi ponto de embate entre o interesse privado e a abrangência constitucional, sobre a efetivação e respaldo dos direitos sociais dos trabalhadores. A gestão Collor, no início dos anos 1990, marcou a abertura do país aos rótulos do mercado global e a revisão da estruturação da produção industrial em solo nacional, com a flexibilização dos padrões trabalhistas, muitas vezes, sobressaindo-se sobre as normas e garantias legisladas.

E

essa

abertura

ao

modelo

industrial-

econômico global conduziu a uma fortificação do discurso do alto custo de produção e manutenção da atividade industrial no país, visto as garantias constitucionais outorgadas sobre os direitos trabalhistas e da relação do trabalhador com o empregador. Essa tendência a flexibilizar os limites e normas via, na Constituição de 1988, um entrave à plena execução dos interesses do mercado. E será sobre essa garantia 49

constitucional de direitos que as ações dos grandes capitalistas vão incidir, uma vez que o universo industrial adquiriu nova feição, abandonando o modelo fordista de produção e quebrando com a verticalização, assim, a ação conjunta da força sindical necessitou, também, de uma roupagem nova. Uma vez que a consolidação dos direitos trabalhistas na Constituição manteve-se aos moldes, e quase exclusivamente, da CLT, a força sindical continuou a ter certos obstáculos de ação. A ação de governo como medida de garantia de direitos trabalhistas ou a tendência de flexibilizar a regulamentação legislada, é reflexo de uma postura socialdesenvolvimentista ou uma postura de caráter liberal, respectivamente. E é esse debate que se expandira no horizonte dos anos finais do século XX e a primeira década do século XXI. E, ao abordar esse contexto, o Ramalho (2008) invoca da experiência do governo Lula, que se fundou nas raízes do movimento sindical, e é nesse ponto que a obra de Marcos Nobre, Imobilismo em movimento – da abertura democrática ao governo Dilma, dialoga com os textos de Marini e Ramalho, no contexto da composição dos

governos

que

sucederam

a

concretização

da

redemocratização e suas atividades na área de garantia de direitos, leitura da Constituição de 1988 e os aspectos econômicos das gestões compreendidas. Nesse ponto, percebe-se que, mesmo finalizado o governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso (FHC), 50

de 1995 a 2002, a ação sindical não deixou de sofrer enorme pressão do mercado nacional e internacional, bem como os ataques, diretos e indiretos, à regulamentação trabalhista prevista na Constituição. Mesmo após quase três décadas da promulgação da Constituição de 1988, o acirramento das intenções dos atores econômicos, sociais e políticos continua polarizado entre uma defesa de equidade, isonomia e regulamentação de direitos e uma disputa por flexibilizar e desconstituir formalmente a legislação vigente de proteção e garantias básicas, principalmente na questão trabalhista. De um lado

a

ação

sindical,

que

vem

se

remodelando

continuamente, mas, de forma diferente das atuações nas décadas finais do século XX, pois vem tendo sua representatividade frente à sociedade civil atacada e reconfigurada, uma vez que a realidade do trabalho ao século XXI repaginou-se completamente. Como acredita Ramalho (2008, p.149) “todavia, a partir dessas dificuldades novas estratégias de atuação têm sido adotadas, voltada para questões pouco comuns à pauta de algumas décadas atrás.”; e de outro lado,

a

atuação dos grandes capitalistas e do mercado nacional e internacional pela flexibilização e constituição de um Estado mínimo, que não discuta as relações entre empregador

e

empregado,

mas

apenas

garanta

as

condições mínimas de existência ao mercado. Assim, “para os empresários, a pauta principal permanece em torno do 51

que consideram “excesso” de legislação e de presença do Estado nas atividades próprias do mercado. ”7 A guinada a esquerda que se esperava pela chegada do PT ao governo, através da vitória de Lula em 2002, tem de ser analisada em perspectivas, uma vez que a característica econômica da gestão Lula manteve, em certo, muito dos elementos econômicos ortodoxos da política econômica desenvolvida na era FHC. O que distingue a interpretação do governo Lula do governo do seu antecessor é a contorno dado, por dentro da própria característica

econômica

vigente,

para

que

se

implantassem reformas de base e avanços na garantia social de igualdade de desenvolvimento humano. Ao chegar à presidência da República, os rumos tomados por Lula contrariam e, em certo grau, surpreenderam seus apoiadores e aliadas históricos. Uma neoliberal,

vez Lula

simultaneamente, interesses

dos

mantida

uma

pretendeu ou mais

seja, ricos,

agenda

operar agraciar e,

ao

econômica

em e

extremos

prolongar

mesmo

os

tempo,

reestruturar a composição de desigualdade social e aplicar políticas públicas em apoio aos mais pobres. Como exemplo dessas duas medidas, tem-se a reforma da previdência encaminhada ao Congresso, em total sintonia com a aprovada em 1998, e a elevação das taxas de juros do Banco Central, do lado da continuidade da política 7

RAMALHO, José R. 2008, p.149

52

econômica ortodoxa8; e do lado de melhoria aos mais pobres,

a

implementação

da

valorização

do

salário

mínimo, como política de continuidade e efetivação9 na sociedade brasileira por todo o decorrer da gestão Lula e de sua sucessora, Dilma Rousseff. Todavia,

em

seu

primeiro

mandato,

Lula

representava não apenas a chegada do PT ao poder, mas toda uma estrutura de esquerda, que pela primeira vez assumiria o controle do país. O fato é que, mesmo com a chegada de Lula à presidência, a esquerda brasileira nunca teve uma imagem consoante de política, nem mesmo compartilhava dos mesmos posicionamentos, e isso dentro do próprio Partido dos Trabalhadores. Logo, ao assumir a presidência da República, Lula atuou muito mais como árbitro de seu partido, tendo que mediar

os

conflitos

internos

de

desorganizada que chegara ao poder.

uma

esquerda

E para além dos

problemas internos a serem enfrentados pelo presidente, ainda se deparava em um quadro totalmente avesso, mesmo com o fantástico resultado do partido para a eleição de deputados federais. A instauração política no Congresso reflete uma visão conservadora instaurada na cara do PMDB, e por isso, a atuação de Lula, não visou apenas da colaboração dos seus aliados no PT, mas uma integração da força parlamentar pemedebista para uma 8 9

NOBRE, 2013, p.106 NOBRE, 2013, p.105

53

governabilidade de uma supermaioria. E é nesse ponto que o duelo interno do PT, entre aqueles representados pela figura de José Dirceu – nomeado no primeiro mandato de Lula como ministro-chefe da Casa Civil – que tinham a intenção de controlar o PMDB e deixá-lo submisso ao PT, e aqueles representados na figura de Antonio Palocci – nomeado, por Lula, para dirigir o Ministério da Fazenda – que tinha no PMDB uma estrutura de inovação da política por meio das forças já existentes. Fato é que, apesar das disputas internas do PT em relação ao controle governamental e a governabilidade do incipiente governo Lula, as ações eram muito mais delimitadas

pelas

táticas

políticas

que

sempre

sobressaíram na organização do Estado brasileiro, dos acordos de situação onde todos retornavam à figura do pemedebismo para superar “os vetos encastelados do sistema político.”10 A estratégia do governo Lula de compor maioria parlamentar suficiente a escapar das amarras do modelo político vigente, na visão da incidência do mensalão, mostrou um completo devaneio governamental na forma de se tratar com a incidência do pemedebismo sobre a administração política. O desenrolar do mensalão atacou frontalmente a organização do governo e mostrou o quão fragmentado as correntes internas do governo e do próprio PT se dispunham. As consequências do mensalão não apenas 10

NOBRE, 2013, p.105

54

derrubaram articuladores políticos importantes do governo Lula, como o próprio ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, como reconfigurou a organização política do próprio

governo,

com

a

ascensão

de

um

escalão

rejuvenescido às pastas primárias e à arquitetura de uma nova cara ao fazer político do governo Lula. Essa designação de gestores “não políticos” para a organização política de primeira instância, não apenas mudou as relações políticas e administrativas da coisa pública, mas se

mostrariam

como

tendência

de

uma

crise

de

representação que encaminharia gestores “despolitizados” aos cargos públicos nos anos que seguiram as Jornadas de Junho de 2013. Em seus dois mandatos, Lula encaminhou uma atenção especial aos dois polos da sociedade, agradando, com práticas ultraortodoxas, à elite econômica, e, mesmo assim, reafirmando o combate as desigualdades sociais que capitalizaram nossa sociedade desde seus primórdios. A atenção aos mais pobres se fez com um desvio do olhar das elites, contentando-as com agrados de caráter liberal, tirando um foco da intenção de equidade destinada aos extratos mais pobres e vulneráveis do vínculo social. Todavia, as ações do governo Lula não foram capazes de fecundar a intenção de compatibilidade igualitária social em longo prazo, sendo de um caráter quase ingênuo, a crença de que uma elite dominante, desde os anos iniciais

55

do Brasil Colônia, concordaria em selar um pacto de ampliação de garantias aos mais pobres, à massa social. A reeleição de Lula em 2006 celebrou a solubilidade no

consciente

político

dessa

gestão

governamental

desenvolvida no binarismo social-desenvolvimentista e neoliberal-ortodoxo, aplicado nos setores econômicos e sociais, conjuntamente. Em seu segundo mandato, a aliança firmada com o PMDB, o governo Lula conseguiu esmorecer a dualidade entre situação e oposição, uma vez que anulou a oposição congressista, a criação de uma supermaioria legislativa não apenas concedeu ao governo uma base parlamentar jamais vista, mas conseguiu aglutinar o apoio de pequenos partidos e parlamentares oposicionistas

à

uma

filiação

governista.

Não

se

surpreende, assim, a incrível capacidade do governo Lula de contornar os efeitos da crise mundial de 2008 e projetar a candidatura da então ministra-chefe da Casa Civil, Dilma

Rousseff,

a

sua

sucessora

na

corrida

presidencial de 2010. Foi em seu segundo mandato que Lula distanciouse

significativamente

da

política

econômica

de

seu

antecessor, em uma campanha internacional do Brasil para além da zona de dominação dos EUA, fortalecendo o lado com o bloco asiático e estruturando o Brasil como liderança no grupo sul-americano. As benesses do avanço econômico vivenciado na era Lula foram cruciais para

56

garantia de apoio popular ao governo, e resistência na dissolução da oposição a mero caráter pragmático. A entrada por completo do PMDB na coalizão política de sustento ao segundo mandato de Lula, trouxe um

diálogo

mais

incrementado

na

relação

com

o

empresariado e a elite econômica, mesmo aquela elite oposicionista ao PT. Com essa reconfiguração da divisão de controle dentro do governo, o governo alojou no domínio do PMDB o controle executivo das políticas públicas, deixando na mão da velha política conservadora, o aplicar efetivo da esfera orgânica da imagem política. E, mais

uma

vez,

o

governo

Lula

agiu

alimentando

paradoxos, ao deixar na mão do conservadorismo ortodoxo da política a efetivação de políticas públicas, ou seja, a relação direta com o fazer político no microcosmo da sociedade, e o combate ao pemedebismo tradicional, na criação

de

programas

de

distribuição

de

renda

e

integração nacional, como o Programa Bolsa Família, que reestruturou o macrocosmo político de esfera nacional. Fato é que, assim como resumiu Marini, as barreiras que a constituinte enfrentaria seriam de graus de legitimação da visão de um novo país, no qual a elite burguesa não concordaria delicadamente em agraciar uma vasta

compreensão

de

direito

formais

à

massa

trabalhadora, nem queria uma atuação estatista de caráter provedor.

57

É nesse contexto que se vai desenrolar o debate e a elaboração da Constituição e que, portanto, as forças políticas em confronto levantarão seus projetos de reforma à relação Estado-sociedade civil. [...] No campo burguês, a recomposição de forças ali operada reduz consideravelmente o alcance das disputas em torna à desestatização.11

Assim, Esses deslocamentos corresponderam à afirmação da hegemonia burguesa no PMDB. A partir daí, a grande burguesia inicia um conjunto de manobras que [...] visava à recomposição de suas forças e reunificar o campo burguês.12

Essa associação do PT ao PMDB em busca de um alicerce de sustentabilidade ao governo Lula, acabou por reforçar as amarras do velho pemedebismo conservador no espectro político de um governo que vinha de caráter a renovar a estrutura e trazer a ética à política. Para se manter essa composição de supermaioria, o governo Lula não

apenas

deixou

intactas

e

operantes

práticas

pemedebista de fazer política, como também salvou o pemedebismo de naufragar em si mesmo. Essa comunhão das práticas pemedebistas em um governo de esquerda, ungido na figura de Lula, como aponta Nobre (2013, p.134), blindou esse conservadorismo da exposição à rejeição popular, para que o governo colocasse em prática seu projeto de reformas e lutasse em uma permanência no poder em 2010. 11 12

MARINI, Rui M. 1985, p.30 MARINI, Rui M. 1985, p.29

58

A vitória de Dilma Rousseff, na corrida presidencial de 2010, não apenas significou uma continuidade do modo de governo da era Lula, como também foi a primeira continuidade de uma organização governamental eleita democraticamente após a Constituição de 1988. A gestão Dilma, teve um caráter de continuidade, sim, mas uma continuidade em ajustes. As reverberações da crise mundial de 2008 começavam a atingir o Brasil e as elevadas taxas de crescimento na economia já operavam no limite. Ainda marcada pelos resquícios da ação do mensalão, a permanência do PT no governo firmou-se na aliança intrínseca com o PMDB para manter seu projeto de desenvolvimento social e crescimento econômico. O fato é que, a visão do Brasil no cenário global havia disparado, ainda mais com a sequência Copa do Mundo, em 2014, e das Olímpiadas, em 2016, que seriam sediadas no país, teve-se que os investimentos internacionais no país seriam ampliados e os ajustes de base estrutural não se alastrariam por toda a nova gestão. A luta por harmonizar a situação econômica que começava a não se sustentar nos moldes de seu antecessor, ainda era marcada por a garantia de que a situação não fugiria de ritmo, mesmo a níveis um pouco distintos de controle. A herança de Dilma da alta taxa de popularidade à qual seu padrinho político encerrara seu mandato garantiu à presidenta eleita a certificação de uma imposição de agenda de continuidade e políticas públicas 59

voltadas ao contexto social – como o Minha Casa, Minha Vida – e mesmo assim um controle econômico por parte do governo. O estigma apresentado à Dilma no início de seu mandato foi de uma política de confronto com o sistema político. A questão é que, sendo Dilma uma gestora de fora do meio dos bastidores políticos do legislativo, por não ter ocupados cargos eletivos, logo, não compactuava em integridade total com o fazer político pemedebista vigente, o que acarretou a visão de seu governo um distanciamento da

base

política

formulada

por

Lula.

Tida

como

intransigente, Dilma não se deixou cooptar pelas forças tradicionais, seus esforços políticos não vinham na tentativa de agradar determinados setores, mas sim de capitular vitórias ou derrotas a seus projetos. Fato é que a ação pemedebista não deixaria ruir, simplesmente, anos de uma composição política ortodoxa sem resistir. Sendo o ponto de desequilíbrio do governo Dilma à frente da base de suporte no Congresso. Outro fato que se depara na crise do modelo político vigente, se reitera nas Jornadas de Junho de 2013, na quebra da visão de uma sociedade apática e desmotivada a questionar os fenômenos da política brasileira. A consolidação de um movimento imprevisível, organizado as margens do novo contexto social, não só refletiu a crise de representatividade política que a população se depara, por um contexto apartidário dos movimentos iniciais, 60

como

também

sociedade

civil

um

questionamento

no

definir

da

da

agenda

inclusão pública

da e

o

direcionamento de verbas. Não análogo aos movimentos sindicais das décadas de 1980 e 1990, as revoltas de Junho de 2013 se enquadravam num questionamento a todo o ordenamento político,

em

uma

autogestão

da

forma

como

os

protestantes se mobilizaram, sem lideranças efetivas, sem coberturas partidarizadas e apoio da mídia, a qual, em maior parte, teve função de obscurecer o intuito das reivindicações populares. O contexto era outro, mas a vontade de manifestar ainda pode ser comparada, seja no questionamento ao governo, e aqui posto como todas as esferas de poder – municipal, estadual e federal -, seja na insatisfação da representação política em si. As

revoltas

de

Junho

de

2013

capitalizam

importantes fenômenos debatidos na integração das obras supracitadas. Uma vez analisado o contexto da Assembleia Constituinte de 1988, percebe-se a polarização dos atores políticos, sociais e econômicos, no debate à formalização dos preceitos que regeriam o novo Brasil a ser constituído. Essa polarização reflete o retorno das práticas de uma elite burguesa que se funda desde o período colonial, na submissão da massa social aos seus interesses e na continuidade

das

segregações

dos

estratos

sociais.

Todavia, os processos sindicais que se instauraram desde a década de 1950, fortaleceram-se no período do regime 61

militar e, com a reabertura a democracia, não oscilaram no combate a garantia dos direitos sociais e trabalhistas. Ponto é que, durante um regime de exceção, tanto a massa operária, quanto a burguesia, viram-se postas em uma mesma embarcação, e a ação conjunta foi o que garantiu um pleno enfrentamento ao regime. No retorno à democracia, entretanto, os interesses de cada grupo agora precisavam ser defendidos, e tal elo de convivência não seria mais sustentável.

Durante este período, as correntes populares, surgidas do movimento operário e da pequena burguesia, conviveram com a burguesia industrial, dentro da frente de oposição à ditadura. Foram os deslindamentos provocados pelas ações grevistas do proletariado industrial, a partir de 1978, e pela reformulação partidária de 1980, que originaram pontos de ruptura nas suas relações.13

Assim sendo, percebe-se o contexto pelo qual as lutas sindicais que emergiram no contexto da constituinte foram

cruciais

constitucional.

para

salvaguardar

Todavia,

as

direitos

relações

de

no

texto

trabalho,

a

dinâmica do mercado e a estrutura social no início do século XXI já não mais se mantinham as mesmas, logo, a defesa dos direitos constitucionais dos trabalhadores e da

13

MARINI, Rui M. 1985, p.29

62

sociedade como um todo não se garantem por apenas estarem legislados.

A situação econômica atual fragilizou sobremaneira a ação sindical, reduziu o seu poder de reinvindicação e pôs em questão a capacidade de essa instituição permanecer como referência para os trabalhadores. Como se não bastasse, há ainda no debate político atual, e no contexto dos direitos trabalhistas, tentativas de deslegitimar e desqualificar os sindicatos como atores confiáveis, ora com acusações de ilegalidade nas suas práticas, ora com alegações de que não representam a totalidade dos trabalhadores do país.14

Essa

indagação

de

representatividade

dos

sindicatos frente aos trabalhadores não apenas se enrijece na questão das causas trabalhistas, mas expande-se para toda sociedade civil, no contexto de que a crise de representatividade abrange não apenas as relações do trabalhador com sua luta por direitos frente ao interesse capitalista, mas em um raio maior, de toda sociedade com sua representação na política institucional do país. A adesão de causas sociais à margem da esquerda, como espectro político, passou por um processo de ruptura, uma vez que nem as pautas políticas sociais, tidas como de esquerda, aglomeram massas sociais em partidos e candidatos de esquerda. Seja a questão de uma esquerda desorganizada e não unificada no contexto político, seja

14

RAMALHO, José R. 2008, p.148

63

pela figura da esquerda, ao chegar no poder, não condizer com suas pautas históricas integralmente, a questão é que, a disposição ideológica no país, recrimina, e ao mesmo

tempo,

contorna

os

espectros

políticos

de

esquerda-direita.

Sem oposição, à direita e à esquerda, não há debate real de alternativas. O que se tem é um contingente cada vez mais fragmentado de grupos preparados para assumir o poder, caso este lhe caia no colo. Grupos que não têm outra perspectiva de atuação política senão a expectativa de que o governo fracasse. Essa oposição passiva é típica de uma pemedebização mais geral da política, em que não há reais polarizações, mas apenas um caldo de cultura comum indistinto, partilhado por todos os atores. 15

2. As jornadas de Junho de 2013

O movimento das Jornadas de Junho de 2013 não se firmou apenas na reinvindicação por um dado de accountability16

da

política

local,

mas

por

um

questionamento de legitimidade da ação política em todas as esferas públicas, dada a descrença no sistema de representatividade

parlamentar

do

regime

político

brasileiro.

De acordo com Campos (1990, apud PINHO, SACRAMENTO, 2009, p. 1348), accountability é “sinônimo de responsabilidade objetiva, isto é, trata-se da responsabilidade de uma pessoa ou organização perante outra, fora de si mesma.” 16

64

O que ganhou o nome de Jornadas de Junho, grosso modo, consistiu em uma espécie de transbordamento da indignação coletiva, que saturada pelos discursos compartilhados nas mídias sociais transmutou-se em ação, ocupando as ruas das principais metrópoles brasileiras. Nas cidades, as vozes que bradavam por mudança na gestão urbana bem como no cenário econômico e político nos níveis local e nacional, os corpos, mascarados ou não, que se deslocavam, sobretudo, no centro de São Paulo e do Rio de Janeiro uniram-se em uma insatisfação civil que, para os especialistas, parecia ressoar de algum ponto da história recente que ainda buscam situar no espaço e no tempo. (NOBRE, 2013, p.105)

Não se cobrava aqui apenas atenção por causas minoritárias de regiões específicas, mas sim um contexto nacional de enfoque em um estado de bem-estar, com aplicação

de

recursos

em

áreas

prioritárias

ao

desenvolvimento humano da comunidade civil como sociedade. Ou seja, a participação pública na definição de medidas e decisões econômicas, visto uma insatisfação generalizada dos gastos públicos com obras para os megaeventos

da

Copa

do

Mundo

de

2014

e

das

Olímpiadas de 2016, ambos a serem sediados no Brasil nos anos próximos a 2013. O movimento social gritava por investimentos prioritários de mesma ordem nas áreas de saúde, educação, mobilidade urbana, por exemplo. O contexto que levara milhões de pessoas às ruas das maiores cidades do país naquele Junho de 2013 era 65

uma consequência direta da insatisfação popular com o sistema

político,

por

isso,

as

capitalizações

dos

movimentos, em caráter inicial, não se associaram a um vinculo partidário, uma vez que era de encontro a esse sistema que essas pulsões populares iam. Nem mesmo os partidos de esquerda associaram o caráter de suas pautas às vontades expressas nas manifestações, justamente por uma repulsa e descrença no sistema político e no modo de organização

partidária

como

um

todo.

O

espectro

esquerda-direita parecia pequeno para os intuitos dos manifestantes, e, talvez seja nesse aspecto, a possibilidade de se enxergar os equívocos e ambiguidades das legendas, de esquerda à direita, pelas quais os partidos guiavam suas bancadas e representantes. Esse pulsar social, entretanto, não surge em Junho de 2013, é um prolongar de dissociações da classe política com a sociedade civil que se arrasta por toda história brasileira, e, coniventemente – ou não – manteve sem resposta ou solução na Assembleia Constituinte de 1988. O Estado brasileiro sempre foi algo distante da sociedade brasileira, a casta política sempre se mostrou a sociedade como fruto dela, enquanto na verdade via a si mesma

como

supra-social,

além

das

margens

da

sociedade civil, uma elite dirigente que se sobrepunha aos delineares sociais. Somado ao fato da organização política do Brasil nunca ter sido uma luta estrutural da sociedade, mas

sempre

concebida

pelo

Estado,

numa

visão 66

assistencialista de um Estado provedor. A população nunca teve um espaço político e público para discutir e questionar as bases institucionais da política brasileira, nem seus desdobramentos. A exemplo da Conjuração Mineira, que não teve em seus representantes o intuito de se convencer, nem ao menos explicar a sociedade local, os intuitos e interesses dos separatistas – os inconfidentes para com a Coroa Portuguesa



em

constituir um

novo

país.

Se

os

conjuradores tivessem saído vitoriosos em seus planos, a instauração de um novo país seria apenas um informativo do noticiário cotidiano das pessoas de Vila Rica e região, chegando sutilmente ao resto da capitania de Minas Gerais. Não que aqui se funde uma ideia de um caráter apático da sociedade brasileira, nem uma êxtase em relação ao meio político, mas uma visão de conformidade com as ações do Estado, em vista que esse provia os rumos e caminhos a seguir, no caso da massa social, que sempre foi e é o estrato mais baixo da hierarquização da sociedade. Não

se

pode

ignorar

que

a

onda

de

constitucionalismo que afetou o Império Brasileiro e levou à proclamação da República, nos moldes do paradigma do Estado de Direito, que se funda no Brasil em 1889 – sendo, em consideração, um movimento republicano desprovido de adesão popular, uma vez que a população brasileira não tinha conhecimento das intenções dos 67

republicanos nem de suas ações, logo, em uma visão estrita de como o sistema foi alterado, não passou de um golpe de uma elite burguesa de interesses parlamentares próprios na Monarquia – repagina-se às vésperas da Assembleia Constituinte de 1987. Ao fim do século XX, o paradigma do Estado Social começar a ruir após a crise da década de 1970 e as impetrações de um Estado materializador de direitos passa a configurar uma supressão do concerto normativo, da vida privada e do meio público a mão do Estado. Tal remodelagem paradigmática formaliza a inserção

do

Estado Democrático de Direito, no qual

Liberdade e Igualdade são retomados corno direitos que expressam e possibilitam uma comunidade de princípios, integrada por membros que reciprocamente se reconhecem pessoas livres e iguais, co-autores das leis que regem sua vida em comum. Esses direitos fundamentais adquirem uma conotação de forte cunho procedimental que cobra de imediato a cidadania, o direito de participação, ainda que institucionalrnente rnediatizada, no debate público constitutivo e conformador da soberania democrática.17

E

é

sobre

esse

caráter

que

o

discurso

da

constituinte começa a ser elaborado, num regimento extremamente procedimental. Nesse diálogo, as intenções da elite econômica e das centrais sindicais se chocaram, e

17

NETTO, Menelick de C. 2004, p. 37

68

esses entraves postos reverberaram-se pelo decorrer das décadas seguintes, inclusive, são fragmentos lançados desse embate que eclodiram nas Jornadas de Junho de 2013. A elaboração da Carta Constitucional de 1988, não abriu mão da defesa de direitos e materialização de garantias fundamentais, ressonância da instituição de formalização de direitos da estrutura do Estado Social que se findava, todavia, não reconfigurou o ordenamento institucional pelo qual a representação se legitimava, logo, o embate entre empresários e sindicatos seria apenas uma amostra do que seria, nos anos vindouros, as dualidades entre movimentos sociais e a organização política. Advindo o Estado Democrático de Direito, atrela-se, nos anos 1990 e início dos anos 2000, uma persuasão do neoliberalismo como prática econômica responsável por dinamizar e deixar a economia nacional competitiva e aberta ao capital internacional. Assim sendo, regulou-se uma

prática

política

de

associação

a

interesses

econômicos de mercado no âmbito de ação de governo. A repercussão, os incontáveis embates travados entre os sindicatos

e

grupos

políticos

de

uma

esquerda,

desorganizada como espectro político, mas “unânime” em ser oposição as práticas e ações de governo, e a intenções de implementação de um Estado neoliberal mínimo. Mesmo com esse acaloramento do cenário político, as forças sociais que se mantiveram protagonistas foram as

centrais

sindicais

e

atuação

dos

movimentos 69

estudantis, todavia, em grau de atividade desproporcional em relação aos movimentos sindicais. Logo, a grande massa social não se fazia ouvir, seja porque a apatia sintonizava uma concordância com as práticas do governo, seja por uma semântica de desinteresse, propriamente dito, com o fazer e a ação política. Fato é que, com a chegada de um governo germinado nas raízes dos movimentos sindicais nas pautas de esquerda, a questão se mostra exatamente constante. Todavia, a consonância da ação do governo Lula em dar continuidade à política econômica ortodoxa da era FHC, choca e vai de encontro com os interesses de sua sustentação ideológica. O desnortear das ações do governo com o escândalo do mensalão, vem a indagar se realmente o prisma político tem um espectro ou apenas se funda na mesma estrutura tradicional de conservação e organização ortodoxa do fazer político, uma vez que um governo pautado na construção de

uma

ética

na

política

utiliza

do

velho

estrato

pemedebista de governar. E essa tática de governar da gestão Lula, de se saturar os mais ricos para conseguir algum avanço na área social destinada as mais pobres, a uma sociedade mais igualitária, começa a gerar um inconformismo social. Uma política de governo que salva as velhas práticas conservadoras de ação de um abismo com o qual se deparava, temporária,

para na

constituir ingenuidade

uma de

se

governabilidade acreditar

que 70

credibilizariam, em longo prazo, esta estrutura de avanço social, eclode após chegar a um nível de saturação plausivelmente previsível. Surge aqui a dúvida das reverberações das ações do governo Lula já no primeiro mandato de Dilma Rousseff. Alguém comprometida com a funcionalidade da máquina pública e a efetivação do desenvolvimento econômico e social, que não compactua com as negociatas dos bastidores políticos e que desafia o próprio sistema político a uma “queda de braço”18, uma gestora da coisa pública, mas não política por profissão, não tendo habitado o universo político dos cargos eletivos , logo, não tendo as ações de mediação e negociação como uma moral política, seria o fator responsável por colocar em xeque a organização do cosmos político brasileiro e sua estrutura de

alianças e

configurado

concessões.

desde

a

Um

era

caráter pemedebista FHC,

ou

seria

a

insustentabilidade do sistema em si, sucateado pelas configurações de apoio e maioria legislativa, obtenção de interesses em troca de governabilidade, a cara ortodoxa do contexto político, tido como um arquétipo da ordem natural da política, o responsável por culminar na degradação do aparato político como um todo frente a visão da sociedade. A

realidade

é

que,

indiferente

de

ser

a

individualidade desses fatores ou a relação entre ambos, o 18

NOBRE, 2013, p.139

71

sistema político brasileiro carece de apoio popular e a população não se sente representada com a organização do construto político em si. As Jornadas de Junho de 2013 foram a representação da revolta contra essa falta de sintonia entre a representação da sociedade e a sociedade de fato. O que antes era apenas disputa entre sindicatos e empresariado, uma polarização entre esquerda e direita, mas definidas em semântica e contexto, passa a ser reinvindicação social contra todo o sistema, contra a organização, contra a elaboração das medidas econômicas em caráter autoritário, contra uma falta de accountability dos políticos, por uma inserção da participação social de modo mais efetivo no meio político. Por isso configura-se o movimento de Junho de 2013 de modo a não vê-lo como uma releitura das lutas sindicais das décadas de 1980 e 1990. Pois, não garantiram sua efetividade no embate partidário, tomaram conta do espaço público como meio de serem ouvidos, desassociaram-se

de

lideranças,

utilizaram

da

comunicação, da interação virtual, dos meios digitais, para organizarem-se e protestarem, exaltando o fato de que a individualidade de opiniões de cada um que se moveu a protestar, convergiram para uma noção congruente de reforma. Reforma da política, reforma da estrutura, reforma dos conceitos do Estado enquanto detentor da verdade sobre o que é e como se faz política.

72

A não capitação, em caráter inicial, da força desses movimentos em ideologias partidárias, foi um dos fatores que

fizeram

candidatura

os de

partidos gestores

políticos

ascenderem

apolitizados,

que

não

na se

identificavam, diretamente, com a figura do político, com a imagem da política tradicional. Ação essa utilizada pelos partidos de direita em oposição à desorganização dos partidos de esquerda perante as pautas sociais e a sociedade em si. Essa absorção da descrença da sociedade na representação política como energia de impulso a candidatos que refutam a conveniência com a política, como adjetivo definidor de caráter de uma estrutura conservadora e corrompida, mascara a manutenção dos mesmos maestros por detrás da orquestra. A utilização da moção de descrença da sociedade, como motor de conservação de práticas políticas não expostas, mas igualmente enraizadas no mesmo sistema ortodoxo de governabilidade, por aqueles que dizem não estarem rotulados na concepção natural de fazer política. A salvação do pemedebismo no governo Lula, como tática de garantir uma supermaioria no Congresso, apenas expôs para a sociedade, como se a esquerda fosse compreendida integralmente no PT, e como se os abusos políticos, no caso do mensalão, fossem práticas de governança da esquerda. Assim sendo, denota-se na esquerda uma obstrução frente à sociedade, enquanto o descontentamento social com o concerto político como um 73

todo é capitalizado pelos setores e partidos de direita na implantação de projetos e planos liberais, aproveitando da abstenção social e da descrença da ação da esquerda, para formarem vitórias em torno de candidatos de caráter apolítico, mas completamente imersos no fluxo dos ideais políticos ortodoxos. Os estilhaços dessas revoltas sociais, tomados forma na descrença do sistema político, figurado na abstenção política, na recusa dos eleitores em votar, comporão os traços e rumos da ordem política e de toda a estrutura institucional do sistema em si. A cara do concerto político, posta em questão, só será recomposta na efetiva pressão social por juízo de participação da sociedade na elaboração dos contextos, aos quais a política se firmará. Pode-se observar que, apesar de antagonismos oriundos de posicionamentos políticos muito diferenciados, uma unidade, ainda que mais subjetiva do que programática, foi se construindo no desenrolar das manifestações de 2013, em torno do desejo de promover modificações no campo institucional da política e buscar caminhos para a ampliação no campo dos direitos humanos, ouvindo-se as vozes da cidadania.19

A concepção de um novo quadro só se dará se a massa protestante e indignada com o desenrolar do fazer político ortodoxo e pemedebista de instituir o Estado não 19

SCHERER-WARREN, Ilse, 2014, p.427

74

se polarizar em questões de ideologias estanques de pesos e medidas, tendo uma exclusividade de certeza em um aspecto e a negação absoluta de valores no outro, mas na construção coletiva de um dialogo que veja nas diferenças o caminho para a consolidação de uma efetiva democracia participativa.

Considerações:

O estudo construído visou arquitetar as ideias que editaram a confecção da Constituição de 1988 e que seguiram

pelo

adentrar

do

século

XXI

e

os

desdobramentos da ação constituinte na vida política do Brasil. O baseamento teórico do estudo ocupou-se de analisar na literatura de Ruy Mauro Marini, em seu texto Possibilidades e limites da Assembleia Constituinte, no texto Trabalho, direitos sociais e sindicatos na Constituição de 1988: duas décadas de acirrada disputa política, de José Ricardo Ramalho e na obra de Marcos Nobre, Imobilismo em movimento – da abertura democrática ao Governo Dilma. As ideias trazidas pelos autores supracitados foram delineadas em torno das similitudes que compreendem entre si, encaminhando ao contexto pretendido, das reverberações de quase três décadas após a constituinte ao culminar das Jornadas de Junho de 2013. O adendo 75

que aqui se fez foi de analisar na conjuntura dos fatos as semânticas sociais do contexto manifestante das revoltas de Junho de 2013, no encaminhamento para uma crise de representatividade e os estilhaços lançados ao futuro. Crise que pode ser notada agora em 2016, mas que é assunto para outro artigo. Compreende-se, aqui, uma estrutura ortodoxa da política brasileira que se defronta, na atualidade, com um intento popular de reforma e integração da participação social

da

população

civil

na

agenda

política,

no

encaminhamento da reforma do meio político, e num instauração de accountability do fazer político. Os complexos da sociedade brasileira são reflexos diretos na fundamentação da estrutura brasileira, mas quando esse caráter de apatia e conformação começa a ser questionado e refutado, o concerto político não se cala às chances

de

ruir. A necessidade

de

uma estrutura

dinâmica da organização política, das esferas de poder e da divisão dos poderes necessita de um respaldo efetivo no julgo social de apreciação. Uma vez que se intende por alteração, as Jornadas de Junho de 2013 são expressão de uma realidade que não mais se conforma a um quadro político instituído na alienação e no distanciamento da sociedade com o universo político, de uma sociedade que se reintegra na noção de real detentora do poder, da qual todo ele emana e para qual todo ele é destinado. Logo, a visão da sociedade de caminhar para o polo ativo da vida 76

pública na política e abandonar de vez o descaso casuístico

de

um sistema

ortodoxo

de

conservação

pemedebista das estruturas políticas pode ser o próximo passo. Referências

FERREIRA, Rubens da S. Jornadas de Junho: uma leitura em quatro conceitos para a Ciência da Informação. CID: R. Ci. Inf. e Doc., Ribeirão Preto, v. 6, 2016 MARINI, Ruy Mauro. Possibilidades e limites da Assembléia Constituinte. In: SADER, Emir (org.). Constituinte e democracia no Brasil hoje. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995 NETTO, Menelick de C. A Hermenêutica Constitucional Sob O Paradigma Do Estado Democrático De Direito. In: Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira. (Org.). Jurisdição e hermenêutica constitucional no Estado Democrático de Direito. 01ed., v. 01. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Anticristo. São Paulo: Martin Claret, 2007. ___________. Genealogia da Moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao Governo Dilma. São Paulo: Companhia das Letras, 2013 PINHO, José A. G. de., SACRAMENTO, Ana R. S. Accountability: já podemos traduzi-la para o português?. In: FGV. Revista de Administração Pública – RAP. Rio de Janeiro, 43, 2009 RAMALHO, José Ricardo. Trabalho, direitos sociais e sindicatos na Constituição de 1988: duas décadas de acirrada disputa política. In: OLIVEN, Ruben George. RIDENTI, Marcelo.

77

BRANDÃO, Gildo Marçal (org.). A Constituição de 1988 na vida brasileira. São Paulo: ANPOCS/Hucitec, 2008 SCHERER-WARREN, Ilse. Manifestações de rua no Brasil 2013: encontros e desencontros na política. In Caderno CRH, Salvador, v. 27, 2014

78

ESTABILIZAÇÃO DA TUTELA DE URGÊNCIA SATISFATIVA NO NOVO CPC: PARADOXO ENTRE A ESTABILIDADE E A COISA JULGADA Ana Flávia Delgado Oliveira1 Resumo Este breve e sucinto trabalho acadêmico apresenta estudo sobre a estabilização da tutela de urgência satisfativa no Novo Código de Processo Civil e as divergências existentes entre a estabilidade e a coisa julgada. Será demonstrada a evolução legislativa no que tange os institutos da antecipação de tutela e das cautelares, até chegar ao atual cenário de unificação das ferramentas em tutelas provisórias. Serão também, apresentadas as espécies do gênero tutela provisória, quais sejam as tutelas de urgência, satisfativa e cautelar, e as tutelas de evidencia. Para então, evidenciar a concepção da estabilização da tutela de urgência antecipada (satisfativa) antecedente e os motivos da impossibilidade de formação de coisa julgada. Palavras-chave: Novo CPC; Tutelas Provisórias; Estabilização da Tutela de Urgência.

Introdução O presente trabalho tem como objetivo apresentar o instituto da estabilização das tutelas de urgência no Novo Código de Processo Civil – Lei 13.105 de 2015 (NCPC), com enfoque no paradoxo existente entre a estabilidade e a coisa julgada. Para isso, será demonstrada a evolução da legislação do ordenamento jurídico brasileiro desde o Código de Processo Professora de Processo Civil na FUPAC – Mariana. Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana – FUPAC Mariana, em parceria com a Faculdade de Direito de Ipatinga – FADIPA. Bacharel em Direito pela Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana – FUPAC Mariana. Guarda Municipal em Mariana. E-mail: [email protected]. 1

79

Civil de 1973, com as alterações sofridas ao longo dos anos, até a aprovação do Novo Código, que se deu em 17 de março de 2015, com vacatio legis de um ano, passando a viger no dia 18 de março de 2016. Com

efeito,

apresentar-se-á

a

nova

configuração

ofertada pelo Código de Processo Civil aos institutos das antigamente cautelares.

conhecidas, Desta

feita,

antecipação será

da

evidenciada

tutela a

e

intenção

das do

legislador de unificação dos referidos institutos, ora incluídos em um mesmo título denominado “Tutelas Provisórias”. Partindo desse pressuposto, esta pesquisa explanará sobre as espécies de tutela inseridas no CPC/2015, quais sejam as tutelas de urgência, satisfativas e cautelares, e as tutelas de evidência.

Efetuar-se-á as diferenças introduzidas pelo Novo

Código de Processo Civil para essas ferramentas e a forma de utilização de cada uma delas. Por fim, será apresentado o instituto da estabilização das tutelas de urgência antecipada (satisfativa) antecedente e as diferenciações existentes entre a estabilidade e a coisa julgada, demonstrando as discussões que estão sendo travadas no meio doutrinário frente a posição e a intenção teleológica do legislador do Novo Código de Processo Civil de 2015. 2. O regime jurídico das tutelas de urgência no cpc de 1973

O Código de Processo Civil de 1973 (CPC/73) tratava em tópicos diferentes os temas da antecipação de tutela (art. 80

273) e o processo cautelar (art. 796 e segs). A explicação para essa diferenciação estava no fato de que a cautelar era considerava uma garantia do processo principal, não possuindo caráter satisfativo, mas tão somente de resguardar o resultado útil no findar da instrução. Já a antecipação de tutela, foi uma inovação trazida pela Lei 8.952/1994, a qual alterou alguns dispositivos do CPC de 1973, dentre eles a introdução do instituto da antecipação da tutela. Este, por sua vez, antecipava os efeitos da sentença, ou seja, possuía um caráter de satisfazer o direito pleiteado. Daniel Amorim Assumpção Neves (2016, p. 650) esclarece que na vigência do CPC/1973, havia grandes controvérsias sobre as diferenciações impostas pelo legislador acerca da tutela antecipada e a tutela cautelar, uma vez que ambas

se

faziam

referência

à

probabilidade

do

direito

pretendido. Conseguir diferenciar os dois institutos na vigência do CPC de 1973 era o mesmo que caminhar por uma tênue linha divisória. De sorte, Barbosa Moreira, citado por Carvalho Dias (2016, 70), explicou acertadamente: A própria ciência processual reconhece hoje que muito do que se tentou fazer em matéria de distinção rigorosa (decisão cautelar e decisão antecipatória de mérito), de quase que separação absoluta entre institutos, na verdade, constituía uma preocupação metodologicamente discutível e, em certos casos, francamente equivocada, porque há sempre uma passagem gradual de uma realidade a outra, e quase sempre se depara uma espécie de zona de fronteira, uma faixa cinzenta, quem nem o mais aparelhado cartógrafo saberia dizer com precisão em qual dos dois terrenos estamos pisando.

81

O legislador do Novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015), no intuito de facilitar a compreensão dos institutos,

otimizou

a

matéria,

condensando

as

tutelas

provisórias em um mesmo capítulo. Sobre essa unificação, Humberto Theodoro Junior (2015, p. 900) evidenciou que: Sob o rótulo de “Tutela Provisória”, o novo CPC reúne três técnicas processuais de tutela provisória, prestáveis eventualmente em complemento e aprimoramento eficacial da tutela principal, a ser alcançada mediante o provimento que, afinal, solucionará definitivamente o litígio configurador do objeto do processo. Nesse aspecto, as ditas “tutelas provisórias” arroladas pela legislação processual civil renovada correspondem, em regra, a incidentes do processo, e não a processos autônomos ou distintos. De tal sorte que a antiga dicotomia do processo em principal (de cognição ou execução) e cautelar, existente no código revogado, não mais subsiste na nova lei, pelo menos como regra geral, restando bastante simplificado o procedimento.

Nesse sentido, quis o legislador simplificar a matéria que há muito vinha sendo objeto de discussões para os operadores de direito. No entender de Humberto Theodoro, ambas as tutelas de urgência possuem a mesma finalidade, impedir o cometimento de injustiças e de danos decorrentes da espera pelo provimento final. Na compreensão de Carvalho Dias (2016, p. 68), que segue o entendimento majoritário da doutrina, “o NCPC tratou de informar que o termo tutela provisória é gênero, do qual tutela de urgência (cautelar e antecipatória) e tutela de evidência são espécies”. 82

Nesse demonstrar

diapasão, as

ultrapassando

divergências

entre

a

a tutela

tentativa

de

cautelar

e

antecipatória (uma vez que se percebe estar mais de ordem teórica do que prática), adentrar-se-á na nova estruturação ofertada pelo CPC de 2015 para esses institutos. 3. A Tratativa Das Tutelas Urgência No Ncpc

Há muito se discute acerca das tutelas diferenciadas no ordenamento

jurídico

brasileiro,

principalmente

no

que

concerne a simplificação do sistema de aplicação para facilitar a efetividade das medidas. Durante a elaboração do Novo CPC muito se debateu acerca desses institutos, mas trazendo sempre a baila a importância das tutelas de urgência frente ao longo e moroso caminho processual. De certo, um dos processualistas que teve grande participação na revisão do Novo CPC, Fredie Didier (2015, p. 567), mencionou acerca desse fato: A principal finalidade das tutelas provisórias é abrandar os males do tempo e garantir a efetividade da jurisdição (os efeitos da tutela). Serve, então, para redistribuir, em homenagem ao princípio da igualdade, o ônus do tempo do processo, conforme célebre imagem de Luiz Guilherme Marinoni. Se é inexorável que o processo demore, é preciso que o peso do tempo seja repartido entre as partes e não somente o demandante arque com ele.

Fica evidente a intenção do Código Processo Civil de 2015 de dar novos contornos as tutelas de urgência (cautelar e antecipatória), extinguindo do CPC o processo cautelar, que era 83

um processo garantidor ao processo principal. Carvalho Dias (2016, p. 27) evidencia que “o NCPC não recepciona em sua estruturação normativa o processo cautelar, como o fazia o CPC/1973, em livro autônomo”. Na verdade, houve a extinção do processo cautelar como livro autônomo, subsistindo a tutela de urgência cautelar, fundida com a tutela de urgência antecipatória. Nesse sentido, o NCPC cuidou de dedicar um livro às tutelas de urgência, a saber: o “Livro V”, o qual se encontra dividido em Tutela de Urgência (Título II) e Tutela de Evidência (Título III). Sendo a primeira subdividida em Tutela Antecipada (Capítulo II) e Tutela Cautelar (Capítulo III). Segundo Tesser (2016, p. 31), “a nova legislação aponta que a tutela provisória pode ser fundada com base na urgência ou na evidência. Insere ainda as medidas urgentes ora mencionadas como espécies do gênero tutelas provisórias de urgência”.

Continuando

sua

explicação

o

referido

autor

esclarece: Portanto, a tutela cautelar e antecipação de tutela, para o novo Código de Processo Civil brasileiro podem ser definidas como tutelas provisórias de urgência. Ou seja, tutelas jurisdicionais que não tem condão de serem definitivas e que são concedidas com fundamento (e em razão de) um perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo.

Complementando a diferenciação entre tutela satisfativa e tutela cautelar, Didier (2015, p. 562) leciona da seguinte forma: 84

A tutela definitiva satisfativa é aquela que visa certificar e/o u efetivar o direito material. Predispõese à satisfação de um direito material com a entrega do bem da vida almejado. É a chamada tutelapadrão. Há dois diferentes tipos de tutela definitiva satisfativa: a tutela de certificação de direitos (declaratória, constitutiva e condenatória) e a tutela de efetivação dos direitos (tutela executiva, em sentido amplo). As atividades processuais necessárias para a obtenção de uma tutela satisfativa (a tutela-padrão) podem ser demoradas, o que coloca em risco a própria realização do direito afirmado. Surge o chamado perigo da demora (periculum in mora) da prestação jurisdicional. Em razão disso, há tutela definitiva não-satisfativa, de cunho assecuratório, para conservar o direito afirmado e, com isso, neutralizar os efeitos maléficos do tempo: a tutela cautelar. A tutela cautelar não visa à satisfação de um direito (ressalvado, obviamente, o próprio direito à cautela), mas, sim, assegurar a futura satisfação, protegendo-o.

Com efeito, o legislador inclui ambas as tutelas (satisfativa e cautelar) no art. 300 do CPC/2015 (BRASIL, Lei 13.105/2015) concedida

dispondo

quando

que

houver

“a

tutela

elementos

de que

urgência

será

evidenciem

a

probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo”. Desta feita, observa-se que os únicos requisitos exigidos para a concessão da tutela de urgência são a probabilidade do direito pretendido e o perigo de dano ou risco que seja prejudicial ao provimento final. Sob essa égide, por mais que houvesse a tentativa de unificação dos institutos da tutela cautelar e da tutela antecipada, o arranjo estrutural do NCPC, quando tratou das 85

tutelas de urgência requeridas de forma antecedente, separouas por capítulo, sendo que no capítulo II, do Título II, Livro V, evidenciou a tutela antecipada, também conhecida como satisfativa; e, no capítulo III, do Título II, Livro V, apresentou a tutela cautelar, conhecida como não satisfativa, haja vista ambas guardarem entre si peculiaridades conceituais. No entender de Didier (2015) a tutela cautelar diverge da tutela antecipada por possuírem objetos distintos, ou seja, a tutela cautelar possui como objeto a preservação de outro direito, que por sua vez, é o objeto da tutela satisfativa. O autor prossegue em seu entendimento de que a tutela antecipada (satisfativa) confere eficácia imediata ao direito pretendido pelo autor. Outro ponto importante de se ressaltar, diz respeito ao fato de que as tutelas, cautelar ou satisfativa, podem ser requeridas de forma incidental (dentro do próprio processo) ou antecedente (antes do ajuizamento da ação principal – agora simplesmente, aditamento da petição inicial com o pedido de tutela final), conforme preleciona o parágrafo único do art. 294 (BRASIL, Lei 13.105/2015) “a tutela provisória de urgência, cautelar ou antecipada, pode ser concedida em caráter antecedente ou incidental”. A despeito dos requisitos da probabilidade do direito e o perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo, as tutelas de urgência também possuem um caráter de precariedade, ou seja, as decisões tem que ser passíveis de reversibilidade, caso contrário estaria a conceder a própria tutela definitiva. Fato 86

este, passível de ocorrer com a tutela satisfativa, e, não com as tutelas cautelares, uma vez que é um instrumento de garantia ao direito pleiteado e não o objeto do direito. Didier (2015, p. 599) esclarece que “exige-se que os efeitos da tutela provisória satisfativa (antecipada) sejam reversíveis, que seja possível retorna ao status quo ante caso se constate, no curso do processo, que deve ser alterada ou revogada”. O Novo Código de Processo Civil trouxe em seu bojo, também outra espécie de tutela de urgência, a tutela de evidência. Na breve explanação de Humberto Theodoro Junior (2015, p. 901), observa-se que: A essas tutelas de urgência, agregou-se, mais modernamente, a tutela da evidência, que tem como objetivo não propriamente afastar o risco de um dano econômico ou jurídico, mas, sim, o de combater a injustiça suportada pela parte que, mesmo tendo a evidência de seu direito material, se vê sujeita a privar-se da respectiva usufruição, diante da resistência abusiva do adversário. Se o processo democrático deve ser justo, haverá de contar com remédios adequados a uma gestão mais equitativa dos efeitos da duração da marcha procedimental. É o que se alcança por meio da tutela sumária da evidência: favorece-se a parte que à evidência tem o direito material a favor de sua pretensão, deferindolhe tutela satisfativa imediata, e imputando o ônus de aguardar os efeitos definitivos da tutela jurisdicional àquele que se acha em situação incerta quanto à problemática juridicidade da resistência manifestada.

Na demonstração de Carlos Augusto de Assis (2016, p. 64) sobre a tutela de evidência, ele dispôs que: Uma das grandes novidades envolvendo a tutela urgente está na separação feita entre a tutela de

87

urgência e a tutela de evidência. Não se trata de modalidade nova de tutela. Ela já existia no nosso sistema (art. 273, II e §6º, CPC 73). O Novo CPC, nesse campo, inovou não apenas no trato separado em relação a tutela de urgência, mas, também, nas hipóteses que autorizam a tutela de evidência.

A Tutela de Evidência, uma espécie do gênero Tutela de Urgência, vem especificada no art. 311 do CPC/2015 (BRASIL, Lei 13.105/2015) e, ao contrário das demais tutelas provisórias, não exige a demonstração do dano ou o risco ao resultado útil do processo, a saber: Art. 311. A tutela da evidência será concedida, independentemente da demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo, quando: I - ficar caracterizado o abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório da parte; II - as alegações de fato puderem ser comprovadas apenas documentalmente e houver tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante; III - se tratar de pedido reipersecutório fundado em prova documental adequada do contrato de depósito, caso em que será decretada a ordem de entrega do objeto custodiado, sob cominação de multa; IV - a petição inicial for instruída com prova documental suficiente dos fatos constitutivos do direito do autor, a que o réu não oponha prova capaz de gerar dúvida razoável. Parágrafo único. Nas hipóteses dos incisos II e III, o juiz poderá decidir liminarmente.

Nota-se que o Novo Código de Processo Civil dispensou contornos diferenciados a essa tutela, que no Código de Processo Civil de 1973 era tratado juntamente com a tutela antecipada. Ao que se percebe, o legislador considerou a evidência do direito algo mais latente que a probabilidade do 88

direito pretendido. Conforme assevera Luiz Fux, na citação de Carlos Augusto de Assis (2016, p. 64), a tutela de evidência seria utilizada naquelas “situações em que a probabilidade da parte requerente estar com a razão é muito alta”. A tutela de evidência, ao contrário das outras tutelas, não pode ser requerida em caráter antecedente, apenas incidentalmente (Parágrafo Único do art. 294 do CPC/2015). Cumpre salientar que, em seu artigo “A Tutela dos Direitos Evidentes”, o Ministro Luiz Fux nos explica que:

É evidente o direito demonstrável prima facie através de prova documental que o consubstancie líquido e certo, como também o é o direito assentado em fatos incontroversos, notórios, o direito a coibir um suposto atuar do adversus com base em "manifesta ilegalidade", o direito calcado em questão estritamente jurídica, o direito assentado em fatos confessados noutro processo ou comprovados através de prova emprestada obtida sob contraditório ou em provas produzidas antecipadamente, bem como o direito dependente de questão prejudicial, direito calcado em fatos sobre os quais incide presunção jure et de jure de existência e em direitos decorrentes da consumação de decadência ou da prescrição.2

Nesse aspecto, apesar de o legislador tentar criar uma uniformidade entre as tutelas provisórias, cada uma delas possuem características singulares que as tornam diferentes

FUX, Luiz. A Tutela dos Direitos Evidentes. Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: http://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/894/A_Tutela_Dos_Direitos_Evidentes.pd f . Acesso: 19 de julho de 2016, p. 8. 2

89

umas das outras. Na acertada visão de Humberto Theodoro Junior (2015, p. 900), nota-se que: O que, nessa perspectiva, se encontra na regulamentação do Código como característica genérica, na espécie, é apenas a sumariedade procedimental adotada como remédio para proporcionar uma tutela, sempre provisória e, por isso, não exauriente, para escapar do aguardo da longa duração inevitável para obtenção da tutela definitiva (de mérito). Como os fins perseguidos pelas três tutelas sumárias não são os mesmos na sistematização legal, o que o Código, à primeira vista, consegue é o estabelecimento, entre tutelas de urgência e de evidência, tão somente de “uma uniformidade procedimental”. Essa sumariedade restrita ao procedimento, todavia, pode encontrar, na doutrina, uma unidade ontológica, ou uma unidade na pluralidade, explicada pela conexão vital que interliga todas as liminares esparsamente autorizadas pelo direito processual. Com efeito, nesse terreno, tudo se passa em torno do modo com que são tratados o fumus boni iuris e o periculum in mora. É sempre da conjugação desses dois requisitos que se pode deduzir a necessidade ou não de uma providência liminar, seja ela destinada a cumprir o papel de cautelar, ou de medida antecipatória satisfativa urgente, seja o de tutelar de imediato um direito evidente. 2

Portanto, todo o esforço do legislador foi no sentido de criar uma uniformização das tutelas, no intuito de facilitar a compreensão

e

a

consequente

aplicabilidade

da

referida

ferramenta. Assim

sendo,

feitas

as

considerações

acerca

da

sistematização das tutelas de urgência no Novo Código de Processo Civil, enfrentar-se-á a temática acerca da estabilização das tutelas de urgência no CPC de 2015.

90

4. Estabilização da tutela de urgência no novo CPC e o paradoxo entre a estabilidade e a coisa julgada

É cediço que o Novo Código de Processo Civil foi o primeiro código gestado e publicado em regime democrático, como ressalta Dierle Nunes, membro da Comissão de Juristas para elaboração do novo diploma: “toda essa mudança conduziu a busca

de

se

adotar

um

modelo

processual

comparticipativo/cooperativo em inúmeros países, com as ressalvas anteriormente pontuadas”. (BAHIA; JUNIOR; NUNES; PEDRON, 2015, p. 82). Nos próximos tópicos, será demonstrado, ainda que tangencialmente e com o estrito enfoque ao tema ora estudado que, o Novo CPC pretendeu adequar as normas processuais e o próprio

direito

no

paradigma

do

estado

efetivamente

democrático. 4.1. Contornos gerais sobre a estabilização

Conforme já demonstrado no presente trabalho, o Novo Código de Processo Civil tentou criar um regime único para as tutelas de urgência, ou seja, uma uniformidade procedimental. Contudo, em que pese todas as tentativas de unificação, as tutelas de cognição sumária guardam entre si algumas divergências, dentre as quais cabe destacar o objeto deste

91

estudo,

a

saber:

a

estabilização

da

tutela

antecipada

(satisfativa) provisória. Existem, atualmente, muitas críticas acerca da não unificação dos regimes jurídicos das tutelas provisórias no Novo CPC, entretanto, não haveria como igualar os institutos por completo, uma vez que possuem características singulares. Por exemplo, não seria possível estabilizar uma tutela cautelar, pois esta possui caráter apenas de resguardar um direito futuro. Primeiramente, para que se possa enfrentar o tema da estabilização

da

tutela

compreensão

do

que

satisfativa,

seja

cognição

faz-se

necessário

sumária

e

a

cognição

exauriente. Na concepção de Dierle Nunes e Érico Andrade (2016, p. 73): A cognição exauriente, pressupõe a completa realização prévia do contraditório e por isso se permite às partes ampla discussão da causa e produção de provas, com o que, consequentemente, o juiz, na decisão final, pode promover aprofundado, mediante o pleno debate processual, o exame dos fatos, permitindo a decisão maior perspectiva de acerto quanto a solução de mérito, desaguando-se na imutabilidade da solução pela formação da coisa julgada. Daí também a indicação doutrinária de que se trata de tutela definitiva, aplicada no modelo tradicional de cognição pelo procedimento ordinário. A cognição sumária, ao contrário, impõe limitação no debate e na investigação dos fatos da causa pelo juiz e pelas partes: o exame dos fatos e o debate são superficiais, razão pela qual, normalmente, a decisão judicial aqui não formaria a autoridade de coisa julgada material.

Realizar essa diferenciação se torna importante na medida em que na cognição exauriente existe a formação da 92

coisa julgada, mas na cognição sumária, especificamente na tutela

antecipada

antecedente

(satisfativa),

ocorre

o

que

chamamos de estabilização. O art. 303 do Novo Código de Processo Civil (BRASIL, Código de Processo Civil – Lei 13.105/2015) estabelece, in verbis: Art. 303. Nos casos em que a urgência for contemporânea à propositura da ação, a petição inicial pode limitar-se ao requerimento da tutela antecipada e à indicação do pedido de tutela final, com a exposição da lide, do direito que se busca realizar e do perigo de dano ou do risco ao resultado útil do processo. § 1o Concedida a tutela antecipada a que se refere o caput deste artigo: I - o autor deverá aditar a petição inicial, com a complementação de sua argumentação, a juntada de novos documentos e a confirmação do pedido de tutela final, em 15 (quinze) dias ou em outro prazo maior que o juiz fixar; II - o réu será citado e intimado para a audiência de conciliação ou de mediação na forma do art. 334; III - não havendo autocomposição, o prazo para contestação será contado na forma do art. 335. § 2o Não realizado o aditamento a que se refere o inciso I do § 1o deste artigo, o processo será extinto sem resolução do mérito. § 3o O aditamento a que se refere o inciso I do § 1o deste artigo dar-se-á nos mesmos autos, sem incidência de novas custas processuais. § 4o Na petição inicial a que se refere o caput deste artigo, o autor terá de indicar o valor da causa, que deve levar em consideração o pedido de tutela final. § 5o O autor indicará na petição inicial, ainda, que pretende valer-se do benefício previsto no caput deste artigo. § 6o Caso entenda que não há elementos para a concessão de tutela antecipada, o órgão jurisdicional determinará a emenda da petição inicial em até 5 (cinco) dias, sob pena de ser indeferida e de o processo ser extinto sem resolução de mérito.

93

Uma das inovações trazidas por este artigo diz respeito ao fato de que o autor não precisaria ingressar com uma nova petição versando sobre o pleito principal, seria necessário apenas, aditar a petição inicial, complementando sua peça com o pedido de confirmação da tutela final. Mister se mostra a apresentação do artigo citado alhures, visto que o tema objeto da pesquisa encontra-se lastreado no art. 304 do Novo Código de Processo Civil, fazendo menção em seu caput ao art. 303, que serve de base para a completa compreensão da matéria. Com efeito, o art. 304 do CPC/2015 (BRASIL, Código de Processo Civil – Lei 13.105/2015) dispõe que “a tutela antecipada, concedida nos termos do art. 303, torna-se estável se da decisão que a conceder não for interposto o respectivo recurso”. Dessa forma, a literalidade do artigo deixa transparecer que caso a decisão concessiva da tutela antecipada antecedente não for objeto de recurso, tornar-se-á estável. Levando-se em consideração que a referida decisão não possui caráter meritório, somente poderia ser atacada pela via do agravo de instrumento. Assim, não sendo interposto agravo dessa decisão, esta estaria, a priori, estabilizada. Dierle Nunes (2016, p. 83) explicita: Da análise inicial, se poderia adotar a interpretação calcada na literalidade do art. 304 do novo CPC, no sentido de que apenas a interposição do “recurso” contra a decisão que conceder a tutela de urgência, na modalidade antecipada, no âmbito do procedimento preparatório (art. 303, novo CPC),

94

seria hábil a evitar a estabilização. E recurso, no caso, do ponto de vista da legislação processual, tem um sentido específico, nos termos do art. 994 do novo CPC, e significa, no caso, interposição do recurso de agravo de instrumento (art. 1015, I, novo CPC).

Ocorre que essa interpretação (restritiva!) vem sendo objeto de diversas discussões no âmbito jurídico. No entender de Didier (2015, p. 604): A estabilização da tutela antecipada ocorre quando ela é concedida em caráter antecedente e não é impugnada pelo réu, litisconsorte ou assistente simples (por recurso ou outro meio de impugnação). Se isso ocorrer, o processo será extinto e a decisão antecipatória continuará produzindo efeitos, enquanto não for ajuizada ação autônoma para revisá-la, reforma-la ou invalidá-la. Nesse caso, não há obviamente, resolução do mérito quanto ao pedido definitivo – até porque a estabilização se dá num momento em que esse pedido sequer foi formulado.

Nesse aspecto, numa interpretação mais extensiva, Didier segue a linha de pensamento que qualquer atitude do réu tendente a impugnar a decisão que concedeu a liminar seria o bastante para afastar a estabilização da medida. O referido autor evidencia, ainda, que: Se, no prazo de recurso, o réu não o interpõe, mas resolve antecipar o protocolo da sua defesa, fica afastada a sua inércia, o que impede a estabilização – afinal, se contesta a tutela antecipada e a própria tutela definitiva, o juiz terá que dar seguimento ao processo para aprofundar sua cognição e decidir se mantém a decisão antecipatória ou não. Não se pode negar ao réu o direito a uma prestação jurisdicional de mérito definitiva, com aptidão para a coisa julgada (DIDIER, 2015, p. 609)

95

De mais a mais, o autor explicita também que a estabilização da medida possui o condão de afastar o perigo da demora e oferecer resultados imediatos frente a ausência de manifestação do réu. Todavia, para que haja a efetivação da estabilidade, o art. 304 do Novo Código de Processo Civil traz em seu bojo, segundo a interpretação de Fredie Didier, alguns requisitos que devem ser cumpridos. O primeiro requisito diz respeito ao pedido expresso do réu, requisito este presente no art. 303, §5º do CPC/2015 (BRASIL, Código de Processo Civil – Lei 13.105/2015) que dispõe: “autor indicará na petição inicial, ainda, que pretende valer-se do benefício previsto no caput deste artigo”. Heitor Mendonça Sica (2016, p. 239) nos auxilia na compreensão do referido dispositivo legal, complementando, “o jurisdicionado tem o direito de se sujeitar aos riscos e custos inerentes ao prosseguimento

do

processo

para

exercício

da

cognição

exauriente, face ao legítimo interesse em obter a tutela final apta a formar coisa julgada material”. Já o segundo requisito se refere, nas lições de Didier, a um pressuposto negativo, relacionado com a ausência de manifestação

do

autor

na

petição

inicial,

demonstrando

interesse em dar prosseguimento ao processo. Dando

sequência

a

exposição

dos

requisitos,

é

necessário, quase por óbvio, que haja a concessão da tutela antecipada (satisfativa), em caráter antecedente, vez que esta é a única tutela passível de estabilização. 96

Por fim, e não menos importante, é necessária a ausência de impugnação do réu, ou seja, a sua inércia perante a concessão da medida. Estando presentes esses requisitos, a medida poderá se estabilizar. Além dos requisitos citados acima que ensejam a estabilização

da

tutela

satisfativa

concedida

em

caráter

antecedente, foi editado o enunciado 32 do Fórum Permanente dos Processualistas Civis, o qual estabelece que “além da hipótese prevista no art. 304, é possível a estabilização expressamente negociada da tutela antecipada de urgência antecedente”3. Sendo assim, é possível a inclusão no contrato de cláusula de estabilização da tutela. Cumpre destacar que o Novo Código de Processo Civil estabeleceu, em seu art. 304 §2º (BRASIL, Código de Processo Civil – Lei 13.105/2015) que “qualquer das partes poderá demandar a outra com o intuito de rever, reformar ou invalidar a tutela antecipada estabilizada nos termos do caput”. Dessa

forma,

fica

evidente

no

dispositivo,

o

entendimento de Fredie Didier (2015, p. 609), segundo qual qualquer

das

partes,

seja

ela

réu,

assistente

simples,

litisconsorte, poderá intervir no processo para que seja revista, reformada ou invalidada a tutela, ora antes estabilizada: Não há que se falar em estabilização, também, quando a despeito da inércia do réu, a demandada for devidamente respondida a tutela antecipada concedida antecedentemente for questionada por Enunciado 32 do Fórum Permanente dos Processualistas Civis. Disponível em: http://portalprocessual.com/wp-content/uploads/2015/06/Carta-deVit%C3%B3ria.pdf Acesso: 22 de julho de 2016. 3

97

quem se apresente como assistente simples do réu ou por litisconsorte cujos fundamentos de defesa aproveitam também o réu inerte.

Ademais, o §3º do mesmo artigo complementa a visão estabelecendo que “a tutela antecipada conservará seus efeitos enquanto não revista, reformada ou invalidada por decisão de mérito proferida na ação de que trata o § 2º”. Muitos

questionamentos

pairam

também

sobre

a

possibilidade de estabilização parcial da decisão, que seria no caso

de

ser

pleiteado

pelo

autor

mais

de

um

pedido

antecipatório, e o réu impugnar apenas parte dele, sobre os fatos não impugnados, os quais não haja controvérsia, serão considerados estabilizados, sob a justificativa de segurança jurídica. Apresenta-se mais uma vez a importante contribuição de Didier (2015, p. 610) sobre o assunto, na qual esclarece que: Há que se considerar, ainda, a possibilidade de inércia parcial do réu. Isso se dará quando, concedida a decisão antecipatória com mais de um capítulo, o réu só impugnar em sede de recurso, contestação ou outra via de questionamento, um dos capítulos decisórios, caso em que só os outros não impugnados, serão alcançados pela estabilização.

Nesse mesmo sentido é o posicionamento do Heitor Vitor Mendonça Sica (2016, p. 245): Considerando-se que o novo Código amplia as hipóteses de desmembramento do objeto litigioso – em especial acolhendo textualmente o julgamento parcial do mérito (art. 356) não há razoes para recusar a estabilização parcial, com a redução do objeto litigioso que será submetido ao julgamento fundado em cognição exauriente.

98

Na concepção de Eduardo Talamini (2016, p. 179) “o objetivo principal do mecanismo da estabilização da tutela antecipada é a diminuição da carga de trabalho do Poder Judiciário. Trata-se de instrumento funcionalmente destinado à racionalização da atuação judiciária”. Para tanto, observa-se que o Novo Código de Processo Civil, quer premiar um processo mais ágil, com menos formalidades

tendentes

a

protelar

o

provimento

final,

garantindo assim, uma celeridade na prestação jurisdicional e a efetivação dos critérios de justiça. 4.2 Paradoxo entre a estabilidade e a coisa julgada

Outro aspecto que merece atenção reside no paradoxo existente entre a estabilização da tutela satisfativa antecedente e a impossibilidade de formação de coisa julgada. Há no meio jurídico muitas controvérsias e discussões sobre a estabilidade da tutela provisória. O §5 o do art. 304 CPC/2015

(BRASIL,

Código

de

Processo

Civil



Lei

13.105/2015) descreve que “o direito de rever, reformar ou invalidar a tutela antecipada, previsto no § 2o deste artigo, extingue-se após 2 (dois) anos, contados da ciência da decisão que extinguiu o processo, nos termos do § 1o”. Devido a essa previsão legal, alguns autores defendem a ideia de que decorrido o prazo previsto no artigo supracitado a estabilização da tutela faria coisa julgada. 99

Todavia, importante frisar que se trata de uma cognição sumária, na qual não há sentença ou qualquer decisão definitiva, mas apenas uma decisão considerada interlocutória. A decisão definitiva é objeto apenas, e tão somente, da cognição exauriente, na qual o processo percorre todo o caminho até chegar ao provimento final, inclusive, oportunizando a todas as partes o direito ao contraditório e ampla defesa. Fredie

Didier

(2015,

p.

612)

nos

empresta

seu

entendimento, trazendo à baila que: Em primeiro lugar não se pode dizer que houve julgamento ou declaração suficiente para coisa julgada. O juiz concedeu a tutela provisória e, diante da inércia do réu, o legislador houve por bem determinar a extinção do processo sem resolução do mérito, preservando os efeitos da decisão provisória. Além disso, após dois anos para a propositura da ação para reformar, rever ou invalidar a decisão que concedeu a tutela provisória, os efeitos tornam-se estáveis. Esses efeitos são estabilizados, mas apenas eles – a coisa julgada, por sua vez, recai sobre o conteúdo da decisão, não sobre os seus efeitos; é o conteúdo, não a eficácia, que se torna indiscutível com a coisa julgada.

Além das explicações doutrinárias a respeito da ausência de formação de coisa julgada, o Novo Código de Processo Civil trouxe em seu bojo previsão expressa acerca desse debate, mais especificamente no art. 304, §6º CPC/2015 (BRASIL, Código de Processo Civil – Lei 13.105/2015)

“a decisão que concede a

tutela não fará coisa julgada, mas a estabilidade dos respectivos efeitos só será afastada por decisão que a revir, reformar ou invalidar, proferida em ação ajuizada por uma das partes, nos termos do § 2o deste artigo” 100

Entretanto, existem autores que possuem interpretação diversa, tais como, por exemplo, Bruno Garcia Redondo que, na citação de Roberto Campos Gouveia Filho (2016, p. 289), entende que: A existência de coisa julgada teria por base o afastamento da relação entre coisa julgada material e a cognição exauriente, que não se adequaria ao CPC/2015. Como a coisa julgada seria tão somente o fenômeno que impede a (re) propositura de demandas que tenham por objetivo modificar anterior julgamento de mérito, este poderia ser encaixado na situação da tutela provisória não impugnada no período de dois anos. Além disso, o § 6º, do art. 3014 não impediria essa conclusão, pois ele trataria apenas da inexistência de coisa julgada da decisão estabilizada, mas não da situação jurídica que viria a existir após dois anos.

Em que pese às opiniões defendidas pelos autores a favor da formação de coisa julgada, a presente pesquisa acompanha as opiniões que entendem pela inexistência de possibilidade de formação de coisa julgada, pelo simples motivo que considerar o contrário seria aceitar uma anomalia jurídica, visto que não estamos diante da cognição exauriente, cujo objeto é a decisão meritória. Ademais, segundo Roberto Campos Gouveia Filho (2016, p. 289) “o óbice existente para esse novo procedimento é legislativo, não cabendo à doutrina modificar a natureza da estabilização para coisa julgada. É uma tentativa ilegítima de suprir uma lacuna axiológica de forma ilegítima, devendo ser afastada”.

101

Outros autores também defendem o posicionamento do legislador, dentre eles, Dierle Nunes e Érico Andrade (2016, p. 91), que numa importante contribuição explanaram que: Essa parece, numa primeira leitura, e com base nos estudos comparados, a melhor solução, para qual parece, inclusive, ter se encaminhado o legislador de forma explícita nos termos em que disciplinou a matéria (art. 304, §§5º e 6º, CPC-2015), e que se justifica, pois conferir as decisões baseadas em cognição sumária o mesmo status ou dignidade das decisões baseadas na cognição exauriente, com contraditório dinâmico, no que diz respeito à formação de coisa julgada, não parece constitucionalmente adequado em razão do déficit de investigação dos fatos de que se ressentem as decisões em summaria cognitio.

Ou seja, o legislador quis deixar clara e evidente a impossibilidade de formação de coisa julgada, já antevendo as discussões que seriam travadas acerca dessa temática. Ressalta-se desde já que não há a pretensão de se exaurir o debate sobre o tema objeto do presente estudo. Até porque, seria impossível para a hipótese em tela. Imperioso destacar,

que

a

ferramenta

da

estabilização

da

tutela

antecipada antecedente é um instituto novo no ordenamento jurídico brasileiro. Muitas dúvidas surgirão acerca da matéria, assim, somente a análise empírica demonstrará soluções práticas de resolução das controvérsias. Considerações finais

102

A partir de uma análise sistemática, pode-se perceber que o ordenamento jurídico brasileiro vem se adequando ao contexto social e prático. A exemplo disso, o Novo Código de Processo Civil trouxe consigo uma série de modificações para facilitar e garantir uma maior celeridade ao processo. O processo é uma entidade complexa, podendo ser encarado sob o aspecto dos atos que lhe dão corpo e da relação entre esses mesmos atos (procedimento) e igualmente sob o aspecto das relações entre os seus sujeitos (relação processual). Ou seja, processo não é mero procedimento (como entendia a antiga doutrina), mas também não se exaure no conceito simplista de relação jurídica processual. Percebe-se

que

a

ideia

do

fundamento

normativo

principal da concepção moderna do direito processual para proteção dos direitos e bens jurídicos fundamentais do cidadão, reside exatamente no modelo de processo constitucional. A estruturação do CPC/2015 deixou clara a intenção do legislador de unificação das tutelas provisórias, apesar de estas guardarem entre si diferenças conceituais que as tornam de fato, diferentes. Dessa forma, verificou-se que foi excluído do CPC/2015 o processo cautelar, mantendo as tutelas de urgência cautelares, instituto que empresta a prática uma aplicabilidade muito mais simples que aquela presente no CPC de 1973. Por conseguinte, não há no Novo Código a antecipação de tutela (art. 273 do CPC/73), mas existe a tutela de urgência satisfativa.

103

Com

o

presente

estudo,

foram

apresentadas

as

diferenças básicas entre as espécies de tutelas provisórias (tutela de urgência satisfativa e cautelar) e a tutela de evidência, bem como se evidenciou as distinções entre a cognição sumária e a cognição exauriente, para que somente então, pudesse firmar a compreensão da ferramenta da estabilização da tutela de urgência satisfativa no Novo Código de Processo Civil. Por fim, concluiu-se que há diferenças muito claras entre a coisa julgada e a estabilização da tutela provisória antecipada (satisfativa)

antecedente,

além

do

que

essa

pesquisa

demonstrou a flagrante intenção do legislador de diferenciar os institutos, premiando a coisa julgada, instituo da cognição exauriente, com uma maior força jurídica que a estabilização da tutela de urgência, ferramenta da cognição sumária.

104

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GOUVEA FILHO, Roberto Campos; PEIXOTO, Ravi; COSTA, Eduardo José da Fonseca. Estabilização, imutabilidade das eficácias antecipadas e eficácia de coisa julgada: um diálogo pontiano com o CPC/2015. Novo CPC doutrina selecionada: procedimentos especiais, tutela provisória e direito transitório. Coordenador geral, Fredie Didier Jr.; organizadores, Lucas Buril de Macedo, Ravi Peixoto, Alexandre Freire. v.4. Salvador: Juspodvim, 2016. JÚNIOR, Humberto Theodoro; NUNES, Dierle José Coelho; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC – Fundamentos e Sistematização. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil – Volume único / Daniel Amorim Assumpção Neves. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 650. NUNES, Dierle e ANDRADE, Érico. Os Contornos da Estabilização da Tutela Provisória de Urgência Antecipatória no Novo CPC e o Mistério da Ausência de Formação da Coisa Julgada. Novo CPC doutrina selecionada: procedimentos especiais, tutela provisória e direito transitório. Coordenador geral, Fredie Didier Jr.; organizadores, Lucas Buril de Macedo, Ravi Peixoto, Alexandre Freire. v.4. Salvador: Juspodvim, 2016. SICA, Heitor Vitor Mendonça. Doze Problemas e Onze Soluções quanto à Chamada “estabilização da Tutela Antecipada”. Novo CPC doutrina selecionada: procedimentos especiais, tutela provisória e direito transitório. Coordenador geral, Fredie Didier Jr.; organizadores, Lucas Buril de Macedo, Ravi Peixoto, Alexandre Freire. v.4. Salvador: Juspodvim, 2016. TALAMINI, Eduardo. Arbitragem e estabilização da Tutela Antecipada. Novo CPC doutrina selecionada: procedimentos especiais, tutela provisória e direito transitório. Coordenador geral, Fredie Didier Jr.; organizadores, Lucas Buril de Macedo, Ravi Peixoto, Alexandre Freire. v.4. Salvador: Juspodvim, 2016. 106

TESSER, André Luiz Bauml. As Diferenças entre a Tutela Cautelar e a Antecipação de Tutela no CPC/2015. Novo CPC doutrina selecionada: procedimentos especiais, tutela provisória e direito transitório. Coordenador geral, Fredie Didier Jr.; organizadores, Lucas Buril de Macedo, Ravi Peixoto, Alexandre Freire. v.4. Salvador: Juspodvim, 2016. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Teoria geral do direito processual civil, processo de conhecimento e procedimento comum. vol. I. 56. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

107

O NOVO REGIME FISCAL E A PROPOSTA DE UM ESTADO MÍNIMO: DESAFIOS À EFETIVAÇÃO DO DIREITO SOCIAL À SAÚDE E À EDUCAÇÃO NO BRASIL PÓS-PEC 55/2016 Júnior Ananias Castro1 Crovymara Elias Batalha2 Fabiano César Rebuzzi Guzzo3 Resumo A Câmara dos Deputados aprovou com ampla maioria em segundo turno a PEC 241/2016, conhecida também como PEC do teto dos gastos públicos, que agora segue para o senado com a numeração alterada para PEC 55/2016, tendo como principal objetivo limitar as despesas públicas durante 20 anos, com o intuito de evitar que os gastos cresçam mais que a inflação a partir de 2017. A proposta de emenda à Constituição possui relação direta com o desequilíbrio fiscal, decorrente dos gastos do governo federal, muito superiores a arrecadação. Ocorre que, esta proposta de emenda à Constituições tem sido alvo de inúmeras críticas, em virtude, sobretudo, da limitação de recursos para áreas essenciais à efetivação dos direitos sociais, como a saúde e a educação, levando à inevitável precarização dos serviços públicos nestas áreas, consistindo, portanto, no foco principal do presente estudo. Este trabalho foi desenvolvido, a partir análise crítico-discursiva da legislação vigente, sobretudo do texto constitucional, bem como da doutrina nacional e estrangeira sobre o assunto, a fim de amealhar substratos capazes de fomentar uma discussão crítica acerca dos impactos sociais gerados pela PEC 55/2016 na efetivação do direito à saúde e à educação.

Bacharel em Direito pela UFOP (2015). Especialista em Direito Administrativo pela FAVENI (2016). Advogado do sindicato dos servidores e funcionários públicos municipais de Ouro Preto pelo escritório Guzzo, Mafra e Advogados Associados. Graduando em filosofia pela UFOP (2016). 1

Possui graduação em Historia pela UFOP (1986). Especialista em história do Brasil. Atualmente é Diretora da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana (MG) UNIPAC-MARIANA. Bacharelanda em Direito. 3 Bacharel em Direito pela UFOP (1999). Mestre em Direito (Direito e Globalização) pela Universidade Vale do Rio Verde (2008). Professor Adjunto da Universidade Federal de Ouro Preto – MG. Professor Adjunto da Faculdade de Direito de Conselheiro LafaieteMG. Professor Adjunto da Universidade Presidente Antônio Carlos de Mariana – MG. Coordenador de Curso UNIPAC – MARIANA. Advogado sócio do escritório Guzzo, Mafra e Advogados Associados. 2

108

Palavras-chave: PEC 241-55/2016; desiquilíbrio fiscal; direito à saúde; direito à educação.

Introdução O presente trabalho objetiva discutir alguns aspectos da PEC 55/2016, popularmente conhecida como “PEC do teto dos gastos públicos”, e seus possíveis efeitos sobre os direitos sociais dos cidadãos brasileiros, notadamente o direito à saúde e à educação.4 A Proposta de Emenda a CRFB/88 foi encaminhada ao Congresso Nacional em 15 de Junho de 2016, pelos ministros Henrique de Campos Meirelles, da Fazenda; e Dyogo Henrique de Oliveira do Planejamento, Orçamento e Gestão. A referida proposta foi enviada, ainda durante a interinidade do atual governo, enquanto a Presidenta Dilma Rousseff encontrava-se afastada de suas funções, nos termos do art. 86, §1º, II, da Constituição Federal de 1988. A PEC altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), para instituir o Novo Regime Fiscal, que segundo o governo, tem como principal objetivo fixar um limite O Art. 60 da CRFB possui a seguinte dicção: "A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; II - do Presidente da República; III - de mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros. § 1º A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio. § 2º A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros. § 3º A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem. § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais. § 5º A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa." 4

109

ao crescimento da despesa primária total, que não terá qualquer crescimento real a partir do exercício subsequente ao da aprovação desta PEC, evitando que o gasto público federal seja superior a inflação.5 Nesse sentido, caso a PEC seja aprovada este ano pelo Congresso, os gastos públicos de 2017 ficarão limitado às despesas de 2016, corrigidas pela variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), ou de outro índice que vier a substituí-lo, o que de certa forma irá representar um retrocesso na efetivação de direitos constitucionais garantidos, uma vez que o texto da emenda acaba com a vinculação de receitas para gastos públicos com a saúde e educação, já constantes no texto constitucional.6

7

Por ser um tema bastante recente não há muitos trabalhos que se debruçaram sobre os efeitos da PEC em relação a efetivação do direito à saúde e à educação, havendo,

A despesa primária interfere no resultado primário, alterando o endividamento líquido do Governo (setor público não financeiro), no exercício financeiro correspondente. Resultado primário, por sua vez, é o total alcançado pela diferença obtida entre receitas primárias e despesas primárias. O Resultado primário é um indicativo da capacidade dos governos em gerar receitas em volume suficiente para pagar suas contas usuais, sem que seja comprometida sua capacidade de administrar a dívida existente. Tais conceitos constam no glossário do orçamento federal disponível nos sítios eletrônicos http://www.orcamentofederal.gov.br/glossario-1/glossario_view?letra=D, e http://www3.tesouro.fazenda.gov.br/contabilidade_governamental/downloads/Resulta do_Primario_Resultado_Nominal.pdf, acessos em 07 de outubro de 2016. 6 A crise das dívidas da União, Estados e Municípios levou à criação da lei de responsabilidade fiscal, lei Complementar n. 101/2000, com o intuito de controlar os gastos públicos, fixando parâmetros para uma administração de fato eficiente. 7 De acordo com a PEC 55/2016 o art. 104 do ADCT teria a seguinte dicção: “Art. 104. A partir do exercício financeiro de 2017, as aplicações mínimas de recursos a que se referem o inciso I do § 2º e o § 3º do art. 198 e o caput do art. 212, ambos da Constituição, corresponderão, em cada exercício financeiro, às aplicações mínimas referentes ao exercício anterior corrigidas na forma estabelecida pelo inciso II do § 3º e do § 5º do art. 102 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.”, portanto, os investimentos em saúde e educação somente ficarão submetidos ao novo regime fiscal a partir de 2017. 5

110

contudo, estudos técnicos elaborados por especialistas em orçamento e finanças da Câmara dos Deputados e Senado, além de um estudo bastante elucidativo realizado por 30 economistas, chamado “Austeridade e retrocesso” (2016), que certamente contribuíram muito para a analise que será feita adiante. Inicialmente será discutido o déficit público no Brasil, suas causas e a austeridade fiscal contida na PEC 55/2016, como uma tentativa de conter os gastos públicos e equilibrar as finanças; posteriormente será abordado os efeitos diretos da PEC 55/2016 sobre à saúde e educação; e por fim serão apresentadas possíveis alternativas à PEC 55/2016, ligadas a necessidade de uma reforma tributária no Brasil. 2. O déficit público e a austeridade fiscal proposta pela PEC 55/2016

Como uma das principais medidas anunciadas até agora pelo governo de Michel Temer, a PEC 241/2016, que estabelece um teto para os gastos públicos, no dia 25 de outubro de 2016, foi aprovada em segundo turno pelo plenário da Câmara dos Deputados,8 seguindo para o Senado Federal, onde a proposta passou a tramitar como PEC 55/2016. Como

se

trata

de

uma

Proposta

de

Emenda

Constitucional, o projeto de teto para gastos públicos precisa No segundo turno de votação da PEC 241/2016 no plenário da Câmara, 359 deputados votaram a favor, 116 contra e houve 2 abstenções, sendo 7 votos favoráveis a menos em relação a primeira votação. 8

111

ser aprovado em duas votações por pelo menos três quintos dos deputados (308), e depois em mais dois turnos por pelo menos três quintos dos senadores (49). Portanto, a PEC ainda precisa passar por duas votações no plenário do Senado. Depois de toda essa maratona, caso a PEC sobreviva, seguirá diretamente para a fase de promulgação e publicação. Isso significa que não há sanção nem veto do presidente em caso de Emenda Constitucional, diferentemente do que ocorre com os projetos de lei ordinária, por exemplo. Finalmente, a promulgação e publicação também não serão feitas pelo Presidente, mas sim pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Após a publicação no Diário Oficial, a emenda será anexada ao texto constitucional, passando a viger imediatamente, sem a contagem do prazo legal de 45 dias (vacatio legis) previsto no art. 1º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Na contramão da tendência internacional a ideia de austeridade fiscal, com o controle dos gastos públicos, tem ganhado força no Brasil, sobretudo a partir da proposta de emenda à Constituição apresentada acima, que possui como principal escopo instituir um novo regime fiscal, que, na prática “congela” as despesas públicas pelos próximos 20 anos, pois ficarão submetidas a um teto vinculado às despesas do exercício anterior e à inflação de janeiro a dezembro do mesmo período. Em outras palavras, significa dizer que enquanto o PIB e a população brasileira crescem, os investimentos públicos 112

continuarão estanques, sem qualquer aumento real por pelo menos duas décadas. Argumenta-se que países de primeiro mundo possuem regras parecidas, o que, contudo, não procede, podendo ser usado como exemplo a União Europeia, que, desde 2011, vinculou o limite de gastos públicos ao crescimento a longo prazo do PIB, além do fato destes países já possuírem uma infraestrutura muito superior a brasileira para prestação de serviços públicos, portanto, a redução dos gastos primários não afeta tanto a população de menor renda. (AUSTERIDADE E RETROCESSO, 2016, p.9).9 Ademais,

conforme

aponta

Denise

Gentil

(2016),

professora e pesquisadora do Instituto de Economia da UFRJ, a PEC 55/2016 parte de um diagnóstico incorreto do déficit público, sem precisar quais são de fato suas causas, quando na realidade a sua identificação é imprescindível para controlar o déficit. A partir da análise das taxas médias de crescimento real dos gastos públicos dos quatro últimos governos brasileiros é possível afirmar que o déficit recente das contas públicas, ao contrário do afirmado pelos defensores da PEC, não ocorreu

Em entrevista concedia por Christoph Leitl (2012), presidente honorário da Associação Europeia das Câmaras de Comércio (Eurocâmaras) e presidente da Câmara Federal de Economia da Áustria, acerca do pacto fiscal da União Europeia e da política de austeridade trazida pelo mesmo, o economista afirma que “O pacto fiscal é uma necessidade. Com uma moeda comum, é necessário uma política fiscal comum, que servirá também como instrumento de disciplina para todos os membros da União Europeia. No pacto, o país não pode cortar investimentos em educação, pesquisa e infraestrutura, mas sim em burocracia.” (http://www.valor.com.br/brasil/2520068). 9

113

apenas devido ao aumento dos gastos, mas sobretudo em virtude da queda das receitas.10 Posto isto, é possível elencar dois fatores predominantes que levaram a queda das arrecadações: em primeiro lugar, a economia desacelerou, culminando com uma crise econômica sem precedentes na história do país; em segundo lugar, o governo reduziu substancialmente os investimentos públicos a partir de 2013, além de conceder inúmeras desonerações fiscais.11 A respeito do primeiro fator, a economia desacelerou, o que culmina com a recessão de 2015, levando a queda do PIB, consequentemente o aumento do desemprego, queda da arrecadação de tributos sobre a folha, sobre os faturamentos, sobre o lucro e sobre o consumo, o que implica na queda das receitas de forma significativa, contribuindo para o aumento do déficit público. Quanto ao segundo fator, o governo adotou medidas de ajuste fiscal, reduzindo os investimentos públicos de forma expressiva, o que induziu a redução do crescimento, gerando novas quedas na arrecadação, provocando a necessidade de novos cortes, criando assim um ciclo vicioso, o que também As taxas médias de crescimento real do gasto do governo federal dos últimos quatro governos foram: FHC II (3,9%), Lula I (5,2%), Lula II (5,5%) e Dilma I (3,8%) (AUSTERIDADE E RETROCESSO, 2016, p.13). 11 “Enquanto no quadriênio 2007-2010 o espaço fiscal foi canalizado prioritariamente para investimentos públicos, no quadriênio 2011-2014 a taxa de investimento parou de crescer e, em compensação, o governo elevou significativamente os subsídios e desonerações ao setor privado. O governo fez uma aposta no setor privado e acreditou que promoveria o crescimento econômico via realinhamento de preços macroeconômicos e incentivos aos investimentos privados – a chamada agenda FIESP. Ironicamente, a FIESP passou de beneficiada das políticas de um governo para algoz do mesmo.” (AUSTERIDADE E RETROCESSO, 2016, p.8). 10

114

teve grande impacto no desiquilíbrio fiscal vivido pelo setor público no Brasil na atualidade. Nesse diapasão, percebe-se que a queda na arrecadação foi o principal fator responsável pelo aumento do déficit público, portanto, encontrar formas de aumentar a arrecadação teria um impacto muito mais expressivo na recuperação do país do ponto de vista econômico, do que simplesmente congelar os gastos públicos por 20 anos, partindo da premissa de que os gastos precisam cair, sacrificando assim toda uma geração em seus direitos mais fundamentais. 3. A PEC 55/2016 e a efetivação dos direitos sociais à saúde e educação

Em trabalho publicado recentemente, a assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), Grazielle David, afirma que a “PEC 241 é uma bomba contra os direitos

constitucionais

da

população

brasileira”,

pois

estabelece que as despesas primárias, ou seja, aquelas destinadas a custear as políticas públicas, fiquem submetidas a um teto vinculado a variação inflacionária, desconsiderando as necessidades básicas da população. Atualmente a Constituição Federal exige que a União aplique anualmente, no mínimo, 13,2% da receita corrente líquida em saúde. E, em relação à educação, a Carta Magna

115

exige que o Estado invista pelo menos 18% da receita de impostos para a manutenção do ensino público.12 Essas regras permanecem com a PEC apenas para o exercício de 2017, sendo que a partir de 2018 os recursos mínimos aplicados em saúde e educação deixarão de ser vinculados a receita da União, passando a serem os mesmos do ano anterior corrigidos pela variação IPCA, ou seja, sem qualquer aumento real pelos próximos 20 anos. No caso da saúde, considerando que a população brasileira irá crescer 0,8% nos próximos anos e a população de idosos irá dobrar em 20 anos, seria necessário o aumento real do valor destinado à saúde, o que, todavia, não ocorrerá, portanto, em 2037 o gasto com saúde será o mesmo de 2017,

“Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: § 2º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados sobre: - no caso da União, a receita corrente líquida do respectivo exercício financeiro, não podendo ser inferior a 15% (quinze por cento); II – no caso dos Estados e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de que tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios; III – no caso dos Municípios e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e § 3º.” (CRFB, 1988). Já com a Emenda Constitucional nº 86 de 2015: o inciso I do § 2º do art. 198 da CRFB/2015 passou a ter o seguinte comando legal “Art. 2º O disposto no inciso I do § 2º do art. 198 da Constituição Federal será cumprido progressivamente, garantidos, no mínimo: I - 13,2% (treze inteiros e dois décimos por cento) da receita corrente líquida no primeiro exercício financeiro subsequente ao da promulgação desta Emenda Constitucional; II - 13,7% (treze inteiros e sete décimos por cento) da receita corrente líquida no segundo exercício financeiro subsequente ao da promulgação desta Emenda Constitucional; III - 14,1% (quatorze inteiros e um décimo por cento) da receita corrente líquida no terceiro exercício financeiro subsequente ao da promulgação desta Emenda Constitucional; IV - 14,5% (quatorze inteiros e cinco décimos por cento) da receita corrente líquida no quarto exercício financeiro subsequente ao da promulgação desta Emenda Constitucional; V - 15% (quinze por cento) da receita corrente líquida no quinto exercício financeiro subsequente ao da promulgação desta Emenda Constitucional.” (EC n. 86/2015). 12

116

como se a população brasileira permanecesse a mesma, inalterada, durante 20 anos.13 Como resultado, haverá um investimento per capita na saúde cada vez menor, já que a demanda da população irá aumentar, enquanto que as despesas primárias permanecerão as mesmas, o que consequentemente levará a uma precarização ainda maior do SUS. Somente a título de exemplo, caso a PEC 55/16 estivesse em vigor desde 2003, considerando as variações do IPCA e do PIB do período, a Saúde teria sofrido uma perda acumulada de R$ 433 bilhões de reais (DAVID, 2016). No que diz respeito à educação, com a PEC, nos termos do art. 104 do ADCT, as despesas mínimas com manutenção e desenvolvimento de ensino (MDE), previstos nos art. 212 da Constituição, a partir do exercício de 2017 ficarão limitados aos investimentos

mínimos

referente

ao

exercício

anterior,

corrigidos pelo IPCA, ou outro índice que venha lhe substituir.14 De acordo com a ONU “A projeção é que a população brasileira vai aumentar 20,8 milhões até 2030, alcançando 228,6 milhões de pessoas. Ela ficaria estável até 2040, para cair a 200 milhões em 2100.” (VALOR, 2015), a matéria completa encontra-se disponível no link: http://www.valor.com.br/internacional/4154720/crescimentodemografico-no-brasil-vai-desacelerar-m-2040-preve-onu. 14 A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei nº 9.394/96, traz em seu art. 70, como de manutenção e desenvolvimento do ensino as despesas realizadas com vistas à consecução dos objetivos básicos das instituições educacionais de todos os níveis, compreendendo as que se destinam a: I - remuneração e aperfeiçoamento do pessoal docente e demais profissionais da educação; II - aquisição, manutenção, construção e conservação de instalações e equipamentos necessários ao ensino; III – uso e manutenção de bens e serviços vinculados ao ensino; IV - levantamentos estatísticos, estudos e pesquisas visando precipuamente ao aprimoramento da qualidade e à expansão do ensino; V - realização de atividades-meio necessárias ao funcionamento dos sistemas de ensino; VI - concessão de bolsas de estudo a alunos de escolas públicas e privadas; 13

117

Em estudo técnico desenvolvido pelo consultor de orçamento e fiscalização financeira da Câmara dos Deputados, Marcos Rogério Rocha Mendlovitz, foi realizada projeção de gastos com MDE com a aplicação dos18% da receita líquida prevista pela constituição em comparação com a regra trazida pela PEC 55/2016, caso ela tivesse sido aprovada em 2010. A

tabela

apresentada

abaixo

mostra

a

projeção

realizada pela consultoria de orçamento e fiscalização da Câmara dos Deputados:

Da análise da tabela depreende-se que caso a PEC 55/2016 tivesse sido aprovada em 2010 a educação teria VII - amortização e custeio de operações de crédito destinadas a atender ao disposto nos incisos deste artigo; VIII - aquisição de material didático-escolar e manutenção de programas de transporte escolar.

118

perdido cerca de R$ 73,7 bilhões de reais, o que seguramente comprometeria a manutenção e desenvolvimento do ensino no país, portanto, é possível inferir que, a aprovação da emenda à Constituição certamente representará um retrocesso enorme na busca pelo ensino público e universal de qualidade. Em linhas gerais, a proposta de alteração do texto constitucional, não só congela os recursos aplicados em serviços fundamentais, como também reduz, proporcionalmente ao crescimento e envelhecimento da população, o investimento per capita da União em saúde e educação, aumentando a incapacidade do Estado de atender as demandas básicas da população. 4. Alternativas à PEC 55/2016

Uma das maiores críticas à PEC 55/2016 é o seu caráter seletivo, uma vez que as despesas primárias serão congeladas pelos próximos 20 anos, enquanto que os gastos com os juros da dívida pública não ficarão sujeitos ao novo regime fiscal. Nenhum país do mundo adotou uma política de austeridade financeira como a que o Brasil pretende adotar, sem limitar o gastos com a dívida pública, portanto, a PEC, da forma como é proposta, é uma solução tipicamente tupiniquim. O governo, ao invés de efetivar uma reforma tributária, está

realizando

uma

reforma

na

política

de

gastos,

desconsiderando que o Brasil ainda é um país subdesenvolvido, com uma desigualdade social gigante, muita pobreza, um dos 119

piores índices no mundo da educação, portanto, qualquer ação do governo de cortar gastos atinge os direitos sociais, com resultados desastrosos para as classes menos favorecidas (GENTIL, 2016). Nesse sentido, uma das alternativas à PEC seria a reforma tributária, como por exemplo, o imposto de renda, que poderia ter uma alíquota superior a 27,5%, podendo inclusive abarcar a distribuição de lucros e dividendos, o que seria plenamente possível, além de adequar a situação a realidade mundial, uma vez que o Brasil é o único país do mundo que não cobra imposto de renda sobre dividendos.15 Para se ter uma ideia, apenas com a tributação de dividendos poderia ser gerada uma arrecadação em torno de R$ 70 bilhões de reais por ano, ou seja, uma série de medias pelo lado da receita poderiam ser tomadas, mas foram postas de lado e hoje só se fala no teto dos gastos pelo governo. É importante ressaltar que aqueles que são mais castigados pela carga tributária são os trabalhadores de baixa renda, portanto, a proposta de aumentar a tributação seria em relação àqueles que não pagam impostos ou que possuem uma

“Uma receita de mais de R$ 43 bilhões ao ano. É esse o montante que o governo poderia arrecadar com a cobrança de imposto de 15% sobre lucros e dividendos recebidos por donos e acionistas de empresas. A estimativa é dos pesquisadores Sérgio Gobetti e Rodrigo Orair, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). (...) Os dados colhidos pelos pesquisadores mostram que os 71.440 brasileiros que ganham mais de R$ 1,3 milhão por ano declararam uma renda média de R$ 4,2 milhões e pagaram apenas 6,7% sobre toda a sua renda. Já as pessoas que ganham entre R$ 162,7 mil e R$ 325,4 mil pagaram em média 11,8%. (...)- Hoje, o que acontece é que um servidor público que ganha R$ 5 mil paga imposto de renda de 27,5%. Um grande empresário que recebe R$ 300 mil a título de distribuição de lucros e dividendos não paga nada.” (VILAR, 2015), disponível em: http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/09/14/imposto-sobre-lucros-edividendos-geraria-r-43-bi-ao-ano-diz-estudo. 15

120

capacidade econômica muito grande, desproporcional ao que eles pagam de tributo. Ademais, quando se tem um governo que não discute a possiblidade de aumentar os tributos para aqueles que possuem um grande poder aquisitivo, mas ao revés impõem uma emenda à Constituição que limita os gastos com a dívida primária, sem, contudo, limitar os gastos com os juros da dívida pública, fica evidente que não há qualquer compromisso com os direitos sociais, não há qualquer compromisso em combater a pobreza, desemprego, desigualdade social, além de inúmeros

outros

problemas

que

assolam

os

brasileiros

(VAZQUEZ,2016). Conclusão

A

PEC

55/2016,

caso

aprovada

pelo

Senado,

representará um retrocesso social sem precedentes, sobretudo na efetivação dos direitos sociais à saúde e educação, já que as despesas

primárias

ficarão

congeladas,

enquanto

que

a

população continuará crescendo e envelhecendo, portanto, o investimento per capita na efetivação destes direitos diminuirá ano após ano. 16

“En la última década, los derechos sociales, a saber, los derechos a la alimentación, a la salud, a la educación, a la vivienda, a la educación, al trabajo, a la seguridad social, han tenido un creciente protagonismo en los países iberoamericanos, en la doctrina de tratadistas y organismos de derechos humanos, así como también, aunque en menor medida, en la jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos (Corte IDH). Los derechos sociales han adquirido importancia tanto en el discurso político como en la práctica de los movimientos sociales, hasta el punto de obtener un creciente reconocimiento en los estratos judiciales.” (ARANGO, 2013, p.1-2). 16

121

É evidente que o país passa por uma severa recessão econômica, talvez uma das mais profundas da história brasileira, contudo, conforme analisado acima, o governo simplesmente desconsiderou alternativas ao corte de gastos, como a reforma tributária por exemplo, que poderia solucionar o problema do déficit público, sem sacrificar milhões de brasileiros pelos próximos 20 anos. Fica evidente que com a proposição do novo regime fiscal, por meio da PEC 55/2016, o governo simplesmente se esqueceu de que “primeiro devemos salvar os passageiros e depois o navio.” (KARNAL, 2016), isto é, não adianta nada salvar a economia se para isso milhões de brasileiros teriam que ter seus direitos sociais mitigados por duas décadas, por meio de um Estado mínimo, que se preocupa apenas com os lucros do setor financeiro. Por todo o exposto, o presente estudo procurou analisar os efeitos da PEC 55/2016 sobre a efetivação dos direitos à saúde e à educação de forma bastante genérica, objetivando contribuir em alguma medida com as discussões sobre o assunto, sem, evidentemente, ter a pretensão de apresentar respostas prontas e acabadas, mas que tenham o condão de ampliar em alguma medida os debates sobre o assunto, partindo do pressuposto de que as melhores soluções são construídas por meio do consenso e diálogo.

122

Referências ARANGO, Rodolfo. Los derechos sociales em iberoamérica: estado de la custion y perspectivas de futuro. Disponível em: < http://www.portalfio.org/inicio/archivos/cuadernos_electronic os/numero_5/1_%20Los%20derechos%20sociales%20en%20Ib eroam%C3%A9rica.pdf>. Acesso em: 03 de junho de 2013. BRASIL. Constituição (1988), Constituição da República Federativa do Brasil. 05 de outubro de 1988. Brasília. Disponível em: . Acesso em: 09 de novembro de 2016. BRASIL. Lei Complementar nº 101, de 2000. Institui a Estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal e dá outras providências. Disponível . Acesso em: 15 de novembro de 2016. BRASIL. Lei nº 9.394/96, de 1996. Institui as Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Disponível < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm>. Acesso em: 15 de novembro de 2016. BRASIL. Ministério da Fezenda. Glossário. http://www.orcamentofederal.gov.br/glossario1/glossario_view?letra=D, e http://www3.tesouro.fazenda.gov.br/contabilidade_govername ntal/downloads/Resultado_Primario_Resultado_Nominal.pdf, Acesso em 07 de outubro de 2016. CÂMARA DOS DEPUTADOS. CONSULTORIA DE ORÇAMENTO E FISCALIZAÇÃO FINANCEIRA (COFF).Estudo Técnico nº 12, de 2016 – Emenda à Constituição – PEC nº 241/2016.Brasília: Câmara dos Deputados, agosto/2016. FUNDAÇÃO FRIEDRICH EBERT STIFTUNG (FES). Austeridade e retrocesso. São Paulo, SP, 2016. 123

DAVID, Grazielle. PEC 241 é uma bomba contra os direitos constitucionais da população brasileira. Brasília: Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), julho de 2016. Disponível em < http://www.inesc.org.br/noticias/noticias-doinesc/2016/julho/pec-241-e-uma-bomba-contra-os-direitosconstitucionais-da-populacao-brasileira>. KARNAL, Leandro. TEMOS DE SALVAR OS PASSAGEIROS E NÃO O BARCO. 24 Brasil, Rio de Janeiro, p. 3, 11 de Outubro de 2016. MEIRA, Ana, CODES, Ana, BOSSI, Camilo e ARAUJO, Herton .Nota Técnica nº 30 – Quanto custa o Plano Nacional de Educaçáo...Uma estimativa orientada pelo custo aluno qualidade (CAQ).Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), outubro/2016. MOREIRA, Assis. Crescimento demográfico no Brasil vai desacelerar em 2040, prevê ONU. VALOR, julho de 2015. Disponível em: http://www.valor.com.br/internacional/4154720/crescimentodemografico-no-brasil-vai-desacelerar-em-2040-preve-onu. PEDROSO, Rodrigo. A União Europeia não vai cair, diz presidente das Eurocâmaras. Crescimento demográfico no Brasil vai desacelerar em 2040, prevê ONU. VALOR, julho de 2015. Disponível em: . PAIVA, Andrea Barreto de, MESQUITA, Ana Cleusa Serra, JACCOUD, Luciana e PASSOS, Luana. Nota Técnica nº 27 – O Novo Regime Fiscal e suas implicações para a Política de Assistência Social no Brasil. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), setembro/2016. VAZQUEZ, Daniel Arias. O Plano Temer/Meireles contra o povo: o Desmonte Social proposto pela PEC 241. VIEIRA, Fabíola e BENEVIDES, Rodrigo. Nota Técnica nº 28 – Os impactos do Novo Regime Fiscal para o financiamento do Sistema Único de Saúde e para a efetivação do direito à 124

saúde no Brasil. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), setembro/2016. VILAR, Isabela. Imposto sobre lucros e dividendos geraria R$ 43 bi ao ano, diz estudo. Agência Senado, setembro de 2015. Disponível em:< http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/09/14/i mposto-sobre-lucros-e-dividendos-geraria-r-43-bi-ao-ano-dizestudo>

125

ESTUPRO DE VULNERÁVEL: VIOLÊNCIA PRESUMIDA E CRIMINALIZAÇÃO DO AMOR JUVENIL Israel Quirino1 Márcia Auxiliadora Fonseca2 Resumo O presente artigo pretende discutir a criminalização do amor juvenil, pela disposição do artigo 217A do Código Penal Brasileiro que estende à prática sexual com menores de 14 anos o conceito de violência presumida, para fins de caracterização do crime de estupro de vulnerável. Em pesquisa realizada sobre gravidez reincidente em adolescentes, motivos e razões expressas pelas adolescentes atendidas em um hospital público de Belo Horizonte – MG., observou-se que existe, como prática social reiterada, a formação de unidades familiares juvenis, como união marital consentida, permanente e duradoura, embora informal, com menores de 14 anos, o que, tecnicamente, poderia se definir como crime. Pondera o alcance da presunção de violência nas relações afetivas precoces onde há, efetivamente, a segurança do amor conjugal juvenil. Palavras-Chave: Estupro de Vulnerável; Violência presumida; Amor juvenil

Introdução A sexualidade precoce não é novidade nos dias atuais. Sejam quais forem os fatores sociológicos que levam ao início da vida sexual cada vez mais cedo, não podemos olvidar que ao lado dessa manifestação de afeto juvenil existe uma onda de abusos e violações de crianças e adolescentes que devem ser reprimidos. Pela nossa lei, a prática de sexo com (entre) crianças e adolescentes não é regra, é exceção.

Prof. Me. Israel Quirino: Professor da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana (FUPAC). 2 Prof. Me. Márcia Auxiliadora Fonseca: Professora da Faculdade de Educação e Ciência de Contagem (FUPAC). 1

126

O presente artigo cuida de uma dessas muitas exceções: a formação de unidade familiar onde um dos consortes apresenta idade inferior ao limite legal tolerável. O que se pretende é discutir a figura jurídico-penal do estupro de vulnerável, quando a suposta “vítima”, menor de 14 anos, mantém em caráter de

consentimento e vínculos

duradouros, relações conjugais com o parceiro “ofensor”, de maior idade que ela. Discute-se,

à

luz

da

hermenêutica

jurídica

a

descriminalização da conduta, pelos elementos circunstanciais da convivência marital, sob pena de se criminalizar o amor juvenil, a constituição precoce da família ou a existência de união conjugal à margem da lei. Por evidente não se quer discutir nesse espaço a abominável prática da violência sexual (em qualquer idade) que deve ser reprimida por todos os meios, em todas as frentes. Em se tratando de crianças e adolescentes, tendo em vista a sexualidade precoce é um fenômeno social evidente, a questão deve ser enfrentada de maneira preventiva nos ambientes educacionais e familiares, com abordagem adequada, criando a cultura de respeito mútuo. As relações homoafetivas entre adolescentes até a idade tutelada pela lei penal (14 anos) também não foram objeto de abordagem

nessa

incursão,

embora

se

reconheça

como

fenômeno social relevante. No mesmo viés não se discute nesta incursão as práticas sexuais que configurem desvios de natureza comportamental, 127

como a pedofilia, mas recortar um ambiente onde crianças, embora tuteladas em lei por limites de idade, mantêm vida sexual ativa, em condições de aparente normalidade, em ambiência conjugal com parceiros duradouros e vínculos permanentes. Todavia,

não

se

quer

cerrar

fileiras

sobre

a

criminalização da prática sexual com menores de 14 anos, tipificada como crime pelo nosso Código Penal e deixar de ponderar sobre a existência de propósitos de formação familiar e convivência marital precoce, quando, em função da pouca idade do (s) parceiro(s), poder-se-ia ter materializado, por hipótese, o tipo penal de estupro de vulnerável.

2. Prática Sexual e União Afetiva Precoce Fonseca e Cadete (2016) em pesquisa realizada no ano de 2015, no Hospital Júlia Kubitscheck (HJK), na região do Barreiro, em Belo Horizonte - MG, adolescentes

apuraram que diversas

que apresentavam idade entre 12 a 16 anos,

mantinham com seus parceiros relações de união estável, permanência de vínculos maritais e gravidezes reincidentes, o que leva a crer, com segurança, que muitas dessas mãesmeninas iniciaram seus relacionamentos conjugais muito precocemente,

abaixo

da

“idade-penal”

prevista

para

caracterização do crime de estupro de vulnerável (14 anos). O Hospital Júlia Kubistchek (HJK) é um hospital público pertencente à Fundação Hospitalar de Minas Gerais (FHEMIG), 128

situado na capital mineira, que disponibiliza um espaço para o atendimento de adolescentes, conduzindo políticas de amparo a esta população, sendo referência regional no atendimento de gravidez em adolescentes, e referência estadual para gravidez de alto risco. Segundo Fonseca e Cadete (2016), observando o público alvo de atendimento nesta unidade de saúde, especificamente as mães-meninas, deduziram que o fenômeno social da formação da família antes da idade núbil consubstancia uma prática sexual consentida e corriqueira como conseqüência da união afetiva antes dos quatorze anos. Isso, a nosso sentir, não pode ser equiparado à posse sexual com violência, esta última afrontosa a todos os conceitos de liberdade, mas registrar que existe, em ambiente social hodierno, a formação precoce de unidades familiares com parceiros de tenra idade. As jovens mães atendidas na maternidade do Hospital Júlia Kubistchek, especificamente aquelas objetivo do estudo realizado por Fonseca e Cadete (2016), são reincidentes em gravidezes precoces, sendo que, grande maioria, apresenta situação familiar estável com seus parceiros, apesar da pouca idade. Torna-se necessário frisar que ao reconhecer a existência de uniões afetivas onde um dos parceiros é de pouca idade, não se está a consentir a sexualidade precoce ou aceitar como normal a posse sexual de crianças e adolescentes mediante violência ou qualquer outro meio insidioso que a permita, mas a

129

evidenciar um fenômeno social recorrente que é a manutenção de unidades familiares com mulheres abaixo da idade núbil. A esse sentimento Aleixo (2010) considera que a Lei 12.015/09, ao alterar a redação do Código Penal de 1940 e tipificar como “estupro de vulnerável” a prática sexual com menores

de

14

anos,

tenha

substituído

a

questão

da

moralidade pela tutela da dignidade e da liberdade sexual, mas ainda assim o legislador continuou adotando uma postura proibitiva e moralista sobre a sexualidade infanto-juvenil, partindo da consideração de que o exercício da sexualidade pelos menores de 14 anos é irregular, desviante e deve ser objeto de proibição. Na presente incursão não se cuida de reconhecer na normalidade de tais relações ou da prole existente gerada por mães-meninas a legalidade da prática sexual com crianças, mas discutir o alcance da criminalização dessas relações que, pela permanência dos vínculos, usufruem de certa tolerância da sociedade entorno, a ponto de não poderem ser vistas como crime.

3. Do Normativo Legal à Hermenêutica Jurídica No estudo em que se baseia a discussão que se propõe nesse artigo, desenvolvido por Fonseca e Cadete (2016) em um hospital da rede pública de Belo Horizonte – Minas Gerais se avaliou apenas a prática sexual de meninas, da qual resultou gravidez

adolescente

reincidente,

objeto

de

estudo

das 130

pesquisadoras. De tal forma que não fora analisada a possibilidade ou abrangência da paternidade adolescente ou mesmo a posse sexual de crianças do sexo masculino com idade abaixo de quatorze anos, que se passa a admitir também como criminosa, na leitura atual da lei penal que trata do assunto. Necessário se faz tal intróito, pelo fato de que em 07 de agosto de 2009 foi sancionada a Lei 12.015/2009, que entre outros dispositivos criou, no direito penal brasileiro, o tipo penal denominado “estupro de vulnerável”, que, em uma das suas formas, prevê como conduta delituosa a prática de sexo, consentido ou não, com menores de 14 anos (independente de gênero).

Houve

a

supressão

do

termo

“mulher”

costumeiramente adotado na lei penal de 1940 para se referir à posse sexual violenta ou fraudulenta. Antes da Lei 12.015/09, o texto original do Decreto-Lei 2.848/1940 (Código Penal) encerrava delitos distintos: o de estupro, no art. 213, o de posse sexual e atentado ao pudor mediante fraude (art. 215 e art. 216); e sedução, no art. 217, todos voltados exclusivamente para o gênero feminino. Art. 213 - Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça: (...) Art. 215 - Ter conjunção carnal com mulher honesta, mediante fraude: Art. 216 - Induzir mulher honesta, mediante fraude, a praticar ou permitir que com ela se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal: (BRASIL, 1940 -) grifamos.

131

A

única

possibilidade

de

envolvimento

do

gênero

masculino como vítima de crime de natureza sexual no Código Penal de 1940 era na tipificação do artigo 214 (Atentado Violento ao Pudor), onde aparece a palavra “alguém” a definir a possível vítima. Art. 214 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal (BRASIL, 1940).

Independente dessa particularidade de gênero, para configuração do delito de estupro o Código Penal de 1940 exigia, como elemento essencial à configuração do tipo penal, a violência real (física, moral) ou presumida e a grave ameaça e a conseqüente conjunção carnal. A definição do tipo penal se dá então, em decorrência de pressupostos expressos na lei de que houvesse, por parte do autor, a prática de ações que pudessem impedir a reação da vítima à investida do agressor (violência real ou ameaça grave) e onde a pouca idade ou discernimento da vítima era um dos fatores da definir a presunção da violência e mais ainda, a prática do ato sexual em si. Para fins legais havia, então, no Código Penal de 1940 a “presunção da violência” (estupro ficto) se a vítima fosse menor de 14 anos (art. 224, I) ou destituída de suas faculdades mentais (art. 224, II) ou, se, de qualquer forma, não pudesse manifestar seu consentimento ou oferecer resistência (art. 224, III): Art. 224. Presume-se a violência, se a vítima: a) não é maior de quatorze anos;

132

b) é alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância; c) não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência (BRASIL, 1940).

Os artigos 214 (atentado violento ao pudor) e 224 (violência

presumida)

do

Código

Penal

de

1940

foram

revogados pela lei 12.015/09, que cuidou ainda de dar nova redação aos artigos 213 (estupro) e 215 (violação sexual mediante fraude) e ainda tipificou, em separado, o ato sexual praticado com (ou contra) menores de 14 (quatorze) anos (consentido ou não), como ”estupro de vulnerável” atribuindolhe a severidade da pena (08 a 15 anos), o caráter de hediondo (inafiançável e de cumprimento da pena inicialmente em regime fechado) e a ação penal pública incondicionada, sem discutir a existência ou não de violência ou mesmo a presunção desta. Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

Para os fins penais, a partir da nova redação conferida ao artigo 217A, não se faz necessária a prática ou consumação do ato sexual, mas a de qualquer ato libidinoso. Estendeu ainda, no parágrafo primeiro do novel artigo 217A o alcance do tipo penal às pessoas portadoras de qualquer morbidade mental, ou incapaz de oferecer resistência ao ato indesejado. § 1o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

133

A preferência pela idade (14 anos) é uma particularidade sociológica, definida pelo legislador brasileiro como sendo a idade em que a criança não é capaz de manifestar seu consentimento ou assumir a integridade dos seus atos. Na legislação comparada verificamos que outros países adotam idades distintas para criminalização da prática sexual com crianças e adolescentes, variando de 12 a 18 anos. O Código Penal Argentino, por exemplo, delimita a idade de 13 anos e sanciona com punições bem mais amenas: Art. 119. Será reprimido con reclusión o prisión de seis meses a cuatro años el que abusare sexualmente de persona de uno u otro sexo cuando ésta fuera menor de trece años o cuando mediare violencia, amenaza, abuso coactivo o intimidatorio de una relación de dependencia, de autoridad, o de poder, o aprovechándose de que la víctima por cualquier causa no haya podido consentir libremente la acción (ARGENTINA, 2009).

Deste modo, basta a existência da relação íntima praticada com menor de 14 anos (fator idade), para que se configure o crime de estupro de vulnerável. A violência do ato passou a ser de presunção absoluta, sem ponderar qualquer circunstância que possa destituir a tipificação penal ou a descriminalização da conduta (consentimento da parte, por exemplo, ou até mesmo a mantença de vida em comum em situação conjugal de fato).

E é a aqui que se situa a

abordagem do presente estudo. Do mesmo modo em que suplantou o conceito de violência presumida, a norma legal e o entendimento dos 134

tribunais vêm no sentido linear de que, em se tratando de relações sexuais havidas com menores de 14 anos, inexistem situações que legitimam tal prática.

Assim tem decidido o

Superior Tribunal de Justiça (BRASIL, 2015a): [...] é absoluta a presunção de violência na prática de conjunção carnal ou outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos, de forma que o suposto consentimento da vítima, sua anterior experiência sexual ou a existência de relacionamento amoroso com o agente não tornam atípico o crime de estupro de vulnerável previsto no art. 217-A do Código Penal (RHC 59.974/TO, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma. DJe 28/08/2015).

A “presunção da violência” nunca foi elemento passivo na militância penal. A definição obtida na sociedade dos anos 1940, decerto veio se arrastando às modificações “libertárias” dos anos 1960 e, por fim, à maturidade precoce dos dias atuais. Com o advento da Lei 12.015/2009, já no fim da primeira década do Século XXI, a discussão quanto à suposta violência aparentemente foi

encerrada, adotando o legislador

o critério objetivo da idade para caracterização do delito, embora alguns doutrinadores e juristas ainda sustentem que o critério da idade traz, em si, a presunção da violência. Presunção absoluta no antigo art. 224, a, do CP: “a presunção de violência prevista no art. 224, 'a', do Código Penal é absoluta, sendo irrelevante, penalmente, o consentimento da vítima ou sua experiência em relação ao sexo” (STJ, AgRg no REsp 1382136 / TO, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, j. 03/09/2013).

135

Ao inovar em matéria penal, o legislador, naturalmente acompanha a evolução da sociedade, sendo a Casa Legislativa costumeiramente definida como “caixa de ressonância” a refletir os anseios da população. Por certo, o Direito não é uma ciência exata, assim como não é estática a vida em sociedade. Uma das definições aceitáveis para o Direito é ser um conjunto de regras que regulam

a

vida

de

determinado

grupo

social

em

um

determinado tempo e espaço. No

caso

específico

da

definição

do

“estupro

de

vulnerável” a motivação veio da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) sobre violência e redes de exploração de crianças e adolescentes, em 2003, instaurada com o fito de coibir a prática sexual com adolescentes na puberdade e investigar a prostituição infantil. Na exposição de motivos do Projeto de Lei do Senado 253/2004, que posteriormente viria a se tornar a Lei Federal 12.015/2009, o legislador explica os critérios de adoção da faixa etária de proteção e elementos de convicção que o levaram a proposição da norma: O constrangimento agressivo previsto pelo novo art. 213 e a sua forma mais severa contra adolescentes a partir de 14 anos devem ser lidos a partir do novo art. 217 proposto. Esse artigo, que tipifica o estupro de vulneráveis, substitui o atual regime de presunção de violência contra criança ou adolescente menor de 14 anos previsto no art. 224 do Código Penal. Apesar de poder a CPMI advogar que é absoluta a presunção de violência de que trata o art. 224, não é esse o entendimento em muitos julgados. O projeto de reforma do Código Penal, então, destaca a vulnerabilidade de certas pessoas,

136

não somente crianças e adolescentes com idade até 14 anos, mas também a pessoa que, por enfermidade ou deficiência mental, não possuir discernimento para a prática do ato sexual, e aquela que na pode, por qualquer motivo, oferecer resistência; e com essas pessoas considera como crime ter conjunção carnal ou praticar ato libidinoso, sem entrar no mérito da violência e sua presunção. Trata-se de objetividade fática. Esclareça-se que, em se tratando de crianças e adolescentes na faixa etária referida, sujeitos da proteção especial prevista na Constituição Federal e na Convenção da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, ratifica pelo Brasil, não há situação admitida de compatibilidade entre o desenvolvimento sexual e o início da prática sexual. Afastar ou minimizar tal situação seria exacerbar a vulnerabilidade, numa negativa de seus direitos fundamentais. Não é demais lembrar que, para a Convenção da ONUN, criança é toda pessoa até a idade de 18 anos. Entretanto, a considerar o gradual desenvolvimento, respeita-se certa liberdade sexual de pessoas entre 14 e 18 anos (BRASIL, 2004, s.p.).

A definição por faixa etária para caracterização da vulnerabilidade excluiu do alvedrio do juiz a mensuração da “presunção da violência” ou mesmo da suposição de capacidade de entendimento ou consentimento do (a) menor envolvido na relação sexual questionada. Não cabe mais discutir se houve ou não

houve

violência

ou

consentimento.

Predomina,

em

princípio, o fator etário a induzir a presunção absoluta e a definir o tipo penal diante da ocorrência da existência do ato de natureza sexual com o menor tutelado. Greco (2010, p. 513-514) leciona que [...] o núcleo ter,previsto pelo mencionado tipo penal, ao contrário do verbo constranger, não exige que a conduta seja cometida mediante violência ou grave ameaça. Basta, portanto, que o agente tenha, efetivamente, conjunção carnal, que poderá até

137

mesmo ser consentida pela vítima, ou que com ela pratique outro ato libidinoso. Na verdade, esses comportamentos previstos pelo tipo penal podem ou não terem sido levados a efeito mediante o emprego de violência ou grave ameaça, característicos do constrangimento ilegal, ou praticados com o consentimento da vítima. Nesse última hipótese, a lei desconsidera o consentimento de alguém menor de 14 (catorze) anos, devendo o agente, que conhece a idade da vítima, responder pelo delito de estupro de vulnerável" (GRECO, 2010, p. 513/514).

Assim, definitivamente, por força de lei, a prática sexual com menores de 14 anos é, sem dúvida, crime de estupro de vulnerável, independente das condições em que se deu o episódio, com ou sem violência, consentido ou não, já que, se considera para fins legais que a criança nesta idade não teria, supostamente, condições de discernir sobre a oportunidade ou consentir na prática sexual. No mesmo sentido é preciosa a lição do Ministro Rogério Schietti Cruz, do STJ, no julgamento do REsp nº. 1.480.881/PI no qual ensina:

De um Estado ausente e de um Direito Penal indiferente à proteção da dignidade sexual de crianças e adolescentes, evoluímos, paulatinamente, para uma Política Social e Criminal de redobrada preocupação com o saudável crescimento, físico, mental e emocional do componente infanto-juvenil de nossa população, preocupação que passou a ser, por comando do constituinte (art. 226 da C.R.), compartilhada entre o Estado, a sociedade e a família, com inúmeros reflexos na dogmática penal. A modernidade, a evolução moral dos costumes sociais e o acesso à

138

informação não podem ser vistos como fatores que se contrapõem à natural tendência civilizatória de proteger certos segmentos da população física, biológica, social ou psiquicamente fragilizados. No caso de crianças e adolescentes com idade inferior a 14 anos, o reconhecimento de que são pessoas ainda imaturas em menor ou maior grau legitima a proteção penal contra todo e qualquer tipo de iniciação sexual precoce a que sejam submetidas por um adulto, dados os riscos imprevisíveis sobre o desenvolvimento futuro de sua personalidade e a impossibilidade de dimensionar as cicatrizes físicas e psíquicas decorrentes de uma decisão que um adolescente ou uma criança de tenra idade ainda não é capaz de livremente tomar (BRASIL, 2015, s.p.).

Não obstante, ao tomar unicamente a faixa etária como elemento circunstancial definidor do tipo penal, o legislador pôs de lado as relações sociais precoces que se engendram apesar da lei (e a margem dela, já que não se pode admitir como legal casamento ou união estável com menores de 14 anos). Como justificar, então, que jovens mantenham entre si relações duradouras, inclusive com a constituição de prole, iniciadas na fase de vulnerabilidade? O caso julgado que deu o tom de jurisprudência no Superior Tribunal de Justiça, certamente não é um fato isolado na sociedade coronelista do interior do Brasil, onde ainda se dá a exploração sexual de crianças, não apenas como enredo de Jorge Amado para a obra Teresa Batista Cansada de Guerra3.

Teresa Batista Cansada de Guerra (1972) é um romance de Jorge Amado, que conta a história de uma menina de treze anos, que no interior do nordeste brasileiro foi vendida pela tia a um capitão pedófilo e brutal. Depois de ser violentada ela é mantida em cativeiro. A obra retrata a violência física e também sexual, a questão racial, social e, a submissão do povo diante da dominação da elite racista contra a mulher. 3

139

Os estudos realizados por Fonseca e Cadete (2016), na Capital Mineira, relatam que a particularidade de cada caso, no entanto, estará a exigir do Magistrado e

da sociedade

destinatária da norma, não apenas a aplicação fria da lei, mas a ponderação do seu alcance e objetivos. Dois são os pressupostos da norma válida: legitima uma prática social reiterada ou descreve um comportamento a ser seguido (normativo), contendo ímpetos e instintos. Ao entender que há, na sociedade atual, a formação conjugal com consortes adolescentes, a maneira de julgar e punir a transgressão à lei deve se dar sem ser tolerante com o desvio de conduta, mas ao mesmo tempo ser sutil a ponto de não promover a criminalização dos idílios juvenis, já que o amor (e a sua decorrência) não tem idade. Embora sejam estáticas as leis, a interpretação do Direito é fluida, adaptando-se às tendências sociais e corrigindo as distorções. As presunções absolutas, por mais que aceitas na ordem jurídica, não subsistem quando confrontadas com a realidade amorfa da sociedade e seus fenômenos. A discussão, que não se encerra nesta reflexão, ao contrário, mostra a pluralidade do Direito em uma sociedade cada dia mais eclética, dinâmica e surpreendente.

4. A formação precoce da unidade familiar Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2012) o número de adolescentes grávidas está crescendo 140

no país. De 2011 a 2012, o total de filhos gerados quando as mães tinham entre 15 e 19 anos quase dobrou: de 4.500 para 8.300. Nessa faixa de idade, 18% das mulheres já engravidaram ao menos uma vez. Em 2013, adolescentes de 10 a 14 anos deram à luz a 27.989 bebês, de 15 a 19 anos o número foi maior 532.002 (BRASIL 2013). Com isso, é perceptível e visível a importância em desenvolver projetos e políticas públicas voltadas à saúde integral do adolescente, especificamente tratando a sua sexualidade e inserção na sociedade e não apenas sedimentar proposições proibitivas. O relatório da Situação da População Mundial, elaborado pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA, 2014), aponta que: Nunca antes houve tantos jovens. É provável que nunca mais tenhamos tamanho potencial para o progresso econômico e social. A forma como atendemos as necessidades e aspirações desses jovens vai definir nosso futuro comum. A educação é fundamental. As habilidades e conhecimentos que as pessoas jovens adquirem devem ser relevantes para a economia atual e permitir que eles e elas se tornem inovadores, pensadores e solucionadores de problemas. Os investimentos em saúde, incluindo a saúde sexual e reprodutiva, também são fundamentais. Quando jovens conseguem fazer uma transição saudável da adolescência para a idade adulta, aumentam suas opções para o futuro (UNFPA, 2014, p. 2).

A Organização das Nações Unidas (ONU) e Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA, 2010) apontam que, devido ao desenvolvimento brasileiro, a taxa de natalidade entre mães adolescentes pode ser considerada alta, uma vez que 141

prevalecerem, nesse contexto, adolescentes pobres, negras e com menor escolaridade. Mencionam, também, que muitas dessas gravidezes “não foram planejadas e são indesejadas; inúmeros casos decorrem de abusos e violência sexual ou resultam

de

uniões

conjugais

precoces,

geralmente

com

homens mais velhos” (UNFPA, 2010, p. 1). Essas uniões conjugais de adolescentes com homens mais velhos, ou mesmo em faixa etária compatível, têm apresentado à sociedade um fenômeno relevante de formação familiar onde a convivência conjugal é considerada crime pela lei penal. O

Ministério

da

Saúde,

dentre

outras

orientações

sexuais, norteia ser [...] importante considerar adolescência e a juventude como processos complexos de emancipação, com fronteiras plásticas e móveis, que não se restringem à passagem da escola para o trabalho e envolvem três dimensões interdependentes: a macrossocial, na qual se situam as desigualdades sociais como as de classe, gênero e etnia; a dimensão dos dispositivos institucionais que reúne os sistemas de ensino, as relações produtivas e o mercado de trabalho e, finalmente, a dimensão biográfica, ou seja, as particularidades da trajetória pessoal de cada indivíduo (BRASIL, 2010, p. 46).

A

estrutura

de

Estado

na

orientação

sexual

do

adolescente e em apoio às meninas iniciadas sexualmente não tem sido suficiente para minimizar a ocorrência da maternidade precoce. No entanto, partindo dessas estruturas de suporte e reconhecendo ser cada adolescente singular e plural, vivendo em mundos diferentes, mas com sonhos e ideais iguais, em 142

meio a famílias ativas e outras irresponsáveis, em comunidades vulneráveis ou não, profissionais da saúde e da educação devem realizar com cuidado o processo educativo, adotando essa individuação e ultrapassando algumas fronteiras entre o legal e o social (FONSECA e CADETE, 2016). Não obstante, diante da severidade da legislação penal, casos específicos pressupõem interpretação da lei em um contexto social relevante, para a aplicação da norma penal não venha a criminalizar a existência do amor juvenil que, à sombra de toda a repressão, existe e se manifesta em filhos gerados por mães-meninas que não foram e não se consideram vítimas de estupro. Neste cenário, criminalizar as relações afetivas havidas entre

infantes,

se

por

um

lado

corrige

distorções

de

comportamento acaso existentes, por outro lado pode resultar em medidas punitivas e inibidoras da formação de unidade familiar ou na convivência conjugal duradoura em decorrências dessas relações. Oliveira, Volpe e Cuisse (2012), ponderam que [...] um rapaz que engravida uma menina de 13 anos hesitará em assumir a paternidade da criança, tendo em vista que, se assim o fizer, correrá o risco de ser preso acusado pelo crime de estupro de vulnerável, crime hediondo, com pena variável entre 8 e 15 anos de reclusão, aliada à causa de aumento de pena. Igual temor terá uma mulher de 18 anos que engravidar de um adolescente de 13 anos, eis que deixará de reivindicar a paternidade para sua criança, com receio de lhe acontecer algo no sentido de responder por crime em detrimento do ato sexual que praticou. O direito à filiação restará prejudicado em relação à intervenção do Estado, que condenará tal mulher ao delito de estupro de vulnerável.

143

Hodiernamente, casais se apaixonam precocemente. Há inúmeros relacionamentos públicos entre rapazes com 18 anos e meninas de 13 anos de idade dos quais resultam gravidez, por vezes indesejada, noutras totalmente desejadas. Porém, em diversas situações, o casal reside em conjunto, na mesma casa. Esse relacionamento poderia dar certo, todavia, em cumprimento ao contido no art. 217 A, o casal deve romper a relação, que poderia ser saudável e duradoura e dela originar uma família feliz.

Na pesquisa realizada por Fonseca e Cadete (2016), junto do Hospital Júlia Kubistchek (HJK), que serve de pano de fundo a este

artigo, em ambiente

de

hospital

público,

foram

entrevistadas 20 adolescentes, mas 4 não aceitaram gravar as entrevistas, sendo assim, essas 4 entrevistas não foram utilizadas, contabilizando 16 entrevistas. Das 16 adolescentes ouvidas, 10 engravidaram, pela primeira vez, entre 13 e 15 anos. As outras 6 engravidaram pela segunda gravidez entre 16 e 18 anos. Nenhuma adolescente trabalhava e todas pararam de estudar. Todas elas cursavam a segunda fase do Ensino Fundamental e somente uma chegou ao Ensino Médio após a gravidez. Tal constatação, em nosso ponto de vista não pode constituir uma generalização, a se concluir que a gravidez precoce reincidente e a sexualidade adolescente só venham ocorrer na população menos escolarizada. Embora não tenha sido alvo da pesquisa de Fonseca e Cadete (2016), percebe-se que não se pode, genericamente, atribuir à gravidez adolescente exclusivamente, a decorrência de abusos sexuais, mas reconhecer que determinados casos, há 144

sim, opção por constituição de lares conjugais duradouros, à margem da legislação civil e penal. No mesmo sentido, não se pode atribuir a ocorrência de gestação precoce apenas às meninas das classes menos favorecidas, sendo que há noutras camadas da população a ocorrência do fenômeno. Como afirmam Oliveira et al. (2012, p. 565), [...] estudos demonstraram que adolescentes instruídos são mais propensos a postergar a formação de família até o início da idade adulta, quando os riscos de uma gravidez são menores, e têm maior probabilidade de ter filhos mais saudáveis. A baixa escolaridade e baixa renda as tornam mais vulneráveis a uma gestação precoce, visto que a escola tem um papel preventivo importante, pois através dela são transmitidas informações sobre o corpo e também sobre métodos preventivos de gravidez.

Fonseca e Cadete (2016) se ativeram a estudar a gravidez adolescente

reincidente,

tomando,

portanto,

presença

de

amostra exclusivamente feminina, em um hospital da rede pública, portanto, oriunda de classes menos favorecidas. Com relação aos pais das crianças, verificou-se, no estudo, que se situavam em uma faixa etária próxima à das mães meninas, em intervalo de alguns anos a mais. No que tange à ocupação profissional, são diversificados os setores do mundo do trabalho, tais como: operador de telemarketing, operador de caixa de supermercado, lava-jato, mecânico, montador de colchão, vendedor, cortador de roupas e montador de bomba de combustível, entre outras, mas todos reconhecidos e presentes.

145

Em relação à escolaridade do casal, verificou-se que a gravidez resulta em interrupção dos estudos e a grande maioria sequer chegou a completar o Ensino Fundamental (FONSECA e CADETE, 2016). No entanto, relatam as pesquisadoras que ao ir-se ao encontro com as adolescentes para a coleta dos dados, percebeu-se que os companheiros estavam sempre presentes, mostrando interesse pelas adolescentes e o filho que estava para chegar. O que denota a existência de uniões permanentes a não a ocorrência de posse sexual violenta ou indesejada. Torna-se, incômodo, que diante do acesso livre ao conhecimento

e

à

informação,

ainda

ocorram

casos

de

gravidezes juvenis que, fatalmente, mudam os destinos dos adolescentes envolvidos. Lima e Correia (2015, p.158) afirmam que: Quem estranharia ou lamentaria que uma mulher com menos de 20 anos de idade engravidasse, nas primeiras décadas do século XX ou no período colonial? Do mesmo modo que a juventude, como categoria social, é um fenômeno datado, configurado a partir de alguns acontecimentos históricos recentes e próprios das sociedades industriais ocidentais, a percepção da gravidez na adolescência como um problema é um dado histórico contemporâneo, relacionado a algumas condições de possibilidade específicas. Dentre elas, a conversão da maternidade numa atividade que exige preparação e orientação especializadas, como resultado de um investimento do movimento higienista, na passagem do século XIX para o século XX.

O fenômeno histórico da gravidez adolescente, se nos assombra nos dias atuais, aos nossos antepassados soava como 146

absoluta normalidade. Na época do Brasil Colônia, segundo Del Priore (2012), engravidar aos 14 anos era normal, e mulheres mais “velhas”, com 19 anos, eram ditas como “titias”. Nossas bisavós se tornaram mães aos 12 a 15 anos. Essa pouca idade trazia riscos fisiológicos para o bebê e para a mãe, pois havia imaturidade

física

e

emocional

que

influenciava

os

relacionamentos: é um fato histórico reconhecido. Casos de desajustes conjugais devido à pouca idade da esposa não foram raros e revelam os riscos por que passavam as mulheres que concebiam ainda adolescentes. Há casos de meninas que, casadas aos doze anos, manifestavam repugnância em consumar o matrimonio (DEL PRIORE, 2012, p. 44).

No mundo contemporâneo, com tantos avanços em todas as dimensões do viver humano, a sociedade passou a exigir mais da mulher, que não apenas a função biológica do parir. Ao se conhecer uma jovem grávida aos 12, 13 anos de idade gerase um estado de choque, ou impactos negativos àquilo que tempos atrás era “normal” já que as mulheres se casavam no início da adolescência. O conflito de idade núbil e idade civil já há muito freqüenta os labirintos legais, pela natureza contratual do casamento. O aspecto da gravidez adolescente, no entanto, percorre

outros

caminhos,

o

da

saúde

materna,

o

da

convivência com o cônjuge e o rebento. Na visão de Oliveira et al. (2015, p. 16-22): A gravidez na adolescência tem sérias implicações biológicas, familiares, emocionais e econômicas, além das jurídico-sociais, que atingem o indivíduo isoladamente e a sociedade como um todo, limitando ou mesmo adiando as possibilidades de

147

desenvolvimento e engajamento dessas jovens na sociedade. Devido às repercussões sobre a mãe e sobre o concepto é considerada gestação de alto risco pela Organização Mundial da Saúde (OMS 1977, 1978), porém, atualmente postula-se que o risco seja mais social do que biológico.

Chama a atenção no trabalho de Fonseca e Cadete (2016), a

busca de respostas e apreensão do porquê as

adolescentes em tempos contemporâneos ainda engravidem de forma não planejada (ou optarem pela gravidez temporã), mesmo com tantas informações vinculadas à mídia televisiva, internet, nas escolas, e outros meios de comunicação. Por outro lado, nos desafia o dilema da sociedade atual de conviver com a circulação maior de informação, que acaba por ser elemento ativador da sexualidade precoce, ao mesmo tempo em que o Estado edita leis que querem reprimir o comportamento sexual do adolescente. 5. A lei e o tempo Em tempos pretéritos, o Código Penal de 1940 definia, no revogado artigo 217, o crime de sedução, que poderia ser mitigado,

a

ponto

de

extinção

da

punibilidade

com

a

possibilidade de o réu se casar com a vítima (art. 106, VII). Era o casamento “reparador” onde o autor recuperava a “honra” da vítima dando a ela o nome de casada. Não obstante, a redação original do artigo 217 do CP de 1940 já especificava uma idade mínima de 14 anos para a vítima do crime de sedução, passível de reparação pelo casamento. A prática sexual com mulher em idade inferior a 14 148

anos continuaria sendo crime de estupro, sem possibilidade de reparação pelo casamento (art. 213 c/c 224 do CP de 1940). Nesta esteira, a lei Civil “abonadora” sobreviveu até mesmo à reforma do Código Civil de 2003, que traz no artigo 1.520 a previsão do casamento “reparador”, ainda que a jovem estivesse abaixo da idade núbil (16 anos): Art. 1.520. Excepcionalmente, será permitido o casamento de quem ainda não alcançou a idade núbil (art. 1517), para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal ou em caso de gravidez.

Outros tempos, outras leis. Não que a sociedade tenha se tornado mais conservadora, mas pela necessidade de se proteger a criança da sexualidade dos adultos e suas perversidades. 6. Criminalização do Amor Juvenil 9:15 da Manhã. A jovem A., em avançado estado gravídico, encontra-se na sala de espera da maternidade. Seu rosto denuncia a sua tenra idade. Quase menina. Que idade tem? 14 – responde. Está grávida do segundo filho. Ao lado o pai K. de dezenove anos, é pura ansiedade. Solícito nos cuidados com a jovem esposa, mantém a mão entrelaçada à dela, externando nervosismo. Ambos portam alianças de compromisso, demonstram afeto mútuo.

O que aparentemente poderia ser apenas um ensaio de ficção é uma cena que se repete, não uma, mas reiteradas vezes nas maternidades do país. No entanto, a gravidez evoluída denota a ocorrência de um crime hediondo, embora a cena se resuma em uma demonstração afetuosa de carinho entre 149

jovens, uma relação marital precoce que se desenvolve, senão à margem, em flagrante afronta à lei. Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar

outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

Pelo artigo 217A do Código Penal Brasileiro, a definição de estupro de vulnerável prescinde a violência física, passando à presunção da prática delituosa pela pouca idade da parceira, desde que tal condição (a idade) seja conhecida pelo agente. Basta que o agente tenha conhecimento de que a vítima é menor de catorze anos de idade e decida com ela manter conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso, o que efetivamente se verificou in casu (fls. 1/2, 88/95 e 146/159), para se caracterizar o crime de estupro de vulnerável, sendo dispensável, portanto, a existência de violência ou grave ameaça para tipificação desse crime, cuja conduta está descrita no art. 217A do Código Penal.” (STJ, AgRg no REsp 1407852 / SC, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, j. 05/11/2013).

Ora, de acordo com o artigo 13 do ECA, os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente devem ser comunicados ao Conselho Tutelar. Assim, o atendimento pré-natal à gestante menor de 14 anos, em princípio, comporá a violência presumida que, em tese, deveria ser comunicada pela Unidade de Saúde ao Conselho Tutelar por caracterizar, por si, um crime hediondo (art. 1º, inciso VI da Lei 8.072 de 25 de julho de 1990).

150

Discutindo tal situação, ainda que de maneira hipotética, Oliveira, Volpe e Cuisse (2012), ponderam que Caso se aplique ao artigo 217-A uma interpretação meramente literal, poder-se-á chegar à absurda hipótese de se considerar como autor do crime de estupro um indivíduo de 18 anos que queira, por meio de casamento, constituir família com a menor de 14 anos que engravidou, ainda que haja o livre consentimento desta. Não se pode esquecer que o Código Civil, no artigo 1520, permite expressamente o casamento de quem ainda não alcançou a idade núbil, em caso de gravidez.

Ora, o artigo 1520 do Código Civil de 2003 tornou-se obsoleto após a edição da lei 12.015/2009 que define, nos dias atuais, o estupro de vulnerável em razão da idade. Por outro lado, há que se perquirir o valor social do “casamento reparador” nos dias atuais. Ainda nesse viés perverso, o parágrafo único do artigo 225 do Código Penal prevê ação penal pública incondicionada nos casos em que a vítima da violência sexual seja menor de 18 anos. Art. 225. Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública condicionada à representação. Parágrafo único. Procede-se, entretanto, mediante ação penal pública incondicionada se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável.

Pois bem, a cena de amor juvenil registrada à porta da maternidade, que abre esse tópico, embora se apresente como

151

manifestação de afeto e idílios da tenra idade, aos olhos da lei é um bárbaro delito. Será? O Estado de Direito nos obriga, peremptoriamente, ao cumprimento da lei. Sem a lei a sociedade padece. Colhemos dos ensinamentos de Rousseau, Locke e Hobbes, em tempos imemoriais, essa certeza. No

mesmo diapasão é

possível dizer que

sem a

hermenêutica jurídica, a lei é letra morta diante de uma sociedade em permanente mutação. Pois é neste sentido que as Cortes Judiciais vêm entendendo a inexistência de crime em relações consentidas cuja perenidade leva a constituição de núcleos familiares, senão duradouros, pelo menos estáveis.

APELAÇÃO CRIME. CRIMES SEXUAIS CONTRA VULNERÁVEIS. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. RELAÇÃO DE NAMORO ENTRE VÍTIMA E RÉU. RELATIVIZAÇÃO DO CONCEITO DE VULNERABILIDADE. ABSOLVIÇÃO MANTIDA. Os elementos de convicção constantes dos autos demonstram que a vítima (com 12 anos de idade) e o denunciado (com 18 anos de idade) mantiveram relacionamento amoroso e sexual por determinado período. Tal conduta, em tese, subsume-se ao disposto no art. 217-A do Código Penal. No entanto, a vulnerabilidade da vítima não pode ser entendida de forma absoluta simplesmente pelo critério etário o que configuraria hipótese de responsabilidade objetiva -, devendo ser mensurada em cada caso trazido à apreciação do Poder Judiciário, à vista de suas particularidades. Afigura-se factível, assim,

152

sua

relativização

nos

episódios

envolvendo

adolescentes. Na hipótese dos autos, a prova angariada revela que as relações ocorreram de forma voluntária e consentida, fruto de aliança afetiva, revestida de peculiaridades que permitem a relativização de consequência, a

sua vulnerabilidade. conduta descrita na

Como inicial

acusatória não se amolda a qualquer previsão típica, impondo-se a confirmação da absolvição do réu com base no art. 386 , III , do Código de Processo Penal . Afastada a tipicidade do fato imputado ao acusado, não há falar em conduta omissiva por parte da denunciada - mãe da vítima -, pelo que vai ratificado o decreto absolutório proclamado em seu favor. APELAÇÃO DESPROVIDA. (Apelação Crime Nº 70056571656, Oitava Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Naele Ochoa Piazzeta, Julgado em 18/12/2013)

Como sexualidade

discutido,

o

adolescente

tema e

da a

gravidez violência

precoce,

a

presumida

caracterizadora do estupro de vulnerável é uma linha tênue, que não pode ser definida unicamente pelo fator etário. Cabe ao Direito, com a parcimônia que o caso requer, conviver com a sociedade e mudanças. Por outro lado, à sociedade cabe discutir,

abertamente,

seus

entraves,

cercear

os

comportamentos censuráveis e punir eventuais transgressões. E, por fim, cabe sedimentar que a ciência jurídica, para consolidação da justiça, requer mais que a simples leitura do texto legal. Considerações Finais:

153

Embora se tenha como abominável a violência sexual em qualquer idade, a sociedade não pode fechar os olhos à existência

de

relações

afetivas

entre

adolescentes,

que

extrapolam as guaridas da lei penal. A sexualidade adolescente é ainda tabu para muitos pais e educadores. Casos de posse sexual mediante violência e abusos ocorridos com crianças e adolescentes são realidades a serem enfrentadas com leis rígidas e punições severas aos infratores, mas aberto a uma proposta educacional orientadora. Não se pode alicerçar apenas na lei penal a certeza da correção

dos

desvios

sociais.

No

mesmo

vértice,

o

endurecimento das leis penais não pode criminalizar fenômenos sociais que ocorrem sem dolo, em decorrência de fatores outros. Do que se discutiu até aqui podemos afirmar que nem toda gravidez adolescente resulta de atos de estupro de vulnerável, embora se conheçam mães-meninas com idades pueris. Reconhecer tais ocorrências e apartá-las do que é social e criminalmente reprimível talvez seja o mais agudo desafio que se apresenta aos juízes e tribunais. A esses, que Deus conceda a sabedoria.

154

Referências ALEIXO, Klelia Canabrava. Problematizações sobre o estupro de vulnerável em face do princípio da proteção integral. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 17, n. 209, p. 08-09, abr., 2010. ARGENTINA, 2009. Código Penal de la República Argentina. Disponível em Acesso em 13. Jul. 2016. BRASIL, 1940. Decreto-Lei 2.848 – Código Penal. Disponível em Acesso em 16 jun. 2016. BRASIL, 2004. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado 253/2004. Disponível em Acesso em 15 jun. 2016. BRASIL, 2009. Lei Federal 12.015/09, disponível Acesso em 16 jun. 2016.

em

BRASIL, 2013. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Crime Nº 70056571656, Oitava Câmara Criminal. Disponível em Acesso em 16 jun. 2016. BRASIL, 2013.a. Superior Tribunal de Justiça. STJ, Agravo Regimental no Recurso Especial 1407852/SC (2013/03332921) Disponível em Acesso em 15 jun. 2016. BRASIL, 2013.b. Superior Tribunal de Justiça – STJ. Acórdão Agravo Regimental no Recurso Especial 1382136 / TO 155

(2013/0155036-3) Disponível em Acesso em 15.jun. 2016 BRASIL, 2015, a. Superior Tribunal de Justiça - STJ – Acórdão no Recurso em Habeas Corpus Nº 59.974 TO (2015/0124724-7). Disponível em Acesso em 15.jun. 2016 BRASIL, 2015,b. Superior Tribunal de Justiça – STJ. Informatico nº 568. Periodo 3 a 16 de setembro de 2015. Disponível em Acesso em 15 jun. 2016 FONSECA, Márcia Auxiliadora e CADETE, Matilde Meire Miranda: Gravidez reincidente em adolescentes: uma revisão teórica, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (abril-junio 2016). Disponível em < http://www.eumed.net/rev/cccss/2016/02/gravidez.html> Acesso em 13.07.2016 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 7. ed. Niterói: Impetus, 2010. v. III, p. 513/514. OLIVEIRA, Dalva Lelis de; Volpe Luiz Fernando Cassilhas; CUISSI, Luis Augusto. os delitos de estupro e estupro de vulnerável e a possibilidade de relativização da vulnerabilidade sexual do art. 217-a do código penal pátrio. In: Judicare – Revista Eletrônica da Faculdade de direito de Alta Floresta – Volume 3 Número 3, 2012. Disponível em Acesso em 13.07.2016

156

PROCESSO DE EVOLUÇÃO DO DIREITO FALIMENTAR NO BRASIL Micheline Nepomuceno1 Michele Aparecida Gomes Guimarães2

Resumo O presente artigo se destina à análise da trajetória evolutiva do Direito Falimentar Brasileiro. Nesse compasso, busca-se abordar as características da legislação falimentar no Brasil, tendo por enfoque as mudanças e os avanços do escorço legislativo. Deste modo, tem-se por objetivo geral identificar a evolução do Direito Falimentar no Brasil, nos períodos colonial, monárquico e republicano. Os objetivos específicos do levantamento são: abordar o conceito de falência e apontar mudanças na legislação brasileira, ressaltando alguns avanços. No decorrer do desenvolvimento do tema proposto, verificou-se as peculiaridades do Direito Falimentar em cada período, as alterações ocorridas na legislação destinada à falência e o avanço representado pela Lei n°. 11.101/2005. Esse avanço foi expresso pela preocupação, por parte dessa Lei, com a recuperação judicial da empresa, buscando proteger os trabalhadores e manter a atividade econômica. Tal preocupação constituiu uma inovação legislativa, pois de modo geral, as leis falimentares anteriores se preocupavam principalmente com os credores. A análise histórica do Direito Falimentar demonstra que este, assim como o Direito, de modo geral, não é alheio ao contexto histórico no qual se insere e nem às transformações sociais delineadas ao longo dos tempos. Assim, surge a necessidade de alterações no ordenamento jurídico, visando a sua adequação à determinada estrutura política, econômica e social.

Palavras-Chave: Direito Falimentar. Falência. História. Lei n°. 11.101/2005.

Introdução Aluna do Curso de Direito da Universidade Presidente Antônio Carlos (UNIPAC), de Mariana, MG. 2Mestre em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável pela Escola Superior Dom Helder Câmara. Advogada e Consultora Jurídica militante nas áreas do Direito do Consumidor, Civil, Trabalhista, Ambiental, Administrativo e Previdenciário. Assessoria Jurídica em órgãos da Administração Pública. Professora da Universidade Presidente Antônio Carlos de Mariana. Tutora do curso de Graduação em Administração Pública do Centro de Educação à Distância (CEAD) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). 1

157

O presente artigo que é fruto de pesquisas realizadas a partir

da

Disciplina

Direito

Empresarial

na

Faculdade

Presidente Antônio Carlos de Mariana, tem por escopo analisar a trajetória evolutiva do Direito Falimentar ou Falencial brasileiro. Nesse desiderato, verifica-se que, ao longo do tempo, a legislação falimentar brasileira passou por várias mudanças, buscando se adequar aos contextos políticos e socioeconômicos nos quais estava inserida. A escolha do tema se justifica por sua importância na atualidade, diante da vigência da Lei n°. 11.101/2005, a qual introduziu várias inovações no âmbito do Direito Falimentar no Brasil, como: a extinção da concordata e a possibilidade de recuperação judicial da empresa, visando a proteção dos trabalhadores e a manutenção da atividade econômica. Considerando-se que o tema trata da evolução do Direito Falimentar, levanta-se a seguinte problematização: até que ponto a Lei n°. 11.101/2005 representa uma evolução no âmbito do Direito Falencial no Brasil? A partir de tal questionamento, tem-se como hipótese o fato de que, tal evolução é expressa pela preocupação com a função social e econômica da empresa, ao contrário das leis anteriores que, de modo geral, mantinha em destaque o interesse dos credores. O objetivo geral deste trabalho é abordar a evolução do Direito Falimentar brasileiro, nos períodos colonial, monárquico e republicano, ao passo que os objetivos específicos são apresentar as nuances do conceito de falência e identificar 158

algumas

mudanças

na

legislação

falimentar

brasileira,

realçando-se avanços legislativos. A metodologia aplicada neste estudo consiste em uma pesquisa documental e bibliográfica de natureza qualitativa, tendo por base a consulta a bibliografias específicas, como livros, artigos e textos, impressos ou extraídos de sites da internet. Segundo Minayo (2001), o método qualitativo trabalha com uma realidade que não pode ser quantificada, como crenças, valores, aspirações, significados. Quanto à bibliografia consultada, destaca-se a contribuição de autores como: Sousa (2008) e Negrão (2015) para a abordagem acerca da história do Direito Falimentar no Brasil, com ênfase nas inovações trazidas por várias leis destinadas à falência. Por meio do desenvolvimento do tema proposto, o artigo em questão procura contribuir para a discussão da importância da análise histórica para o estudo do Direito Falimentar para a compreensão sistêmica dos institutos falimentares no contexto hodierno.

2. Trajetória Histórica Do Direito Falimentar Brasileiro

De acordo com Fulgêncio (2007), o conceito de Direito Falimentar

ou

Falencial

foi

modificado

pela

Lei

n°.

11.101/2005, conhecida como Lei de Falências. Referindo-se a tal conceito, antes da vigência dessa Lei, Santos (2001) o define como um complexo de normas que regulamentam tanto a 159

falência quanto a concordata3, regulando a condição, a responsabilidade, as obrigações do falido e os direitos dos credores. Todavia, com o advento da supracitada Lei, a concordata foi extinta e surgiu a possibilidade de recuperação judicial4, criando condições para que a empresa devedora pudesse enfrentar suas dificuldades financeiras. Essa modificação representou apenas uma das várias mudanças ocorridas no decorrer da trajetória evolutiva do Direito Falimentar no Brasil. Para conhecer e compreender tais mudanças, é feita uma abordagem da história desse Direito, do período colonial à contemporaneidade. Mas, primeiramente fazse necessária a análise da origem do termo “falência” e do Direito Falimentar. 2.1. Origem do significado da palavra “falência” e do Direito Falimentar Conforme Negrão (2015), o vocábulo “falência” tem origem no termo latino “fallere”, que significava faltar com o prometido, enganar, expressando a ideia de falha ou omissão. Essa ideia se encontra explícita no significado jurídico da palavra “falência”, isto é, referindo-se ao não cumprimento, por parte do devedor, de suas obrigações financeiras. A partir disso, Direito à prorrogação, em caso de necessidade, dos prazos de vencimento das obrigações. COELHO, Flávio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. Direito de Empresa, 2011, p.27. 4 Constitui o processo que procura tornar viável a superação da situação de crise econômica financeira da empresa devedora, com o intuito de permitir a manutenção do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores. Busca-se, assim, preservar a atividade econômica e a função social da empresa. FULGÊNCIO, Paulo. Glossário Vade Mecum. Recuperação Judicial, 2006, p.537. 3

160

“falência” se tornou, segundo Sousa (2008), um termo jurídico que expressava a impossibilidade culposa do devedor cumprir suas obrigações, tendo em vista sua insuficiência financeira ou patrimonial. Verifica-se então, que o falido é passível de culpa. Porém, nem sempre o dolo ou culpa é do devedor, pois, como aduz NEGRÃO (2015, p.42) sua “situação pode decorrer de diversos fatores

econômicos

ou

mesmo

de

sua

momentânea

instabilidade para a prática da atividade empresarial, sem que sua intenção seja fraudar seus credores”. O instituto jurídico da falência teve origem no Direito Romano, por meio da autorização da denominada missio in bona, pela qual o credor entrava na posse de todo o patrimônio do devedor. Este, no entanto, não era destituído de sua propriedade, mas privado de sua administrá-la. Desta forma, o patrimônio consistia em um penhor em benefício dos credores. Negrão (2015) alerta para o fato de que, essa característica é semelhante ao atual Direito Falimentar brasileiro, de acordo com o qual o desapossamento não representa a perda da propriedade, mas da administração dos bens, por parte do devedor. Segundo Negrão (2015), a missio in bona era aplicada a qualquer tipo de devedor, uma vez que o Direito Romano não previa um sistema próprio para os comerciantes. Apenas na Idade Média, o Direito Comercial surge como disciplina distinta do Direito Romano. Campos; Bainha (2014) ressaltam que, nesse período, diante do desenvolvimento do comércio marítimo 161

das cidades italianas, a falência era considerada um crime grave. E é no cenário do aparecimento do Direito Comercial, que se originou o Direito Falimentar brasileiro. 2.2. Direito Falimentar no Brasil: das Ordenações Afonsinas à nova Lei de Falências Enquanto colônia de Portugal, entre o final do século XV e o início do século XIX, o Brasil estava submetido ao ordenamento jurídico da metrópole. Nos referidos séculos, vigoraram três Ordenações no Reino Português, quais sejam: Afonsinas; Manuelinas e Filipinas. Considerando a influência do Direito Italiano sobre essas Ordenações, Campos e Bainha (2014) afirmam que elas eram extremamente rígidas com os devedores. Negrão (2015) afirma que, é inexata a data do início da vigência das Ordenações Afonsinas, admitindo-se o ano de 1447 como o de sua aprovação. No que diz respeito à falência, tais Ordenações previam que, se o devedor prometesse a seu credor pagar-lhe uma dívida em um determinado tempo e, passado esse prazo, a dívida não fosse paga, o devedor seria preso. Em 1521, as Ordenações Afonsinas, no interior de seu processo de revisão por ordem do Rei D. Manuel I, passaram-se a se denominar Ordenações Manuelinas, as quais dispunham de “poucas regras a respeito de execução por dívidas singulares ou coletivas [...].” (NEGRÃO, 2015, p. 46), limitando-se a 162

regulamentar o período de um mês que se seguia à quebra5 de um devedor, para que se pudesse penhorar e executar seus bens, caso a dívida não fosse paga naquele interregno. As Ordenações Manuelinas foram substituídas pelas Ordenações Filipinas, em 1603, no cenário da União Ibérica (1580-1640):

fase

em

que

o

Reino

Português

e,

consequentemente o Brasil, foram governados por monarcas espanhóis.

Como

aponta

Negrão

(2015),

as

Ordenações

Filipinas dispunham de regras claras a respeito da falência. Entre tais regras, figuravam: a pena de degredo para galés (trabalhos forçados); autorização para a apreensão, arrecadação e arrolamento dos bens do devedor; proibição de hospedagem, abrigo e ajuda ao falido; pena de degredo para a falência culposa,

decorrente

de

jogo

ou

gastos

excessivos;

a

possibilidade de reorganização da empresa, por aqueles que caíram na pobreza sem culpa e a pena de morte natural6 ao devedor fosse ou não comerciante, que não pagasse sua dívida. Ainda no que se refere ao Direito Falimentar na época da Colônia, pode-se destacar o Alvará de 1756, decretado por Marquês de Pombal, então Primeiro-Ministro de Portugal. Conforme Campos e Bainha (2014), esse Alvará previa que o devedor comparecesse à Junta Comercial para declarar seus Na linguagem das Ordenações do Reino, era utilizada a palavra “quebra”. O termo falência seria utilizado apenas no Alvará de 1756. SOUSA, Douglas Cavallini de. Os avanços da nova lei de falências. In: Âmbito Jurídico. Rio Grande, XI, n. 52, abr./ 2008, p.1. 6 Nas Ordenações Filipinas, a morte natural era assim denominada para se distinguir da morte civil, isto é, da privação dos direitos civis. A pena de morte natural se caracterizava por várias formas: da execução sem tortura até a chamada morte cruel, com a utilização de castigos corporais. NEGRÃO, Ricardo. Manual de Direito Comercial e de Empresa: recuperação de empresas e falência, 2015, p.47. 5

163

bens, a fim de que os credores fossem convocados: 90% desses bens era empregado para saldar a dívida com os credores e 10% era destinado à sobrevivência do devedor. Sob as três Ordenações do Reino e o Alvará de 1756, pode-se verificar que o Direito Falimentar se caracterizava por um rigor excessivo com os devedores, em caso de falência, prevendo para eles penas que variavam entre a prisão até a morte, com ou sem a utilização de tortura. Não obstante o rigor, nota-se certa preocupação com a condição do credor, a exemplo do auxílio previsto nas Ordenações Filipinas, ao devedor que não era culpado por suas dificuldades financeiras. Em 1808, no contexto

do início do processo de

independência do Brasil, com a chegada da Família Real Portuguesa, o Brasil adotou o Código Comercial Francês7. Segundo Taddei (2002), após a independência, uma comissão de comerciantes apresentou à Assembleia Legislativa um projeto de Código Comercial, do qual originou o primeiro Código Brasileiro: Código Comercial (Lei n°. 556, de 25 de junho de 1850), inspirado nos Códigos de Comércio de Portugal, da França e da Espanha. O Código Comercial de 1850 acolhia o sistema da suspensão de pagamentos para a caracterização da falência. Tal Código sofreu várias alterações, entre as quais pode-se destacar Também conhecido como Código Napoleônico, o Código Comercial francês consiste em um conjunto de regras especiais para os devedores insolventes, prevendo a punição para esses devedores. CAMPOS, Jonas Geovani; BAINHA, Adriana. Lei no 11.101/2005 – lei de falências e recuperação de empresas e os efeitos sobre a sociedade em geral, inclusive para os empresários. In: Revista Borges. Estudos Contemporâneos em Ciências Sociais e Aplicadas, 2014, p.41. 7

164

as

trazidas

pelo

Decreto

n°.

3308/1864,

que

concedia

moratória8 de sessenta dias e o Projeto dos Processos de Falência, apresentado em 1866, por Nabuco de Araújo, então Ministro da Justiça. Negrão (2015) enfatiza as inovações contidas nesse projeto, como: a instituição de liquidadores juramentados em todas as praças comerciais do Império; a nomeação do curadorfiscal, que deve administrar a falência; supressão das funções de

depositário

e

administradores

da

massa

falida,

anteriormente prevista no Código de 1850, que passariam a ser exercidas pelos liquidadores; introdução da concordata por abandono, isto é, a cessão, por parte do devedor, de todos os seus bens ou parte dele para se livrar dos efeitos da falência. Alguns pontos recomendados pelo projeto de Nabuco de Araújo foram incorporados no Decreto Legislativo n°. 3065/1882, inclusive a concordata por abandono. Pode-se considerar que, mediante a moratória e a concordata por abandono, a legislação falimentar brasileira no cenário do regime monárquico, demonstrou uma preocupação em conciliar os interesses dos devedores e dos credores. Logo após a proclamação da República (1889), foi criado o Decreto n°. 917/1890, o qual introduziu formas preventivas de decretação da falência, como a concordata preventiva9. Mas, o Decreto em questão foi desacreditado devido a fatores como: Prorrogação do prazo para pagamento de uma dívida. JURIS WAY. Moratória, 2006, p. 1. 9 Tem por objetivo prevenir a decretação da falência do devedor. Uma vez concedida, a concordata preventiva impede a decretação da falência, ressalvada a hipótese de rescisão de concordata. BOARIN, Lucas. Concordata judicial e suas modalidades. In: Jus Brasil, 2014, p.1. 8

165

os

meios

preventivos

previstos

no

Decreto

facilitava

o

afastamento, por parte dos devedores, da decretação da falência; a crise econômica decorrente do Encilhamento10; a autonomia excessiva dos credores; entre outros. Além dos credores, os devedores também tiveram culpa pelo descrédito do referido Decreto, “[...] pela impunidade que se beneficiaram.” (NEGRÃO, 2015, p.50). Em 1902, foi sancionada a Lei n°. 859 que, de acordo com Campos e Bainha (2014), previa a escolha de um síndico e de uma comissão fiscal, organizada pela Junta Comercial, por meio de quarenta síndicos listados no Distrito Federal. Esses síndicos receberam a alcunha de Ali Babás11 e a nova Lei se tornou objeto de severas críticas. Negrão (2015) explica que, diante disso, foi necessária a expedição de um novo regulamento das falências, introduzido pelo Decreto n°. 4855/1903, também objeto de críticas. Em 1908, Afonso Pena, então presidente da República, sancionou a Lei n°. 2024, que vigoraria até 1929. Entre as inovações dessa Lei, pode-se destacar: a introdução do Ministério Público como curador das massas falidas, porém o órgão ministerial estava proibido de requerer a falência e de receber comissões ou porcentagem por conta da massa falida e o estabelecimento de duas concordatas: a preventiva e a concordata na falência Crise ocorrida em 1890 e que teve origem na política econômica de Rui Barbosa, então ministro da Fazenda. Essa política permitiu que os bancos emitissem grandes quantidades de dinheiro, tendo em vista estimular a industrialização. Tais emissões provocou o aumento da inflação. FLORES, Moacyr. Dicionário de História do Brasil, 2008, p.212. 11 Em alusão ao conto “Ali Babá e os quarenta ladrões”. NEGRÃO, Ricardo. Manual de Direito Comercial e de Empresa: recuperação de empresas e falência, 2015, p.50. 10

166

(posteriormente

denominada

concordata

suspensiva).12

O

Decreto n° 5.746/1929 introduziu poucas alterações à Lei n°. 2024. Pelo o que foi exposto acerca do Direito Falimentar nas primeiras décadas do regime republicano, ou seja, no período conhecido como Primeira República ou República Velha (18891930), percebe-se que a legislação destinada à falência era frequentemente

alterada

para

se

adequar

ao

contexto

econômico ou superar críticas. Em 1943, no cenário da ditadura de Getúlio Vargas, também

conhecida

como

Estado

Novo

(1937-1945),

foi

publicado um projeto de Lei de Falências, que resultou no Decreto n°. 7661/1945. Comparado à legislação vigente na República Velha, tal Decreto teve longa duração, pois vigorou por 60 anos. Segundo Sousa (2008), o Decreto n°7661/1945 fortaleceu os poderes do juiz, reduzindo a influência dos credores e fez com que as concordatas preventiva e suspensiva perdessem sua natureza jurídica de contrato, tornando-se um benefício concedido pelo Estado, por intermédio do magistrado ao devedor. Conforme o artigo 156 do supracitado Decreto, o devedor poderia

prevenir

a

falência,

requerendo

a

concordata

preventiva, desde que ofereça aos seus credores, por saldos de seus créditos, o pagamento mínimo (parágrafo 1°) de: 40% à Concedida ao longo do processo falimentar, com o objetivo de suspender a falência e estabelecer a concordata, com as vantagens e efeitos que proporciona ao comerciante um estado temporário de insolvência, procurando evitar os efeitos da falência. BOARIN, Lucas. Concordata judicial e suas modalidades. In: Jus Brasil, 2014, p.1. 12

167

vista (inciso I) ou 60% a prazo, o qual não pode ultrapassar dois anos (inciso II). O devedor também poderia requer ao juiz a suspensão do processo de falência, mediante a concessão da concordata

suspensiva.

Nesse

caso,

como

estabelece

o

parágrafo único do artigo 177, o devedor seria obrigado a oferecer aos credores, por saldo de seus créditos, o pagamento mínimo de: 35% a vista (inciso I) ou 50% a prazo, que não deve exceder de dois anos (inciso II). Em

sua

abordagem

acerca

da

transformação

da

concordata em um ato processual sujeito à análise e decisão de um juiz, Sousa (2008) ressalta a mudança promovida pelo Decreto

n°7661/1945

no

sistema

tradicional

da

época,

impedindo que a concessão de favor ficasse na dependência da vontade dos credores. Desta maneira, procurava-se evitar os acordos extrajudiciais, considerados uma violação do princípio da isonomia que deveria existir entre os credores. Nota-se que, apesar de submeter a vontade dos credores à decisão do magistrado, a Lei de Falências de 1945 tinha por principal preocupação satisfazer os credores às custas dos bens dos devedores. Conforme Gardino (2012), isto ocorria por meio do

encerramento

das

atividades

da

empresa,

sob

um

procedimento eminentemente liquidatório. Assim, como bem aponta Sousa (2008), era inviável a recuperação da empresa falida, provocando sérias consequências para a ordem social, como: o desemprego; a perda de renda; a queda na arrecadação de impostos e do Produto Interno Bruto (PIB).

168

As propostas de reforma da Lei de Falências de 1945 demonstraram que esta se encontrava ultrapassada no quadro da expansão da economia de mercado e da modernização dos processos de produção. Essa expansão foi favorecida pelo neoliberalismo13,

mediante

a

redução

das

barreiras

alfandegárias e da diminuição da intervenção do Estado na área econômica. Com a adoção dos princípios neoliberais pelo governo brasileiro, em meados da década de 1990, intensificou-se a discussão sobre a urgência de reforma do Decreto de 1945. Conforme Negrão (2015), em 1992 foi apresentado o primeiro anteprojeto a respeito do tema e que continha entre outros postulados: a introdução de fórmulas de recuperação da empresa; revisão dos pressupostos referentes à concordata e à falência; reelaboração dos fundamentos para requerimento da falência,

com

inovações

positivas;

novo

sistema

de

administração da massa falida e disciplina das liquidações, tendo em vista sua aceleração e segurança. Do anteprojeto de 1992, originou-se o Projeto de Lei n°4376 que se destinava a regular a falência, a concordata preventiva e a recuperação das organizações empresariais que exercem atividade econômica regida pelas leis comerciais. Sousa (2008) afirma que esse Projeto visava a implementação de novas regras, com o intuito de adequar o Direito Falimentar O neoliberalismo ou ideologia neoliberal defende a pouca intervenção do governo no mercado de trabalho, a política de privatização de empresas estatais, a livre circulação de capitais internacionais e ênfase na globalização, etc. Por meio dessas medidas, o neoliberalismo propõe a formulação de políticas destinadas ao aumento da produtividade. SIGNIFICADOS. O que é neoliberalismo, 2011, p.1. 13

169

à economia moderna, pois a Lei de Falências de 1945 tornava inviável a superação da crise econômica sofrida pela empresa devedora. Essa inviabilidade é explicada por Sousa (2008) pelo fato de que o Decreto de 1945 se restringia ao ajuste da relação entre devedor e credores, não levando em conta o cenário socioeconômico do país no tratamento do processo falimentar, impedindo

o

restabelecimento

de

uma empresa

que

se

encontrasse em dificuldades financeiras, voltando a produzir e a fomentar a economia. O Projeto de Lei n°. 4376 tramitou na Câmara dos Deputados por cerca de 10 anos. De acordo com Negrão (2015), em 1995, o texto do Projeto, que já continha várias emendas, foi submetido à apreciação, por parte de uma comissão especial constituída pelo Presidente daquela casa legislativa. Em 1999 o Projeto foi encaminhado ao plenário, onde aguardou votação. Nesse momento, o texto do Projeto não se refere à falência e à concordada, mas apenas aos novos institutos chamados recuperação judicial e liquidação judicial, aplicando-se às sociedades comerciais e às pessoas físicas que exerçam atividade econômica. Em 2003, o Projeto, sob n°71, foi aprovado na Câmara dos Deputados, após sofrer “alterações na forma de cinco substitutivos [...].” (NEGRÃO, 2015, p.54). Encaminhado ao Senado, o texto passou por modificações em sua estrutura. Aprovado no Senado, em 2004, o texto modificado retornou à Câmara dos Deputados, onde foi aprovado, vindo a ser 170

sancionado, em 2005, como Lei n°11.101 que traz inovações, como a extinção da concordata e a criação da recuperação judicial. Sousa (2008) aponta como principal fundamento da Lei n°. 11.101/2005 a preservação da empresa, de sua função social e o incentivo à atividade econômica. Conforme o artigo 47, tal preservação é promovida pela recuperação judicial, que procura superar a situação de dificuldade econômico-financeira do

devedor, possibilitando

“[...]

a manutenção

da fonte

produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores [...].” (BRASIL, 2005). O sistema de recuperação da empresa prevista na Lei de 2005

integra:

a

recuperação

judicial,

inclusive

para

as

microempresas e empresas de pequeno porte, como prevê o parágrafo 1° do artigo 70 e a recuperação extrajudicial, que consiste em um plano negociado entre o devedor e os credores, como previsto no artigo 161. Para Negrão (2015), os principais objetivos do sistema de recuperação da empresa na perspectiva da Lei de 2005, são os seguintes: a supremacia da recuperação da empresa sobre o interesse

do sujeito da atividade; manutenção da fonte

produtora e do emprego dos trabalhadores; preservação dos interesses

dos

credores

e

observação;

a

observação

da

igualdade de tratamento dos credores e incentivo à manutenção de meios produtivos à empresa, permitindo que os credores

171

quirografários14 continuem a prover bens e serviços à empresa em recuperação. No artigo 50 estão previstos os meios de recuperação da empresa, senão vejamos: I – concessão de prazos e condições especiais para pagamento das obrigações vencidas ou vincendas; II – cisão, incorporação, fusão ou transformação de sociedade, constituição de subsidiária integral, ou cessão de cotas ou ações, respeitados os direitos dos sócios, nos termos da legislação vigente; III – alteração do controle societário; IV – substituição total ou parcial dos administradores do devedor ou modificação de seus órgãos administrativos; V – concessão aos credores de direito de eleição em separado de administradores e de poder de veto em relação às matérias que o plano especificar; VI – aumento de capital social; VII – trespasse ou arrendamento de estabelecimento, inclusive à sociedade constituída pelos próprios empregados; VIII – redução salarial, compensação de horários e redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva; IX – dação em pagamento ou novação de dívidas do passivo, com ou sem constituição de garantia própria ou de terceiro; X – constituição de sociedade de credores; XI – venda parcial dos bens; XII – equalização de encargos financeiros relativos a débitos de qualquer natureza, tendo como termo inicial a data da distribuição do pedido de recuperação judicial, aplicando-se inclusive aos contratos de crédito rural, sem prejuízo do disposto em legislação específica; XIII – usufruto da empresa; XIV – administração compartilhada; XV – emissão de valores mobiliários; XVI – constituição de sociedade de propósito específico para adjudicar, em pagamento dos créditos, os ativos do devedor. (BRASIL, 2005) São aqueles que não possuem direito real de garantia. Seus créditos são representados por títulos originários das relações obrigacionais como cheques, duplicatas e promissórias. DIREITO CONCEITUADO. Tipos de credores, 2011, p.1. 14

172

Além da viabilidade da recuperação da empresa, com o intuito de manter a sua função social e a atividade econômica, a Lei n°. 11.101/2005 apresenta outros pontos que, de acordo com Sousa (2008), merecem destaque, entre os quais: a separação do conceito de empresa e de empresário e a punição rigorosa de crimes referentes à falência e à recuperação judicial. A distinção entre o conceito de empresa e de empresário se encontra implícita no artigo 75, o qual prevê o afastamento do devedor de suas atividades, para preservar os bens e os recursos produtivos da empresa. Segundo Negrão (2005), a distinção feita pela Lei de 2005 faz com que esta se distancie de toda a legislação falimentar anterior. A respeito da punição, esta é aplicada, conforme o artigo 168, ao devedor que praticar “antes da falência, conceder a recuperação judicial ou homologar a recuperação extrajudicial, ato fraudulento de que resulte ou possa resultar possa resultar prejuízo aos credores, com o fim de obter ou assegurar vantagem indevida para si ou para outrem.” (BRASIL, 2005). A pena prevista para tal ato fraudulento é reclusão, de 3 a 6 anos e multa, mas o parágrafo 1° estabelece o aumento da pena de 1/6 a 1/3, se o agente: I – elabora escrituração contábil ou balanço com dados inexatos; II – omite, na escrituração contábil ou no balanço, lançamento que deles deveria constar, ou altera escrituração ou balanço verdadeiros; III – destrói, apaga ou corrompe dados contábeis ou negociais armazenados em computador ou sistema informatizado;

173

IV – simula a composição do capital social; V – destrói, oculta ou inutiliza, total ou parcialmente, os documentos de escrituração contábil obrigatórios. (BRASIL, 2005)

No que se refere ao processo evolutivo do Direito Falimentar no Brasil, denota-se que a Lei n°. 11.101/2005 representa um grande avanço, pois proporciona a recuperação da empresa devedora, buscando, assim, garantir a proteção dos trabalhadores e a manutenção das atividades econômicas. Observa-se, então, que o objeto da Nova Lei de Falências não é propriamente a satisfação dos credores, mas sim o interesse econômico e social que emerge da continuidade do exercício da atividade econômica organizada. Portanto,

retornando

às

legislações

falimentares

primeiras e observando as alterações legislativas que foram ocorrendo paulatinamente, há de se concluir que na atualidade os institutos da falência, da recuperação judicial e extrajudicial se apresentam de modo mais adequado se comparado com outrora, mas é preciso realçar que a efetiva superação das crises enfrentadas pelo empresário (individual ou pessoa jurídica) não deve ser atribuída tão somente aos mecanismos jurídicos, sendo evidente a preponderância da bela arte de administrar. Conclusões

Por vezes, chega-se à mesma conclusão: os contornos dos institutos jurídicos na atualidade são compreendidos mais claramente a partir de resgates históricos. Nesse cotejo, não se 174

pode olvidar que a abordagem da trajetória histórica do Direito Falimentar brasileiro nos períodos colonial, monárquico e republicano, possibilita a percepção evolutiva do tratamento jurídico da falência em cada período e das mudanças na legislação falimentar ao longo da história do Brasil. Observou-se que na Fase Colonial, as três Ordenações do Reino e o Alvará do Marquês de Pombal tratavam com rigor dos devedores em situação de falência, prevendo para eles a pena de morte, inclusive com tortura. Em contrapartida, a legislação demonstrava certa preocupação com o credor. Em relação ao Período Monárquico, verificaram-se as frequentes alterações na legislação falimentar, que procuravam conciliar os interesses dos devedores e dos credores. À semelhança da época da monarquia, a legislação falimentar nas primeiras décadas do regime republicano se caracterizou por frequentes modificações. Porém, o Decreto de 1945, cuja principal preocupação era o credor, se manteve por um longo tempo até ser substituído pela Nova Lei de Falências, de 2005, a qual prevê a possibilidade de recuperação da empresa, tendo em vista garantir a proteção dos trabalhadores e a manutenção da atividade econômica. Nesse sentido, a Lei de 2005 constitui uma evolução na trajetória histórica do Direito Falencial no Brasil, pois valoriza os interesses sociais e econômicos e sociais, em detrimento de satisfações individuais. Em suma, a importância deste artigo reside no fato de demonstrar que o Direito Falimentar, assim como o Direito de 175

um modo geral, é fruto das influências do contexto histórico no qual está inserido e das transformações operadas nesse contexto. Daí constata-se a necessidade das alterações no ordenamento jurídico para adequá-lo à estrutura política, econômica e social de um determinado momento histórico, sendo inegável que “voltar no tempo” é medida que se impõe para clarificar a realidade contemporânea. Por fim, arremata-se que o empresário dos tempos de hoje tem a seu dispor interessantes institutos jurídicos balizados pela Lei falimentar, no sentido de se evitar o encerramento da atividade por “crises”, mas as práticas de gestão eficiente e ética ainda seguem como insubstituíveis.

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178

JUSTIÇA, O SUJEITO DE DIREITOS E DA LEI: CONCEITOS DA FILOSOFIA POLÍTICA DE PAUL RICOEUR1 Marion Stahl2 René Dentz3 Resumo

Para Ricoeur, justiça não é um conceito fixo. Por isso, não pode ser encontrada através da estrita aplicação de uma norma, mas deve ser descoberta em um discurso crítico dentro do espaço público. A maior ênfase será dada ao termo "sujeito de direitos" e o termo "lei" que estão fortemente relacionados aos conceitos de justiça e o de responsabilidade. Em suas "pequenas éticas" do seu livro Le Soi-même comme un autre, Ricoeur demonstra que a dimensão ética da justiça é fundamentada na dialética individual entre auto e da alteridade como duas modalidades inerentes à estrutura do self. Como a justiça está para Ricoeur intimamente ligada à responsabilidade, o sujeito agente que está agindo de acordo com a lei, pode ser determinado como um sujeito de direitos, ao assumir a responsabilidade por suas ações, como um sujeito de imputação que postula ser o autor de seus próprios atos.

Introdução O objetivo do presente ensaio é indicar várias abordagens de Paul Ricoeur para a dimensão de justiça. A ênfase será colocada sobre o conceito de Justiça de Ricoeur, inserido em seu livro Soi-même comme un autre. A maior ênfase será dada ao termo, sujeito de direitos e ao termo lei que estão fortemente

Ensaio traduzido por René Dentz do Inglês. Doutoranda em Filosofia na Eischätt Universität/Alemanha; Membro do International Institute for Hermeneutics (Freiburg Universität/Alemanha). 3 Professor Titular da UNIPAC/Mariana; Professor da UNIP/Belo Horizonte; Professor do SEB Global Alphaville; Psicanalista; Membro do International institute for Hermeneutics (Freiburg Universität/Alemanha). 1 2

179

relacionados

ao

conceito

de

“justiça”

e

aquele

de

“responsabilidade” na filosofia de Ricoeur. Em vários de seu textos, Ricoeur lida com o caráter heterogêneo do conceito de justiça a partir de diferentes pontos de vista. Ele está particularmente interessado nos aspectos antropológicos, éticos, jurídicos, sócio-políticas e filosóficas, como um fenómeno multifacetado. Obras relevantes relativas a este assunto podem ser encontradas sobretudo em seus trabalhos posteriores - ou seja, em seu livro Soi-même comme un autre, em uma série de ensaios e palestras que são recolhidos nos livros: Autour du politique, nos dois volumes da coleção de ensaios Le Juste, Tome 1 e 2, bem como no estudo de Ricoeur intitulado Parcours de la reconaissance, no qual ele mostra

que

a justiça

política deve

levar

à

prática

do

reconhecimento mútuo. Justiça como uma dimensão de uma problemática ética/moral, jurídica e política tem o seu lugar dentro de todo o espectro de filosofia prática de Ricoeur e um lugar especial dentro de sua filosofia política. Além disso, Ricoeur deixa claro que a questão da justiça está também relacionada à teologia. A dimensão teológica do justo é trazida especialmente em sua palestra Amour et Justice, onde Ricoeur mostra a tensão entre amor e justiça, mediada pela regra de ouro, o mandamento do amor e misericórdia. Será mostrado que o envolvimento posterior de Ricoeur com a política e ética, e, portanto, também com o fenômeno da justiça, é incorporado em sua ampla gama

180

de antropologia filosófica que passou por um exame profundo da hermenêutica e fenomenologia.

2. A abordagem fenomenológica e hermenêutica Ricoeur

dirige-se

para

a

questão

do

justo

particularmente em seus últimos escritos, quando ele já havia desenvolvido sua própria fenomenologia até o início dos anos sessenta,

bem

como

os

fundamentos

teóricos

para

a

hermenêutica filosófica durante a década de 60 através de uma passagem crítica através do estruturalismo e psicanálise. Mais tarde ele ampliou sua abordagem hermenêutica à teoria narrativa (Temps et récit, 1983-1985), ele integrou a sua teoria da identidade pessoal ("hermenêutica de si" em Soi-même comme un autre, 1990) e para a história (La mémoire, l'histoire, l'oubli, 2000). Também em seus escritos sobre a justiça e como um fenômeno de muitas disciplinas que ele prefere uma abordagem

hermenêutica,

estando

intimamente

ligado

à

fenomenologia. A ideia de uma fenomenologia hermenêutica já está presente em seu envolvimento precoce com a fenomenologia de Husserl. Ricoeur inicialmente critica uma fenomenologia pura que não considera suficientemente duplos significados e símbolos na linguagem e na cultura em geral. Tal método hermenêutico

pode

complementar

fenomenologia

-

neste

contexto Ricoeur fala do "enxerto de hermenêutica sobre a fenomenologia"

(la

greffe

de

l'herméneutique

sur

la 181

Phénoménologie). Em seu ensaio Existence et herméneutique Ricoeur explica seu método que

distingue da abordagem

hermenêutica de Heidegger. Segundo a “via curta” de Ricoeur, Heidegger afirma uma ontologia do entendimento e refere-se diretamente à descrição de ser [Sein], mas sem considerar explicitamente as condições históricas e culturais concretas. Em contraste, a “via longa” de Ricoeur de entendimento visa apontar exatamente estas condições prévias, indo de um "desvio" através da linguagem, símbolos e sinais, a fim de trazer à luz o sentido desses portadores de significados. Ao reunir hermenêutica e fenomenologia, Ricoeur visa a iluminar o "elo entre a força e significado" - uma tarefa que exige para se referir a própria vida como uma portadora de significados.

3. Fundamento ético-antropológico O primeiro ponto de nossa investigação diz respeito ao conceito de justiça de Ricoeur como ilustrado no seu trabalho Soi-même comme un autre dentro do contexto de suas "pequenas éticas", onde ele analisa a dimensão ética-moral da individualidade. Ricoeur demonstra que a dimensão ética da justiça é fundamentada na dialética entre o eu e alteridade que é constitutiva da estrutura do self. O auto é "convocado à responsabilidade" pelo outro, nas palavras de Lévinas. É, pois, através desta experiência corporal ancorada de passividade, induzida pela modalidade de alteridade que dá origem à questão da orientação moral / ética do sujeito que age. Como 182

Ricoeur sustenta, o sujeito que age é determinado por uma "intenção ética" como aquela que visa a "boa vida" com e para os outros, em instituições justas. É dentro da terceira parte deste objetivo ético - a vida em instituições justas - que a dimensão da justiça é desdobrada. Dessa forma, a justiça tem um fundamento antropológico e também ontológico que se refere à estrutura básica do eu. Em sua introdução ao seu livro Le Juste, Ricoeur aborda o "enraizamento da ideia de justiça no terreno da antropologia filosófica." Esta orientação ética que tem como horizonte a idéia da "boa vida" está ligado principalmente à perspectiva teleológica, que esteja claramente separado do ponto de vista deontológico por Ricoeur. Ele analisa a perspectiva teleológica por meio da ética aristotélica, a perspectiva deontológica por meio da moral de Kant. Mesmo que Ricoeur separa claramente entre ética e moral, sublinhando o primado da ética sobre a moralidade, ele também afirma que a ética exige o teste da norma.

4. Perspectiva teleológica Primeiro, vamos nos referir à visão teleológica analisa Ricoeur no sétimo estudo de si mesmo como outro. No contexto desta perspectiva teleológica, a justiça requer uma relação triádica entre o eu, o outro e o terceiro - chamado de cidadão. O cidadão é caracterizado pela idéia de pluralidade. Desde que se situam em relação ao cidadão através da mediação da

183

instituição e da lei, a relação não equivale a um encontro caraa-cara. No que diz respeito ao terceiro: em uma comunidade sócio-política, nosso filósofo fala de "todos", pelo qual pronome ele não quer dizer um coletivo anônimo ou massa. De acordo com Aristóteles, o termo "igualdade" aqui desempenha o papel de mediador entre a estrutura dialógica do encontro face-a-face entre o eu e o Tu - que é o próximo - e a estrutura triádica entre o eu, o Tu e o Terceiro. A estrutura dialógica é determinada pela igualdade

aritmética

que

encontra

a

sua

expressão

na

solicitude concreta para a próxima, enquanto a estrutura triádica é baseada na igualdade proporcional, o que encontra a sua expressão não de uma forma concreta de solicitude, mas no "apelo à justiça" geral. Justiça, nesse sentido, pode ser considerada como uma extensão de solicitude que se refere ao plano de política. (Igualdade aritmética também deve ser garantida na frente da lei. A transição do poucos para muitos é, no entanto, mediada pela solicitude e também pela Regra de Ouro). A constituição de uma instituição política exige uma regra moral de justiça que transforma o sentido ético da justiça em legalidade. Ricoeur enfatiza que a justiça como uma virtude social - nas palavras de Rawls - com seus dois aspectos - o bom e o legal -, portanto, desempenha um papel moderador entre ética e moral, e também entre a ética e o domínio político. Neste contexto, seria interessante abordar o artigo de Ricoeur Le juste: entre le légal et le bon (1991). O filósofo francês 184

aponta que dentro de uma perspectiva teleológica a apenas aparece como uma espécie de "excelência", que deve ser entendido no sentido de os mais altos telos - o bem - na antiga filosofia grega. Assim, a mesma forma que a realização das capacidades do sujeito que age dentro de uma perspectiva teleológica aparece como uma virtude. Embora dentro da perspectiva deontológica, o justo tende para o legal com o seu carácter de obrigação. Neste contexto, as justas exigências regras de distribuição que são vinculativos. Mas o passo da ética à política é o ponto crucial e mais vulnerável no que diz respeito à constituição de instituições políticas: o poder original como o "poder em-comum" se transforma no poder sobre alguém que se baseia na distinção entre o governante e os governados. Estes dois aspectos designa o caráter ambivalente e paradoxal do poder político. Já em seu artigo anterior Le Paradoxe Politique Ricoeur assinalou este caráter ambíguo ou paradoxal da política que consiste, por um lado, do chamado "plano horizontal", baseado no desejo ético de uma comunidade histórica de viver juntos, e em do outro lado, do "plano vertical", como a realização institucional concreta deste poder comum, que está sempre ligada à ameaça de formas de dominação e violência. Nesse ponto, eu gostaria de mencionar que a ideia de poder político que não está associado apenas com força, dominação e violência, mas é fundamentada principalmente em uma vontade comum de viver juntos, é fortemente influenciada pelo conceito de poder plural de Arendt. Em conformidade com Arendt este 185

"poder-em-comum" tem por Ricoeur o caráter da iniciativa para começar algo novo.

5. Perspectiva deontológica Em seu oitavo estudo Ricoeur analisa uma perspectiva deontológica, tendo em conta o objectivo ético de viver uma boa vida com os outros em apenas instituição. Ao referir-se ao formalismo de Kant e da teoria processual de Rawls da justiça Ricoeur demonstra os limites da vista deontológico que é determinado pelo caráter obrigatório da norma. Dentro da perspectiva deontológica a questão primeira que surge é: como é que a etapa terá lugar a partir do sentido ético de justiça a uma "regra da justiça", nas palavras de Perelman, ou para os "princípios de justiça", nas palavras de Rawls. Trata-se, no final, a idéia aristotélica da justa distribuição que é colocada na intersecção da finalidade ética e da perspectiva deontológica. Ricoeur primeira refere-se à filosofia moral deontológica de Kant antes de enfrentar a problemática da justiça, tal como apresentado pela teoria contratualista John Rawls da justiça. Tal desvio é necessário, porque, nas palavras de Ricoeur, "um só nunca entra na problemática moral da justiça se tomou primeira conta da demanda de universalização por uma questão de qual o eu se esforça para a autonomia e também se tem reconheceu, no coração de seu relacionamento com a outra pessoa, a medida universal, o que significa que o que eu respeito no outro é a sua humanidade. Justiça [...] forma uma 186

unidade homogênea com a autonomia do eu e do respeito pela humanidade na minha pessoa e na de todos os outros". Agora gostaríamos de fazer referência a um engajamento crítico de Ricoeur com John Rawls. Embora Rawls determine justiça como a primeira virtude dentro das instituições políticas ele claramente separa-lo de qualquer idéia do bem. Teoria da Justiça de Rawls tenta dar uma solução processual pura para a questão da justa. Rawls faz isso, caracterizando o processo de deliberação como uma situação de justiça que deve conduzir à escolha desses princípios de justiça recomendadas por ele, enquanto

a

justiça

designa

o

conteúdo

dos

princípios

escolhidos. Mas, para Ricoeur os princípios dentro abordagem deontológica Rawls permanecem no final a-histórico e abstrato. Ele propõe a pergunta retórica: "sociedade" "em que medida um" a-histórica "pacto [o procedimento do contrato] pode ser obrigatório para a história. No final deste estudo Ricoeur pergunta se a ficção do pacto é uma "ficção destinada a compensar a fundação da deontologia no desejo de viver bem com e para os outros em instituições justas? "Aqui Ricoeur expressa sua convicção de que a idéia de justiça dentro de uma perspectiva deontológica não pode ser totalmente separado da ideia de um bem comum que está sempre ligada a condições históricas. Mas o que ele geralmente reconhece em Rawls teoria é que Rawls princípio maximin não sacrifica uma minoria para o bem maior como faz a concepção utilitarista da justiça - o seu princípio

é,

portanto,

uma

reminiscência

da

segunda 187

formulação do imperativo categórico kantiano (age de tal uma maneira que você trata a humanidade, seja em sua própria pessoa ou na pessoa de qualquer outro, não meramente como um meio para um fim, mas sempre ao mesmo tempo como um fim.

6. Aporias da norma, filosofia prática Agora vamos abordar outro problema no que diz respeito à norma. Ricoeur enfatiza que a aplicação pura de uma regra pode levar a situações aporéticas como ilustrado no drama Antígona de Sófocles. Ricoeur se refere a ele no início do seu nono estudo - que ele chama Interlude - ação trágica. No Antigone temos uma colisão de duas ideias diferentes de justiça que traz uma aporia sobre a moral. (No que diz respeito à justiça, um conflito concreto no plano político aparece, por exemplo, a questão da justa distribuição.) Tal instância do dilema moral exige uma referência à ética novamente, uma vez que é mais adequado para encontrar uma solução para uma situação concreta de a aplicação de uma norma universal, que não considera o dado caso. Dentro desta referência de volta para a ética é a aplicação de sabedoria prática, no sentido da phronesis aristotélica de que pode nos levar para fora das aporias

de

princípios

morais.

Para

Ricoeur,

o

conceito

aristotélico da phronesis encontra o seu equivalente no julgamento moral na situação que prossegue nas democracias ocidentais de eleições livres. O lugar onde esse julgamento 188

moral na situação, mediada pela sabedoria prática, é exercido pode ser encontrada no conceito de Sittlichkeit de Hegel - a moralidade real e concreta. A Sittlichkeit, como Ricoeur diz, é a "hierarquia das mediações institucionais através dos quais a sabedoria prática deve passar se a justiça é verdadeiramente para merecer o nome de justiça." Ricoeur rejeita o fundamento metafísico do conceito hegeliano de Sittlichkeit que se baseia no pressuposto que Sittlichkeit é definido como o lugar das figuras do "espírito objetivo" [Enzyklopedia]. Mas o que Ricoeur não assumir desde o conceito de Hegel é o pressuposto "que foi apenas em um ambiente institucional específico que as capacidades e predisposições que distinguem a ação humana faz florescer [...]". No final do sua Pétite Étique, Ricoeur propõe o conceito de uma nova formulação de uma "ética da argumentação", mostrando uma forte reverência a Habermas. Em sua ética da argumentação Ricoeur rejeita a purificação kantiana que visa purificar argumentos morais de qualquer tipo de inclinação, luxúria e desejo, concepção da ética do discurso de Ricoeur também rejeita a tendência de purificação na ética do discurso de Habermas, que é dirigida a nada convencional. Em vez disso, Ricoeur propõe uma dialética entre argumentação e convicção de que não busca uma solução teórica, mas uma solução prática do julgamento contextual moral. Este tipo de ética do discurso está longe de ser equivalente a uma formulação de uma nova teoria da justiça. Em vez disso, ele deve ser considerado como uma abordagem discursiva em relação ao 189

fenômeno diversificada dos justos que permite uma integração dos pontos de vista teleológico e deontológico, bem como a integração de universalista e posições contextuais em relação à ideia de justiça.

7. Sujeitos de direitos Após abordada a ética de Ricoeur, faz-se necessário agora voltar-nos aos termos "homens capazes" e "sujeito de direitos" que estão vinculados ao pensamento jurídico, bem como alguns aspectos antropológicos no que respeita à justiça. Em sua palestra intitulada "Quem é o sujeito de direito?" (Publicado no The Just, vol. I) Ricoeur revela que a ideia de capacidade é fundamental no que respeita à justa. Como a justiça está intimamente ligada à responsabilidade, o assunto, que age de acordo com a lei e procura uma boa vida em instituições justas, pode ser determinado como um sujeito capaz: através da capacidade de assumir a responsabilidade por suas ações, aparece como um sujeito de imputação que se postula como o autor de suas próprias ações. Esta capacidade de imputação ou atestado é incorporado dentro de uma ampla gama

de

capacidades,

incluídas

sob

a

expressão

"Fenomenologia dos homens capazes". Este Fenomenologia dos homens capazes que Ricoeur começou a desenvolver em seu livro A si mesmo como outro inclui as capacidades de falar, de agir, de contar, a assumir a responsabilidade e mais tarde para memorizar e de perdoar. O exame de todos esses aspectos do 190

self capaz deve levar, no final de uma resposta para a pergunta: "Quem?" É o tema - a questão da identidade pessoal de um sujeito que age. A capacidade de agir em combinação com a capacidade de comprovação é, aos olhos de Ricoeur, fundamentalmente significativas "para os trabalhos subsequentes de direitos e deveres." O sujeito capaz como sujeito de imputação é fortemente ligado aos predicados éticos e morais, a ideia de bem e da obrigação. Esses predicados éticos e morais resultam da nossa capacidade para julgar ou avaliar nossas ações e as dos outros como boas ou ruins. Esta auto-avaliação refere-se diretamente para o campo da auto-estima e do auto-respeito. Estimamos que somos capazes de estimar nossas próprias ações, nós respeitamos a nós mesmos, em que somos capazes de imparcialidade julgar nossas próprias ações. Apenas um sujeito que é capaz de avaliar suas próprias ações pode apreciar-se, enquanto que a avaliação se refere às dimensões da auto-estima e auto-respeito que definem a dimensão ética e moral da individualidade. A transformação do sujeito capaz ao verdadeiro sujeito de direitos requer uma atualização das suas capacidades. Para este efeito, existe uma necessidade para a mediação entre as formas de alteridade interpessoais e os de formas institucionais. Ricoeur fala não só de uma "mediação do outro em geral, mas de uma divisão dentro da própria alteridade em alteridade interpessoal

e

institucional."

O

caminho

para

o

nível

institucional, em que o sujeito capaz aparece como um sujeito 191

de direitos, que é fornecido com poderes reais e direitos, leva de um eu-tu-diálogo, característica da relação entre indivíduos, à relação entre o eu e um terceiro, de uma instituição. "Somente a relação com o terceiro, situado no fundo da relação com o Tu, nos dá uma base para a mediação institucional exigido pela constituição de um verdadeiro sujeito de direitos - em outras palavras, de um cidadão." Neste contexto, para a política Ricoeur é "por excelência o cenário para a realização das potencialidades humanas". O sujeito de direitos é, portanto, um assunto que passou pela realização de capacidades e que é colocado dentro do lugar público. É um sujeito humano que atingiu o nível jurídico e que está pronto a reconhecer a outra pessoa como um sujeito capaz de direitos. Este

ponto

de

vista

é

muito

diferente

de

um

individualismo liberal que considera o indivíduo como um portador realizado de certos desde o início, sem mediação institucional. Ricoeur está perto de outra tradição liberal - para que do liberalismo cívico que considera também o papel das instituições no que diz respeito ao desenvolvimento das capacidades individuais.

8. O Direito e o sistema jurídico Agora gostaríamos de referir ao termo lei. O lugar dos justos - em um sentido metafórico - dentro da lei e do sistema legal é um tema crucial no engajamento depois de Ricoeur com 192

o fenômeno dos justos. A questão que diz respeito à apenas como pode uma situação injusta ser parado por uma solução justa - é a questão central do juiz no final de um processo de tentativa, induzida pelo veredicto. O veredicto representa o fim de uma série de argumentos que surgem a partir de uma situação de incerteza na abertura de um julgamento. Como Ricoeur afirma, é o ato de fala que diz a lei. No plano jurídico, o justo é sempre oposto ao problema da violência. Os instrumentos do campo jurídico permite, assim, uma transformação da chamada imediata de vingança, que por si só é uma forma de injustiça. A busca para o justo seja em um processo de julgamento, em um debate político ou em um debate moral individual - culmina em um julgamento certo, traz a argumentação ao fim, colocando uma solução justa. O veredicto como um julgamento jurídico manifesta o ato que estabelece a lei. No plano jurídico o juízo de imputação é restrito ao campo do direito positivo - no caso de a transgressão da lei, o juízo de imputação leva a que a retribuição. "Cabe às leis de um lado para definir crimes, e por outro para estabelecer uma proporção entre crime e castigo". A punição após o veredicto deve ser considerada, aos olhos de Ricoeur, como uma espécie de obrigação de compensação ou indenização. A punição deve ser constituída de tal forma que ele se distancia de uma represália precipitada. Em vez disso, todo o processo jurídico com o veredicto e a punição deve ocorrer de forma responsável que permite que a vítima, mas também a pessoa condenada a sentir-se plenamente reconhecido como um sujeito 193

de direitos. Justiça, portanto, - seja no que respeita à jurídico, a moral ou o plano político - está intimamente ligada com a responsabilidade. Em qualquer responsabilidade jurídica, bem como em um sentido moral visa estabelecer uma distância apenas entre mim e a outra pessoa que eu sou confrontado com, como avisos de Ricoeur. Neste contexto, o outro como sujeito de direitos é considerado como o mesmo assunto digno de respeito como eu. É a tarefa do judiciário e as instituições políticas para criar esta distância só entre diferentes partidos, instituições e pessoas. Nesse sentido, a apenas deve ser considerada como um tipo de prática social. No que diz respeito ao fenómeno dos justos, o próprio Ricoeur se concentra particularmente no nível jurídico, mas ele também está interessado no conceito mais geral de um julgamento político, que está localizado dentro da esfera política e que foi primeiro formulado por Hannah Arendt. Ricoeur critica conceito de Arendt, em alguns aspectos, mas geralmente ele estima que o elemento integrante de um juízo reflexivo de gosto em seu conceito que se refere à terceira Crítica de Kant. Seguindo o conceito de Hannah Arendt de um julgamento político e suas referências a juízo de gosto de Kant, o próprio Ricoeur propõe em seu artigo "O ato de julgar" a ideia de um juízo político que se baseia em um processo deliberado de argumentação e não na já definida regra. Geralmente pode-se dizer que, para Ricoeur justiça não é um prazo fixo. Por isso, não pode ser encontrada através da 194

estrita aplicação de uma norma, mas deve ser descoberto em um discurso crítico que ocorre dentro do espaço público. Este é exatamente o modo do juízo reflexivo - para encontrar uma regra universal para um dado, caso particular. Ricoeur enfatiza que a maioria é assim reconhecida a injustiça social e o protesto contra esta injustiça que leva à constituição de um senso de justiça. 9. A paz social e o reconhecimento mútuo

Voltemos à ideia de distribuição que é tão central para a questão da justa. Pode-se notar que o conceito geral da sociedade como um sistema de distribuição que encontramos na teoria processual de Rawls da justiça ou no conceito pluralista de Michael Walzer da justiça social, pode, de acordo com Ricoeur, servir de base frutífera para a elaboração dos princípios de justiça. Isso ocorre porque a ideia de distribuição traz com ele o elemento de diferenciação, de articulação que está faltando no sentido ético puro, que encontra a sua expressão na noção de querer viver juntos. Mas a ideia de distribuição é, aos olhos de Ricoeur não suficiente para o florescimento de bem-estar social. Ricoeur enfatiza que a questão do justo não é apenas a de distribuição (a questão do que nos separar), mas também o da igualdade de ação, ordinária - o último se refere à nossa modalidade comum, por si só, as nossas necessidades, nossos valores e esperanças compartilhadas sociedades. Este segundo entendimento da 195

questão do justo conduz a um esforço de longo prazo no que diz respeito à justiça - o objetivo deste esforço é para estabelecer a paz social dentro de uma sociedade partilhada ou entre diferentes sociedades. Em Ricoeur (2006), partindo de sua obra Parcours de Reconaissance4, reconhecimento

desenvolvida como

em

identificação”,

três

estudos,

“reconhecer-se

“o a

si

mesmo” e “o reconhecimento mútuo”, a primeira formulação dada à temática do reconhecimento propriamente dita foi feita por Hegel, através de sua conhecida obra Fenomenologia do Espírito (2005). Aqui, Hegel, segundo o filósofo francês, parte do caminho realizado por Hobbes, trabalhando dentro da dialética do senhor e do escravo. Com efeito, analisando o pensamento de Hobbes (2005), que preconizava o estado de natureza como acalentador de uma situação de constante tensão e conflito, consistente num estado de guerra de todos contra todos, e produzida, conforme se vê no Leviatã, pela desconfiança, competição e busca de glória, Hegel vai se afirmar contrário a este autor, postulando que há um fundamento moral diverso do medo preconizado por Hobbes, para explicar as relações sociais e a instauração do pacto, que é justamente o desejo de ser reconhecido. Por meio da dialética do senhor e do escravo do autor alemão, Ricoeur (2006) verá que, não obstante senhor e escravo 4 No prefácio, o filósofo francês elucida que “a pesquisa foi suscitada por um sentimento de perplexidade concernente ao estatuto semântico do próprio termo ‘reconhecimento’ no plano do discurso filosófico. É fato que não existe uma teoria do reconhecimento digna desse nome ao modo como há uma ou várias teorias do conhecimento” (RICOEUR, 2006, p. 9).

196

serem seres pensantes e possuírem humanidade, é no conflito dessa relação negativa de desprezo que o reconhecimento postula-se plausível para Hegel. Sendo o desprezo e a negação do reconhecimento frutos da contradição social5 vê-se, ainda, um desequilíbrio entre a igual atribuição de direitos e a desigual distribuição dos bens, o que causa, para Hegel, a não realização da estima social. Ou seja, há a prescrição formal do reconhecimento, mas também a sua negação fática, o que gera o anseio por ser reconhecido de modo concreto. Com relação a Axel Honneth, através de seu livro Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais (2003), publicado em 1992, Ricoeur (2006) dirá que ele retomará a ideia hegeliana da experiência negativa de desprezo como aquilo que possibilita o desejo de ser reconhecido. Trazendo

uma

dimensão

de

luta

social

reconhecimento, Honneth proporá que

este

à

ideia

de

possibilita o

respeito de si e a estima social, sendo força moral com possibilidade de promover desenvolvimentos e progressos na realidade social, instaurando, também, o que chamará de autorealização. Contudo,

o

filósofo

francês

postulará

que,

se

o

reconhecimento for analisado somente pelo horizonte da luta, não obstante a sua contribuição bastante válida, haverá uma demanda que ele chamará de “insaciável”, “uma reivindicação sem fim”, “um tipo de nova consciência infeliz”. Por isso sua 5 “A experiência negativa do menosprezo assume então a forma específica de sentimentos de exclusão, de alienação, de opressão, e a indignação que deles provém pôde dar às lutas sociais a forma da guerra, quer se trate de revolução, de guerra de libertação, de guerra de descolonização” (RICOEUR, 2006, p. 215).

197

proposta é “de completar uma problemática da luta por meio da evocação das experiências de paz pelas quais o reconhecimento pode, senão encerrar seu percurso, ao menos deixar entrever a derrota da negação de reconhecimento” (RICOEUR, 2006, p. 203). Afasta-se, então, o autor, da perspectiva de negação ou mesmo de reivindicação da morte do outro para se conquistar o reconhecimento. Ricoeur, como vai dizer, pretende corrigir e completar a herança hegeliana. Dessa forma, podemos afirmar uma lógica do perdão que não deriva de uma retribuição. Em Soi-même comme un autre, Ricoeur retorna à regra de ouro. Essa regra indica a importância de tomar iniciativas com respeito a outrem. Dessa maneira, o Evangelho de Lucas porta sabedoria: “Aquilo que você

quer

que

os

homens

façam

por

você,

faça

semelhantemente por eles” (Lc 6,31). Para o filósofo francês, a regra de ouro pertence a uma economia do dom. Graças a ela, é possível

relacionar

a

ética

teleológica

e

a

moral

dita

deontológica. Da

proposta

de

Ricoeur

sobre

o

percurso

do

reconhecimento podemos concluir que no desenvolvimento da humanidade, sempre foi crucial a busca do ser pela conquista de reconhecimento. Isso me leva ao meu último ponto. O objetivo em longo prazo da justiça - para estabelecer a paz social - deve ser pensada em termos do processo de reconhecimento mútuo. O reconhecimento mútuo é um termo tratado por Ricoeur especialmente

em

seu

final

de

estudo

O

Curso

de 198

Reconhecimento em seus vários aspectos. O curso inclui uma análise de reconhecimento como identificação, reconhecer-se como um ser humano capaz e reconhecimento finalmente mútuo, que é um conceito próximo do termo hegeliano de Anerkennung, mas Ricoeur também se refere ao conceito de reconhecimento mútuo de Axel Honneth e Boltanski, Thévenot, e Hénaff. O campo amplo e complexo do reconhecimento mútuo a nível institucional se sobrepõe ao campo da teologia. Ricoeur aponta que o processo de reconhecimento mútuo vai ainda mais além uma compreensão de troca de doação que ainda se baseia na lógica da reciprocidade, reconhecimento mútuo em contraste inclui valores como ágape, a misericórdia, gratidão e perdão sem qualquer expectativa de resposta. Esta dimensão teológica do acabamos de ter, em alguns aspectos, já foram delineadas na palestra anterior de Ricoeur Amour et Justiça onde ele mostra a tensão entre amor e justiça, mediada pela regra de ouro, o mandamento do amor e misericórdia.

Conclusão

Nesta apresentação eu tentei iluminar alguns aspectos da justiça e da mesma forma que um fenómeno multifacetado, da ideia de sujeito de direitos e um sistema jurídico nos escritos políticos e éticos de Paul Ricoeur. Em geral, o filósofo defende um

conceito

pressuposições

de

justiça

compartilhadas

substantiva

governado

relativas ao

bem

por

comum. 199

Justiça exige sempre uma regra de justiça e de princípios. Em todos os seus escritos sobre a justiça Ricoeur deixa claro que o fenómeno do justo é uma ética e também uma questão moral, a busca do justo é a busca do lugar intermediário entre violência e sofrimento e exige a aplicação de sabedoria prática. A questão do justo está relacionada a pressupostos antropológicos e tem como horizonte a paz social. Em geral pode-se dizer que há uma linha clara que leva de explicações sobre as implicações antropológicas de Ricoeur em sua antropologia filosófica abrangente. É precisamente na sua "pequena ética" que o autor oferece sua análise da justiça, através do qual ele traz a noção de reconhecimento mútuo que vai além da exigência pura de igualdade.

Referências

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200

Paul Ricoeur: Le juste entre le légal et le bon (1991), in Ricoeur: Lectures Tome 1: Autour du politique, Paris: Éd. Seuil, 1991, (p. 176-195). Paul Ricoeur: Oneself as another, transl. by Kathleen Blamey, Chicago / London: University of Chicago Press, 1995, [Soi-même comme un autre, Paris: Éd. Seuil, 1990]. Paul Ricoeur: »Préface à Hannah Arendt, Condition de l'homme moderne (1983)«, in: Lectures 1, Autour du politique, Paris: Éd. Seuil, 1991, (p. 43-66). Paul Ricoeur: Sanction, Rehabilitation and Pardon, in: Paul Ricoeur: The Just, transl. by David Pellauer, Chicago/London: University of Chicago Press, 2000, (p. 133-135), [orig. Sanction, réhabilitation, pardon, in: Le Juste, Paris: Éd. Seuil, 1995]. Paul Ricoeur: The act of judging, in: Paul Ricoeur: The Just, transl. by David Pellauer, Chicago / London: University of Chicago Press, 2000, (p. 127-132), [orig. L’acte de juger, in: Le Juste, Paris: Éd. Esprit, 1995]. Paul Ricoeur: The Course of Recognition, transl. by David Pellauer, Cambridge, MA: Harvard University Press, 2005, Parcours de la reconnaissance. Trois Études, Paris: Stock, 2004. Paul Ricoeur: The Moral, the Ethical, and the Political, trans. by Alison Scott-Baumann, in: Paul Ricoeur and the Task of Political Philosophy, edited by Greg S. Johnson, Dan R. Stiver, Lanham: Lexington Books, 2013, (p. 13-24) [orig. Morale et Politique, 1993]. Paul Ricoeur: The Political Paradox, in: Paul Ricoeur: History and Truth, transl. by Charles A. Kelbley, Evanston: Northwestern University Press, 1965, (p. 247-270). Paul Ricoeur: Who is the subject of rights? In: Paul Ricoeur: The Just, transl. by David Pellauer, Chicago / London: University of 201

Chicago Press, 2000, (p. 1-10), [orig. Qui est le sujet du droit? In: Le Juste, Paris: Esprit, 1995].

202

NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS: A PROEMINÊNCIA DA AUTONOMIA PRIVADA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL Cícero de Assis Figueiredo1 Magna Campos2 Resumo Os negócios jurídicos processuais ganharam força com o advento do Novo Código de Processo Civil. A autonomia privada, que edificou seu império com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, passou a exercer papel preponderante também dentro de uma legislação de um ramo de direito público, que até então, com o diploma de 1973 ainda deixava muito a desejar quanto ao atendimento à vontade das partes em litígio, impondo um cumprimento absoluto das normas processuais. A chegada do NCPC de 2015 trouxe uma flexibilização desse mecanismo e atendeu às perspectivas contemporâneas de se proporcionar aos litigantes uma fruição dos autos de modo menos desgastante e possibilitando o encontro de soluções de maneira mais simples, segundo o que fora por elas almejado. Palavras-chave: Negócio Jurídico; Processo; Novo CPC; Autonomia Privada; Convenção.

Introdução O Novo Código de Processo Civil Brasileiro (Lei nº 13.105/2015) surge em uma era de atualidades e de novas perspectivas nas soluções de conflitos. A ideia de judicialização e de processualismo absolutos é afastada e cede lugar à predominância do interesse das partes litigantes, com o intuito de proporcionar que a ideal vontade dos chamados sujeitos processuais se faça imperar na conclusão da lide. Como se sabe, uma das normas fundamentais que abrilhanta o Novo Código vincula-se ao princípio da Solução 1 2

Advogado, Pós-graduando em direito civil e processual civil pela FUPAC-Mariana. Professora universitária, mestre em Letras e escritora.

203

Consensual de Conflitos, presente nos seus mais variados capítulos. As tradicionais formas de se solucionarem conflitos, conhecidas como Conciliação, Mediação e Arbitragem ganharam merecido destaque no diploma processual. Ocorre que, uma nova forma de se chegar a um denominador comum entre as partes também teve espaço garantido na aplicação das regras processuais, os chamados Negócios Jurídicos Processuais. No diploma processual de 1973, as regras para os mais diversos tipos de procedimentos nele estabelecidos eram absolutas, dispondo as partes de escassa autonomia para intervir no conceito e aplicabilidade da norma a fim de encontrar uma solução para o litígio. O diploma de 2015, em diversos momentos trás a possibilidade das partes realizarem os Negócios Jurídicos Processuais. Esta inovação representa uma atualização da legislação face ao novo perfil dos litigantes, e também um estrito cumprimento aos princípios da celeridade e economia processuais, e da solução consensual dos litígios. A possibilidade das partes alterarem prazos, bem como intervirem nos mais diversos momentos da análise e julgamento da lide corrobora para o conceito do instituto. A possibilidade de se negociar dentro do processo e relativizar, sobretudo, a imperatividade das normas jurídico-processuais demonstra que o legislador contemporâneo se dedicou a uma ideologia finalista e objetiva, no direito processual conhecida e amparada pelo princípio da instrumentalidade das formas, que não se

204

preocupa com os extremismos do cumprimento das regras processuais, se o resultado prático objetivo for alcançado. Nesse sentido, ao longo deste artigo, serão estudados os momentos em que os Negócios Jurídicos Processuais ganham destaque no Novo Diploma Legal, a importância deles frente aos novos julgamentos e também a abrangência de cobrança pelas principais bancas de concursos públicos e exame de ordem.

2. Negócios Jurídicos Processuais Os negócios jurídicos processuais representam uma novidade prática trazida pelo Novo Código de Processo Civil. Entretanto, a novidade não é vista como uma surpresa pelos processualistas contemporâneos, pois como será relatado mais a diante, o Código de 1973 já admitia algumas possibilidades de negociação entre as partes litigantes. O que é novidade é a nova roupagem dada aos negócios jurídicos processuais no novo Código, em que a alteração de procedimentos se faz de uma forma que não era comum no diploma antigo. De forma diversa da estabelecida pelo CPC de 1973, o novo

código

é

pautado

pela

ideologia

de

simplificação

processual. Essa ideologia ocasionou a redução do número de procedimentos especiais, optando o legislador por adotar o modelo do procedimento comum que abrange as mais variadas situações. A criação de um novo modelo de procedimento, definida pelo novo diploma processual deriva do instituto dos negócios 205

jurídicos, tão comumente definido pela legislação, doutrina e jurisprudência civilista, dando novo caráter à convenção das partes, de modo bilateral e no plano contratual, ou até mesmo do acordo entre as partes litigantes estabelecido em juízo a fim de se definir o ideal procedimento e a melhor solução para o litígio.

2.1. Negócio Jurídico Antes de se aprofundar a digressão sobre os Negócios Jurídicos Processuais, faz-se necessário expor o conceito de negócio jurídico, estabelecido pela doutrina civilista. De acordo com Bocalon (2016, p. 48), Basicamente, as teorias em torno do negócio jurídico resumem-se em duas características, a saber: a teoria da vontade (Willenstheorie) e a teoria da declaração (Erklärungstheorie). Para a primeira, o elemento principal do negócio jurídico é a vontade interna dos sujeitos e a declaração é apenas o meio para que se torne conhecida por terceiros.

Assim, os negócios jurídicos precisam ser interpretados com base na vontade inferida objetivamente da declaração. “Não

se

trata,

portanto,

de

se

perscrutar

fenômenos

psicológicos dos declarantes, eis que a vontade que serve de base à interpretação do negócio deve ter sido exteriorizada de forma a permitir sua análise objetiva” (BOCALON, 2016, p. 50). Nesta linha, Carlos Roberto Gonçalves, menciona que os negócios jurídicos, portanto, se originam de um ato de vontade, implicando na declaração expressa da vontade, que instaura uma relação de dois ou mais sujeitos visando um objetivo, que 206

é protegido pelo ordenamento jurídico. Seria um meio da realização da autonomia privada, cujo representante mais corriqueiro é o contrato. Os negócios jurídicos devem respeitar os pressupostos de existência, validade, e eficácia impostos pela norma jurídica, e a manifestação da vontade tem finalidade negocial, abrangendo a aquisição, conservação, modificação ou extinção de direitos. O art. 104 do Código Civil estabelece os requisitos de validade dos negócios jurídicos, a saber: Art. 104. A validade do negócio jurídico requer: I - agente capaz; II - objeto lícito, possível, determinado determinável; III - forma prescrita ou não defesa em lei.

ou

Nestes termos, devem os negócios jurídicos processuais seguir os mesmos requisitos para fins de serem reconhecidos no plano processual e homologados pela autoridade judicial, conforme será tratado adiante. O novo Código de Processo Civil (2015) incorpora assim a existência do negócio jurídico processual ao sistema e o insere no contexto da ideia de cooperação que perpassa a filosofia constituinte do documento acima mencionado. Alguns negócios jurídicos são regulados pela lei e apresentam convenções processuais caracterizando-os como típicos. Sendo assim, O negócio jurídico é produto da autonomia privada e da autorregulação de interesses, implicando liberadade de celebração e de estipulação. Isso não impede que a legislação fixe o regime de

207

determinado negócios. Nesse caso, tem-se um tipo previsto em lei, estando nela regulado. É o chamado negócio jurídico típico, sendo dispensável o esforço da(s) parte(s) na sua regulação. A regulação já está estabelecida em lei. (CUNHA apud BOCALON, 2016, 124)

Outros, diante da impossibilidade na prática de se antever todas as situações, o novo código adotou, por meio da cláusula geral do art. 190, o princípio da atipicidade.

2.3 - Cláusula geral de negociação Dentro dos negócios jurídicos processuais, destacam-se os negócios jurídicos unilaterais e bilaterais. Unilaterais são aqueles em que a própria lei direciona para a parte em juízo sobre a possibilidade de ela vir a intervir e alterar os procedimentos. A unilateralidade em si não é novidade. A grande novidade é a bilateralidade dos negócios jurídicos processuais, pois acarreta a possibilidade de em diversos momentos as partes inovarem e acordarem sobre questões processuais. A bilateralidade já existia em algumas situações no diploma de 1973, tendo como exemplo a possibilidade da suspensão do processo pelas partes, a eleição de foro pelas partes, a negociação de prazos dilatórios, dentre outros. Ocorre que no diploma de 2015, a bilateralidade negocial ganhou força e credibilidade, trazendo a autonomia privada para dentro do processo. O art. 190 do Código de Processo Civil de 2015 estabelece a cláusula geral de negociação atípica, vejamos: 208

Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade. (BRASIL, Código de Processo Civil, 2015)

Segundo os preceitos trazidos pelo dispositivo acima, versando

o

processo

autocomposição, negociar

as

mudanças

sobre

partes, no

direitos

desde

que

procedimento

que

admitam

capazes,

poderão

para

adequá-lo

às

especificidades da demanda. Nesse sentido, poderão as partes transigir no tocante ao ônus da prova, inversão cronológica de atos processuais, poderes, faculdades e deveres, dentre outras situações. Isso significa que às partes foi atribuída a capacidade para inventar ou criar acordos a fim de se chegar a um denominador comum. Convém ressaltar que o juiz controlará essa negociação, a fim de se averiguar o estrito cumprimento da boa fé contratual, que se traduz em boa fé processual. Como se aduz da redação do parágrafo único do dispositivo

supramencionado,

requerimento

da

parte

deverá

o

juiz, verificar

de a

ofício

ou

validade

a das

convenções, recusando-lhes aplicação se houver nulidade ou inserção abusiva, na hipótese específica de contrato de adesão, 209

ou, ainda, nas situações em que a parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade. Diante disso, nota-se a real preocupação do legislador processualista em não permitir que qualquer espécie de negociação pudesse vir a ser celebrada pelas partes. A estipulação dos negócios jurídicos processuais deve encontrar limites nos preceitos de boa fé processual, de modo a não violar as regras de conduta que direcionam o ramo público que é o direito processual civil. Sendo assim, o papel de controle atribuído aos magistrados é extremamente pertinente, a fim de não se condicionar o processo ao estabelecimento de qualquer prejuízo oriundo de má-fé a qualquer das partes em juízo.

2.4 Eficácia dos negócios processuais O negócio jurídico processual pode ser celebrado antes ou durante o processo. Quando pactuar sobre matérias antes do processo, significa que as partes inserem em contrato, público ou privado, negócio jurídico de natureza processual, que vai muito além da mera eleição de foro, que no Código de 1973 destacava-se como primordial exemplo de celebração de pactos processuais. Nesse sentido, se, eventualmente, no curso ou depois de extinta a relação jurídica, houver necessidade de ir a juízo, os contratantes, que se transformarão em litigantes, irão

submeter-se

ao

procedimento

estabelecido

conforme

pactuado.

210

Como via de regra, estes negócios deverão ser arguidos no primeiro momento em que as partes vierem a se manifestar nos eventuais autos, seja na propositura da demanda ou na contestação. Ao juiz, fica imputada a responsabilidade de homologar o negócio processual, a fim de garantir a sua aplicabilidade ou não na relação, e por consequência, dar-lhe eficácia. Antes da homologação, portanto, avaliará o magistrado todos os planos (existência, validade e eficácia) do negócio jurídico

processual,

fundamentando,

em

caso

de

não

homologar, os reais motivos que o levaram a tomar a referida decisão. Uma vez homologado, o negócio está vinculado ao processo e apto a produzir todos os efeitos acordados pelas partes.

2.5 Negócios processuais no NCPC Conforme já relatado acima, em inúmeros momentos de seu texto, o Código de Processo Civil de 2015 menciona a possibilidade de celebração dos Negócios Jurídicos Processuais. Os dispositivos legais relativos à matéria referem-se à transação dentro

do

próprio

processo

e

de

suas

condições

de

desenvolvimento ao longo do procedimento. Para

relacionar

individualmente

cada

um

desses

momentos, a extensão deste texto ficaria comprometida, portanto, vamos nos ater a apenas algumas disposições, tendo em vista que a ideia principal já está sendo demonstrada, que é 211

a abertura de espaço concedida pelo legislador para a presente celebração dos tratos entre os demandantes. O art. 191 disciplina o denominado calendário para a prática

dos

atos

processuais,

destacando

a

fixação

de

cronogramas. A ideia central do legislador em estabelecer este calendário é a de assegurar a razoável duração do processo, vinculando as partes e o juiz, de modo que os prazos nele previstos

somente

poderão

ser

modificados

em

casos

excepcionais e devidamente justificados. Outro exemplo prático que pode ser demonstrado como Negócio Jurídico Processual na redação do Novo CPC é o inciso I do Art. 362, que dispõe que a audiência de instrução e julgamento pode ter a sua data adiada pela convenção das partes, ou seja, uma oportunidade das partes negociarem já com o processo em andamento. O parágrafo 3º do art. 373, que preceitua sobre o fato da distribuição diversa do ônus da prova poder ocorrer por convenção das partes em algumas situações também é um exemplo de que o acordo entre as partes pode alterar o andamento do processo. Sendo assim, várias são as situações no atual diploma que permitem às partes estarem negociando e permitindo que a autonomia privada faça-se valer como regra para o melhor desenvolvimento e solução do litígio.

Conclusão 212

O legislador processualista de 2015, ao revestir o papel das transações dentro do direito processual trouxe para a contemporaneidade a ideologia de que o direito processual civil, que é um ramo do direito público, passa a ganhar um caráter de direito privado, em que às partes se imputa a garantia de negociar

e

fazer

prevalecer

a

autonomia

privada

nos

prazos

pré-

procedimentos processuais. A

desnecessidade

de

atendimento

a

estabelecidos em legislação, a foros para dirimir conflitos, dentre outras possibilidades de pactuação gera, de certe forma mais conforto e menos pressão para juiz e para partes, conforme dizeres de Luiz Rodrigues Wambier e Ana Tereza Basílio. Nesse

sentido,

quando

se

diminui

a

pressão,

principalmente sobre as partes, a qualidade na solução da lide aumenta, uma vez que elas, seus advogados e, sobretudo, o magistrado

desempenharão

seus

papéis

com

maior

naturalidade dentro dos autos, facilitando o alcance do resultado prático desejado. Esta inovação que se insere no ordenamento jurídico processual propicia um desenvolvimento eficaz e natural ao processo. Está implantada na ideia de cooperação, que norteia o novo diploma, e que deve ser entendida como a necessidade de que haja esforço de todos os envolvidos no desenvolvimento da atividade processual, a fim de que o resultado eficaz seja alcançado em tempo hábil. Referências 213

BOCALON, João Paulo. Os negócios jurídicos processuais no NCPC. 2016. 241 f. Dissertação (Mestrado em Direito) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2016. Disponível em: https://sapientia.pucsp.br/bitstream/handle/7026/1/Joao%2 0Paulo%20Bocalon.pdf Acesso em: 27 nov. 2016. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro – Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2014. LEMOS, Vinicius. Novidades Novo CPC - Negócios Jurídicos Processuais , Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=cfdX80TagYM. Acesso em: 23-11- nov. 2016. WAMBIER, Luiz Rodrigues; BASILIO, Ana Tereza. O negócio processual: Inovação do Novo CPC. Disponível em: http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI228542,31047O+negocio+processual+Inovacao+do+Novo+CPC. Acesso em: 2211- nov.2016.

214

¿PUEDE LA FORMA DE GOBIERNO DEMOCRÁTICO CONTENER EL GERMEN DEL TOTALITARISMO? Rafael Ricardo Bohórquez Aunta1 René Dentz2 Quizá no haya experiencia más significativa para un profesor en una clase de filosofía que la que sobreviene cuando alguno de sus estudiantes logra sacudir los cimientos de su discurso con una cándida e inocente pregunta. Posiblemente sin ninguna otra intención más que el ánimo por aprender y atreverse a ser crítico, este género de preguntas al que me refiero puede reflejar más bien la actitud que Karl Jaspers alguna vez concebía como propia del niño-filósofo. Y es que, en efecto, no parece haber ninguna otra condición ni requisito diferente al deseo de pensar por sí mismo para quien quiere imbuirse en el vasto mundo de la filosofía. Prueba de ello han sido para mí las ocasionales veces en que el mismo discurso de los pensadores que se estudian en las clases una y otra vez, a pesar de su siempre novedosa actualidad y profundidad, se ha quedado un tanto corto para quienes, como algunos de mis estudiantes,

en

verdad

descubren,

aunque

en

muchas

ocasiones no a sabiendas, que pensar filosóficamente es

Docente investigador de la Universidad Santo Tomás, seccional Tunja. Docente Cátedra en la Universidad Pedagógica y Tecnológica de Colombia (UPTC). Editor de la Revista de Investigación Quaestiones Disputatae: Temas en Debate. Licenciado en Filosofía de la Universidad de San Buenaventura. Maestría en la Universidad Nacional de Colombia. 2 Professor Titular da UNIPAC/Mariana; Professor do IBHES/Belo Horizonte; Professor do SEB Global Alphaville; Psicanalista; Membro-Pesquisador do International Institute for Hermeneutics/Alemanha. 1

215

situarse de modo no ordinario, no común, como lo hace un niño inocente, en su misma realidad para cuestionarla. Una pregunta del tipo que relata la anterior experiencia de clase, esto es, la pregunta que ha suscitado este escrito, surgió en una sesión de Filosofía Política: un estudiante de copiosa inspiración y de sin igual simplicidad en su lenguaje, luego de atender a la forma en que Norberto Bobbio hace un estudio introductorio a las «tipologías de las formas de gobierno», pregunta: “¿Puede acaso la forma de gobierno democrático

como

totalitarismo?”

la Sin

nuestra duda

contener

el

germen

del

alguna esta pregunta logra

causar ruido a aquellos que con fervor y erudición defienden la posibilidad de la libertad individual en el sistema democrático. En contraste, y tal vez acrecentando los ánimos de los detractores de esta forma de gobierno, la cuestión arriba formulada puede aparecer como un signo más de lo que ya desde hace algunos años se viene consintiendo con mayor fuerza en el seno de las nuevas generaciones como la «crisis de la democracia». Finalmente, la formulación misma de la pregunta puede ser considerada

como

irrelevante

para

quienes reclaman del análisis de la sociedad un estudio neutro y objetivo, en tanto «hecho político», de los modos de relación entre grupos y clases. Por de pronto, tal vez lo más prudente al respecto es cuestionar la misma cuestión, esto es, preguntar por el sentido de los términos involucrados en su formulación

de

tal

suerte

que

en

lo

sucesivo,

de

su

esclarecimiento se pueda estimar su relevancia o irrelevancia 216

y, de este modo, atisbar una respuesta que al menos permita comprender a mayor profundidad lo que en ella está en juego. El presente escrito busca precisamente desentrañar de la formulación de la pregunta un problema «recurrente»3 de la Filosofía Política que subyace a la consideración de la relación entre formas legítimas e ilegítimas de gobierno, y que

podría

ver

en

el totalitarismo una nueva forma de

gobierno que surge, como lo han hecho las tiranías de las monarquías y las oligarquías de las aristocracias, de una mutación política de la democracia moderna4. Entre tanto y sin el ánimo de dar una solución conclusiva a semejante cuestión el presente ensayo pretende invitar a quienes como yo nos vemos enfrentados al gran reto de enseñar Filosofía Política a estudiantes de otro tipo de saberes, a cavilar en segunda voz sobre lo poco hermético que resulta «nuestro saber» cuando se comparte un mismo «espíritu de la época»5. Para tal propósito resulta preciso reflexionar sobre el punto Norberto Bobbio asegura que los «temas recurrentes» de la filosofía política son aquellos que han sido propuestos y discutidos por la mayor parte de los escritores políticos (especialmente por quienes han elaborado o delineado teorías generales o parciales de la política) y que forman parte de una teoría general de la política. Para Bobbio, “el conocimiento de estos temas recurrentes tienen una doble importancia: por una parte sirve para ubicar algunas categorías generales (comenzando por la categoría misma de lo «político») que permiten analizar y determinar los diversos aspectos del fenómeno político, compararlos entre ellos, construir sistemas conceptuales aceptablemente coherentes y comprensivos; por otra parte, permite establecer entre las diversas teorías políticas, que han sido sostenidas en diferentes épocas, afinidades y diferencias. Cf. BOBBIO, Norberto. La teoría de las formas de gobierno en la historia del pensamiento político. México: FCE, 2001. p. 8 4 No se hace alusión directa a la tipología de formas de gobierno que es descrita por Aristóteles en la Política, especialmente en el Libro III, puesto que para el filósofo griego la Democracia es considerada el par negativo de la República y acá se asume como una forma legítima de gobierno. Al mismo tiempo, se entiende por democracia moderna, aquella forma de gobierno de corte neoliberal que comparten como tendencia muchos de los estados democráticos contemporáneos. 5 Dejo al lector este tipo de reflexión que puede suscitar estas líneas y que va más de la mano del ardor docente de cada uno. 3

217

de

vista

desde

el

cual

tiene

cabida

la

pregunta

en

contraposición a la perspectiva que ofrece la ciencia en general y, particularmente, el que ha venido a imponerse en lo que hoy se conoce como ciencia política y sociología política. Asimismo, conviene esclarecer la noción de democracia que se guarda en la

pregunta,

comprender

aquello

que

constituye

su

singularidad, es decir, lo esencial que la instituye y mantiene como forma de gobierno. Por último, estudiar el fenómeno político y social del totalitarismo como una nueva forma de gobierno en cuya base se haya un tipo particular de experiencia humana, aquella que servirá de vestigio para rastrear en la democracia, no como un sistema de instituciones sino como una forma de sociedad e incluso como un estilo de vida, los pródromos de su decadencia en el totalitarismo o, en contraste, lo que en palabras de Lefort se presta en ella a ser derribado con el surgimiento de la sociedad totalitaria6. 2.

Sobre el punto de vista de la Filosofía Política

En el Libro I de la Ética a Nicómaco, Aristóteles señala la impertinencia de llevar a cabo un estudio sobre la política a la manera como lo haría una ciencia exacta. Tal impertinencia estriba en que “el fin de la política no es el conocimiento sino la acción”7. Esta premisa parece ser un asunto importante a la hora de hablar sobre la política y reclama aún más atención si

6 7

Cf. LEFORT, Claude. La cuestión de la democracia. EN: Ensayos sobre lo político. p. 23 Ética a Nicómaco 1095a 5-10

218

se reconoce que en la modernidad no han sido pocos los esfuerzos por importar de la racionalidad científica métodos de cálculo y de probabilidad que por su aparente éxito han seducido buena parte de los demás saberes. Lo anterior no quiere por lo pronto ser el preámbulo de una crítica demoledora contra el tipo de racionalidad científica que ha dominado gran parte de la actividad del hombre moderno. En realidad, sólo quiere destacar que si se trata del estudio sobre las formas de gobierno como tema recurrente de la filosofía política, éste podría realizarse según dos perspectivas muy diferentes, no excluyentes pero igualmente valiosas. Justamente

Norberto

Bobbio8

asevera

que

la

consideración de cualquier teoría de las formas de gobierno presenta al menos dos aspectos: uno «descriptivo» asociado a la sistematicidad del estudio, y uno «prescriptivo» ligado al uso axiológico que se le da a la misma tipología cuando

es

empleada para establecer entre los tipos o clases ordenados sistemáticamente un cierto orden de preferencia. En su función descriptiva, el estudio de las tipologías de gobierno se resuelve en una clasificación de las diversas constituciones políticas que se presentan a la vista del observador, es decir, guardada las proporciones, tal cual lo haría un botánico que después del estudio y la observación detallada de un número particular de plantas procedería a la clasificación taxonómica según su afinidad y familiaridad. En cuanto a su función

8

Cf. BOBBIO, Op. Cit., p. 9

219

prescriptiva, el estudio de las formas de gobierno no se limita a describir, es decir, a manifestar «juicios de hecho», sino que asume la función de expresar uno o más «juicios de valor» y, con ello, la de orientar las preferencias por una u otra forma de gobierno, aun cuando éstas le puedan ser ajenas al escritor político. Así, pues, una tipología de las formas de gobierno que asume netamente una función descriptiva, como un botánico, sería aquella que se limitaría a observar y describir sin ninguna preferencia, y esto en virtud de cierta objetividad propia de la ciencia positiva. Su problema, por lo tanto, consiste en determinar cómo clasificar y cómo describir. Empero, una tipología de las formas de gobierno que asume una función prescriptiva encuentra un sentido relevante a los juicios de valor que expresa frente a la política. De este modo, se plantea un problema que consiste en indicar cuál de las formas de gobierno es buena, mala, mejor o peor. Pero, ¿por qué no adoptar un punto de vista ligado meramente al carácter descriptivo del estudio de las tipologías de gobierno cuando en nuestros días se ha visto el aparente éxito de los métodos de cálculo y probabilidad importados a la ciencia política, y que han venido muy bien a los propósitos económicos y organizacionales de las instituciones sociales? Parte de la respuesta tiene que ver con la sospecha respecto de eso que asegura el aparente éxito de los métodos de las ciencias exactas aplicados a la ciencia política. Tal éxito consiste en que gracias a ellos se brinda la posibilidad de conocer características de la realidad social, o mejor, de 220

sectores de la realidad social delimitados por la misma ciencia que de otro modo estarían ocultos para el hombre. En verdad, quien opta por una función meramente descriptiva en la ciencia política, expresa su confianza en los resultados de estudios científicos fundamentados metodológicamente en datos obtenidos empíricamente

y

cuyo

reclamado

El

hombre moderno, verbi

cierta

objetividad.

tratamiento

han

gratia, se deja persuadir fácilmente por los resultados estadísticos sobre algún fenómeno social y presupone la dirección de su acción según el conocimiento aprehendido. Con todo, resulta difícil creer que del conocimiento de los resultados que arroja la ciencia política que ha adoptado métodos de las ciencias naturales, se desprende un cambio en la sociedad. En parte porque los cambios estructurales en la sociedad

son

generalmente

lentos

y

conllevan

muchos

esfuerzos, asunto con el que chocan los resultados del gran número de investigaciones de carácter científico, pues antes de ser

asimilados

por

las

personas

y

de

incidir

significativamente en la dirección de su acción, son opacados por muchos otros que, en la lógica del consumismo moderno, aparecen y desaparecen como una moda más. También, porque el punto de vista de la ciencia objetiva que se ha impuesto a la ciencia política y a la sociología política necesita de la referencia a un espacio denominado sociedad, el cual es inventariado y reconstruido planteando términos y forjando sistemas particulares de relaciones. Según Lefort9, la razón 9

LEFORT, Op. Cit., p. 19

221

para inventariar este espacio llamado sociedad consiste en que tanto los sociólogos como los politólogos deben procurar su objeto

de

conocimiento

a

partir

de

la construcción o

delimitación del «hecho político», considerado como hecho particular, distinto de otros hechos particulares: económico, jurídico, estético, etc. No obstante, al delimitar de este modo su objeto de estudio, “no se interroga por la forma social bajo la que se presenta y se ve legitimada la separación entre diversos sectores de la realidad social”10. “La constitución del espacio social, la forma de la sociedad, la esencia de lo que antaño se denominaba la ciudad”11, son obviados, entonces, al considerar como dado un espacio al que llaman sociedad. Por otra parte, no es preciso desatender una diferencia sustancial en la forma como el científico social (el escritor político) y el científico de la naturaleza abordan su objeto de investigación. Para Norberto Bobbio12, el criterio con el cual el científico social y el científico de la naturaleza se comportan está influido por el hecho de que el primero considera que puede intervenir directamente en el cambio de la sociedad en la medida en que sus juicios de valor presuponen que las cosas que evalúan pueden ser diferentes de «como son»; mientras que el segundo no estima poder intervenir en el cambio de la naturaleza13. Claude Lefort identifica la forma de 10 11 12

Ibíd., p. 19 Ibíd., p. 19 BOBBIO, Op. Cit., p. 10

Para Bobbio, el uso axiológico que un científico social puede hacer de cualquier concepto está estrechamente vinculado a la idea de que un cambio en la estructura de la realidad a la que tal concepto se refiere no solamente es deseable sino también 13

222

proceder por parte del científico social que se comporta como un científico de la naturaleza, como la consecuencia de una «voluntad de objetivación» propia de la ciencia en general y, en particular, de las ciencias políticas y de la sociología política. Esta voluntad de objetivación tiene como corolario “la posición de un sujeto capaz de efectuar operaciones de conocimiento que no deban nada a su implicación en la vida social; sujeto neutro, ocupado en detectar relaciones de causalidad entre fenómenos, o las leyes de organización y funcionamiento de los sistemas y subsistemas sociales”14. La neutralidad que la ciencia objetiva reclama del sujeto

está

fundamentada

que

en

una

concepción

dividida

del

yo

mantiene, por una lado, una parte activa, racional, sobre la cual reposa la capacidad del sujeto para conocer; y, por otro, una parte pasiva, emocional y contingente, que tendería a distorsionar el juicio objetivo del agente a causa de fuerzas motivacionales que harían de su juicio

algo parcial e

interesado, en

un

todo

caso,

lejos

de

ser

juicio

de

hecho y, por consiguiente, la causa del ofuscamiento que imposibilita el conocer15. Si se tiene en cuenta que es precisamente esta parte pasiva del sujeto la que cimienta en mucho las relaciones sociales entre los seres humanos, se

posible. Cf. Ibid., p. 10 14 LEFORT, Op. Cit., p. 20 15 Josep Corbí muestra que esta concepción divida del yo es producto de la influencia de las ciencias naturales que conciben al mundo en sí mismo como desposeído de cualquier propiedad valorativa, y por consiguiente no hay lugar para el bien o el mal, la crueldad o la generosidad, el valor o la cobardía o para el daño moral. Cf. CORBÍ, Josep. Morality, Self- Kwnowledge and Human suffering. New York: Routledge, 2012. p.p. 3 and 41.

223

podría afirmar que el politólogo o el sociólogo al que se le es asignada esta posición neutra bien podría estar privado “de pensar una experiencia que se engendra y se ordena en razón de un concepto implícito de las relaciones de los hombres entre sí y de una concepción de sus relaciones con el mundo”16, esto es, aquello que en toda comunidad comporta su estatuto de «sociedad humana»: en palabras de Lefort, «la castración del pensamiento político» cuya consecuencia es la

desatención

a

“la

diferencia

entre

la

legitimidad

e

ilegitimidad, verdad y mentira, la autenticidad y la impostura, la búsqueda del poder o el interés privado y la búsqueda del bienestar común”17. El punto de vista de la filosofía política vería tanto en la forma de proceder de las ciencias políticas y la sociología política, como en el sujeto neutro que reclaman, pocas posibilidades de formular aquella pregunta que según Lefort desde antaño ha guiado su camino: “¿qué significa la diferencia de formas de sociedad?”18 Sin olvidar el vínculo que pervive entre «forma de sociedad» y «forma de gobierno»19, la pregunta que ha suscitado el presente texto, a saber, ¿Puede la forma de gobierno democrático contener el germen del

LEFORT, Op. Cit., p. 20 Ibíd., p.p 20-21 18 Ibíd., p. 20 19 Cuando Aristóteles se pregunta en el libro III de la Política por aquello que constituye una ciudad y la distingue, dice lo siguiente: “si esto es así, es evidente que se debe decir de una ciudad que es la misma atendiendo principalmente a su régimen, y es posible llamarla con un nombre distinto o el mismo ya sean los que la habitan los mismos hombres ya sean otros completamente distintos” Política 1276b 9-10. 16 17

224

totalitarismo?, tampoco tendría relevancia para quién se la

formule

únicamente dentro de la perspectiva la ciencia

política y la sociología política. Pero de su irrelevancia puede desprenderse el peligro de la disolución de la consideración de la experiencia social que convoca la reflexión sobre el estatuto

humano

de

la

sociedad.

Por consiguiente,

afirmando la posición de Lefort, repensar lo político reclamaría, entonces, una ruptura con el punto de vista de la ciencia en general para quién la pregunta por el significado del cambio de las formas de sociedad y de las formas de gobierno puede resultar irrelevante. Ruptura mas no exclusión, ya que lo que causa dificultad a la filosofía política es la delimitación de lo político a una esfera particular de la sociedad por parte de un sujeto neutro que bien podría obviar la pregunta por el sentido del cambio de las formas sociales. Si la ciencia política y la sociología no perdieran de vista la forma general que legitima la sectorización de la sociedad en esferas particulares, podría asumirse el resultado sus estudios no como una parcela de conocimiento aislado de otras esferas, sino como algo que atiende a las experiencias humanas que subyacen a la constitución

de

la

forma

como

efectivamente

están

organizadas las sociedades y, en cuanto tal, a la diferencia entre lo legítimo e ilegítimo en una forma de gobierno y, a su vez, lo que en esencia comportaría su singularidad. 3.

La singularidad de la democracia.

225

Amparados en el punto de vista de la filosofía política, la pregunta

central

de

este

texto

adquiere

una

singular

importancia. En ella está en juego el examen de la democracia y su reivindicación como forma social y régimen político. Y dado que no existe una misma idea de democracia - ésta ha tenido históricamente varias acepciones que la han ubicado, ora como una forma legítima de régimen político, ora como una forma que va en detrimento del bien común – conviene traer a colación aquella noción que puede comprenderse mejor en contraposición al fenómeno del totalitarismo. Se entiende comúnmente por democracia aquella forma de gobierno y de sociedad que ubica la residencia del poder en todos sus ciudadanos y que hace de ellos sujetos iguales ante la ley (Isonomía). Con todo, esta definición sigue siendo muy

vaga

y

hasta imprecisa; deja escapar lo que la

constituye esencialmente y la mantiene. Debe existir algún rasgo distintivo que la haya hecho instituirse como tal en contraposición a otras formas de gobierno. Lefort advierte que para

que

la

singularidad

de

la

democracia

resulte

completamente sensible es necesario recordar lo que otrora fue el sistema monárquico del Antiguo Régimen. En efecto, en la monarquía el poder estaba incorporado en la persona del príncipe: “sometido a la ley y por encima de las leyes, condensaba en su cuerpo, a la vez mortal e inmortal, el principio de la generación y orden en el reino” 20. La palabra del príncipe era incuestionable, pero a su vez se veía sometido a 20

LEFORT, Op. Cit., p. 27

226

las leyes cuyo fundamento natural o divino estaba más allá de su persona: “Incorporado en el príncipe, el poder daba cuerpo a la sociedad”21. Para Lefort, es en la perspectiva de este modelo monárquico en donde se evidencia con mayor fuerza el carácter revolucionario de la democracia. Justamente, al no haber príncipe, el sitio del poder se convierte en un «lugar vacío», es indeterminado. El rasgo distintivo de la democracia, en este sentido, consiste, pues,

en

que

impide

a

los

gobernantes el apropiarse, el incorporarse al poder.

No

obstante, sería impreciso asegurar que el poder se aloja en la sociedad aludiendo al mecanismo de participación ciudadana del voto o sufragio. Éste es una instancia puramente simbólica que permite comprender unitariamente a la sociedad en un espacio y tiempo concretos. Así, pues, la democracia inaugura la historia en la que los hombres realizan

la prueba de la

indeterminación última en cuanto al fundamento del poder, el cual deja de ser consustancial a algún grupo o persona y no adopta figura alguna22. Este fenómeno de la «desincoporación», según Lefort, está acompañado de una desimbricación entre las esferas del poder, de la ley y del conocimiento. Lo anterior se debe a que cuando el poder cesa de manifestarse como el principio de generación y organización de un cuerpo social, y asimismo cuando se detiene en su pretensión de condensar dentro de sí una razón y una justicia trascendentes, el derecho y el conocimiento se afirman y se visibilizan apareciendo como 21 22

Ibid., p. 27 Cf. Ibíd., p. 27

227

esferas irreductibles e independientes al poder. El derecho despliega un futuro en el cual se vuelve dependiente de un debate constante sobre su fundamento y la legitimidad de lo que ha establecido. Algo parecido sucede con el conocimiento, el cual, en virtud de su nueva autonomía, se dirige hacia un manejo

continuo

del

proceso

del

saber

que

interroga

continuamente los fundamentos de la verdad23. En suma, en palabras de Lefort, la implicación de esta desimbricación de las esferas del poder, del derecho y del conocimiento hace ver que lo esencial en la democracia es una suerte de «indeterminación» en la cual se instituye y se mantiene gracias a la “disolución de los puntos de referencia de la certeza”: La sociedad democrática se instituye como una sociedad sin cuerpo, como sociedad que pone en jaque a la representación de una totalidad orgánica. No entendamos, sin embargo, que la unidad le es ajena, que carece de identidad definida; por el contrario, la desaparición de la determinación natural, antaño unida a la persona del príncipe y a la exis-tencia de una nobleza, presenta a la sociedad como exclusivamente social, en forma tal que el pueblo, la nación y el Estado se erigen como entidades universales, y todo individuo, todo grupo, se relacionan. Pero ni el Estado, ni el pueblo, ni la nación figuran como realidades sustanciales. Su representación se halla en la dependencia de un discurso político y una elaboración sociológica e histórica siempre ligada al debate ideológico24.

Ésta es la noción de democracia moderna que Lefort propone en contraposición al totalitarismo. En cuanto tal, ayuda a entender mejor lo que significó el cambio de la 23 24

Cf. Ibíd., p. 27 Ibíd., p. 28

228

forma de sociedad que degeneró en este, por algunos considerado así, género de «despotismo moderno»25, tanto en su vertiente nazista como estalinista. El auge del totalitarismo representó un fenómeno cuyas consecuencias son de tal magnitud que sin él como punto de partida no puede interrogarse a la democracia en nuestros días. De ahí la importancia de su análisis. Para Lefort, el totalitarismo no es consecuencia de la transformación de un modo de producción26; surge a partir de una “mutación política, de una mutación de orden simbólico, de lo cual el mejor testimonio es el cambio de estatuto del poder”27.

Esta

mutación

consiste

en

una

suerte

de

condensación entre la esfera del poder, la esfera de la ley y la esfera

del

conocimiento.

Y

si

en

la

democracia

la

desimbricación de estas tres esferas es condición sine qua

non de su permanencia en la indeterminación de puntos de certeza, en el totalitarismo de su condensación depende la imposibilidad de cualquier fisura del poder incorporado en un grupo, y en el grado más alto, en un hombre que designa lo que es real y lo que no: “El conocimiento de los fines últimos de la sociedad, de las normas que rigen las prácticas sociales, se convierte en propiedad del poder mientras que éste se revela como órgano de un discurso que enuncia lo real como tal”28. Esta postura se pondrá posteriormente en duda al ver que el totalitarismo puede considerarse mejor como una nueva forma de gobierno sin precedente alguno. 26 Son varios los análisis que muestran que al menos en sus dos vertientes más conocidas en el siglo XX, este fenómeno se gestó tanto en la sociedad capitalista como en la sociedad socialista. Cf. Ibid., p. 21 27 Ibíd., p. 20 28 Ibíd., p.21 25

229

Con todo, en este sentido cabe derogar la hipótesis de que

el

poder

en

un

gobierno

totalitario

es

asumido

abusivamente e impositivamente para someter a la sociedad en beneficio del interés egoísta de uno o unos pocos. Lo que en verdad sucede con el totalitarismo puede explicarse si se tiene en cuenta que antagónicamente a la tiranía, la distancia entre el partido que ostenta el poder y el pueblo desaparece. En efecto, una lógica de la identificación inherente a la ideología hace que emerja aparentemente la representación de una sociedad homogénea y transparente para sí misma, sociedad en la cual la división social es negada en todas sus formas. Aparece, entonces, la idea del «pueblo-uno», una imagen orgánica de la sociedad que asume su poder en la medida en que todos hagan parte de un mismo cuerpo. Allí no hay lugar para la diferencia, ésta es negada en todas sus formas y rechazada en aquellas expresiones que pueden ser incluso connaturales a los hombres. Al punto, dentro del marco de una tipología de formas de gobierno, se podría adelantar una respuesta a la pregunta sobre la relación entre la democracia y el totalitarismo. En efecto, si se pudiera encontrar algún aspecto de la democracia que sirviera como germen de movimientos totalitarios, éste tendría

que

buscarse

en

aquello

que

desestabilizaría

internamente la indeterminación en cuanto al poder. De facto no

son

pocas

democracias

las

circunstancias

modernas

pueden

sociales

llevar

a

que

pensar

en en

las la

probabilidad del fantasma del «pueblo-uno». Lefort parece ser 230

consciente de ello, pues para él la posibilidad de un desarreglo en la lógica democrática queda abierta cuando tras las crisis económicas

producto

de

las

guerras

y

los

conflictos

armados, la exasperación ante el conflicto entre grupos y clases sociales que no encuentran resolución simbólica en la esfera política, el uso particular del poder que pareciera recaer hacia el plano de lo real y encontrarse al servicio de los intereses y los apetitos de los vulgares ambiciosos; la inseguridad de los individuos puede ser un terreno fértil para

que

aparezca

como necesaria la búsqueda de una

identidad substancial, de un cuerpo social unido a su propia cabeza, de un poder encarnador, de un Estado liberado de la división que les muestre lo que se «debe» hacer, lo que «debe» ser29. Queda por indagar, sin embargo, si hay algo en la esencia misma de la democracia que permitiera desarreglo

en

circunstancias

su

lógica,

es

decir,

este si

las

sociales anteriormente mencionadas que se

conocen en las democracias, son producto de la misma indeterminación de los puntos de certeza en cuanto a la esfera del poder, de la ley y del conocimiento. Aunque es muy posible que la democracia permita ya la aparición de modos de organización y representación totalitarios, para Lefort faltaría aún un “cambio en la economía del poder para que surgiese la forma de sociedad totalitaria”30. Con todo, no se puede relegar al olvido un hecho insoslayable: cualquier forma de sociedad 29 30

Cf. Ibid., p. 29 Cf. Ibid., p. 29

231

que de facto ha sido posible en la historia descansa en experiencias básicas de la vida común de los hombres, experiencias que los han llevado a la configuración de los distintos tipos de gobierno que se han conocido y que emergen para responder a las necesidades de sus mismos creadores. La pregunta que surge es, pues, si la experiencia básica de la vida común de los hombres que ha llevado a la constitución de la sociedad totalitaria yace también en la sociedad democrática y aguarda allí hasta que ésta, en su decadencia, hace posible su desarrollo; o, mejor aún, si es precisamente la lógica democrática, esto es, una lógica de la indeterminación en cuanto a los puntos de certeza, la que ha permitido que esta experiencia que ha acompañado a los hombres desde hace mucho tiempo por fin haya encontrado un medio para alcanzar su realización en el Estado totalitario. En lo sucesivo, el presente texto explorará a la luz del pensamiento arendtiano esa experiencia básica de organización humana que se presta a ser observada como uno de los constituyentes del totalitarismo y su vínculo con el tipo de sociedad democrática. Se mantiene la sospecha de que muy probablemente, de la generalización de tal experiencia en la sociedad pueda darse un cambio en el estatuto del poder, esto es, la condición de la fundación de un nuevo cuerpo político, de un gobierno totalitario. 4.

La naturaleza del gobierno totalitario.

232

Si no es una tarea fácil identificar aquello que constituye la singularidad de la democracia a pesar de que como forma social tiene una larga historia, aún resulta mucho más complicado

descubrir

lo

que

hace

del

totalitarismo una nueva forma de gobierno. Hannah Arendt en

el

último

capítulo

de

su

libro

Los orígenes del

Totalitarismo, intenta descubrir precisamente aquello que en esta forma de gobierno podría ser su propia singularidad, algo así como la naturaleza del gobierno totalitario que le permitiría ser comparado con otras formas de gobierno y definido como ellas. Para Arendt, son dos características que descansan en una experiencia particular de la vida común de los hombres las que pueden dar razón de lo que instituye al Totalitarismo como una nueva forma de gobierno. La primera de ellas designa la esencia del gobierno totalitario: el «terror». Éste

puede comprenderse como un

sentimiento de miedo exacerbado que en el ámbito político va en desmedro de la unión y la acción de las personas. Si se tiene en cuenta que el poder se logra mediante la acción conjunta de los individuos, el terror sería la causa de la impotencia de los hombres. En cuanto tal, constituye un mecanismo de aislamiento entre las personas con el objetivo de romper todas las fronteras y canales de comunicación que son comúnmente garantizadas por las leyes positivas en un gobierno constitucional. Con todo, lo que distanciaría al Totalitarismo de una tiranía, que también emplea el terror 233

como mecanismo de poder, es que, en lugar de dejar tras de sí una arbitraria ilegalidad, reemplaza a las fronteras y los canales de comunicación entre individuos con un «anillo de hierro» que los mantiene estrechamente unidos como si su pluralidad se hubiese fundido en un mismo cuerpo31. En todo caso, la finalidad del terror en un totalitarismo consiste en destruir el único prerrequisito esencial de todas las libertades, el cual consiste en la capacidad de movimiento que es anulada cuando los hombres son compelidos a estar juntos, y que no puede existir sin el espacio garantizado por las fronteras que erigen entre los hombres las leyes positivas. Para

Arendt, el rol del

terror como

esencia del

Totalitarismo puede comprenderse mejor si se explora su singularidad como forma de gobierno en la alternativa misma sobre la que se han basado en filosofía política las definiciones de la esencia de los gobiernos, es decir, la distancia entre el gobierno legal y el gobierno ilegal, entre el poder arbitrario y el legítimo. Como Arendt lo señala, hasta este momento “nunca se ha puesto en tela de juicio que el gobierno legal y el poder legítimo, por una parte, y la ilegalidad y el poder arbitrario, por otra, se correspondían y eran inseparables. Sin embargo, la dominación totalitaria nos enfrenta con un tipo de gobierno completamente diferente”32. En efecto, la ilegitimidad del gobierno totalitario no estriba en que opera sin la guía de la ley como lo haría una tiranía. Todo ARENDT, Hannah. Ideología y Terror: de una nueva forma de Gobierno. EN: Los orígenes del totalitarismo. México: Taurus, 2004. p. 565 32 Ibíd., p. 560 31

234

lo contrario, el gobierno totalitario pretende fundarse en una ley que es llevada a la plenitud de su ejecución por encima de las leyes positivas:

Esta es la monstruosa y sin embargo aparentemente incontestable reivindicación de la dominación totalitaria, que, lejos de ser «ilegal», se remonta a las fuentes de la autoridad de las que las leyes positivas reciben su legitimación última, que, lejos de ser arbitraria, es más obediente a esas fuerzas suprahumanas de lo que cualquier gobierno lo fue antes y que, lejos de manejar su poder en interés de un solo hombre, está completamente dispuesta a sacrificar los vitales intereses inmediatos de cualquiera a la ejecución de lo que considera ser la ley de la Historia o la ley de la Naturaleza. Su desafío a las leyes positivas afirma ser una forma más elevada de legitimidad, dado que, inspirada por las mismas fuentes, puede dejar a un lado esa insignificante legalidad. 33

En un gobierno legal se necesitan leyes positivas para traducir y realizar el ius naturale o la ley divina en normas de lo justo o lo injusto. La distancia entre las leyes eternas y permanentes inherentes al fundamento iusnaturalista del derecho, y las acciones humanas, siempre contingentes y en constante cambio, es socavada gracias a las leyes positivas que, aun cuando son cambiantes y cambiables según las circunstancias,

poseen

una

relativa

permanencia

en

comparación con las acciones humanas, permanencia que deriva de la eterna presencia de su fuente de autoridad. Así, pues, “las leyes positivas son primariamente para

33

funcionar

como

factores

concebidas

estabilizadores

de

los

Ibíd., p. 561

235

cambiantes movimientos de los hombres”34 . Si el gobierno totalitario no se establece como debido

a

que

el

término

un

mismo

gobierno de

«ley»

ilegal

es

cambia

de

significado. Ya la ley no expresa el marco de estabilidad dentro del cual pueden tener lugar las acciones y los movimientos humanos, sino que se convierte en expresión del movimiento, y esto porque el fundamento de la ley corresponde a la ley de la Naturaleza o a la ley de la Historia que en el fondo expresan evolución,

movimiento lineal siempre progresivo: “En la

interpretación del totalitarismo, todas las leyes se convierten en leyes de movimiento. Cuando los nazis hablaban sobre la ley de la Naturaleza o cuando los bolcheviques hablan de la ley de la Historia, ni la Naturaleza ni la Historia son ya fuente estabilizadora de la autoridad para las acciones de los hombres Arendt

mortales; recalca

son movimientos

que

para

el

en

gobierno



mismas”35.

totalitario

es en

función de la ejecución de esta ley de la Naturaleza o de la Historia que debe superarse cualquier instancia estabilizadora que aletargue su movimiento. Así, las leyes positivas son superadas u obviadas, en cuyo reemplazo el mejor artilugio que garantiza el movimiento de la ley de la Naturaleza o de la Historia y su traducción a la realidad es el «terror total» en la medida en que, gracias a él, la voluntad y la acción de los hombres se ven reducidas para dar lugar a las fuerzas de la Naturaleza singularizan 34 35

o

de a

los

la

Historia,

enemigos

fuerzas de

la

que

a

su

paso

«Humanidad» (como

Ibíd., p. 562 Ibíd., p. 562

236

producto de la ley) contra los cuales se permite desencadenar el terror. De este modo, Arendt dirá con magistral audacia que “si la legalidad es la esencia del Gobierno no tiránico y la ilegalidad es esencia de la tiranía, entonces el terror es la esencia de la dominación totalitaria”36. Igualmente interesante resulta en los análisis de la autora de Los orígenes del Totalitarismo otra característica inherente a esta nueva forma de gobierno: la «ideología». Cuando se define la esencia de un gobierno por su legalidad, y cuando se entiende que las

leyes

son

las

fuerzas

estabilizadoras en los asuntos públicos de los hombres, se comprende

entonces

por

legalidad

a

la

imposición

limitaciones a las acciones de los ciudadanos. Lo

de

anterior

está circunscrito en un problema no menor de la filosofía política que alude a la relación entre el cuerpo político de un gobierno y las acciones de los seres humanos. En verdad, “la legalidad impone limitaciones a las acciones, pero no las inspira; la grandeza, pero también la perplejidad de las leyes en las sociedades libres estriba en que dicen lo que uno no debe hacer, pero no lo que debe hacer”37. Dado que la esencia de un gobierno es un cuerpo jurídico y legal formulado negativamente, cada cuerpo

político

debe

contener

algún

«principio de acción» en función de su permanencia. En otras palabras, debe haber otro criterio más allá de la legalidad que permita en un gobierno juzgar una acción en los asuntos

36 37

Ibíd., p. 564 Ibíd., p. 566

237

públicos, criterio que debe tomarse en referencia a un algo que motive e inspire tanto al gobierno como a los ciudadanos en su actividad pública. Según Montesquieu38, este principio de acción puede identificarse en la monarquía como el honor, en la república como la virtud y en la tiranía como el temor. Arendt

declara

que en un gobierno

totalitario no

habría en sentido estricto ningún principio de acción si se entiende éste como la capacidad para actuar según la convicción hacia algún programa. La convicción hace parte del terreno subjetivo - se necesita de la libertad para que el ciudadano decida cierto asentimiento racional por alguna cosa y de la voluntad para que dirija su acción en dirección a ella- mientras que los criterios empleados en la ejecución del gobierno totalitario suelen ser meramente objetivos. En efecto, de lo que se trata es de permitir el movimiento de la ley Natural o de la Historia, una ley que determina fatalistamente según el proceso evolutivo el destino de los ciudadanos. En ese sentido únicamente tiene cabida una suerte de conformismo debido a que los individuos se ven irremediablemente cogidos en un proceso de la Naturaleza y de la Historia con objeto de acelerar su movimiento, proceso en el cuál sólo pueden ser ejecutores o víctimas. En suma, lo que la dominación totalitaria necesita es una preparación que les haga igualmente aptos para el papel de ejecutores o de víctimas. Esta doble preparación, sustitutivo de un principio de acción, es la lógica

38

Citado por: Ibíd., p. 566-567

238

inherente a la ideología39. La lógica del pensamiento ideológico, es decir, la forma en que funciona la ideología para la preparación de ejecutores y víctimas, presenta tres elementos: en primer lugar está “la tendencia a explicar no lo que es, sino lo que ha llegado a ser, lo que ha nacido y ha pasado”40. Se explica no una historia muerta sino al movimiento que es descrito por la ley de la Historia, cuya importancia para la ideología estriba en que de la explicación de su acontecer depende en gran medida la comprensión total del devenir del tiempo: se explica el pasado para conocer el presente y predecir el futuro41. En segundo lugar, se encuentra una pretensión de emancipación del pensamiento respecto de la realidad y de toda experiencia de la que no se puede aprender nada nuevo. La ideología insiste en una realidad más verdadera que se encuentra oculta tras las cosas perceptibles a los sentidos. Esta pseudo-realidad en el fondo no es más que la modificación de la misma experiencia de la realidad conforme a las afirmaciones ideológicas, en donde pervive un esfuerzo inmenso por Ibíd., p. 568 Ibíd., p. 570 41 La consideración a la historia como un asunto importante de la ideología puede encontrarse por ejemplo en el libro autobiográfico de Hitler: “La enseñanza de la Historia Universal en las llamadas escuelas secundarias deja aún mucho que desear. Pocos profesores comprenden que la finalidad del estudio de la Historia no debe consistir en aprender de memoria las fechas y los acontecimientos, o a obligar al alumno a saber cuándo ésta o aquella batalla se realizó, cuándo nació un general o un monarca (casi siempre sin importancia real), o cuándo un rey puso sobre su cabeza la corona de sus antecesores. No, esto no es lo que se debe tratar. Aprender Historia quiere decir buscar y encontrar las fuerzas que conducen a las causas de las acciones que escrutamos como acontecimientos históricos”. HITLER, Adolf. Mi Lucha. Chile: Primera edición electrónica, 2003. p.p 12-13. (http://nslserver.com/Buecher/FremdeSprachen/Hitler,%20Adolf%20%20Mein%20Kampf%20%20Mi%20Lucha%20(ES,%204 15%20S.,%20Text).pdf ) 39 40

239

suministrar un significado secreto a cada acontecimiento público y tangible, y la sospecha de la existencia de alguna intención secreta tras cada acto político público42. Por último, el tercer elemento que comporta todo pensamiento ideológico está asociado con la demostración lógica o dialéctica que conduce a la autocoacción del pensamiento. En efecto, este recurso viene a cuento ya que, al no poder transformar la realidad, la ideología intenta conducir al pensamiento desde premisas

axiomáticamente

aceptadas

para

que,

ante

lo

evidente, ante la consistencia que no existe en parte alguna en la realidad, el pensamiento se libere tanto de la realidad como de su experiencia43. Sin duda, la combinación de estos dos elementos, del terror como esencia del Gobierno y de la lógica ideológica como principio de acción, nunca se había visto antes en ningún otro tipo de régimen. Sin embargo, tales elementos no pueden aunarse si no descansan en una experiencia básica de los hombres que se aprestan a la vida en comunidad y que ha de existir junto a ellos desde hace mucho tiempo. ¿Cuál es ese tipo de experiencia humana que penetra la forma de gobierno totalitario y que, por la razón que fuere, nunca había servido anteriormente para fundación de un cuerpo político? Esta experiencia humana es “la «soledad», el terreno propio del terror, la esencia del Gobierno totalitario, y para la ideología o

En nuestros días este elemento puede asociarse muy bien a la manipulación mediática de los medios masivos de comunicación. 43 Cf. ARENDT, Op. Cit., p. 571 42

240

la lógica, la preparación de ejecutores y víctimas”44. La soledad considerada en sí misma no se puede confundir con el aislamiento si bien éste puede ser causa aunque no forzosamente de aquella. El terreno propio del aislamiento es la vida política mientras que el de la soledad es la esfera de las relaciones sociales. Un hombre puede estar aislado, esto es, hallarse en una situación en la que no pueda actuar porque no hay nadie que actúe con él, sin necesidad de estar solo. Asimismo, un hombre puede estar acompañado de varias personas, vivir con ellas, compartir momentos y lugares, y, con todo, experimentar aún con mayor agudeza un estado de soledad. El aislamiento tiene que ver sobre todo con la esfera política de la vida mientras que la soledad corresponde a la vida humana en su conjunto. Así, pues, lo que hace novedosa a la dominación totalitaria y lo que la distancia de otras formas de dominación precedentes es que no se contenta con aislar a los hombres, tal como lo haría una tiranía al trasgredir el terreno público de la vida de los individuos, sino que destruye también la vida privada junto con la capacidad para la experiencia, la fabricación y el pensamiento. Cabe otra distinción: no es lo mismo hablar de la soledad que de la vida solitaria aun cuando ambas tengan que ver con la esfera de la vida privada del individuo. Una persona puede vivir solitariamente sin necesidad de sentirse solo, y una persona puede vivir en comunidad y experimentar soledad. En 44

Ibíd., p. 576

241

la vida solitaria, como la de eremita o la del ermitaño,

el

hombre puede gozar de un diálogo consigo mismo. Es la condición oportuna que le permite a una persona estar en meditación, en una suerte de diálogo que establece consigo mismo, con un alter ego con el que configura una unidad y que le permite encontrase a sí mismo. No son pocos ni escasos los testimonios que se tienen de esta experiencia propia del hombre contemplativo. Es más, se dan en diversos ámbitos, no necesariamente en la vida espiritual, como en la filosofía, la poesía, la literatura, el arte, la ciencia. Con todo, este diálogo del sujeto consigo mismo no parece perder la referencia con el mundo de sus semejantes. Éste último, por una parte, se ve representado muchas veces en ese alter ego con el que establece su diálogo, y, por otra, cuando el individuo necesita de él para consumar la configuración de su propia identidad que sólo puede percibirse en contraposición a los otros que no son él45. Aún en la experiencia más acérrima de vida solitaria, por de pronto el eremita que abandona por completo a los otros y el lugar físico que habitan para apartarse al desierto o a la montaña, no se ve a sí mismo sino como la representación de un elemento más dentro de

Un pequeño fragmento de una historia para ilustrar el tema: “-¿Quién eres tú? Le preguntaba fuertemente el padre a su hijo mientras éste, mirándolo fríamente a los ojos, atendía sigilosamente a sus palabras de exhortación. Pasaron algunos segundos que parecieron en aquel momento simplemente interminables, hasta que por fin, sollozando unos fonemas torpemente articulados, el niño le respondió: ¡no tengo idea de quién soy yo, pero al menos sé que no soy tú! En ese y sólo en ese instante, el padre 45

comprendió por primera vez que el proyecto que había trazado para su hijo no era más que la frustración ante lo que no se atrevió cuando tuvo lugar su juventud”.

242

una Iglesia (ἐκκλησία). En la soledad no existe como tal ese diálogo con sigo mismo, no son dos «yo» en uno, ya que en sentido estricto el «yo» es realmente uno. Es una suerte de abandono del propio «yo» que al no encontrar resolución en el mundo y los demás, se pierde con el mundo. Ante

tal

situación,

no

hay

confirmación de ninguna identidad por parte del encuentro con la fiable compañía de sus semejantes, pues aún con a ellos, aquello que los demás verían en él, no podría aceptarlo porque simplemente no está seguro de ello. En palabras de Arendt, en la situación de soledad “el hombre pierde la confianza en sí mismo como compañero de sus pensamientos y esa elemental confianza en el mundo que se necesita para realizar experiencias. El «yo» y el «mundo», la capacidad para el pensamiento y la experiencia, se pierden al mismo tiempo”46. Arendt explica que hay dos condiciones estrechamente ligadas a la soledad. Por un lado, el «desarraigamiento» que significa “no tener en el mundo un lugar reconocido y garantizado por los demás”. Por otro lado, la «superfluidad» que quiere decir “no pertenecer en absoluto al mundo”. Esta «no pertenencia» al mundo o a «ningún mundo» bien puede ser el terreno fértil en donde tiene cabida la dominación totalitaria a través de la ideología y el terror. En efecto, en una situación de soledad en la cual todo cae bajo la duda, la desconfianza ante los demás, ante el mundo y ante sí mismo, se abre la brecha para que el sujeto, como mecanismo de defensa ante tan 46

ARENDT, Op. Cit., p. 578

243

insoportable experiencia, confíe plenamente

en

la

única

capacidad de la mente humana que no precisa ni del yo ni del otro ni del mundo para funcionar con seguridad. Es la capacidad del razonamiento lógico cuya premisa es lo evidente por sí mismo. Quizá, como el elemento más sobresaliente de la

ideología,

cautivar

al

el

razonamiento

pensamiento

ante

lógico la

se

presta

consistencia

para de

la

argumentación. De este modo, desde una premisa aceptada axiológicamente, la dominación totalitaria puede llevar al hombre a actuar en formas en las cuales puede llegar a considerar de su nefasta acción la consecuencia lógica un proceso

consistente:

la

preparación

adecuada

para

desempeñar ya su papel de víctima o verdugo de la ley de la Naturaleza o de la Historia:

Lo que prepara a los hombres para la dominación totalitaria en el mundo no totalitario es el hecho de que la soledad, antaño una experiencia liminal habitualmente sufrida en ciertas condiciones sociales marginales como la vejez, se ha convertido en una experiencia cotidiana de crecientes masas en nuestro siglo. El proceso implacable por el que el totalitarismo impulsa y organiza a las masas parece como un escape suicida a esta realidad. El «frío razonamiento» y el «poderoso tentáculo» de la dialéctica que se apoderan de uno como una garra parecen como el último asidero en un mundo donde nadie es fiable y en donde no puede confiarse en nada. Es esta íntima coacción, cuyo contenido estriba en la estricta evitación de contradicciones, la que parece confirmar la identidad de un hombre al margen de todas las relaciones con los demás. Le encaja en el anillo de hierro del terror incluso cuando ya no está solo, y la dominación totalitaria

244

nunca trata de dejarle solo excepto en la extremada situación de un confinamiento solitario47.

Conclusión: experiencia de soledad y democracia

Aun después de un tiempo me sigue inquietando la pregunta de aquel estudiante brillante de Filosofía Política. Tal asombro no sólo tiene que ver con la apremiante respuesta que se reclama en un mundo como el nuestro que pretende, a veces con grandes obstáculos, construir-se democráticamente. En verdad, hay algo de inspirador en la forma de preguntar de quien bajo la inocencia de un niño logra abrir el portal del pensamiento hacia los sederos de la incertidumbre, invitación a pensar. Y, aunque después de las anteriores consideraciones no creo ofrecer una respuesta concluyente, considero que a mi estudiante y a todos quienes les sea familiar esta pregunta, puedo adelantarles una respuesta: Tal como Arendt lo señala, parece que la soledad es una experiencia antiguo,

humana que aunque ha existido desde

se ha generalizado en nuestro tiempo. No se puede

desconocer que tanto el desarraigamiento como la superfluidad han sido el azote de las masas modernas desde el comienzo de la revolución industrial, flagelo que se ha agudizado con el auge del imperialismo en el siglo XIX y con la ruptura de las instituciones políticas y de las tradiciones sociales en

nuestro

propio

tiempo48.

La sospecha que mantengo

puede verse a la luz del siguiente interrogante: ¿qué tanta 47 48

Ibíd., p. 579 Ibíd., p. 576

245

participación tiene la forma en que la sociedad democrática está configurada con los elementos que han hecho de la soledad un fenómeno generalizado en nuestros días? En efecto, si bien la soledad dentro del totalitarismo puede ser consecuencia del aislamiento a causa del terror y el miedo que todo movimiento pretotalitario debe adoptar en sus fases iniciales, no por ello se puede desconocer el hecho de que las condiciones socio-económicas que permiten y generalizan la experiencia humana de la soledad en las sociedades no totalitarias podrían hacerle más fácil el camino a un movimiento totalitario. Lefort49

argumenta que la

monarquía, por su acción niveladora y unificadora del campo social y simultáneamente, por su inscripción en ese campo, hacía posible el desarrollo de las relaciones mercantiles y un modo de racionalización de las actividades que condicionaban el auge del capitalismo. La democracia, al no contener ningún poder incorporado, parece permitir que el capitalismo adquiera aquella

libertad

para

desplegarse

que

otrora

le

fue

condicionada. Al respecto, no son pocos los análisis que han hecho ver la influencia del desarrollo del capitalismo en el cambio de la forma de la sociedad. Zygmunt Bauman, por su parte, ha incorporado el concepto de «liquidez» para describir cómo hoy por hoy se puede interpretar el movimiento que ha llevado a la sociedad moderna a comportarse como tal. La

sociedad

moderna se caracteriza porque carece de forma estable y 49

LEFORT, Op. Cit., p. 26

246

esto en gran medida debido a que aquella vieja pretensión que se constituyó como su estandarte por bastante tiempo: «derretir los sólidos», ha desencadenado una lógica imparable que ha llevado a la economía a apropiarse casi totalmente de todos los ámbitos de la vida del ser humano. En efecto, «derretir

los

sólidos»

significaba

desprenderse

de

las

obligaciones irrelevantes que se interponían en el camino de un cálculo racional de los efectos; tal como lo expresa Weber, liberar la iniciativa comercial de los grilletes de las obligaciones domésticas y de la densa trama de los deberes éticos50.

Lo

que se quiere decir al respecto es que debido a la vacuidad del poder, la disolución de los sólidos condujo a una progresiva emancipación de la economía de sus tradicionales ataduras políticas, éticas y culturales. Ahora bien, no resulta difícil ya para la sociedad contemporánea reconocer la supremacía que tiene la economía capitalista sobre el orden moral y político. La condición de su permanencia tiene que ver con el hecho de que hace irrelevante e inefectivo todo aspecto de la vida que no contribuya

a

su

incesante

y

continua

reproducción.

Consecuencia de tal despliegue no sólo es el auge de capitalismo como sistema económico que se mantiene en muchas de las sociedades contemporáneas, sino, en gran parte, el resquebrajamiento de los vínculos humanos51. Si los vínculos humanos son un importante elemento en la condición humana en la medida en que le permiten al hombre su 50 51

BAUMAN, Zygmunt. Modernidad Líquida. Buenos Aires: FCE, 2002. p. 10 Ésta parece ser una tesis que mantiene Bauman en su libro Amor Líquido.

247

realización tanto en la esfera pública como privada, entonces a causa de su fragilidad puede acontecer el surgimiento del espectral

fenómeno

de

soledad

la

generaliza

como

experiencia humana que subyace esencialmente a la forma de sociedad totalitaria. Y si el totalitarismo, al menos en las dos formas de gobierno totalitario que ha conocido con mayor fuerza

el

mundo

contemporáneo,

pudo

subsistir

independientemente de alguna modificación en los medios de producción, cabe decir que la lógica del capitalismo puede permitir perfectamente, es más, haría el terreno más fértil en la sociedad para la aparición de un gobierno totalitario. Por último, si el sistema democrático ha permitido que la lógica del capitalismo se imponga sobre todos los aspectos de la vida humana, y si la imposición de este nuevo orden económico ha ido en detrimento de la capacidad de los poderes políticos o morales para trastocar o reformar su proceder, a la base

de

la

experiencia

resquebrajamiento

de

las

de

la

soledad,

relaciones

fruto

humanas,

del

podría

sospecharse que la democracia puede contener ya el germen del totalitarismo y que es muy posible que un desarreglo en su lógica, esto es, en cuanto a la permanencia en la disolución de

puntos de certeza, podría permitir una mutación política, un cambio en la economía del poder y, en última instancia, una nueva forma de sociedad con tintes totalitarios.

248

Referencias ARENDT, Hannah. Ideología y Terror: de una nueva forma de Gobierno. EN: Los orígenes del totalitarismo. México: Taurus, 2004 ARISTÓTELES. Ética a Nicómaco. ARISTÓTELES. Política. Trad. Manuela García Valdés. Madrid: Gredos, 1988 BAUMAN, Zygmunt. Modernidad Buenos Aires: FCE, 2002

Líquida.

BOBBIO, Norberto. La teoría de las formas de Gobierno en la historia del pensamiento político. México: FCE, 2001. CORBÍ, Josep. Morality, Self- Kwnowledge suffering. New York: Routledge,2012.

and

Human

HITLER, Adolf. Mi Lucha. Chile: Primera edición electrónica, 2003. p.p 12-13. (http://nslserver.com/Buecher/FremdeSprachen/Hitler,%20Adolf%20%2 0Mein%20Kampf%20%2 0Mi%20Lucha%20(ES,%20415%20S.,%20Text).pdf ) LEFORT, Claude. La cuestión de la democracia EN: Ensayos sobre lo político.

249

LEI 13.146/2015 - ESTATUTO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: NOVA REALIDADE OU NOVO DESAFIO? Nordeci Gomes da Silva1 Magna Campos2 Resumo O objetivo do presente estudo é discorrer sobre a evolução dos direitos das pessoas com deficiência, destacando genericamente algumas mudanças que ocorreram em face da lei 13.146/2015. Para isso, foi realizada uma pesquisa bibliográfica seguida de um estudo exploratório das alterações realizadas na estrutura da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana, a fim de essa instituição educacional se adequar aos pressupostos estabelecidos na lei, para estabelecimentos de ensino, com vistas a melhorar a acessibilidade de pessoas com deficiência a todos os espaços da faculdade. Palavras-chave: Pessoas com deficiência. Estatuto. Desafio.

Introdução

A Constituição da República do Brasil aduz que todos são iguais perante a lei, não obstante essa a igualdade sempre foi tema de debates e reflexões. O escopo da igualdade é assegurar tratamento isonômico independentemente de raça, cor, etnia, deficiência. Apesar disso, presenciamos, diariamente, muitos atos de discriminação e segregação. Nos dias atuais, isso ocorre em relação às pessoas negras, às classes sociais desfavorecidas e

Acadêmica em Direito na Universidade Federal de Ouro Preto. Ex-aluna da FUPAC – Mariana. 2 Professora universitária, mestre em Letras e escritora. 1

250

também

com

relação

às

pessoas

que

possuem

alguma

deficiência. Por muitos anos, as pessoas com necessidades especiais foram tratadas como seres invisíveis: a elas eram negados seus direitos, o que demonstrava um descaso da sociedade e do sistema político do país. Eram consideradas incapazes, as “coitadinhas”, e não era raro ouvir comentários pejorativos direcionados a elas. Devido a esse preconceito, muitas viviam prisioneiras em seus lares, pois os familiares, com medo de que sofressem discriminação, mantinham-nas em um “cativeiro”. Nas últimas décadas, as pessoas com deficiência vêm conquistando um pouco mais de espaço e de visibilidade na sociedade, especialmente no que tange aos direitos. O primeiro passo ocorreu com a lei 7.853 de 24 de dezembro de 1989, na qual as pessoas com necessidades especiais conseguiram a garantia de pleno exercício dos seus direitos, conforme prescrito no artigo 2º: Ao Poder Público e seus órgãos cabe assegurar às pessoas portadoras3 de deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive dos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à previdência social, ao amparo à infância e à maternidade, e de outros que, decorrentes da Constituição e das leis, propiciem seu bem-estar pessoal, social e econômico.

É importante ressaltar a Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência de 2008, que tem o status de Emenda Constitucional,

foi

incorporada

ao

ordenamento

jurídico

Preferimos utilizar o termo “pessoas com deficiência”, por considerarmos “portadora” em desuso e inadequado, uma vez que ninguém porta uma deficiência...se tem! 3

251

brasileiro

pela

promulgação

do

Decreto

Executivo

nº.

6.949/2009, e prescreve em seu artigo 1º: O propósito da presente Convenção é o de promover, proteger e assegurar o desfrute pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por parte de todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua inerente dignidade. Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas (BRASIL, CONVENÇÃO DOS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA, 2008).

Como se nota, essa convenção já visava assegurar e promover o exercício de direitos e liberdades pela pessoa com deficiência, com vistas à inclusão social e cidadania. Mas mesmo após conquistas legais, as pessoas com necessidades

especiais

ainda

veem

seus

direitos

sendo

desrespeitados e/ou cerceados. Infelizmente, ainda há muito preconceito e falta de informação, fator que, muitas vezes, dificulta a eficácia das normas estabelecidas em proteção a esses direitos. Desde o ano 2000, tramitava no congresso um projeto de Estatuto da Pessoa com Deficiência, mas somente no dia 6 de julho de 2015 ocorreu a aprovação da lei 13.146, oriunda do Senado, de autoria do Senador Paulo Paim e sancionada em 2015, pela presidente Dilma Rousseff. Houve mais um grande avanço na história, para as pessoas com deficiência, tendo em vista que esse estatuto visa assegurar mais acesso às políticas públicas,

empoderar

esses

cidadãos

garantindo

uma

participação eficiente e mais ativa na sociedade civil, uma vez 252

que, tal qual exposto no artigo 84, entende que “a pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas” (BRASIL, Lei 13.146, 2015). Além disso, uma inovação dessa nova legislação refere-se à questão da capacidade civil, pois conforme a lei Art. 6° A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para: I - casar-se e constituir união estável; II - exercer direitos sexuais e reprodutivos; III - exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar; IV - conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória; V - exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e VI - exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas. (BRASIL. Lei 13.146, 2015)

Assim,

a

definição

de

deficiência

desvincula-se

à

presunção de incapacidade para a vida civil, ao passo que a pessoa incapaz tem sua capacidade de autogerir sua vida comprometida.

Mas

será

o

bastante

para

assegurar

efetivamente os direitos desses cidadãos? Quais os desafios que a nova legislação impõe na prática? É sobre essas questões que, exploratoriamente, nos deteremos. 2. A Lei 13.146 de 2015 A lei 13.146/15, conhecida como “Estatuto da Pessoa com Deficiência” e também como “Lei da inclusão”, foi 253

sancionada em 6 de julho de 2015, e ficou por 6 meses em vacatio legis, tornando-se eficaz a partir de 6 de janeiro de 2016. A proteção às pessoas com deficiência já estava prevista em nosso ordenamento jurídico desde 1989, conforme já mencionamos. Pode-se afirmar que ocorre, com essa lei, a ratificação

e

ampliação

dos

direitos

das

pessoas

com

necessidades especiais, algo que podemos considerar um grande progresso. O Estatuto daPessoa com Deficiência é composto por 127 artigos que abrangem diversos aspectos imprescindíveis para garantir o tratamento digno às pessoas com necessidades especiais, tais como: educação, acessibilidade, capacidade civil e discriminação, os quais serão abordados à diante. O estatuto esclarece, em seu artigo segundo, o que é deficiência: Considera-se pessoa com deficiência, aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza, física, mental, intelectual ou sensorial, o qual em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. (BRASIL. Lei 13.146, 2015)

Com a edição da nova regra, ocorreram mudanças significativas em relação à capacidade civil das pessoas com necessidades especiais, tais como, a revogação de alguns dispositivos do Código Civil de 2002. O artigo 3º e 4 º sofreram alterações: os absolutamente incapazes de exercer os atos da

254

vida civil são somente as pessoas menores de 16 anos4 e não há previsão

de

incapacidade

relativa para as

pessoas com

deficiência. Dessa forma, novo estatuto publicado impingiu mudanças significativas no atual sistema de identificação de pessoas incapazes. A premissa básica da novel legislação é considerar que pessoas com deficiência não sejam tecnicamente consideradas incapazes, especificando que a deformidade não pode afetar a plena capacidade civil da pessoa natural. A recémchegada legislação para inclusão da pessoa com deficiência fez com que os deficientes deixassem de ser etiquetados como incapazes, instaurando uma concepção mais isonômica e pautada no princípio da dignidade humana, buscando insculpir que a pessoa com deficiência passe a ser, apesar da disformidade, dotada de capacidade legal plena. (TRINDADE, 2016, p. 12)

Para atestar a deficiência de determinada pessoa, havendo

necessidade,

multiprofissional

e

a

lei

prevê

interdisciplinar.

avaliação Essa

por

equipe

avaliação

será

biopsicossocial, ou seja, serão analisados os fatores biológicos, psicológicos

e

sociais

estritamente médico



em

substituição

ao

conceito

previsto anteriormente – e, a partir do

resultado, será possível declarar se a pessoa terá condições de exercer todos os atos da vida civil, da qual muitas pessoas com necessidades especiais mentais eram privadas, ou se precisarão de algum apoio, por meio de curatela. Em casos específicos, se restar comprovada a necessidade de assistência, a pessoa com

Conforme ensina Tartuce (2015, p.1), “em suma, não existe mais, no sistema privado brasileiro, pessoa absolutamente incapaz que seja maior de idade”. 4

255

deficiência poderá ser curatelada, mediante processo promovido pelo ministério público ou por iniciativa própria. Além da curatela, há um novo processo: a tomada de decisão apoiada, por meio da qual a pessoa com deficiência elege duas pessoas idôneas e de sua confiança para ajudá-la a tomar decisões sobre atos da vida civil relacionados a negócios, podendo estabelecer limites de apoio e encerrá-lo quando julgar necessário. Também ficou estabelecido na referida lei a possibilidade da pessoa com deficiência mental ou intelectual contrair matrimônio, quando encontrar-se em idade núbia, declarando a vontade por meio de seu curador ou responsável. Em relação à capacidade civil, percebemos alterações ideológicas5 deficiências,

no

tratamento

especialmente,

para

com

relativas

as

pessoas aos

com

aspectos

discriminatórios, ao direito de personalidade e à sua dignidade humana. Realmente necessitavam desse aparato legal, pois não exerciam participação ativa civilmente. Contudo, essa nova realidade traz enormes desafios que deverão ser enfrentados por meio de ações voltadas para conscientização, debate e reflexão da sociedade como um todo. 3. Discriminação Todavia, essas alterações geram conflitos com legislações vigentes como o Novo Código Civil e com o Direito Processual Civil vigentes, uma vez que, tal qual levantado por Kumpel (2015) e Simão (2015), conforme citado por Trindade (2016), o novo estatuto gera descompasso entre a lei e a realidade em algumas situações de “capacidade civil”. Todavia, essa discussão por necessitar de um trabalho focado especificamente nessa questão e no debate aí inerentes, deixaremos tal aspecto para outra oportunidade de pesquisa e publicação. 5

256

O capítulo dois do título I do Estatuto Pessoa com Deficiência refere-se à discriminação e salienta que as pessoas deficientes têm direito à igualdade e não devem sofrer qualquer espécie de discriminação. Considera-se discriminação: [...] toda forma de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a recusa de adaptações razoáveis e fornecimento de tecnologias assistivas. (BRASIL. Lei 13.14, 2015)

A inovação diz respeito à criminalização de qualquer forma de discriminação da pessoa com deficiência, outro avanço importante

que

confere

seguridade

dos

seus

direitos

conquistados. Neste sentido, Trindade (2016, p.83) elenca algumas condutas que estão sujeitas à punição de acordo com o novo estatuto: será punido o empregador, com pena de dois a cinco anos de detenção e multa, que negar trabalho à pessoa com deficiência em razão da sua debilidade. Essa mesma punição se aplicará àquele que dificultar ou obstar a aceitação da pessoa com deficiência em planos de saúde. A novel legislação, também, prevê que a pessoa com deficiência poderá utilizar o numerário depositado a título de FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço) para a aquisição de próteses ou órteses.

Observamos, portanto, uma ramificação ou projeção dos efeitos do estatuto nos campos do Direito do Trabalho, Direito Administrativo,

Direito

Civil

e

Processual

Civil,

Direito

Previdenciário dentre outros.

257

A Constituição da República de 1988 tem como princípio basilar a dignidade da pessoa humana, com a criminalização do preconceito, tão latente em nossa sociedade, este princípio fica legitimado garantindo às pessoas com deficiência a igualdade e dignidade. Porém, precisamos estar atentos a tais atos, para que as pessoas que os praticam sejam devidamente punidas. 4. Sobre a educação A Constituição preceitua também que a educação é um direito que deve ser assegurado a todos, e em seu artigo 6º preceitua:

“São

direitos

sociais

educação,

a

saúde,

a

alimentação [...]”. A lei 13.146/2015 ratifica essa norma fundamental e assegura, em seu artigo 28, que serão vedados adicionais em matrículas e mensalidades nas escolas privadas:

Às instituições privadas, de qualquer nível e modalidade de ensino, aplica-se obrigatoriamente o disposto nos incisos [...] do caput deste artigo, sendo vedada a cobrança de valores adicionais de qualquer natureza em suas mensalidades, anuidades e matrículas no cumprimento dessas determinações. ((BRASIL. Lei 13.14, 2015)

Esse

artigo

inclusive

gerou

uma

ação

de

inconstitucionalidade proposta pela CONFENEN6, a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 53577, que foi julgada pelo Supremo 6 7

Tribunal

Federal

como

improcedente,

portanto,

Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino. http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=318570

258

manteve-se o preceito de que as escolas particulares devem cumprir obrigações do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Podemos

fazer

uma

interpretação

ampla

deste

dispositivo. Apesar de fazer menção às escolas particulares, devemos atentar para o fato de as escolas públicas, muitas vezes, criam mecanismos que acarretam ônus para os pais de crianças/jovens com deficiência, alegando que não há apoio do estado e município para o atendimento a tais sujeitos. O que nos parece mais um desafio com o qual as pessoas com deficiência ou seus responsáveis terão que lidar, para garantir a efetivação dos preceitos mencionados na lei. Outro aspecto importante a ser analisado nas escolas é a questão da acessibilidade, pois muitos alunos tem dificuldade de acesso, devido a problemas na infraestrutura das escolas, como: ausência de rampas de acesso, banheiros adaptados, piso tátil etc. Um dos maiores motivos da falta de acessibilidade nas escolas deve-se ao fato de as construções serem mais antigas ou não projetadas para receberem normalmente pessoas com deficiência. Conforme já mencionado, as pessoas com

deficiência

eram

excluídas

da

vida

social

e

não

frequentavam as escolas regulares. Com essa nova previsão legal, espera-se que as escolas se adequem e recebam os alunos com necessidades especiais com a dignidade que merecem e que são assegurados. Na FUPAC-Mariana mesmo, além das adaptações que já existiam, foram realizadas algumas outras melhorias em suas

259

instalações de forma a melhor atender aos requisitos legais e aos alunos ou funcionários com deficiência que nela circulam. Tal demanda foi levantada pela Comissão Própria de Avaliação (CPA) e o Núcleo de Apoio ao Estudante (NAE), tendo em vista a nova lei ter sido pauta das aulas de algumas disciplinas do curso de Direito, o que propiciou perceber-se a necessidade de adaptação à nova realidade pressuposta em lei para a acessibilidade de pessoas com deficiência aos ambientes educacionais. As duas comissões mencionadas, ambas internas à faculdade, levaram a questão da necessidade de adaptação aos pressupostos do Estatuto da Pessoa com Deficiência para discussão com gestão da faculdade. Após ter sido acolhida, as adaptações estruturais foram realizadas entre 2015 e 2016. Dentre outras medidas, foram realizadas alterações estruturais: nas portas dos banheiros, para que alunos ou funcionários cadeirantes possam ter acesso facilitado; foram instaladas faixas especiais no chão (piso tátil) para guiar deficientes visuais; foram instaladas placas identificadoras em todas as salas e ambientes da faculdade e melhoria na comunicação verbal e não verbal, com escrita em letras maiores e destacadas, tradução em braile e, quando conveniente identificação não verbal; delimitação e sinalização de vaga especial no estacionamento da faculdade e melhoria na cobertura do chão da rampa de acesso, na sinalização e comunicação

deste

espaço.

Adiante

evidenciaremos

com

algumas fotos as adaptações estruturais realizadas.

260

Adaptações nos banheiros femininos e masculinos, ampliação da entrada, porta de correr, maior espaço para entrada de cadeira de rodas, comunicação verbal e não verbal mais visível e marcação em braile:

Foto 01 e 02: Portas de acesso ao banheiro masculino e feminino do 1° andar. Fonte: Arquivo próprio (nov. 2016).

Adaptações na sinalização dos espaços internos da faculdade, escrita em destaque, comunicação não verbal ou em braile em todos os espaços e em altura adequada para o contato tátil:

261

Foto 03 a 06: Sinalização dos espaços instituicionais. Fonte: Arquivo próprio (nov. 2016).

Melhorias

na

rampa,

revestimento

antiderrapante

trocado e melhoria na sinalização e colocação de comunicação não verbal e em braile no corrimão:

262

263

Foto 07 a 10: Melhorias na rampa de acesso ao 2° andar. Fonte: Arquivo próprio (nov. 2016).

Troca

da

proteção

antiderrapante

da

escada,

da

comunicação visual verbal e não verbal, colocação de piso tátil e sinalização em braile no corrimão.

264

Foto 11 a 13: Escada de acesso ao 2° andar. Fonte: Arquivo próprio (nov. 2016).

Nova

marcação

e

sinalização

apropriada

da

vaga

existente no estacionamento da faculdade para cadeirante:

265

Foto 14: Sinalização da vaga do estacionamento interno. Fonte: Arquivo próprio (nov. 2016).

Melhoria do piso táctil nos corredores da faculdade:

Foto 16: Piso tátil dos corredores. Fonte: Arquivo próprio (nov. 2016).

5. Acessibilidade Urbana Outro

aspecto

relevante

da

lei

diz

respeito

à

acessibilidade urbana que é uma grande dificuldade enfrentada

266

nas cidades brasileiras, pelas pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida. Considera-se pessoa com mobilidade reduzida, de acordo com o decreto nº 5.296/04 em seu art.5º §1º, e, II: Pessoa com mobilidade reduzida, aquela que, não se enquadrando no conceito de pessoa portadora de deficiência, tenha, por qualquer motivo, dificuldade de movimentar-se, permanente ou temporariamente, gerando redução efetiva da mobilidade, flexibilidade, coordenação motora e percepção (BRASIL, Decreto 5.296, 2004)

Toda pessoa tem direito a exercer os seus direitos de participação cidadã. Para que isso ocorra, o poder público deve promover intervenções nas vias e espaços públicos, observando as regras da estabelecidas no Estatuto das Pessoas Deficiência, título III, capítulo I e nas regras do referido decreto. Neste contexto, é preciso lembrar que comumente, presenciamos, em nosso dia a dia, pessoas com mobilidade reduzida

ou

deficiência

serem

impedidas

de

participar

ativamente da vida social devido à falta de acesso a locais “básicos” no ambiente da própria cidade que reside. A nova previsão legal ratifica o que já estava prescrito:

as vias

urbanas, escolas, hospitais, repartições públicas em geral, deverão se adequar para garantir o acesso efetivo a serviços e lazer das pessoas com deficiência. As mudanças necessárias incluem: piso tátil, rampas de acesso, vagas de estacionamento para pessoas com deficiência, elevadores nos transportes públicos, pois presenciamos a luta 267

diária de quem utiliza esse meio para sair de casa, a falta de treinamento e paciência das pessoas que o operam, conjugada com a estrutura deficiente dos meios de transportes. Apesar de já existir uma lei específica que regula a acessibilidade, percebemos que ainda há um desrespeito às regras, pois muitos lugares não têm acesso eficiente, o que dificulta vida digna a quem necessita de adequações para se locomover com autonomia e segurança. Se pensarmos então na realidade de cidades históricas como Mariana e Ouro Preto, em que os passeios das ruas mal cabem pedestres comuns, essa questão fica ainda mais delicada. Diante dessa realidade, concluímos que a inclusão social precisa ser repensada em nossa sociedade, pois a falta de acesso representa uma grande barreira para a interação das pessoas com necessidades especiais, pois muitos deixam de frequentar diversos locais, saem de

casa somente

para

trabalhar, deixam a vida de lazer, em virtude desse descaso. Considerações finais

A constituição da República de 1988 consagra em seu artigo 1º os fundamentos do Estado Democrático de Direito, dentre os quais destaca-se a dignidade da pessoa humana que é um direito fundamental do cidadão brasileiro, ratificado nos tratados internacionais os quais o Brasil é signatário.

268

A tese da dignidade humana é a de que somos iguais, independente de cor, raça, religião ou necessidade especial, destarte somos titulares dos mesmos direitos e deveres. Uma sociedade se torna justa (parafraseando o grande professor

Rui

Barbosa)

quando

trata

desigualmente

os

desiguais, deixando-os equiparados, garantindo a isonomia de forma eficiente. O Estatuto da Pessoa com Deficiência surge trazendo uma

nova

realidade

para

as

pessoas

com

deficiência,

endossando o princípio isonômico. Todavia, precisamos estar atentos e exigir o cumprimento desses direitos consagrados tanto na Carta da República, quanto na lei 13.146/2015. Consideramos que apenas mudanças na legislação não são suficientes para conferir dignidade a uma pessoa, todavia, sabemos que, por meio de força da lei, muitas empresas, escolas, instituições públicas e privadas promovem ações de adaptação para não serem punidas por descumprimento de exigências legais ou por receio de repercussões negativas na mídia. Na FUPAC-Mariana, a Comissão Própria de Avaliação (CPA) e o Núcleo de Apoio ao Estudante (NAE), ambas comissões

internas

à

instituição,

levou

a

questão

da

necessidade de adaptação aos pressupostos do Estatuto da Pessoa

com

Deficiência

para

discussão

com

gestão

da

faculdade. Após ter sido acolhida, as adaptações estruturais foram realizadas entre 2015 e 2016. Sendo assim, a mudança jurídica é importante para que as mudanças sejam mais efetivas nas questões referentes à 269

inclusão social e tornem os direitos mais próximos das pessoas com deficiência. Bom será o dia em que as boas atitudes gerem direitos e não as más. Mas enquanto isso não ocorre, é necessário que mudanças paradigmáticas nas leis possam buscar corrigir distorções no direito brasileiro. É nosso dever de cidadão fiscalizar junto ao poder público se as dificuldades das pessoas com deficiência estão sendo supridas, ou se essas prescrições não passam de mera legislação inócua. Portanto, essa nova realidade também é um novo desafio. Referências BRASÍL. A Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência Comentada. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, 2008. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. BRASIL. Decreto nº 5.296 de 2004: Acessibilidade das Pessoas Portadoras de Deficiência ou com Mobilidade Reduzida, 2004. BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015: Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). 2015. BRASIL. Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989: O apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social, sobre a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência. 1989.

270

TARTUCE, Flávio. Alterações do código civil pela lei 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência): repercussões para o direito de família e confrontações com o Novo CPC. Disponível em: http://www.migalhas.com.br/FamiliaeSucessoes/104,MI22421 7,21048Alteracoes+do+Codigo+Civil+pela+lei+131462015+Estatuto+da+ Pessoa+com Acesso em: 24 nov. 2016. TRINDADE, Ivan Gustavo Junio Santos. Os reflexos do estatuto da pessoa com deficiência (Lei n. 13.146-15) no sistema brasileiro de incapacidade civil. 2016. 126 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Humanas) - Pontifícia Universidade Católica de Goiás, GOIÂNIA, 2016. VADE MECUM SARAIVA. 17. Ed. Atual e ampl. São Paulo: Saraiva, 2014.

271

A VINGANÇA PRIVADA DA PSEUDOVÍTIMA NOS CRIMES DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR Paola Rezende do Nascimento Pedrosa1 Fabiano César Rebuzzi Guzzo2 Carlos Randel Crepalde Mafra3 Resumo O presente artigo traz uma discussão sobre as provas trazidas aos processos criminais nos casos de violência doméstica e familiar, destacando, mais especificamente, a força da palavra da vítima do delito, em especial nos casos que se aplicam a Lei 11.340 de 07 de agosto de 2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha. Para isso, é feita uma reflexão acerca da referida legislação, cujo escopo é proporcionar instrumentos adequados para se enfrentar a violência doméstica, a qual aflige muitas mulheres em nosso país, em confronto com o fato de a mulher, como sujeito da relação processual, abusar dos direitos que lhe são conferidos pela norma, ao imputar ao homem fatos que não ocorreram, com finalidade vingativa, visando apenas prejudicálo, seja devido ao término da relação conjugal ou porque não tem mais interesse pelo parceiro ou não o ama mais. A análise terá como fundamento um resgate histórico do processo da violência doméstica e familiar ocorrida antes a promulgação da Lei Maria da Penha até os dias atuais, consoante aos ditames penais e processuais penais, com ênfase nas práticas abusivas da classe feminina, que busca apenas se vingar do homem com quem tem ou teve relacionamento afetivo. Palavras-chave: Direito Penal e Direito Processual Penal; Provas; Vítima e vitimologia; Violência Doméstica e Familiar.

Introdução Este

artigo tem por objetivo apresentar algumas

reflexões acerca da vingança privada da mulher nos crimes de violência doméstica e familiar. Bacharel em Direito pela Universidade Presidente Antônio Carlos, Mariana/MG. Advogado. Mestre em Direito. Professor acadêmico. Coordenador do Curso de Direito da Universidade Presidente Antônio Carlos, Mariana/MG. 3 Advogado. Mestrando em Criminologia Forense. Professor acadêmico da Universidade Presidente Antônio Carlos de Mariana. 1 2

272

Dentro desta temática, aborda a força da palavra da vítima do delito nesta modalidade de violência, visto que em 2006,

o

nosso

ordenamento

jurídico

ganhou

mudanças

significativas no quadro jurídico criminal brasileiro, com o advento da lei 11.340, de 7 de agosto do referido ano, intitulada “Lei Maria da Penha”, a qual surgiu com o objetivo de reduzir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Sendo assim, o objeto de pesquisa é pormenorizar que em meio a toda proteção estatal advinda com a legislação em comento, facilmente se vê casos em que a mulher, como sujeito da relação processual, abusa dos direitos que lhe são conferidos pela lei, ao imputar ao homem fatos que não ocorreram, com finalidade vingativa, visando apenas prejudicálo. Delimitando ainda mais esta temática, este trabalho levanta a problematização existente entre a valoração da palavra da vítima nos processos relativos a esta norma, ao passo que se considera que os crimes desta natureza ocorrem no ambiente doméstico e familiar e raramente é testemunhado por alguém, o que torna a aplicação da lei ainda mais complexa, face à capacidade da mulher de fantasiar situações na oportunidade em que presta declarações, tanto na fase policial quanto na fase judicial, de modo a iniciar a sua vingança privada, visto que comumente as mulheres buscam a força policial para efetuar o registro de ocorrências, imputando ao agressor, fatos que não aconteceram e, com isso, solicitam

273

medidas de natureza protetiva, quando elas, na verdade, querem apenas a separação ou “dar um susto” no homem. Assim, para a realização deste estudo, procura-se compreender que o papel da lei em comento é o de proteger de forma satisfatória a realidade das mulheres que realmente são vítimas e sofrem as mais diversas formas de violência, e não para ser utilizada a bel-prazer, eis que esta conduta acarreta a movimentação

de

toda

a

máquina

estatal

para

apenas

prejudicar o homem. Mais adiante, esclarece que nem sempre autor e vítima ocupam lados opostos na relação, podendo esta, muitas vezes, agir de maneira a provocar o crime. Uma das justificativas para a realização desta pesquisa é o gosto da pesquisadora pelo estudo do Direito Penal adquirido ao longo dos anos acadêmicos e pela prática profissional, visto que no cotidiano da Delegacia de Polícia Civil de Ouro Preto, onde atua profissionalmente, depara-se com grande demanda de registros de ocorrências policiais de violência doméstica e familiar, sendo que na maioria dos casos desta natureza, a palavra da vítima apresenta-se como uma das poucas provas possíveis ao caderno investigatório e conseguinte processo judicial, considerando que se trata de crime cercado pela invisibilidade do âmbito doméstico, visto que, via de regra, acontece fora do alcance de testemunhas, envolvendo apenas os sujeitos ativo e passivo da relação. Com isso, verifica-se a figura jurídica da “síndrome da mulher de Potifar”, da qual decorre que a mulher pode fantasiar fatos para prejudicar o homem, com quem tem ou teve relação 274

intima de afeto, perfazendo uma vingança privada por parte da mulher com relação ao companheiro, seja ela decorrente à separação do casal ou de apenas uma briga conjugal. 2. Vitimologia

Dando ênfase ao importante papel desempenhado pela vítima (mulher) nos crimes praticados no âmbito doméstico e familiar, é importante tratar sobre o conceito de vitimologia. Para entendermos este conceito, inicialmente devemos abordar a definição de vítima. De acordo com o dicionário Aurélio, “vítima” é:

“O homem ou animal imolado em holocausto aos deuses. 2. Pessoa arbitrariamente condenada à morte, ou torturada, etc. 3. Pessoa ferida ou assassinada, ou que sucumbe a uma desgraça, ou morre em acidente, epidemia, etc.” (FERREIRA, 1995).

Compartilha deste conceito a autora Alline Pedra Jorge (2005, p. 15), que narra que o significado original da palavra vítima tem o sentido figurado pejorativo de perdedor, vencido. Ela enumera também que, pg. 29, vítima penal é aquela que “sofre uma agressão a um bem jurídico seu, tutelado pelo Direito Penal”. Antônio Beristain (2000, p. 192), salienta que: “Por vítima deve-se entender um círculo de pessoas naturais e jurídicas mais amplo que o sujeito passivo da infração, incluindo-o, mas também suplantando-o. Vítimas são todas as pessoas naturais e jurídicas que, direta ou indiretamente,

275

sofrem um dano notável como consequência da infração”.

Não é outro o entendimento da Organização das Nações Unidas, que, mediante a Resolução 40/34, define vítima como: “[...] Pessoa que, individual ou coletivamente, tenham sofrido danos, inclusive lesões físicas ou mentais, sofrimento emocional, perda financeira ou diminuição substancial de seus direitos fundamentais, como consequências de ações ou omissões que violem a legislação penal vigente nos Estados-Membros, incluída a que prescreve o abuso de poder [...] (ONU, 1985, apud HEITOR PIEDADE JUNIOR, p. 142, 143).

Para Guilherme de Souza Nucci (2010, p. 1107): “Vítima é o sujeito passivo do crime, ou seja, a pessoa que teve o interesse ou o bem jurídico protegido diretamente violado pela prática da infração penal. Denomina-se, também ofendido. Deve ser ouvido, sempre que possível, durante a instrução, a fim de colaborar com a apuração da verdade real, valendo a oportunidade, inclusive, para indicar provas e mencionar quem presuma ser o autor do delito (art. 201, CPP)”.

Segundo Mendelson (apud ACQUAVIVA, 2010, p. 873), a vítima não pode mais ser analisada como coadjuvante de um crime nem mesmo ficar restrita a ser pólo passivo do crime, razão pela qual, deve sair da obscuridade na qual sempre foi colocada. Superado o conceito de vítima, adentraremos na seara da vitimologia. Para Piedade Júnior (1993, p. 78), o termo vitimologia deriva do latim victima, ae e da raiz grega logos. 276

Descreve Marcus Claudio Acquaviva (2010, p. 873), que vitimologia é “ramo da Criminologia que se ocupa da influência da vítima na prática do delito”. Assim, podemos enfatizar que a vítima realmente possui uma posição de destaque para o Direito, sob a ótica do prisma criminoso e vítima, deixando esta última de ser apenas coadjuvante de uma infração penal. Todavia, este trabalho não terá como objeto de estudo tão somente a mulher, vítima de violência doméstica e familiar e sim analisará o homem como vítima da relação processual, face à vingança perpetrada pela mulher, quando ela realiza falsas imputações criminosas ao homem para os órgãos estatais.

3. Tipologia Da Vítima

A criminologia admite que a vítima passou a constituir foco de análise fundamental para a compreensão dos fatos que envolvem o crime, integrando a chamada trilogia criminal. Alline Pedra Jorge (2005, p. 27), esclarece que para o aferimento do dolo e da culpa do infrator é indispensável que se conheça a relação criminoso-vítima, razão pela qual, esta última tem importante papel no fato delituoso. São várias as classificações de tipos de vítimas. A clássica tipologia é a de Benjamim Mendelson (apud PIEDADE JUNIOR, 1993, p. 100), através da qual, as vítimas se classificam em

vítimas

completamente

inocentes;

vítimas

menos culpadas que os delinquentes, vítimas tão culpadas 277

quanto

o

delinquente;

vítimas

mais

culpadas

que

os

delinquentes e vítimas como únicas culpadas. Assim sendo, de acordo com o que vislumbra o presente estudo, abordaremos apenas as vítimas como únicas culpadas, as quais, inseridas na disposição de Mendelson, citadas anteriormente, são aquelas consideradas vítimas agressoras, simuladoras e imaginárias, tratadas como supostas vítimas. Consoante àquele autor, temos o posicionamento de Roque de Brito Alves (1995). Segundo ele, as vítimas podem ser classificadas em simuladoras e provocadoras, dentre outras. Interessa a este trabalho definir que simuladoras são aquelas pessoas que têm consciência que não foram vítimas de crime algum, porém agem como se fossem, visando se vingar de alguém a quem é atribuída uma prática delituosa. Portanto, estamos lidando com uma questão onde o sujeito, em tese vítima, imagina e imputa irresponsavelmente determinada conduta penalmente relevante ao acusado, que acaba por se tornar vítima desta manobra judicial. Neste diapasão, enfatiza Alline Pedra Jorge (2005, p. 29), que: “Apesar da nossa doutrina reiterar que não se discute compensação de culpa no Direito Penal, é a prática dos tribunais, no sentido de diminuir a responsabilidade do agressor, a cada momento em que se verifica que o comportamento da vítima pode ter contribuído de alguma forma para a prática delitiva”.

Sem mais delongas, podemos então dizer que, a análise da atuação da vítima na ocorrência do delito, é de sua 278

importância, para assim, se obter as consequências dela decorrentes.

4. O Processo Penal O Código de Processo Penal de 1941, instituído pelo Decreto-Lei n°

3.689, consoante

à Constituição, contêm

princípios e regras que disciplinam a persecução criminal, a qual tem a finalidade de propiciar ao Estado o dever de punir aqueles que desrespeitam as normas de Direito Penal, conforme dizeres de Alexandre Cebrian e Victor Gonçalves (2011, p. 34). Sobre esse assunto, Cintra, Grinover e Dinamarco (2015, p. 103), dispõem que “o direito processual penal chega a ser apontado como direito constitucional aplicado às relações entre autoridade e liberdade”. Para Fernando Capez (2012, p. 45), “Direito Processual Penal é o conjunto de princípios e normas que disciplinam a composição das lides penais, por meio da aplicação do Direito Penal objetivo”. Neste sentido, Távora e Alencar (2013, p. 34), fazem uma observação muito pertinente, sendo que para eles, “o processo penal deve ser compreendido de sorte a conferir efetividade ao direito penal, fornecendo os meios e o caminho para materializar a aplicação da pena ao caso concreto”. Compartilha deste entendimento o autor Fernando Capez (2012, p. 46), eis que este ensina que o processo penal tem a finalidade precípua de estabelecer a adequada solução 279

jurisdicional da lide entre o Estado e o infrator, através de uma sequência

de

atos

que

compreendam

a

formulação

da

acusação, a produção das provas, o exercício da defesa e o julgamento do conflito. Ainda de acordo com Cintra, Grinover e Dinamarco (2015, 63): “O processo penal é indispensável para a solução da controvérsia que se estabelece entre acusador e acusado (...). Isso não significa que todo processo penal conduza à imposição de uma pena, pois será um instrumento de garantia da liberdade quando pronunciar a inocência do acusado”.

Diante dos ensinamentos aqui apontados, cumpre-nos salientar que sem o processo não haveria meios de o Estado exercer o jus puniendi, isto é, de satisfazer o seu direito indisponível de punir ou de apenas atuar e solucionar o conflito entre as partes. Para atingir tal pretensão, o jurista deve se pautar na observância de princípios, conforme veremos adiante. 5. Princípios Constitucionais Norteadores A doutrina enumera diversos princípios constitucionais que são aplicados ao Processo Penal. Entretanto, discorreremos brevemente sobre aqueles que mais condizem com o assunto abordado neste trabalho. Os princípios constitucionais são aplicados na relação processual, visando garantir às partes, direitos como o contraditório, a ampla defesa (no caso do acusado), etc., os 280

quais, em harmonia, são aplicados em busca da verdade real, conforme aborda Fernando Capez (2012, p. 48). A Constituição Federal brasileira de 1988, no rol dos direitos fundamentais inseridos no artigo 5°, garante a todos o acesso à ordem jurídica justa, conforme dispõe o inciso XXXV, ora transcrito, “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. (BRASIL, 1988). Sobre este princípio, discorre Fernando Capez (2012, p. 77), que “os órgãos incumbidos da persecução penal não podem possuir poderes discricionários para apreciar a conveniência ou oportunidade da instauração do processo ou do inquérito”. Além disso, a Carta Magna determina o devido processo legal, elencado no inciso LIV do referido dispositivo, o qual narra que, “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. (BRASIL, 1988). Neste diapasão, Cintra, Grinover e Dinamarco (2015, p. 110 e 111), relatam que mediante a ratificação pelo Brasil, em 1992, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, os direitos e garantias nela enumerados passaram a integrar, após o advento da Emenda Constitucional n° 45/2004, o rol do artigo 5º de nossa Carta Magna, visando garantir o devido processo legal. Outro princípio constitucional a destacar é o contido no inciso LV do artigo 5º, da Carta Magna, o qual garante o direito à ampla defesa e ao contraditório. O referido dispositivo determina

que

“aos

litigantes,

em

processo

judicial

ou

administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o 281

contraditório e ampla defesa com os meios e recursos a ela inerentes”. (BRASIL, 1988). Discorre Fernando Capez (2012, p. 64 e 65), que a ampla defesa está assegurada também no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, eis que este dispõe que toda pessoa acusada de cometer infração penal tem o direito se defender pessoalmente e valendo-se de um defensor constituído por si próprio ou designado pela Justiça. Explicita também que o juiz só poderá dizer o direito preexistente quando observada o contraditório, através do qual deve ser ouvida uma parte, seguida da manifestação do outro pólo da relação processual. Com o mesmo posicionamento Távora e Alencar (2013, p. 59), ensinam que: “Deve ser assegurada a ampla possibilidade de defesa, lançando-se mão dos meios e recursos disponíveis e a ela inerentes (art. 5°, LV, CF), sendo, ademais, dever do Estado "prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos" (art. 5°, LXXIV, CF)”.

Guilherme de Souza Nucci (2011, p. 83), narra que a República Federativa do Brasil constitui-se em um Estado Democrático de Direito e a todos é assegurado a dignidade da pessoa humana, sendo o direito penal utilizado para regular os conflitos e aplicar sansões, observando os princípios legais. Assegura, o artigo 5º, inciso LVII da Carta Magna, o Princípio da Presunção da Inocência, segundo o qual, conforme ensinamentos de Távora e Alencar (2013, p. 54 e 55), todos são inocentes até que ocorra o transito em julgado de uma sentença penal condenatória. 282

Por sua vez, a Declaração Universal dos Direitos Humanos em seu artigo 11, §1°, afirma: “toda a pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até provar-se culpado de acordo com a lei em um julgamento público no qual eles tiveram todas as garantias necessárias para a sua defesa”. Possui grande relevância ao Processo Penal, o Princípio da Verdade Real ou Princípio da Livre Investigação das Provas. Para Cintra, Grinover e Dinamarco (2015, p. 88), trata-se de regra de que a fundamentação da decisão do magistrado está dependente das alegações e provas apresentadas na instrução. Corroboram, Távora e Alencar (2013, p. 60): “O processo penal não se conforma com ilações fictícias ou afastadas da realidade. O magistrado pauta o seu trabalho na reconstrução da verdade dos fatos, superando eventual desídia das partes na colheita probatória, como forma de exarar um provimento jurisdicional mais próximo possível do ideal de justiça”.

Assim, conforme ilustrado, podemos afirmar que estes princípios

são

de

suma

importância,

enquanto

direitos

fundamentais, e devem ser observados nos processos de julgamentos penais, sempre consoantes ao benefício do réu enquanto não houver um pronunciamento de culpa, de modo a evitar condenações erradas. Entretanto, veremos mais adiante, que apenas com base na palavra da mulher, o homem pode ser condenado por um crime que ele não cometeu no âmbito da violência doméstica e familiar. 283

6. As provas no processo penal

O Título VII, composto pelos artigos 155 ao 238, do Código de Processo Penal, trata sobre as provas processuais penais, as quais são imprescindíveis para o convencimento do julgador da lide. Para Fernando Capez (2012, p. 260), prova, do latim probatio, é o conjunto de ações perpetradas pelas partes, pelo juiz e por terceiros, destinado a convencer ao magistrado sobre dos elementos essenciais que demonstram a autenticidade e veracidade de um fato. Vicente Greco Filho (2010, p. 186), enaltece que: “O direito processual regula os meios de prova, que são os instrumentos que trazem os elementos de prova aos autos. No processo, a prova é todo meio destinado a convencer o juiz a respeito da verdade de uma situação de fato”.

É a concepção de Fabrini Mirabete contida em seu Manual de Processo Penal (2000, p. 257): “Para que o juiz declare a existência da responsabilidade criminal e imponha sanção penal a uma determinada pessoa é necessário que adquira a certeza de que se foi cometido um ilícito penal e que seja ela a autora. Para isso deve convencer-se de que são verdadeiros determinados fatos, chegando à verdade quando a idéia que forma em sua mente se ajusta perfeitamente com a realidade dos fatos”.

Partilha do mesmo entendimento o doutrinador Vicente Greco Filho (2010, p. 185), que em sua obra Manual de 284

Processo Penal aborda que o direito e o fato devem ser examinados para que o juiz declare procedente ou não o pedido. Assim, todos aqueles fatos, coisas e circunstâncias apresentadas durante a instrução criminal e que embasam a formação da convicção do magistrado constituem as provas. Consubstancia destes entendimentos o doutrinador Fredie Didier (2012, p. 18), segundo o qual “o direito à prova é conteúdo do direito fundamental ao contraditório. A dimensão substancial do princípio do contraditório o garante”. Eduarco Cambi (apud FREDIE DIDIER, 2012, p. 19), alega que “esse direito fundamental à prova tem caráter instrumental; e sua finalidade, afirma, é o alcance da tutela jurisdicional justa. Por isso, deve-se sempre buscar dar efetividade a esses direitos.”. O doutrinador Mirabete (2000, p. 257), completa dizendo que as provas demonstram a respeito da veracidade ou falsidade da atribuição e servem para o pronunciamento do juiz, após a formação de sua decisão. Revela Pacelli de Oliveira (2012):

“A prova judiciária tem um objetivo claramente definido: a reconstrução dos fatos investigados no processo, buscando a maior coincidência possível com a realidade histórica, isto é, com a verdade dos fatos, tal como efetivamente ocorridos no espaço e no tempo. A tarefa, portanto, é das mais difíceis, quando não impossível: a reconstrução da verdade”.

Como vimos, as provas são imprescindíveis para que o julgador da demanda obtenha critérios objetivos e subjetivos 285

específicos para, assim, proceder um julgamento justo, não deixando restar imprecisões sobre os fatos mediante o alcance rigoroso do exame de prova em prol da busca da verdade, segundo o que está presente nos autos. 7. Meios de prova em processo penal admitidos

O Código de Processo Penal, traz a previsão legal, embora não taxativo, dos chamados meios legais de prova. Dentre o que está contido no citado título, temos o exame de corpo de delito e perícias em geral, o interrogatório do acusado, a confissão, o depoimento do ofendido, a prova testemunhal,

o

reconhecimento

de

pessoas

e

coisas,

a

acareação, os documentos, os indícios e, encerrando, a busca e apreensão. Para Vicente Greco Filho (2010, p. 205) “a prova que pode fundamentar a condenação é aquela que tenha sido submetida ao contraditório perante o juiz. Esta é a regra, que é mais que uma regra, é um princípio”. Todavia,

fugiria

do

propósito

deste

artigo

fazer

considerações específicas sobre cada um dos meios de prova acima apontados, razão pela qual será enfatizado apenas o depoimento do ofendido. 8. O depoimento do ofendido e sua validade

286

O ofendido ou vítima, como tratamos, é o sujeito passivo do crime, titular do bem jurídico ameaçado ou atingido com a prática criminosa. “O ofendido é o sujeito passivo da infração penal e, cada vez mais, preocupa o direito penal, o processual penal e a criminologia

o

seu

papel

na

dinâmica

do

crime

e

da

criminalidade”. É o que preceitua Antônio Scarance Fernandes (apud GRECO FILHO, 2010, p. 220). O Código de Processo Penal, através do seu artigo 201, alterado pela Lei nº 11.690/2008, determina a oitiva do ofendido, sempre que possível, sobre as circunstâncias da infração e de quem seja ou presuma ser o seu autor; bem como deve indicar as provas, se assim puder. Assim, temos que a vítima, quando tiver dado início à persecução criminal, deve depor, atribuindo a alguém a prática de um crime (PACELLI DE OLIVEIRA, 2012). Para Távora e Alencar (2013, p. 447), “o ofendido é o titular do direito lesado ou posto em perigo, é a vítima, sendo que suas declarações, indicando a versão que lhe cabe dos fatos, têm natureza probatória”. Cumpre salientar que o ofendido não integra o rol de testemunhas, e, com isso, não tem o compromisso de dizer a verdade, tal como têm as testemunhas, segundo previsão do artigo 203 do Código de Processo Penal e, caso minta, não incide no crime de falso testemunho, estabelecido no artigo 342 do Código Penal. (TAVORA E ALENCAR, 2013, p. 447.) Deste modo, 287

“No processo penal, distingue-se com precisão a testemunha, que presta compromisso e depõe sob pena de falso testemunho, das demais pessoas ouvidas, como o ofendido, parentes do acusado (art. 206), parentes do ofendido, menores, que não prestam compromisso e são considerados “declarantes”. (GRECO FILHO, 2010).

Por isso, caso o ofendido invente, simule ou fantasie fatos, poderá ser responsabilizado pelo crime de denunciação caluniosa, tipificado no artigo 339 do Código Penal, caso existam provas suficientes, dando ensejo à instauração de inquérito ou processo contra pessoa sabidamente inocente. (TAVORA E ALENCAR, 2013, p. 447.) Não é outro o seguinte entendimento:

“É certo que o ofendido deve merecer um tratamento distinto daquele reservado às testemunhas, diante de sua situação de vítima de uma infração penal, cujos efeitos já são suficientemente danosos. Entretanto, é bem de ver que, em muitas oportunidades, é a palavra do ofendido que irá fazer nascer a persecução penal, gerando consequências também danosas para aquele acusado da prática do delito. Nessa hipótese, tendo sido ele o responsável pela instauração da investigação policial e da ação penal, é perfeitamente compreensível que a lei acautele-se contra eventuais denunciações caluniosas, para o que já existe até o tipo penal específico (art. 339, CP) (PACELLI DE OLIVEIRA, 2012. p.425)”.

É o que também adverte o autor Damásio E. de Jesus (apud FERNANDO CAPEZ, 2011, p. 296). De acordo com ele, na denunciação caluniosa, o agente leva ao conhecimento da autoridade e dá ensejo à instauração de um inquérito policial

288

ou de ação penal contra pessoa que sabe ser inocente, ao passo que atribuiu a ela falsamente a prática de um delito. Corrobora Fernando Capez (2012, p. 438), que o ofendido, “embora não prestando compromisso de dizer a verdade, pode falseá-la (...) imputando a alguém crime de que o sabe inocente. Seu valor probatório é relativo, devendo ser aceito com reservas”. Távora e Alencar (2013, p.449), complementam ao dizer que, “o conteúdo das declarações, por partir de pessoa diretamente interessada, recomenda certa cautela. Contudo, não



dúvidas

que

tais

declarações

são

meio

prova,

fundamentais em crimes de pouca visibilidade”. Observa Julio Fabbrini Mirabete: “As declarações do ofendido constituem-se em meio de prova sem, contudo, ter, normalmente, o valor legal da prova testemunhal. Em princípio, o conteúdo das declarações deve ser aceito com reservas, já que o ofendido é normalmente interessado no litígio, podendo, às vezes, ser motivado por ódio, vingança etc. Todavia, como se tem assinalado na doutrina e jurisprudência, as declarações do ofendido podem ser decisivas quando se trata de delitos que se cometem às ocultas (...). É preciso, porém, que as declarações sejam seguras, estáveis, coerentes, plausíveis, uniformes, perdendo sua credibilidade quando o depoimento se revela reticente e contraditório e contrário a outros elementos probatórios”. (MIRABETE, 2000, p.292, 293).

Portanto, autores defendem que a palavra isolada da vítima, desde que resistente e firme, pode dar margem à condenação

do

réu

se

for

harmônica

com

as

demais

circunstâncias colhidas ao longo da instrução. 289

9. A Teoria Da “Síndrome Da Mulher De Potifar” Como vimos, a violência doméstica e familiar pode ocorrer no seio do lar, envolvendo apenas os sujeitos ativos e passivos da relação e, por isso, dificilmente testemunhado por alguém. Deste modo, via de regra, nestes casos, a palavra da vítima tem especial importância e pode gerar a condenação do agente. Nestes moldes, temos o entendimento jurisprudencial a seguir: APELAÇÃO-CRIME. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. AMEAÇA. AUTORIA COMPROVADA. MANUTENÇÃO DA CONDENAÇÃO. Ameaça. Autoria e materialidade devidamente comprovadas pela palavra da vítima, coerente com as declarações por ela prestadas desde a fase policial, perfectibilizando o tipo penal previsto pelo artigo 147 do Código Penal. Acentua-se que, nos delitos atinentes à violência doméstica, os fatos são geralmente praticados sem qualquer testemunha, sendo, na especificidade dos autos, a palavra da vítima plenamente coerente e reforçada pelos outros elementos de prova dos autos. Impositiva, portanto, a manutenção do édito condenatório. Tipicidade. Comprovada a prática do delito de ameaça, previsto no artigo 147, caput, do Código Penal, descabe falar em atipicidade da conduta. No caso em tela, possivelmente alterado pela ingestão de bebida alcoólica, ameaçou a ofendida de causar-lhe mal injusto e grave, no sentido de que iria matá-la, o que lhe causou medo. Pena. Mantida a pena aplicada no mínimo legal pela origem, qual seja, 1 mês de detenção. Mantida a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos consistente na prestação de serviços à comunidade, ante a ausência de recurso da acusação, sob pena de reformatio in pejus. RECURSO DEFENSIVO DESPROVIDO. DECISÃO MANTIDA. (Apelação Crime Nº 70064565690, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do

290

RS, Relator: Diogenes Vicente Hassan Ribeiro, Julgado em 05/11/2015) (grifo nosso)

Do outro lado, apresentamos os ensinamentos de JUNIOR (2005, p. 601), o qual aborda que o depoimento da vítima deve

ser visto com ressalvas, vez que ela está

diretamente envolvida na situação, acarretando interesses desta nos mais diversos sentidos, inclusive para prejudicar o homem. Assim, é o entendimento jurisprudencial a seguir: APELAÇÃO CRIMINAL - CRIME PREVISTO NO ART. 147 DO CÓDIGO PENAL E CONTRAVENÇÃO PENAL PREVISTA NO ART. 21 DO DECRETO-LEI Nº 3.688/41 - ABSOLVIÇÃO - POSSIBILIDADE PROVAS FRÁGEIS E INSUFICIENTES PARA SUSTENTAR UM ÉDITO CONDENATÓRIO RECURSO PROVIDO. Em se tratando de crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher, a palavra da vítima constitui importante elemento de formação da convicção do julgador. Todavia, ela se sujeita à análise de veracidade e credibilidade, assim como qualquer outra prova testemunhal. Nesse contexto, se a versão da ofendida se mostra isolada nos autos, a prova da acusação se enfraquece, o que enseja a absolvição do apelante, em observância ao princípio in dubio pro reo. (Apelação Crime n° 1.0382.11.006632-3/001. Tribunal de Justiça de MG, Relator Amauri Pinto Ferreira, Julgado em 21/10/2015) (sem grifo no original)

A este tipo de circunstância, a Criminologia denomina como “Síndrome da mulher de Potifar.

“Quem tem alguma experiência na área penal percebe que, em muitas situações, a suposta vítima é quem deveria estar ocupando o banco dos réus, e não o agente acusado. Mediante a chamada síndrome da mulher de Potifar, o julgador deverá ter a sensibilidade necessária para apurar se os fatos

291

relatados pela vítima são verdadeiros, ou seja, comprovar a verossimilhança de sua palavra, haja vista que contradiz com a negativa do agente. A falta de credibilidade da vítima poderá, portanto, conduzir absolvição do acusado, ao passo que a verossimilhança de suas palavras será decisiva para um decreto condenatório. (GRECO, 2010, p. 473 – destaques no original).

Segundo o citado autor, a história de José, contida no livro de Gênesis, dá origem a esta síndrome. A passagem bíblica conta que José, por ser um homem de confiança, chamou a atenção e atraiu a esposa de Potifar. Na ocasião ela se exibiu a ele, todavia, como José era leal ao seu “dono”, este a rejeitou. Indignada pela atitude dele, a esposa de Potifar, simulou que José

teria tentado abusá-la sexualmente, fato este

que

culminou a sua prisão. Transportando tal história para nossa atualidade, conforme entende a doutrina, coerente é afirmar que este tipo de vingança pode ocorrer entre um homem e uma mulher, no âmbito doméstico e familiar, seja porque o relacionamento acabou ou até mesmo pelo fato de a mulher se sentir rejeitada ou trocada. Como afirmou o doutrinador Rogério Greco, deve o magistrado ter total controle e sabedoria para apurar as verdades do fato e evitar condenações injustas, ao se considerar a força da palavra da mulher, essencialmente quando não há nenhuma outra prova, inclusive a testemunhal, senão a palavra da vítima (mulher) versus a do “agressor”. Ainda

segundo

os

entendimentos

do

referido

doutrinador, (2011, p. 480, 482), a síndrome da mulher de 292

Potifar, “nada mais é que uma vingança privada por parte da mulher com relação ao companheiro, seja ela decorrente à separação do casal ou de apenas uma briga conjugal”. Deste modo, caso haja distorções entre a palavra dela, que afirma o acontecimento dos fatos, e a negativa de autoria dada

pelo

homem,

desacompanhadas

de

outras

provas

processuais, estamos diante da chamada vingança privada, na qual supostas vítimas de violência doméstica e familiar tentam incriminar o homem, com finalidade vingativa. Restando então provado que não houve qualquer tipo de delito e que os fatos são falsos, ao homem não cabe qualquer tipificação criminal.

10. A Lei Maria Da Penha

A Lei n° 11.340, promulgada em 07 de agosto de 2006, com início de vigência em 22 de setembro do mesmo ano, denominada popularmente como “Lei Maria da Penha” e internacionalmente

reconhecida

como

uma

das

melhores

legislações que versam sobre a violência doméstica e familiar, tem origem na história da mulher Maria da Penha Fernandes, vítima de episódios de violência praticados por seu, até então, marido, no ano de 1983. Renato Brasileiro (2015, p. 905), conta o que viveu Maria da Penha: “Em 29 de maio de 1983, na cidade de Fortaleza, a farmacêutica Maria da Penha, enquanto dormia, foi atingida por disparo de espingarda desferido por seu

293

próprio marido. Por força desse disparo, que atingiu a vítima em sua coluna, Maria da Penha ficou paraplégica. Porém, as agressões não cessaram. Uma semana depois, a vítima sofreu nova violência por parte de seu então marido, tendo recebido uma descarga elétrica enquanto se banhava. O agressor foi denunciado em 28 de setembro de 1984. Devido a sucessivos recursos e apelos, sua prisão ocorreu somente em setembro de 2002”.

Maria Berenice Dias, (2007, p.13), por sua vez, narra a trajetória penal do acusado: “Em 1991, o réu foi condenado pelo tribunal do júri a oito anos de prisão. Além de ter recorrido em liberdade ele, um ano depois, teve seu julgamento anulado. Levado a novo julgamento em 1996, foi-lhe imposta a pena de dez anos e seis meses. Mais uma vez recorreu em liberdade e somente 19 anos e 6 meses após os fatos, em 2002, é que M. A. H. V. foi preso. Cumpriu apenas dois anos de prisão”.

Nesse desiderato, Ricardo Antônio Andreucci (2011, p. 664), completa dizendo que: “Condenado em duas ocasiões, o réu não chegou a ser preso, o que gerou indignação na vítima, que procurou auxílio de organismos internacionais, culminando com a condenação do Estado Brasileiro, em 2001, pela Organização dos Estados Americanos (OEA), por negligência e omissão em relação à violência doméstica, recomendando a tomada de providências a respeito do caso”.

Em razão de toda essa injustiça, necessário se fez a intervenção República

dos

tratados

Federativa

do

internacionais Brasil,

ratificados

inclusive

da

pela

Comissão

Interamericana de Direitos Humanos, para a criação da Lei Maria da Penha. É pertinente afirmar que a referida legislação está consoante ao que rege o artigo 226, §8° da Constituição Federal 294

de 1988, uma vez que estabelece que compete ao Estado assegurar a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, mediante a criação de mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. Por isso, a Lei n° 11.340/2006 visa amparar a mulher que, no âmbito de uma relação doméstica, familiar ou íntima de afeto, se encontra em situação de vulnerabilidade, razão pela qual o operador deve se atentar às peculiares condições das mulheres, conforme nos ensina Renato Brasileiro (2015, p. 906). Nesse alvitre, para Andreucci (2011, p. 668), “violência doméstica ou familiar consiste em qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. Não é outra a definição de Renato Brasileiro (2015, p. 916), o qual ressalta que o termo “violência” inserido na Lei Maria da Penha tem sentido amplo e assim, admite não somente violência física, mas também a violência psicológica (ameaça à mulher), moral (calúnia, difamação e injuria), sexual e patrimonial. Acrescenta o doutrinador Fernando Capez (2012, p. 133), que esta modalidade de violência ocorre “no âmbito da unidade doméstica, no âmbito da família, em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação”. Segundo Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto (2007, p.24), violência contra a mulher é: 295

“Qualquer ato, omissão ou conduta que serve para infligir sofrimentos físicos, sexuais ou mentais, direta ou indiretamente, por meios de enganos, ameaças, coações ou qualquer outro meio, a qualquer mulher e tendo por objetivo e como efeito intimidá-la, puni-la ou humilhá-la, ou mantê-la nos papeis estereotipados ligados ao seu sexo, ou recusar-lhe a dignidade humana, a autonomia sexual, a integridade física, moral, ou abalar a sua segurança pessoal, o seu amor próprio ou a sua personalidade, ou diminuir as suas capacidades físicas ou intelectuais.”

Portanto, a lei deve ser considerada como um grande progresso dentro do direito brasileiro, ao passo que propiciou maior punição para os crimes desta natureza e trouxe tratamento legal diferenciado para as mulheres vítimas de violência praticada no âmbito doméstico e familiar, conforme veremos a seguir. 11. Aspectos relevantes e inovações A Lei 11.340/2006 é inovadora ao que se refere o combate da violência doméstica e familiar. Traz em seus dispositivos ações de prevenção, proteção, de assistência às vítimas e punição mais rígida em relação ao agressor, tudo em prol da garantia dos direitos humanos da classe feminina. Para Campos (apud Carmen Hein de Campos e Salo de Carvalho, 2011, p. 143): Diferentemente da expectativa tradicional dos valores do campo jurídico penal, a Lei 11.340/06 estabelece um catálogo extenso de medidas de

296

natureza extra-penal que amplia a tutela para o problema da violência contra mulheres e, ao mesmo tempo, transcende os limitados horizontes estabelecidos pela dogmática jurídica. (CAMPOS, 2008).

Renato Brasileiro (2015, p. 907), arrazoa que: “Partindo da premissa de que a mulher ainda é comumente oprimida em nossa sociedade, especialmente pelo homem, a Lei Maria da Penha cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, conferindo proteção diferenciada ao gênero feminino, tido como vulnerável quando inserido em situações legais específicas elencadas pelo art. 5°: a) ambiente doméstico; b) ambiente familiar; ou c) relação íntima de afeto. ”

Antes de sua vigência, fatos desta natureza eram assistidos pela Lei n° 9.099/1995, norma que rege os Juizados Especiais Criminais, e com isso, era possível, em razão da baixa pena imposta e em observância de outros requisitos previstos pela norma, ocorrer a suspensão condicional do processo, prevista no artigo 89 da Lei 9.99/1995, para o acusado. Todavia, com o advento da Lei Maria da Penha, restou inadmissível tal proposta. Fernando Capez (2011, p. 193), faz importante menção ao salientar que: “A lei dificultou a aplicação de penas alternativas. Assim, dispõe o art. 17: “É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica e outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa”.

297

Recentemente o Supremo Tribunal de Justiça (STF) editou a Súmula 536, cujo verbete pacificou o entendimento de que resta impossível a aplicação de medidas despenalizadoras nos crimes cometidos no âmbito doméstico e familiar. “Súmula 536 do Supremo Tribunal de Justiça: A suspensão condicional do processo e a transação penal não se aplicam na hipótese de delitos sujeitos ao rito da Lei Maria da Penha”.

Sobre a violência doméstica cometida antes da vigência da Lei Maria da Penha, a doutrinadora Maria Berenice Dias (2007, p. 21) destaca: “Até o advento da Lei Maria da Penha, a violência doméstica não mereceu a devida atenção, nem da sociedade, nem do legislador e muito menos do judiciário. Como eram situações que ocorriam no interior do “lar, doce lar”, ninguém interferia. Afinal, “em briga de marido e mulher ninguém põe a colher”!”

Outra inovação inserida no campo jurídico são as denominadas “medidas protetivas de urgência”, que poderão ser aplicadas ao agressor, as quais têm como objetivo, garantir a integridade física, moral, psicológica e patrimonial da mulher vítima de violência doméstica e familiar. Dispõem Campos e Carvalho (2011, p. 148): “Inegavelmente a previsão de várias medidas autônomas de proteção trazidas pela Lei 11.340/06 constituem um dos seus aspectos mais inovadores. Diferentemente da lógica do processo penal, na qual as prisões provisórias adquirem o papel de medida cautelar por excelência para proteção da vítima contra a reiteração delitiva, a Lei Maria da Penha ofereceu uma série de possibilidades para além da

298

prisão cautelar –embora a prisão preventiva seja mantida como possibilidade”.

O autor Renato Brasileiro (2015, p. 937), salienta que as medidas protetivas previstas na legislação deverão ser deferidas pelo magistrado apenas quando for constatada a prática de violência doméstica e familiar. Nesta esteira, discorre o autor Fernando Capez (2011, p. 193) que “para a concessão de tais medidas protetivas de urgência, devem estar presentes os pressupostos para a concessão das medidas cautelares (perigo da demora e aparência de bom direito)”. Deste modo, podemos dizer que as medidas protetivas têm a função de proteger as mulheres das situações de violência familiar praticadas por aqueles com quem tem ou tiveram relação íntima de afeto, buscando garantir a sua integridade física e dignidade. 12. Dos procedimentos policiais e judiciais A

Lei

11.340/2006

apresenta

providências

e

procedimentos a serem adotadas pelas Autoridades, nas fases policiais e judiciais. Sobre a fase policial, que se refere o atendimento dispensado pela Autoridade Policial na sede da Delegacia de Polícia. Nos casos atinentes à norma, deverá o Delegado de Polícia observar os requisitos, normas e regras a serem adotadas quando da presença da mulher na Unidade Policial, 299

noticiando a prática de violência doméstica e familiar o artigo seguinte elenca. Este conjunto, para Renato Brasileiro (2015, p. 923): “Trata-se de rol exemplificativo. Algumas são de caráter obrigatório, como, por exemplo, a oitiva da vítima, lavratura do boletim de ocorrência e atermação da representação; outras, no entanto, têm sua realização condicionada à discricionariedade da autoridade policial, que deve determinar sua realização de acordo com as peculiaridades do caso concreto”.

Assim, sinteticamente, podemos dizer que a Autoridade Policial deverá ordenar a lavratura do boletim de ocorrência para que, imediatamente após, colha o termo de representação da mulher, a depender da necessidade legal, e após reduzir a termo suas declarações e juntar o requerimento de medidas protetivas por ela formulado, o qual deve ser remetido em até 48 horas para a apreciação do magistrado e efetivação ou não, das medidas emergenciais. Conseguinte, deverá promover a instauração de inquérito policial ou, se a situação assim ensejar, promover a ratificação da prisão em flagrante do agressor. Passando para outra fase, após tais diligências, o feito seguirá para a Justiça Pública, aonde deverá o Ministério Público oferecer ou não a denúncia, ao passo que está excluída a proposta de transação ou suspensão condicional do processo. Ao que tange a Lei Maria da Penha, a atuação do referido órgão

300

está disciplinada nos artigos 25, 26 e 26 da referida norma legal, sempre em prol dos direitos as mulheres. Competirá ao “parquet” movimentar a ação penal para que haja o pleno exercício da jurisdição pelo Magistrado, atentando-se inegavelmente ao que estipula o Código de Processo Penal e em harmonia com a legislação em comento.

13. A palavra das partes no âmbito da violência doméstica e familiar A persecução criminal se inicia com o registro de uma ocorrência policial (notitia criminis) por parte da vítima, que no caso do presente estudo monográfico, será a mulher, vítima de violência doméstica e familiar. Assim, na Delegacia de Polícia será facultado a ela, dar início ou não à ação penal, caso o crime seja de ação penal condicionada à representação. Caso seja de ação penal pública incondicionada, este prosseguirá mediante atuação do Ministério Público. Considerando que houve representação, caso a ação assim demandar, haverá, por parte da Autoridade Policial, a instauração de inquérito policial para apurar as circunstâncias e materialidade do evento criminoso.

Após a conclusão do

mesmo, os autos serão remetidos ao membro do “parquet” para oferecimento da denúncia. Inicia-se assim, o processo judicial, o qual termina com a sentença penal condenatória ou absolutória.

301

O direito de punir do Estado surge quando alguém comete um crime. Deste modo, para que o Estado exerça o jus puniendi, dependerá do processo penal, o qual se constitui por provas, que podem ser testemunhais ou materiais, para confirmar a autoria do delito. Normalmente, nos crimes de violência doméstica e familiar, o qual é cercado pelas ocultas do lar, muitas vezes estão presentes apenas o homem e a mulher, sujeitos da relação. Assim, temos a palavra de um contra a do outro, cada qual com seu valor probatório. Deste modo, investigações policiais e processos penais são instaurados e tramitam na justiça para, muitas das vezes, com base apenas na palavra da mulher, alcançar o dever do Estado, que como vimos acima, é o de alcançar a punição daquele que desrespeita suas normas. Assim, conforme leciona Alexandre Cebrian Araújo Reis (2012, p. 31), durante a persecução

penal

devem

obter

as

provas

de

autoria e

materialidade para apreciação do Poder Judiciário, que, só ao final, poderá declarar o réu culpado e condená-lo a determinada espécie de pena”. Discorre neste sentido, Alline Pedra Jorge (2005, p. 38), que mediante a prática de um fato delituoso nasce para o Estado o dever de punir, cabendo a persecução penal a órgão independente, qual seja, o Ministério Público. Sabemos que, tratados internacionais do quais o Brasil é signatário, bem como a Carta Magna de 1988 (artigo 5°, inciso LVII da Constituição Federal de 1988), emanam diversos princípios que visam o amplo direito de defesa. Destacamos o 302

princípio da presunção da inocência, do qual decorre que todos são inocentes até o transito em julgado da sentença penal condenatória. Destaca Pedro Lenza (2012, p. 915), que “nada mais natural que a inversão do ônus da prova, ou seja, a inocência é presumida, cabendo ao MP ou à parte acusadora (na hipótese de ação penal privada) provar a culpa. Caso não o faça, a ação penal deverá ser julgada improcedente”. Com

isso,

certo

é

que

toda

decisão

deve

ser

fundamentadamente motivada, ao passo que o magistrado não pode condenar por “achismos” ele vai se basear na palavra da vítima para promover sua “opinius delicti”. Estabelece o artigo 156 do Código de Processo Penal, às partes compete a iniciativa de relatar os fatos e de produzir as provas de suas alegações. Já ao magistrado, cabe atribuir-lhes o valor que merecerem. É o que interpreta Vicente Greco Filho (2010, p. 202). Diante de todo arcabouço teórico levantado até aqui, passaremos a analisar o quão é frágil a condenação de um homem por crimes de violência doméstica e familiar, com base apenas nas provas dadas pela mulher.

14. O valor da palavra do homem e da mulher Aos sujeitos ativo e passivo da relação processual penal competem provar o que alegarem em suas versões sobre os fatos processados. É o que dispõe o artigo 156 do Código de Processo Penal. 303

Para isso, acusado e ofendido terão suas declarações reduzidas a termo na fase policial e na fase judicial. O homem, estando como acusado da infração penal, tem o direito de permanecer em silêncio ou até mesmo de mentir,

para,

assim,

comprovar

sua

inocência

ou

não

envolvimento com o fato delituoso. A mulher, como vítima também pode mentir, todavia, o valor de sua palavra é muito maior que a do homem. Com relação ao acusado, Fabrini Mirabete (2000, p. 277), enfatiza que: “Deve-se considerar que, perante a nossa legislação, o interrogatório do acusado é meio de prova. Mas, como se observa agudamente na doutrina, não se pode ignorar que é ele, também, ato de defesa, pois não há dúvida que o réu pode dele valer-se para se defender da acusação, apresentando álibi, dando a sua versão dos fatos etc.”

Nas asseverações de Távora e Alencar (2013, p. 426): “O interrogatório é a fase da persecução penal que permite ao suposto autor da infração esboçar a sua versão dos fatos, exercendo, se desejar, a autodefesa. Terá o imputado contato com a autoridade, o que lhe permite indicar provas, confessar a infração, delatar outros autores, apresentar as teses defensivas que entenda pertinente, ou valer-se, se lhe for conveniente, do direito ao silêncio”.

Do lado oposto, temos as palavras da vítima. Assegura o artigo 201 do Código de Processo Penal: “Art. 201. Sempre que possível, o ofendido será qualificado e perguntado sobre as circunstâncias da infração, quem seja ou presuma ser o seu 304

autor, as provas que possa indicar, tomando-se por termo as suas declarações”. Consoante ao citado dispositivo processual penal, Alline Pedra Jorge (2005, p. 22) discorre que “na justiça criminal, a vítima é obrigada a prestar depoimento, pois a legislação, sob a alegação de que o crime é uma ofensa social, e que deve ser apurado e combatido, dá ao juiz poderes de vara”. Isso reflete a necessidade da palavra do ofendido nos autos, a qual servirá, como meio de prova. Nessa direção, demandam Távora e Roque (2015, p. 288): “O depoimento do ofendido é um meio de prova. Não se confunde, porém, o ofendido com a testemunha, que é terceiro desinteressado (...) não sendo testemunha, não possui o compromisso de dizer a verdade e não incide no crime de falso testemunho (art. 342, CP). Também não se confunde com o réu, razão pela qual não poderá invocar o direito ao silêncio, salvo se tiver que depor sobre circunstância de fato que possa incriminá-lo”.

Lopes Júnior, (2013, p. 537), por sua vez, ressalta que as

provas reconstroem historicamente

os

fatos

afim de

convencer o juiz acerca das hipóteses aventadas. Compete então ao juiz, apreciar as provas colhidas nos autos, atentando ao valor de cada uma, observados os sistemas de apreciação. O magistrado, mediante a persuasão racional, forma seu convencimento, o qual deve ser motivado, conforme preceitua o Código de Processo Penal. Diante disso, não há como ignorar que a palavra da vítima, em especial quando está em consonância com as demais 305

provas do processo, pode gerar certeza dos fatos ao magistrado. É o que entende Guilherme de Souza Nucci (2011). Para ele, “a palavra isolada da vítima, sem testemunha a confirmá-la, pode dar margem à condenação do réu, desde que resistente e firme, harmônica com as demais circunstâncias colhidas ao longo da instrução”. Atribui características neste sentido, o autor Renato Brasileiro (2015, p. 923): “Nos crimes às ocultas, como geralmente são praticadas as infrações penais com violência doméstica e familiar contra a mulher, a palavra da vítima é de fundamental importância como elemento de convicção do Juiz, sobretudo quando em consonância com as demais provas existentes nos autos”.

Portanto, cercado pela intimidade do lar, os delitos de violência doméstica e familiar nem sempre são presenciados por alguém, o que impulsiona o magistrado a valorar as palavras da mulher, deixando em desvantagem as do homem.

15. A criminalização do homem e o abuso de direito pela mulher

Movida por uma briga entre o casal, pela separação, para dar um “susto” no homem ou até mesmo por qualquer outro motivo extrapenal, a mulher procura, através do Estado, mediante todo aquele conjunto de vantagens previsto na Lei 306

Maria da Penha para a classe feminina, se vingar do homem, ao lhe imputar fatos que não aconteceram. Procura a Delegacia de Polícia, relata inverdades. A Autoridade Policial, confiando nos dizeres da mulher, toma as medidas cabíveis, encaminha o requerimento de medidas protetivas ao Poder Judiciário e instaura

inquérito

policial.

Poucas

provas

são

colhidas,

restando apenas a palavra de um contra o outro. De acordo com o estudado anteriormente, a palavra dela tem muito mais valor que a do homem. Como se isso não bastasse, a Lei Maria da Penha, lhe propicia um arcabouço de direitos e vantagens. Assim, na fase judicial, obedecidos os ritos legais, chega-se à sentença penal condenatória. O homem então é condenado por ter ameaçado, coagido psicologicamente ou até mesmo agredido a mulher, em datas muito pretéritas ao conhecimento do “fato” pelo Delegado de Polícia. Sem quaisquer vestígios, a não ser as declarações de um contra o outro, predominando a da mulher, o homem recebe o “veredicto condenatório”, mesmo quando o magistrado está cercado de dúvidas sobre a autoria e materialidade do delito. O desfecho? Este culmina na prisão de um indivíduo por fatos que ele não cometeu. E a mulher, permanece do lado de fora, com a sensação de vingança cumprida. É assim que ocorre em muitos episódios. Desde a promulgação e entrada em vigor da Lei Maria da Penha. A mulher movimenta toda máquina estatal para satisfazer um desejo íntimo e pessoal de prejudicar o homem, utilizando-se da lei desvirtuadamente. Se antes de sua inserção no mundo 307

jurídico, o homem era “impune”, com esta legislação muitos são condenados injustamente. Não é a intenção deste trabalho dizer que nenhuma mulher sofre violência doméstica e familiar, pois fatos desta natureza existem e estão no cotidiano de muitos lares brasileiros, infelizmente. Compete-nos apenas desvelar que muitas das vezes, se não for a grande maioria dos casos, o homem é criminalizado diante do abuso de direito por parte da mulher, o que acomete na má aplicação da lei e a utilização indevida das polícias e do judiciário. Corrobora deste entendimento, a magistrada gaúcha Osnilda Pizza. Em uma entrevista ao jornalista Marcelo Gonzatto, a mesma discorreu que: “Muitas vezes, a vítima só quer a separação, ou é uma mãe que quer uma internação psiquiátrica para o filho e por isso registra ocorrência por furto, ameaça ou perturbação da paz. Entra um número incrível de ocorrências, esgota os policiais, não tem como fazer todos os inquéritos. A mulher precisa primeiro de apoio, alguém que pergunte exatamente o que ela quer e do que precisa. Precisam ser atendidas por um assistente social, um advogado, um psicólogo, pessoas que possam dar assistência, uma espécie de antessala da delegacia. Tem mulheres que querem apenas tirar o companheiro de dentro de casa (....)tem gente que usa a lei para fazer a separação do marido, o que não é caso criminal. No mínimo, a metade dos casos que chegam é indevida, mas pode até ser mais.” (sem grifo no original)

O defensor público Carlos Eduardo Amaral narrou em 02 de abril de 2012, ao jornal “Redação da Folha de Vitória”: “Existem casos de mulheres que se valem da Lei Maria da Penha na tentativa de obter alguma

308

vantagem seja ela patrimonial ou moral (...) de cada 30 casos, cinco são de mulheres que fazem o mau uso da Lei Maria da Penha. Geralmente, elas são motivadas pela perda de alguma ação na justiça como o direito de ficar com a casa do casal. Elas decidem entrar com a lei Maria da Penha dizendo que foram agredidas dentro da residência”. (AMARAL, 2012)

Como

se

não

bastasse,

as

medidas

protetivas

beneficiam as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar,

entretanto,

prejudicam

os

homens

acusados

injustamente de terem praticado tal modalidade de violência. Nestes moldes, salienta o autor Lauro Thaddeu Gomes (2012, p. 81), que: “A parte problemática da Lei n° 11.340/06 consiste na permissão de a vítima escolher as medidas protetivas (de cunho penal) contra o acusado. Tratase de algo inadmissível em nosso ordenamento jurídico penal, especialmente para aqueles que entendem que a atuação da vítima no processo penal se restringe ao interesse civil. (...) permitir que a vítima escolha qual medida urgente adequada para seu agressor é, guardado algumas diferenças, permitir a vingança privada. Trata-se de retrocesso processual penal, pois permite que a vítima, no momento de maior desejo de vingança, escolha medidas restritivas (até mesmo de liberdade) disponíveis na lei contra seu agressor. É conceder ao ofendido o poder de punir seu agressor”.

Luiz Gustavo de G. Castanho de Carvalho (2009) apud Lauro Thaddeu Gomes (2012, p. 81) assegura que os elementos probatórios para se conceder tais medidas ao se observar o

309

curto prazo para a remessa do requerimento formulado pela mulher à justiça, são frágeis: “A fragilidade encontra-se no pequeno prazo para se colherem provas e, especialmente, nos delitos que não deixam vestígios, ou seja, em que a perícia não pode comprovar a materialidade delitiva. Por esse motivo o princípio constitucional da presunção de inocência, bem como a necessidade de fundamentação das decisões judiciais devem estar presentes, a fim de exigir um lastro probatório mínimo para decretar a medida protetiva”.

É entendimento de Roberto Flávio Cavalcanti (2014): “Sustentar uma condenação tão somente com a palavra da vítima é algo idêntico a tratar o acusado como culpado pelo crime, pois o ônus de provar por parte da acusação torna-se algo absolutamente descartável. (...) a Lei Maria Penha fez questão de afirmar com redundância os direitos fundamentais das mulheres, mas trouxe a reboque interpretações que “coisificam” o acusado; que o despersonalizam para simplesmente satisfazer a vontade da vítima em querer condená-lo, o que é absurdo, devendo agora o acusado ao mesmo tempo se defender e provar sua inocência”.

Como dito, a Lei Maria da Penha ocasiona, em muitos casos,

a

criminalização

do

homem

por

fatos

que

não

aconteceram, ao passo que concede diversos benefícios e direitos à mulher em detrimento de alguns direitos do acusado, inseridos na Carta Magna. Medidas protetivas são concedidas e condenações são proferidas baseando-se apenas na palavra dela. Nesse alvitre, estando o homem diante deste cenário, certo

310

de sua inocência, deverá provar que não cometeu qualquer delito penal. Para que haja reversão deste quadro, compete aos juízes observar se a mulher não está agindo de má-fé, buscando a condenação de alguém que sabe ser inocente, movida por vingança, ciúmes ou ódio, e assim, utilizando-se indevidamente de toda máquina estatal.

Considerações finais

O

presente

estudo

se

propôs

a

analisar

a

Lei

11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, com um olhar crítico, sem, no entanto, subestimar seu valor legal. Sabemos que a referida legislação é importante instrumento no ordenamento

jurídico

brasileiro

no

que

se

refere

aos

mecanismos de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, a qual passou a ter maior proteção estatal. Nesta perspectiva, é evidente que a valorização da palavra da mulher, quando é a única prova no processo, confronta-se com o princípio da presunção de inocência, dentre outros legados constitucionais, ao passo que, diante das situações fáticas apresentadas aos autos pela mulher propiciam a ela alcançar seu desejo íntimo de vingança, seja esta por qualquer motivo, mediante o alcance da pretensão acusatória por parte do Estado. Ao magistrado compete atentar-se aos benefícios que faz jus a pessoa do acusado. Um deles é a observância de que, 311

prevalecendo dúvidas a respeito dos fatos, o réu não poderá ser penalizado. Diante do exposto teórico, conclui-se que, há um abuso de direito por parte de algumas mulheres no que concerne o uso da Lei 11.340/2006, eis que muitas vezes a pseudovítima busca prejudicar o homem por ocasião de algum motivo extrapenal. Desta forma, sugere-se que à mulher que falseia os fatos, seja aplicada pelo Estado alguma punição para se evitar o mau uso da lei, visando assim impedi-la de acionar a máquina estatal para se vingar do homem, mediante o alcance de injustiças do Poder Judiciário, ao condenar um inocente. Com isso, espera-se que este artigo seja o começo de uma discussão sobre esta perspectiva acerca da vingança privada da mulher nos crimes de violência doméstica e familiar. Referências ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário Jurídico Acquaviva. 4ª. Ed. Atual. e ampl. São Paulo, Rider, 2010. AMARAL, Carlos Eduardo. Cinco em cada 30 casos registrados são de mau uso da Lei Maria da Penha. Disponível em http://www.folhavitoria.com.br/policia/noticia/2012/04/mulher-fazmau-uso-da-lei-maria-da-penha-para-prejudicar-companheiro-emvitoria.html>. Acesso em 22 de novembro de 2015. ANDREUCCI, Ricardo Antônio. Legislação penal especial. 8. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2011. ALVES, Roque de Brito. Ciência Criminal. Rio de Janeiro. Editora Forense, 1995.

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penal

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315

316

ENSAIOS ACADÊMICOS

317

ANÁLISE ACADÊMICA DE JULGADOS JURÍDICOS: UMA PROPOSTA METODOLÓGICA Magna Campos1 Resumo Neste ensaio, proponho uma metodologia para a análise crítica de julgados jurídicos que pode ser utilizada nos cursos tanto de graduação como de especialização da área do Direito. A proposta está assentada nos preceitos da elaboração de trabalhos acadêmicos com vista à avaliação de âmbito mais qualitativo, capaz de propiciar o desenvolvimento de competências e habilidades pressupostas aos acadêmicos em geral e, algumas delas, específicas e necessárias à formação jurídica.

Introdução

No contexto da formação acadêmica, alguns trabalhos auxiliam no desenvolvimento da capacidade analítica e crítica, uma vez que possibilitam aos estudantes que exponham, escrita ou oralmente, suas interpretações e compreensões sobre determinado assunto apresentado. Essa atividade crítica pode dar origem a outras situações interessantes à ampliação do senso crítico, abrindo espaço para debates, posicionamentos, comparações e contraposições de posicionamentos, articulações de conteúdos diversos, diálogos com outras áreas e com a realidade

tanto

imediata

quanto

distante,

análises

de

tendências etc.

1

Mestre em Letras, professora universitária e escritora.

318

Como propõe Pedro Demo, em seu livro Educar para a Pesquisa2, a educação, de uma forma geral, não apenas nas universidades, mas em todos os seus âmbitos precisa atentar para o fato de ser “fundamental que os alunos escrevam, redijam, coloquem no papel o que querem dizer e fazer, sobretudo alcancem a capacidade de formular”. Dessa forma, torna-se

possível

reconhecimento, de

transformar

o

simples

repasse

coisas lidas, em um laboratório

de de

construção de ideias próprias. Para o autor: Formular, elaborar são termos essenciais da formação do sujeito, porque significam propriamente a competência, à medida que se supera a recepção passiva do conhecimento, passando a participar como sujeito capaz de propor e contrapor…Aprende a duvidar, a perguntar, a querer saber, sempre mais e melhor. A partir daí, surge o desafio da elaboração própria, através da qual o sujeito que desperta começa a ganhar forma, expressão, contorno, perfil. Deixa-se para trás a condição de objeto. (DEMO, 2007, p.28)

Trabalhar em prol dessa formulação ou elaboração de uma postura crítica do sujeito diante do conhecimento pode ser a chave para se reposicionar e se repensar a educação universitária guiada pela simples reprodução do conhecimento, estruturada na aula repassada pelo professor e copiada pelo aluno, tão questionada atualmente pelos estudiosos de didática e ensino no ensino superior. Essa educação para a pesquisa precisa ser cada vez mais estimulada e fomentada pelos cursos superiores de uma forma 2

DEMO, Pedro. Educar pela pesquisa. 8 ed. Campinas: Autores Associados, 2007.

319

geral, afinal, a educação não é só ensino, instrução, treino, mas, sobretudo, formação da autonomia crítica e criativa do sujeito-aluno competente. E esse fomento pode se dar tanto pela metodologia de ensino empregada quanto pela forma de atividades e de avaliações desenvolvidas, tendo em vista que algumas metodologias são mais estimulantes, mais ativas que outras e algumas formas de avaliação são menos centradas no simples ato de examinar, por isso, mais preocupadas com os aspectos qualitativos e formativos que com aspectos puramente quantitativos. Neste âmbito, uma das atividades de análise crítica que tem muito a agregar à formação de competências e habilidades dos alunos do curso de Direito é, sem dúvida, a análise sistemática de julgados atuais ou não3. Entretanto, é preciso lembrar que para se realizar a análise crítica de qualquer texto, antes é necessário que o texto seja lido e compreendido4. Só se faz análise crítica de fato daquilo que foi compreendido! Esse preceito não é diferente na área jurídica. Essa informação, pois mais óbvia que possa parecer, precisa ser ressaltada, para que se compreenda que, possivelmente, a análise demandará de seu elaborador mais de uma leitura do texto base e, talvez, a leitura de outros materiais para ajudá-lo a “enxergar” questões importantes nos textos lidos ou para construir associações, contrapontos ou comparações.

Às vezes, é preciso recuperar um julgado de anos passados para se promover comparações e expansões em relação a uma decisão mais recente, por exemplo. 4 Adoto aqui o termo compreensão como a junção dos níveis de compreensão e de interpretação de um texto, ou seja, níveis que relacionam texto/ contexto/ discurso. 3

320

Com a crescente disponibilização das decisões dos tribunais em meio eletrônico, muitos dos quais de livre acesso, é possível selecionar textos relacionados às mais diferentes disciplinas e conteúdos do curso de Direito ou aos estudos complementares, para se realizar um trabalho instigante e analítico de alta envergadura, totalmente diferente de outros trabalhos acadêmicos, sem, no entanto, destoar do que se espera do desenvolvimento de competências e habilidades de um aluno da graduação ou da especialização. Competências e habilidades relacionadas, dentre outros aspectos: à escrita acadêmica: elaboração própria de texto analítico e de formulação crítica; à apresentação oral acadêmica: se o texto elaborado é para apresentação oral; à

leitura

analítica

e

crítica

de

gêneros

textuais

característicos da área jurídica. à argumentação: pois ao se levantar a tese e os argumentos mais importantes empregados no julgado para sustentá-lo – argumentos tanto de ordem jurídica quanto não jurídica – se tem a possibilidade de desenvolver mais o conhecimento sobre essa importante

ferramenta

do

direito

e

sua

empregabilidade na práxis; ao

raciocínio:

identificar

proposições,

estabelecer

relações, inferir, demonstrar por argumentação;

321

à linguagem jurídica: maior contato com a linguagem jurídica,

sua

terminologia,

jargões,

brocardos,

formalidade etc.; à capacidade de discutir questões e de se posicionar diante delas; à associação e conexão de conteúdos: uma decisão, muitas vezes, associa inúmeros conteúdos na análise e sustentação de uma tese, o que propicia a percepção de formas de desenvolvimentos dessas associações e de sua importância. Além disso, permite ao próprio analista que estabeleça associação a outros conteúdos por extensão, criando redes de significados; à capacidade de síntese de ideias; à fomentação de pesquisas futuras; à ampliação dos conhecimentos jurídicos: discussão de aspectos legais, doutrinários e jurisprudenciais que agregam à formação do aluno do Direito. Além

disso,

considerando-se

que

a

pirâmide

de

aprendizagem proposta por William Glasser tenha fundo de verdade, já que tem sido citada em algumas dissertações brasileiras5, a atividade proposta poderia trabalhar em prol de aumentar o nível de aprendizagem sobre um tema discutido, uma vez que objetiva uma leitura mais aprofundada do julgado, Um exemplo é a menção na dissertação de Isaías Pessoa da Silva, na Universidade Estadual da Paraíba, aprovada em 2015, intitulada Estilos de aprendizagem e materiais didáticos digitais nos cursos de licenciatura em matemática a distância (p.13). 5

322

sua análise em termos de informações essenciais, a organização sistemática

dessas

informações

levantadas

para

que

se

transformem em conhecimento, a crítica e expressão do posicionamento apresentada

diante

para

os

do

discutido,

demais

colegas,

podendo

ainda,

alcançar

o

se

maior

percentual de aprendizagem proposto. De acordo com tal pirâmide, a aprendizagem opera em níveis

que

vão

desde

aquelas

atividades

que,

se

não

complementadas por outras, tendem a resultar em menor “retenção” de informações e, portanto, menos conexões capazes de serem transformadas em conhecimento até as que mais têm possibilidade de resultar em maior aprendizado. A pirâmide prevê os seguintes níveis e propõe possíveis percentuais alinhados à aprendizagem, como evidencio adiante:

323

Figura 01: Pirâmide de aprendizagem de William Glasser. Fonte: http://www.leiemdestaque.com.br/2016/08/a-piramide-deaprendizagem.html

Percebe-se, pela análise da pirâmide, que a atividade proposta estaria trabalhando nos níveis verde, amarelo e azul, todos mais elaborados e com pressupostos de aprendizados mais eficientes. 2. Proposta de roteiro metodológico para análise Nesta exploração textual, especialmente no início do trabalho com essa modalidade crítico-analítica, é válido guiarse

por

alguns

pontos

que

podem

compor

um

roteiro 324

metodológico para elaboração da análise crítica do julgado, tais como: ROTEIRO PARA ANÁLISE CRÍTICA DE JULGADOS6 Destacar o tipo de julgado Destacar o julgador Destacar o procedimento análise

tipo julgado

voto ou qualquer outra forma de decisão de juízes ou ministros da justiça. Ministro ou juiz (quem, de qual tribunal, quando) de Cada área do Direito apresenta em procedimentos possíveis. Todavia, para exemplificar, citese: análise do voto de um ministro sobre uma ação direta de inconstitucionalidade (ADIN); análise de um voto referente a uma ação declaratória de constitucionalidade (ADC) e inúmeras outras.

Destacar o pedido analisado

Ex.: Mudança de jurisprudência relativa à sentença só poder ser executada após o trânsito em julgado da condenação. Destacar a decisão do juiz Favorável ou contra o pedido, ou ministro por exemplo. Qual a tese defendida Destacar os principais Argumentos legais: baseados argumentos jurídicos em códigos, lei e normas. empregados pelo juiz ou ministro Síntese do argumento 1: Como não se tem na literatura proposta metodológica estabelecida, elaboro um roteiro com aspectos/pontos que são importantes para a construção da análise crítica dos julgados, os quais poderão ser usados em trabalhos da graduação e da especialização na área jurídica. 6

325

Síntese do argumento 2: Síntese do argumento 3: Síntese do argumento 4: Síntese do argumento 5: etc... Argumentos doutrinários: baseados nos doutrinadores do Direito Síntese do argumento 1: Síntese do argumento 2: Síntese do argumento 3: Síntese do argumento 4: Síntese do argumento 5: etc... Argumentos jurisprudenciais: baseados em jurisprudências mencionadas Síntese do argumento 1: Síntese do argumento 2: Síntese do argumento 3: Síntese do argumento 4: Síntese do argumento 5: etc... Destacar os principais Argumentos baseados em argumentos não jurídicos autores de outras áreas: empregados pelo juiz ou biólogos, sociólogos, filósofos, ministro linguistas, economistas, teólogos, jornalistas etc. Argumentos baseados na realidade atual ou histórica do país. Argumentos baseados na realidade atual ou histórica de outros países. Outros tipos importantes de 326

argumentos empregados Comentário posicionamento sobre a decisão

do

e Aqui é sempre interessante aluno verificar a motivação apresentada pela decisão, a coerência dela em relação a outras decisões que tratam da questão, possíveis implicações, expansões, concordância e discordância todas elas justificadas. Outros comentários pertinentes que o estudante queira realizar. Posicionar-se diante da decisão.

3. Organização estrutural proposta Se digitado, é interessante seguir as regras de formatação de trabalhos acadêmicos propostas pela ABNT, para que assim se continue a preparação dos alunos para a redação de outros trabalhos

deste

meio,

como

ensaios,

artigos,

paper

e

monografias. O ideal é que o trabalho seja elaborado individualmente, em dupla ou em grupos pequenos, pois grupos maiores, se mal administrados

pelos

membros,

sobrecarregam

alguns

e

desobriga outros da elaboração. Também é desejável que, no total, o texto ocupe entre 02 e 05 páginas devidamente formatadas, a fim de que se possa trabalhar a capacidade de síntese dos alunos. O quadro abaixo dispõe

os dados da formatação

mencionada: 327

Formatação do texto Texto em geral:

Arial,

12,

normal,

espaçamento entre linhas de 1,5cm e recuo de parágrafo de 1,25cm. Tópicos principais:

Arial, 12, negrito

Subtópicos:

Arial, 12, normal

Margens

Esquerda e superior: 3 cm Direita e inferior: 2 cm

Tópicos sequenciados

Separados apenas por um ou dois “enter” um do outro

Extensão total do trabalho

Entre 02 e 05 páginas

4. Estrutura do texto Seguindo-se o roteiro traçado, a estrutura do texto seria a seguinte: Cabeçalho Instituição Disciplina Nome do professor Nome do aluno Data Introdução 1.1 Tipo de julgado 1.2 Julgador/ Juízo (quem, de qual tribunal, quando) 1.3 Tipo de procedimento julgado 1.4 Pedido julgado 328

1.5 Tese defendida e posicionamento do julgador Desenvolvimento 2.1 Argumentos jurídicos (mencionar só os existentes) 2.1.1 Argumentos jurídicos legais   

Síntese do argumento 1: Síntese do argumento 2: Síntese do argumento 3:

[...] 2.1.2 Argumentos jurídicos doutrinários    [...]

Síntese do argumento 1: Síntese do argumento 2: Síntese do argumento 3:

2.1.3 Argumentos jurídicos jurisprudenciais    [...]

Síntese do argumento 1: Síntese do argumento 2: Síntese do argumento 3:

2.2 Argumentos não jurídicos (mencionar só os existentes) 2.2.1 Argumentos de autores de outras áreas   

Síntese do argumento 1: Síntese do argumento 2: Síntese do argumento 3:

[...] 2.2.2 Argumentos com base na realidade brasileira atual ou histórica   

Síntese do argumento 1: Síntese do argumento 2: Síntese do argumento 3:

[...] 329

2.1.3 Argumentos com base na realidade de outros países atual ou histórica   

Síntese do argumento 1: Síntese do argumento 2: Síntese do argumento 3:

[...] 2.3 Outros argumentos importantes   

Síntese do argumento 1: Síntese do argumento 2: Síntese do argumento 3:

[...] 3. Comentário e posicionamento

Essa estrutura, portanto, atende de forma geral a todos os julgados, especialmente os votos dos ministros, que são textos de relevância destacada na área e podem fornecer inúmeros

elementos

para

o

debate,

análise

crítica

dos

conteúdos tratados e posicionamento dos estudantes em relação

às

teses

defendidas,

dentre

inúmeras

outras

possibilidades. 4. A avaliação da análise crítica elaborada Importante momento em qualquer proposta de atividade está relacionado à sua avaliação, todavia, como preceitua as correntes que defendem a avaliação formativa e qualitativa, é interessante

que

tanto

professor

quanto

aluno

tenham 330

conhecimento

de

aspectos

relevantes

que

poderão

ser

considerados no momento de se avaliar o trabalho, tais como:  Capacidade do analista em detectar a tese defendida;  Levantamento

dos

argumentos

jurídicos

mais

importantes, devidamente sintetizados;  Levantamentos dos argumentos não jurídicos mais importantes, devidamente sintetizados;  Qualidade

do

comentário

elaborado

(pertinente,

fundamentado ou justificado);  Qualidade do posicionamento do analista (está bem definido e justificado);  Atendimento à norma culta da língua portuguesa;  Aspectos relacionados à formatação do texto (afinal, trabalho acadêmico relaciona-se ao conjunto: forma e conteúdo). Considerações finais: Como toda metodologia de trabalho, essa depende mais da forma como será “operacionalizada” pelo professor e aluno que propriamente de sua estrutura. Todavia, esse ensaio oferece uma proposta norteadora para aqueles que desejam realizar atividades mais significativas e capazes de suscitar debates mais consistentes nas aulas e desenvolvimento de competências e habilidades que agreguem valor à formação acadêmica e profissional.

331

EMPREGO DA PERGUNTA NA JUSTIÇA: A HERMENÊUTICA JURÍDICA DE GADAMER

Anderson Stoppa1 Antônio César da Rocha2 Bruno César Teixeira3 Elaine Castro4 René Dentz5 Resumo O emprego da lei como está efetivamente escrita, sem a observância da coerência dos sentidos da justiça, pode causar um fim diferente a que se destina. E para corrigir possíveis transtornos causados pela simples redação da norma, recorre-se à doutrina, à hermenêutica jurídica. Gadamer, renomado cientista da área, propõe em sua obra um profundo estudo da hermenêutica jurídica. Este trabalho visa demostrar e abrir espaço ao debate às ideias de Gadamer.

Introdução

A

hermenêutica

moderna

surgiu

inicialmente

com

reflexão sobre os fundamentos e a metodologia referente à interpretação dos textos religiosos, literários e legais. O seu sentido original estava relacionado com a Bíblia, sendo que neste caso consistia na compreensão das Escrituras, para

Graduando em Direito pela UNIPAC/Mariana; Graduando em Direito pela UNIPAC/Mariana; 3 Graduando em Direito pela UNIPAC/Mariana; 4 Graduanda em Direito pela UNIPAC/Mariana; 5 Professor Titular da UNIPAC/Mariana; Professor da UNIP-Belo Horizonte; Professor do SEB Global Alphaville; Psicanalista; Membro do International Institute for Hermeneutics (Freiburg Universität/Alemanha). 1 2

332

compreender o sentido da palavra de Deus. A hermenêutica está presente também na filosofia e na área jurídica. Na filosofia, hermenêutica é a ciência que estuda a arte da interpretação, surgida na Grécia Antiga. Estuda diversos assuntos em diversas áreas, como literatura, religião e direito. A hermenêutica aborda dois polos: o epistemológico, é o estudo sobre o8 conhecimento científico, com a interpretação de textos e o ontológico, este refere a interpretação do ser, da realidade Na filosofia, hermenêutica é fundamentada por HansGeorg Gadamer, que escreveu um livro sobre como explicar e analisar textos de forma coerente, através de métodos especiais. Para Gadamer, a hermenêutica é uma forma de compreender as ciências espirituais e a história, através de uma interpretação da tradição. Na área jurídica, hermenêutica é a ciência que criou regras e métodos para interpretação das normas jurídicas, fazendo com que elas fossem conhecidas com seu sentido exato e esperadas pelos órgãos que a criaram. 2. O Direito e a Hermenêutica Filosófica de Hans-Georg Gadamer Hans-Georg Gadamer, foi um filósofo alemão, nascido em 1900, considerado como um dos maiores expoentes da hermenêutica filosófica, no século XX. Sua obra de maior impacto foi Verdade e Método, de 1960, nela expõe uma nova teoria da experiência hermenêutica que vai além da tradicional concepção, que a equipara a uma metodologia cientifica. 333

Para Gadamer, a hermenêutica não está atrelada a uma ciência, nem mesmo a uma metodologia de interpretação, mas sim na historicidade e compreensão como constitutivos do ser histórico. Sua corrente filosófica está acima da metodologia, ou seja, voltada para a questão ontológica. É a partir da tradição de sentidos que é “se tornam possíveis nossos conhecimentos, nossas valorizações, nossas tomadas de posição no mundo”. Gadamer trata da questão do problema do método, afirma que questões metafísicas compreendem-se por analogia à ciência da natureza e que, entretanto, seus dados são incompletos, o que torna insegura suas previsões. A experiência do mundo sócio histórico não se eleva ao nível de ciência pelo processo indutivo das ciências da natureza e mesmo que todo o conhecimento

histórico

esteja

incluído

ao

emprego

da

experiência ao objeto de pesquisa, o conhecimento histórico não aspira tomar o fenômeno concreto como caso de uma regra geral. As ciências humanas tampouco conseguem estabelecer previsibilidade em relação ao futuro, pois o comportamento humano se modifica em função do conhecimento que adquire e porque não é possível observar a realidade objetivamente, o observador não pode libertar-se no ato de observação. A investigação do processo da palavra interior, que se encontra por trás da expressão torna-se, agora, tarefa central de todas as ciências do espírito que pretendem compreender [...] Da hermenêutica espera Dilthey, agora, a solução da pergunta pelo ‘conhecimento científico’ do individual, portanto regras universalmente válidas, para defender a segurança da compreensão em face ao ceticismo

334

histórico e da arbitrariedade subjetiva, mantendo assim, uma compreensão clássica e normativa da hermenêutica (GADAMER, 1999, p.152/154).

Gadamer enriquece a tradicional corrente hermenêutica filosófica quando propõe em seu livro, “Verdade e Método”, a busca pela autonomia do indivíduo, enquanto ser lançado no mundo. Busca de forma pragmática, o entendimento mútuo entre o autor e o interprete. E na linguagem, o meio para a compreensão do indivíduo no mundo. Demonstra, além disso, que, onde se tinha uma relação sujeito-objeto, agora tem-se uma relação sujeito-sujeito. 3. O Limite da Consciência na História Efeitual

Para Gadamer, aquele que pretende compreender algo, não pode se ater às suas opiniões prévias, mas, deve este estar disposto a deixar que estas lhe digam algo. A compreensão passa pelo caminho do reconhecimento do passado histórico, sem este preconceito, não seria possível a autocrítica. “Somente através

dos

outros

é

que

adquirimos

um

verdadeiro

conhecimento de nós mesmos”. Gadamer não propõe um método para se alcançar a verdade, pelo contrário, entende que a busca de uma verdade universalmente

válida

ameaça

cobrir

a

realidade

da

compreensão, direcionando-a para um ideal de conhecimento que ela jamais concretiza. Afirma que a história efeitual não está à disposição do intérprete, mas este está mais submisso a 335

ela do que tem consciência. Ela continua atuando até onde nós tentemos neutralizá-la, pertencemos à história mais do que ela nos pertence.

Cabe citar aqui, a crítica ao historicismo, que teve origem positivista e tentou objetivar a história excluindo o sujeito interpretante, algo que é inconcebível para Gadamer. Em outras palavras, é como se a história pudesse ser interpretada de uma só maneira. O historicismo exclui a possibilidade de interpretação na nossa situação presente, ou seja, não há um intercâmbio constante entre passado e presente. Segundo o historicismo, uma consciência histórica especificamente desenvolvida deveria ser capaz de emancipar-se desse condicionamento e possibilitar, dessa forma, uma fase objetiva na história. Isso contradiz o que Gadamer afirma sobre a história efectual, somos mais ser do que consciência (ZANIN, 2010, p. 23).

A história efeitual possui a função de uma instância basilar para cada compreensão, ela dá clareza àquilo que parece ser questionável. Gadamer adverte que a descoberta da finitude do conhecimento não gera nenhum obstáculo ao próprio conhecimento, pelo contrário. A apreciação do caráter universal e especificamente hermenêutico da nossa experiência de mundo dedica-se à hermenêutica da finitude. 4. Experiência Hermenêutica e a História Efeitual

Gadamer faz uma análise da consciência da história efeitual

como

estrutura

da

experiência.

Para

ele,

uma

experiência só é válida, na medida em que se confirma; nesse sentido, sua dignidade repousa no princípio que reza que ela 336

pode ser reproduzida. O fato de que a experiência seja válida enquanto

não

é

contradita

por

uma

nova

experiência,

caracteriza, evidentemente, a essência geral da experiência, independentemente de que se trate de sua produção científica no sentido moderno ou da experiência da vida cotidiana tal como vem realizando desde sempre. Gadamer explicita muito bem ao dizer que: A experiência não é a própria ciência, mas é sim um pressuposto necessário para ela. Diz mais: A experiência só se realiza nas observações individuais. Não se pode conhecê-la numa universalidade prévia.

É

nesse

sentido

que

fundamentalmente

aberta

para

a

experiência toda

e

permanece

qualquer

nova

experiência – não só no sentido geral de correção de erros, mas porque a experiência está essencialmente dependente de constante confirmação, e na ausência dessa confirmação ela se converte necessariamente noutra experiência diferente, uma mesma coisa não pode voltar a ser uma experiência nova, para que isso ocorra, tem de haver um fato inesperado para proporcionar

uma

nova

experiência

de

quem



é

experimentado. Aquele que experimenta se torna consciente de sua experiência. O

homem

experimentado

sabe

seus

limites

e

a

insegurança dos seus planos. O fato de o experimentado possuir uma abertura para novas experiências é que constitui as fases do processo de experiência. Assim, as experiências não chegam ao fim, adquirindo então uma nova forma de saber.

337

De Lutero a Dilthey a compreensão foi colocada cada vez mais radicalmente em questão, enquanto o sentido do texto e sua pretensão à verdade (Wahrheitsanspruch) nunca foram questionados em profundidade. Isso teria mudado radicalmente com Wittgenstein, que, já no Tractatus LogicoPhilosophicus, distinguia entre sentido e verdade. "Compreender uma frase", diz Wittgenstein no Tractatus, "é saber qual é o caso quando ela é verdade". Isto é: ela pode ter sentido, mas não ser verdadeira. Para ter sentido, é preciso que seja formada por elementos que se compreendam. Para ser verdadeira, deve ser possível a) transformá-la em frases elementares e b) comparar as frases elementares com os fatos. (APEL, 1973, p.339-41).

A experiência é entendida como essência histórica do homem. O fato de a experiência ser dolorosa e desagradável não é uma visão pessimista, mas, advém da própria essência da experiência. Essa experiência hermenêutica tem a ver com a tradição. O intérprete está envolvido em uma história dentro da qual não possui controle completo. Afirma-se, então, que o homem está mais para a história que a história para o homem. 5. A Tradição da Pergunta e da Resposta

Utilizar a tradição para alcançar a compreensão é fundamental, pois não há uma relação de apropriação pelo intérprete do texto, mas um diálogo, seguido de perguntas e respostas, no qual o intérprete participa, “ouvindo” o que o texto tem para dizer. Na medida em que cada intérprete se situa num novo horizonte, o evento que se traduz linguisticamente na 338

experiência hermenêutica e é algo novo que aparece, algo que não existia antes. Neste evento, fundado na linguisticidade e tornado possível pelo encontro dialético com o sentido do texto transmitido, encontra a experiência hermenêutica a sua total realização. “Gadamer define em três tipos de experimentar e compreender o tu (tradição). A primeira maneira é a que detecta elementos típicos a partir da observação do comportamento do seu próximo, que, graças a essa experiência, pode prever atitude do outro. Resumindo, é a experiência que, pela observação que é fundada na consciência de história efeitual, permite uma análise solitária, individual da compreensão. A segunda consiste em compreender o outro partindo do sentido de que é antecipado e apreendido a partir da posição do outro. Reconhecê-lo como pessoa, mas a compreensão deste continua sendo um modo de referência para si mesmo. Pretende, inclusive, compreendê-lo melhor que ele mesmo se compreende. A crítica a essa compreensão é que reduz o outro (tu) a objeto de cálculo, ou seja, é uma ilusão considerar o outro como instrumento que se pode abrangir com vistas a dominar totalmente. Para Gadamer, essa pretensão de compreender o outro, antecipando-lhe, cumpre a função de manter a distância a pretensão do outro. Mas para chegar à terceira e mais elevada maneira

de

experiência

hermenêutica,

necessário

se

faz

compreender que a tradição possa pensar a sua própria historicidade. Na verdade, a tradição não restringe a liberdade de

conhecer,

antes

disso,

ela

a

torna

possível.

Esse 339

conhecimento e reconhecimento é o que perfaz a abertura à tradição própria da consciência da história efeitua.” A tradição, para Gadamer, tem de ser analisada não no sentido de uma alteridade do passado, mas de deixar valer suas pretensões, reconhecer que ela, tradição, possui algo a nos dizer.

Gadamer

demonstra

como

fazer

pergunta

é

tão

importante e mais difícil que dar a resposta. Observe: Para perguntar, é preciso querer saber, isto é, saber que não se sabe. E no intercâmbio de perguntas e respostas, de saber e não saber, descrito por Platão ao modo de comédia, acaba-se reconhecendo que para todo conhecimento e discurso em que se queira conhecer o conteúdo das coisas a pergunta toma a dianteira. Uma conversa que queira chegar a explicar alguma coisa precisa romper essas coisas através de uma pergunta, pois todo conhecimento tem de passar pela pergunta. Pergunta quer dizer colocar em aberto. A decisão da pergunta

é

o

caminho

para

o

saber.

O

saber

é

fundamentalmente dialético. De acordo com Gadamer, todo perguntar e todo querer pressupõem um saber que não se sabe. “O que conduz uma pergunta determinada é um saber não determinado.” Para poder responder a essa pergunta que nos é colocada, nós, os interrogados, temos que começar, por nossa vez, a perguntar. Procuramos reconstruir a pergunta a que responderia aquilo que é transmitido

340

Observe que, para Gadamer, compreender um texto é perguntar o que ele está nos perguntando, interpretá-lo, mas sem fechar as hipóteses interpretativas. Mas para que ocorra essa interpretação é necessária uma reconstrução da pergunta que é transmitida, ou seja, superar o horizonte histórico que a própria tradição nos coloca. A dialética de pergunta e resposta que expusemos acima apresenta a relação da compreensão como uma relação recíproca semelhante à relação dá na conversação.

Podemos

dizer que quando se considera a tradição para fazer a pergunta e, ao mesmo tempo, o texto faz a mesma pergunta, o texto e a tradição fundem seus horizontes. Ou seja, se o texto tenta responder a uma pergunta e, ao tentar interpretar esse texto levamos a tradição em consideração para buscarmos a resposta, é como se o texto e a tradição estivessem olhando para o mesmo lugar, olhando na mesma direção e, assim, com horizontes fundidos. Considerações finais

Com os

avanços

proporcionados

pela discussão e

aplicação da hermenêutica jurídica, iniciada por Gadamer, verifica-se mais justa a aplicação do Direito. O estudo do seu trabalho demonstra a historicidade e tradição no conhecimento do homem sobre si mesmo. A pergunta, em sua obra, é dialética, ao tentar responder uma pergunta, nos fazemos a mesma e outras indagações. 341

Ao mesmo tempo em que para compreender o outro, um texto jurídico, quer seja a interpretação da norma para sua justa aplicação ou motivação da violação dessa, ou mesmo compreender sociedade,

o

fundamento

passamos

pela

da

existência

pergunta,

sem

humana esta

não

em há

conhecimento. Portanto, para a mais justa ou a mais correta interpretação e aplicação da norma, utiliza-se da pergunta, da hermenêutica, que surgiu com o intuito de amenizar problemas que pairam sobre discursões, na qual, em alguns casos, acabam por levar um intérprete da norma a cometer uma aplicação equivocada do direito. O operador do direito, ao investigar, analisar ou julgar os fatos ocorridos, não deve apenas recorrer às leis que os interpõe, mas indagar-se de todo o contexto do fato (LOPES, 2000, 56).

A hermenêutica, nos mostra que não só as normas, mas antes de qualquer coisa, devemos observar as questões sociais, os meios e interpretar o que realmente ocorreu, para então proceder

com

seu

julgamento,

levando

em

conta

a

autenticidade, a jurisprudência e a doutrina, também deve ser lavado em conta os métodos de avaliação pelos juristas quanto a classe gramatical, a sistematização, a teleológica e a logica, chegando assim a um resultado restrito, declarativo ou extensivo para

que a norma

alcance

seu objetivo e o

sentido real da aplicação do direito. Referências ALMEIDA, Custódio. Hermenêutica e dialética: dos estudos platônicos ao encontro com Hegel. Porto alegre: Edipucrs, 2002. 342

LOPES, Ana Maria D’Ávila. A Hermenêutica Jurídica de Gadamer. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 37, n.145, p 101-110, jan./mar. 2000. BONFIM, Vinícius Silva. Gadamer e a Experiência Hermenêutica. Revista CEJ, Brasília, a. 14, n.49, p 76-82, abr./jun. 2010. SAMPAIO JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão e dominação. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2001. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo : Martins Fontes, 1996. OSUNA, Antonio Hernández Largo. Hermenéutica jurídica: en torno a la hermenéutica de Hans-Georg Gadamer. Valladolid: Universidad de Valladolid, 1992. PEREZ LUÑO, Antonio Henrique. La Seguridad Jurídica. Barcelona: Ariel, 1991.

343

DESVENDANDO O CENÁRIO NA SISTEMÁTICA DA SAÚDE DO TRABALHADOR NO MUNICÍPIO DE OURO PRETO Joana DArc Aparecida de Oliveira1 Rita de Cássia Melo Laport 2 Resumo Diante de um novo contexto, em que novas estratégias e tecnologias foram incorporadas às ações de saúde pública, a Vigilância em Saúde do Trabalhador é entendida como “um processo contínuo e sistemático de coleta, consolidação, disseminação de dados sobre eventos relacionados à saúde, visando o planejamento e a implementação de medidas de saúde pública para a proteção da saúde da população, a prevenção e controle de riscos, agravos e doenças, bem como para a promoção da saúde” (Portaria nº 1.378/2013). Sem a pretensão de esgotar o tema proposto, o presente traçará o cenário que elucida as ações da Vigilância em Saúde do Trabalhador em Ouro Preto, nos períodos compreendidos entre 2013 a 2016.

Introdução

No

Brasil,

as

ações

voltadas

para

a

saúde

dos

trabalhadores são ainda recentes, e têm como marco histórico os movimentos sociais iniciados com as lutas dos trabalhadores por melhores condições de trabalho e de vida das décadas de 1970/1980, impulsionados pelos metalúrgicos do ABC paulista. No entanto, é no decorrer dos anos 80, paralelamente à redemocratização do estado brasileiro, que as primeiras ações voltadas para a saúde dos trabalhadores são incorporadas ao Sistema Único de Saúde (SUS). Conforme destaca Lacaz (1997) 1 Acadêmica do sexto período do curso de Direito da Universidade Presidente Antônio Carlos – Mariana. 2 Professora de Direito do Trabalho do curso de Direito da Universidade Presidente Antônio Carlos - Mariana

344

tal incorporação se dá a partir do reconhecimento dos trabalhadores enquanto sujeitos possuidores de direitos e de saberes, para além de meros consumidores de serviços de saúde.

Delineia-se, assim, no país, o campo da Saúde dos

Trabalhadores, tendo como pressuposto “a participação dos (as) trabalhadores (as) no processo de avaliação e controle dos acidentes de trabalho e não se restringe à concepção de riscos profissionais e agentes causadores (físicos, biológicos, químicos, mecânicos

e

ergonômicos),

mas

reconhece

outras

determinações para o sofrimento físico e mental, relacionandoas com o processo produtivo” (Lacaz, 1996). Segundo Mendes & Dias (1991, as ações de saúde dos trabalhadores diferem substancialmente das ações da medicina do trabalho, uma vez que a medicina do trabalho constitui fundamentalmente uma atividade médica, sendo o "locus" de sua prática os locais e ambientes de trabalho, com foco na adequação dos processos de trabalho aos trabalhadores. No entanto, com o advento da evolução tecnológica industrial e de novos produtos a partir da II Guerra Mundial, “desvela-se a relativa impotência da medicina do trabalho para intervir sobre os problemas de saúde causados pelos processos de produção” dando lugar a uma prática interdisciplinar com foco na complexidade das ações de promoção e recuperação da saúde dos trabalhadores, o que resulta na organização de equipes multi e interdisciplinares em substituição aos serviços médicos organizados nas fábricas.

345

Delineia-se, assim, o campo da Saúde dos Trabalhadores, baseada na interdisciplinaridade das ações, rompendo, assim, “com a concepção hegemônica que estabelece um vínculo causal entre a doença e um agente específico, ou a um grupo de fatores de risco presentes no ambiente de trabalho” com a função de intervir nos locais e nos processos de trabalho e de controlar os riscos ambientais, tendo como pano de fundo a promoção da saúde dos trabalhadores (Mendes & Dias, 1991). Trata-se, portanto, de um campo ainda em construção, cujo objeto pode ser definido como o processo saúde-doença dos grupos humanos em sua relação com o trabalho. Constitui, ainda, campo de excelência para as práticas interdisciplinares no âmbito dos serviços públicos de saúde e também nos ambientes acadêmicos, onde os futuros profissionais devem, ao longo de sua formação acadêmica, conhecer, vivenciar e, na medida do possível, e sob supervisão docente, intervir na realidade dos trabalhadores brasileiros, somando esforços na luta por melhores condições de saúde e trabalho, através da capacitação profissional, da produção do conhecimento, da prestação de serviços e da fiscalização das exigências legais. 2 A Problemática Atual Inicialmente, cabe ressaltar que a concepção de Saúde do Trabalhador e a própria prática a ela inerente orientaram-se, de forma predominante, para o trabalho industrial, tendo como referência

um

transformações

modelo recentes,

que,

em

virtude

das

profundas

também

precisa

ser

repensado. 346

Depara-se, no momento atual, com um quadro em que convivem situações mais evidentes da violência do trabalho, não

resolvidas

pneumoconioses,

ou

parcialmente

doenças

enfrentadas

provenientes

de

riscos



como físicos,

intoxicações crônicas e agudas, associadas à utilização de tecnologias obsoletas e de substâncias banidas do mundo desenvolvido, bem como as formas de organização do trabalho que desconsideram a necessidade de contemplar e expandir as potencialidades humanas, com as decorrentes de uma nova lógica produtiva, marcada pela globalização da economia. O direito ao trabalho é a demanda mais crucial e complexa do momento presente. Garanti-lo reverteriam significativamente os constatados reflexos do desemprego sobre a saúde da população trabalhadora e de suas famílias. Discute-se, por um lado, que o trabalho está se exaurindo na sociedade do trabalho, ou se questiona a centralidade do trabalho produtivo (Offe, 1989). 3 Consolidação Da Vigilância Em Saúde Do Trabalhador O

avanço

gradual,

quantitativo

e

qualitativo

da

institucionalização das práticas de Saúde do Trabalhador, no setor saúde em todo o Brasil, reflete a consolidação da área como objetivo indiscutível da saúde pública. E, por assim dizer, objeto, também, das políticas públicas direcionadas, em todos os níveis do Sistema Único de Saúde (SUS), para a prevenção dos agravos à saúde da população trabalhadora.

347

Dessa forma, a Vigilância em Saúde do Trabalhador calcase no modelo epidemiológico de pesquisa dos agravos, nos diversos da relação entre trabalho e saúde agregando ao universo da avaliação e análise a capacidade imediata sobre fatores determinantes dos danos à saúde. A

assistência

à

saúde

do

trabalhador

desenvolve-se

integralizada às ações de Vigilância Epidemiológica e Sanitária, pois, dessa forma, a dinâmica do processo saúde/doença decorrente do trabalho adquire contornos mais definidos. Havendo informações resumidas, analisadas, interpretadas e divulgadas, pelos níveis de atenção, como fruto de uma atuação integrada assistência/vigilância, certamente o papel atribuído ao sistema de vigilância, que é o de orientar as ações, será cumprido. Vale ressaltar que a intervenção nos processos e ambientes de trabalho pressupõe a integração das ações de Vigilância em Saúde (BRASIL, 2012). 4 Cenário Da Vigilância Em Saúde Do Trabalhador Em Ouro Preto

A Vigilância em Saúde do trabalhador consiste em um conjunto de ações planejadas, realizadas tanto dentro do local de trabalho como fora dele, que visam promover e proteger a saúde dos trabalhadores (formais e informais) por meio da eliminação/redução de situações e condições geradoras de 348

sofrimento, de doenças profissionais e de acidentes de trabalho decorrentes dos ambientes e dos processos de trabalho. Para que a equipe consiga operacionalizar as ações de Vigilância e executá-las de forma efetiva, é fundamental identificar

estabelecimentos

alvo,

adotando-se,

para

isso,

critérios de prioridades, como por exemplo, a análise da situação de saúde do trabalhador, demandas de sindicatos, notícias divulgadas em mídia, demandas institucionais, entre outros. Destaca-se que a análise da situação de saúde do trabalhador é um importante critério, uma vez que sua elaboração utiliza uma série de variáveis de importância para a saúde

do

trabalhador,

como

dados

demográficos,

epidemiológicos, previdenciários, do perfil produtivo, entre outros. Em face disso, a Vigilância em Saúde do trabalhador de Ouro Preto vem realizando algumas atividades, tais como: 

Notificação e investigação de acidente de trabalho grave, acidente de trabalho com exposição á material biológico;



Notificação e investigação aos agravos relacionados ao trabalho:

câncer,

dermatoses,

LER/DORT,

PAIR,

pneumoconioses e transtornos mentais; 

Investigação de acidentes de transporte de carga com produtos perigosos;

349



Identificar o Perfil Ocupacional Familiar (quem trabalha com o que?) e deve ser atualizado a cada ano;



Monitorar a vigilância de ambientes de trabalho;

Outras ações relacionadas: Abordagem de trabalhadores e empregadores para conscientização de ambiente de trabalho seguro

e

situações

que

podem

ocasionar

doenças

nos

trabalhadores. São feitas por meio de fiscalização ou palestras nos locais de trabalho e ainda material impresso como folder's e cartilhas. Quando ocorre algum acidente a Referência Técnica em Saúde do Trabalhador, Sra. Alessandra Gomes Machado3 investiga e se necessário encaminha para o serviço de saúde do trabalhador de referência, ou seja, quando o trabalhador for informal (não tem registro em CTPS) encaminhar para o Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST), Barreiro em Belo Horizonte, e se for um trabalhador formal (com registro em CTPS) encaminhar para o serviço de Saúde Ocupacional da empresa. Desenvolve-se ainda, atividades em conjunto no Serviço de Saúde Mental, Fisioterapia, Reabilitação Física e Dermatologia, pois estas especialidades fazem o nexo causal entre os sinais e sintomas e a atividade que o indivíduo exerce. 3

Alessandra Gomes Machado – Enfermeira em Saúde do Trabalhador,

responsável técnica em Vigilância de Saúde do Trabalhador de Ouro Preto. COREM-MG 240386

350

5 Diagnósticos Situacionais Da Vigilância Em Saúde Do Trabalhador Entre 2013 À 2016

NOTIFICAÇÃO DE ACIDENTE DE TRABALHO GRAVE 80,00% 70,00% 60,00% 50,00% 40,00% 30,00% 20,00% 10,00% 0,00%

% ACIDENTE DE TRABALHO GRAVE

2013

2014

2015

ate out. 2016

Gráfico 01: Notificação de acidente de trabalho grave - Fonte: SINAN – Dados atualizados em 30/10/2016.

O gráfico acima mencionado mostra o cenário de notificação de acidentes de trabalho grave, compreendido entre os períodos de 2013 à out.2016 em Ouro Preto. Apresentou-se um aumento expressivo em 2014, com uma porcentagem de 72,41 %, sendo que,

registrou-se

um

declínio

em

2015

de

12,07%,

e

outubro/2016 com 3,45%.

351

NOTIFICAÇÃO DE ACIDENTE COM MATERIAL BIOLÓGICO 35,00% 30,00% 25,00% 20,00% 15,00% 10,00% 5,00% 0,00%

% ACIDENTE COM MATERIAL BIOLÓGICO

2013

2014

2015

Até out. 2016

Gráfico 02: Notificação de acidente com material biológico - Fonte: SINAN – Dados atualizados em 30/10/2016

Segundo informações obtidas no SINAN/2016, foi notificado por acidente com material biológico em 2013 um percentual de 18,42%, em 2014 registrou 32,90%, em 2015 um percentual de 30,26% e até outubro de 2016 apresentando um declínio de 18,42%.

Conclusão Dentro do Sistema Único de Saúde (SUS), a área de saúde do trabalhador emerge como um desafio a mais, no sentido de se proverem os meios necessários para atender com primazia o que, a partir de 1988, com a Constituição Federal, passou a ser atribuição precípua das Secretarias de Saúde de Estados e Municípios: a Vigilância em Saúde do Trabalhador. 352

É preciso considerar, contudo, as dificuldades inerentes ao sistema de

saúde, cujas práticas tradicionais, já muito

enraizadas, não dispõem de mecanismos ágeis de adequação às novas necessidades, determinadas pela lei e, mesmo, ansiadas pela sociedade. Diante do exposto acima, através dos gráficos, observa-se que os dados referem-se apenas às notificações realizadas pelo setor de Vigilância em Saúde do Trabalhador, onde muita das vezes não condiz à situação real, pois a maioria dos acidentes não são notificados pelos profissionais dos serviços particulares de saúde do município. À luz desse cenário faz-se necessário, a criação de uma equipe

de

multiprofissionais,

devidamente

capacitada,

objetivando intervenções e práticas nos diversos setores de trabalho, contribuindo para uma melhor qualidade de vida e segurança dos trabalhadores. Em síntese, partindo do pressuposto onde a saúde é um direito do trabalhador, deverá ter a implantação de políticas públicas que privilegiem a construção de processos produtivos limpos e saudáveis, de modo a diminuir os riscos de adoecimento e a degradação do ambiente e garantir uma distribuição equitativa e justa dos benefícios e problemas gerados nos processos produtivos.

Referências Bezerra, OMPA; Dias, EC; Galvão.MAM; Carneiro, APS. Talcose entre artesãos em pedra-sabão em uma localidade rural do 353

Município de Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 19(6):1751-1759, nov-dez, 2003. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.823, 23 de agosto de 2012. Institui a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da trabalhadora. Disponível em: http: //WWW.conselho.saude.gov.br/web-4cnst/docs/Portaria1823-12-institui-olitica.pdf.Acesso em: 14 outubro.2016. Lacaz, FA. Saúde dos trabalhadores: cenários e desafios. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 13, supl. 2, p. 7-19, 1997. Disponível em: http://www.scielo. br/scielo.php?script=sci. Acesso em: 22/ jan 2012. Mendes, R; Dias, EC. Da medicina do trabalho à saúde do trabalhador. Ver Saúde Pública, S. Paulo, 25(5): 341-9, 1991 OFFE, C., 1989. Trabalho como Categoria Sociológica Fundamental?. Trabalho & Sociedade. Vol. 1, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.

354

ÁLCOOL E AGRESSÃO: ESTUDO SOBRE AS CONSEQUÊNCIAS DESSE MAL E O AMPARO LEGAL ÀS VÍTIMAS Mara Lucia Pereira Carraro1 Israel Quirino2 Resumo O presente ensaio aborda as consequências que o uso de bebida alcoólica sem moderação pode trazer a vida do ser humano e as leis protetivas para as vítimas de agressões. O uso da bebida alcoólica é um dos fatores que desencadeia a violência dentro ou fora de casa. A maior parte dos agressores faz uso de algum tipo de bebida.

Introdução

A violência derivada pelo consumo de bebida alcoolica, se tornou mais constante independente da cultura e classe social. Por ser uma substãncia de baixo custo, de fácil acesso e de grande aceitabilidade social, o álcool torna-se uma das substâncias psicoativas mais consumidas no mundo. Ao aprofundarmos no estudo da temática violência agregada ao consumo de bebida alcóolica, vamos perceber que a pessoa que a consome, fica facilmente irritada e se torna extremamente agressiva. Em um estudo bibliométrico conduzido por Franco, Lopez Cepero y Dias (2009), constatou- se que, algumas publicações sobre o tema da violência que acontece no âmbito 1Acadêmica

do sexto período do curso de Direito da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana - FUPAC. 2Professor da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana

355

da família, adotam definições e focos de estudos exclusivamente na violência que o homem exerce sobre a mulher, outras abordam

aquela

direcionda

às

crianças,

bem

como

as

conseguências negativas para os filhos que presenciam a violência entre os genitores. Existem estudos também que abordam a violência mútua, ou seja, ocorrendo tanto do homem como da mulher, um em direção ão outro. Conforme Silva, Hayashi e Hayashi (2011 p. 113-114) O princípio da bibliometria constitui em analisar a atividade científica ou técnica pelos estudos quantitativos das publicações. Ou seja, os dados quantitativos são calculados a partir de contagens estatísticas de publicações ou de elementos que reúnem uma série de técnicas estatísticas, buscando quantificar os processos de comunicação escrita [...] a análise bibliométrica é um método flexível para avaliar a tipologia, a quantidade e a qualidade das fontes de informação citadas em pesquisas. O produto da análise bibliométrica são os indicadores científicos dessa produção.

Assim, segundo o departamento de pesquisas judiciárias do Conselho Nacional de Justiça (DPJ / CNJ) em 2015 foram registradas 263.426 novos processos referente a violência doméstica e familiar, o número é 10% maior que em 2014, sendo que em 2015 foram pedidas 328.634 medidas protetivas, para salvaguardar a vida de mulheres ameaçadas pela violência do companheiro ou ex – parceiros, as pesquisas não são conclusivas, mas boa parte da agressão em ambiente familiar tem o álcool por motivação. Neste ensaio discute-se a violência domestica promovida ou potencializada pelo consumo indiscriminado de bebidas alcoólicas, os instrumentos legislativos de proteção a vitima da 356

violência e as tímidas iniciativas governamentais de combate ao alcoolismo. 2. Violência Doméstica e consumo de bebida Muitos dos que convivem com a violência, dia após dia, passam a achar que ela é parte da condição humana, não consegue ver que ela pode ser evitada, e sua pratica em ambiente familiar conduz a seqüelas mais graves, onde as crianças expostas passam a sofrer problemas psicológicos, e muitas vezes são abusadas, pela pessoa que deveria protegê-la. As estatísticas escondem disparidades brutais entre as regiões, entre ricos e pobres dentro do mesmo país e entre zonas urbanas e rurais. Além disso, a população mais carente é a que mais sofre com a violência. Falta informação e recurso necessário para conseguir dar um basta. Uma pesquisa realizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), mostra que a média anual no Brasil, está acima da média mundial em consumo de bebidas alcoólicas. Segundo o levantamento foram consumidos, em média, 8,7 litros de álcool por ano, entre 2008 e 2010, no País. A cerveja representa 60% do consumo de álcool no Brasil, o estudo diagnosticou também, que os homens bebem três vezes mais que as mulheres. Estimativa do consumo per capita de álcool de acordo com país.

357

A Organização Mundial da Saúde (OMS) destaca que, para se ter uma política eficaz de redução de consumo de drogas licita, deve haver um aumento de impostos para bebidas alcóolicas,

além

da

criação

de

campanhas

para

a

conscientização sobre os danos que a bebida traz para a saúde. Segundo a Pesquisa no Brasil se perde em média 5 anos de vida devido ao consumo de bebida alcoólica. Shekhar Saxena destaca “Nós descobrimos que cerca de 16% dos consumidores, têm episódios de consumo excessivo, que é mais prejudicial à saúde”. O uso nocivo do álcool, em grande parte dos casos, é iniciado na adolescência, momento onde o adolescente está se preparando, começando a se estruturar, criando vínculos sociais e pessoais, com este consumo do álcool o adolescente sofrerá um impacto sobre o cérebro, que poderá causar um

358

retardo do desenvolvimento de suas habilidades, ocasionando em prejuízos que acompanharam ao longo da vida. A lei 13.106/2015 alterou o artigo 243 do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA –LEI 8069/90), que torna crime vender, fornecer, servir, ministrar, ou entregar, ainda que gratuitamente bebida alcoólica a menores de 18 anos, com isso a lei trouxe uma esperança as crianças que eram obrigadas a buscarem

bebidas

alcoólicas

para

seus

pais

ficando

diretamente expostas ao habito de aquisição de consumo do produto.

O

uso

abusivo

de

bebidas

alcoólicas,

é

considerado um agravante no aumento da violência, seja domestica ou social, causando a destruição das famílias, o que acaba por refletir na educação e socialização dos filhos destes dependentes. Os usuários crônicos do álcool apresentam danos nas habilidades, os quais estão relacionadas com aspectos afetivos e emocionais. Desta forma, constata-se que os usuários do álcool, perdem a capacidade de compreender a emoção, à linguagem fica prejudicada, resultando em erros de julgamento e, consequentemente, perdas importantes nas interações sociais. Ressalta-se que a perda da capacidade de julgamento e dificuldade

de

interpretar

o

significado

da

linguagem,

associados a agressividade resultante da ação psicoativa do álcool, são importantes geradores de violência. (Monnot, Nixon, Lovallo e Ross (2001).

359

A mulher, vítima de violência no âmbito das relações domésticas ou de família, vive um grande problema familiar, muito complexo, onde ela passa muito tempo pra conseguir se superar, além disso, é obrigada a viver um dilema com a nossa tradicional organização judiciária, essa mulher acaba forçada a ver seu problema pulverizado em diversos processos judiciais, em diversos órgãos judiciários, em diversas Promotorias de Justiça. Acredito ser imprescindível entender o nexo causal existente entre o álcool e a violência masculina contra a mulher, se é que há nexo entre estes dois fenômenos sociais, pois a tendência histórica de vinculá-los pode estar se constituindo num entrave para a efetivação de uma política pública eficaz na superação da violência contra a mulher. O Código Penal Brasileiro adota a teoria da actio libera in causa “a ação é livre na sua origem”, não exclui a culpabilidade a embriaguez culposa, voluntária e preordenada. Assim, a lei adota o princípio da responsabilidade do indivíduo no momento em que se começa a beber e não no instante em que, no estado de embriaguez, comete-se o ato criminoso. Sznick descreve cinco fases em que se desenrola a actio libera in causa: • vontade inicial: o sujeito tem vontade de beber e o faz, livre e conscientemente; • estado de inconsciência ou subconsciência: os atos realizados na fase anterior, que foram plenamente voluntários e

360

desejados, devem ser suficientes para causar prejuízo na capacidade de julgamento e crítica; • conduta: inicia-se pela conduta do agente, que se coloca em determinada situação provocada por incapacidade temporal; • previsão e volição do resultado: o agente deve querer o resultado e ter a possibilidade de prever as consequências da sua ação no momento em que se colocou em estado de incapacidade; A violência e o consumo nocivo de álcool • nexo causal: exige-se que, entre a volição e o resultado realizado, exista um nexo causal objetivo e subjetivo que torne o agente responsável por sua ação. Segundo Pedroso, a teoria da ação livre aplica-se não somente às situações em que o sujeito quis o acontecimento ulterior criminoso (dolo direto) ou assumiu o risco de produzi-lo (dolo eventual), como àquelas em que o evento delituoso era previsível. Podemos destacar que a embriaguez preordenada consiste em circunstância agravante, acarretando o aumento da pena a ser aplicada ao agente infrator, conforme determina o art. 61, II, do Código Penal. A embriaguez preordenada ocorre quando o agente consome álcool ou substância de efeito análogo com vistas a tomar coragem para praticar um delito. O Código Penal art. 28, II, considera o sujeito imputável, comparando a sua capacidade de compreender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento à de um sujeito que não se encontra sob o efeito 361

do álcool ou de substância análoga no momento da ação ou omissão. Portanto, a conduta perpetrada por agente em estado de embriaguez culposa, voluntária ou preordenada configura delito, considerando assim como fato típico, antijurídico e culpável. Segundo os renomados doutrinadores, o Código Penal, ao estabelecer a imputabilidade do agente que comete um delito em estado de embriaguez culposa ou voluntária, cria uma verdadeira ficção jurídica, visto que desloca o juízo da imputabilidade do tempo da conduta para um momento anterior, qual seja, o de consumo de bebida alcoólica ou de outra substância psicotrópica. Segundo essa teoria, se o dolo não é contemporâneo à ação, é, pelo menos, contemporâneo ao início dos eventos que culminaram no resultado doloso.

Portanto o mais coerente seria tratar de crimes cometidos em estado de embriaguez, que o agente responda

de

maneira

integral,

quando

poder

se

determinar sua escolha em consumir ou não referida substancia. O que não acontece na pratica se não os tribunais estariam entalados de tantos processos. 3. Violência derivada do uso de bebida alcóolica, uma questão de saúde pública A violência em conjunto com o uso de bebida alcoólica, tornou-se uma questão de saúde pública. 362

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) a violência derivada do consumo de álcool tem sido considerada um problema de saúde pública global, pois causa sérias implicações de curto e longo prazo para a saúde, bem como para o desenvolvimento psicológico e social de indivíduos, famílias e comunidades. Neste gráfico podemos ver alguns transtornos causados pelo consumo do álcool:

Neste contexto, a OMS considera violência como: O intencional uso da força física ou do poder, em ameaça ou real, contra si próprio, outra pessoa, contra um grupo ou comunidade, que resulte ou tenha probabilidade de resultar em injúria, morte, dano psicológico, privação ou prejuízos no desenvolvimento. (OMS/2002)

A presença dos fatores econômicos desequilibrados traz um dano emocional ao agressor, diminuindo a autoestima, com 363

isso ele passa a causar a perturbação e ameaçar a vítima, como se ela tivesse culpa de todos os problemas. A dependência do álcool leva à pessoa a chamada embriaguez preodernada, que ocorre quando o agente consome álcool ou substância de efeito análogo com vistas a tomar coragem para praticar um delito. É o caso de pessoas que ingerem álcool para liberar instintos baixos e cometer crimes, ou a fazer coisas que ela não teria coragem de fazer se estivesse sóbrio, uma dessas coisas é a violência sexual, que traz um impacto irreversível a vítima. A violência sexual traz um sofrimento psíquico a vítima. Além disso, trazem considerações importantes, em relação a saúde reprodutiva, causando: 

Doenças sexualmente transmissíveis



Doenças pélvicas inflamatórias



Gravidez Indesejada

A violência psicológica caracterizada por ameaças e humilhações verbais sofridas pelas mulheres é a que mais acontece, seguida pela violência física e sexual. Embora a violência sexual, é a que está menos presente nas declarações das mulheres vitimadas, muitas vezes elas são confundidas e mascaradas pela relação sexual, e são o que causa os danos mais significativos na saúde da mulher. 4. A mulher vítima do alcoolismo

364

No Brasil a violência oriunda do consumo de bebida alcoólica é mais comum de parte dos homens, tendo por vitima a companheira e filhos. A família é a principal vitima. Assim, é justamente pensando na família que muitas mulheres deixam de denunciar seus agressores, depois que o código penal mudou o art. 102 e a mulher não pode mais retirar a queixa crime, as mulheres deixaram de registrar, por sentir uma sensação de culpa, ou por terem perdoado o agressor. Infelizmente a classe social com menos instrução, são as que mais sofrem agressão, talvez este índice seja alto também na classe média, mas as mulheres preferem não denunciar, por uma questão de manter o status. Outros casos não são denunciados em razão de dependência econômica, emocional, dentre outros fatores. Precisamos, doravante, mudar nossa concepção, deixar os costumes de lado, para de viver em prol de uma pessoa agressiva e desequilibrada. A pessoa agredida Tem que exigir do Estado a efetivação do princípio da dignidade humana, e Lei Maria da Penha (11.340/2006) que dispõe em seu art. 3º: Art. 3o Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária. (Lei 11.340/2006)

Ainda neste propósito, a lei Maria da Penha, em seu artigo 8º, incumbiu o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública de se unirem e buscarem a realização de 365

políticas públicas em favor das mulheres, direção legal que está nitidamente à facilitação do acesso das mulheres à justiça. Art. 8o A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-governamentais.

O uso do álcool associado a outras drogas resulta em níveis muito elevados de agressividade, constituindo-se como um importante fator gerador de violência (Martin & Bryant, 2001). Podemos constatar que Indivíduos que apresentam depressão associada à dependência do álcool, têm maior risco de cometer suicídio. Para maior compreensão sobre a ação do álcool no comportamento violento, do ponto de vista neurobiológico, é importante conhecer os mecanismos envolvidos no comportamento violento. Modelos préclínicos, assim como, modelos clínicos: pacientes psiquiátricos com histórico de comportamentos agressivos ou violentos comparados a indivíduos normais são fontes importantes para verificar o papel da serotonina na regulação da agressividade (Liu &Wuerker, 2005).

Infelizmente podemos constatar que a maioria dos eventos violentos e traumáticos não é acidental, não é fatalidade, nem falta de sorte, eles podem ser prevenidos, enfrentados e evitados. Considerações finais 366

Independentemente da mudança de comportamento do agressor, é muito importante que a vítima denuncie, ele teve tempo suficiente para procurar um tratamento, se não o fez, é porque pretende continuar agindo do mesmo jeito, e a vítima não pode passar a vida, sendo humilhada e agredida. Muitas

mulheres

sofrem

agressões

verbais,

dos

companheiros quando estes estão alcoolizados, mesmo assim procuram uma forma de se proteger, sem se separar, sofrendo na sua grande maioria por depressão, o que elas muitas vezes não sabem é que a violência psicológica e moral são uma forma de agressão e podem configurar crimes contra a honra (Injúria e Difamação) A pessoa agredida deve continuar lutando, se superar, colocar um ponto final em tudo que passou, procurar não sentir vergonha, porque vergonha tem que ter o agressor, que é considerado um covarde, que desconta todos os seus problemas em alguém. Devemos compreender que o abuso de álcool tem um profundo impacto sobre a família. Todos os membros da estrutura familiar sofrem as consequências, embora crianças e adolescentes sejam os mais afetados. O abuso da bebida alcoólica não se limita a violência doméstica,

tem

importante

influência

no

aumento

da

criminalidade, o que causa um aumento significativo nos custos sociais.

367

Temos que procurar mudar nossa cultura, deixar de acreditar que menina tem que brincar de boneca e de casinha, para que no futuro possa ser a suposta dona de casa, enquanto os homens são criados para serem o defensor, o machão, isto também cria uma consciência, que homem nasceu pra mandar e mulher pra obedecer. A omissão da vitima agredida é o que alimenta o costume da prática. O agressor não sendo punido contra os seus atos, continuará praticando os atos de agressão, pois sua confiança vai predominar, na ausência da lei. A pessoa agredida deve ter consciência que não só um corpo cheio de hematomas é sinal de agressão, existem outros meios de agressão que causam tortura psicológica a vítima, como restrições de liberdade, humilhação, destruição de objetos pessoais, discussões e brigas verbais frequentes. A denúncia é o que faz valer o seu direito, não espere a pessoa mudar, se a violência já está acontecendo com você, tente se proteger, e procure ajuda. Referências CHAVEZ, K. A. P., O’brien, B., &Pillon, S. C. (2005). Uso de drogas e comportamentos de risco no contexto de uma comunidade universitária. Revista Latino-Americana de Enfermagem, 13(2), 1194-1200. Departamento de Pesquisas Judiciarias do Conselho Nacional de Justiça – DPJ/CNJ. Disponível em: www.cnj.jus.br/pesquisasjudiciarias. Acesso em 13/11/2016. 368

http://www.emerj.tjrj.jus.br/paginas/trabalhos_conclusao/1se mestre2013/trabalhos_12013/NathaliaBotelhoPortugal.pdf. LEI 13.106/2015, Estatuto da Criança e Adolescente (ECA – LEI 8069/90), Artigo 243. LIU, J., &Wuerker, A. (2005). Base biossocial de agressivo e comportamento violento: implicações para estudos de enfermagem. Internacional Jornal de estudos de enfermagem, 42(2), 229-241. Martin, S. E., & Bryant, K. (2001). As diferenças de género na associação de intoxicação alcoólica e abuso de drogas ilícitas entre pessoas detidas por delitos violentos e à propriedade. Jornal de Abuso de Substância, 13(4), 563581.LEI Nº 11.340, de 7 de Agosto de 2006. MINAYO, M. C. S. Violência Social a partir de uma perspectiva de saúde pública. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 10 (suplemento 1): 07-18, 1994. MONNOT, M., Nixon, S., Lovallo, W., & Ross, E. (2001). Percepção emocional alterado em alcoólatras: déficits na compreensão da prosódia afetiva. Alcoholism: Clinical and Experimental Research, 25(3), 362-369. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE; Relatório Global sobre Álcool e Saúde. Disponível em: http://www.cisa.org.br/artigo/4429/relatorio-global-sobrealcool-saude-2014.php. PECHANSKY, F.,Szobot, C. M., &Scivoletto, Siqueira (2004). Uso de álcool entre adolescentes: Conceitos, características epidemiológicas e fatores etiopatogênicos, Revista Brasileira de Psiquiatria, 26(1), 14-17. RAMOS-Lira, L., Saltijeral-Méndez, M. T., Romero-Mendoza, M., Caballero-Gutiérrez, M. A., & Martínez-Vélez, N. A. (2001). Violência sexual e problemas associados em uma amostra de usuários de um centro de saúde. Saúde Pública (México), 43(3), 182-191. 369

SCHRAIBER, L. B., D’Oliveira, A. F. P. L., Franca-Junior, I., & Pinho, A. A. (2002). Violência contra a mulher: Estudo em uma unidade de atenção primária à saúde. Revista de Saúde Pública, 36(4), 470-477 SILVA, Márcia Regina da; HAYASHI, Carlos Roberto Massao; e HAYASHI, Maria Cristina Piumbato Innocentini. Analise bibliometrica e Cientometrica: desafios para especialistas que atuam no campo. InCID: R. Ci. Inf. e Doc., Ribeirão Preto, v. 2, n. 1, p. 110-129, jan./jun. 2011

370

RELIGIÃO E TERRORISMO: UMA ANÁLISE VIA DIREITOS HUMANOS Márcia Machado Bento1 Magna Campos2 Resumo A proposta do presente ensaio é realizar uma discussão sobre a associação do terrorismo à religião nos acontecimentos globais recentes e discutir a afronta aos princípios e normas asseguradas pelos direitos humanos. Demonstrando que a prática do terrorismo não está ligada isoladamente ao cunho religioso, mas apresenta todo um contexto de intolerância de poderio principalmente econômico, social e cultural.

Introdução Quando pensamos em terrorismo hoje, é quase que inevitável associá-lo ao Islamismo, fato este que se dá talvez pela falta de conhecimento sobre o discurso fundamentalista defendido pelos grupos terroristas que vêm

usando

“argumento” declaradas

o

discurso

para contra

as os

religioso

suas

desvirtuado

atrocidades

diferentes

de

e seus

como

guerras ideais

sanguinolentos. Fato é que, se não quisermos cair no engodo

de

tais

discursos,

torna-se

necessário

o

conhecimento melhor a cultura religiosa islamita e o estudo de como se dinamiza os atos de terrorismo no

1Concluinte

do Curso de Direito pela Faculdade Presidente Antônio CarlosMariana. 2 Mestre em Letras, professora universitária e escritora.

371

mundo, para que seja possível desmistificar a ligação de terrorismo e religião. Na acepção de Diniz (2002, p. 13), podemos entender terrorismo como sendo o emprego do terror contra um determinado público, cuja meta é induzir (e não compelir nem dissuadir) num outro público (que pode, mas não precisa, coincidir com o primeiro) um determinado comportamento cujo resultado esperado é alterar a relação de forças em favor do ator que emprega o terrorismo, permitindo-lhe no futuro alcançar seu objetivo político.

Nesta linha, é preciso reconhecer que há relação entre o terrorismo islâmico e o islã, como é o caso dos grupos terroristas Al Qaeda, Hamas, Hezbollah, Talibãs, Estado Islâmico (EI ou ISIS) e Jihad, todavia, ainda que tenham motivação religiosa, agindo em nome do Islã, suas visões são amplamente rejeitadas pelo mundo árabemuçulmano,

ou

fundamentalistas.

seja,

pelos

Nesses

próprios

grupos,

a

islamitas

não

“fundamentação

religiosa motiva e fomenta o ódio impingido pelas células terroristas, como se o inimigo não fosse um país, uma nação, mas sim, o mal, o satã” (GONÇALVES, 2011, p. 188). Muitos desses grupos atuam financiados pelo dinheiro do petróleo. Culturalmente a sociedade busca principalmente, por meio da religião, dar sentido a sua própria existência, o indivíduo tem a necessidade de crer em algo metafísico, crer na existência de um Ser Superior. E, ao optar por 372

uma religião específica, e a partir desta escolha, segue doutrinas

que

darão

sentido

ao

seu

próprio

comportamento frente a si mesmo e ao meio social. Neste contexto, estão as religiões e sua multiplicidade, sendo que os cinco grandes grupos mais conhecidos são o cristianismo, o islamismo, o hinduísmo, o budismo e o judaísmo. E por mais estranho que se possa parecer, a existência de um fundamentalismo religioso é comum em todas as religiões no mundo atual, em cada uma com um grau de intensidade diferente, mas está presente em todas. Todavia, alguns fundamentalismos ultrapassam da fronteira da liberdade religiosa e se tornam intolerante contra os demais, exercendo práticas contra todos os demais

que

pensam

ou

que

eles

julgam

pensar

diferentemente de seu credo. Neste contexto, acreditamos que a questão da intolerância é mais antiga que se possa imaginar, envolvendo as práticas de terrorismo e violência, de intolerância política, econômica ou cultural. Incumbe aos Estados garantir a segurança e os direitos fundamentais da pessoa humana, não apenas em termos de legislação, mas especialmente em termos de práticas. Nossos direitos são afrontados e estamos vivendo um cenário de muita insegurança, visto que ataques de morte em massa acontecem cada vez mais com frequência. Combater o terrorismo é necessário e ao mesmo tempo tem se tornado um desafio. 373

2. Terrorismo e Estado Islâmico O terrorismo religioso, como já mencionamos, tornou-se uma preocupante ameaça do século XXI, tem causado afronta à sociedade internacional e aos direitos humanos, tendo em vista que a pretensão dos ataques tem foco num determinado grupo de vítimas, mas com objetivo de afetar toda a população, com uso de violência, seja ela física ou psicológica. Atualmente, o Estado Islâmico é um dos maiores disseminadores do terrorismo, referindo-nos ao Estado de Governo que controla hoje parte da Síria e do Iraque, nos últimos anos seus grupos radicais (o Jihad Islâmico, a Al Qaeda, o Daesh) tem se tornado cada vez mais manchetes de

grandes

jornais

sobre

ataques

terroristas,

são

alimentados pelo ódio, atuando em busca de tomada de território, de poços de petróleo, de poder, política de governo. São grupos que veem o Estado como seu pior inimigo, optando pelo terrorismo como forma de luta. Com o desenvolvimento da tecnologia, as ações terroristas passaram a ter maior poder de alcance, sendo extremamente

estruturadas

internamente,

valendo-se

largamente da internet, o que facilita a divulgação da sua história e ideologia para recrutar rebeldes mundo a fora. Esses recrutados, segundo o livro Quem é o Estado Islâmico? compreendendo o novo terrorismo, de 2016: 374

Trata-se inicialmente de uma deriva. Deriva de jovens frequentemente oriundos, mas nem sempre, das zonas cinzentas e frágeis da sociedade-segunda geração de imigrados, em precariedade social, com passagem pela pequena delinquência. Mas a deriva também pode ser mais pessoal, mais psicológica e menos ligada ao ambiente social, como é o caso dos convertidos (que representam 22% dos jovens da população francesa mulçumana que se volta para jihad e para o terrorismo, é uma coleção de indivíduos, de solitários, que se ressocializam no quadro de um pequeno bando ou de uma comunidade mulçumana, a qual não tem para eles nenhuma realidade social concreta, mas provém do imaginário: nenhum deles estava inserido numa sociedade de massa, fosse ela religiosa, política ou associativa. São sujeitos ‘educados’, mas invisíveis.

Desta forma, de um lado temos organizações terroristas muito bem preparadas, possuem habilidade para atuar no campo cibernético, com recursos próprios que permite um alcance em larga escala, e querendo ou não, eles ganham poder com isso, já que estamos na era digital, enquanto de outro lado temos jovens com perfis suscetível

a

um

discurso,

normalmente

idealista

e

fundamentalista, que querem mudar tudo de uma vez. Jovens que não se integraram com o mundo social em que vivem, criando desta forma uma harmonização que favorece o recrutamento nessa dimensão virtual. O Estado Islâmico é um grupo terrorista de origem sunita, como célula do grupo extremista da Al Qaeda. O ISIS é liderado por Abu Bakre ar-Baghdadi, que defende a tese de ser um governo monárquico, para imposição de um califado. O ISIS está dominando áreas na Síria e do norte do

375

Iraque e tem executado ataques em vários lugares do mundo. [...] O financiamento de suas ações é decorrente da venda de petróleo, proveniente da refinaria localizada na cidade Mossul, no norte do Iraque, dominada pelo ISIS, e que produz cerca de 2 milhões de barris de petróleo/dia. (DELLEGNEZZE, 2016, p. 1)

Assim, em relação ao financiamento, enquanto a Al-Qaeda depende de dólares do Golfo, o EI garante seu financiamento por meio da venda de petróleo no mercado negro, além de tráfico de diversos tipos, de extorsão e de impostos cobrados diretamente das populações. Abu Bakr al-Baghdadi é o autoproclamado califa do Estado Islâmico e se considera o próprio sucessos de Maomé. Com a criação do seu “califado” em junho de 2014, nas zonas conquistadas do Iraque e Síria, o principal dirigente do Estado Islâmico (EI ou ISIS), emancipou-se definitivamente da tutela da Al-Qaeda. Tendo a partir daí oficializado a cisão entre as duas organizações. O Estado Islâmico privilegiou uma estratégia de ancoragem territorial, atacando os inimigos próximos, estabelecendo alianças locais sobre uma base tribal, praticando a limpeza étnica e a perseguição de minorias religiosas nas regiões que controla (cristãos e xiitas). Essa organização combate também a cultura ocidental e sua influência no Oriente Médio.

3. A via dos Direitos Humanos 376

A Declaração Universal dos Direitos Humanos é um documento elaborado por diferentes representantes, de diversas culturas, origem jurídica e religiões do mundo. Foi proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris, em 10 de dezembro de 1948, como norma a ser seguida por todas as nações, estabelecendo a proteção universal dos direitos humanos. Tratam da proteção à pessoa, sua integridade física, psicológica e moral dos indivíduos (defesa da dignidade da pessoa humana). Para Hannah

Arent (apud PIOVESAN,

2007),

os

direitos

humanos são construídos a partir de um espaço simbólico de luta e ação social, por isso, não são apenas um dado, mas uma construção e reconstrução. É mais

fácil

concordar com a autora, observando-se o contexto em que tal declaração é promulgada, apenas três anos após a Segunda Guerra Mundial, com seu espólio genocida de cerca de 50 milhões de pessoas mortas em decorrência dos conflitos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos serviu de inspiração para muitas constituições de muitos Estados e democracias recentes. Em seu artigo I, declara que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade

e

em

direitos.

Dotados

de

razão

e

de

consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade” (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS

377

DIREITOS HUMANOS, 1948). Esse artigo de abertura se relaciona à liberdade individual, independentemente do grupo social, religioso, cultural, político, étnico, sexual a que se pertença. No que tange especificamente à questão religiosa, temos no artigo 18, a seguinte prerrogativa: Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos. (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, 1948)

Na violência praticada e propagada pelo terrorismo religioso

contemporâneo,

constantemente

violados,

esses

direitos

especialmente,

têm

sido

quando

a

tortura, os atentados em massa (bombas em avião, metrô, praças públicas, shopping centers etc.), decapitações de prisioneiros e os tratamentos desumanos e degradantes impostos aos “inimigos religiosos” são adotados como tratamento corriqueiro aos “inimigos religiosos”. Neste caso, não é apenas a liberdade religiosa que está em jogo, como pressuposto no artigo 18, mas a própria integridade e dignidade do indivíduo, pressuposto 1° da Declaração. Aliás, podemos complementar esses dois artigos mencionados com o 5° artigo, que dispõe que “ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis,

desumanos

ou

degradantes”

(DECLARAÇÂO 378

UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, 1948). Neste contexto,

basta

lembrar

alguns

acontecimentos

lamentáveis de exibição pública das crueldades das execuções

de

prisioneiros

dos

grupos

terroristas,

transmitidas em vídeos, em alguns casos ao vivo, para amedrontar e afrontar outros grupos, como na disputa de poder entre o Estado Islâmico e a Al-Qaeda, ou outras sociedades e indivíduos, especialmente as europeias e os EUA. Atentados fora dos países que abrigam os grupos do terrorismo religioso também são vistos constantemente, dentre eles pode-se destacar como exemplos o atentado aos Estados Unidos em 11 de setembro de 2011 e o atentado à sede do Jornal francês Charlie Hebdo, em janeiro de 2015. É interessante destacarmos que a França e os Estados Unidos estão entre os países mais atacados pelos atentados mais recentes. O atentado de 11 de setembro de 2001, em que houve a destruição de um dos maiores símbolos de potência econômica dos Estados Unidos, as torres gêmeas, marcou a história contemporânea por ter atingido um país que era considerado potência mundial e por ter abalado o poderio

capitalista,

representado

pelas

ao

menos

duas

torres.

simbolicamente Neste

sentido,

concordamos com a oportuna reflexão do Antônio Baptista Gonçalves, em sua tese de Doutorado pela PUC/SP, 2011, quando afirma que: “após os ataques terroristas em 11 de 379

Setembro de

2001, a imagem inata de orgulho e

prosperidade dos Estados Unidos ruiu. Com a destruição do maior símbolo daquele país o “american way of life” se perdeu”. Após os atentados de 11 de setembro, é notável que a segurança internacional e a luta contra o terrorismo passou a ocupar uma dimensão muito maior, exigindo assim o desempenho mais relevante na política externa dos Estados. O Conselho de Segurança da ONU, logo após o atentado, adotou a Resolução 1.373, que condena atos terroristas, obriga os Estados a criminalizar assistência para o terrorismo, negar apoio financeiro e refúgio seguro para terroristas, compartilhar informações sobre grupos que possam estar planejando ataques. Criou-se também o Comitê Anti-Terrorismo, com o objetivo de monitorar o cumprimento, adotou também e Resolução 1.624 criada em 2005, aa qual apela aos Estados para prevenir e proibir o incitamento às práticas terroristas, reforçando a cooperação internacional no controle as fronteiras, assim como, reforçar o diálogo entre as civilizações. Todavia, na prática, as medidas jurídicas, de defesa

e

segurança,



adotadas,

“mostram-se

insuficientes para conter os avanços do grupo terrorista, e por

consequência,

aumenta

a

violação

aos

direitos

humanos, eleva o flagelo de milhões de refugiados e impossibilita

a

garantia

da

paz

mundial”,

no

que

concordamos com Dellegnezze (2016, p. 1). 380

Com isso, o terrorismo religioso assume uma posição alarmante, com sua intensa capacidade de aterrorizar

e

verdadeiros

intimidar

massacres,

as

populações,

criando

assim,

produzindo o

medo,

a

insegurança e instabilidade. E, uma vez que um dos objetivos para os grupos de terrorismo é causar medo e violência, quaisquer países podem ser alvos, dependendo repercussão que causaria mundialmente, inclusive o Brasil.

Considerações finais Os

discursos

defendidos

por

esses

grupos

terroristas destoam dos princípios religiosos, por mais que as ”escrituras sagradas” contenham algum texto que sendo

analisado

isoladamente

poderiam

incitar

a

violência, não poderiam ser essas as causas de tantas mortes mundo a fora. No fundo, o que impera é a luta por poder, seja ele transvestido de poder econômico, político, social, cultural ou religioso. Vislumbramos que o combate ao terrorismo deve ser uma ação conjunta, no nível internacional, tendo em vista que é obrigação do Estado garantir os direitos fundamentais

da

pessoa

humana,

garantir

uma

segurança, garantir os Direitos Humanos. A segurança humana representa a proteção dos valores fundamentais,

381

e fundamental para que se consiga alcançar uma cultura de paz.

Referências

FOTTORINO, Éric (org.). Quem é o Estado Islâmico?: compreendendo o novo terrorismo.Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016. GONÇALVES, Antonio Batista. Direitos Humanos e (in)tolerância religiosa: laicismo – prosetilismo – fundamentalismo- terrorismo. 224f. Tese (Doutorado em Filosofia do Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - São Paulo, 2011. DELLAGNEZZE, René. O Estado Islâmico, o terrorismo, a violação dos direitos humanos e da soberania dos estados. Revista Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIX, n. 151, ago. 2016. Disponível em: . Acesso em: set. 2016. DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Disponível em: http://www.ohchr.org/EN/UDHR/Documents/UDHR_Tra nslations/por.pdf Acesso em: set. 2016. DINIZ, Eugenio. Compreendendo o fenômeno do terrorismo. 2002. Disponível em http://pt.scribd.com/doc/7259139/Diniz-do-oFenomeno-DoTerrorismo . Acesso em: set. 2016

382

O DIREITO E O CONTEXTO PÓS-MODERNO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS Irene Silva1 Lucas Maia2 Palloma Silva3 Robson Mendes4 Wesley Dias5 Yasmim Trindade6 René Dentz7 Resumo Os rápidos avanços tecnológicos inserem o Homem pós-moderno dentro de um novo contexto social, onde tudo, ou quase tudo está em movimento inconstante; as pessoas se tornaram mais individualistas e suas reflexões morais acompanharam as circunstâncias as quais são submetidas. O Direito no sentido da lei como reflexo das práticas sociais, e limitador do sujeito dentro da sociedade, deve reconhecer e desempenhar suas atribuições de acordo com as estruturas do mecanismo social para manter a sua legitimidade. A reflexão abordada neste ensaio é como o Direito vem acompanhando o desenvolvimento da sociedade nesse novo contexto global, a qual o homem pós-moderno está constantemente obrigado a se adaptar.

Introdução

Pretendemos abordar o movimento pós-modernista, sua relação e influencia no campo do Direito. Inicialmente

Graduando em Direito pela UNIPAC/Mariana; Graduando em Direito pela UNIPAC/Mariana; 3 Graduando em Direito pela UNIPAC/Mariana; 4 Graduando em Direito pela UNIPAC/Mariana; 5 Graduando em Direito pela UNIPAC/Mariana; 6 Graduando em Direito pela UNIPAC/Mariana; 7 Professor Titular da UNIPAC/Mariana; Professor do IBHES/Belo Horizonte; Professor do SEB Global Alphaville; Psicanalista; Membro do International Institute for Hermeneutics/Alemanha. 1 2

383

abordamos o esclarecimento sobre o que consiste a pósmodernidade, relatando as bases que justificam o seu surgimento, e também as áreas no qual se manifesta. Nosso objetivo geral, é levantar uma reflexão do Direito na Pós modernidade, e o seu relacionamento direto ou indireto em suas áreas, de maneira a refletir sobre os novos paradigmas sociais dentro de um novo contexto social. Buscamos uma abordagem de diversos fatos sociais mediante a síntese dos teóricos Zygmunt Bauman, Jürgen Habermas, Jean-François Lyotard, entre outros e artigos relacionados

que

nos

levaram

ao

entendimento

do

pensamento pós-modernista. 2. Modernidade e pós-modernidade

O Direito no sentido da lei, como reflexo das práticas

sociais,

sociedade,

deve

e

limitador

reconhecer

do e

sujeito

dentro

desempenhar

da

suas

atribuições de acordo com as estruturas do mecanismo social para manter a sua legitimidade. A reflexão abordada neste ensaio é como o Direito vem acompanhando o desenvolvimento da sociedade nesse novo contexto global, a qual o homem pós-moderno está constantemente obrigado a se adaptar.

384

O período denominado moderno é definido pelo fato de que o homem se torna o centro e a medida de todos os seres. O homem é o subjectum8, aquilo que está na base de todos os seres, isto é, em termos modernos, a base de toda objetivação e representação (in Habermas 1987: 33)9.

O termo Pós – modernidade começou a circular no início da década de 80, com a ideia do filósofo Jean François Lyotard de que a pós - modernidade se define “como a recusa de narrativa longas sobre as coisas”. Ao longo da maior parte de sua carreira, Lyotard criticou vigorosamente a filosofia marxista e as ideias que se seguiam da Escola de Frankfurt; defendendo o que intitulou

"pós-modernidade"

representando

uma

alternativa à catástrofe evidente da modernidade, que, para ele, compreendia o resultado lógico e último da experiência moderna. Com efeito, porta-voz da pósmodernidade, François milita por um tipo muito diferente de ordem social e econômica do que aquela supostamente proferida

pela

modernidade.

Subsequentemente

o

desenvolvimento do conceito “pós” expressa mais uma reação contra o que se percebe como doenças da modernidade, o que constitui uma construção positiva e

Sujeito vem do latim Subjectum, que significa homem dotado de razão. Jürgen Habermas; filósofo e sociólogo alemão, que participa da tradição da teoria crítica e do pragmatismo. Membro da Escola de Frankfurt, dedicou sua vida ao estudo da democracia, especialmente através de suas teorias do agir comunicativo, da política deliberativa e da esfera pública. Conhecido por suas teorias sobre a racionalidade comunicativa e a esfera pública, sendo considerado como um dos mais importantes intelectuais contemporâneos. 8 9

385

original

em

torno

de

novas

concepções;

como

um

movimento baseado em "anti"-posturas. Ocorre que a modernidade entrou em um processo social de racionalidade, saindo da superstição e caindo na ciência. Havia um mecanismo social, ou seja, as pessoas acreditavam que estavam caminhando para uma nova sociedade; a qual, o Estado seria organizado, os ideais seriam produtos de justiça, em que o governo garantiria a qualidade de vida e controlaria o capitalismo, conduzindoas para um futuro, em que conseguiriam entrar no mercado e alcançar o capital. Neste cenário de auto investimento humano na racionalidade, segurança e organização estatal, refletida na consciência individual da sociedade, Bauman, em sua obra “O Mal-estar da pós modernidade”

(1997)

relata

a

modernidade

como

à

transição de um mundo que os sistemas de valores não funcionavam mais, em nome de um sistema que produzia segurança no mundo. Com a morte de Deus em Nietzsche e a afirmação de Sigmund Freud de que a religião seria uma ilusão criada pelos homens, os modernos não produziam mais valores além do Homem e a modernidade começou a sua desestruturação no século XX, gerando um Mal-estar e produzindo uma consciência pós-moderna. Conforme Zygmunt Bauman10 em entrevista à Folha de São Paulo, em 19 de outubro de 2003:

10

Zigmund Bauman sociólogo Polonês

386

Pós-modernidade é, para mim, modernidade sem ilusões. Diferentemente da sociedade moderna anterior, a que eu chamo de modernidade sólida, não o faz com uma perspectiva de uma longa duração, com a intenção de torná-la melhor e novamente sólida. Tudo está agora sempre a ser permanentemente desmontado, mas sem perspectiva de nenhuma permanência. Tudo é temporário. É por isso que sugeri a metáfora da “liquidez”11 para caracterizar o estado da sociedade moderna, que, como os líquidos, se caracterizam por uma incapacidade de manter a forma. Nossas instituições, quadros de referência, estilos de vida, crenças e convicções mudam antes que tenham tempo de se solidificar em costumes, hábitos e verdades “auto evidentes”.

Segundo

Bauman,

a

pós-modernidade

não

é

exatamente uma nova era, pois o prefixo “pós”, nos permite examinar a modernidade refletindo sobre ela, através de uma visão do mundo, apresentando uma retrospectiva da qual podemos formular certas perguntas sobre a modernidade em suas manifestações gerais. Dessa forma,

a

pós-modernidade

chega

para

se

instalar

definitivamente, entretanto a modernidade ainda não deixou de estar presente entre nós. Isto é fato. Suas verdades, preceitos, princípios, instituições e seus valores, ainda permeiam grande parte das práticas institucionais e sociais, de modo que a simples superação imediata da A metáfora da liquidez que Zigmund Bauman está presente na maioria de suas obras para demostrar a ideia de movimento entre a consciência moderna e a consciência pós-moderna; foi anteriormente usada por Ralph Waldo Emerson (1803 – 1882) escritor, filósofo norte americano do sec. XIX que já dizia: “ Vivemos como se estivéssemos sobre uma fina casca de gelo, se pararmos ela rompe”. Bauman diz que: “ Atravessamos o inverno e a casca é fina, se andarmos devagar o chão racha”. 11

387

modernidade é ilusão. Podemos encontrar na Obra “44 cartas do mundo líquido moderno” (2008- 2009) de Zigmunt Bauman um marco importante da transição da modernidade para a pós – modernidade, a qual o sociólogo francês

Alain

Ehrenberg

tentou

situar

a

data

de

nascimento de uma revolução cultural.

(...) Ehrenberg escolheu uma noite de quartafeira de outono, na década de 1980, quando certa Vivienne declarou durante um programa muito popular de entrevistas, pela televisão, na frente de milhões de telespectadores, que a maldita ejaculação precoce de seu marido, Michel, lhe impedira de ter um só orgasmo durante toda sua vida conjugal. (...) (BAUMAN, Zigmunt. 44 cartas do mundo líquido moderno, p. 27).12

A relevância da declaração de Vivienne, como Bauman descreve em sua carta, é o sentido antagônico das definições de privacidade e publicidade.13 Primeiro, o fato de tornar público um assunto do âmbito privado, que em outras épocas não seria mencionado; segundo, a forma Alain Ehrenberg, sociólogo francês (...) Ehrenberg escolheu uma noite de quarta-feira de outono, na década de 1980, quando certa Vivienne declarou durante um programa muito popular de entrevistas, pela televisão, na frente de milhões de telespectadores, que a maldita ejaculação precoce de seu marido, Michel, lhe impedira de ter um só orgasmo durante toda sua vida conjugal. (...)”. 13 Privacidade é a capacidade de uma pessoa ou grupo de controlar a exposição e a disponibilidade de informações a seu respeito, e dessa forma revelar-se de maneira seletiva. Ela se relaciona às vezes com a capacidade de existir anonimamente na sociedade, com o desejo de não ser notado ou identificado na esfera pública. Quando algo pertence a uma pessoa de modo privado, isso em geral significa que há nela algo que se considera inerentemente especial ou pessoal. … A privacidade pode ser entendida como um aspecto da segurança – pelo qual se torna clara, em geral, a equivalência entre os interesses de um grupo e os de outro grupo.( 44 cartas do mundo líquido moderno, p.27) 12

388

como ela levou sua declaração a um debate público, a ser discutido por qualquer pessoa. A consciência pós-moderna para Bauman, é a consciência de que a modernidade fracassou em suas utopias. De acordo com ele, a consciência pós-moderna é um despertar maldito de um sonho colorido. Em sua obra “Modernidade e Holocausto” (1989), Zygmunt Bauman retoma a tese de Hannah Arendt14, e confirma que na sociedade

pós-moderna

a

preocupação

com

a

administração da vida parece distanciar o ser humano da reflexão moral. Desde modo, Bauman rompe com a ideia de Kant de que os indivíduos modernos se tornariam autônomos e esclarecidos. A modernidade sai de um mundo em que o sistema de valores não funcionava mais, em nome de um sistema racional

que

produzia

segurança

no

mundo.

A

modernidade é um processo social de racionalidade onde o indivíduo esclarecido abandona suas superstições15 e se racionaliza

traves

da

ciência.

Considerando

essas

premissas, a transição da modernidade para a pós modernidade não se trata do rompimento total com a Hannah Arendt foi uma filósofa política alemã de origem judaica, uma das mais influentes do século XX. No filme Hannah (2012) conta parte da história ocorrida nos anos 60, a qual Hannah Arendt participou do julgamento do nazista Adolf Eichman. Seu trabalho sobre o Holocausto para a revista The New Yorker cria um escândalo, pois Hannah escreve em seu artigo que o réu era apenas um ser humano norma cumprindo ordens e coloca a situação dos judeus omissos, ela se vê atacada por todos e apesar de todas as críticas, ela persiste no que acredita no seu argumento. 15 Nietsche e Freud, romperam com religião alegando que a religião seria uma ilusão do homem, decretando a “Morte de Deus”, a qual o homem deve ... 14

389

modernidade, pois ao mesmo tempo que percebemos o fracasso do mecanismo social dos modernos, os indivíduos pós-modernos não abre mão da ciência e da tecnologia. Percebemos, portanto, a ideia de movimento e de liquidez em que a modernidade sólida, preocupada com a ideia administrativa de solução e busca de assimetria, não percebeu que no mundo tudo são fluidos, líquidos e que não podem adquirir forma. Assim, podemos dizer que a transição

para

a

pós

modernidade

está

na

nova

perspectiva do indivíduo diante da vida, na ordem de uma consciência que sabe que precisa manter o movimento, pois caminha sobre uma fina camada de gelo se parar, ele cai e morre, porque no habitat pós-moderno, o homem perdeu suas referências16, acreditando apenas que o mundo está caminhando para algum lugar, em busca de alguma coisa, onde não há uma direção certa a ser seguida, pois vemos o mundo como um deserto17 onde as relações

familiares é

líquida,

o

amor é

líquido,

o

capitalismo é liquido, pois aprendemos que os valores são obsessão cultural perpetuada ao longo do tempo, que somos livres e ser livre é um peso onde todas as relações deixam de sólidas e seguras.

No período pré-moderno o homem medieval acreditava em Deus e seus deuses, o homem moderno não acreditava mais em Deus, mas na razão e o homem pós-moderno não acredita em nada. 17 Metáfora contemporânea usada por Zigmunt Bauman para explicar que a consciência pós-moderna é fruto do pensamento moderno e não possui nenhuma perspectiva ou previsão para o futuro. 16

390

O Direito na Pós-modernidade

A pós modernidade nos fez repensar uma série de conceitos, de verdades pré-estabelecidas, de certezas enraizadas há séculos na cultura. A humanidade jamais vivenciou um avanço tão expressivo da técnica, da tecnologia, da ciência. A Ciência do Direito é um construindo, por apresentar uma vertente histórico-social (em permanente construção, desconstrução e reconstrução), um caráter valorativo e um modelo normativo, é uma “metamorfose ambulante”. Apesar desse reconhecimento, as mudanças normativas

não

seguem

efetiva

e

imediatamente

o

construindo social. A norma jurídica é, de certa forma, atrasada em relação à urgência social. Como se vem afirmando, a pós-modernidade não surge como algo pensado, não é fruto de uma corrente filosófica; muito menos constitui um grupo unitário e homogêneo

de

valores

ou

modificações

facilmente

identificáveis, mas configura como que uma força sólida a irromper na liquidez, somente para mostrar seu vigor, aqui e ali, trazendo instabilidade, sentidas como abalos da segurança,

na

qual

se

encontravam

anteriormente

instaladas as estruturas valorativas e as vigas conceituais da modernidade.

391

Perelman,

no

estudo

aprofundado

do

direito,

conclui o seu posicionamento da seguinte maneira:

O direito só existe como disciplina tecnicamente autônoma nas sociedades que dão espaço – entre o calculável, o que elimina qualquer decisão individual, e o político, em que o poder de decisão seria ilimitado e arbitrário – a uma ordem para cujo estabelecimento concorre uma multiplicidade de vontades humanas. É por isso que, estudando com atenção e analisando com cuidados as técnicas jurídicas de processo e de interpretação, que permitem aos homens viver num Estado de direito, o filósofo, em vez de sonhar com a utopia de uma sociedade paradisíaca, poderia inspirar-se, em suas reflexões, no que a experiência secular ensinou aos homens encarregados de organizar na terra uma sociedade razoável. 18

De acordo com a obra “O mal estar da pós modernidade” (1997)19 o homem contemporâneo sente a angustia de ser livre, pois ele perde suas referências, vive em um Estado democrático de Direto, está livre das tradições e não se sente obrigado a obedecer a regras ou seguir

valores

que

não

modernidade

o

segurança

obrigação,

e

lhes

homem

são

investe enquanto

convenientes. na que

Na

racionalidade, na

pós

-

modernidade o investimento é na sua liberdade. Os valores não são mais exatamente o que pareciam ser, pois acreditamos entender o mecanismo de produção

18 19

(PERELAMN, Chaïm. Op. cit., p. 372). Zigmunt Bauman. Referência n. 5.

392

de valores, a consequência disto é a quantidade de comitê de ética existente atualmente em virtude da falta de distinção entre o bem e o mal.

Tem-se uma falsa pretensão de que o sistema jurídico pode ser lógico, caso o fosse, seria um sistema seguro e confiável. De uma pretensão “A”, ter-se-ia a lógica da incidência do direito “B” e a segurança do resultado “C”, entretanto isso é difícil de ser assegurado em um campo que trabalha com a experiência social e com valores que se transmutam. 20

Sempre

houve

uma

dificuldade

de

o

Direito

acompanhar normativamente os processos de mudanças dos mecanismos sociais, se considerarmos os fatos expostos por Perelman, o direito está longe de positivar as mudanças contemporâneas devido ao seu estado volátil instaurado

na

consciência

pós-moderna.

Porém

as

mudanças de um contexto social já trouxeram mudanças legitimada pelo direito. Os

novos

valores

que

inspiram

a

sociedade

contemporânea reprimem e rompem, definitivamente, com a concepção tradicional de família. A arquitetura da sociedade

moderna

descentralizado,

impõe

um

democrático,

modelo

familiar

igualitário

e

desmatrimonializado. O escopo da família passa a ser a solidariedade social e demais condições necessárias ao

Revista Âmbito Jurídico, O direito em uma perspectiva na condição da pós modernidade. 20

393

aperfeiçoamento e progresso humano, regido o núcleo familiar pelo afeto, como mola propulsora. Esta família atual não é melhor e nem é pior que a família do passado, mas certamente é muito diferente dos modelos familiais antecedentes, das estruturas de poder e de afeto que habitaram, construíram e modelaram os moldes anteriores a este que hoje conhecemos. “Família é quem você escolhe pra viver Família é quem você escolhe pra você Não precisa ter conta sanguínea É preciso ter sempre um pouco mais de sintonia”. (O Rappa)

Não moderno

oponente sobre

a

a

consolidação

família,

certo

é

deste que,

conceito no

plano

infraconstitucional, não se via o seu reconhecimento expresso, o que, muitas vezes, causava insegurança aos magistrados

no

julgamento

dos

casos

concretos,

principalmente nas lides envolvendo uniões homossexuais (ou homoafetivas, termo mais apropriado para o cenário da atualidade), optando eles, no vazio legislativo, pelo não reconhecimento de qualquer outro tipo de entidade familiar além daquelas

já previstas na Constituição

Federal. Recentemente, em 07 de agosto de 2006, foi sancionada a Lei no 11.340/2006 (conhecida como Lei Maria da Penha), que, apesar de ter como finalidade primordial a criação de mecanismos para coibir a violência 394

doméstica e familiar praticada contra a mulher, acabou trazendo importante inovação no ordenamento jurídico nacional no seu artigo 5º, II e parágrafo único.21 As mudanças legislativas que ocorreram ampliando o conceito de estrutura familiar e a proteção da mulher são alterações que acompanharam o mecanismo social. A instituição familiar é sem dúvida a primeira instituição criada pelo homem constituindo a base da sociedade. Bauman ao escrever as 44 Cartas do mundo líquido moderno diz que as circunstâncias as quais nos vemos submetidos tendem a se tornar flexíveis conscientemente ou não em virtude da perspectiva de vida da consciência pós-moderna e do habitat do homem pós-moderno, ele mencionou as caraterísticas do meio em que vivemos após o advento da tecnologia da informação e as diferenças entre os impactos das gerações. Uma das características do período pós-moderno é o tempo, ou a falta dele, principalmente nas relações familiares entre pais e filhos. O abrandamento do controle parental estabeleceu a distância, os limites entre o velho e o novo tanto no âmbito familiar como nas demais relações em geral.

No dia 07 de agosto de 2006, foi sancionada pelo Presidente Luís Inácio Lula da Silva a Lei n. 11.340, que “Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências”. 21

395

Para Robert Alexy, existem elementos para uma eventual adequação do direito ao contexto social:

(...) deve relacionar três elementos: o da legalidade conforme o ordenamento, o da eficácia social e o da correção material. Conforme o peso entre esses três elementos é repartido, surgem conceitos de direito completamente diferentes. Quem não atribui importância alguma à legalidade conforme o ordenamento e à eficácia social e considera exclusivamente a correção material obtém um conceito de direito puramente jusnatural ou jusracional. Quem segrega por completo a correção material, focalizando unicamente a legalidade conforme o ordenamento e/ou a eficácia social chega a um conceito de direito puramente positivista. No espaço compreendido entre esses dois extremos é possível conceber muitas formas intermediárias (ALEXY, Robert, 2009, p.15). 22

Falar em legalidade, eficácia e correção parece ser uma das fórmulas possíveis quanto ao novo pensamento moderno, na medida em que a ciência do Direito reúne um conjunto de elementos indispensáveis para a busca de um resultado efetivo. A legalidade consiste na elaboração do dispositivo essencial normativo que reúna a objetividade da norma com a subjetividade do seu alcance a partir da percepção de uma adequação do fato a ser amparado dentro do sistema. A eficácia, por sua vez, repousa na conscientização e aceitação do seu conteúdo quanto à forma e extensão, o que podemos chamar de legitimidade 22(ALEXY,

Robert. Conceito e Validade do Direito. Trad. De Gercélia Batista de Oliveira Mendes. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 15).

396

intersubjetiva. Por fim, a correção é essencial como adequação para o melhor resultado da harmonização que o direito procura. Considerações finais

O direito está na capacidade de adaptação da arte de conviver com as diferenças. Com grande dificuldade, a nova definição de Direitos Humanos sedimenta no melhor dos casos a tolerância, mas ainda é preciso consolidar a noção

de

solidariedade

e

respeito

a

pluralidade,

estabelecer os limites no mundo onde o “ethos é biodegradável”23 a personalidade humana está contida em nossa singularidade ou peculiaridade. Assim como Alain Ehrenberg24 escolheu o depoimento de uma tal de Vivienne para declarar o início era pós-moderna o direito deve considerar o conceito de privado e jurídico tal como os de privado e público delimitando onde deve atuar em uma sociedade cada vez mais distinta, dentro de um mundo globalizado, buscando estabelecer uma solução entre a tendência social e a distinção social, a qual não podemos mais prever a rotina e o dinamismo, pois tudo é líquido.

Metáfora usada por Zigmunt Bauman, em sua obra 44 cartas do mundo líquido moderno. 24 Ver referência n.6. 23

397

Referências

BAUMAN, Zigmunt. 44 cartas do mundo moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, 2009.

líquido

PANZA, Jéssica Astete. O conceito de direito para a pósmodernidade: um desafio hermenêutico. Disponível em: http://www.anima-opet.com.br/pdf/anima5-NIC/JessikaPanza.pdf Acesso em: set. 2016. MACIEL, José Fábio Rodrigues. Teoria geral do Direito: segurança, valor, hermenêutica, princípios, sistema. São Paulo: Saraiva, 2004. ASSIS, Wilson Rocha. A normatividade dos princípios e a pós-modernidade. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1011, 8 abr. 2006. Disponível em: . Acesso em: 6 out. 2016. VIANNA, José Ricardo Alvarez. Pós-modernidade e Direito. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2384, 10 jan. 2010. Disponível em: . Acesso em: 6 out. 2016.

398

O CONCEITO DE JUSTIÇA EM PAUL RICOEUR Ana Paula Soares1 Danúbia Gregório2 Dário Ferreira3 Flávia Fabíola4 Guilherme Souza5 René Dentz6 Resumo Este ensaio tem como objetivo esclarecer o conceito de justiça e suas relações com a moral, a ética e igualdade com base nos estudos de Ricoeur a fim de orientar sobre a elaboração e apontar qual sua relação com o bem viver entre os seres humanos ligados a costumes, valores ou regras de comportamento.

Introdução Paul

Ricoeur

é

conhecido

por

sua

filosofia

hermenêutica, teoria da metáfora, leitura sobre tempo e narração. Durante anos elaborou uma reflexão sobre a ética e a justiça. A justiça (diké) é um dos elementos centrais do pensamento filosófico desde o ocidente na Grécia. Estudos realizados desde os medievais Tomás de Aquino e Agostinho, seguidos de Locke e Rousseau e até mesmo com o contemporâneo John Rawls. Contendo uma vasta Graduando em Direito pela UNIPAC/Mariana; Graduando em Direito pela UNIPAC/Mariana; 3 Graduando em Direito pela UNIPAC/Mariana; 4 Graduando em Direito pela UNIPAC/Mariana; 5 Graduando em Direito pela UNIPAC/Mariana; 6 Professor Titular da UNIPAC/Mariana; Professor do IBHES/Belo Horizonte; Professor do SEB Global Alphaville; Psicanalista; Membro-Pesquisador do International Institute for Hermeneutics/Alemanha. 1 2

399

significação, nenhuma obra ainda conseguiu abranger sua complexidade. A ideia de justiça é fundamental para a manutenção da vida em sociedade e construção de instituições como o Direito. O ato de julgar é um atributo da razão, uma atitude corriqueira

da

existência

humana

que

é

exercido

diariamente por todo quanto esteja em sociedade, na esfera

familiar,

constantemente, horizonte

social

onde

seus

buscando sendo

membros

uma

julgado

se

ampliação por

julgam de

professores

seu e

companheiros escolares, mais tarde em seu trabalho e assim sequencialmente, demonstrando que o julgamento é comum a todos os quais se relacione o homem. Aristóteles

define

a

justiça

como

igualdade

proporcional: tratamento igual para os iguais e desigual para os desiguais na proporção de sua desigualdade. Kant remete à igualdade, “deve existir em todos igualmente e deve compatibilizar-se com o exercício da liberdade de todos

os

iguais”.

Partindo

destes

paradigmas

aristotélicos e kantianos, Paul Ricoeur propõe uma ideia de justo entre o legal e o bom, ou seja, o julgamento não é apenas um ato de teor lógico, mas também moral. É a forma primária da justiça, o legal e o bom são termos essenciais partindo da máxima: O que não queres que te faças, não faças ao outro.

400

Villela-Petit conceitua “vida boa” como um egoísmo repreensível que impede o sujeito de atingir o plano moral e não como pensamos quando invertemos os termos e encontramos “boa vida” e atrelamos a este o pensamento de conforto, saúde etc. Certamente, o que é subentendido, aqui, por ‘vida boa’ muito pouco tem a ver com o que na linguagem corrente chamamos, invertendo os termos, de boa vida, ou seja, uma vida de conforto, com saúde, com muitas distrações e pouco trabalho, e sem grandes contratempos. Na expressão, que retoma de Aristóteles, de ‘vida boa’, qualificativo de bom tem um sentido eminente ético. O bem que se busca há de ser inseparável do bem do outro, sob pena de nada mais ser que um egoísmo repreensível, que rebaixa o sujeito o impedindo de atingir o plano moral (VILLELAPETIT, 2013, p. 5).

Villela-Petit, pesquisadora descreve em seu texto que todos passamos por alguma experiência de injustiça durante nossa vivência considerando a nós mesmos ou ao nosso próximo. Todos nós temos, de fato, experiência da injustiça feita a nós próprios como a outros indivíduos e mais ainda a grupos humanos, e, quando somos capazes de nos enxergarmos e de nos examinarmos, da injustiça que podemos fazer aos outros. Do filósofo, que também é um cidadão, a experiência da injustiça requer uma reflexão apurada, ou até mesmo em certos casos um conhecimento vivo da violência sofrida pelas vítimas, quando o que está em pauta é uma gritante injustiça social (VILLELA-PETIT, 2013, p. 9).

401

Desta forma, este texto visa transparecer os conceitos abordados por Ricoeur e suas explicações tentando delimitar para melhor entendimento de suas teorias já exercidas em sociedade e estudos acadêmicos. 2. Distinção sobre ética e moral Ética e moral são usados frequentemente como sinônimos, significados

mas,

alguns

diferentes.

No

autores

utilizam

dicionário

de

com língua

portuguesa, encontramos as definições de ética sendo o estudo que indica o melhor modo de viver no cotidiano e a moral como costumes que determinam a conduta de um indivíduo ou de um grupo social. (Porto Editora, 2003-2016). No âmbito da filosofia hermenêutica existe uma fórmula de transição entre a ética (teleológica) e a norma moral (deontológica) e jurídica. A fonte essencial da ética é a liberdade enquanto a justiça é construída na mediação da liberdade com os princípios da justiça e na prática judicial. Porém, Ricoeur diferencia tais conceitos que seja utilizado o termo ética para designar objetivos ou intenções de uma vida cumprida e que a moral seja utilizada por pretensão à universalidade e por costumes ou regras de comportamento.

402

É preciso distinguir entre ética e moral? A dizer a verdade, nada na etimologia ou na história do uso das palavras o impõe: uma vem do grego, a outra vem do latim, e ambas remetem à ideia [sic] de costumes (ethos, mores); pode-se, todavia, discernir uma nuance, segundo se ponha o acento sobre o que é estimado bom ou sobre o que se impõe como obrigatório. É por convenção que reservarei o termo ética para a intenção de uma vida realizada sob o signo das ações estimadas boas, e o termo moral para o lado obrigatório, marcado por normas, obrigações, interdições caracterizadas ao mesmo tempo de constrição [...] A primazia de ética sobre a moral [...] A necessidade para a intenção ética de passar pelo crivo da norma [...] A legitimidade de um recurso da norma à intenção ética, quando a norma conduzir a conflitos para os quais não há outra saída senão uma sabedoria prática que remete ao que, na interpretação ética, e é mais atento à singularidade das situações (RICOEUR, 1995b, p 161-162).

A

palavra

moral,

vinda

do

latim,

incorpora

algumas regras que se refere ao agir humano, hábitos, escolhas, valores e princípios que são definidos pela própria sociedade. Ricoeur diz que a moral pressupõe liberdade

e

responsabilidade,

se

dirigindo

aos

intelectuais adverte: Suponho dirigir-me a intelectuais que buscam como exercer honestamente uma ação eficaz de educação política; e digo imediatamente que incluo nessa categoria extremamente vasta todos os que sentem responsáveis, por uma ação de pensamento, de fala e de escrita, pela transformação, pela evolução e seu país [...] é a esse nível de responsabilidade que tentarei constantemente me ater. (RICOEUR, 1995b, p. 145).

403

Ricoeur atenta-se a definir o que é a justiça, e a este ponto vamos nos prender até o fim deste ensaio para podermos entender de forma sucinta o que o autor quis nos demonstrar através de seus estudos. 3. O que é justiça? Qual sua aplicação na sociedade? A justiça não é apenas uma ética interpessoal, mas um fenômeno que surge para mediação com os outros, na intriga que surge pela diferença. Deixa de ser uma

manifestação

descompromissada

de

opinião

e

atinge locais de reconhecimento e vinculação recíproca. Ricoeur nos ensina que a ética pessoal deve apresentar em si alguma noção de justiça: A virtude da justiça se estabelece com base numa relação de distância com o outro, tão originária quanto à relação de proximidade com outrem ofertado em seu rosto e em sua voz. Essa relação com o outro é, ouso dizer, imediatamente mediada pela instituição. O outro, segundo a amizade, é o tu; o outro segundo a justiça, é o cada um o que é seu”. (RICOEUR, Paul, 2008, p. 13).

A noção de justiça deve ser em virtude do que aplicamos ao outro, esperando assim que também nos seja aplicada. Representa a virtude das relações humanas gerando uma grande expectativa para construção da humanidade buscando valores que buscam a prática da tolerância. A justiça, entendida na sua essência, busca promover a paz, a solidariedade e a cooperação social, garantindo a prática da

404

tolerância. Como afirma o nosso autor: a justiça, enquanto instituição e é uma expressão social da vida ética. (RICOEUR, 1997d, p. 14). A justiça, segundo esta leitura, faz parte integrante da aspiração a viver bem. Dito de outra maneira, a aspiração a viver em instituições justas releva do mesmo nível de moralidade que o voto de realização pessoal e que o da reciprocidade da amizade. A justiça é antes de mais objeto de desejo, de privação, de aspiração. (RICOEUR, 2008a, p. 126).

Pensando nas noções de ética, de justiça e o compromisso com a paz, a solidariedade e justiça, podemos compreender como uma tentativa de fazer valer a palavra contra a violência. “A justiça é parte importante para vivermos bem e o justo se expõe com clareza na forma opcional antes de ser exposta de forma imperativa”. (RICOEUR, in Abel, p. 52). Ricoeur se preocupava com o mal crescente no mundo e com isso considera a justiça como uma virtude política fundamental que se relaciona entre bem e lei. A justiça reparadora é compensação de um indivíduo que sofreu um dano e encontrará a paz jurídica. “Espontaneidade benevolente” abre assim o caminho para a compensação da desigualdade decorrente do sofrimento em que “o outro parece

reduzido

à

condição

de

apenas

receber”.

(RICOEUR, 1991b, p. 203). Sendo

a

justiça

uma

instituição,

ou

seja,

mecanismo social que controla a forma de funcionamento da sociedade, associam-se as questões de equidade, 405

distribuição e valor da pessoa e se concretiza no sistema judiciário entendido como: Um corpo de leis escritas, tribunais ou cortes de justiça – investida da função de proclamar o direito -, de juízes, isto é, de pessoas como nós tornadas independentes e encarregadas de pronunciar a sentença justa em ocasiões particulares. E não se deve esquecer o monopólio da coerção: o poder de impor uma decisão de justiça com o emprego da força pública (RICOEUR, 1995b, p. 24).

Villela-Petit ainda tenta comparar a teoria de John Rawls que buscava uma equidade assegurada aos que eram considerados desiguais: Tal consideração me leva a nomear de novo John Rawls, um dos autores mais presentes à reflexão de Ricoeur sobre o justo. Rawls desenvolveu hipotéticamente uma teoria puramente procedural da justiça, cujo alvo seria (de) fazer da sociedade uma vasta empresa de acordo mútuo quanto à partilha de bens, e isso da maneira mais justa possível; o que implica em assegurar aos que têm menos a melhor repartição de bens, ou seja uma repartição contractual e marcada pela eqüidade. Donde o segundo príncipio de justiça estabelecido por Rawls e que consiste a « melhorar a parte mínima nas partilhas desiguais. (VILLELA-PETIT, 2013, p.8).

Paul

Ricoeur

discorda

desta

teoria

apenas

deontológica, faz menção a teoria limitada de Rawls que não preenche parte dos requisitos que estão ligados diretamente a ideia de justiça, ou seja, legalidade e igualdade.

406

Paul Ricoeur, porém, ainda que mostre um real apreço à obra de Rawls, não poderia se contentar com uma teoria procedural do justo limitada à dimensão deontológica, isto é, ao dever de construir a sociedade menos injusta possível, como ocorre no caso da « Teoria da Justiça » do autor mencionado. Ainda que a preocupação de Rawls com a sociedade possa e deva ser compartilhada, sua teoria restrita à dimensão deontológica, não preenche parte dos requisitos que a idéia mesma de justiça traz consigo” (VILLELA-PETIT, 2013, p. 9).

Os costumes que caracterizam a instituição indicam algo neutro diante de uma norma, uma lei ou um valor, e através da existência desses costumes as pessoas se unem e daí surge às estruturas de viver em conjunto. Entre duas liberdades podemos perceber valores: Ninguém começa a história da ética, ninguém se situa no ponto zero da ética. Os valores, como a linguagem, são instituições que encontramos sempre já: somente podemos atuar através de estruturas de interação que estão já aí e que tendem a desdobrar sua história própria, feitas de inércia e inovações, que a sua vez, sedimenta-se. Em outras palavras, não pode haver história da liberdade e das liberdades sem a medição de um termo neutro (RICOEUR, 1982b, p. 173).

Esta ideia de instituição remete ao sentido de justiça e à noção do outro. As instituições justas são o ponto em que a justiça é aplicada assegurando assim o direito de cada um. A justiça pode ser resumida como um diálogo entre as ações da pessoa, em síntese, o bom e a instituição da justiça.

407

Posso agora dizer que se a minha própria reflexão sobre a justiça encontrou na instituição judicial a sua referência privilegiada, isso foi na medida em que nela se lê claramente a exigência de conduzir a ideia [sic] de justiça até a fase terminal do processo, onde o direito é aplicado aqui e agora (RICOEUR, 2008a, p. 21).

A pesquisadora VILLELA-PETIT em seus relatos sobre Ricoeur, que além de filósofo, é um cidadão, e requer uma visão da injustiça, um conhecimento apontando como exemplo Simone

Wiel (1909-1943) lhe atribuindo o

estatuto de jurista do trabalho, que, conhecendo e compreendendo a injustiça lutava contra ela podendo se pensar no direito, ou seja, dizer o que deve ser e fazer as respectivas reformas no campo justiceiro trabalhista. No importante artigo que Alain Supiot a ela consagra, sob o título justamente de « Simone Weil, juriste du travail »4, ele termina estabelecendo um paralelo entre as proposições que, baseadas em sua experiência pessoal, ela fazia aos sindicatos na segunda metade dos anos 30, e as novas disposições do Código de Trabalho da França que datam de 2009. Mas o artigo de Supiot começa destacando a necessidade de se conhecer melhor a injustiça, como o compreendera Simone Weil, para se lutar contra ela. A partir desse conhecimento, poder-se-á pensar o direito e julgar, ou seja dizer aquilo que deve ser, com vistas a entrar no caminho das reformas que se impõem no campo da justiça do trabalho”. (VILLELAPETIT, 2013, p. 3).

Torna-se necessário que o dirigente possua uma boa conduta exercendo sua autoridade não em beneficio próprio, mas estar a serviço dos componentes do grupo. A 408

justiça é objeto de desejo, de privação de aspiração em Ricoeur: A justiça, segundo esta leitura, faz parte integrante da aspiração a viver bem. Dito de outra maneira, a aspiração a viver em instituições justas revela do mesmo nível de moralidade que o voto de realização pessoal e que o da reciprocidade da amizade. A justiça é antes de mais objeto de desejo, de privação de aspiração. (RICOEUR, 1997 d, p. 26).

Villela-Petit destaca a importância do termo de “Instituições justas” que por muitas vezes cometem “erros judiciários quanto à discriminação social, que pode ser feita em relação às pessoas acusadas” (VILLELA-PETIT, 2013, p. 4). Percebe-se ainda que a ideia de justiça aponte dois sentidos, de justo e de injusto. A injustiça nota-se antes do senso da justiça, tendo em vista que a justiça é o que faz falta, uma pessoa frágil que dependa de outra acredita no cumprimento das obrigações daquele que cuida. o que significa, igualmente, que o ponto de vista dos mais desfavorecidos deve ser considerado como prioritário e que jamais uma população, uma geração ou uma classe social podem ser sacrificadas no interesse de outra. Não há desigualdades aceitáveis, senão na medida em que o possam ser para todos (RICOEUR, 1991b, p. 201).

A justiça é igualdade, tem que ser descoberta e construída por meios processuais. Quando está subordinada ao bem, a justiça tem de ser descoberta; quando é engrenada por meios puramente processuais, a justiça

409

tem de ser construída: não é conhecida por antecedência, mas supões ressaltar de deliberação em condições de equidade absoluta (RICOEUR, 2008a, p.7).

Quando Ricoeur faz separação da justiça, ressalta dois princípios: a ordem deve prevalecer e a reflexão deve ser ética. Se aceita as pessoas livres e racionais e as coloca em situação inicial de igualdade. A ideia de justiça requer que partamos da imagem de uma sociedade que não seja somente caracterizada por um querer – viver em conjunto, num desejo de cooperação, mas por regras de repartição [e isso porque] as partes distribuídas fazem de cada cidadão um parceiro no sentido próprio da palavra (RICOEUR, 1995b, p. 180).

Para Ricoeur, a intenção de ética e justiça integram viver bem, em uma vida realizada e plena. Não parte da solidão, da amizade, mas sim da sociedade. Considerações finais A moral está ligada aos valores internos, valores universais, valores estes que estão ligados a costumes ou regras de comportamento. A ética em Ricoeur estabelece condições de paz e sobrevivência para o futuro. A ética é elaborada quando esta se reflete ao agir humano. A justiça é a expressão do bem viver entre os seres humanos relacionada com a concepção de bem e de lei. Pode ser assumida também como uma lei, uma norma, proteção aos direitos do ser humano, surge da diferença 410

das pessoas. Aponta ainda dois sentidos: de justo e injusto ressaltando que a justiça é o que faz falta, depender de outra pessoa acreditando no cumprimento das obrigações de quem cuida. A ideia de instituição refere-se ao outro, assegurando assim o direito de cada um em particular. A justiça ricoeuriana é uma mescla de elementos éticos,

procedimentais,

capaz de

se

responsabilizar através de atos de julgamentos media situações de conflitos. Mas que também é parte integrante de um viver-bem, de uma vida plena.

Referências ABEL, Olivier. Paul Ricoeur, a promessa e a regra. Trad.: Joana Chaves. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. AMARAL, Roberto Antônio Penedo. Paul Ricoeur e as faces da ideologia. Goiânia: Editora UFG, 2008. FRANCO, Sérgio de Gouvêa. Hermenêutica e Psicanálise na obra de Paul Ricoeur. São Paulo: Loyola, 1995. MOGIN, O. Paul Ricoeur, as fronteiras da filosofia. Trad.: Armando Pereira da Silva. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. MacINTYRE, Alasdir. Justiça de Quem? Qual racionalidade. Trad.: Marcelo Perine. São Paulo, Loyola, 1991. RICOEUR, Paul. Finitud y culpabilidad 1. Trad.: Alfonso Garcia. Madrid. Taurus ediciones, 1982a.

411

________. Finitud y culpabilidad 2. Trad.: Alfonso Garcia. Madrid. Taurus ediciones, 1982b. ________. O si mesmo como um outro. Trad.: Lucy Moreira Cesar. Campinas: Papirus, 1991b. ________. Leituras 1: Em torno ao político. Trad.: Marcelo Perine & Nicolas Nyimi Campanário. São Paulo: Loyola, 1995b. ________. O justo ou a essência da justiça. Trad.: Vasco Casimiro. Lisboa: Instituto Piaget, 1997d. ________. O justo 1. Trad.: Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2008a. Ética in Dicionário da Língua Portuguesa com Acordo Ortográfico [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2016. [consult. 2016-09-19 17:35:26]. Disponível na Internet: http://www.infopedia.pt/dicionarios/linguaportuguesa/ética Moral in Dicionário da Língua Portuguesa com Acordo Ortográfico [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2016. [consult. 2016-09-19 17:41:47]. Disponível na Internet: http://www.infopedia.pt/dicionarios/linguaportuguesa/moral ViILLELA-Petit, M. d. P. (2013). O justo e o legal na reflexão de paul ricœur. Universidade Federal de Sergipe.

412

PÓS-MODERNIDADE, FILOSOFIA E DIREITO

Adimilson Cota1 Alissa Durkes2 Francisco Gifone3 Jaqueline Cota4 Jeane Costa5 Suelem Oliveira6 René Dentz7 Resumo Este trabalho traz consigo uma reflexão sobre os valores sociais inserido no mundo da pós-modernidade, a passagem da metafísica para o momento de interpretação, e a discussão sobre a ética e moral no mundo do Direito.

Introdução Viver com uma multidão de valores, normas e estilo de vida em competição, sem uma garantia firme e confiável de estarmos certos, é perigoso e cobra um alto Preço psicológico. Zygmunt Bauman

Graduando do Curso de Direito da FUPAC-MARIANA, e-mail: [email protected] 2 Graduando do Curso de Direito da FUPAC-MARIANA, e-mail: [email protected] 3 Graduando do Curso de Direito da FUPAC-MARIANA, e-mail [email protected] 4 Graduando do Curso de Direito da FUPAC-MARIANA, e-mail: [email protected] 5 Graduando do Curso de Direito da FUPAC-MARIANA, e-mail: [email protected] 6 Graduando do Curso de Direito da FUPAC-MARIANA, e-mail [email protected] 7 Professor Titular da UNIPAC/Mariana; Professor do IBHES/Belo Horizonte; Professor do SEB Global Alphaville; Psicanalista; Membro-Pesquisador do International Institute for Hermeneutics (Alemanha). 1

413

A reflexão sobre a problemática do mundo moderno, trouxe a discussão entre ética, pós-positivismo e o desafio de julgar sem fundamento, mostrando o entendimento entre a ética e a moral, uma vez que ambas irão formar a personalidade do indivíduo, a sociedade pós moderna traz consigo

o

ultra

conservadorismo,

individualismo, a

saturação

a

perda

de

do

informações

momentâneas, alastra o medo do desconhecido. A

pós-modernidade

é

o

aspecto

cultural

da

sociedade pós-industrial uma herança deixada sobre o olhar do consumismo. Desta forma, os conceitos existentes de ética ou moral se perderam ao longo do caminho, transformando as pessoas em momentaneidade, valorizando-se apenas o momentâneo, a formação do sujeito nesse tipo de sociedade não se baseia em princípios morais e éticos, minimizando a importância do ser pelo ter. 2. Zygmunt Bauman: fragilidade nos conceitos

Sociólogo

Polonês,

criador

do

conceito

“modernidade líquida”, afirma que o mundo moderno vive em uma era de fragilidade, as pessoas não conseguem se envolverem em

relacionamentos

duradouros, é

tudo

414

líquido e escorre pelas mãos, Bauman faz uma grande diferenciação entre a modernidade e a pós-modernidade. A modernidade foi uma era da racionalidade e previsibilidade dos acontecimentos, uma era com um alto investimento da razão, segurança e organização, ao passo que a pós modernidade é uma fase de total desespero, alto investimento humano na liberdade e a sensação de que tudo é possível, transformando as pessoas pós moderna em sujeitos individualistas e de difícil convivência, nesse momento não existem fundamentos pautados e sim pensamentos vagos e individuais, você é o que você come, vive e veste, você é o que você transmite na sociedade. A pós-modernidade é uma consciência de fracasso, desta forma, administração da vida parece distanciar o ser humano da reflexão moral, sendo assim, podemos afirmar que

a primeira característica dessa nova era é

a

dificuldade em gerar concordância plena, não porque há uma disputa todo momento na sociedade e sim, porque, os valores, culturas e hábitos mudaram ao decorrer da história, o sufrágio do consumismo apoderou-se da sociedade como um todo. Eduardo Carlos Bianca Bittar (Revista Sequência, 57, p. 131-152, dez. 2008). [...] a instauração de uma nova ordem, que irrompe trazendo novas concepções e novos modos de ser, não se faz sem quebras abruptas e sem resistências. Por se tratar de um movimento que está em franco processo de produção, desenrolando-se sob os olhos dos próprios narradores envolvidos, a linha histórica da pós-modernidade ainda é muito

415

tenuemente percebida e muito sutilmente afeita a fortes descrições teóricas. Aliás, mais mitos e lendas, mais fantasias e ilusões estão presentes do que propriamente reais condições empíricas que comprovem esta ou aquela qualidade da pós-modernidade, ou mesmo qual o rumo a ser tomado pelas sociedades a partir das modificações introduzidas ao longo destas últimas décadas.

Como

se

contemporâneo problemas

do

veem enfrentam cotidiano,

desbravando

o

mundo

dificuldades

de

resolver

recorrem



soluções

momentâneas que acarreta problemas maiores no futuro, segundo o estudioso as pessoas hoje são vistas como mercadorias, ou seja, qualquer sinal de defeito troca-se por uma outra versão, algo natural e corriqueiro, a facilidade de desconectar-se com agilidade atrai os olhares do ser humano. Bauman explana que o séc. XXI é marcado por um capitalismo forte e que vivenciamos um estado de interregno, ou seja, não somos uma coisa e nem outra, nesse tipo de estado as formas como lidamos com as pessoas, como nos relacionamos e resolvemos problemas não funciona mais, estamos vivenciando uma situação plena de desordem e angústia, presenciamos uma cultura imediatista e individualizada. 3. Surgimento do conhecimento pós-moderno e a morte de Deus

416

O conhecimento humano experimenta uma fase em que os cientistas, todo momento, encontram-se deparados com uma gama de conhecimentos a percorrer e não há nenhuma garantia de que fez a escolha certa de seguir determinado rumo. Entretanto, a despeito de que muitos possam pensar, a grande dificuldade de dúvidas que permeiam

a

mente

dos

pensadores

atuais

não

é

necessariamente a razão, para que se possa abandonar de vez a busca pelo conhecimento. Quem odeia bestas, sapos, aberrações pósmodernas e outras coisas sombrias do tipo pode em algum momento ter exagerado, mas não está errado em se preocupar como se preocupou. O mundo moderno está passando por alguma espécie de mudança. Mesmo os que desejariam o contrário admitem isso. (LEMERT, 2000, p. 37)

A racionalidade experimenta uma nova fase, na qual se pode dizer que o conhecimento se encontra muito mais comprometido com todas as possibilidades que a mente humana foi capaz de construir. Deste modo, a pósmodernidade inicia uma fase difícil do conhecimento humano. Segundo René Dentz (2011, p. 2) nem todos foram capazes de percebe a “morte de Deus”, exclui-se o plano da

metafísica

criando-se

uma

hermenêutica

de

interpretações, sem fundamentos absolutos, surgindo na sociedade um pluralismo, nos tempos modernos tudo se

417

justificava em nome de Deus, entretanto hoje tudo se baseia em consumismo. Dentz destaca em seu artigo que a linguagem é o sustenta mento do conhecimento, pois é através dela que conseguimos conceituar as coisas, tornando a vida em sociedade mais plausível, desta forma, mostra que o conhecimento é um dos instintos mais relevantes do homem para entender a vida (2011, p. 4). Podemos explicar, ou tentar entender a “Morte de Deus” como sendo o medo do desconhecido, necessidade de explicação, a verdade e o conhecimento. Conhecer é saber o nome das coisas, é uma criação do homem. Portanto, maleável. Poderíamos dizer que Deus sempre esteve morto. Isto seria uma verdade ou infame colocação de uma pessoa sem conhecimento, ou sem cultura? Nem verdade, nem infame, pois bem, a partir da falta de explicação do universo desde seu início nada pode ser tido como verdade absoluta. Para intitularmos uma verdade absoluta teríamos que saber sobre o inicio de tudo. Portanto, nossas vidas são regidas pelo sentimento da “Morte de Deus”, assim podemos viver o mistério e intitula-la da forma que melhor nos atenda, satisfazendo nossas necessidades. Quais os caminhos possíveis? Como aceitar a “Morte de Deus”? Poderíamos estabelecer a metafisica como absoluta? Não, esta ideia não sobrevive e dela se estabelece a Pós418

Modernidade. Se a metafisica também não é uma verdade absoluta, o que é a verdade então? A verdade parte da nossa criação enquanto sujeito cartesiano, endossada pela linguagem que é a “verdadeira” morada do homem. O mundo só é mundo por ter sido nomeado pela linguagem. Sem a linguagem as coisas desaparecem. Como podemos descrever algo que não conhecemos? O

Sujeito

e

objeto

estão

ligados

através

da

linguagem, mas não podemos trata-la como um terceiro elemento. Com isto, o conceito de conhecimento fundante defendido por Carnelutti acaba de ser enterrado, segundo a teoria de Heidegger. O conhecimento fundante não é uma verdade, pois a própria verdade pode não ser verdade, já que foi nós que a denominamos. A linguagem nos proporcionou a possibilidade de nomear tudo e todos, inclusive Deus. O que sabemos de fato sobre Deus, seria uma verdade absoluta? O que seria a verdade absoluta? Seria o homem primitivo, na sua essência e livre de agentes externos e internos por falta de conhecimento das coisas. Talvez pela falta da linguagem? Podemos dizer que a verdade é finita, ela não será mais verdade a partir do momento que se transforma em uma mentira, e por vezes, de forma histórica. (Escravos foram criados e depois deixaram de existir no contexto da palavra, embora ainda exista uma escravidão informal).

419

Entendendo um pouco sobre o que conhecemos da verdade não sendo uma coisa absoluta, passamos a tentar entender o Direito e sua ligação como este novo momento denominado Pós-Modernidade, ou seja, “A Morte e Deus”. O processo penal busca o alcance da verdade através das leis, verdade está, falaciosa e autorizadora de arbitrariedade. Falaciosa por partir de uma premissa histórica diante da reconstrução de um evento passado, e autorizadora da arbitrariedade pois permite e estimula o reconhecimento de autuação probatória do julgamento, nada de verdade absoluta. Também na Pós-Modernidade podemos entender o Direito através da psicanalise, pois, a razão também não é pura, dela depende o desejo, a vontade, o inconsciente, a sexualidade, a criatividade. A Psicanalise no Direito mostra que nem sempre um mesmo ato tem o mesmo resultado, ou, o resultado não será igual para o mesmo ato, ou ainda, que eu chegue ao mesmo resultado por atos diferentes. Os fatores internos, obviamente escondidos em cada ser humano é um conjunto de equações matemáticas que misturadas traz em resultados diferentes, ou que, várias equações diferentes traga o mesmo resultado. Portanto, a salvação nos mitos, na metafisica, posteriormente

na

religião,

principalmente

na

Idade

Medieval, termina com a “Morte de Deus” e se inicia na inauguração da Idade Moderna um novo conceito de 420

salvação, a busca da racionalidade em detrimento da verdade nas leis. Mas nada é um reflexo objetivo do que vemos, mas sim do que buscamos através da nossa interpretação. Algo só é algo se podemos dizer que é algo, a linguagem abre caminhos, mas também nos limita. O Caminho só será possível se enxergarmos a verdade numa ótica de interesses. 4. Moral e ética no pós-positivismo e a importância do ensino do Direito na pós- modernidade

O autor menciona a máxima da discussão atual perante a relação ética, o ensino jurídico, e o póspositivismo, entretanto, é primordial o entendimento sobre a relação da ética com a moral, uma vez que ambas são responsáveis na construção do sujeito, determinando o seu caráter, altruísmo e virtudes, de uma maneira geral a moral é objeto de estudo da ética. Por outra vertente, o estudioso salienta a relevância da relação de alunos com professores em um curso de Direito, cujo este está cada vez mais voltado aos concursos públicos, formar ideologias coerentes e aceitáveis está cada dia mais preocupante em um mundo pós moderno, fazer indagações a respeito de tudo que ocorre nos dias atuais, remete-nos a pensar na banalização dos laços que sempre existiram entre os indivíduos, do processo de ensino e aprendizagem, a individualização da busca do ser 421

e a forte presença do ter em detrimento dos valores antes cultuados. Destaca-se a necessidade de diálogos em salas, o curso

de

Direito

sempre

foi

muito

dogmático

e

conservador, entretanto, é preciso essa abertura entre alunos e professores. Embora a ética e a moral constituam o sujeito, são duas ordens distintas, a ética por sua vez está presente no que é justo, em contra partida a moral está mais para o costume impregnado na sociedade. É muito discutida a relação entre ética e direito, sendo que essa está em constante mutação, já que ambos, direito e ética, se constroem em conformidade com as características sócio contextuais. Quando por uma visão puramente positivista do direito, onde esse é visto como nada além de um grupo de normas criadas por um Estado para reger a vida social e impostas de forma coercitiva, direito e ética se distanciam na medida em que a concepção

tradicional

traz

como

necessária

a

não

confusão entre esses conceitos. Importantes são as normas escritas, e não a justiça, ética ou moral que as permeiam. No meio contemporâneo tal posicionamento não se mostra

mais

adequado.

O

crescente

empenho

e

conhecimento quanto a causas sociais e a construção do ideal de um mundo solidário trouxeram à tona direitos fundamentais e proteção da dignidade e de direitos 422

personalistas, internacionais

que e

são

pressão

garantidos popular.

O

por

órgãos

progresso

e

conhecimento nos colocaram à frente da consciência ambiental quase que obrigatória para sobrevivência da espécie, o conhecimento da história gerou a criminalização de

intolerâncias

mercadológicos

raciais

e

trouxeram

religiosas,

e

avanços

desemprego

e

subdesenvolvimento. É nesse contexto que a nova relação entre ética e direito envolve questões de multiplicidade e conscientização. A ética contemporânea, então, se dá através da busca do bem-estar e preservação das diversidades. O movimento pós-modernista se caracteriza por ser, então (GRANDA, 1993, p.92)

[...]um desencanto exasperado frente à modernidade, frente ao caráter universalizante do pensamento moderno. [...] Os pós-modernistas têm uma grande incredulidade frente às teorias comuns, frente ao pensamento generalizante: a teoria, para ser admissível, tem de deixar de ser universal e anistórica. No pós-modernismo há uma rebelião contra a razão demasiadamente rígida e totalizante, que tudo simplifica e que constrói sistemas fechados que buscam a explicação de tudo.

A grande diversidade pede maior cuidado por parte do profissional jurídico, e, como explica Oswaldo Pereira de Lima Junior, a barreira separatista de Kelsen quanto ao direito e a ética deve ser substituída por um 423

relacionamento comum, onde os indivíduos e institutos buscam

apoio

e

desenvolvimento

em

outro.

Em

conformidade com o pensamento filosófico de Foucault, inúmeros poderes camuflados no meio social buscaram sua legitimação por meio da lei, constituindo um novo meio jurídico, amplo e pluralista, que precisa de novas alternativas à meios até então comuns. Seja entre ética e direito, entre aluno e professor ou entre tutela e interesse, deve prevalecer o meio discursivo, onde prevalece a análise de cada caso ao invés da adequação dos diferentes é um caso base. A ética se baseia, assim, em valores que irão refletir o supremo bem, buscando o consenso sempre em respeito ao próximo. Citando ainda Oswaldo Pereira Lima Junior “as relações sociais transmutaram-se para abranger a população do mundo, pois os povos se tornaram um só”. Grande parte desse posicionamento, onde não há espaço para percepção fria da norma, se dá no Estado Constitucional, onde há hegemonia da constituição como norma

base,

constituindo

o

pós-positivismo.

O

Neopositivismo, por sua vez, procura solucionar seus problemas a partir dos valores constitucionais maiores, onde uma palavra prevalece: ponderação. Isso significa dizer que casos diferentes não se misturam, mas são avaliados de acordo com suas peculiaridades. É aí que entram expressão como “justa causa” ou “legítima defesa”, e onde reside, principalmente, o trabalho do novo 424

advogado: não de citar e evidenciar a lei, mas de interpreta-la à partir das particularidades de seu caso. É a partir disso que a relação entre o pessoal e o profissional do aprendizado muda tanto. Não se pode mais ensinar apenas a base jurídica, mas sim suas aplicações, seu

conteúdo,

seus

valores

e

a

capacidade

de

independência de julgamento. A distância entre professor e aluno, da mesma forma que a distância entre direito e ética, no meio neopositivista, se tornaram estereótipos fadados pelo tempo. Considerações finais

O objetivo deste trabalho foi mostrar a passagem da metafísica

para

o

momento

de

hermenêutica,

demonstrando os conceitos frágeis presentes na sociedade, com

a

“morte

de

Deus”

perde-se

a

filosofia

da

racionalidade surgindo uma teoria baseada apenas no capitalismo. Demonstra também a relevância do professor na formação do aluno, e a dificuldade de diferenciação da moral e a ética, mostra-se um ponto fraco do pensamento religioso, corroborando ainda mais a intenção jurídica de se distanciar da metafísica.

Referências

425

RODRIGUES, Maria Fernanda. Zygmunt Bauman: Três décadas de orgia consumista resultaram em uma sensação de urgência sem fim. Disponível em: . Acesso em: 6 ago.2016. ZYGMUNT Bauman. Direção: Observatório da imprensa. Produção: Rodrigo Bastos Monteiro. Documentário sobre Zygmunt Bauman (52’24”). Disponível em: . Acesso em: 30, out.2015. ZYGMUNT Bauman. Direção: cpfcultura. Produção: Yuri Silva. Entrevista com Zygmunt Bauman, 44’12”. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=58MMs5j3TjA>. Acesso em: 26, out. 2011. LEMERT, Charles. Pós-modernismo não é o que você pensa. São Paulo: Loyola, 2000, p. 126. LIMA JUNIOR, Oswaldo Pereira de. Ética, pós-positivismo e ensino do direito na pós-modernidade. MNEME – REVISTA DE HUMANIDADES, Caicó, v.11, n.28. p.56-68. Disponível em: . Acesso em: 28, nov.2010. DENTZ JUNIOR, René Armand. Direito e PósModernidade: o desafio de julgar sem fundamento. Vol.1, n.1, p. 1-16. Disponível em: < http://fadipa.educacao.ws/ojs-2.3.33/index.php/cjuridicas/article/viewFile/18/21>. Acesso em: 2011.

426

GRANDA, Fernando de Trazegnies. Postmodernidad y derecho. Bogotá: Temis,1993.

427

A PEC 241 - 55 E OS DIREITOS DOS CIDADÃOS Crovymara Elias Batalha1 Resumo O presente texto tem o objetivo de discutir questão que passa o pais em que vivemos, a discussão da foi aprovada pelo Congresso Nacional e agora Federal, colocando em risco várias conquistas e congelar gastos e investimentos por 20 anos.

polemica e cotidiana PEC 241-55, que já tramita no Senado direitos , além de

Introdução O texto objetiva discutir alguns aspectos da PEC 241-55 e seus possíveis efeitos aos direitos dos cidadãos brasileiros. Primeiramente, temos que entender o que é a proposta de emenda, trazida na Lei Maior, a CF, de 1988, no Art. 60. , que diz o seguinte: "A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; II - do Presidente da República; III - de mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros. § 1º A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio. § 2º A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver,

Diretora e graduanda do 8° período do Curso de Direito da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana. 1

428

em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros. § 3º A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem. § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais. § 5º A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa. "

O que temos como proposta de emenda

foi

apresentado pelos Ministros de Estado Henrique de Campos Meirelles, Ministro da Fazenda e Dyogo Henrique de Oliveira, Ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão, em 15 de junho de 2016 ao Vice Presidente, Michel Temer, Presidente da República, no exercício do cargo de Presidente da república. A

proposta

altera

o

Ato

das

Disposições

Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal. A ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias) tem natureza de norma constitucional, contendo regras para assegurar a harmonia da transição do regime constitucional anterior (1969) para o novo regime (1988), além de estabelecer regras de caráter meramente transitório, relacionadas com essa mudança, cuja eficácia jurídica é exaurida assim que ocorre a

429

situação prevista e sua fundamentação, encontra-se no Título X da Constituição Federal de 1988. A PEC 241 tem três artigos, sendo que o primeiro altera os artigos 101 a 105 da ADCT, o segundo revoga o artigo segundo da Emenda Constitucional n 86, de 17 de março de 2015 e o terceiro, finda com esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação. Além das limitações na atual legislatura, a PEC 241/2016, projeta limitações às gestões administrativas de 5 (cinco) Governos Federais e de 5 (cinco) legislaturas. Do que trata a Emenda Constitucional Nº 86 de 2015 em seu artigo 2º, que alterou o artigo 198 da Constituição Federal da República Federativa do Brasil? SEÇÃO II DA SAÚDE Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: § 2º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados sobre: I - no caso da União, a receita corrente líquida do respectivo exercício financeiro, não podendo ser inferior a 15% (quinze por cento); II – no caso dos Estados e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de que tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios; III – no caso dos Municípios e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos

430

recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e § 3º. Já na Emenda Constitucional Nº 86 de 2015: Art. 2º O disposto no inciso I do § 2º do art. 198 da Constituição Federal será cumprido progressivamente, garantidos, no mínimo: I - 13,2% (treze inteiros e dois décimos por cento) da receita corrente líquida no primeiro exercício financeiro subsequente ao da promulgação desta Emenda Constitucional; II - 13,7% (treze inteiros e sete décimos por cento) da receita corrente líquida no segundo exercício financeiro subsequente ao da promulgação desta Emenda Constitucional; III - 14,1% (quatorze inteiros e um décimo por cento) da receita corrente líquida no terceiro exercício financeiro subsequente ao da promulgação desta Emenda Constitucional; IV - 14,5% (quatorze inteiros e cinco décimos por cento) da receita corrente líquida no quarto exercício financeiro subsequente ao da promulgação desta Emenda Constitucional; V - 15% (quinze por cento) da receita corrente líquida no quinto exercício financeiro subsequente ao da promulgação desta Emenda Constitucional.

Mais uma vez, havia um teto mínimo de repasse para a saúde, e a Proposta de Emenda à Constituição Nº 241 (atualmente no Senado Nº 55), vem para retirar esse teto mínimo, que no cenário atual já é absolutamente precário e, dessa forma, retirar a obrigatoriedade da União perante um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo. 2- A proposta e o teto dos gastos públicos Como uma das principais medidas anunciadas até agora pelo governo de Michel Temer, a PEC 241, que estabelece um teto para os gastos públicos. No Senado, a 431

proposta passou a tramitar como PEC 55. A mudança de número seria apenas para fins de organização e controle do Senado. No dia 25 de outubro, a PEC foi aprovada em segundo turno pelo plenário da Câmara dos Deputados. Nessa votação, 359 deputados foram a favor, 116 contra e houve 2 abstenções. Foram 7 votos favoráveis a menos do que na primeira votação. Como se trata de uma Proposta de Emenda Constitucional, o projeto de teto para gastos públicos precisa ser aprovado em duas votações por pelo menos três quintos dos deputados (308), e depois mais duas vezes por três quintos dos senadores (49). Portanto, a PEC ainda precisa passar por duas votações no plenário do Senado. Depois

de

toda essa maratona, caso a PEC

sobreviva, seguirá diretamente para a fase de promulgação e publicação. Isso significa que não há sanção nem veto do presidente

em

caso

de

emenda

constitucional,

diferentemente do que ocorre com os projetos de lei ordinária, por exemplo. Finalmente, a promulgação e publicação também não serão feitas pelo presidente, mas sim pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Após a publicação no Diário Oficial, a emenda será anexada ao texto constitucional, passando a viger imediatamente, sem a contagem do prazo legal de 45 dias (chamado vacatio legis) previsto no art. 1º da Lei de Introdução às Normas 432

do Direito Brasileiro, salvo haver disposição expressa definindo um prazo.

3- A PEC e as limitações da CF de 1988 Pois é, nem tudo pode ser alterado em nossa constituição. Existem certas normas que atingem um nível de rigidez muito mais elevado, a ponto de inalteráveis,

e

dentre

essas

normas,

serem

temos

as

denominadas cláusulas pétreas. As limitações ao poder de emendar a Constituição podem ser de dois tipos: 1. Limitações expressas: são aquelas previstas na Constituição no seu art. 60. Subdividem-se em: 1.1. Formais: dizem respeito à adequação do processo legislativo àquilo que a norma dispõe. Por exemplo: podem as assembleias legislativas de somente dois entes da federação proporem emenda constitucional?

Não,

pois

tal

iniciativa

fere

diretamente o disposto no artigo 60 da Constituição federal. 1.2. Materiais: são as chamadas cláusulas pétreas. Trata-se de limitações à alteração de matérias específicas

previstas

na

própria

Constituição

Federal (tratadas adiante). 433

1.3. Circunstanciais: são certos tipos de situações nas quais a constituição federal não pode ser alterada, como o estado de sítio, o estado de defesa e a intervenção federal nos Estados ou Distrito Federal. 1.4. Temporais: trata-se de um prazo estabelecido pela

constituição

no

qual

fica

proibida

sua

alteração. Existiu na Constituição de 1824. 2. Limitações implícitas: são aquelas que não são encontradas

explicitamente

na

Constituição.

Referem-se: 2.1. À supressão das limitações expressas. Isto é, uma emenda constitucional não pode alterar as normas que tratam da própria limitação à alteração das emendas constitucionais. 2.2. Ao titular do poder constituinte originário. Ou seja, o poder decorrente não pode se sobrepor ao poder que o constituiu! 2.3. Ao titular do poder constituinte derivado. Significa afirmar que aqueles que têm legitimidade para

propor

(parlamentares,

emendas assembleias

à e

Constituição presidente)

não

podem ser alterados. 434

Em relação às cláusulas pétreas não podem ser alteradas em hipótese alguma sob a ordem constitucional vigente, e é o parágrafo quarto (§4º) do artigo 60 da Constituição Federal que as define, conforme segue: “§4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda constitucional tendente a abolir: I. A forma federativa de Estado; II. O voto direto, secreto, universal e periódico; III. A separação dos Poderes; IV. Os direitos e garantias individuais.”

4- A PEC e os reflexos no financiamento dos serviços públicos Caso o teto de gastos seja aprovado, a tendência é que dentro de alguns anos o Estado brasileiro tenha uma participação menor na economia e que sejam limitados os recursos que financiam serviços públicos, tais como educação, assistência social e saúde. Por lei, o governo deve destinar um percentual de suas receitas para essas áreas. Entre 2003 e 2015, os gastos para tais serviços públicos, considerados muito importantes

para

o

desenvolvimento

e

melhoria

de qualidade de vida do país, cresceram em média 6,25% ao

ano acima

da

inflação.

Saúde

e

educação serão incluídas na regra do teto, mas devem sempre crescer pelo menos o equivalente à inflação, ou então mais, se o governo conseguir cortar gastos em 435

outras áreas. Além disso, o governo estuda aumentar o percentual mínimo de investimento em saúde previsto em lei, o que garantiria R$ 10 bilhões a mais a partir de 2017. Com crescimento controlado das despesas nessas áreas, pode haver menos recursos disponíveis, o que pode afetá-las negativamente. A defesa da PEC de que haverá uma queda na relação dos gastos primários do governo como proporção do PIB e isso fará o reequilíbrio fiscal é falacioso. Isso em si pode não melhorar nem piorar os resultados fiscais. Os resultados fiscais dependem de outros fatores: crescimento, arrecadação e o pagamento de juros da dívida pública. Além de tudo, essa relação despesas primárias/PIB poderá até aumentar se houver, como é provável,

prolongamento

do

ciclo

recessivo

ou

estagnacionista. A PEC desmontará o Estado brasileiro e suas políticas

sociais

pelo

simples

fato

de

que

o

que

necessitamos são mais gastos per capita em diversas áreas, com destaque para saúde e educação. Não temos, tais como diversos países europeus, um estado de bemestar conformado. E o desenvolvimento brasileiro é essencialmente a construção de um estado de bem-estar social. A conformação desse estado de bem-estar depende de mais investimentos sociais. Quanto maior o gasto real por cada indivíduo (ou para cada cidadão) maior será a 436

qualidade dos serviços e programas ofertados pelo Estado, desde a educação até a saúde. Mais recursos públicos por cada indivíduo (ou para cada cidadão) significará menos vulnerabilidade social e mais serviços de qualidade para população. O que a PEC 241-55 propõe é exatamente o inverso: interromper o desenvolvimento brasileiro e colocar o País em rota de regressão. A PEC necessariamente diminuirá o gasto público per capita porque tais gastos estarão congelados, mas haverá crescimento populacional. De 2006 a 2015 (10 anos), o gasto per capita aumentou 44% na saúde e 102% na educação. E, é possível estimar que nos próximos 10 anos haverá uma redução de 6% no gasto per capita nas duas áreas. A

PEC

241-55,

dará

um

basta

ao

pretenso

desenvolvimento do pais. Saúde, assistência social e educação são exemplos bem elucidativos, mas todas as áreas serão alcançadas: moradia popular, saneamento básico,

transporte,

cultura,

assistência

social

etc.

Enquanto essa proposta constitucional estiver em vigor não haverá desenvolvimento. Além

dos

aspectos

acima

citados,

dois

itens

importantes serão apontados. O primeiro diz respeito a violação

do

princípio

constitucional

que

impede

o

retrocesso social, é o mais debatido tema, pois, haverá a redução dos investimentos diretos da União em políticas sociais. O governo alega que os gastos serão apenas 437

"congelados".

Entretanto,

economistas

calculam

que

haverá redução em serviços públicos, como educação e saúde, em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) a partir de 2018. E, pior, a PEC não contempla o fato do crescimento populacional nos próximos anos. Projeções demográficas

do

Instituto

Brasileiro

de

Geografia e

Estatística (IBGE) aponta um aumento de 20 milhões de pessoas nos próximos vinte anos. Atualmente a Constituição Federal exige que a União aplique anualmente, no mínimo, 15% a receita corrente líquida em saúde. E, em relação à educação, a Carta Magna exige que o Estado nunca gaste menos que 18%, e os Estados e Municípios 25%, da receita de impostos para a manutenção do ensino público. Essas regras permanecem na PEC apenas para o exercício de 2017. A partir de 2018 os recursos mínimos aplicados em saúde e educação vão ser os mesmos do ano anterior corrigidos pela variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA. A proposta, não só congela os recursos aplicados em serviços fundamentais como também reduz, proporcionalmente, ano a ano, o que a União investirá em saúde e educação em relação ao PIB, aumentando a incapacidade do Estado brasileiro atender a demanda de universalização do atendimento, portanto ferindo o objetivo da Constituição de buscar o pleno atendimento nas áreas de saúde e educação.

438

O segundo diz respeito, a violação do princípio da razoabilidade,

também

chamado

de

princípio

da

adequação dos meios aos fins, ou da proporcionalidade. Nesse ponto, temos a opinião dos técnicos do Senado, que fazem três ponderações para medir a "razoabilidade" da PEC 55. Primeiro se ela é capaz de alcançar o resultado pretendido; segundo se a medida é indispensável para solucionar a crise fiscal brasileira; e, por fim, se a PEC tem risco de sobrecarregar materialmente cidadãos e demais Poderes, em outras palavras, se ela representa mais ônus do que benefícios aos atingidos. A proposta não passou nos três itens. A minuta aponta, inicialmente, que os déficits primários registrados nas contas públicas da união, a partir de 2015, não tiveram relação com o aumento do custo das estruturas da União, mas sim com o aumento explosivo das taxas de juros. "Nunca houve descontrole das despesas primárias, fator que a PEC em comento pretende congelar por 20 anos, de forma inútil e contraproducente", frisam no texto. Portanto não é nada razoável impor a retirada de benefícios à população, enquanto o Brasil aplica a taxa de juros real mais alta do mundo favorecendo bancos e correntistas. A proposta mais sensata, apontada no documento, para o reequilíbrio das contas públicas seria a aplicação de políticas anticíclicas para estimular o crescimento

439

econômico e a arrecadação fiscal e limitação das despesas financeiras excessivas da União. Quanto ao argumento da equipe de Temer, de que o congelamento das despesas por vinte anos elevaria a confiança de investidores estrangeiros e nacionais no Brasil e, dessa forma, voltariam a injetar dinheiro na economia do país, os consultores respondem que esse pressuposto pode ser obtido em qualquer tipo de ajuste fiscal. Logo, porque escolher aquele que trará prejuízos maiores à população mais necessitada? A confiança dos empresários nunca é restaurada só porque o governo corta seus gastos. Essa confiança só ocorre para os empresários imersos na economia real, quando o consumo aumenta, a demanda é incrementada, e o crescimento começa a se firmar. O corte de gastos primários, somado ao aumento das taxas de juros, só estimula os investidores especulativos, que faturam no mercado financeiro e não geram empregos, analisam.

Conclusão Em minha opinião, com a aprovação da PEC 24155, a mesma promoverá por 20 anos impactos enormes na organização e funcionamento de todo o Estado brasileiro e seus

poderes

adquiridos,

constituídos;

congelar

recursos

além

de

aplicados

ferir

direitos

em serviços

440

públicos, projetos

e ações governamentais voltados â

população mais carente, principalmente as voltadas para a saúde,

assistência

social

e

educação,

ferindo

profundamente clausuras pétreas contidas na CF-1988. Referências BONAVIDES, Paulo- Curso de Direito Constitucional, Editora Malheiros, SP, 31 ed, 2016; CÂMARA DOS DEPUTADOS. CONSULTORIA DE ORÇAMENTO E FISCALIZAÇÃO FINANCEIRA (COFF). Estudo Técnico nº 12, de 2016 – Emenda à Constituição – PEC nº 241/2016.Brasília: Câmara dos Deputados, agosto/2016. LENZA, Pedro- Direito Constitucional Esquematizado, Editora Saraiva, RJ, 20 ed., 2016; MEIRA, Ana, CODES, Ana, BOSSI, Camilo e ARAUJO, Herton. Nota Técnica nº 30 – Quanto custa o Plano Nacional de Educação...Uma estimativa orientada pelo custo aluno qualidade (CAQ).Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), outubro/2016. PAIVA, Andrea Barreto de, MESQUITA, Ana Cleusa Serra, JACCOUD, Luciana e PASSOS, Luana. Nota Técnica nº 27 – O Novo Regime Fiscal e suas implicações para a Política de Assistência Social no Brasil. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), setembro/2016. VIEIRA, Fabíola e BENEVIDES, Rodrigo. Nota Técnica nº 28 – Os impactos do Novo Regime Fiscal para o financiamento do Sistema Único de Saúde e para a efetivação do direito à saúde no Brasil. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada(IPEA), setembro/2016. 441

ÉTICA E DIREITO: ESTUDO SOBRE MORAL E JUSTIÇA EM NIETZSCHE

Antonio Oliveira2 Déborah da Paz3 Myong Kum Song4 Thayane Maia5 Magna Campos6 Resumo Este ensaio explora os conceitos de moral e de justiça, conforme leitura crítica realizada pelo filósofo Friedrich Nietzsche, o qual identifica que em ambos não há um fundamento metafísico, mas uma relação de poder e humana, demasiadamente humana, como costumava afirmar.

Introdução O conceito de moral em Nietzsche constrói-se por uma abordagem genealógica do valor da moral, ou seja, um retorno histórico aos princípios que margearam a noção difundida de moral. Peculiar como era, a filosofia nietzschiana vai de encontro à construção metafísica, pois tal abordagem não reitera o construto moral em história, ou seja, não considera a construção histórica da moral na sociedade.

Graduando em Direito pela Universidade de Brasília (UNB). Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília (UNB). 4 Graduando em Direito pela Universidade de Brasília (UNB). 5 Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília (UNB). 6 Mestre em Letras, professora universitária e escritora. Professora titular da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana. 2 3

442

Essa quebra paradigmática implica cessar a crença de definições absolutas e naturais dos valores. Uma vez remontando-se

à

genealogia

da

moral,

dá-lhe

uma

história, ou seja, um ponto de partida, do qual se conjuga também o que seria uma origem histórica da justiça, logo, humaniza a conceituação de tais valores, atribuindo-lhes, assim, caráter humano, logo, não naturais e revelados divinamente, mas sim, criados. 2. Moral em Nietzsche

O pensamento de Nietzsche a respeito da moral sustenta-se na arguição de que a moral é apenas uma delimitação humana, originada por aquilo que é útil, ou seja, pelas ações pertinentes e necessárias àqueles que domavam o poder e eram úteis. Uma vez postas, o teor de tais ações se fragmenta no limbo, logo, são tomadas por prepotentes em si mesmas, isto pela ação do costume e da linguagem. Assim sendo, tais ações altruístas, passam a ser

concebidas

preexistentes

à

como noção

naturalmente humana.

reveladas

Todavia,

e

Nietzsche

contrariava, em sua abordagem, toda e qualquer forma de ver algo como bom em si, decepando a consciência cristã e metafísica. Acredita que o conceito de bom relaciona-se à característica de dominação do homem, primordialmente, do homem pelo homem.

443

Uma vez posta, a moral encontra sua valoração na dominação do homem, ou seja, é moralmente aceito aquilo o que a classe dominante impõe como bom, isto é passa a ser

correto.

Por

ser

filólogo,

Nietzsche

examina

a

morfologia das palavras “bom” e “mau”, em alemão, e encontra na raiz da palavra mau o radical de “simples”, e, por conseguinte, a definição do homem ordinário com assimilação ao mau, consequentemente, recai sobre o nobre o conceito de “bom”. Então, aqueles que definem o que é moral ou não, são aqueles que dominam a supremacia, quem está na situação de controle. Na

reconstrução

pela

história,

proposta

pelo

filósofo, o domínio do poder sobre a definição de valores encaminham do controle oligárquico, de uma nobreza dominante, ao controle do Estado, como autor e detentor da coerção e definição da ordem pública. A defesa de Nietzsche baseia-se em colocar a moral como concepção imparcial, em uma transvaloração de valores, abdicando de qualquer arquétipo moral que suprima o ser. O filósofo defende a abordagem do homem como centro, assim sendo, um ideal ascético, baseado tão somente nos parâmetros e relações do homem com a humanidade. Uma vez que valores são criados, e pressupondo-se que são criados pelos que detêm poder, surge uma fenda entre os homens de vontade, que criam seus próprios valores a partir da premissa de que são livres e iguais 444

entre si, e os homens comuns, os quais tem sobre si o peso dos valores submetidos pelos nobres a suas vidas. Como livres, os nobres expressam-se livremente, motivo pelo qual se autodesignam bons. Logo:

Ao entender que o homem bom não é aquele que faz o bem, e sim, aquele que faz o que quer, abre-se a possibilidade para um mundo sem uma moral universal, isto é, sem valores que obrigatoriamente valham para todos. (CAMARGO, 2011, p.83) Compreende a hierarquia dos valores como algo maleável através do tempo, assim sendo, a moral retém em seu contexto uma associação temporal e costumeira. Logo, Nietsche postula que a escolha dos valores pertença particularmente ao indivíduo em si. "O homem é uma corda estendida entre o animal e o superhomem - uma corda sobre um abismo.” (NIETZSCHE, 2005, p.38). Nietzsche aborda o conceito de super-homem como aquele que se eleva, não sendo uma espécie superior do homem, mas o qual deixa o contingente homem para trás, libertando-se dessa forma. É aquele que se liberta das amarras da cultura, nega os valores vigentes e se põe em ousadia de conceber novos valores. “Eu vos digo: é preciso ter ainda caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela dançante. Eu vos digo: há ainda caos dentro de vós.” (NIETZSCHE, 2005, p.41). 445

Desta forma, chega-se ao que seria uma moral dos nobres, àquela que se cria e age na dominação, na submissão dos demais a si, definindo o que é bom ou mau, e uma moral dos escravos, construída na submissão aos valores ditados, na visão de utilidade. E a caracterização dos valores como bons e maus vai ter equivalência com o nobre e baixo, senhor e escravo, respectivamente. Para ele, o autêntico direito senhorial é o de criar valores e, em contrapartida, os escravos não criam valores por si mesmos, mas adquirem os valores que lhes são atribuídos por seus senhores: a moral dos escravos é em essência uma moral de utilidade. (CARVALHO, 2006) 3. Justiça e suas implicações

Em sincronia com o ponto da moral, Nietzsche também delimita uma análise histórica da justiça, e traz no aforisma 92 de Humano, demasiado humano, a origem da justiça, que de acordo com o filósofo:

A justiça (equidade) tem origem entre homens de aproximadamente o mesmo poder [...]. A justiça é, portanto, retribuição e intercâmbio sob o pressuposto de um poderio mais ou menos igual: originalmente a 446

vingança pertence ao domínio da justiça, ela é um intercâmbio. Do mesmo modo a gratidão. — A justiça remonta naturalmente ao ponto de vista de uma perspicaz autoconservação [...] — Isso quanto à origem da justiça. Dado que os homens, conforme o seu hábito intelectual, esqueceram a finalidade original das ações denominadas justas e equitativas, e especialmente porque durante milênios as crianças foram ensinadas a admirar e imitar essas ações, aos poucos se formou a aparência de que uma ação justa é uma ação altruísta. (NIETZSCHE, 2000, II, 92) Nesta análise de Nietzsche, a justiça vincula-se intrinsecamente a um estágio extremamente ligado ao costume e, seguindo o pensamento de que os homens esqueceram a origem de onde surge o princípio de justiça, tem-se uma concepção da justiça advinda de um apelo instintivo de sobrevivência. Todavia, assim como a questão dos fundamentos da moral,

a

justiça

tem

um

controle

institucional

administrado por aqueles que têm em sua vontade a expressão do poder, tidos na liberdade de o clamarem. Por tal fato, de acordo com Nietzsche, todo juízo é injusto (NIETZSCHE, 2000, I, 32), uma vez que não há a certeza de que a intenção do bem de uma ação corresponderá em realidade a uma atitude realmente boa, sendo justificada, 447

no máximo, moralmente, o que, segundo Nietzsche, não garante um caráter de justiça.No fim, retorna-se ao caráter antropomórfico da ação, sendo, assim, qualquer julgamento arbitrário. Porém, o homem necessita de juízos para que continue a viver, uma vez que inflige sobre o próprio homem seus julgamentos, o que o fará, fatidicamente, injusto. Logo, a arbitrariedade das ações humanas é o que dá o contorno da justiça, o que a reafirma como construto antropomórfico e não um conceito absoluto e atemporal, pois “nem mesmo a razão é capaz de servir de parâmetro para a moral, uma vez que nem ela é capaz de formular um preceito justo por si mesmo.” (CAMARGO, 2011, p.84) A relação da justiça se baseia pelo anseio do polo dominante,

que,

segundo

Nietzsche,

provocou,

nos

princípios sociais, uma adequação da justiça como sinônimo

de

compensação,

baseado

na

questão

de

equivalência entre o dano sofrido e a sanção aplicada. Para o filósofo, todavia, essa relação não passa de uma falsa camuflagem ao real desejo de vingança, uma satisfação íntima permitida ao credor por substituição ao dano que lhe foi causado. Considera ainda que o real motivo do castigo como sanção é o de garantir a observância à norma pelos demais, ou seja, dar o exemplo à sociedade de como agir e manter-se na harmonia social estabelecida. A condição humana sente enorme prazer de ver e causar sofrimento 448

no outro, motivo pelo qual, o castigo como forma de punição, seria algo compensatório na reparação de um dano infligido, sendo esta, socialmente tida como uma excelente maneira de se resolver litígios e reparar danos. Tidos, para Nietzsche, como fatos que enfraquecem a visão de equivalência entre o dano sofrido e a restituição. Como já mencionado, a facticidade de todas as relações humanas serem na ótica da injustiça, não se abstém dessa causalidade o Estado, que personifica a comunidade, sendo este não ausente na aplicação da punição na quebra do contrato social. Todavia na concepção do Estado, o infrator reitera a ira do credor atacado e afasta o infrator do meio social. Como Nietzsche menciona, “esquece-se o dano imediato, concentra-se no infrator, concentra-se na punição deste. Celebra-se o sofrimento como reparação de danos, disfarçado de vingança e crueldade.” (GONÇALVES, 2014, p.12) Dessa leitura, Nietzsche aponta uma peça chave de sua teoria, a não responsabilidade pela imposição da moral. Segundo ele, o homem que está no polo passivo em relação às instituições morais externas, que o submetem aos

valores

pré-estabelecidos,

fatidicamente,

apenas

manuseia uma obediência superficial do que é definido pelos atuadores do poder de decisão. Nietzsche considera que tal homem apenas vive uma responsabilidade ilusória. Logo, não há uma leitura particular dos valores morais, o que decorre da ação de 449

acordo

com

o

concerto

normativo

puramente

por

imposição, mas não por uma interiorização dos valores como internos e próprios do indivíduo, acarretando no fator de não responsabilidade, uma vez que a conduta social esperada é apenas racionalizada pelo ordenamento jurídico.

Assim,

o

filósofo

acredita

que

a

simples

determinação e imposição de valores ao ser humano não o faz responsável de si mesmo. Ninguém pode ser responsabilizado por algo que não credita como pertencente à sua cadeia de valores morais. A exigência de responsabilidade exclusivamente no âmbito jurídico, sem a exigência da prévia adesão aos valores morais positivados, acarreta, para o filósofo, a não-responsabilização moral de um indivíduo. (GONÇALVES, 2014, p.15) A pura adequação ao concerto normativo, aplicando tais valores por determinação, sem ser pela vontade do indivíduo de tê-los em seu cosmo, faz esse mesmo indivíduo responsável apenas pelo meio, isto é, obedece ao ordenamento, mas exila de si a tarefa de conceber valores particulares a si. A conduta externa formalizada pela força da lei implica no aspecto da não responsabilidade congênita do indivíduo em suas ações em termos da moral.

450

Para Nietzsche, o único modo de se dissolver tal fatalidade é pela noção do indivíduo de ser capaz de criar seus próprios valores e, de fato, fazê-lo. Apenas na criação e concepção de seus valores morais como seus, o indivíduo pode abandonar essa inoperância de um sistema normativo auto imposto e ser, e sentir-se responsável. Não que caiba ao indivíduo ser o autor de todos os valores, mas sim que o indivíduo tenha uma reflexão sobre os valores que ele integra para si como seus.

O que em geral se consegue com o castigo, em homens e animais, é o acréscimo do medo, a intensificação da prudência, o controle dos desejos: assim o castigo doma o homem, mas não o torna “melhor” — com maior razão se afirmaria o contrário. (NIETZSCHE, 2010, p.66) A ilusão de liberdade, todavia, é o fator que conduz o homem à culpa, fator que o permite – e legitima – ser culpabilizável e, então, julgado. E é a noção de livrearbítrio, como propõe Nietzsche, que racionaliza a conduta humana

como

consciente

e

toma

suas

ações

racionalmente propensa ou não a agir. Justifica-se sua punição e imputa culpa a cada ação. Assim, a razão, fim em si mesmo, não é característica, pois, de validade para a justiça.

451

Nesse estágio, abstrai-se da figura do homem infrator, tida como imoral e ilegal, a ideologia por detrás de seu ato, de modo a desencantar as pessoas com tais ideias tidas como incoerentes no contexto moral presente. Em consonância com a ideologia nietzschiana, o livre-arbítrio baseia-se na propensão da realidade, proposta pelo filósofo na conceituação de que, a construção de verdade e mentira, ou seja, mais uma vez, os valores morais, são uma metáfora de caráter constitutivo humano. O que traz por definição de verdade na filosofia nietzschiana:

Uma multidão móvel de metáforas, metonímias e antropomorfismos; em resumo, uma soma de relações humanas que foram realçadas, transpostas e ornamentadas pela poesia e pela retórica e que, depois de um longo uso, pareceram estáveis, canônicas e obrigatórias aos olhos de um povo: as verdades são ilusões das quais se esqueceu que são, metáforas gastas que perderam a sua força sensível, moeda que perdeu sua efígie e que não é considerada mais como tal, mas apenas como metal. (NIETZSCHE, 2001, p.12-13) Firma-se, então, na conceituação nietzschiana, a intrínseca relação entre a verdade com a completa morfologia humana dada a realidade. Uma vez que todo conceito surge do homem, ou seja, é antropomórfico, a 452

perda do referencial – já que como Nietzsche abstrai a existência de Deus, o remove do foco e afirma “Deus está morto” (NIETZSCHE, 2005, p.119) – faz-se enxergar a retomada da consciência do homem para si mesmo, ou seja, necessita rever os valores não como definidos, revelados e transcendentais, mas sim como valores interpretado por si, digeridos no consciente do homem. Transvalorar estes valores para que não se limitem a ter-se por si próprios como fins últimos, ou seja, desconstruir uma visão de geração autopoiética dos valores, pois “aquele que se põe à busca de tais verdades, no fundo procura somente a metamorfose do mundo no homem.” (NIETZSCHE, 2001, p.15). Considerações finais

Assim, a busca da verdade das coisas, baseada na concepção do mundo como integrante do homem, mas considerando as verdades dadas, não as levando por uma compreensão interna, mas sim assimilando os valores metafóricos que apresentam como realidades em si mesmas.

Logo,

acomodarem-se

às

barreiras

dessas

imagens, imaculadas em verdades absolutas, não liberta os homens de uma moral incompreendida por ele mesmo. Mas sim, ao transpô-las, os trará uma “consciência de si” (NIETZSCHE, 2001), não engolindo valores pétreos do

453

universo, mas os pondo, como homens, no polo ativo da concepção, maturação e compreensão dos valores que rege a si e a sua concepção humana, de mundo, ou seja, a sua moral. Referências CAMARGO, Gustavo A. Relações entre justiça e moral no pensamento de Nietzsche. In: Estudos Nietzsche. Curitiba, v. 2, n. 1, p. 79-97, jan./jun. 2011 CARVALHO, Regina C. de M. O Estado, o Direito e a Justiça em Nietzsche. Revista Jurídica. Ano II, 2006. GONÇALVES, Ricardo J. Justiça, Direito e Vingança na Filosofia Moral de Friedrich Nietzsche. In: Rev. Fac. Direito São Bernardo do Campo. n.20, 2014 NIETZSCHE, Friedrich W. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 13. Ed. 2005 ____________________. Genealogia da Moral. São Paulo: Companhia das letras, 2010. _____________________. Humano, demasiado humano. São Paulo: Companhia das Letras,, 2000. _____________________. Verdade e Mentira no Sentido Extramoral. Comum, Rio de Janeiro, v.6 – nº17, 2001

454

ÉTICA JURÍDICA: NEM TUDO O QUE É LÍCITO É HONESTO, MAS TUDO O QUE É HONESTO É JUSTO Ricardo José de Carvalho1 Israel Quirino2

O saber não está na ciência alheia, que se absorve, mas, principalmente, nas idéias próprias, que se geram dos conhecimentos absorvidos, mediante a transmutação, por que passam, no espírito49 que os assimila. Um sabedor não é armário de sabedoria armazenada, mas transforma− dor reflexivo de aquisições digeridas (Rui Barbosa p. 32)

Resumo Vivemos um momento de crise de valores onde, de repente, alguém que torna herói apenas por que cumpre o seu dever. Este ensaio tem como objetivo apresentar a importância da ética para a sociedade atual, e em especial para as atividades diárias do advogado. A ética é esperada em tudo que fazemos, seja no trabalho, escola, esportes... Mas afinal, o que é ser ético? E esta definição é geral? Podemos definir ética como agir corretamente na vida em sociedade, respeitando o próximo e seus limites. O problema é que existem particularidades e em um mundo cada vez mais competitivo, a ética surge como um valor humano, que pode se tornar um diferencial para a realização profissional e social

Introdução

O filósofo grego Aristóteles, no século IV antes de Cristo ensinava a seu filho Nicômaco que "A virtude moral é uma consequência do hábito. Nós nos tornamos o que

Acadêmico do 6º Período de Direito da Faculdade Presidente Antonio Carlos de Mariana 2 Professor da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana (FUPAC). 1

455

fazemos repetidamente. Ou seja: nós nos tornamos justos ao praticarmos atos justos, controlados ao praticarmos atos de autocontrole, corajosos ao praticarmos atos de bravura." E foi na Grécia, terra mãe da sabedoria ocidental, onde se ouviu falar em ética pela primeira vez, esta palavra que deriva do ethos, ou seja, o conjunto de costumes e hábitos fundamentais. Para Aristóteles a Ética pode ser definida como uma busca da felicidade enquanto realização do ser humano em atingir a sua excelência. É uma atividade continuada, uma capacidade de aprimorar-se a cada dia, pela pratica reiterada de boas ações. A busca da felicidade é, pois a realização humana capaz de evidenciar suas virtudes no mais

alto

grau

em

excelência

e

desenvolver

suas

qualidades de caráter em um processo contínuo de aprendizado. (ARISTÓTELES, 1999) A ética não pode ser vista como algo padronizado, pois

depende

de

vários

aspectos

e

pode

ter

particularidades de acordo com determinada profissão, religião ou região, além de outros fatores diversos. Não existe uma ética universal, pois ela está intimamente relacionada ao comportamento humano, segundo seus valores. Em todo tempo, ao sermos colocado a prova de nossa idoneidade, muitas vezes estamos sendo antiéticos e corruptos. E isso se revela em atos insignificantes, que 456

nos passam despercebidos, desde o estacionar na vaga de idosos (afinal, é só um minutinho) ou omitir-se a ceder o lugar a uma gestante na fila do banco. No entanto nos escandalizam atos de corrupção dos governos, estampados nos noticiários. Contudo, É fácil entender a frase que diz que o governo é o espelho do povo, ou seja, o jeitinho brasileiro acaba

por

nos

trair,

pois

nem

sempre

agimos

corretamente, segundo os conceitos éticos de nossa sociedade. Muito bem nos ensina o saudoso Rui Barbosa: “De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-seda honra, a ter vergonha de ser honesto.”

Neste ensaio vamos discutir a ética nos seus conceitos gerais e, mais especificamente, a ética das profissões jurídicas, esse ambiente de conflitos, onde, do emaranhado de normas, postulados e procedimentos tentamos (e nem sempre conseguimos) alcançar a justiça. 2. Ética geral

Segundo

o

Dicionário Aurélio Buarque

de

Holanda, ÉTICA é "o estudo dos juízos de apreciação que se referem à conduta humana susceptível de qualificação 457

do ponto de vista do bem e do mal, seja relativamente à determinada sociedade, seja de modo absoluto”. Difícil de conceituar, mas fácil de perceber. A ética muitas vezes se reveste de outros nomes, como por exemplo, nos esportes, o fair play (jogo limpo em português), nada mais é que a ética no meio esportivo. Agir corretamente, respeitar seu adversário e parar no momento que perceber que seu adversário, por motivos alheios a sua vontade e ao esporte, não pode prosseguir no combate, na busca pelo objeto fim proposta àquele determinado esporte. A ética pode ser confundida com lei, embora que, com certa frequência a lei tenha como base princípios éticos. A

ética

reciprocidade,

corresponde

respeito

e

ao

exercício

responsabilidade.

social Ser

de

ético

independe de crença, credo ou de particularismos de cultos determinados. O raciocínio contrário faria com que se concluísse que só é ético quem acredita (tem fé) ou participa de práticas religiosas. Conforme BITTAR: “Quem é mais dono da verdade espiritual, o judeu ortodoxo, o protestante fervoroso, o crente fervoroso, o maçônico fanático, o muçulmano fundamentalista, ou o católico catequizador? E se um destes possui a verdade, então os outros creem em mentiras?”

O sentimento ético é algo que vai além do exterior, pois precisa ser valor, estar intimamente ligado à pessoa. 458

Poderíamos citar como exemplo o corredor espanhol de cross country, que em 2012, em uma corrida, viu seu adversário, o queniano Abel Mutai, diminuir o ritmo a menos de 20 metros da linha de chegada, achando que já havia ganhado a corrida. E então ao invés do espanhol ultrapassá-lo e vencer a corrida, tentou explicar ao queniano, que ele não havia cruzado a linha ainda, e visto que este não entendia seu idioma, ele o empurrou até que cruzasse a linha de chegada, ficando assim com o segundo lugar na competição. Este

comportamento

ficou

conhecido

mundialmente como exemplo de ética e de honestidade. O melhor é que ao ser questionado pelos jornalistas a respeito de seu comportamento, ele não entendia o porquê do espanto, pois esta era uma atitude normal para ele. E ele estava certo, pois que crédito teria ao vencer um concorrente em virtude de seu erro? Ele não seria o melhor se o fizesse. Mas ao contrário, mostrou que para ele, existem regras que precisam ser seguidas, apesar de tudo. E prosseguindo disse ao jornalista: “Se eu ganhasse desse jeito, o que ia falar para a minha mãe?” Se ao ler este depoimento, você não conseguir entender o que ele disse você precisa rever alguns valores em sua vida. Fazer pelo outro o que esperamos que fizessem por nós é a essência da ética. E neste mesmo entendimento Kant nos apresenta uma lição simples, mas de muito valor para quem realmente acredita que ética é 459

um valor. Ele disse: "Tudo que não puder contar como fez, não faça. Pois se há razões para não contar, essas são as razões para não fazer." Como é possível verificar, a ética se resume em agir de maneira correta com os outros, sejam eles nossos colegas de trabalho, clientes, amigos. Mas é neste ponto que se encontra o problema, pois o “agir de maneira correta”, é muito subjetivo, ou seja, cada pessoa, grupo ou sociedade tem seus parâmetros estabelecidos. No entanto, aquilo que é eticamente aceitável para um, pode não ser para outros. E esta ideia pode ser enquadrada nas relações de empresas, entre os grupos de determinada categoria e nas escolas. Por exemplo, a ética dos médicos é diferente daquela do advogado, dos professores, dos engenheiros. Possuímos várias “éticas” ou sub-éticas,

que

são

aquelas

relacionadas

ao

nosso

trabalho, nossa empresa, escola, meio social e uma geral, que é aquela ligada aos nossos valores pessoais e familiares. Ética é pura filosofia, e como tal, não se tem uma certeza do que seja certo ou errado, radicalmente falando. Por exemplo, seria ético ajudar um criminoso? Não um qualquer, mas aqueles perigosos, que acabam por cometer atrocidades horrorosas. Pois bem, à primeira vista muitos diriam que não, que ele não merece nosso respeito ou qualquer sentimento bom da parte dos outros. Mas se pensarmos, veremos que sim, ele deverá ser ajudado. Para 460

começar, se pensarmos religiosamente, poderíamos dizer que todos erramos, e que merecemos perdão, como disse Jesus Cristo: “Aquele que de entre vós está sem pecado seja o primeiro que atire pedra contra ela. ” (João 8:7). Esta é a ética do cristão. Continuando, se este mesmo criminoso precisa de cuidados médicos, independente do que tenha feito, e de acordo com a ética dos médicos, ele deverá receber todos os cuidados necessários e que seriam dispensados a qualquer pessoa, boa ou má, criminoso ou inocente. Conforme o código de ética médica, em seu capítulo I, denominado princípios fundamentais, inciso I: A Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade

e

será

exercida

sem

discriminação

de

nenhuma natureza. Para completar usando o mesmo exemplo, o advogado que fosse defender este criminoso, esta é a ação esperada dele, é sua responsabilidade, é a demonstração de respeito e compromisso, o agir correto, ou seja, é parte de sua ética. E para isso haverá de proceder com esmero à defesa do réu, aviando os meios legais para preservar os direitos constitucionais do acusado, sem fazer juízo acerca do comportamento. O código de e o discurso ético formando a melodia do discurso profissional, cuja ética (de toda e qualquer profissão),

certamente,

deve

ser

a

partitura

da

461

harmonização entre o discurso científico regência compete ao Conselho de Ética (SANTIN, 2011). Se fôssemos então mencionar todas as profissões ficaríamos aqui por muito tempo, mas a essência da ética é basicamente, o agir correto. Fazer sempre ao próximo o que gostaríamos que fizessem por nós. Na verdade, o que torna o termo “ética” tão complexo talvez seja a experiência de tentar definir o “correto”. De acordo com o dicionário Léxico, Dicionário Online de Português, correto é: “Diz-se do que não possui erros; que está livre de falhas ou lapsos; que está certo ou exato; que obedece ou cumpre as regras; que se encontra em conformidade com as utilizações; apropriado ou adequado; que segue os preceitos morais; que é honrado, íntegro ou honesto. “ Pois bem, a partir daí já temos mais uma gama de definições, o que seria honrado? Íntegro? Honesto? A verdade é que ao pé da letra a palavra ética nos direciona a vários entendimentos. A ética, que é algo bom, impondo limites para os indivíduos na vida em sociedade, uma vez que ao estipular o correto, exclui aqueles que não se enquadram às normas propostas, pode às vezes parecer apenas argumento para punir e excluir indivíduos da sociedade ou de um grupo (estereótipos).

462

Se este não se comporta de acordo com o estipulado, deverá ser excluído ou sofrer as sanções cabíveis, como castigo ou modo de evitar novos delitos. A ética se relaciona a diversas áreas como a cultura,

psicologia,

religião,

educação,

comunicação,

economia, política e etc. E o conceito social de ética muitas vezes acaba entrando em conflito com aquele apresentado em outras áreas. As escolhas que fazemos em nossa vida nos levam a assumir certas posturas, que muitas vezes não são compreendidas, outras vezes, nem foram nossas escolhas, mas imposta pela sociedade em que vivemos. O que é esperado de nós, este modelo ético, se não for seguido, será criticado com consequente penalização, seja através de nosso ordenamento jurídico ou dos costumes. A ideia de ética está relacionada a fazer o correto, agir de acordo com o esperado por determinada categoria profissional da qual se faz parte, da sociedade em que vivemos do grupo religioso ao qual congregamos etc. Mas na verdade podemos dizer que é a oportunidade de escolha, pois se existe o ético onde há o não ético, do contrário, não teríamos comparação. Ter consciência da retidão, da lisura, daquilo que pode ser moralmente justificável e agir desta forma é ser ético.

463

O Apostolo São Paulo, na 1ª. Carta aos Coríntios, capitulo 6 versículo 12 ensina como doutrina religiosa: "tudo me é permitido", mas nem tudo convém”, o que corresponde ao brocardo dos jurisconsultos romanos ”non omne quod licet honestum est” (nem tudo o que é lícito é honesto.) Esse modo de agir coerente, de quem persegue a retidão e não satisfazer os próprios instintos, antes, direcionando suas vontades ao que é correto, fundamenta princípios éticos. 3. Ética das profissões jurídicas

A ética no direito se relaciona aos valores que se pretende defender, e garantir sua proteção. Caso

não

sejam

cumpridos,

sanções

deverão

resguardá-lo e garantir que através de determinadas penalidades se evite novas ações. No entanto é sabido que a ética, o correto só existe porque temos uma comparação com algo que é incorreto, que causa, de algum modo prejuízo para a sociedade. Conforme diz REALE (2002): “Parece paradoxal, mas é fundamentalmente verdadeira a asserção de que uma norma ética se caracteriza pela possibilidade de sua violação...”. Mas é esta liberdade que caracteriza e fundamenta a existência de qualquer norma ética, a possibilidade de ser descumprida, de haver uma

464

comparação entre o ético e o não-ético, e neste sentido nos ensina mais uma vez REALE(2002): “A imperatividade de uma norma ética, ou o seu dever ser não exclui, por conseguinte, mas antes pressupõe a liberdade daqueles a que ela se destina. É essa relação correlação essencial entre o dever e a liberdade que caracteriza o mundo ético, que é o mundo do dever ser, distinto do mundo do ser, onde não há deveres a cumprir, mas previsões que tem de ser confirmadas para continuarem sendo válidas. ”

Importante salientar que o direito não guarda normas prontas e acabadas, mas que estão em constantes mudanças de acordo com a sociedade, que se aperfeiçoam com o tempo, e sendo assim o que é ético hoje, pode não ser amanhã. Fazer o correto, o ético, significa seguir normas, que são criadas de acordo com as convicções de determinado grupo social. Outro fator muito importante quando falamos em ética geral e ética jurídica é que apesar do princípio de “fazer o correto” intrínseco em ambas, elas muitas vezes podem divergir. Ou seja, o que é lícito do ponto de vista jurídico, pode não ser para a sociedade. Conforme nos ensina REALE(2002): “ O Direito, infelizmente, tutela muita coisa que não é moral”. O Direito muitas vezes é confundido com advocacia. Mas vale lembrar que o bacharel em Direito ainda não é um advogado, e que para ser assim considerado deverá ser

465

aprovado em exame realizado pela OAB, Ordem dos Advogados

do

Brasil,

no

qual

deverá

demonstrar

conhecimentos jurídicos e prestar juramento perante o conselho da OAB e ao público em geral. Tal juramento representa o comportamento esperado do futuro advogado, onde a ética é parte fundamental, conforme se pode observar no Compromisso do Advogado: “Prometo exercer a advocacia com dignidade e independência, observar a ética, os deveres e prerrogativas profissionais e defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático, os direitos humanos, a justiça social, a boa aplicação das leis, a rápida administração da Justiça e o aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas. ”

Ainda é importante lembrar que ética precisa ser valor para o advogado, ou seja, ele precisa acreditar e viver todos os dias o juramento realizado, mas é uma pratica que não deve se afastar dos demais operadores do direito: juízes, promotores, serventuários, delegados de policia... enfim, a ética e o direito, de mãos dadas procuram a justiça. Para o profissional do direito é preciso ter em mente que não agir com ética pode significar algumas conquistas (efêmeras, talvez), mas não conquistas duradouras e além de tudo, serão vitorias frágeis, suscetíveis de serem derrubadas a qualquer momento. Viver corretamente não é tarefa fácil, principalmente para o advogado, que será tentado a todo o momento. 466

Foi publicado recentemente o Novo Código de Ética da

OAB,

que

veio

estabelecer

maior

rigor

ético,

apresentando imperativos para a conduta do advogado, conforme os mandamentos descritos a seguir: “Lutar sem receio pelo primado da Justiça; pugnar pelo cumprimento da Constituição e pelo respeito à Lei, fazendo com que o ordenamento jurídico seja interpretado com retidão, em perfeita sintonia com os fins sociais a que se dirige e as exigências do bem comum; ser fiel à verdade para poder servir à Justiça como um de seus elementos essenciais; proceder com lealdade e boa-fé em suas relações profissionais e em todos os atos do seu ofício; empenhar-se na defesa das causas confiadas ao seu patrocínio, dando ao constituinte o amparo do Direito, e proporcionando-lhe a realização prática de seus legítimos interesses; comportar-se, nesse mister, com independência e altivez, defendendo com o mesmo denodo humildes e poderosos; exercer a advocacia com o indispensável senso profissional, mas também com desprendimento, jamais permitindo que o anseio de ganho material sobreleve a finalidade social do seu trabalho; aprimorar-se no culto dos princípios éticos e no domínio da ciência jurídica, de modo a tornar-se merecedor da confiança do cliente e da sociedade como um todo, pelos atributos intelectuais e pela probidade pessoal; agir, em suma, com a dignidade e a correção dos profissionais que honram e engrandecem a sua classe.”

Ao estabelecer um Código de Ética para o advogado, não se tem a intenção de tornar a ética uma exigência a ser aferida, mas um pratica natural, um modo de agir característico de um grupo de pessoas, preparados para

467

garantir o estado de direito, conforme preceitua o Estatuto da Advocacia. Deve-se agir de acordo com os princípios do Código de ética e empregar a melhor técnica e dedicação possível, no intuito de prestar um serviço de qualidade, estudar todos os dias, buscando aprimoramento diário. No mesmo sentido, ao se instituir um código de conduta ética (deontológica) ao advogado, não se espera que esse perca o seu senso do justo, a sua autocensura, o seu livre arbítrio e suas convicções. Pelo contrario, fortalece a sua liberdade de defender seus princípios, seu entendimento e seus postulados. Tomamos, por exemplo, o código de ética do advogado, em seu art. 23 assim descritos:

É direito e dever do advogado assumir a defesa criminal, sem considerar sua própria opinião sobre a culpa do acusado. Parágrafo único. Não há causa criminal indigna de defesa, cumprindo ao advogado agir, como defensor, no sentido de que a todos seja concedido tratamento condizente com a dignidade da pessoa humana, sob a égide das garantias constitucionais (BRASIL, 2016).

Assim, o advogado deve assumir defesas criminais sem considerar sua opinião em relação à demanda. É importante citar que ele não é o juiz, e sendo assim não lhe cabe julgar o comportamento do réu.

468

Neste contexto, embora possa não ser socialmente compreendido,

o

papel

do

advogado

é

“mitigar

as

desigualdades para o encontro de soluções justas e que a lei é um instrumento para garantir a igualdade de todos”.3 Agindo dentro de princípios éticos, o advogado deve deixar claro para seus clientes a probabilidade de determinada demanda ser vencida e das consequências que estará incorrendo. Tudo de modo claro. Assim estará sendo previdente, consciente, pois é importante saber que na propositura de uma demanda, a sentença poderá ou não ser favorável ao autor. E mesmo em processos parecidos não se terá a certeza de um mesmo resultado. Sendo claro com o cliente poderá evitar problemas futuros ao criar expectativas. Vale ainda ressaltar os riscos que incorrem o advogado que orientem testemunhas ou clientes a mentir em depoimentos, além de ferir a ética profissional, incorrerá em violação do código penal (art.342), não contribuindo para a consolidação do estado de direito. Faz parte da ética do advogado tratar de maneira respeitosa

colegas,

agentes

políticos,

autoridades,

servidores públicos e terceiros em geral, devendo, por obvio, obter reciprocidade neste respeitoso convívio. Para esse propósito, caso o advogado tenha sua honra ou a sua imagem no exercício da profissão, terá

3 Art 3º Novo código de Ética da OAB.

469

direito

ao

Desagravo

Publico,

preservando

a

sua

integridade moral. Um ponto muito importante e que deve

ser

ressaltado na condução ética das profissões jurídicas é o fato de clientes que já possuem advogado constituído para seu caso através de procuração. O novo advogado só deverá assumir somente após a revogação do antigo mandato entre cliente e advogado. Advocacia é uma relação de confiança e não de concorrência comercial. Quando ao que lhe for confidenciado, o advogado deverá manter sigilo dos fatos que venha a tomar conhecimento em virtude de sua profissão, excetuando os casos em que esteja sob ameaça. Relacionamentos éticos se pautam por transparência, o que deve ser exigido do cliente ao relatar os fatos e oferecido a ele em prestações de contas periódicas. Faz

também

parte

das

premissas

éticas

do

advogado, respeitar os valores mínimos da tabela de honorários da OAB, fixando os valores da causa de forma moderada, de acordo com a relevância, complexidade, dificuldades, local da prestação dos serviços além de outras questões como o impedimento do advogado para outras causas e condições do cliente, relacionado ao proveito que a causa trará a este. Nada mais triste que o aviltamento da profissão, no entanto, nada mais vil que a avareza. O advogado deve cobrar o justo pelos seus

470

serviços, sem, no entanto, deixar a míngua da justiça àquele que dela carece e não tem meios para custeá-la. O advogado que desrespeita as normas impostas pelo Código de Ética da OAB sofrerá penalidades que vão desde a censura, suspensão (que pode variar pelo período de 30 dias a 12 meses), suspensão cautelar e chegando à medida mais grave, que é a exclusão. Existe também a multa, que pode variar de 01 anuidade ao seu décuplo. São meios que a Ordem dos Advogados tem para manter em seus quadros pessoas que compreendam o alcance do que diz o artigo 133 da nossa Carta Magna:

Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.

Ser indispensável é mais do que ser necessário ao processo, é ser parte integrante do resultado. Conclusão A ética jurídica importa num comportamento em conformidade com a realidade social, que é esperada de todo operador do direito, daí a importância de seu código próprio, que se preocupa em manter o advogado o mais próximo possível do cuidado com os cidadãos na vida em sociedade, prezando pela correta aplicação de nosso 471

ordenamento jurídico e da igualdade entre todos através da justiça qual seja, através do princípio da igualdade ou isonomia: “Dar tratamento isonômico às partes significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades”. (NERY JUNIOR, 1999, p. 42). O advogado precisa entender sua importância na sociedade, no tratamento das questões que lhe são cabidas, dispensando toda ética necessária quer no convívio com os seus pares, demais operadores do direito, a clientela e a sociedade. Sabendo que em certos momentos deverá abrir mão de seus valores pessoais em virtude do compromisso firmado em seu juramento junto à OAB. É preciso serenidade para discernir que muitos costumes que são considerados pela sociedade como antiéticos, não o são para o advogado... E também o contrário. "Procure conhecer-se, por si próprio. Não permita que outros façam seu caminho por você. É sua estrada, e somente sua. Outros podem andar ao seu lado, mas ninguém pode andar por você."(Art. 3° do Código de Ética do Índio Norte-Americano)

472

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