Livro Direito Sociedade e Democarcia

May 28, 2017 | Autor: Fernanda Duarte | Categoria: Direito Constitucional, Análise do Discurso
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Descrição do Produto

Coordenação Geral Cleyson de Moraes Mello Nuno M. M. S. Coelho

Direito, Sociedade e Democracia Autores André R. C. Fontes Cláudia Ribeiro Pereira Nunes Cleyson de Moraes Mello Fernanda Duarte Fernando Bentes Nuno M. M. S. Coelho Sebastião Sérgio da Silveira Sebastião Trogo Rafael Mario Iorio Filho Ricardo dos Reis Silveira Vânia Aieta Vanderlei Martins

Editar Juiz de Fora-MG 2016

Conselho Editorial Prof. Dr. Antônio Celso Alves Pereira (UERJ) Prof. Dr. Antônio Pereira Gaio Júnior (UFRRJ) Profa. Dra. Bianca Tomaino (UERJ) Prof. Dr. Bruno Amaro Lacerda (UFJF) – Mingas Gerais Profa. Dra. Claudia Ribeiro Pereira Nunes (UVA) Prof. Dr. Cleyson de Moraes Mello (UERJ) Profa. Dra. Elena de Carvalho Gomes (UFMG) – Minas Gerais Profa. Dra. Germana Parente Neiva Belchior (FA7) – Ceará Prof. Dr. João Eduardo de Alves Pereira (UERJ) Profa. Dra. Martha Asunción Enriquez Prado (UEL) – Paraná Prof. Dr. Nuno M. M. S. Coelho (USP) – São Paulo Profa. Dra. Núria Belloso Martín (Univ.Burgos – Espanha) Profa. Dra. Theresa Calvet de Magalhães (UFMG) – Minas Gerais Prof. Dr. Valfredo de Andrade Aguiar Filho (UFPB) – Paraíba Prof. Dr. Vanderlei Martins (UERJ) Conselho Científico Prof. Dr. Adriano Moura da Fonseca Pinto (UNESA) Prof. Dr. Alexandre de Castro Catharina (UNESA) Prof. Dr. Carlos Eduardo Japiassú (UERJ / UNESA) Profa. Dra. Célia Barbosa Abreu (UFF) Prof. Dr. Daniel Nunes Pereira (UFF) Prof. Dr. Jorge Bercholc (UBA – Argentina) Prof. Dr. Leonardo Rabelo (UVA) Prof. Dr. Marcelo Pereira Almeida (UNESA) Prof. Dr. Sebastião Trogo (UFMG) Prof. Dr. Thiago Jordace (IBMEC)

Coordenação Geral Cleyson de Moraes Mello Nuno M. M. S. Coelho

Conselho Editorial – CALC – Centro Acadêmico Luiz Carpenter Carolina Torres de Lima e Silva Douglas da Silva Oliveira Felipe do Valle Rodrigues Lima Gabriel Martins Cruz de Aguiar Pereira Gabriela Macedo Ferreira Isabela Almeida do Amaral Loana Pessanha Saldanha Luis Felipe Rodrigues Paranhos Maíra De Luca Leal Michael Douglas Santos Teixeira Philippe da Silva Souto Rafael Francisco de Mendonça Raphaela Ramos Webering Sergio Cardoso Júnior Tayane Caruso do Valle Vinícius de Melo da Silva Vitor Lourenço Rodrigues Wallace Moreira Ribeiro

Dados internacionais de catalogação na publicação

M517d Mello, Cleyson de Moraes – 1965 C672d Coelho, Nuno M. M. S. – 1974 Direito, Sociedade e Democracia / Cleyson de Moraes Mello e Nuno M. M. S. Coelho (Coordenadores), Juiz de Fora: Editar Editora Associada Ltda, 2016. ISBN: 978-85-7851-141-8 1. Fundamentos – Direito – Brasil. CDD 340 CDU 34

A editora e os coordenadores desta obra não se responsabilizam por informações e opiniões contidas nos artigos científicos, que são de inteira responsabilidade dos seus autores.

Quão preciosa é, ó Deus, a tua benignidade, pelo que os filhos dos homens se abrigam à sombra das tuas asas. Eles se fartarão da gordura da tua casa, e os farás beber da corrente das tuas delícias; Porque em ti está o manancial da vida; na tua luz veremos a luz. (Salmos 36: 7-9)

Coordenação Geral Cleyson de Moraes Mello Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UERJ; É professor da linha de pesquisa Direito da Cidade do PPGD da UERJ. É Diretor Adjunto da Faculdade de Direito de Valença – FAA/FDV. Professor Titular da Universidade Estácio de Sá; Advogado. E-mail: [email protected] Nuno M. M. S. Coelho Concluiu Graduação em Direito pela Universidade de São Paulo (1998), Mestrado (2003) e Doutorado (2006) em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, e Livre-Docência em Direito pela Universidade de São Paulo (2009) na área de Teoria e Filosofia do Direito, com Estágios Doutorais junto à Faculdade de Direito de Coimbra e junto à Faculdade de Letras/Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa. Foi Professor e Pró-Reitor de Extensão da Universidade Federal de Ouro Preto. Atualmente é Professor Associado de Ética, de Lógica e Epistemologia Jurídica e de Filosofia do Direito da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP, e Professor Titular da Universidade Presidente Antônio Carlos, cujo Programa de Mestrado coordena. Seus principais interesses teóricos na ciência e filosofia do direito são: hermenêutica jurídica, ética e filosofia do direito (com ênfase no pensamento prático grego, especialmente Aristóteles), educação jurídica, direitos humanos e fenomenologia e direito. É também advogado.

Autores André R. C. Fontes Desembargador no Tribunal Regional Federal da 2ª Região (Rio de Janeiro e Espírito Santo) e Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Professor do PPGD – UNIRIO. E-mail: [email protected]

Cláudia Ribeiro Pereira Nunes Doutora e Mestre em Direito pela Universidade Gama Filho (UGF). Coordenadora do Programa de Acordos de Cooperação Nacional e Internacional do IESUR/FAAR. Professora e Pesquisadora da Graduação do UBM e do PPGDUVA. Coordenadora do NUPE do IESUR/FAAr. Articulista. Consultora Sênior. E-mail: [email protected]

Cleyson de Moraes Mello Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UERJ; É professor da linha de pesquisa Direito da Cidade do PPGD da UERJ. É Diretor Adjunto da Faculdade de Direito de Valença – FAA/FDV. Professor Titular da Universidade Estácio de Sá; Advogado. E-mail: [email protected]

Fernanda Duarte Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Estácio de Sá (PPGD-UNESA). Professora Adjunta da Universidade Federal Fluminense/ Faculdade de Direito. Pesquisadora do INCT-InEAC/NUPEAC – UFF Doutora em Direito (PUC/RJ). E-mail: [email protected]

Fernando Bentes Professor-Adjunto de Direito Constitucional da UFRRJ, Professor da Pósgraduação/Mestrado da UNIPAC, Doutor em Direito Constitucional (PucRio), Advogado. E-mail: [email protected]

Nuno M. M. S. Coelho

Concluiu Graduação em Direito pela Universidade de São Paulo (1998), Mestrado (2003) e Doutorado (2006) em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, e Livre-Docência em Direito pela Universidade de São Paulo (2009) na área de Teoria e Filosofia do Direito, com Estágios Doutorais junto à Faculdade de Direito de Coimbra e junto à Faculdade de Letras/Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa. Foi Professor e Pró-Reitor de Extensão da Universidade Federal de Ouro Preto. Atualmente é Professor Associado de Ética, de Lógica e Epistemologia Jurídica e de Filosofia do Direito da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP, e Professor Titular da Universidade Presidente Antônio Carlos, cujo Programa de Mestrado coordena. Seus principais interesses teóricos na ciência e filosofia do direito são: hermenêutica jurídica, ética e

filosofia do direito (com ênfase no pensamento prático grego, especialmente Aristóteles), educação jurídica, direitos humanos e fenomenologia e direito. É também advogado.

Sebastião Sérgio da Silveira Mestre e Doutor pela PUC/SP. Pós-Doutorado na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professor na Universidade de Ribeirão Preto – UNAERP e na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – FDRP/USP. Promotor de Justiça.

Sebastião Trogo

Possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (1958), graduação em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (1971), mestrado em Filosofia da Ética pela Universidade Federal de Minas Gerais (1975) e doutorado em Filosofia das Relações Intersubjetivas pela Universite Catholique de Louvain (1979). Atualmente é professor titular da Faculdade de Estudos Administrativos de Minas Gerais e diretor geral da Faculdade de Direito Conselheiro Lafaiete. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Ética, atuando principalmente nos seguintes temas: antropologia filosófica, filosofia da arte, filosofia do direito e filosofia existencial de Jean-Paul Sartre.

Rafael Mario Iorio Filho Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Estácio de Sá (PPGD-UNESA). Pesquisador do INCT-InEAC/NUPEAC- UFF. Doutor em Direito pela UGF. Doutor em Letras Neolatinas pela UFRJ. E-mail: [email protected]

Ricardo dos Reis Silveira Mestre e Doutor pela UFSCAR. Pós-Doutorando na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professor da Universidade de Ribeirão Preto – UNAERP e Centro Universitário de Barretos – UNIFEB. Advogado.

Vânia Siciliano Aieta Professora Adjunta da Faculdade de Direito da UERJ (PPGD-UERJ), da Escola da Magistratura, da Escola Judiciária Eleitoral, da Universidade Veiga de Almeida, da UNILASALLE e do Instituto de Direito da PUC-Rio. PósDoutorado em Direito Constitucional pela PUC-Rio. E-mail: vaniaaieta@ siqueiracastro.com.br

Vanderlei Martins Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGD-UERJ), em Regime de Dedicação Exclusiva. Atua na área de Ciências Sociais Aplicadas. E-mail: [email protected]

Sumário Prefácio....................................................................................... 11 Cleyson de Moraes Mello e Nuno M. M. S. Coelho

Emoções e política em Aristóteles................................................ 13 Nuno M. M. S. Coelho e Sebastião Trogo

Processo penal e democracia........................................................ 27 Sebastião Sérgio da Silveira e Ricardo dos Reis Silveira

Uma proposta totalitária de construção de cidadania: os discursos fascista de Benito Mussolini..................................... 41 Rafael Mario Iorio Filho e Fernanda Duarte

O Decisionismo jurídico de Carl Schmitt.................................... 67 André R. C. Fontes

A religião afeta os projetos de lei apresentados no Congresso Nacional?................................................................... 73 Cláudia Ribeiro Pereira Nunes

Democracia e Ativismo Judicial Pós-Constituição de 1988.............85 Fernando Bentes

A necessária distinção entre demos e kratos – Poder do povo ou poder sobre o povo? Quem é o povo? A titularidade do poder constituinte originário........................................................99 Vânia Aieta

Direitos sociais e desigualdades no Rio de Janeiro contemporâneo...113 Cleyson de Moraes Mello e Vanderlei Martins

Prefácio Esta obra acadêmica, corolário de múltiplos esforços, espelha o resultado do projeto de pesquisa “Direito, Sociedade e Democracia” com a participação de professores das faculdades de Direito das seguintes instituições de ensino: Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Universidade de São Paulo de Ribeirão Preto (USP), Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Universidade Estácio de Sá (UNESA), Universidade Veiga de Almeida (UVA) e Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP). A pesquisa se destaca pela sua representatividade institucional e epistemológica, ou seja, presença de autores consagrados de distintas universidades, de diferentes áreas de conhecimento e filiação paradigmática. Os capítulos são apresentados na perspectiva das áreas de conhecimento e na ótica da interdisciplinariedade. Dessa maneira, os autores e coordenadores do projeto reconhecem que a construção do conhecimento é multidisciplinar, intersubjetiva e contínua marcadamente por sucessivas interlocuções. Esta visão perpassa a presente obra, ganhando densidade na metodologia adotada no projeto editorial. Rio de Janeiro / Ribeirão Preto (SP), setembro de 2016 Cleyson de Moraes Mello Nuno M. M. S. Coelho (Coordenadores)

Emoções e Política em Aristóteles Nuno M. M. S. Coelho1 Sebastião Trogo2

Introdução É difícil construir um panorama das emoções em A Política, de Aristóteles.3 A partir da definição da cidade como comunidade ou associação entre cidadãos iguais embora heterogêneos – heterogêneos especialmente no que respeita à riqueza – compondo-se por ricos e pobres que sustentam visões sobre a justiça conflitantes e que mantêm, assim, a cidade em tensão permanente, destacamos causas ou mecanismos pelos quais as emoções são despertadas e têm papel decisivo nos processos políticos. Especialmente quando a filosofia política lida com regimes possíveis para homens e cidades reais, tentamos mostrar como as emoções se integram à defesa que Aristóteles faz da democracia, ao defender que a multidão está emocionalmente mais bem preparada para julgar quando a lei não o pode fazer. Concluiu Graduação em Direito pela Universidade de São Paulo (1998), Mestrado (2003) e Doutorado (2006) em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, e Livre-Docência em Direito pela Universidade de São Paulo (2009) na área de Teoria e Filosofia do Direito, com Estágios Doutorais junto à Faculdade de Direito de Coimbra e junto à Faculdade de Letras/Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa. Foi Professor e Pró-Reitor de Extensão da Universidade Federal de Ouro Preto. Atualmente é Professor Associado de Ética, de Lógica e Epistemologia Jurídica e de Filosofia do Direito da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP, e Professor Titular da Universidade Presidente Antônio Carlos, cujo Programa de Mestrado coordena. Seus principais interesses teóricos na ciência e filosofia do direito são: hermenêutica jurídica, ética e filosofia do direito (com ênfase no pensamento prático grego, especialmente Aristóteles), educação jurídica, direitos humanos e fenomenologia e direito. É também advogado. 2 Possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (1958), graduação em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (1971), mestrado em Filosofia da Ética pela Universidade Federal de Minas Gerais (1975) e doutorado em Filosofia das Relações Intersubjetivas pela Universite Catholique de Louvain (1979). Atualmente é professor titular da Faculdade de Estudos Administrativos de Minas Gerais e diretor geral da Faculdade de Direito Conselheiro Lafaiete. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Ética, atuando principalmente nos seguintes temas: antropologia filosófica, filosofia da arte, filosofia do direito e filosofia existencial de Jean-Paul Sartre. 3 São muito variados os argumentos em que as emoções são convocadas para ajudar a entender as transformações e processos políticos. Sua importância decorre do método que vai buscar à alma os princípios do que se passa na cidade, como vimos. Confira-se a importância do pathos no elenco que Aristóteles faz das causas de revoltas e sublevações: “De um lado, há as que derivam da soberba, do medo, da vontade de superioridade, do desprezo e do excesso desproporcionado de poder. Outro tipo de causas são a intriga, o desleixo, as minudências, e a disparidade” (Aristóteles, Política, 1302b 1-5). Todas as referências à Política (para a qual usaremos, doravante, a simples abreviação Pol.) de Aristóteles são indicadas entre parênteses, com a indicação da página, da coluna e eventualmente das linhas do original grego estabelecido por Emmanuel Bekker – como é usual. Da mesma forma, a referência à obra Tópicos será feita com a abreviatura Top.. 1

Emoções e política em Aristóteles

O presente artigo tem como escopo entender o papel da emoção no pensamento político de Aristóteles, especialmente na obra A Política. O método privilegia a interpretação do texto aristotélico na tentativa de compreender os argumentos e conclusões a que chega, à luz da sua estrutura dialética.

Emoções Políticas em Aristóteles Com respeito ao papel das emoções na vida da polis, não há em Aristóteles uma resposta simples, tal qual afirmar que as emoções conservam a polis, ou que a ameaçam. Não se pode dizer simplesmente que o pathos seja bom ou mau, do ponto de vista político. Antes, ele tem status ambivalente, aparecendo às vezes como aquilo que viabiliza e preserva, outras como o que desvirtua e destrói. Para ilustrá-lo, pensemos em duas passagens em que a emoção é decisiva para compreender a tarefa do político. Em passagem famosa4, Aristóteles contrapõe o governo da lei ao governo do homem.5 A questão é fulcral: o governo do homem é inadmissível na sociedade política porque fere a igualdade, pondo uns em posição de superioridade e outros em inferioridade. Por ferirem a igualdade – que é da essência do político6 – os regimes em que o governo é exercido pelo “Por isto é preferível que seja a lei a governar e não qualquer um dos cidadãos.” (Pol. 3, 1287 a 18-20) “(…) Por que a lei é a sabedoria sem desejo. ” (Pol. 3, 1287 a 28-32). 5 Após apresentar as concepções (parciais) de igualdade e de justiça de oligarcas e democratas – às quais contrapõe a sua, não parcial porque deduzida no fim da cidade como comunidade omnicompreensiva constituída em vista da virtude – e tendo apresentado os contornos fulcrais da cidade enquanto convivência entre pontos de vista parciais – Aristóteles põe a questão sobre qual, entre as diferentes facções, deve governar. “Coloca-se uma outra questão: quem deve ter a supremacia na cidade? A multidão, os ricos, os notáveis, o melhor de todos, ou um tirano? É evidente que todas estas alternativas apresentam dificuldades” (Pol., 1281 a 10-15). Todas as facções são parciais e, por isto, julgam mal – porque julgam em causa própria, em razão da sua simples parcialidade. Entregar a supremacia a qualquer das facções implica em violência (referências que assimilam governo do homem a violência (dinasteia: Pol. 1292 a), desagrado e injustiça. A solução aristotélica é célebre: a supremacia não deve caber a qualquer das facções, mas à lei, a quem caberá arbitrar entre elas. “Talvez se possa afirmar que está errado entregar a supremacia absoluta a um homem sujeito a paixões que afetam a alma, e não à lei; mas entregar a supremacia à lei oligárquica ou democrática não faria qualquer diferença face às dificuldades suscitadas: as consequências seriam as mesmas”. (Pol., 1281 a 30-38). “Tal como os regimes, as leis ou são boas ou más, justas ou injustas. Pelo menos uma coisa é evidente: as leis devem ser estabelecidas de acordo com o regime; e se é este o caso, segue-se que as leis que estão de acordo com o regime correto devem ser necessariamente justas, e as leis que estão de acordo com os regimes transviados são injustas”. (Pol., 1282 b 5-12) Mas a afirmação de que, no bom regime, no regime não desviado, governa a lei e não o homem, não impede que Aristóteles avance com a investigação sobre qual, dentre as facções, deve governar. Ele tem que fazê-lo porque, quando se trata do mundo real, não é a lei deduzida de uma concepção total (e não parcial) de justiça, mas sim a democrática ou a oligárquica. No plano das cidades reais, em que governam homens, quem deve governar? Aristóteles analisa a opinião segundo a qual o governo deve caber aos muitos (e não a um ou a poucos virtuosos, ricos ou bem nascidos). 6 A igualdade como traço distintivo essencial da comunidade política se percebe claramente a partir da oposição entre a polis e as demais comunidades humanas. Na família e na tribo, os participantes são por natureza diferentes (homem e mulher, pai e filhos, senhor e escravo) e desta diferença decorre a desigualdade. Já na polis, embora diferentes em muitos 4

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homem são considerados desviados. Já os regimes retos são aqueles em que não há óbice à realização da natureza do político, assegurando-se a igualdade. O governo do homem é mal porque implica no governo do pathos, em contraposição ao governo da lei, considerado o governo na razão. De fato, a lei é a razão sem o pathos (Pol. 1286 a 17-20). Tudo isto revela imensa desconfiança contra o pathos: ele é o elemento que leva à desnaturação do regime, ao desvio. Por outro lado, no entanto, quando examinamos o significado da philia para a constituição e a preservação da polis, testemunhamos o papel positivo assumido pelo pathos no pensamento político aristotélico. Sem philia, não há comunidade, Aristóteles demonstra-o muitas vezes.7 Ao mesmo tempo, tampouco é o caso de contrapor emoções boas e emoções más, do ponto de vista da política. A mesma philia que acabamos aspectos, os membros da comunidade são iguais. Toda a instabilidade característica da polis decorre desta sua característica, que combina heterogeneidade com igualdade. Para Aristóteles, todo composto apresenta uma certa hierarquia entre as partes. “Sempre que existe uma combinação de elementos, contínua ou descontínua, para produzir uma realidade com unidade de composição, manifesta-se a dualidade do que governa e do que é governado; e isto, que acontece nos seres vivos, revela uma lei universal da natureza, porque mesmo entre as coisas inanimadas existe, com efeito, alguma autoridade, como sucede por exemplo com a harmonia”. Isto vale até mesmo para totalidades não vivas (como a música/harmonia), e é claro nos seres vivos, em que o corpo se submete à alma, e, na alma do homem, a parte apetitiva à que tem o logos. “Dizemos, pois, que é no ser vivo que primeiro encontramos a autoridade de um senhor ou de um governante. A alma governa o corpo com autoridade de um senhor, enquanto a inteligência exerce uma autoridade política ou régia sobre o apetite. Nestes casos é evidente que é não só natural como também benéfico para o corpo ser governado pela alma, tal como a parte afetiva pela inteligência e pela parte que possui a razão; já que a paridade entre as duas partes ou a inversão dos papéis seria prejudicial em todos os casos”. (...) “Por outro lado, a relação entre o homem e a mulher consiste no facto de que, por natureza, um é superior e a outra inferior, um, governante, outra, governada. O mesmo tem que, necessariamente, ocorrer para toda humanidade”. (Pol . 1254 a 34-35 – b 1-15). Na família, as partes são por natureza heterogêneas e mantêm-se em permanente desigualdade. O cidadão macho maior está em permanente domínio face a escravos, mulheres e crianças. Na família, os membros são heteroi e anisoi. Já na polis, os cidadãos são heteroi mas isoi, o que significa que, apesar de suas diferenças, têm a mesma parte naquilo em vista de que a cidade se constitui e no que, nela, se compartilha e distribui. 7 Vejam-se, exemplificativamente: na Política, 1295 b 29-32; na Ética a Eudemo, VIII, 9-10; na Ética a Nicômaco, 1161 b 13. De volta à Política, a defesa da philia como condição de salvaguarda da polis é eloquente: “Os que exercem as magistraturas devem possuir três requisitos: em primeiro lugar, uma total afeição pelo regime estabelecido (...)” (Pol., 1309 a33-35). “Acreditamos que a amizade é o maior dos bens para as cidades, porquanto pode ser o melhor meio de evitar revoltas” (Pol., Pol. 1262 b 1-10). “É claro, portanto, que uma cidade não é uma comunidade de residência cujo fim seja apenas evitar a injustiça mútua e facilitar as trocas recíprocas. Todas estas condições devem estar presentes para que a cidade exista; mas a sua presença não é suficiente para a constituir. O que constitui uma cidade é uma comunidade de lares e de famílias com a finalidade da vida boa e a garantia de uma existência perfeita e autônoma. Isto não se realizaria sem que os membros da cidade residam num mesmo lugar e se casem entre si. Daqui surgiram nas cidades as relações de parentesco, as frátrias, sacrifícios públicos, e os lazeres. Estas instituições são obra da amizade – já a amizade é condição de escolha de uma vida em comum”. (Pol., 1280 b 30 – 39).

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Emoções e política em Aristóteles

de rememorar como fundamento da polis, é um dos motivos que levam o homem a julgar mal – o que leva Aristóteles a criticar o governo do homem em defesa do governo na lei. Ocorre que o humano invariavelmente julga mal em causa própria, assim como os seus amigos – assim como o ódio leva a julgar mal os inimigos. A philia implica em parcialidade, e assim a julgamentos distorcidos. Ser juiz de assuntos familiares ou próximos a nós (τὸ κρίνειν περί τε οἰκείων), torna impossível discernir a verdade (οὐ δυνάμενοι κρίνειν τὸ ἀληθὲς), porque somos tomamos pela emoção (διὰ καὶ ἐν πάθει ὄντες). Isto torna impossível ao juiz encontrar o meio termo, e agir bem. (Pol., 1287 b 2-3). Há outros exemplos elucidativos sobre como uma mesma emoção pode ser, a depender da situação, útil ou nociva à integração política, como ocorre com a ira ou com o medo. Tanto o medo8 como a ira podem ser causa de destruição da polis, como estar a serviço de sua conservação. Tudo leva à necessidade de uma revisão do papel político das emoções no pensamento aristotélico, para o que se tenta oferecer uma pequena contribuição aqui.

Emoção e Método da Filosofia Política O ponto de partida da investigação na Política é a definição de polis, a partir da diferenciação de seu eidos em contraposição ao de outras comunidades que participam do mesmo gênero.9 Aristóteles constrói a sua definição de polis a partir da refutação da tese platônica de que família e polis não sejam especificamente mas apenas quantitativamente diferentes.10 A cidade não é apenas um todo maior que a família, mas se distingue por seu fim, pela natureza das partes que a compõem e pelo tipo de hierarquia e de vínculos que se estabelecem entre as partes. A investigação, Aristóteles adverte, seguirá o método (Pol., 1252 a, 1723) de decompor o objeto em suas partes mais simples, para ali encontrar os princípios que governam sua constituição e desenvolvimento (physis). Família e polis são decompostos nas suas partes mais elementares, para entender-se que Tal como se pode rapidamente verificar, ao examinar estas passagens da Política: “O medo também está na base dos distúrbios. Manifesta-se não só nos que incorrem em delito (e que por isso temem um castigo), como também nos que, na iminência de serem vítimas de uma injustiça, preferem tomar precauções. ” (1302 b 20-25) “Os regimes preservam-se melhor quer afastando os que procuram a destruição, quer, por vezes mantendo-os perto pois, amedrontados, mais facilmente estão nas mãos do regime. É por isso que muitas vezes se torna necessário que o regime instile o medo nos cidadãos (...) e apresente como iminente um perigo distante”. (1308 a 23-26) “Nas monarquias, assim como nos regimes constitucionais, o medo é das causas de revoltas”. (1311 b 36-38) 9 Aristóteles esclarece a polis a partir do gênero de que participa: ela é uma espécie de associação: κοινωνία. “Since a definition is composed of a genus and differentiae” (Top., I, 8, 103 b), ele deve a seguir revelar as características peculiares da associação política, a fim de apreender sua especificidade. 10 “(…) eles imaginam que a diferença entre estas várias formas de autoridade seja de maior ou menor número, e não uma diferença específica”. (Pol. 1252a) 8

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tipo de impulso empurra11 os humanos a associarem-se em cada uma das espécies de comunidade.12 De maneira geral, todos os associados na família reúnem-se para prover as necessidades básicas do dia-a-dia, como alimentar-se e proteger-se. Já na tribo, os associados reúnem-se para alcançar uma vida confortável. Na polis, os associados reúnem-se para obter a vida mais plena possível ao ser humano. A família é decomposta nas relações básicas que a constituem: marido e mulher, pai e filhos, senhor e escravo. Ao analisar a natureza de cada um destes elementos, descobrem-se as forças que os impulsionam à comunidade. Homem e mulher associam-se porque precisam um do outro para procriar.13 São naturalmente diferentes, e esta diferença faz deles carentes um do outro para o fim de gerar filhos. Há uma carência, uma incompletude que os leva a associar-se, pois sozinhos não se bastam. Ao analisar a relação entre senhor e escravo, da mesma forma se identificam os princípios que, na alma de cada um deles, impulsionam-nos à associação. Escravos por natureza beneficiam-se da comunidade com o senhor por serem carentes, uma vez que são incapazes de deliberar sobre o bem.14 Ao analisar a relação entre os associados na polis, Aristóteles procura também na natureza das partes, o impulso para a associação. Os cidadãos são incapazes de obter autossuficiência por si mesmos. Ela apenas pode ser obtida em comunidade, pela associação com outros que tenham não só esta necessidade, mas também a capacidade de obtê-la. O exame da alma do cidadão – em contraste com a alma da mulher, do escravo e da criança – revela o princípio que possibilita e condiciona a experiência política. No raciocínio que Aristóteles desenvolve aqui há um lugar muito especial para as emoções. O método de decompor o objeto para encontrar os princípios a partir dos quais se pode entender a sua natureza, conduz à exposição das forças anímicas capazes de explicar o processo de constituição e desenvolvimento da polis e das outras formas comunitárias. O argumento sobre o animal político/animal que tem o logos lida com a necessidade e a capacidade de associar-se como condições da vida comum (Pol. I, 1253 a 25-30), pressupondo a existência de uma tendência para a associação. À luz desta fundação anímica da experiência política, torna-se central o papel das emoções na filosofia política aristotélica. 12 A ideia básica está expressa na afirmação com que a Política começa: os homens associamse em busca de um bem, ou, mais rigorosamente, em busca do que se considera um bem. (Pol. 1, 1252 a 1-2). 13 Pol. 1, 1252 a 25: “Neste, como em outros domínios, obteremos a melhor apreciação das coisas se olharmos para o seu processo natural desde o princípio. Em primeiro lugar, aqueles que não podem existir sem o outro devem formar um par. É o caso da fêmea e do macho para procriar. ” 14 Se o escravo precisa associar-se ao senhor para participar, na medida em que lhe seja possível, da vida boa, o mesmo não é verdadeiro quanto ao senhor, que não depende do escravo para viver bem (embora ele lhe seja útil). Pol. 1, 1252 a, 30-34: “É que quem pode usar o seu intelecto para prever, é, por natureza, governante e senhor, enquanto quem tem força física para trabalhar, é governando e escravo por natureza. Assim, senhor e escravo convergem nos interesses”. 11

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O cidadão distingue-se por possuir a parte deliberativa da alma soberana e desenvolvida – no que difere, por natureza, do escravo (a quem a parte deliberativa da alma simplesmente falta), da mulher (que tem a parte deliberativa da alma, mas não soberana), e da criança (que também a tem, mas não desenvolvida).15 Com isto, ressalta-se a natureza racional especificadora do cidadão, que capacita a ser parte da polis, e habilita à experiência política plena. No entanto, a faculdade racional não basta para explicar a natureza do cidadão. A análise da alma do cidadão, com o fito de identificar, nela, o princípio que possibilita e impulsiona à experiência política, compreende ainda a indicação dos requisitos patéticos que devem estar presentes para que a vida (a convivência) política se torne possível. Além de certa configuração lógica da alma, requer-se ainda certa configuração patética, sem a qual um homem não está talhado, por natureza, para a coexistência política. De acordo com Aristóteles, os povos asiáticos são incapazes de política porque, apesar de inteligentes, têm pouco thymos – ao passo que os europeus têm-no em demasia. Por esta razão, ambos são incapazes de constituir poleis. A correta combinação entre razão e thymos, presente apenas no povo grego, torna-o capaz de viver em poleis. Inteligente e com a dose certa de emoção, o grego mostra-se capaz tanto de comandar como de obedecer. O asiático, sem thymos, é subserviente, não tem a têmpera do homem livre e é assim escravo por natureza. O europeu, com demasiado thymos, não se deixa conduzir e por isso não é capaz de viver sob leis. A vida política só é possível sob a pressuposição tanto de uma adequada configuração da razão como das paixões, com que se esclarece como o pathos contribui decisivamente, como condição de possibilidade, para a vida política.16 “Foi, aliás, esta ideia que nos serviu de guia no estudo da alma. Com efeito, também esta possui por natureza um elemento governante e um que se lhe subordina, ambos com as suas virtudes próprias: um dotado de razão e o outro desprovido dela. O mesmo se aplica claramente aos restantes casos, posto que não maior parte deles há, por natureza, um elemento que manda e outro que obedece. De facto, o homem livre manda no escravo, da mesma forma que o marido na mulher, e o adulto na criança. Nesses casos, as partes da alma estão presentes em todos esses seres mas disposta de modo diferente. O escravo não tem faculdade deliberativa; a mulher tem-na, mas não tem faculdade de decisão; a criança tem capacidade de decisão, mas ainda não desenvolvida. ” Pol. 1, 1260 a, 4-14. 16 Em uma outra passagem importante, integrante do argumento em torno da natureza política do humano, Aristóteles fala sobre humanos incapazes de conviver não por acaso, mas por força de sua própria natureza, em que também se destaca o pathos como condição de possibilidade da integração política. Alguns são incapazes de viver em poleis por serem amantes da guerra, e, por isso, vivem isolados. Pol. 1, 1252 a: “(...) Estas considerações evidenciam que a cidade é uma daquelas coisas que existem por natureza e que o homem é, por natureza, um ser vivo político. Aquele que, por natureza e não por acaso, não tiver cidade, será um ser decaído ou sobre humano, tal como o homem condenado por Homero como ‘sem família, nem lei, nem lar’; porque aquele que é assim por natureza, está, além do mais, sedento de ir para a guerra, e é comparável à peça isolada de um jogo”. 15

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Esta é uma das conclusões a que conduz o método anunciado por Aristóteles na Política, de decompor o objeto de estudo em suas partes mais simples. Avançando (ou regredindo) desde a polis até as famílias e as tribos que a compõem, passa-se destas para seus membros – a fim de examinar, nestes, o princípio que (por natureza) os impulsiona à associação. O método decompositor não atinge ainda, aí, o seu limite, passando à análise do cidadão: ele é um todo composto por corpo e alma que apresentam traços próprios do político. O método por fim examina as partes componentes da alma, chegando aos mais elementares princípios que tornam possível e necessária, para o grego, a vida política: razão (enquanto capacidade deliberativa) e emoção (a dose certa de thymos que faz dele livre porque capaz de mandar e de obedecer).

Platão e Aristóteles e o Pathos como fundamento da Polis Se o livro I deixa entrever que o pathos é condição da instituição da vida política – ao mostrar como a natureza do cidadão compreende uma adequada combinação entre razão e emoção, própria do grego – o livro seguinte dá outras importantes indicações sobre o seu papel na manutenção da vida política. O livro II da Política começa com nova crítica a um ponto de vista platônico, agora acerca da unidade da cidade. De acordo com a exposição aristotélica, Sócrates, na República, pretende garantir a unidade da sociedade pela instituição de uma espécie de comunismo de mulheres e de bens. Sócrates acredita que se todas as mulheres pertencessem a todos os homens mais ou menos da mesma idade, todas as pessoas de uma mesma geração se considerariam irmãos. Os mais velhos considerariam todos os moços como seus filhos, e estes teriam a todos aqueles como pais e mães. Com isto, seriam fortíssimos os laços de consideração e respeito entre os membros da polis, que se tornariam tão estreitos quanto os laços familiares, e se obteria máxima unidade. Da mesma maneira, o fato de todas as coisas pertencerem a todas as pessoas eliminaria as disputas com respeito à propriedade. Aristóteles discorda veementemente da tese platônica, e oferece um eloquente antílogos em contraposição a ela. Para Aristóteles, o que Sócrates pretende com seu comunismo de mulheres e de bens é exatamente o oposto do que se obteria com a sua implantação.17 O fato de todos os homens considerarem-se pais ou irmãos uns dos outros não aumentaria a consideração entre todos.18 Ao contrário, isto produziria Este é um topos recorrente na argumentação aristotélica na Política: a crítica de uma tese ou lei pela demonstração de que conduz a resultado contrário daquilo que lhe subjaz como hipótese. No que respeita à contradição da tese comunista, Aristóteles utiliza outros topoi, como o da impossibilidade. 18 “Por outro lado, esta fórmula apresenta uma outra dificuldade. Quanto mais uma coisa é comum a um maior número, menos cuidado recebe. Cada um preocupa-se sobretudo com o que é seu; quanto ao que é comum, preocupa-se menos, ou apenas na medida do seu 17

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indiferença generalizada, da mesma forma que o fato de tudo passar a pertencer a todos traria desleixo e falta de cuidado para com as coisas comuns. De certo modo, raciocina Aristóteles, o que pertence a todos não pertence a ninguém. A tese platônica não fortaleceria os laços emotivos entre os membros da comunidade, mas os enfraqueceria, porque a propriedade e a afeição, admitidos como fundamentos da consideração e da amizade19, seriam enfraquecidos ou mesmo destruídos – e, com isto, tornar-se-ia impossível a vida política.20 Aristóteles não discorda de Platão quanto ao fato de que a subsistência da comunidade política dependa de laços patéticos entre seus membros.21 Assim como para Platão, Aristóteles defenderá um regime político e leis que fundem a integridade e a unidade da polis sobre bases patéticas, sem as quais ela não poderia subsistir. Também para Aristóteles vale a hipótese de que não há comunidade sem liames afetivos entre os associados. A passagem esclarece os laços que nos unem, na polis e na família, são os laços que fazem com que nos importemos uns com os outros, com que nos preocupemos e atentemos, com que cuidemos, vencendo a indiferença. A polis, assim como a família, não se constitui sobre a indiferença.

Diversidade política e Pathos A divergência entre Platão e Aristóteles sobre a melhor maneira de garantir, sobre bases emotivas, a unidade da polis, revela discordância com respeito à definição de cidade – que é o que Aristóteles tem em mira esclarecer, também, com a argumentação que rapidamente rememoramos. Enquanto para Platão a polis se torna tão melhor quanto mais homogênea, Aristóteles postula que a

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interesse particular. Aliás, desleixa-se ainda mais ao pensar que outros cuidam dessas coisas. (...) Ou, então, se cada cidadão chegasse a ter mil filhos, tais filhos não lhe pertenceriam exclusivamente mas qualquer um seria igualmente filho de outro qualquer; em consequência, todos os pais menosprezariam todos os filhos”. (Pol., 1261 b , 35-40; 1262 a). “Se as mulheres e os filhos são em comum, pouco afecto haverá entre eles, sendo que o afecto [philía] entre os governados é necessário para que permaneçam obedientes e não se insubordinem”. (Pol., 1262 a35 – b. 19 “Existem duas coisas que fazem com que os seres humanos sintam solicitude e amizade exclusivas: a propriedade e a afeição. Ora nenhum destes móbeis ocorre nos que vivem no regime referido” (isto, na proposta platônica). (Pol., 1262 b 20). 20 “De tudo isso se vê que é preferível ser primo verdadeiro de alguém, do que seu filho à moda platônica”. (Pol., 1262 a 15). 21 “A legislação platônica, portanto, poderia parecer sedutora e filantrópica. Quem a escutar, acolhe-a com benevolência, pensando que dela resultará uma maravilhosa amizade de todos para com todos, e particular quando atribui a causa de todos os males que existem atualmente nas cidades ao facto de os bens não serem comuns. (Pol., ...) Devemos reconhecer que a causa do erro de Sócrates consiste num suposto incorreto. É que a casa e a cidade devem ser unitárias, mas só até um certo ponto e não em absoluto. Na marcha para a unidade, a cidade atinge um ponto em que deixa de ser cidade, e um outro em que continua a ser cidade, mas à beira de não o ser, ou seja, uma cidade inferior: é como se transformássemos uma sinfonia num uníssono, e o ritmo num único batimento. Mas, como dissemos antes, a cidade é uma pluralidade, que deve ser convertida em comunidade e unidade através da educação. ” (Pol., 1263 b 25-40).

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diversidade é da essência da polis. Para Aristóteles, eliminar a diferença entre os cidadãos seria destruir a polis.22 Com isto, o pressuposto de que a unidade da polis deve-se garantir com fundamentos patéticos deve ser obtido de outro modo. Na filosofia política aristotélica, investigam-se as emoções como princípio de uma cidade concebida como convívio entre partes diversas e contrapostas. Tentemos esclarecer o que isto significa, e ao mesmo tempo entender como as emoções tomam parte da dinâmica política e da tensão que a caracteriza. Há vários tipos de diferenças e de similitudes que marcam as partes da cidade. Em um certo sentido, compreende-se que escravos, mulheres e crianças sejam partes da cidade, e com isto encontramos diferenças com que já nos deparamos na família. Entre os homens livres maiores há ainda os que são cidadãos e os que são estrangeiros. E há por fim entre os cidadãos outras diferenças, decorrentes da etnia, da idade, da ocupação, da educação, da virtude e da riqueza, que são importantes para entender a dinâmica da sociedade política. Aristóteles em regra se refere a estas diferenças em termos de heterogeneidade ou diversidade. Ele chama homoi àqueles que são semelhantes, e de heteroi àqueles que são dessemelhantes em algum destes aspectos. O divisor de águas na instituição de um regime está em determinar qual destas diferenças pode justificar maior ou menor acesso ao poder na cidade.23 Isto é, qual delas é decisiva do ponto de vista político, servindo como critério de acesso e distribuição das magistraturas? Aristóteles argumenta que as tensões e disputas características da sociedade política decorrem de divergências acerca do critério fundador da igualdade e da desigualdade. Trata-se de um jogo entre semelhança/dessemelhança e igualdade/desigualdade que insufla e mantém aceso o debate político. Aristóteles enfrenta este debate, perguntando que tipo de semelhança justifica e exige, do ponto de vista político, a igualdade. Sua conclusão decorre de um raciocínio teleológico. A cidade existe para o bem viver, de sorte que a polis é uma comunidade em vista da virtude. A virtude é aquilo que se compartilha e aquilo em vista de que cada um de nós se associa na polis. Por esta razão, para Aristóteles a semelhança/dessemelhança relevantes na polis respeitam à virtude, e a partir dela deve-se instituir o critério de justiça e de igualdade.24 Isto permite “(...) tentar unificar absolutamente a cidade não é, certamente, o melhor procedimento; uma casa é mais autossuficiente do que um indivíduo, a cidade mais do que a casa; e uma cidade apenas existirá quando a comunidade atingir um quantitativo suficiente. Portanto, se é preferível o mais autossuficiente, também deve preferir-se o menos unitário aos mais unitário”. (Pol. 1261 b 10-15). 23 Para Aristóteles, “todo diferindo provoca divisão na cidade. A divisão maior é a que separa a virtude do vício; segue-lhe a que separa a opulência da penúria (...).” (Pol., 1303 b15-18). 24 A pergunta sobre o que é a justiça e a igualdade é central na política porque remete diretamente à sua função prática: “Em todas as ciências e artes, o fim em vista é um bem. O maior bem é o fim visado pela ciência suprema entre todas, e a mais suprema de todas as ciências é o saber político. E o bem, em política, é a justiça que consiste no interesse comum. A opinião geral é de que a justiça consiste numa certa igualdade. Até certo ponto esta opinião geral está de acordo com os tratados filosóficos onde nos ocupamos das questões éticas. De facto, dizem que a justiça é relativa a pessoas e que deve existir igualdade para os iguais. Mas uma questão que não pode ser ignorada é saber em que 22

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a Aristóteles defender, como sendo o melhor, por natureza, o regime em que os virtuosos tenham acesso às magistraturas – assim como justificará toda a importância que reserva à educação como instituição política. Mas Aristóteles mantém-se lúcido de que esta solução não basta. Lidando com cidades reais, as quais descreve e para cujo bem deve contribuir, a filosofia política depara-se com outras visões sobre o critério da igualdade, as quais efetivamente determinam a dinâmica das sociedades políticas – em que as facções reivindicam participação e poder a partir de diferentes concepções de justiça.25 Dentre todas, a clivagem mais relevante a impulsionar a disputa política é a distinção entre ricos e pobres, que oferecerá o mote para as reflexões desenvolvidas por Aristóteles na sua investigação sobre o melhor regime para pessoas e povos reais. A contraposição acompanha a diversidade característica da polis porque as diferentes partes da cidade têm diferentes visões sobre a justiça e a igualdade. Embora todos concordem com o pressuposto de que a igualdade (isonomia) e a justiça são o fundamento da vida política, divergem na compreensão do que fundamenta a igualdade – e têm, assim, diferentes concepções sobre a justiça.26 Os adeptos da democracia acreditam que a liberdade seja o fundamento da igualdade27, e defendem, por isso, o acesso às magistraturas aos muitos e

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consiste a igualdade e a desigualdade. Isto levanta uma dificuldade e implica uma filosofia política.” (Pol., 1282 b 25-25). 25 Em mais de uma passagem, Aristóteles sugere o caráter invencível desta diversidade de visões sobre a justiça. Vide Ética a Nicômaco, livro V. 26 “Necessitamos de conhecer bem quais são os princípios da oligarquia e da democracia, e quais são as concepções oligárquica e democrática de justiça. Ambos os regimes defendem uma certa concepção de justiça, mas apenas parcial, e nenhum deles se refere à justiça suprema na sua integridade. Por exemplo: já quem considere que a justiça consiste na igualdade. Assim é, com efeito, mas não para todos e apenas para os que são iguais. Outros consideram que é justa a desigualdade, e na verdade assim é, mas unicamente para aqueles que são desiguais e não para todos. Ambos os arguentes ignoram os destinatários dos princípios de justiça e cometem erros de juízo. A razão é que estão a julgar em causa própria, e na maior parte dos casos os homens são maus juízes quando os seus próprios interesses estão em causa. E como a justiça é relativa às pessoas, e uma justa distribuição é aquela em que os valores relativos das coisas correspondem aos das pessoas que as recebem – ponto que já tratamos na ética – os que advogam a oligarquia e a democracia concordam no que constitui a igualdade das coisas, mas discordam no que constitui a igualdade dos indivíduos. A razão foi já mencionada, a saber: julgam mal em causa própria. Mas existe ainda uma outra razão: estão induzidos em erro porque falam de uma justiça relativa mas presumem estar a falar da justiça absoluta. Uns presumem que a desigualdade num aspecto – por exemplo, a riqueza – implica desigualdade em tudo; os outros acreditam que a igualdade num aspecto – por exemplo a liberdade – significa igualdade em tudo”. (Pol., 1280 a 10- 25). “(...) partindo do princípio de que todos estamos de acordo que a justiça, exercida de um modo absoluto visa a igualdade segundo o mérito, surgem divergências porque (...) alguns, sendo iguais em certos aspectos, presumem ser iguais em tudo, ao passo que outros, sendo desiguais nalgum ponto, reclamam para si mesmos uma total desigualdade em todas as coisas” (Pol., 1301 b 35-39). 27 “O fundamento do regime democrático reside na liberdade” (Pol., 1317 a 40).

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pobres.28 Basta ser livre para ser igual. Já os adeptos da oligarquia acreditam que a propriedade seja o fundamento da igualdade, e assim pretendem limitar o acesso ao poder apenas aos poucos e ricos. Esta diferença entre as visões sobre a justiça parece invencível. Aristóteles não postula uma concepção de justiça que possa ser comungada por todos. Na sua descrição, a cidade mantém-se marcada pela diferença de perspectivas, e portanto em tensão e confronto. Embora seja claro que estas visões são erradas porque são parciais29 – às quais contrapõe uma concepção de justiça absoluta, que leva em consideração o todo e não apenas as partes30 – Aristóteles não postula em nenhum momento que tal visão possa ser – ou deva ser – compartilhada por todos para que a cidade funcione bem. Em vez disso, Aristóteles concebe a estabilidade da cidade a partir destas tensões, compreendidas como ínsitas à vida política. Deste modo, sua visão sobre como as emoções atuam na política, a contribuir para a manutenção da polis ou para sua destruição, deverá ser bem diferente da de Platão. Para Platão (na descrição que Aristóteles oferece na Política), as emoções cimentam a sociedade, mantendo-a unida, na medida em que as divergências se aplacam pela generalização dos laços de amizade entre todos. Sendo todos irmãos, pais ou filhos uns dos outros, e tornando-se a polis uma família em que tudo pertence a todos, deixa de haver disputas porque deixa de haver diversidade – a permanência da polis se obtém pela eliminação da “(...) a democracia teve origem devido àqueles que se sentiam iguais num determinado aspecto, se convencerem que eram absolutamente iguais em qualquer circunstância; deste modo, todos os que são livres de um modo semelhante, pretendem que todos sejam, pura e simplesmente, iguais. A oligarquia, por seu turno, nasceu do facto de aqueles que são desiguais num aspecto, supõem ser inteiramente desiguais: sendo diferentes pelas posses, têm a pretensão de ser absolutamente desiguais aos demais. ” (...) Não há dúvida de que a cada um destes regimes subjaz um certo teor de justiça; contudo, ambos se encontram induzidos em erro, falando em absoluto, sendo por este motivo que cada uma destas tendências entra em conflito quando a sua participação no governo da cidade não corresponde às ideias que cada qual defende”. (Pol., 1301 a 32-35) 29 “(...) claro que todos os que debatem os regimes, enunciam uma concepção parcial de justiça” (Pol., 1281 a 9-10). 30 “Mas nenhum deles consegue dizer o essencial. De facto, se os homens se reuniram em comunidades por causa das riquezas, a participação na idade deveria ser proporcional à participação na riqueza. Neste caso, o argumento dos oligarcas parece forte: não é justo que num capital de cem minas, aquele que deu uma só mina obtenha uma parte igual ao que contribuiu com as restantes, que no que se refere à soma inicial, quer ao lucro. Porém, os homens não se associaram apenas para viver mas sobretudo para a vida boa. (...) A conclusão clara é a de que a cidade que é verdadeiramente cidade, e não apenas de nome, deve preocuparse com a virtude.” (Pol., 1280 a 25 – b 10) (...) “A cidade é constituída pela comunidade de famílias em aldeias, numa existência perfeita e autossuficiente; e esta é, em nosso juízo, a vida feliz e boa. É preciso concluir que a comunidade política existe graças às boas ações, e não à simples vida em comum. Aos contribuem mais para este tipo de comunidade, cabelhes uma maior parte na cidade do que àqueles que lhes são iguais ou mesmo superiores em nascimento e liberdade, embora inferiores em virtude cívica; e cabe-lhes mais do que àqueles que os superam em riqueza mas não em virtude.” (Pol., 1281 a 1-10). 28

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diferença e do conflito. Já a cidade aristotélica não se pode reduzir a uma família. Ela se mantém plural, dividida, em tensão, e o desafio de garantir a sua unidade deve-se compreender a partir desta imagem. Nossa proposta, neste artigo, é entender como as emoções colaboram para este desiderato.

Os diferentes usos e aplicações da Filosofia Política O filósofo político, assim como o preparador físico, não deve ser capaz apenas de dar conselhos ao melhor por natureza. É claro que isto também faz parte das suas competências: assim como o educador físico sabe identificar e orientar os atletas de grande talento e excepcional condição física, a filosofia política saberá definir e dizer o que convém ao melhor regime político. Mas este regime não é aplicável para todas as cidades – assim como a dieta e o treinamento do superatleta não são adequados para homens e mulheres comuns. Com ambições menores, mas com um âmbito de aplicação mais vasto, o político e o educador físico sabem lidar também com as pessoas tal como elas via de regra são. A filosofia política deve ser capaz, por isso, também de orientar bem as cidades que, não contando condições naturais perfeitas (sejam geográficas, sem humanas), são, no entanto, as cidades reais em que vivemos. Numa terceira aplicação ainda, o treinador físico também sabe ajudar as pessoas que não têm o melhor corpo e nem mesmo um corpo bom, mas que desejam atingir algum objetivo. Analogamente, a filosofia política saberá o que convém à conservação mesmo dos regimes políticos maus, como a tirania. Estas observações sobre os usos ou âmbitos de aplicação da filosofia política são importantes para entender todo o tratado da Política. Ali, às vezes Aristóteles fala como o treinador do superatleta, explicando qual o melhor regime político, seus requisitos e as formas de construí-lo ou conservá-lo – embora ele não seja possível para a maior parte das pessoas e dos povos. Neste horizonte é que se enquadram, provavelmente, suas indicações acerca dos regimes retos, em que o governo pertence à lei e não aos homens – e se situa a afirmação de que o melhor regime é a politeia, em que os muitos virtuosos governam, ou a monarquia, em que apenas um, por ser mais virtuoso que todos os demais, governa. Mas quando se trata das cidades reais, a classificação dos regimes deixa de ser tripartite (monarquia, aristocracia e politeia, com seus desvios: tirania, oligarquia e democracia), para ser bipartite: democracias e oligarquias, observando as configurações básicas que decorrem da principal clivagem a marcar as cidades, a riqueza. Democracia é o regime onde os muitos e pobres governam, e oligarquia o regime em que governam os poucos e ricos.

Considerações finais 24

São importantes e complexas as relações entre os diferentes planos da investigação política. Com certeza que o saber sobre os melhores regimes,

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embora de verificação histórica incomum, não é utópico e sem aplicação prática. Sua compreensão torna possível compreender a natureza da comunidade política (porque para conhecer a natureza de algo é preciso observar o que se passa com seu representante completo e bem formado), em suas diferentes possibilidades. A partir disso, o conhecimento sobre o melhor regime por natureza torna possível compreender o que se passa com as comunidades em que não estão presentes as melhores condições de desenvolvimento, e mesmo a aconselhar os maus regimes, com vista aos objetivos que se proponham. Situa-se talvez na zona limítrofe entre os dois usos mais elevados da filosofia política, a defesa que Aristóteles faz da multidão como o juiz mais apto a julgar, quando a lei não é capaz de fazê-lo bem, ou de fazê-lo de qualquer forma. Num regime reto, a decisão e o governo cabem à lei e não ao homem, por um motivo francamente patético: a paixão – o ódio ou a amizade – tornam os homens parciais, deturpando seus julgamentos. Por isto ela deve ser afastada como critério do julgar, e em seu lugar deve-se recorrer apenas à razão. Mas a lei tem limites em sua capacidade de indicar corretamente o meio termo em cada situação prática, decorrente da sua generalidade. A lei não pode compreender todos os fatos, e surge a questão sobre quem deve julgar os casos cuja particularidade torna a lei inadequada. Quem tem condições de decidir, então, com justiça? A resposta de Aristóteles é clara: a multidão deve julgar, porque tem melhores condições intelectuais, morais e emocionais de fazê-lo. A argumentação aqui é essencial para entender a preferência de Aristóteles pela democracia, quando se trata de situações não ideais, mas comuns, em que vivem as cidades reais.31 O argumento de Aristóteles pode não ser convincente, mas é claro: os muitos, reunidos, têm sempre mais inteligência, mais virtude32 e melhor emotividade que qualquer um, ou qualquer grupo, isoladamente considerado, e por isso julga melhor. Nosso interesse, neste estudo, volta-se para o papel da emoção no pensamento político aristotélico, e aqui encontramos um argumento que ela é decisiva. No que respeita à emoção, a multidão deixa-se mover menos facilmente, ou por menos tempo, por rompantes emocionais, e por isso se aproxima mais da lei, que é considerada razão despida de emoção, enquanto critério do governo e da decisão. Nas situações em que o homem deve decidir e não a lei – que ocorre não apenas nos regimes das cidades reais em que a virtude não é a regra, e que portanto governa o homem e não a lei, mas também na hipótese do governo da lei, eis “Assim se resolveria o problema levantado no capítulo anterior “quem deve governar?” e o problema que se segue “sobre quem deve ser exercida a supremacia dos homens livres e da massa dos cidadãos?”, entendidos estes como os que não têm riquezas nem qualquer virtude. A participação em magistraturas supremas não isenta de risco, dado que, por vezes, a injustiça leva a cometer delitos, noutras vezes a imprudência leva a cometer erros. Mas, de um ponto de vista, existe um sério risco em não os deixar participar no exercício do poder. É que uma cidade onde existe um grande número de cidadãos sem honras e sem riqueza deve, necessariamente, ser uma cidade cheia de inimigos”. (Pol., 1282 b 20-33). 32 “(...) a maioria pode ter uma alma tão virtuosa quanto um só indivíduo” (Pol., 1286b 1-3). 31

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que a lei, por ser genérica, não é capaz de regrar bem todos os casos particulares, convocando-se o homem para decidir – a emoção ajuda a fundamentar a posição aristotélica de que o melhor regime é o democrático, por deixar decidir quem está mais emotivamente mais apto a fazê-lo – a multidão.

Referências bibliográficas ARISTOTLE. Metaphysics. Trad. Hugh Tredennick. Cambridge: Harvard University Press, 1989. ______________(a). Nicomachean Ethics. Trad. H. Rackham. Cambridge: Harvard University Press, 1934. ______________(b). Politics. Trad. H. Rackham. Cambridge: Harvard University Press, 1944. ______________(c). Topics. Books I and VIII. With excerpts from related texts. Trad. Robin Smith. Oxford: Clarendon Press, 2003. ______________(d). Eudemian Ethics. Trad. H. Rackham. Cambridge: Harvard University Press, 1981.

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Processo Penal e Democracia Sebastião Sérgio da Silveira1 Ricardo dos Reis Silveira2

Introdução A autonomia do Direito Processual Penal tardou a ser reconhecida. Não raro, ainda nos dias atuais, são comuns confusões principiológicas com o Direito Penal, de forma a dificultar a percepção de suas funções em um sistema jurídico. De forma contrária do Direito Penal, que informa uma das mais agudas prerrogativas estatais de intervenção na esfera privada do cidadão, o Processo Penal deve ser visto e reconhecido como um poderoso instrumento de proteção do cidadão contra a força opressiva do Estado. Modernamente, o Processo Penal se presta quase que exclusivamente a conter o arbítrio. Tanto é verdade que o seu princípio matriz – due processo law – garante ao acusado o direito do estrito cumprimento de modelos procedimentais pré-estabelecidos em lei. A história do Processo Penal foi sempre foi pautada por avanços e retrocessos. No Brasil, após um longo e difícil processo de afirmação de direitos e garantias processuais, o momento atual indica uma inflexão de trajetória, com retrocessos nunca antes imaginados.

A Concepção de Estado e seus Reflexos no Processo Penal O homem, desde os primórdios dos tempos, se organizou em sociedade, conformando suas instituições por orientações políticas próprias. Com isto, nasceu o Estado, sempre organizado de acordo com experiências e necessidades históricas. Dentro de sua evolução política, o Estado registra particulares concepções de poder; de relações entre governantes e governados e diferentes formas de governo. Essas, por sua vez, revelaram diferentes tratamentos dos deveres, liberdades e garantias do cidadão frente ao Estado. Toda a história do homem parece evidenciar a busca incessante pela liberdade. Desta forma, todos os sistemas de governo até hoje concebidos, possuem seus traços diferenciadores, no maior ou menor grau de liberdade dos cidadãos, somados ao equivalente nível de garantias individuais e coletivas. 1

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Mestre e Doutor pela PUC/SP. Pós-Doutorado na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professor na Universidade de Ribeirão Preto – UNAERP e na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – FDRP/USP. Promotor de Justiça. Mestre e Doutor pela UFSCAR. Pós-Doutorando na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professor da Universidade de Ribeirão Preto – UNAERP e Centro Universitário de Barretos – UNIFEB. Advogado.

Processo penal e democracia

Nessa perspectiva, do longo processo histórico, nasceu o Estado. Inicialmente, uma instituição totalitária, a serviço de poucos e, após longo e sangrento desenvolvimento, progrediu para o moderno Estado de Direito, que segundo Karl Larenz3, é aquele cujo valor principal reside na dignidade humana. Igualmente, para Gomes Canotilho, não passa de uma “ordem de domínio legitimada pelo povo”4, como conhecido em todos os quadrantes do planeta. Não obstante, seria impossível encontrar dois Estados absolutamente idênticos em sua estrutura e funcionamento. Tais diferenças decorrem exatamente das peculiaridades dos processos históricos a que cada um deles enfrentou. As múltiplas concepções políticas de Estado refletem-se em suas instituições e estas, por seu turno, vão determinar um regramento autoritário ou democrático para o seu povo, segundo o grau de liberdade e nível de respeito aos direitos fundamentais do homem. Em outras palavras, conforme observado com propriedade por Roxin, Gunther e Tiedemann, a formulação de todo o processo penal é feita de acordo com o modelo constitucional e o espírito da época5. Acrescente-se que tais concepções políticas de Estado, acabam refletindo, de forma marcante, na estruturação do Poder Judiciário e no perfil do processo aplicado. Tanto isto é verdade que sempre será possível associar o “processo acusatório” às democracias e o “processo inquisitivo” a sistemas totalitários de governo. Sobre tal questão, assevera com propriedade Mittermaier: “Quem estuda a história destas duas formas, terá a demonstração de quanto sobre os seus desenvolvimentos pode influir a organização da sociedade política, e verá que onde reina a democracia domina o processo de acusação. Com este regime, vê o povo em qualquer acusação contra um cidadão, um ataque perigoso à liberdade civil e individual, e mostra-se receoso do poder, a quem pode esta acusação fornecer armas; então esforça-se por aumentar, tanto quanto lhe dado, as garantias existentes contra todos os abusos possíveis; não vê no processo criminal senão a questão política, e despreza muitas vezes a questão puramente jurídica. A forma da inquirição pertence ao contrário, principalmente ao sistema monárquico; adquire o seu desenvolvimento nos Estados em que o movimento das ideias políticas é refreado por um poder ativo central, e que leva ao infinito o impulso a agentes subordinados que em todos os sentidos distribui..” 6 LARENZ, Karl. Derecho justo. Fundamentos de la etica juridica. Trad. Luis DiezPicáso. Madrid: Civitas, 1993, p. 151, onde sustenta: “Esto se aplica especialmente al principio fundamental del respeto, de la atención de la dignidad del hombre o de los derechos humanos que de ello derivan...,” 4 CANOTILHO, Gomes J.J. Direito Constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 1998, p. 92: “(...) uma ordem de domínio legitimada pelo povo. A articulação do ‘direito’ e do ‘pode’ no Estado constitucional significa, assim, que o poder do Estado deve organizar-se e exercer-se em termos democráticos. O princípio da soberania popular é, pois, uma das traves mestras do Estado constitucional.” 5 ROXIN, Claus; ARZT, Gunther; TIEDEMANN, Klaus. Derecho penal y derecho penal procesal. Trad. Luis Arroyo Zapatero. Barcelona: Ariel, 1989, p. 140. 6 MITTERMAIER, Karl Joseph Anton. op. cit., pp. 34/35. 3

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Florian, da mesma forma, não discrepa de tais conclusões, ao lembrar-se das democracias antigas da Grécia e Roma, que floresceram sob o pálio do processo acusatório e, em seguida, vem o absolutismo, com monarcas coniventes com autoridades eclesiásticas, impor a inquisição, que perdurou até a Revolução Francesa7. Diante disto, impõe-se lembrar, conforme asseverado por Jesus Inácio Garcia Valencia8, que as instituições processuais se moldam de conformidade com as mudanças políticas. Elas refletem a ideologia imperante em um momento histórico determinado. O certo é que, atualmente, não existe procedimento exclusivamente acusatório ou inquisitivo. Na verdade, os princípios prevalentes de um ou de outro sempre tendem a configurar o chamado sistema misto. Nos Estados com orientação totalitária, são mais sensíveis as características do sistema inquisitivo. Do contrário, quanto mais democrático for o Estado mais presentes estarão os traços identificadores do processo acusatório. O Estado funciona, desta forma, como um ente regulador e executor das atividades processuais. No exercício de tais atribuições, cabe-lhe a tutela dos interesses coletivos, na medida em que busca punir o criminoso e desestimular o crime. Compete-lhe a obrigação de proteger o cidadão contra investidas abusivas de seus agentes. A superação de tal dicotomia e a manutenção do equilíbrio, somente são possíveis dentro de um Estado Democrático de Direito. Atualmente, conforme preleciona Marco Antonio Marques da Silva: “A noção de Estado de direito representou nas suas primeiras manifestações, a busca de um ideal institucional ou de uma realidade espiritual dirigida a proteger o cidadão com sua liberdade, seus valores, assim como seus direitos inatos adquiridos frente a eventuais abusos por parte dos detentores do poder político.”9

Outrossim, conforme oportuna conclusão de Larenz10, a principal função do Estado de Direito é a autolimitação de seu próprio poder, inclusive no campo penal, evitando que o Estado, como o monstro Leviatã idealizado por Thomas Hobbes, possa esmagar o indefeso cidadão. Dentro do Estado de Direito, o processo penal acaba funcionado, conforme lembrado de Bettiol11, como o guardião dos valores éticos, sobre o qual o direito repousa. FLORIAN, Eugenio. op. cit., pp. 30-32. GARCÍA VALENCIA, Jesús Ignacio. Las pruebas en el proceso penal. Bogotá: Gustavo Ibañez, 1996, p. 23. 9 MARQUES DA SILVA, Marco Antonio. Juizados Especiais Criminais. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 06. 10 LARENZ, Karl. op. cit., p. 158, afirmando: “La primera solicitación del Estado de Derecho es la limitación del poder, la prevención del posible abuso de poder del que eventualmente domine y la vinculación al Derecho.” 11 BETTIOL, Giuseppe. Instituciones de derecho penal e procesal. Trad. Faustino Gutiérrez-Alviz y Conradi. Barcelona: Bosch, 1977, p. 182: “Bajo tal aspecto el proceso penal puede, por tanto, entenderse como instrumento de tutela delos valores éticos (justicia) sobre los que el Derecho reposa. Quitados en medios estos valores éticos el proceso puede terminar en el arbitrio y en el terror.” 7

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Constitucionalização e Internacionalização do Direito Processual Penal A partir da segunda metade do Século XX, em quase todas as partes do mundo acentuou-se a tendência de constitucionalização das garantias fundamentais. Segundo Joan Picó i Junoy12, dentro desse processo de constitucionalização dos direitos fundamentais da pessoa humana, foi estabelecida a tutela das garantias mínimas que deve possuir o processo judicial. Esse fenômeno ocorreu em razão da necessidade de serem evitadas alterações casuísticas no ordenamento infraconstitucional, com a criação de regras de exceção em prejuízo dos postulados fundamentais que informam a dignidade das pessoas. Ainda segundo o mesmo autor espanhol, “A finalidade última do fenômeno da constitucionalização das garantias processuais não é outra senão buscar a tão pretendida Justiça, reconhecida em nossa Carta Magna como valor máximo do ordenamento. O processo converte-se, desse modo, como aponta Eduardo Couture, ‘em meio de realização da justiça”.13

Em outras palavras, o conteúdo de garantias processuais inserido na Constituição é sempre o mínimo que cada Estado opta por dar aos seus cidadãos. O mais é feito na legislação infraconstitucional. Tal constitucionalização de garantias processuais também se justificou como forma de impor “ao Estado e à própria sociedade o respeito aos direitos individuais”.14 Nessa perspectiva, o Brasil, conforme lembrado por José Afonso da Silva, foi o primeiro país do mundo e dar concreção jurídica aos direitos do homem, através da sua Constituição Imperial de 1.82415, sendo que essa tradição se manteve ao longo do tempo, até a nossa última Carta. Seguindo as tendências observadas nas reformas constitucionais da França, da Itália, Alemanha e Portugal, o constituinte Brasileiro de 1988 foi caprichoso no cuidado com o elenco das garantias processuais inseridas na nova Carta Republicana. Tal cuidado permitiu-lhe extrapolar todos os parâmetros reformistas até então observados, para escrever um dos mais consistentes capítulos relativos aos direitos fundamentais do processo e transformar nossa Constituição, nessa parte, na mais moderna do mundo. O avanço na constitucionalização das garantias processuais se esgotou e não foi suficiente para evitar grandes tragédias. A história da humanidade JUNOY, Joan Pico i. Las Garantías constitucionales del proceso. Barcelona: Bosch, 1997, p. 17. 13 JUNOY, Joan Pico i. op. cit., p. 21. 14 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. São Paulo: RT, 1.999, p. 11. 15 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 6ª ed. São Paulo: RT, 1.990, pp.149/151. 12

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está permeada de exemplo de processos e julgamentos vergonhosos, todos eles realizados com vistas ao atendimento de conveniências e interesses pessoais dos mandatários do poder. Antonio Magalhães Gomes Filho aponta os horrores da II Grande Guerra e, principalmente as violências praticadas pelos nazistas e fascista como sendo o elemento desencadeador da consciência segundo a qual as garantias processuais deveriam transcender os ordenamentos locais, para ganhar relevo nos textos internacionais de direitos humanos.16 A internacionalização dos direitos do homem, que teve início na primeira metade do Século passado, sempre reservou um papel de destaque para as medidas protetivas, no âmbito do processo penal, com vistas à proteção do cidadão contra a força opressiva do Estado. Essa tendência se iniciou com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada pela Assembleia Geral da ONU em 1.948, afirmou garantais processuais básicas, como o princípio do estado de inocência, a necessidade de prova da culpabilidade e a garantia de acesso aos meios de defesa.17 Posteriormente, a Convenção Europeia, firmada em 1950, foi muito além e cogitou expressamente de um sistema de garantias que até hoje pode ser considerado extremamente evoluído (arts. 5º, 6º e 7º). O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, aprovado pela ONU em 1966, reafirmou os direitos e garantias anteriores e indicou diversos avanços em matérias processuais. No mesmo sentido, a Convenção Americana dos Direitos do Homem, firmada em São José da Costa Rica, em 1969 e promulgada no Brasil pelo Decreto nº 679, de 06 de novembro de 1.992, estabeleceu um completo sistema de proteção aos direitos humanos para os seus estados membros, incluindo as garantias judiciais previstas em seu art. 8º, que para nós consolida e inova com relação às já consagradas em nosso país. Influenciada por todo esse plexo garantístico, a Constituição Brasileira de 1988 reiterou diversas garantias penais e processuais já existentes em outros e inovou em outras tantas, de forma a ser considerada como uma das mais avançadas do mundo, em termos de proteção a pessoa humana, tanto que ficou conhecida como a “Constituição Cidadã”. Referidos textos evidenciam a preocupação internacional de garantias no processo penal, como condição essencial para que fique assegurado o respeito à liberdade e, em última análise, à própria dignidade humana. Destaque-se que a grande virtude da consagração de tais garantias em constituições e documentos internacionais é o aumento das dificuldades para alterações legislativas casuísticas, que tenham por objetivo a restrição de direitos, principalmente em períodos de ditaduras e governos autoritários. 16

GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Direito à prova..., p. 72 Art. 11, 1: “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se prove sua culpabilidade, conforme a lei e em juízo público no qual sejam asseguradas todas as garantias necessárias à defesa.”

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Cenário do Processo Penal Brasileiro Contemporâneo O processo penal brasileiro experimentou uma fase de extraordinário desenvolvimento, principalmente após o advento da emancipatória Constituição da República de 1988. Com ela, veio o convencimento de que estávamos na fase final de um sistema verdadeiramente acusatória, com a eliminação das amarras que ainda nos prendiam ao modelo inquisitivo. As mudanças não se esvaíram nas novas garantias criadas ou elevadas ao status constitucional com a nova Carta Republicana. Acima de tudo, a nova ideologia constitucional obrigou os operadores e estudiosos à profundas reflexões sobre o modelo processual penal até então aplicado no país. Até hoje existe o convencimento de que o nosso vetusto Código de Processo Penal não mais atende aos anseios da sociedade e a nova topografia constitucional imprimida a partir de 1988. A sua inspiração ainda é a do velho Código Rocco Italiano, editado em 1.930 e que foi revogado em 1988. Reformas pontuais foram realizadas com vistas à sua adaptação ao novo modelo. Todavia, conforme é mais do que sabido, o sistema imposto por uma codificação somente é rompido com a edição de um novo código. Embora o Senado Federal já tenha aprovado um projeto com um novo código (PL nº 8045/10, com vários outros apensados), a iniciativa continua com andamento praticamente paralisado na Comissão Especial da Câmara dos Deputados. Dentre as várias inovações legislativas advindas após 1988, merecem destaques a Lei nº 11689/08, que reformou os procedimentos e a Lei nº 11403/11, que alterou o sistema de prisões provisórias e criou as medidas cautelares pessoais, para aplicação em substituição às prisões. A Constituição, a nova mentalidade, as inovações legislativas pontuais e, principalmente a nova postura dos Tribunais Brasileiros, animou os otimistas a concluir apressadamente que, de fato, estávamos próximos da concretização do sonho de implantação de um sistema processual verdadeiramente acusatório, com a eliminação das matrizes autoritárias que mantinham ligadas ao modelo inquisitivo. Embora seja difícil reconhecer, o fato é que o otimismo daqueles momentos de glória parece ter se transformado em perplexidade. Os arroubos autoritários de forças conservadores ressuscitaram velhos fantasmas e estão transformando a realidade construída ao longo de muitos anos de lutas. O momento parece ser de grande retrocesso e risco para a nossa jovem democracia.

Apontamentos sobre alguns dos retrocessos ocorridos nos últimos anos

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O dinamismo do desenvolvimento de uma área do direito dificulta a sua contextualização histórica geral à luz da multiplicidade de eventos, mas permite a extração de flashes de um dado momento histórico, como esse que vivemos na atualidade no Brasil. Vejamos alguns deles:

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A Negativa do Direito de Recorrer em Liberdade e a Execução Provisória da Pena Após o advento da Constituição de 1988, um dos mais ferrenhos debates travados na doutrina e na jurisprudência dizia respeito ao direito de recorrer em liberdade, em face do princípio do estado de inocência contemplado na Nova Carta e o disposto nos revogados artigos 594 e 595 do C.P.P., que somente permitiam o recurso em liberdade em situações excepcionais. O primeiro round da batalha foi perdido e o valor constitucional não foi considerado. Nesse sentido, foi editada a Súmula nº 09 do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que a exigência de prisão provisória não violava o princípio constitucional18. Somente após muita discussão, o Supremo Tribunal Constitucional passou a acenar com a inconstitucionalidade do revogado artigo 594 do C.P.P, decidindo que “O princípio da não culpabilidade exclui a execução da pena quando pendente recurso, muito embora sem eficácia suspensiva”. 19 Posteriormente, por seu Pleno, o Pretório Excelso consolidou o entendimento segundo o qual “A LEP condicionou a execução da pena privativa de liberdade ao trânsito em julgado da sentença condenatória. A CB de 1988 definiu, em seu art. 5º, LVII, que ‘ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. 20 Diante de tal posicionamento da jurisprudência os artigos 594 e 595 do C.P.P. foram revogados pelas     Leis nºs.11719/08 e 12403/11, indicando um encerramento do debate a respeito do tema. Não obstante, o Plenário do S.T.F., no julgamento do H.C. 126.292-SP, em 17 de fevereiro de 2.016 reformulou seu entendimento e entendeu cabível o início da execução da pena (provisoriamente) após a decisão de segunda instância de condenação ou confirmatória de condenação. Após a prolação de tal decisão, iniciou-se em todo o país uma grande caça às bruxas, com juízes e tribunais se apressando em expedir mandados de prisão em processos com decisões condenatórias proferidas ou confirmadas em segunda instância, antes, portanto, o trânsito em julgado de tais decisões. Esse quadro, inaugurado com a referida decisão do S.T.F. é profundamente lamentável não só porque se faz tábula rasa do princípio do estado de inocência (C.F., art. 5º, LVII), mas também porque se nega vigência ao disposto no caput do artigo 105 da Lei de Execução Penal21, que expressamente exige o trânsito em julgado para a expedição da guia de recolhimento e início da execução penal. Súmula nº 09. A exigência da prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção de inocência. 19 S.T.F., HC 88.276. Rel. Min. Marco Aurélio, 1ª T, DJ de 16.3.2007. 20 S.T.F., HC 84.078, Rel. Min. Eros Grau, TP, DJE de 26-2-2010. 21 Art. 105. Transitando em julgado a sentença que aplicar pena privativa de liberdade, se o réu estiver ou vier a ser preso, o Juiz ordenará a expedição de guia de recolhimento para a execução. 18

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Excesso de Prisões Provisórias Como deve ocorrer em todo sistema processual minimamente garantista a regra deve ser sempre a prisão pena, decorrente de decisão criminal definitiva, sendo que a prisão provisória deve ser reservada para situações rigorosamente excepcionais, “dês que tal restrição se faça com comedimento, dentro dos limites do indispensável, do necessário, e, assim mesmo, cercada das reais garantias para que se evitem extralimitações do Poder Público”.22 Visando a garantia da excepcionalidade da prisão provisória, houve reforma de todo o seu capítulo do C.P.P. pela Lei nº 12403/11, cuja principal alteração foi a criação de diversas medidas cautelares pessoais, com o escopo de substituir a prisão preventiva, como instrumentos intermediários, “para que o acusado não precise mais ir do céu ou inferno ou vice-versa”.23 Não obstante, na prática, o valor constitucional da liberdade e a excepcionalidade da prisão provisória não estão sendo observados e a realidade constatada em todo país é perversa. O país que possui a terceira maior população carcerária do mundo (sendo superado somente por Estados Unidos e China), tem mais de 41% (quarenta e um por cento) de presos provisórios, muitos encarcerados há mais de um ou dois anos, sem a prolação de sentença de primeira instância, conforme relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados sobre o Sistema Prisional24. Após a decisão do Supremo Tribunal Federal que entendeu cabível o início da execução após a decisão de segunda instância, a tendência é que esse quadro se agrave, com aumento expressivo do número de presos provisórios e agravamento daquela proporção. Diante desse escandaloso quadro, a única alternativa apresentada foi a decisão do Conselho Nacional de Justiça (Resolução nº 213/15), que mesmo sem qualquer tipo de previsão em lei, com clara violação ao princípio do devido processo legal, determinou a implantação em todo Brasil das chamadas audiências de custódia, com a exigência de imediata apresentação do preso em flagrante ao Juiz, para decisão sobre a prisão em flagrante (decretação de preventiva, medida cautelar ou liberdade provisória). Além da prisão preventiva, a prisão temporária também tem sido utilizada de forma abusiva, contrariando as suas finalidades legais. Instituída pela Lei nº 7960/89, a prisão temporária somente pode ser decretada com a combinação da hipótese prevista no inciso III (crimes taxativamente enumerados) com o inciso I (imprescindível para investigação) ou TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 650. 23 AMARAL, Cláudio do Prado e SILVEIRA, Sebastião Sérgio da. Prisão, Liberdade e Medidas Cautelares no Processo Penal. Leme: JH Mizuno, 2012, p. 22. 24 Câmara dos Deputados. Relatório final da CPI do Sistema Carcerário. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=13 66810&filename=REL+2/2015+CPICARCE+%3D%3E+RCP+6/2015. Consulta em 06.06.16. 22

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inciso II (residência ou dúvida sobre identidade) todos artigo 1º da referida lei, conforme a doutrina mais autorizada.25 Não obstante, a realidade é muito diferente. Decretam-se a referida medida restritiva em qualquer tipo de crime. Além disso quase nunca se especificam os motivos que os levaram à sua decretação. Quando muito se encontram vagas referências à imprescindibilidade para investigação, mas sem especificar ao menos a diligência investigatória que reclama a prisão cautelar. Na prática, foi transformada em artifício para demonstrações de força da polícia e exibições espetaculares de pessoas sendo presas. Na maciça maioria das vezes, o investigado é preso para interrogatório. Isso mesmo, prisão para interrogatório, isto porque a única providência adotada pela polícia durante o tempo da privação da liberdade é a oitiva do suspeito. Por vezes, camuflado em um inocente pedido de prisão temporária existe o inescondível propósito de obtenção de confissões extrajudiciais. Por certo, submetida ao cárcere prematuro, o investigado tem diminuída a sua autoestima e capacidade de resistência, de forma que se dispõe muito mais facilmente a atender ao clamor da autoridade, sempre ávida pela obtenção da confissão. A permissividade com que a maioria trata esse escandaloso quadro de prisões provisória é um dos mais claros sinais de que o sistema de garantias existentes em nosso pais caminha para o estrangulamento.

Condução Coercitiva de Suspeitos para Interrogatórios Policiais A possibilidade de condução coercitiva do acusado, por determinação judicial, está prevista no artigo 260 do CPP. Não obstante, tal previsão é anterior ao advento da Constituição de 1988 e, por ela não foi recepcionada. Tal ocorre porque a nova ordem constitucional introduziu a garantia ao silêncio ao acusado (art. 5º, inciso LXIII), de forma que a ausência é uma das formas de manifestação de tal prerrogativa. Tanto é facultada a ausência do acusado, que a sua ocorrência permite a continuidade do processo à sua revelia (CPP, art. 367). Da mesma forma, como decorrência lógica da garantia ao silêncio, reconhece-se o “nemo tenetur se detegere” (direito de não produzir prova contra si mesmo). Nessa perspectiva, permitir-se tal condução implicaria em negativa de tal direito. Nesse mesmo sentido, a Convenção Americana dos Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), que foi recepcionada em nosso sistema jurídico como norma constitucional (CF, art. 5º, §§ 2º e 3º), em seu artigo 8º, § 2º, alínea “g”, garante à pessoa o “direito de não ser obrigada a depor contra si mesma”. É certo que o Supremo Tribunal Federal já considerou constitucional tal condução (HC nº 107.644-SP). Não obstante, em tal julgamento não houve debate aprofundado sobre a matéria constitucional. Atualmente, pende de julgamento no Pretório Excelso a ADPF 395, onde se discute tal matéria. FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. 5. ed. rev. Atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p.337.

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Ainda que se pudesse cogitar de tal medida constritiva, ela somente se legitimaria na hipótese de negativa de comparecimento do acusado regularmente intimado, na forma da excepcionalidade prevista no dispositivo legal questionado e jamais e situações nas quais ocorre a preterição da intimação e coação ocorre de surpresa. Finalmente, merece ser destacado que, se o contestado artigo 260 do C.P.P. permite a condução coercitiva do acusado para comparecimento perante o Juiz, o mesmo não ocorre com relação à fase policial. Dessa forma, se não se deve permitir a condução coercitiva do acusado na fase do contraditória, releva-se abusiva a execução de tal medida na fase inquisitiva.

Delações ou Colaborações Premiadas de Investigados Presos

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A delação ou colaboração premiada foi introduzida em nosso sistema normativo pela Lei nº 8.072/90 (crimes hediondos) e voltou a ser normada nas Leis nºs. 9.034/1995 (lei do crime organizado), nº 9.613/1998 (lavagem de capitais), nº 9.807/1999 (proteção de vítimas e testemunhas), nº 10.409/02 (lei de tóxicos) e nº 12.850/13 (organizações criminosas). De inspiração nobre, o instituto objetiva o estímulo ao agente que tenha concorrido para uma infração penal (que esteja prevista em um dos diplomas mencionados) o reconhecimento do erro e a colaboração para apuração de detalhes da trama criminosa, possibilitando a identificação de outros agentes. Também não é menos certo que o instituto da delação premiada se constituiu em instrumento decisivo na apuração de grandes esquemas de corrupção e responsabilização de poderosos empresários, políticos e autoridades. Não obstante, as fórmulas utilizadas para as negociações de tais delações receberam ásperas críticas de parte importante dos operadores do direito. Na maior parte dos casos, as tratativas foram realizadas com os delatores presos, muitos há mais tempo que a lei permite e sempre sob a ameaça de gravíssimas condenações. Em contrapartida, aqueles que aceitaram a delação acabaram agraciados com benesses inimagináveis, que praticamente lhes garantiram a impunidade. Esse cenário de colaborações estimuladas é catastrófico. Tal lógica perversa pode se transformar em verdadeiro incentivo para novas práticas criminosas. Basta verificar que nos últimos tempos, criminosos conhecidos ganharam o direito de cumprimento de penas em mansões situadas a beira mar ou em condomínios de altíssimo luxo. Dessa forma, é provável que tais pessoas estejam gozando condições nababescas, custeadas com as verdadeiras fortunas conseguidas com atividades criminosas. Esse cenário é a confirmação da velha máxima, segundo a qual o crime sempre compensa. Em contrapartida, pessoas submetidas a prisões provisórias prolongadas, ao arrepio da lei, acabam por vislumbrar na delação como sendo o único instrumento de se livrarem do cárcere provisório.

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Encarceradas e sem a menor perspectiva de rápida solução de suas situações processuais, tais réus estão nas situações previstas nos artigos 156 e 157 do Código Civil, ou seja, estado de perigo ou lesão, de forma que as suas manifestações podem ser tidas como contaminadas com a mácula da nulidade prevista em referido estatuto. Outro aspecto a ser considerado é que a Convenção Americana dos Direitos Humanos, em seu artigo 8º, alínea “3”, impõe para a validade da confissão, que ela seja feita sem coação de nenhuma natureza26. Ora, uma pessoa presa provisoriamente, sem observância de prazo razoável para a conclusão de seu processo e ameaçada pela prolação de uma sentença penal implacável, não possui a mínima condição de negociar uma confissão cumulada com delação. Dessa forma, nos parece forçoso reconhecer que estamos promovendo, sob aplausos generalizados, um dos maiores retrocessos de nosso processo penal, que sempre caminhou para a concreção de um sistema equilibrado e garantista.

Desobediência ao Princípio do Juiz Natural O princípio do Juiz Natural, expressamente consagrado no art. 5º, inciso LIII de nossa Constituição, também foi transformado em tábula rasa nos dias atuais. Ao que parece, cada um defende como competente o Juiz de sua conveniência, sem nenhum apego às regras legais de fixação de competência. Atualmente são comuns discussões, inclusive no Supremo Tribunal Federal, a respeito de competência. Todas elas são permeadas por conveniência pessoais. Em contrapartida, a resposta da jurisprudência não é das mais adequadas. O próprio STF vem respondendo de forma titubeante a respeito da aplicabilidade da regra prevista no artigo 78, inciso III do CPP, que determina, nas hipóteses de conexão ou continência a prevalência do juízo mais graduado. Em muitos processos, aquele Pretório manteve pessoas sem prerrogativa de foro como rés em processos que envolviam autoridades. Em outros, vem determinando o desmembramento de processos, par remeter à primeira instância os réus sem prerrogativa de foro. Percebe-se que a Corte vem enfrentando dificuldades de aplicar seu entendimento sumulado27, no sentido de que a atração de pessoas sem prerrogativa de foro para a competência de tribunal não viola garantias individuais. Esse quadro provoca uma enorme insegurança jurídica e elevado grau de contestação dos interessados. Não bastasse isso, retomando uma das ideias medievais de Maquiavel, existe a busca de um verdadeiro Juiz Universal, para a persecução de determinados crimes. É o que ocorre, por exemplo, na chamada “Operação Lava a Jato”. No exemplo citado, estão sendo desconsideradas regras comezinhas de competência em relação ao local (ratione loci) e matéria (ratione materiae), para fazer prevalecer o Foro Federal de Curitiba. 3. A confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza. Súmula nº 704 do STF- Não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do coréu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados.

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Processo penal e democracia

Em primeiro lugar, merece registro que nenhum dos crimes que envolvem os processos relacionados com a referida operação policial ocorreram no Estado do Paraná. Pela regra do artigo 70 do CPP, o locus delicti commissi determina a competência ratione loci para o conhecimento e processamento dos referidos processos criminais. Por outro lado, sendo a competência da Justiça Federal taxativa, não seria possível atribuir competência à mesma para o conhecimento e julgamento de que crimes cometidos contra o patrimônio uma sociedade de economia mista (Petrobras), tendo em vista que tal não está previsto no art. 109 da Constituição da República. Nesse sentido, existe a Súmula nº 556 do STF28 e Súmula nº 42 do STJ29, definindo a competência da Justiça Estadual para o julgamento de tais infrações penais. A justificativa da conexão, desprezada pelo próprio STF, para determinar o desmembramento de processos de sua competência originária, também não seria aplicável à maioria dos processos, tendo em vista que aqueles já sentenciados não exercem vis attractiva na forma do entendimento pacificado e sumulado no verbete nº 23530 pelo STJ. Da mesma forma, o STF já decidiu, de forma extremamente coerente, que somente é possível a reunião de processos que estejam em fases processuais semelhantes31. Ora, se a finalidade da alteração de competência que resulta de conexão ou continência é o simultaneus processos, inexiste qualquer justifica legal para fixar a competência do Juízo Federal de Curitiba para o julgamento de todos os processos evolvendo ilícitos praticados em detrimento do patrimônio da Petrobrás.

Breves conclusões O Brasil vive nos dias atuais um clima de “caça às bruxas”. Por mais que seja legítimo o anseio da sociedade brasileira da busca de combate à corrupção e punição por gravíssimos crimes praticados contra o Estado Brasileiro, isso vem provocando um dos maiores retrocessos de nosso sistema processual penal. Garantias há muito reconhecidas e aplicadas, vem sendo objeto de absoluta desconsideração. Aquilo que parecia se limitar a poucos processos, relacionados de acusados de crimes de corrupção, acabou contaminando a maioria de nossos Tribunais, de forma que testemunhamos um raro momento de avanço do Estado sobre as garantias fundamentais, contracenando com o modelo garantista que vinha sendo implementado e sob os aplausos de milhões de pessoas. Súmula 42 do STJ –  Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar as causas cíveis em que é parte sociedade de economia mista e os crimes praticados em seu detrimento. 29 Súmula nº 556 do STF – É competente a justiça comum para julgar as causas em que é parte sociedade de economia mista. 30 Súmula nº 235 do STJ -A conexão não determina a reunião dos processos, se um deles já foi julgado. 31 STF, RHC nº 133.802-DF, Rel. Min. Celso de Melo, j. 12.08.2014. 28

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Sebastião Sérgio da Silveira e Ricardo dos Reis Silveira

Entendemos ser necessária a retomada da consciência jurídica, com a busca do início de uma grande discussão nacional sobre os limites constitucionais impostos ao Estado na persecução penal, como forma de garantir a concreção de garantias conquistadas ao custo de muito sacrifício por milhares de brasileiros.

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Uma Proposta Totalitária de Construção de Cidadania: os Discursos Fascistas de Benito Mussolini Rafael Mario Iorio Filho1 Fernanda Duarte2 Resumo O presente texto tem o objetivo de explicitar, nas relações entre poder, legitimidade, discurso político e construção da cidadania italiana, o papel dos discursos fascistas de Benito Mussolini e das suas categorias de compreensão da realidade italiana do entreguerras, através dos seus “ditos” e dos seus “não-ditos”. Para tanto, articulou-se a metodologia da Análise Semiolinguística do Discurso Político em seus três lugares de compreensão do discurso, no intuito de se vislumbrar as visadas discursivas de Mussolini. Palavras-chave: Análise do discurso; fascismo italiano; Benito Mussolini; nação italiana.

Riassunto Questo articolo è destinato a coprire, nei rapporti fra il potere, la legittimità, il discorso politico e la costruzione della cittadinanza italiana, il ruolo dei discorsi fascisti di Benito Mussolini e le loro categorie di comprensione della realtà italiana tra le due guerre, attraverso i concetti del il “detto” e il “nondetto”, della teoria di Patrick Charaudeau. A tal fine, abbiamo utilizzato la metodologia di Analisi Semiolinguistica del Discorso Politico, dimostrato secondo Charaudeau, in tre luoghi di compreensione (del discorso), che sono: la dottrina politica, gli elementi di legitimazzione e la rettorica politica, con lo scopo di individuare le caratteristiche intrinsiche dei discorsi di Benito Mussolini. Parole-chiave: Analisi del discorso; fascismo italiano; Benito Mussolini; nazione italiana. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Estácio de Sá (PPGD-UNESA). Pesquisador do INCT-InEAC-UFF.   Doutor em Direito pela UGF. Doutor em Letras Neolatinas pela UFRJ. 2 Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Estácio de Sá (PPGD-UNESA). Professora Adjunta da Universidade Federal Fluminense/Faculdade de Direito. Pesquisadora NEDCPD/PPGD-UNESA. Pesquisadora do INCT-InEAC-UFF. Doutora em Direito (PUC/RJ). 1

Uma proposta totalitária de construção de cidadania: os discursos fascista de Benito Mussolini

Introdução Este trabalho apresenta como base conceitual a teoria da Análise do Discurso (Teoria Semiolinguística) de Patrick CHARAUDEAU (2006a, 2006b, 2004), de caráter interdisciplinar, que enfocará a análise do discurso fascista, remetendo-nos aos efeitos pragmáticos e linguísticos dos atos de fala (os discursos de Benito MUSSOLINI entre os anos 1918 e 1930), atentando para o circuito da comunicação política, dividido em três partes de concomitantes influências para a análise. A primeira parte é a produção do discurso, que estabelece o lugar da produção, com as práticas de organização sócioprofissionais e de realização do produto. A segunda caracterizando o discurso como um produto em seu lugar de construção através da organização estrutural e a terceira como o consumo ou recepção do discurso pelo lugar de condições de interpretação, ou seja, o alvo e o público. A proposta investigativa tem por objetivo identificar os elementos constituintes do discurso fascista totalitário e, ao mesmo tempo, visualizar seus efeitos no contexto social, filosófico, cultural e jurídico no período citado. Cabe pontuar que o conceito de política será retrabalhado a partir dos conceitos da Ciência Política (Estado ou manifestações do poder) do teórico italiano Norberto BOBBIO (1997, 1985, 1988 e 1977), de Max WEBER (1964, 2002, 1991, 1977) e a teoria dos Campos de Poder de Pierre BOURDIEU (1989, 1992 e 2004). É importante destacar também que tal pesquisa aborda temas correlatos à Filosofia, à História e ao Direito (no que toca aos estudos vinculados à chamada “teoria do Estado”). Em relação a esses campos de conhecimento, o trabalho distingue-se por não confundir as especificidades de cada uma das ciências mencionadas, mas tratá-las dentro do âmbito das categorias próprias à Análise do Discurso, que nos serviram para explicar a doutrina política fascista, as categorias discursivas de legitimidade para a construção da identidade nacional presente nos discursos de Benito Mussolini, as suas estruturas retóricas e os contratos de comunicação presentes no contexto fascista do entre Guerras. Dessa forma, a Análise do Discurso não questiona sobre a legitimidade e mecanismos produtores da racionalidade e comportamentos políticos, mas sim, acerca dos discursos que tornam possíveis as racionalidades e regulações dos fatos políticos, e por consequência dos fatos jurídicos. (Patrick CHARAUDEAU: 2006a:37). A proposta de análise do discurso político fascista depende de três lugares de produção do sentido para o entrelaçamento do discurso político com a realidade histórica. O primeiro topos é a doutrina ou sistema de pensamento político, que se sustenta em mais dois temas: a dinâmica comunicacional dos atores políticos, que para o presente estudo resumem-se a Benito Mussolini e as pessoas que segundo esse enunciador representariam a italianidade; e sua repercussão nas instituições fomentando uma cultura política, que na perspectiva totalitária do Fascismo será sustentada pela concepção de Hannah ARENDT (1979). O

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Fascismo foi um movimento político da primeira metade do século XX (1919 a 1945) que tem o seu nome derivado de fascio (um machado rodeado de varas), símbolo dos magistrados do Império Romano, como tradutor do poder e da unidade desse povo. O segundo topos se caracteriza pela região ideológica de um discurso político que compreende o processo de identificações imaginárias do conceito de verdades políticas. Benito Mussolini e o povo italiano fazem parte nas diversas cenas de vozes comunicantes de um enredo permeado pelo desafio retórico do reconhecimento social, isto é, o consenso, a rejeição ou a adesão. Suas ações realizam vários eventos: comícios, debates, reuniões, manifestos, ajuntamentos, marchas, e principalmente, a ocupação do espaço midiático, que no contexto italiano concentrou-se pelo uso do rádio, cinema, arquitetura, jornal impresso e o muralismo. Os atores políticos precisam de filiações, estabelecendo organizações que se sustentam pelo mesmo sistema de crença política articuladora de ritos e mitos pela via dos procedimentos retóricos estabelecidos para estes fins desde os antigos helenos. Para ilustrar o desenvolvimento deste segundo topos semântico- retórica- é importante a leitura do seguinte trecho de Patrick CHARAUDEAU (2006:7981), a fim de que possamos demonstrar que esta teoria nos auxilia na explicitação da análise de nossos dados empíricos, tendo em vista que tal exercício enfatiza o caráter político dos discursos: Sendo a política um domínio de prática social em que se enfrentam relações de força simbólicas para a conquista e a gestão de um poder, ela só pode ser exercida na condição mínima de ser fundada sobre uma legitimidade adquirida e atribuída. Mas isso não é suficiente, pois o sujeito político deve também se mostrar crível e persuadir o maior número de indivíduos de que ele partilha certos valores. É o que coloca a instância política na perspectiva de ter que articular opiniões a fim de estabelecer um consenso. Ela deve, portanto, fazer prova da persuasão para desempenhar esse duplo papel de representante e de fiador do bem-estar social. O político encontra-se em dupla posição, pois, por um lado, deve convencer todos da pertinência de seu projeto político e, por outro, deve fazer o maior número de cidadãos aderirem a esses valores. Ele deve inscrever seu projeto na “longevidade de uma ordem social”, que depende dos valores transcendentais fundados historicamente. Ao mesmo tempo, ele deve se inscrever na volátil regulação das relações entre o povo e seus representantes. O político deve, portanto, construir para si uma dupla identidade discursiva; uma que corresponda ao conceito político, enquanto lugar de constituição de um pensamento sobre a vida dos homens em sociedade; outra que corresponda à prática política, lugar das estratégias da gestão do poder: o primeiro constitui o que anteriormente chamamos de posicionamento ideológico do sujeito do discurso; a segunda constrói a posição do sujeito no processo comunicativo. Nessas condições, compreende-se que o que caracteriza essa identidade discursiva seja um Eu-nós, uma identidade do singular-coletivo.

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Uma proposta totalitária de construção de cidadania: os discursos fascista de Benito Mussolini

É importante, ainda nesse segundo lugar de significação do discurso político compreender o conceito de retórica. A retórica tem como seu primeiro paradigma o pensamento dos sofistas, representados principalmente por Córax, Górgias e Protágoras, como também de Aristóteles. Para os três sofistas, a retórica não visa à argumentação com base no verdadeiro, mas ao verossímil (eikos). Seu método opera a partir da existência de uma multiplicidade de opiniões, não raro conflitantes e contraditórias. Já Aristóteles sistematiza esse estudo, redefinindo o papel persuasivo da retórica na distinção e escolha dos meios adequados para persuadir. A retórica, tal qual a dialética, não pertenceria a um gênero definido de objetos, porém seria tão universal quanto aquela. Essa tekhné utilizaria três tipos de provas como meios para a persuasão: o ethos e o pathos, componentes da afetividade, além do logos, o raciocínio, consistente da prova propriamente dialética da retórica. (Olivier REBOUL, 2000). O terceiro topos ou a repercussão do discurso político não se restringe, assim, ao campo político, mas vincula-se ao circuito do discurso político nas diversas instituições culturais que estabelecem os comentários sobre esse tipo de discurso. Os comentaristas do discurso político são cidadãos conscientes ou não de seus exercícios de poder, com isso encontram-se engajados ou não, ultrapassam o risco político e revelam opiniões produtoras de conceitos que expandem a cultura relacionada a esse tipo de discurso. Os Corpora serão os discursos de Benito Mussolini que fundamentam o discurso do Fascismo italiano na construção e na difusão de uma identidade nacional, entre os anos 1918 a 1930. Serão coletados todos os pronunciamentos de Benito Mussolini em atos públicos, em difusão midiática, em festividades cívicas e sessões políticas no parlamento italiano durante o período citado. Serão selecionados aqueles que servem de indicadores determinantes da temática da construção da identidade nacional italiana que, como já dissemos anteriormente, a ciência política apresenta como os elementos históricos definidores do sentimento de pertencimento e da nacionalidade no mundo ocidental: língua, religião, etnia e território. No contexto de nosso corpora, língua será entendida como o italiano padrão oficial, religião, como a doutrina católica apostólica romana, etnia, como falantes no estrangeiro ou na própria Itália do italiano e como a “raça ariana mediterrânea” (MUSSOLINI), e por fim, território, como os espaços de atuação da soberania do Estado italiano. Os discursos e temas que formam o nosso corpora são os seguintes: Discorso di Bologna; Discorso di Ancona; Torna, torna Garibaldi; Vincolo di sangue; Per La grande Roma: programma al governatore; Per l`educazione giovanile de 1928; e Fascismo e Popolo

A Análise dos Discursos e a Gramática Discursiva de Benito Mussolini: Estruturas e Estratégias 44

A ideia de construção do presente texto surgiu da dificuldade de se encontrar material crítico, que se dedicasse de forma objetiva e não preconceituosa à

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análise dos discursos proferidos por Benito MUSSOLINI, durante os anos de criação e consolidação do regime fascista na Itália. Essa carência de informação baseia-se fundamentalmente na rejeição e no descaso que o tema sofre até hoje, no contexto acadêmico italiano, principalmente, porque seu conteúdo traz à cena lembranças dolorosas para os seus cidadãos. No entanto, a negligência com essas recordações não apaga os indícios que pensamos identificar em todas essas manifestações de força e convencimento político. Assim, optamos pela análise de 7 discursos, em um total 278 discursos proferidos de 1918 a 1930, que melhor nos possibilitariam verificar a presença de elementos que consideramos definidores de uma possível identidade/cidadania italiana. Esclarecemos, ainda, que nossa escolha analítica não seguiu uma linha cronológica, mas sim um caminho sustentado pelos temas envolvidos, que consideramos fortemente expressivos a fim de demonstrar nosso objetivo, tais sejam, língua, religião, etnia e território.

O Discurso de Bologna No decorrer de nosso trabalho de pesquisa, foi possível constatar que o discurso de Bologna é um dos mais expressivos, principalmente, por ter sido proferido em 3 de abril de 1921, mês que destaca a comemoração mítica da fundação de Roma, que segundo a lenda ocorre em 21 de abril, fato este que será enaltecido por MUSSOLINI com o objetivo de convencer o povo da Emilia-Romagna dos pressupostos heroicos contidos na proposta fascista. No texto de MUSSOLINI, é possível verificar a demonstração do orgulho por uma italianidade de uma Roma eterna: Altro elemento di vita del Fascismo è l’orgoglio della nostra italianitá. A questo proposito sono lieto di annunziari che abbiamo già pensato ala giornata fascista: se i socialisti hanno il 1º de Maggio, se i popolari hanno il 15 Maggio, se altri partiti di altro colore hanno altre giornate, noi fascisti ne avremo una: ed è nel segno de Roma Eterna, nel Segno di quella città che ha dato due civiltà al mondo e darà la terza, noi ci riconosceremo e le legioni regionali sfileranno col nostro ordine che non è militaresco e nemmeno tedesco, ma semplicemente romano.

Nesse mesmo trecho, verifica-se que a intenção comunicativa do enunciador caminha para a criação de um novo corpo político e identitário nacional, ou seja, o Fascismo italiano e seus seguidores. Entendemos que o corpo político, presente em quase todos os discursos analisados, é uma construção discursiva metafórica e simbólica do uso corporal, para a realização da tradução concreta entre o regime político, MUSSOLINI e o povo da Itália. Este recurso discursivo atende à finalidade de se individualizar a massa fascista frente a outros movimentos políticos/sociais e unir a todos em um mesmo conjunto simbólico/valorativo de sentimentos e ações.

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É importante notarmos três presenças textuais do corpo fascista, o que nos auxiliou, ao longo da pesquisa, a entender a imagem deste corpo, que são: 1- o enunciador (MUSSOLINI) se identifica com o próprio Fascismo, ao usar todos os pronomes em 1ª pessoa, afirmando reconhecer-se e a si mesmo nesse contexto; 2- temos, então, um corpo que se vê refletido, pois se auto-reconhece e; 3- uma localização racial e espacial deste corpo, como de estirpe ariana e mediterrânea. Potrei dirvi socraticamente che se ognuno deve conoscere se stesso, anche io conosco e devo conoscere me stesso (applausi). Come è nato questo Fascismo, attorno al quale è così vasto strepito di passioni, di simpatie, di odi, di rancori e di incomprensione? Non è nato soltanto dalla mia mente o dal mio cuore: non è nato soltanto da quella riunione che nel 1919 noi tenemmo in una piccola sala di Milano. E’ nato da un profondo, perenne bisogno di questa nostra stirpe ariana e mediterrânea.

Neste trecho, MUSSOLINI constrói para si e para a massa de todos os italianos a imagem de guia, (Il Duce), através do recurso repetitivo do pronome “noi”, o que acaba, no contexto político-social italiano, por levar ao sentimento de pertencimento que a todos une e congrega nos valores da coragem e da vitória. Noi sentimmo allora, noi che non eravamo i maddaleni pentiti; noi che avevamo il coraggio di esaltare sempre l’intervento e le ragioni delle giornate del 1915; (...) noi che volemmo una pace vittoriosa, noi sentimmo subito, appena cessata l’esaltazione della vittoria, che il nostro compito non era finito.

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Encontramos, também, no presente discurso um ponto bastante importante na construção do corpo fascista, visto que ressalta os elementos da construção de uma identidade cultural italiana, o que marca uma estratégia discursivo argumentativa de convencimento através da força simbólica que as categorias sangue e orgulho da raça possuem no contrato comunicativo fascista. Nota-se que o uso dos verbos por MUSSOLINI (legare, unificare) não é aletório e que segue uma linha de raciocínio lógico para traduzir o significado de união, congregação e de ligação total de um povo em torno de um único corpo e, portanto, de um único objetivo. A escolha lexical tende a demonstrar que nação e família são sinônimos, o que se traduz na identificação do indivíduo italiano como filho da mãe Itália. Tais elementos identificam e congregam todos os italianos como um povo único e distinto de todos os outros no mundo, unido por mentes em uma única ideologia (Fascismo) e braços fortes para a reconstrução e crescimento da Itália. Muito interessante notar ainda que o corpo político fascista é um corpo que sente dor. Com a simbologia dos “camicie nere”, ou seja, do uniforme que identificava todos os fascistas, ela significa o luto pelas dores italianas, provenientes do colapso econômico, do período de dominação estrangeira

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e das mortes da 1ª Guerra Mundial. Tal comparação, por exemplo, não é casual, tendo em vista que o enunciador possuía uma clara percepção dos anseios de seu auditório, o que lhe permitia organizar e pronunciar os seus discursos com pleno domínio da força enunciativa necessária à obtenção de seus objetivos. ... ci sarà il sangue di un italiano in Italia (...) perché infine sentivamo vivi e vitali quei vincoli di razza che non ci lega soltanto agli italiani da Zara a Ragusa ed a Cattaro, ma che ci lega anche agli italiani del Canton Ticino, (...) a questa grande famiglia di 50 milioni di uomini che noi vogliamo unificare in uno stesso orgoglio di razza (...) vogliamo che tra spirito e materia, fra cervello e braccio si realizzi la comunione, la solidarietà della stirpe.

Podemos encontrar ainda, neste discurso de Bologna, as seguintes características discursivas presentes no corpo político fascista. Este é um corpo criado por MUSSOLINI, para ser animalizado, narciso, feroz e com força juvenil, com a intenção de se impor a todos aqueles que se opõem a sua presença física e institucional, principalmente, a tudo aquilo que é velho e arcaico. ... si dimenticava il mio spirito tenacissimo e la mia volontà qualche volta indomabile. Io, tutto orgoglioso del miei quattromila voti, e chi mi ha visto in quei giorni sa con quanta disinvoltura accettassi questo responso elettorale, dissi: la battaglia continua ! Perché io credevo fermamente che giorno sarebbe venuto in cui gli italiani si sarebbero vergognati delle elezioni del 16 Novembre (...) Ma ancora non è finito l’avvento di questo Fascismo, (...) di questo movimento giovane, ardimentoso ed eroico. Io solo qualche volta , io che rivendico la paternità di questa mia creatura.

Finamente, temos um corpo político que se autorreconhece, ao se comparar com outro corpo (Socialismo). Constata-se neste ponto a tentativa de ocupação do espaço ideológico italiano, repudiando aquele corpo que se identifica como uma ameaça. Ma voi dovete spiegarvi il fenomeno dell’ira e della incomprensione dei socialisti. I socialisti avevano in Italia costituito uno stato nello Stato (...) Noi siamo i primi a riconoscere che una legge dello Stato deve dare le otto ore di lavoro e che ci deve essere una legislazione sociale rispondente alle esigenze dei tempi nuovi.

Teríamos, então, como imagem do corpo fascista e dos fascistas, um sistema totalitário, no qual o Duce, a ideologia e os italianos formam uma única massa racial revolucionária, jovem, trabalhadora, corajosa, portadora de todas as dores italianas e orgulhosa das suas capacidades na condução da Itália a grandeza mundial, com fronteiras alargadas, no jogo das nações.

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Uma proposta totalitária de construção de cidadania: os discursos fascista de Benito Mussolini

O Discurso de Ancona No Discurso de Ancona, pronunciado em 1922, MUSSOLINI estabelece quais teriam sido as conquistas econômicas do sistema e quais deveriam ser os papéis desempenhados pelo povo e pelos trabalhadores na Itália fascista. Neste discurso, através da expressão “camicie nere” o enunciador (MUSSOLINI) associa o povo de Ancona e da Marche ao Fascismo, ou seja, transmite uma visão totalizante de que todos eram fascistas. Importante dar atenção à simbologia do termo “camicie nere”, que conforme apresentamos no breve resumo acerca do discurso de Bologna, representa o luto pelas dores italianas, principalmente, pelas mortes em decorrência da 1ª Grande Guerra. Benito MUSSOLINI, neste texto, usa o pronome pessoal “noi” e o passato prossimo para apresentar através de uma ação já concluída que ele e o povo são capazes de construir a estrutura física do sistema fascista. Fato, que não obstante fosse um sistema totalitário, o Fascismo conquistou um crescimento econômico significativo. Oggi noi abbiamo inaugurato il nuovo palazzo delle poste, che deve servire al respiro più ampio della vostra città e ai suoi traffici aumentati. Abbiamo inaugurato il palazzo del Littorio, dove si raccoglieranno in perfetta concordia tutte le organizzazioni del regime, e abbiamo inaugurato il monumento ai caduti, che guarda quel mare che è ancora amaro.

Cabe lembrar, entretanto, que na verdade a Itália passava por uma grave crise de desemprego e de inflação. Ele adota um lugar de narrador histórico para transmitir uma intenção de verdade, ou seja, ele faz referência a importantes datas da história humana, tais como, a queda do Império Romano e o Descobrimento da América e a Queda de Napoleão, objetivando dizer que o Fascismo era um ponto revolucionário e inexorável da história italiana. Di qui a molti anni, quando il fatale andare del tempo ci avrà allontanato questa età, gli uomini verranno a vedere quello che noi abbiamo compiuto, in pace e in guerra. Ricorderanno il 1915, l’anno fatale nella storia dell’umanità, che pesa come il 476, il 1492, il 1815. C’è un prima e un dopo, c’è un prima della guerra e un dopoguerra. Non guardiamo più al prima della guerra, non abbiamo nostalgia per quel tempo, per quegli uomini, per quegli avvenimenti, per quelle dottrine, perché noi abbiamo bruciato i nostri possedimenti alle nostre spalle.

O Discurso Torna Torna Garibaldi!

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Em Torna Torna Garibaldi, discurso pronunciado a 2 de fevereiro de 1918, texto que é anterior, portanto, a ascensão política do Fascismo, MUSSOLINI faz referência a uma canção do movimento de unificação política da Itália e apela ao povo italiano para que este se imbua dos valores de um herói nacional, a fim de que a Itália alce o seu papel no jogo das grandes nações.

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Giuseppe Garibaldi, o “herói de dois mundos”, título que lhe foi conferido por sua participação nos conflitos em prol da liberdade na Itália e na América do Sul, tornou-se marinheiro e aos 25 anos chegou ao posto de capitão da marinha mercante, ao mesmo tempo em que se aproximava do movimento “Jovem Itália”, que lutava pela independência e unificação da Itália. Ele foi condenado à morte e fugiu para a América do Sul, desembarcando no Rio de Janeiro em 1835. Logo, após, segue para o Rio Grande do Sul e se junta aos republicanos da Revolução Farroupilha, destacando-se nos combates às forças imperiais. Em 1848, Garibaldi retorna à Itália para combater os exércitos austríacos na Lombardia e começar à luta pela unificação italiana. Fracassando na tentativa de expulsar os austríacos e foi forçado a refugiar-se primeiro na Suíça e depois em Nizza, sua cidade natal. Visando conquistar Roma do papado, os libertários italianos marcharam contra aquela cidade e a tomaram. Garibaldi participou da campanha com um corpo de voluntários e foi eleito deputado na assembleia constituinte da República Romana. Entretanto, os franceses e os napolitanos cercaram a cidade, visando a restabelecer a autoridade papal. A cidade caiu em 1º de julho de 1849. Garibaldi empreendeu uma retirada com 4 mil soldados, sendo perseguido por três exércitos, franceses, espanhóis e napolitanos, que somavam dez vezes o seu número de homens. Ao norte da Itália, o exército austríaco, com 15 mil soldados, também aguardava Garibaldi. Condenado ao exílio, Garibaldi volta à Itália em 1854, participando da Segunda Guerra de Independência contra os austríacos. O Conde de Cavour, primeiro ministro do Piemonte, nomeou-o comandante das forças piemontesas e sob seu comando a Lombardia foi tomada à Áustria. Com isso, a Itália do norte estava unificada. Garibaldi voltou-se então para o centro do país, com o apoio de Vítor Emanuel II, rei do Piemonte, e de seu ministro Cavour. No centro da Itália, porém, a política e a diplomacia prevaleceram sobre as armas e os acordos com que Cavour e o rei cederam Nice e Savóia à França foram considerados uma traição por Garibaldi, que decidiu agir por conta própria. Seguiu para o sul, onde conquistou a Sicília e o reino de Nápoles. Governante absoluto do sul da península, Garibaldi promoveu um encontro de suas tropas com as de Vítor Emanuel, que se tornou o primeiro rei da Itália unificada, ou quase. Ainda faltava libertar Veneza dos Austríacos, em 1866, e Roma do papa, em 1870. O líder político do Fascismo trabalha a apologia à guerra em favor da libertação de um povo oprimido e para tanto resgata a ideia heróica do exército de Garibaldi. MUSSOLINI faz, simultaneamente, uma exaltação ao sangue de inocentes mortos na 1ª Guerra Mundial e uma crítica à fraqueza do espírito humano na modernidade. E’ certo che ieri, quel telegramma che veniva da Roma, ha il sangue a migliaia e migliaia di persone di ogni condizione, di ogni età. Ci avevano detto che l’epoca del era inesorabilmente chiusa.

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Ci eravamo abituati alla macchina. Il tedesco ci vinceva perchè noi non abbiamo fatto che copiarlo. La materia era tutto, lo spirito umano, nulla.

Neste discurso, Mussolini trabalha ideias já presentes em outros de seus textos ou discursos, como, por exemplo, a crítica à fraqueza de espírito e a consciência de massa, que se traduz na massa bem preparada ideologicamente. Si chiedevano dei cannoni, soltanto dei cannoni e non si pensava alle anime. Si è visto, noi abbiamo visto che la efficienza dei mezzi meccanici non basta ad evitare la disfatta, quando ci sia una deficienza negli spiriti. Fra una massa di automi e un’altra massa di automi, riporta la vittoria la massa più attrezzata e disciplinata; ma tra una massa bruta e una massa cosciente – anche quando ci sia sproporzione di numero, ma eguaglianza di mezzi – nessun dubbio che la massa cosciente sgominerà la massa bruta.

MUSSOLINI desenvolve claramente a ideia de doutrinar o auditório pelo exemplo histórico de Garibaldi, heroi da unificação política italiana do final do século XIX, fazendo uma comparação das estratégias vitoriosas de guerra de Garibaldi. Nesse sentido, aponta para a associação do heroi nacional e do heroi mítico, reacendendo a chama e incitando à luta por uma nova vitória contra os inimigos do regime fascista. Na realidade, MUSSOLINI exalta valores positivos através da utilização de uma rede de adjetivos, endereçada ao personagem de Garibaldi neste discurso, associando suas lutas e vitórias às lutas e vitórias que ele deseja obter com a adesão do povo romano/italiano as suas colocações. Indubbiamente alcuni procedimenti della guerra garibaldina non sono più possibili oggi: la camicia rossa è abolita, come sono abolite le dei francesi; ma il garibaldinismo non è tutto nel panno di una uniforme, il garibaldinismo è nello spirito con cui si affrontano i disagi della guerra, e nella volontà disperata di vincere per cui si va come allo della canzone leopardiana.

Sua estratégia de convencimento se baseia, sobretudo e novamente, na utilização de pronomes de primeira pessoa (“io”-“noi”), além de trazer sempre para seu discurso a retomada de fatos históricos marcantes para a História da Itália, o que por si só confere credibilidade a seu discurso. Nota-se, entretanto uma escolha bastante seletiva de datas importantes para a nação, com a retomada dos anos de 476, 1492 e 1815. Entretanto, discursivamente, o enunciador opera uma contraposição importante em seu texto ao mencionar que o passado fora importante, mas que o povo italiano deveria, agora, olhar para o advento do Fascismo como um operador de novos horizontes para a Itália. Um novo mundo se configura no horizonte italiano e esse novo mundo será demarcado pelo Fascismo e por seus seguidores. O futuro é promissor para o povo italiano e para aqueles que lutarem e oferecerem seu sangue em defesa da Itália e do regime fascista.

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Di qui a molti anni, quando Il fatale andare del tempo ci avrà allontanato questa età, gli uomini verranno a vedere quello che noi abbiamo compiuto, in pace e in guerra. (...) C’è un prima e un dopo, c’è un prima della guerra e un dopoguerra. Non guardiamo più al prima della guerra, non abbiamo nostalgia per quel tempo, per gli uomini, per quegli avvenimenti, per quelle dottrine, perchè noi abbiamo bruciato i nostri possedimenti alle nostre spalle.

Dessa forma, o enunciador usa o recurso do pronome de 1ª pessoa do plural (majestático) “noi” e faz uma clara associação entre Garibaldi e Nação, Sacrifício e Salvação, criando uma relação entre o passado e o futuro, do que foi e do que deve ser, o que ele chama de movimento do “Garibaldinismo”. Noi abbiamo qui sul tavolo una grande busta che contiene le adesioni mandate a noi all’indomani del nostro appello per la creazione di un’armata di volontari. Sono documenti del più vivo interesse psicologico. Nell’ora tragica e oscura di Caporetto, quando il nostro fante franava dalle Alpi al Golfo di Panzano, nè si sapeva ancora a qual fiume si sarebbe fermata la ritirata – anche qui l’anima ha celebrato la sua rivincita sugli automi che in nome della strategia volevano sino all’Adige o al Mincio! – noi invocammi dal Governo un grande appello alla Nazione per la costituzione di un’armata di volontari. Noi avevamo l’intima certezza che la Nazione avrebbe riposto, anche se non si fosse rievocato il nome sempre luminoso e abbacinante di Garibaldi.

As categorias de “sangue” e de “patria” são elementos sustentadores que perpassam a maioria dos discursos de Benito MUSSOLINI, o que ressalta o seu interesse de utilizar de forma recorrente a estratégia de convencimento por meio da adesão dos indivíduos italianos a um ideal de povo, raça e nação unitários.

O Discurso Vincolo di Sangue No discurso Vincolo di Sangue, pronunciado em 19 de janeiro de 1922 ao povo de Prato, MUSSOLINI defende a ideia de que o Fascismo é a salvação da Itália e de que ele é o próprio sangue da nação. A força simbólica do sangue traduz, no senso comum da cultural ocidental, o elemento vital que estabeleceria um dos vínculos mais fortes que as pessoas poderiam condividir, os vínculos de pais com filhos, os laços de família. Essa ideia retoma, portanto, claramente o recurso discursivo do corpo político fascista no sentido da construção de um sentimento de pertencimento, que desenvolvemos e encontramos presente, também, no discurso de Bologna.

Oggi, a Prato, per le estreme solenni onoranze a Federico Florio, converranno i fascisti di tutta la Toscana, i cittadini di tutta Prato – quelli almeno, e devono essere la maggioranza che nutrono sensi d’italianità – e spiritualmente, i fascisti di tutta Italia.

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O enunciador trabalha outros dois valores importantes em todos os discursos que profere: a tenacidade do espírito jovem e a valorização do sacrifício. “Il nostro Caduto, vero martire della fede fascista, è degno dell’universale rimpianto. Egli apparteneva alla schiera degli eletti. Tutta la sua giovinezza era stata meravigliosa di ardimento e di spirito di sacrificio.” Dentro desta mesma linha de raciocínio, cabe salientar que a utilização de determinados substantivos e adjetivos procuram articular uma dualidade por oposição, definida entre o “bem” e o “mal”, entre o que é “certo” e o “errado”, o que no discurso se reflete entre o que é fascista e o que é “delinquência social comunista”. Na realidade, a estratégia de convencimento do auditório para a luta, se apresenta numa exigência “necessaria e fatale”, quase divina, de reagir e combater o “mal”, “o inimigo”, “a infecção comunista”, que atinge e banha de “sangue vermelho” os italianos fascistas. Non v’è dubbio che assistiamo ad una recrudescenza della delinquenza socialcomunista. Queste prime settimane del 1922 sono rosse di sangue fascista. Tutte le circolari Bonomi,(1) tutte le misure di pulizia hanno condotto al disarmo dei difensori della Nazione ed all’armamento dei nemici della Nazione. Se le cose non mutano, se la situazione non cambia, si appalesa come necessario e fatale che il Fascismo ritorni ad applicare i suoi metodi di attacco e di rappresaglia. Ma, intendiamoci. Se il Fascismo sarà forzato a ciò, se il Fascismo, per salvare la Nazione e la vita dei suoi gregari, dovrà riprendere le armi, lo farà, stavolta, su scala vastissima. Non più lo stillicidio della bastonatura individuale, che è antifascista, ma un’azione di stile generale, che dovrà essere in qualche modo risolutiva. Azione intelligente. Bisognerà colpire i punti esiziali del nemico. Bisognerà distruggere i centri vitali del nemico. Bisognerà annientare i focolai dell’infezione dell’antiFascismo.

Assim, no texto, destaca-se a categoria “sangue” em dois grandes sentidos. O primeiro, importante para o Fascismo e para seu projeto de unificação cultural da Itália, vem destacado como elemento do “sentido de italianidade” e de “família” que congrega a todos (“o cimento, o vínculo sagrado dos nossos mortos”). No segundo, temos a concepção do sangue como metáfora que identifica a glória e a coragem como sendo parâmetros que devem nortear a escolha do indivíduo italiano pelo sacrifício que libertará a Itália de seus inimigos.

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Non ci fu, in questi ultimi tempi, battaglia in cui fossero in gioco l’onore e l’interesse d’Italia, senza che Federico Florio non si trovasse al suo posto di responsabilità, di coraggio, di gloria. Dopo la grande guerra, dopo l’impresa di Fiume, anch’egli era venuto al Fascismo, come lo sbocco naturale e fatale di tutta la rinascita nazionale iniziatasi nel maggio del 1915. Comandante delle squadre pratesi, egli era l’oggetto dell’odio bestiale e criminale di tutta la canaglia sovversiva. Lo hanno ucciso. L’assassino è un disertore. Basta questa constatazione per giudicare e condannare una politica di Governo che crede di poter rimanere al disopra della mischia nella quale, da una

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parte, stanno i disertori e dall’altra coloro che hanno difeso, a prezzo di sangue, la esistenza della Nazione.

Finalmente, reforçando a estratégia de que a categoria sangue é fundamental para os pressupostos combativos do Fascismo, MUSSOLINI, como enunciador e orador tenaz, desloca para um segundo enunciador a tarefa de convocar o povo italiano para a defesa da nação, ou seja, delega aos mortos (sangue fraterno derramado na luta) a tarefa de conclamar a todos para o embate. “Questo è il monito, questo, anzi, è il comandamento che sale dalle fosse dei nostri innumerevoli Morti.”

O discurso Per la grande Roma: programma al governatore No discurso Per la Grande Roma: Programma al Governatore, pronunciado em 31 de dezembro de 1925 ao 1º governador de Roma após a ascensão do Fascismo ao poder, Senador Cremosi, e aos membros da Assembleia Nacional, o líder do movimento político fascista traça quais deveriam ser os programas de políticas públicas na capital da Itália. Digno de nota, é a diferenciação de impostação deste discurso em relação aos outros analisados: não se trata mais do povo italiano neste caso, o que leva MUSSOLINI a tratar o seu destinatário não mais como um “io-noi”, considerando-o como personificado, como alguém que deve acatar as suas determinações, para tanto, usa o pronome “voi” deslocando a força de seu discurso para um alocatário, que é Cremosi e a Assembleia. Voi continuerete a liberare il tronco della grande quercia da tutto ciò che ancora la intralcia. Farete dei varchi intorno al teatro Marcello, al Campidoglio, al Pantheon; tutto ciò che vi crebbe attorno nei secoli della decadenza deve scomparire. Entro cinque anni da Piazza Colonna per un grande varco deve essere visibile la mode del Pantheon. Voi libererete anche dalle construzione parassitarie e profane i templi maestosi della Roma cristiana. I monumenti millenari della nostra storia debbono giganteggiare nella necessaria solitudine. Quindi la terza Roma si dilaterà sopra altri colli, lungo le rive del fiume sacro, sino alle spiagge del Tireno. Voi toglierete la stolta contaminazione tramviaria che ingombra le strade di Roma, ma darete nuovi mezzi di comunicazione alle nuove città che sorgeranno in anello intorno alle città antiche. Un rettilineo che dovrà essere il più lungo e il più largo del mondo porterà l’ansito del mare nostrum da Ostia risorta fino nel cuore della città.

Dessa forma, MUSSOLINI começa o seu discurso afirmando que a definição de romanidade, e poderíamos dizer de italianidade, é ostentar um estilo romano, tal qual, o do auge do Império Romano, em poucas palavras, deveria se adotar um estilo de ‘os donos do mundo’. Ele personaliza e torna o discurso direto com o uso da 1ª pessoa do singular fazendo elogios a Cremosi e enumerando o que ainda falta se fazer pela cidade de Roma.

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Governatore! Il discorso che ho l`onore e il piacere di rivolgervi sarà di stile romano, intonato nella sua conscisione alla solenne romanità di questa cerimonia. Rigorosamente esclusa ogni divagazione retorica, il mio discorso consisterà in un elogio per quanto avete fatto e in una precisa segna per quanto ancora vi resta da fare.

Neste discurso, o enunciador diz existirem duas grandes séries de problemas com a capital da Itália fascista, Roma: os problemas da necessidade, tais como: a urbanização da cidade, a melhoria nos serviços de comunicação, nos serviços públicos e nos serviços de saúde; e os problemas de sua grandeza histórica, tal seja, tornar Roma novamente a capital do Mundo. Ricordo che quando nell’aprile 1924 mi faceste l’onore supremo di accogliermi tra i cittadini di Roma, vi dissi che i problemi della capitale si dividevano in due grandi serie: i problemi della necessità e quelli della grandezza. Dopo tre anni di regio commissariato, nessuno osservatore obiettivo può contestare che i problemi della necessità sono stati energicamente affrontati e in buona parte risolti. Roma ha già un aspetto diverso. Diecine di quartieri sono sorti alla periferia della città che ha lanciato le sue avanguardie di case verso il monte salubre, verso il mare riconsacrato.

O líder do movimento político fascista usa também em seu texto a estratégia da dualidade por oposições “novo” e “velho”, para trabalhar o conceito, importante para a afirmação de uma cultural nacional italiana, de romanidade. Ele faz uma clara remição à ideia fascista de continuidade do Império Romano, pois a Roma fascista deve ser como a do tempo do imperador Augusto. Através da descrição dos monumentos e das suas recuperações realizadas pelo regime fascista, MUSSOLINI vai construindo o conceito de romanidade, que se poderia ver concretamente por estas obras da milenar história romana. Ele acaba por se utilizar do artifício da dualidade por oposição para apresentar a ideia de uma Roma antiga e uma Roma nova. Le mie idee sino chiare, i miei ordini sono precisi e sono certo che diventaranno una realtà concreta. Tra cinque anni Roma deve apparire meravigliosa a tutte le genti del mondo; vasta, ordinata, potente, come fu ai tempi del primo impero di Augusto. [...] Quindi la terza Roma si dilaterà sopra altri colli, lungo le rive del fiume sacro, sino alle spiagge del Tireno. Voi toglierete la stolta contaminazione tramviaria che ingombra le strade di Roma, ma darete nuovi mezzi di comunicazione alle nuove città che sorgeranno in anello intorno alle città antiche. Un rettilineo che dovrà essere il più lungo e il più largo del mondo porterà l’ansito del mare nostrum da Ostia risorta fino nel cuore della città.

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Finalmente, MUSSOLINI faz uma exaltação do Fascismo como o sistema político que foi capaz de ter dado moral e politicamente, uma capital digna de

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uma pátria vitoriosa. Para entender esta afirmação, é importante lembrar, que no processo de unificação política da Itália, Roma, até 20 de setembro de 1870 era um Estado Pontifício, e foi a última região a ser incorporada ao Reino da Itália. MUSSOLINI, quer dizer então, que os governos italianos anteriores ao seu, não foram capazes de estabelecer o esplendor que seria devido a Roma. Da tre anni Roma è veramente la capitale d’Italia, i municipalismi sono scomparsi. Il Fascismo ha, fra gli altri, questo non ultimo merito, di aver dato moralmente e politicamente la capitale alla Patria vittoriosa.

O discurso Per l´educazione giovanile No discurso Per L’Educazione Giovanile, pronunciado em Roma no dia 28 de março de 1925, na Câmara dos Deputados, MUSSOLINI estabelece qual deve ser o programa de educação para os jovens no Fascismo e quais foram os ganhos trabalhistas neste regime. É importante lembrar, no contexto histórico do Fascismo, que já desenvolvemos nesta tese, que o analfabetismo era uma realidade da maioria da população italiana e que o projeto de escolarização fascista, responsável por tonar o ensino fundamental gratuito obrigatório, estabelece, também, a obrigatoriedade do ensino e do uso da língua italiana standard. MUSSOLINI começa o seu discurso alegando que apesar da Itália estar passando por um desemprego alto, ele estaria diminuindo graças às políticas fascistas. Ele diz, ainda, que a despeito deste problema do desemprego, o regime fascista teria conseguido implantar na nação italiana uma ordem disciplinada e “perfeita”. É importante atentar para o caráter providencial divino de que ele reveste o sistema político. Ordem disciplinada e perfeita, só a ordem divina. “Malgrado la disoccupazione, non vi è stato nessun turbamento e nemmeno nessun tentativo di turbamento dell’ordine pubblico.La disciplina della Nazione è stata, come sempre, perfetta.” Cabe lembrar, entretanto, que a literatura italiana da época nos demonstra que esta ordem não era tão perfeita assim. Ilustrativas são as considerações de Ignazio SILONE (2003) que nos dizem que o regime fascista italiano determinava o confinamento das pessoas em suas regiões, portanto proibia o direito de ir e vir; como também, proibia a imigração de italianos. Neste discurso, MUSSOLINI trabalha, também, a ideia de como o regime está se fazendo popular entre os jovens e sustenta como as artes, e neste caso específico a Opera Nacional Balilla, foram importantes para a formação do capital simbólico totalitário, integral e intransigente a que se propunha o Fascismo. Non è fuor di luogo illustrare il carattere intrinseco, la significazione profonda della Leva fascista. Non si tratta soltanto di una cerimonia, ma di un momento importantissimo di quel sistema di educazione e preparazione totalitaria e integrale dell’uomo italiano che la Rivoluzione fascista considera come uno dei compiti fondamentali e pregiudiziali dello Stato, anzi

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il fondamentale. Qualora lo Stato non lo assolva o accetti comunque di discuterne, esso mette in gioco puramente e semplicemente il suo diritto di esistere.

O Discurso Fascismo e Popolo No discurso Fascismo e Popolo, pronunciado em Roma no dia 7 de maio de 1925, no 3º Congresso Nacional dos Sindicatos Fascistas, MUSSOLINI estabelece quais são as relações entre o Fascismo e a massa proletária. MUSSOLINI começa o seu discurso estabelecendo, tal como uma questão de fé, com o sindicalismo fascista um contato não político discursivo e sim espiritual. Ele, enunciador, usa do artifício simbólico de remeter o auditório a uma memória fresca e tenaz dos fatos ocorridos na Itália, para exaltar a função ou responsabilidade messiânica do Fascismo de guiar o povo da Itália. É tão importante o símbolo de guia do povo italiano que MUSSOLINI era denominado de Il Duce, expressão que deriva de dux, do latim, que significa condutor ou guia. Voglio anche dirvi cose, che forse vi potranno interessare. Per capire esattamente che cosa sia oggi il sindacalismo fascista, bisogna riportarsi a quello che fu l’Italia negli anni immediati del dopo guerra. Le memorie sono labili, ma coloro che si sono assunti la grave responsabilità di guidare un popolo, hanno l’obbigo di avere una memoria fredda e tenace. Possono perdonare, ma non debbono mai dimenticare (ovazioni).

O líder do movimento fascista faz alusão à história da Itália do pós-Primeira Guerra Mundial e critica as concepções políticas ou modelos de visão de mundo dos outros partidos que existiam, como falsas. Ele afirma um Fascismo vencedor, política e ideologicamente, na Itália e congrega, em uma visão totalitária, que todos na Itália são fascistas. Há claramente uma tentativa de se criar uma sinonímia entre as palavras fascista e italiano. Quando il Fascismo s’impadronì della valle padana e annientò tutte le organizzazioni anti-fasciste, cioè tutte le organizzazioni controrivoluzionarie (e la contrarivoluzione antifascista va dall’anarchia al liberalismo), ci trovammo il problema sindacale sulle braccia. Migliaia di contadini, migliaia di braccianti vennero ad ingrossare le nostre file. I nostri avversari, i nostri nemici, ritenevano che costoro fossero dei prigionieri. Siamo così franchi nelle nostre cose, così schietti nelle nostre ammissioni che possiamo anche ammettere che un’aliquota di costoro non capissero bene dove andavano. Ma oggi tutto à passato, tutto è lontano finanche nelle memorie, oggi le masse rurali delle campagne italiane sono fermamente devote al Regime fascista, alta causa della rivoluzione (ripetuti e prolungati applausi).

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O enunciador se identifica com o próprio Fascismo, ao afirmar que ele é o líder, “capo”, do Fascismo, e os trabalhadores urbanos e rurais seriam os

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seus braços. Teríamos, então, mais uma vez articulado no discurso, assim como fora realizado nos discursos de Bologna e Vincolo di Sangue, a imagem do corpo fascista e dos fascistas, um sistema totalitário, no qual o Duce, a ideologia e os italianos formam uma única massa racial revolucionária, jovem, trabalhadora, corajosa, portadora de todas as dores italianas e orgulhosa das suas capacidades na condução da Itália a grandeza mundial no jogo das nações. Non solo, ma questa penetrazione, che per al cuni anni si era limitata solo alle masse rurali che si trovavano in particolari condizioni, oggi va attuandosi anche nel cosidetto proletariato delle grand città. Stiamo penetrando in ambienti e in fortilizi che parevano chiusi alle nostre conquiste: sopra tutto stiamo penetrando nelle anime. (Grida: “E’ vero”. Ovazioni prolingate). L’adunata di 10.000 operai milanesi al Colosseo dev’essere considerata come un evento storico di prim’ordine, in quanto per la prima volta le masse operaie del proletariato industriale venivano da lontano, spontaneamente, a rendere omaggio e ad ascoltare la parola del Capo del Fascismo, del Capo della Rivoluzione facista. (Applausi).

Ele, ainda, exalta a ideia do sacrifício realizado pelo trabalhador italiano, pelo povo italiano para que a Nação fosse grande. Voglio fare un elogio al popolo italiano lavoratore. Quando io decisi di salvare la lira, perchè non ammettevo che la lira diventasse un biglietto tranviario bucato, (risa, approvaziono), io sapevo che avrei imposto sacrifici durissimo sopra tutto alla popolazione lavoratrice, che hanno suoi salari dei margini più che modesti. Scontavo quindi con perfecta coscienza e chiara visione questa necessità. Ebbene, oggi che la battaglia, della lira può dirsi felicemente conclusa debbo dichiarare che le difficoltà, le mormorazioni, i “mugugni”, le sobillazioni sono venuti a me da tutte le categorie, esclusa la massa del popolo italiano. (Acclamazioni ripetute ed entusiastiche).

Em Fascismo e Popolo, MUSSOLINI elenca duas questões importantes. A primeira, o corpo político fascista trabalha uma legislação social melhor do que a de seus inimigos, comunistas e democratas. A segunda, o Fascismo é uma obra para todos na Itália. Ainda neste discurso, ele desenvolve a ideia da segunda fase de implementação do Fascismo, o sindicalismo. Semelhante ao marxismo que idealiza três momentos ou fases de implementação do Comunismo (a revolução do proletariado, a criação do Estado socialista e, finalmente, o Comunismo), o enunciador apresenta o Fascismo como uma terceira via entre o Capitalismo liberal e o Socialismo marxista através, também, de três fases: a revolução, o sindicalismo e o cooperativismo. Occorre ancora migliorare qualitativamente le nostre masse, far circolare la linfa vitalissima della nostra dottrina nell’organismo sindacale italiano. Quando queste tre condizioni si siano realizzate noi passeremo, audacemente ma metodicamente, alla terza e ultima fase: la fase corporativa dello Stato

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italiano. Il secolo attuale vedrà una nuova oconomia. Come il secolo scorso ha vista l’economia capitalistica, il secolo attuale vedrá l’economia corporativa. Non vi è altro mezzo, o camerati, per superare la tragica antitesi di capitale e lavoro, che è un caposaldo della dottrina marxista che noi abbiamo superato. Bisogna mettere sullo stesso piano capitale e lavoro, bisogna dare all’uno e all’altro uguali diritti e uguali doveri. (Acclamazioni).

MUSSOLINI termina o seu discurso exaltando os valores que congregariam a identidade fascista/italiana: braços (trabalho), sangue (família, raça e pertencimento) e vida (existência), ou seja, reúne todas as características de sua filosofia dentro de uma intenção comunicativa de adesão do público italiano. O uso dos vocábulos empregados para a exaltação da ideologia fascista se apresenta na escolha de adjetivos valorativos, em sua grande maioria, marcados positivamente, tendo em vista que Il Duce se dirige à massa traçando um resumo da estética política fascista. Ecco perchè, camerati, voi non siete soltanto degli organizzatori sindacali, ben prima ancora siete dei fascisti (acclamazioni prolungate), poichè solo sul piano delle idee si conciliano gli interessi. Gli interessi non sono che un settore della vita, ma noi intendiamo abbracciare, compreendere, armanizzare tutta la vita del popolo italiano. Per questo vi dovete considerare in ogni momento della vostra giornata, in ogni attimo del vostro lavoro, davanti alle piccole come alle grandi cose, dei soldati della rivoluzione, pronti a difenderla qui e fuori di qui, col vostro braccio, col vostro sangue, con la vostra vita.

Finalmente, cabe informar que a opção pela análise deste texto como elemento conclusivo de nossa pesquisa se dá pela constatação de que ele apresenta um fio condutor e, ao mesmo tempo, um caráter global de toda a estética e conteúdo valorativo presentes nas escolhas discursivas de Benito Mussolini, na busca da construção de uma identidade sócio-cultural italiana. Para tanto, o ideal do Fascismo italiano, conforme idealizado por MUSSOLINI, se coloca discursivamente no modo argumentativo, com base no convencimento e na adesão quase total da população. A partir do pressuposto de que o enunciador se considera a cabeça (il capo) do corpo político fascista, ele apresenta todo o conjunto valorativo do ideal do movimento de forma dogmática, ou seja, através da imposição de verdades absolutas por verbos no modo imperativo, presentes em praticamente todos os discursos por ele pronunciados.

As Estruturas e as Estratégias da Retórica ou a Gramática Discursiva de Benito MUSSOLINI 58

A apresentação das análises dos discursos políticos proferidos por MUSSOLINI tem como função principal procurar destacar os principais

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temas/elementos discursivos que julgamos colaborar para a definição de uma identidade/cidadania italiana. Desse modo, é necessário examinar a retórica política de MUSSOLINI que dá forma a seus discursos. Em outras palavras, objetivamos esclarecer quais seriam as estruturas, estratégias ou regras discursivas usadas pelo ditador no seu falar político, buscando a adesão do povo italiano as suas ideias. Estamos denominando de gramática o conjunto de regras individuais usadas para um determinado uso de uma língua, aqui especificamente, para o uso da linguagem decisória de afirmação nacional de Benito MUSSOLINI. Ela é o sistema que organiza o pensar e impõe estruturas mentais recorrentes ao falar, para que os discursos façam sentido àqueles socializados neste mesmo sistema de significados. Para usar uma denominação bourdieudiana, queremos explicitar o habitus do Fascismo, presente nos discursos de MUSSOLINI. A partir desta definição e com o auxílio da metodologia da Análise Semiolinguística do Discurso, vislumbramos quais seriam as intenções nos discursos, com os seus ditos e não ditos através das visadas discursivas, dos contratos de comunicação; e como estes discursos são organizados sempre pelos três lugares formadores de sentido: o sistema político, a retórica e os elementos de justificação ou de legitimação. Então, que gramática decisória Benito MUSSOLINI adota? Que regras perpassam o seu discurso decisório, levando-nos a afirmação de que esta ideologia foi a primeira a agir para uma unificação identitária italiana? Para que possamos compreender toda a organização retórica presente nos discursos de Benito MUSSOLINI, a priori, alguns pressupostos precisam ser apresentados; dessa forma, elegemos os temas da oratória, dos argumentos de autoridade, da enumeração dos fatos históricos e de heróis nacionais, dos inimigos e do superego da sociedade italiana. Com a oratória, MUSSOLINI basicamente só desenvolve o pilar retórico da oratória, da grandiloquência em seus discursos. Não há uma intenção argumentativa de formação de consensos racionais, de preocupação com o diálogo com o outro (alteridade), e sim da mera imposição política persuasiva. Quanto aos argumentos de autoridade, MUSSOLINI trabalha com máximas, opiniões, adágios afirmados sem justificativas pelo simples fato de ser ele, o líder do movimento político, a proferi-los. Depreendemos dos discursos uma organização/dinâmica por pressupostos ou por “uma questão de princípios”. Há uma moral fascista superficial, que não se sustentaria diante de um raciocínio mais sofisticado ou elaborado, mas, por trabalhar no desenvolvimento de um ethos e de um pathos com uma forte carga simbólico-valorativa das expectativas italianas do seu contexto histórico, era bastante efetivo entre as classes médias e proletárias italianas. Podemos citar como exemplo desta categoria que desenvolvemos, o discurso de Bologna, no qual MUSSOLINI estabelece para si a figura do capo, do duce, ou seja, do “cabeça” do movimento político e da própria Itália. Como tal,

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quem deve pensar, mandar e falar no sistema, é ele. Há uma autorreferencialidade. Os “outros” devem apenas escutar e trabalhar para o Fascismo. Já em relação a enumeração de fatos históricos e de heróis nacionais, vemos que MUSSOLINI em todos os seus discursos, obrigatoriamente, enumera, cita, fatos históricos e heróis nacionais, como Garibaldi, para doutrinar através dos exemplos. Veja-se como um excelente exemplo desse pressuposto o discurso “Torna, Torna Garibaldi”, em que MUSSOLINI exalta a todos os italianos a internalizarem em seus espíritos o movimento do “garibaldinismo”. Quanto ao pressuposto dos inimigos, pode-se verificar nos discursos “Bologna”, “Torna, Torna Garibaldi” e “Fascismo e Popolo”, que MUSSOLINI para apresentar as suas ideias necessita sempre contrapô-las a algum “inimigo”, seja ele uma nação estrangeira, os sistemas políticos liberal ou socialista/ comunista, o sentimento da covardia ou agentes internos contra o regime. A ideia central é a de que os fascistas devem sempre lutar ou estarem preparados para o combate, seja ele real ou ideológico. Finalmente, em relação ao superego da sociedade italiana, MUSSOLINI enquanto enunciador apresenta sempre, como visadas discursivas, o reforço dos valores do Fascismo, o que somado ao símbolo do “Duce” e de líder carismático no sentido weberiano, nos permite afirmar que ele constroi os seus discursos no desempenho de um papel de censor ou vestal moral da sociedade italiana. Em outras palavras, MUSSOLINI seria o superego da sociedade fascista. No entender de FREUD (1980), o superego é uma das instâncias da personalidade que pode ter o seu papel próximo a de um juiz ou de um censor, na formação de uma consciência moral, na auto-observação e na formação de ideias, por delegação das instâncias sociais junto ao ego.
MUSSOLINI, como o grande artífice da palavra política do Fascismo italiano, dividia estruturalmente os seus discursos em dois pilares: um formal, que se relaciona à organização textual, e outro, material (de conteúdo), que se traduz nas categorias ético-valorativas que ele pretendia impor à sociedade italiana. Quanto ao primeiro, temos o cumprimento das seguintes escolhas textuais: a) uso do plural majestático “noi”; b) parágrafos longos que levam a digressões; c) uso do italiano padrão; d) circularidade dos discursos; e) dualidade por oposições; e, f ) o corpo político. E quanto ao segundo pilar, temos as seguintes categorias, família e trabalho, que traduziriam o conjunto de valores (sentimento de pertencimento) do povo italiano e raça, que traduziria o conjunto da romanidade ou italianidade.

As Escolhas ou Regras Formais nos Discursos de MUSSOLINI a) Uso do Plural Majestático “noi”

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O uso de pronome de 1ª pessoa do plural “noi”, com a intenção de inserir a todos os italianos, a massa do povo da Itália, é uma constante em todos os discursos de Benito MUSSOLINI. Este uso é uma característica dos discursos propriamente políticos, como nos diz CHARAUDEAU (2006:80):

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O político deve, portanto, construir para si uma dupla identidade discursiva; uma que corresponda ao conceito político, enquanto lugar de constituição de um pensamento sobre a vida dos homens em sociedade; outra que corresponda à prática política, lugar das estratégias da gestão do poder: o primeiro constitui o que anteriormente chamamos de posicionamento ideológico do sujeito do discurso; a segunda constrói a posição do sujeito no processo comunicativo. Nessas condições, compreende-se que o que caracteriza essa identidade discursiva seja um Eu-nós, uma identidade do singular-coletivo. O político, em sua singularidade, fala para todos como portador de valores transcendentais: ele é a voz de todos na sua voz, ao mesmo tempo em que se dirige a todos como se fosse apenas o porta-voz de um Terceiro, enunciador de um ideal social. Ele estabelece uma espécie de pacto de aliança entre estes três tipos de voz – a voz do Terceiro,  a voz do Eu, a voz do Tu-todos – que terminam por se fundir em um corpo social abstrato, frequentemente expresso por um Nós que desempenha o papel de guia (“Nós não podemos aceitar que sejam ultrajados os direito legítimos do indivíduo”).

b) Parágrafos longos que levam a digressões Em todos os discursos de Benito MUSSOLINI constata-se uma estilística textual caracterizada por parágrafos muito longos que acabam por atender ao recurso retórico da digressão, ou seja, parte do discurso que visa distrair o auditório com a finalidade de causar sua piedade ou indignação.

c) Uso do italiano padrão Atendendo ao espírito do trato linguístico fascista, caracterizado como totalitário, xenófobo e principal elemento de afirmação nacional, MUSSOLINI em todos os seus discursos usa a língua italiana padrão, o que contrasta com o grau de instrução da maioria da população.

d) Circularidade dos discursos Constatamos que todos os discursos de Benito MUSSOLINI apresentam uma circularidade, ou melhor, uma organização circular que se traduz nos seguintes passos: 1º passo- exaltação do Fascismo, dele próprio ou de uma personalidade do regime; 2º passo- exaltação e descrição de valores como raça, sangue, juventude, coragem, disciplina, consciência moral etc, como características do Povo italiano; e retorno ao 1º passo – exaltação do Fascismo, dele próprio ou de uma personalidade do regime.

e) Dualidade por oposições Pela análise de nosso corpora, constatamos que MUSSOLINI usa como uma estratégia retórica articular os valores que pretende transmitir ao auditório através de dualidades por oposições.

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Uma proposta totalitária de construção de cidadania: os discursos fascista de Benito Mussolini

As dualidades recorrentes são as seguintes: coragem vs. covardia, como nos discursos “Bologna” e “Torna, Torna Garibaldi”; italianos vs. estrangeiros, como nos discursos “Torna, Torna Garibaldi” e “Fascismo e Popolo”; mecanização vs. humanismo, como nos discursos “Ancona” e “Fascismo e Popolo”; corpo (físico) vs. espírito (metafísico), como nos discursos “Bologna” e “Fascismo e Popolo”; Fascismo vs. Socialismo ou Liberalismo, como nos discursos “Bologna” e “Fascismo e Popolo”; passado (ruína) vs. futuro (resgate ou reconstrução), como nos discursos “Fascismo e Popolo” e “Per la grande Roma”; e, morte vs. juventude, como nos discursos “Vincolo di sangue” e “Torna, Torna Garibaldi”.

f ) O corpo político Antes de fazermos a análise do corpo político fascista, faz-se necessário tecer algumas considerações preliminares acerca do que é o corpo, imagem corporal e linguagem corporal. O corpo é um sistema biofísico instrumentalizado de uma animalidade racional, em que são representados todos os nossos arquétipos e potenciais por experiências concretas. A imagem corporal significa todas as sensações e imagens mentais que este corpo representa de si mesmo. Para a psicanálise de leitura lacaniana, em seu primeiro momento, quando define a categoria de imaginário através do estádio do espelho, o corpo está ligado à representação significante do sujeito, no período de seis a dezoito meses da criança. Basta aí compreender o estádio do espelho como uma identificação no sentido pleno que a análise dá a esse termo: a saber, a transformação produzida no sujeito quando este assume uma imagem cuja a predestinação a esse de fase está suficientemente indicado pelo uso, na teoria, do termo antigo imago... É parecer-nos-á desde logo manifestar uma situação exemplar a matriz simbólica onde o eu se precipita em forma primordial, antes que se objetive na dialética da identificação do outro e que a linguagem lhe restitua no universal a sua função de sujeito (Jacques LACAN, 1998:97).

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Desta forma, a linguagem corporal pode ser caracterizada como o dinamismo do corpo no espaço ao se auto-interpretar pelas imagens e representações que faz de si mesmo diante do outro. A segunda representação do corpo para a psicanálise freudiana está na inscrição do sujeito pela interiorização simbólica, dando um lugar ao corpo na construção social do princípio de realidade, lugar do sujeito na cultura, que se desloca enquanto ideal de eu mediado por um superego. O corpo político fascista se constrói pelo seu autorreconhecimento, ao se comparar com outro corpo (socialismo, por exemplo no discurso de “Bologna”; ou liberalismo, por exemplo no discurso “Fascismo e Popolo”). Constata-se neste ponto a tentativa de ocupação do espaço ideológico italiano, repudiando aquele corpo que se identifica como uma ameaça.

Rafael Mario Iorio Filho e Fernanda Duarte

Teríamos, então, como imagem do corpo fascista e dos fascistas, um sistema totalitário, no qual o Duce, a ideologia e os italianos formam uma única massa racial revolucionária, jovem, trabalhadora, corajosa, portadora de todas as dores italianas e orgulhosa das suas capacidades na condução da Itália a grandeza mundial no jogo das nações.

As Categorias Ético-valorativas ou as Escolhas de Conteúdo dos Discursos de MUSSOLINI (Família, Trabalho e Raça) Os principais termos usados pelo líder movimento fascista para criar um sentimento de pertencimento, diferente do racial são: “Il cemento, il vincolo sacro dei nostri Morti”, “Migliaia di contadini, migliaia di braccianti vennero ad ingrossare le nostre file”, “popolo italiano. Esses vocábulos objetivam estabelecer uma consciência de grupo, ou seja, levam as pessoas a pensarem em si mesmas como membros de uma sociedade ou comunidade que divide uma mesma simbologia, que expressa valores, aspirações e medos. A “estirpe ariana mediterrânea”, o “Garibaldinismo”, a “Roma de Augusto”, a “Roma cristã”, “o sentido de italianidade” são exemplos das expressões usadas por Benito MUSSOLINI nos discursos analisados nesta tese para construir um ideal de afirmação nacional italiano, de uma “Raça” que divide: a tradição do Império Romano, uma religiosidade Católica Romana, uma mesma “mãe” a pátria “Itália”, uma mesma língua, um mesmo sangue, os mesmos heróis. O Fascismo enquanto sistema político pretendia viabilizar e impor esta ideologia na Itália.

Conclusão No ano em que a Itália comemora os 150 anos de sua unificação política, ganha em relevância a coincidência histórica do desenvolvimento deste trabalho que procurou discutir e apresentar as estratégias políticas de um projeto de unificação identitária na Itália. Nosso estudo buscou identificar que elementos discursivos-valorativos foram articulados para o programa de construção de uma identidade/cidadania italiana, através das categorias raça, língua, religião e território. Nosso trabalho investigativo constatou também que a presença de um Estado forte e intervencionista, favorecido pela consolidação da mídia, provocou o surgimento de novas vertentes do nacionalismo no contexto histórico entre as duas Grandes Guerras Mundiais. Este processo representativo estabeleceu um novo efeito na dinâmica da comunicação política e na forma de representação da retórica estatal com a sua consequente espetacularização. Outro fator de destaque derivado desse contexto histórico-político de definição de uma identidade nacional italiana é a questão linguística, que surge

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Uma proposta totalitária de construção de cidadania: os discursos fascista de Benito Mussolini

nesse ambiente como símbolo de identidade e/ou alteridade na estruturação do mundo, permitindo assim o reconhecimento das diferenças entre os que são italianos e os que não são italianos. Ao trabalhar com textos de um período histórico que suscita ainda dores e olhares preconceituosos a qualquer discussão acadêmica sobre o tema na Itália ou no Brasil, a presente tese se traduz em um estudo imparcial e isento de forma a oportunizar os elementos necessários ao debate científico, para que, em um mundo contemporâneo marcado por intolerâncias, a história não se repita.

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Rafael Mario Iorio Filho e Fernanda Duarte

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____. Economia y sociedad. Buenos Aires: Fondo de Cultura Economica de Argentina, 1977.

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O Decisionismo jurídico de Carl Schmitt André R. C. Fontes Universidade do Rio de Janeiro (Uni-Rio) [email protected] A Carl Schmitt atribui-se o mérito de haver criado a teoria jusfilosófica do Decisionismo, na qual se assentam as bases do conhecimento dos estudiosos nessa vertente de pensamento, e que oferece a melhor estrutura para o debate e para a reflexão, especialmente, pelas características mais marcantes de sua vida: a contrariedade ao Liberalismo e ao Positivismo (normativista).1 Um estudo das circunstâncias históricas do pensamento de Carl Schmitt mostra realmente a sua oposição ao que havia de dominante no Direito alemão de sua época. Esse período notável da Alemanha e de importância vital para o engrandecimento das Ciências Jurídicas era parte de um grande movimento que buscava a formação de um Direito genuiamente alemão, e que forçasse um movimento unificador dos múltiplos e balcanizados Estados germânicos. Muitos dos mais conhecidos juristas eram, inspirados na matriz romana, partidários dessa orientação jurídica autêntica e unificadora do povo alemão; outros eram seus opositores, pois julgavam ser necessário o viés germânico tradicional. Carl Schmitt não era o único, mas destacava-se dentre os mais cultos e eruditos de sua época por sua capacidade, acima de tudo, de forjar ideias próprias e originais. O fato é que, ao nascer, Schmitt já testemunhou uma Alemanha unificada pela ação de Bismarck e o Direito alemão em franco desenvolvimento. O Direito unificador, entretanto, continuava a preponderar em todo o país, inspirado no Idealismo, que converge para um Conceptualismo, agregado a um conjunto de ideias sob o rótulo comum de Jurisprudência dos Conceitos. E, nesse contexto, desenvolveu-se uma variante de feições únicas sob o nome geral de Pandectismo. A Schmitt coube o verdadeiro rompimento com esse Direito em vigor e propor novos parâmetros teóricos e metodológicos ao não usar a raiz romana – justamente a base do Pandectismo!2 Kelsen e seu Normativismo Sistêmico não deixavam de ser, em certa forma, igualmente opositores ao Direito em vigor na Alemanha tal qual Bruno Iorio. Analise del decisionismo. Nápoles: Giannini, 1987. Gabriel L. Negretto. El concepto de decisionismo en Carl Schmitt. México: S.O.S, 2000. Gabriel L. Negretto. El concepto de decisionismo em Carl Schmitt. México: Ultimo Reduto, 2000. passim. Gisele Silva Araújo. Rogerio Dultra dos Santos. O constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt: democracia substantiva e exceção versus liberalismo kelseniano in Curso de Ciência Política. 2ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. Carl Schmitt. Teoria de la constitución. Trad. Francisco Ayala. Buenos Aires: Struhart & Cia., s/d. p. 84. 2 Carlo Galli. Genealogia della política. Bolonha: Il mulino, 2010. José E. Lorca Navarrete. Temas de teoría y filosofía del derecho. Madri: Pirâmide, 1993. p.222. Bernd Rüthers. Carl Schmitt en el Tercer Reich. Buenos Aires: Struhart & Cia., s/d. p. 81. 1

O Decisionismo jurídico de Carl Schmitt

Schmitt. As premissas sustentadas pelo Positivismo Normativista de Kelsen chocavam-se, entetanto, com as mais profundas e sensíveis convicções de Carl Schmitt. Não obstante, os neo-hegelianos e os neokantianos da Escola Logicista de Marburgo e da Escola Axiológica de Baden perfilharem um eixo kantiano e, a rigor, Schmitt, tal como Kelsen, esboçar certos contornos de viés kantiano em suas teorias, é necessário deixar claro que a compreensão de certos elementos comuns ou coincidentes outra coisa não fazia senão acentuar as distintas concepções de cada autor.3 A principal forma de pensamento na Alemanha, o Conceptualismo Pandectista, também não se poderia enquadrar como um tipo específico de Positivismo Jurídico, porque continha elementos metafísicos fragmentados e bem definidos, nos quais a figura chave do direito subjetivo seja, talvez, o melhor exemplo de Metafísica no Direito à época. O que seria também o caso do Positivismo Normativista de Hans Kelsen com a figura da norma jurídica fundamental, algo que se poderia reputar verdadeiramente metafísico. A formação dos conceitos jurídicos, especialmente do Conceptualismo e do Pandectismo (amalgamados ou não), de ampla perspectiva metafísica, era a grande demonstração do poder dos dogmas e seus fundamentos derivados de uma mera especulação teórica. A par da construção de um conceito jurídico, caminhava o conceptualismo pandectista a latere do pensamento do Direito num percurso cientificista, que, a despeito de com ele não se confundir, foi chamado, impropriamente, de positivista, tal qual ocorreu no Brasil com a figura genial de Pontes de Miranda – possivelmente o maior cientificista brasileiro.4 Ao tempo em que apreciava as razões de seu pensamento, Schmitt forjava o Decisionismo pelo encontro de pensamento de autores que não se limitam ao plantel dos mestres franceses. Em Jean Bodin, extrai diretamente a concepção de soberania como poder. E, a partir da obra de Hobbes, desenvolve a fórmula São neo-hegelianos, dentre outros, Julius Binder e Karl Larenz. Julius Binder, La fondazione della filosofia del diritto. Turim: Einaudi, 1945. passim. Karl Larenz. Metodoldia da ciência do direito. Lisboa: Fundação Calouste Golbenkian, Cf. Wilson de Souza Campos Batalha. Sílvia Marina L. Batalha de Rodrigues Netto. Filosofia jurídica e história do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2000.p. 220. São Neo-kantianos Gustav Radbruch e Wilhelm Sauer. Wilson de Souza Campos Batalha e Silva Marina L. Batalha de Rodrigues Netto. op. cit. p. 185 e 194. Carlos Eduardo López Rodríguez. Introdução ao pensamento e à obra jurídica de Karl Larenz. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1994. p. 27. 4 Jean-François Kervégan, Hegel, Carl Schmitt, O político entre a especulação e a positividade. Trad. Carolina Huang. São Paulo: Manole, 2006.p. XXXI. Lorenza Córdova Vianello. Derecho y poder. México: Fondo de cultura economica. 2010, passim. Marco Caserta. Democrazia e costituzione in Hans Kelsen e Carl Schmitt. Roma: Aracne, 2005. passim. Gisele Silva Araújo. Rogerio Dultra dos Santos. O constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt: democracia substantiva e exceção versus liberalismo kelseniano in Curso de Ciência Política. 2ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. Karl Larenz. Metodoldia da ciência do direito. Lisboa: Fundação Calouste Golbenkian. Leon Duguit reconhecia o direito subjetivo como metafísico. Cf. Lecciones de derecho público general. Trad. Javier García Fernández. Madri: Marcial Pons, 2011. p. 20. Sobre a concepção de Normativismo Sistêmico de Hans Kelsen cf. 3

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(hobbesiana) de que é a autoridade, e não a verdade, que faz a lei (auctoritas non veritas facit legem). E são a soberania e a autoridade, verdadeiramente, o que há de mais puro no pensamento decisionista formulado por Carl Schmitt.5 O alcance do binômio soberania-autoridade nas premissas fundamentais do Decisionismo transcende a posição filosófica tradicionalmente aceita no Direito, lastreada em uma perspectiva exclusivamente realista ao pensamento de Schmitt, para se tornar um verdadeiro ponto de vista metafísico. É que a ideia de exceção suscita a dúvida de se saber o que seria a fonte (formal) do Direito e, também, a sua validade, dado que não existe norma que seja aplicada ao caos, ou seja, em uma excepcionalidade. Para Schmitt, o jurista decisionista toma a excepcionalidade como base de seu raciocínio, que não é o mandamento enquanto tal, mas o que leva a autoridade soberana à última decisão. Tomada a excepcionalidade como o mandamento, constituirá essa fonte de todo Direito, seja das normas, seja das ordens que dele decorrem. E essa excepcionalidade, não obstante tratada simplesmente pelos estudiosos como realista, de um realismo de cariz conceitual, volitivo ou emocional por Schmit, assume, em verdade, não um realismo, com propriedade empírica e “corpórea”, mas um vigor metafísico que se explicaria por se tratar a excepcionalide como uma essência inexperimentável, imutável e de algum modo espiritual. A feição schmittiana da excepcionalidade, por sua essência e propriedade, não rejeita a Metafísica, mas, ao contrário, é a sua mais pura realização.6 Na compreensão schmittiana, a decisão soberana é o começo absoluto, e o começo nada mais é que uma decisão soberana que toma a excepcionalidade como mandamento. Como não há uma norma para se aplicar ao caos, é preciso que a ordem seja estabelecida por meio de uma decisão. Ela, a decisão, é que fará com que a ordem tenha sentido. E é no teórico da soberania, Jean Bodin, que encontra Schmitt a premissa de que na soberania estaria a fonte do poder. Junto com Hobbes, do qual extrai a ideia de que basta, apenas, a vontade do soberano para conferir autoridade ao seu poder, toma a summa potestas e a auctoritas numa fusão, numa unidade de autoridade e vontade.7 Jean-Carrien Billier, Aglaé Maryioli. História da filosofia do direito. Trad. Pedro Henriques. Lisboa: Instituto Piaget, 2001. p.212. Adalgiso Amendola. Carl Schmitt tra decisione e ordinamento concreto. Nápoles: ESI, 1999. p. 7. Diogo Freitas do Amaral. v. I, Coimbra: Almedina, 1999. p. 317. Jean Bodin. Os seis livros da República. Trad. José Ignácio Coelho Mendes Neto. São Paulo: Ícone, 2011. Gisele Silva Araújo. Rogerio Dultra dos Santos. O constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt: democracia substantiva e exceção versus liberalismo kelseniano in Curso de Ciência Política. 2ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. Auctoritas non veritas facit legem em tradução livre seria: É a autoridade, não a verdade, que faz as leis. É a máxima extraída do Leviatã, de Hobbes. 6 Carl Schmitt, Os três tipos de pensamento jurídico. p. 81. Gisele Silva Araújo. Rogerio Dultra dos Santos. O constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt: democracia substantiva e exceção versus liberalismo kelseniano in Curso de Ciência Política. 2ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. 7 Gianfranco Poggi. A evolução do Estado moderno. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.p. 21. Jean-Carrien Billier, op. cit. p.213. José Luis Villacañas. Poder y conflicto. Ensayos sobre Carl Schmitt. Madri: Biblioteca Nova, 2008. p. 27. Gisele Silva 5

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O Decisionismo jurídico de Carl Schmitt

De um outro autor, Hugo Grócio, utilizado, também, como fonte de inspirações nas leituras de Schmitt, fica claro que Schmitt considera que o soberano tem a obrigação de respeitar e fazer respeitar um Direito pré-estatal dotado de um determinado conteúdo. Nesse particular, identifica Schmitt a divergência de Grócio com Hobbes, porque Grócio parte do interesse ligado a certas concepções de justiça, ou seja, do conteúdo de uma decisão, ao passo que, para Hobbes, somente interessa que se tome uma decisão.8 Ao elaborar as premissas de sua teoria, Schmitt considera que a vontade soberana põe termo à desordem e assegura, por meio dos seus mandamentos, a lei, a segurança e a paz. Nesse contexto é que surge a ideia de exceção (do latim excipere, ou seja, tirar de ou tomar de) e de que a decisão soberana consiste em abstrair-se da desordem e subtrair-se ao nada normativo para passar a uma ordem de Direito. Por temor à desordem e para assegurar, por meio de seus mandamentos, a obediência à lei, a segurança e a paz, o juiz recebe a autoridade de agir sobre todos de forma legítima.9 A base das decisões judiciais não é reduzida às suas considerações ou deduzida de uma norma jurídica porque o elemento decisionista de toda decisão não deve ser dedutível, como tradicionalmente parece se entender, de maneira normativa. E esse elemento decisionista, inerente à aplicação do Direito a um caso concreto, está contido na competência do juiz.10 O Direito está assentado na decisão, a decisão política do soberano, e é ela que fundamenta a validade do Direito. A exceção indica a essência da autoridade e, por ser a última decisão, a que garante a ordem jurídica na sua totalidade. A

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Araújo. Rogerio Dultra dos Santos. O constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt: democracia substantiva e exceção versus liberalismo kelseniano in Curso de Ciência Política. 2ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. Bernd Rüthers. Carl Schmitt en el Tercer Reich. Buenos Aires: Struhart & Cia., s/d. p. 119. 8 Jean-Carrien Billier, idem. p.214. Diogo Freitas do Amaral. História das ideias políticas. v. I. Coimbra: Almedida, 1999. p. 351. Raymond G. Gettell. História das ideias políticas. Rio de Janeiro: Alba, 1941. p. 252. A. L. Machado Neto. Compêndio de introdução à ciência do direito. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 1984. p. 16. Diogo Freitas do Amaral. História das ideias políticas. v. I. Coimbra: Almedina, 1999.p.351. Gisele Silva Araújo. Rogerio Dultra dos Santos. O constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt: democracia substantiva e exceção versus liberalismo kelseniano in Curso de Ciência Política. 2ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. Hugo Grotius. O direito da guerra e da paz. Unijuí, 2004. Bernd Rüthers. Carl Schmitt en el tercer Reich. Buenos Aires: Struhart & Cia. P. 81. 9 Jean-Carrien Billier, Ibidem. p.214. Gabriel L. Negretto. El concepto de decisionismo em Carl Schmitt. México: Ultimo Reduto, 2000. passim. Gisele Silva Araújo. Rogerio Dultra dos Santos. O constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt: democracia substantiva e exceção versus liberalismo kelseniano in Curso de Ciência Política. 2ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. Bernd Rüthers. Carl Scmitt en el Tercer Reich. Buenos Aires: Struhart & Cia., s/sd. P. 119. 10 Carl Schmitt. Teologia política. Trad. Francisco Javier Conde. Buenos Aires: Struhart & Cia., 1998. p. 40. Jean-Carrien Billier, Aglaé Maryioli. História da filosofia do direito. Trad. Pedro Henriques. Lisboa: Instituto Piaget, 2001. p.211.Jean-François Kervégan. Hegel, Carl Schmitt. Trad. Carolina Huang. São Paulo: Manole, 2006. 7.

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decisão separa-se, então, da norma, sem que essa circunstância implique tornála exterior ao Direito. O Direito assenta-se na norma e a decisão assegura a sua existência – eis a síntese do Decisionismo.11

Jean-Carrien Billier, Aglaé Maryioli. História da filosofia do direito. Trad. Pedro Henriques. Lisboa: Instituto Piaget, 2001. p. 215.Antonio Negri. P. 11. José F. Lorca Navarrete. Temas de teoría y filosofía del derecho. Madri: Pirâmide. 1993. p. 222. Bruno Iorio. Analise del decisionismo. Nápoles: Giannini, 1987. Gabriel L. Negretto. El concepto de decisionismo en Carl Schmitt. México: S.O.S, 2000. Gisele Silva Araújo. Rogerio Dultra dos Santos. O constitucionalismo antiliberal de Carl Schmitt: democracia substantiva e exceção versus liberalismo kelseniano in Curso de Ciência Política. 2ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.

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A Religião afeta os Projetos de Lei apresentados no Congresso Nacional? 1

Cláudia Ribeiro Pereira Nunes2 “As atenções estão voltadas para cima A incerteza e insegurança predominam Nossas nações cada vez mais desunidas Religiões e facções têm o seu poder na política” (O fim do jogo – Banda DSD – Direito, Sociedade e Democracia) Resumo A Constituição Federal estabelece que o Brasil seja um Estado laico. Preceitua que não seja adota nenhuma religião como oficial nem admite influências religiosas nas decisões e condutas do Estado. Entretanto, na pesquisa, constatou-se que os projetos apresentados pelos parlamentares das frentes parlamentares ou bancadas religiosas representam as concepções religiosas da frente parlamentar. Diante desse quadro, o objetivo geral que se pretende estudar é se a ideologia religiosa desses parlamentares pode influenciar e diminuir a laicidade do Estado. Nos últimos anos, essas bancadas vêm conquistando cada vez mais espaço no Congresso Nacional. Estudar-se-á como se constituem as bancadas que se caracterizam por adotarem essa conduta conservadora baseada na religião, além de quais são os projetos legislativos dessas bancadas que exercem suas atividades pautadas em seus valores e preceitos religiosos. Agradecimentos especiais à Gabriela Souza dos Santos, pesquisadora discente do NUPED – Núcleo de Pesquisas em Direito do UBM, que auxiliou a realização da pesquisa dos Projetos de Leis da “bancada de ideologia religiosa” utilizados nesse artigo, contribuiu para as discussões sobre o tema no Grupo de Pesquisa do UBM, escolheu o epílogo desse artigo e também aceitou ser orientada da autora em seu Trabalho de Final de Curso de Direito sobre o tema dessa pesquisa. 2 Mestrado (2002) e Doutorado (2008). Professora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade Veiga de Almeida e Pesquisadora do Centro Universitário de Barra Mansa. Co-líder do grupo de pesquisa reconhecido pelo DGP/CNPq da UFF: GEDAPI – Grupo de Estudo em Direito Ambiental e Propriedade Intelectual, financiado pela Fundação Assistencial e Educativa Cristã de Ariquemes – FAECA. Membro do grupo de pesquisa reconhecido pelo DGP/CNPq da UFRN: Direito e Regulação dos Recursos Naturais e da Energia, financiado pelo Konrad Adenauer Stiftung – KAS – Matriz Rio de Janeiro e do grupo de pesquisa reconhecido pelo DGP/CNPq do UBM: Direito, Desenvolvimento e Cidadania, financiada pelo do Programa Institucional de apoio à Pesquisa do Centro Universitário de Barra Mansa – PIAP/UBM (Modalidade Programa de Iniciação Científica). Conferencista do COPPETEC/UFRJ – CGTEC – CT2 e da FGV Manegment. Consultora Sênior do Escritório Nordi & Pereira Advogados Associados. E-mail: crpn1968@ gmail.com. 1

A religião afeta os projetos de lei apresentados no Congresso Nacional?

Palavras-chave: Frentes parlamentares religiosas; direito à liberdade religiosa; laicidade do estado. Abstract The Federal Constitution states that Brazil is a secular state. Provides that it does not adopt any religion as official admits nor religious influences the decisions and behavior of the state. Given this situation, the problem that we want to reply to what extent the religious ideology of these parliamentarians can influence and decrease the secularity of the State? In recent years, these countertops are gaining more and more space in Congress. It will be studied as are the stands which are characterized by adopting this conservative approach based on religion, and what are the legislative projects of these benches that perform their activities guided by their values and religious precepts. Key words: Religious parliamentarians groups; right to religious freedom; secularity of the state.

Introdução

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Estado laico é aquele em que há a inexistência de uma religião oficial como preceito constitucional, conforme é o caso do Brasil. Nesse ambiente de liberdade e igualdade, o Estado garante ao indivíduo a liberdade de escolher sua religião e exercê-la dentro do território nacional, mesmo havendo no preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil a menção de Deus. As principais características da liberdade religiosa constitucional são: (i) a possibilidade da pluralidade da crença; (ii) a liberdade do exercício do culto em qualquer ambiente (público ou privado), desde que dentro do limite em que o exercício de um direito por um indivíduo não prejudique os direitos de outros indivíduos; e (iii) a possibilidade da organização jurídica da igreja, sem necessidade de autorização do Estado, apenas tendo a obrigação de registrar o Estatuto no Registro Civil de Pessoas Jurídicas, no local do seu estabelecimento. Todos esses direitos são assegurados na qualidade de direitos fundamentais relacionados à liberdade religiosa na Constituição da República Federativa do Brasil, nos seguintes dispositivos legais: art. 5º, inciso VI; art. 19, inciso I; art. 210 §1º; e 228 §2º,e comprovam a laicidade do Brasil. Seja o eleitor, seja o parlamentar, ambos podem usufruir desses direitos fundamentais e expressar sua religiosidade de forma livre e, realmente, para a democracia, é importante ter representantes de todos os tipos de religiões no Poder Legislativo, como uma forma de dar voz a todos os indivíduos da sociedade. Entretanto, das instalações do Congresso Nacional, em Brasília,é possível presenciar mini cultos organizados por parlamentares da “bancada de ideologia religiosa” evangélica dentro, no horário do expediente e presidido por parlamentares que são pastores, o que flagrantemente contraria a laicidade do Estado. Sucintamente, se a democracia é o governo de um povo que reflete as vontades deste em ambiente em que todos são livres para expor suas opiniões e

Cláudia Ribeiro Pereira Nunes

manifestar suas crenças, a existência de “bancada política de ideologia religiosa” no Congresso Nacional é a comprovação do exercício dessa liberdade e da garantia dessa diversidade religiosa ou representa o descumprimento ao preceito da laicidade do Estado, garantido constitucionalmente? Para responder a essa problemática, o objetivo geral da pesquisa é a de estudar se a ideologia religiosa desses parlamentares pode influenciar e/ou diminuir a laicidade do Estado. Os objetivos específicos da pesquisa são o de entender a formação das bancadas políticas ou frentes parlamentares e o de indicar as características de uma “bancada política de ideologia religiosa”. A abordagem metodológica é a revisão bibliográfica multidisciplinar e a análise dos dados secundários, particularmente os projetos de leis e emendas disponibilizados no site da Câmara dos Deputados. O método é o dedutivohipotético, com base nos dados extraídos da legislação e da doutrina especializada, que permitirá entender a formação das frentes parlamentares com ideologias religiosas no Congresso Brasileiro, destacando-se se essas frentes podem ou não impactar as decisões dentro do Poder Legislativo. Os resultados esperados são os de responder a problemática a que se propõe a pesquisa. Pois, ao mesmo tempo em que a presença de “bancada de ideologia religiosa” pode ser importante, segundo a perspectiva da liberdade de expressão e da religião, essa bancada pode ser considerada como uma ameaça se isso compromete o livre exercício da política de um Estado.

Histórico, Características e Conceito das Bancadas Políticas ou Frentes Parlamentares no Congresso Brasileiro Historicamente, as bancadas políticas ou frentes parlamentares tiveram seu início, de modo informal, na Assembleia Nacional Constituinte, na época da redação a Constituição de 1988 (PAUL, 2010, p. 68). O objetivo principal era incluir na Constituição Federal disposições que pudessem satisfazer os interesses de grupos ideologicamente assemelhados (SILVA, 2015, p. 11). Diferente de como ocorre com os partidos políticos, um parlamentar pode se filiar a mais de uma bancada ao mesmo tempo, se assim decidir, nos termos dos regimentos partidários e legislações eleitorais. Bancada política ou a frente parlamentar é nomenclatura para o grupo de indivíduos3 que compõe os poderes legislativos federal, estaduais e municipais onde sua atuação é unificada em razão de interesses comuns (BRANCO; MENDES, 2014, p. 68). Quanto ao período de existência de uma frente parlamentar dependerá do momento político do Congresso Nacional, além do quanto é considerado Todos os integrantes de uma bancada política são os parlamentares eleitos pelo povo para ocupar os diversos cargos políticos existentes (BRANCO; MENDES, 2014, p. 6).

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importante e necessário debater e/ou defender um determinado assunto da pauta, que um grupo de parlamentares adota como base do seu legado, como por exemplo, as bancadas criadas para debater questões relacionadas à Bacia Hidrográfica do Rio Doce, entre outras. Vide a lista disponível em: . Acesso em 15 jun. 2016. Outras bancadas políticas ou frentes parlamentares têm uma longa história, com atuação contínua no Congresso Nacional. Embora os parlamentares que pertençam às bancadas políticas ou frentes parlamentares não pertençam ao mesmo partido político, sua atuação é unificada pela obrigação de votar em um mesmo sentido, por sua ideologia ou em razão de interesses comuns (COUTINHO, 2011, s/p). Observa-se que, na maioria das vezes, o programa partidário dos partidos políticos não é tão específico4, fazendo com que os parlamentares criem grupos mais específicos nas frentes parlamentares, em razão de interesses pessoais, profissionais, econômicos, religiosos, ou de seus apoiadores (MORAES, 2014, p. 165).

As “Bancadas de Ideologia Religiosa” e o Discurso Comum em Defesa dos Valores Morais, Religiosos e da Família As bancadas religiosas estão cada vez mais presentes no Congresso Nacional. A evolução das bancadas religiosas e o seu nível de influência no âmbito do Congresso Nacional é algo comprovado pelo crescimento numérico de membros nas últimas quatro eleições – o número de deputados componentes da bancada evangélica na Câmara quase dobrou de 1988 a 2006 (SILVA JUNIOR, 2007, s/p). A atuação das frentes parlamentares religiosas é pautada na proteção dos valores morais. De forma geral, as “bancadas de ideologias religiosas” caracterizam-se por serem conservadoras e aplicarem seus valores e opiniões religiosas às questões políticas quando em debate e votação no Congresso Nacional. Há duas Frentes Parlamentares ideologicamente religiosas atuando no Poder Legislativo: a católica e a evangélica. Apesar das diferenças existentes entre elas, atualmente ambas atuam de forma conjunta no Congresso quando querem utilizar o discurso de defesa dos valores morais, religiosos e da família. 4

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A explicação para essa espécie de agrupamento social é que apesar de os candidatos serem filiados um determinado partido político por opção própria, acabam passando a integrar bancadas que possuem o ideal no qual acreditam, como é o caso da bancada ruralista ou de evangélicos. Pelo voto em bancada, os parlamentares estão buscando defender em grupo o exercício de governo.

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Bancada Católica Há limitação no Direito Canônico quanto à participação de membros seus em política visando proibir aos padres e bispos católicos se candidatarem. Mesmo assim, os membros dessa ideologia religiosa, contrariando o regimento interno dessa religião,se candidatam5. Na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, foi citado e explicado o cânon 287, parágrafo 2º, no qual:

Os clérigos não podem ter parte ativa nos partidos políticos e na direção de associações sindicais, a não ser que a juízo da competente autoridade eclesiástica, o exijam a defesa dos direitos da Igreja ou a promoção do bem comum. O cânon 285 também faz referência ao tema e determina que “os clérigos evitem aquilo que, mesmo não sendo indecoroso, é alheio ao estado clerical” e enfatiza que “os clérigos são proibidos de assumir cargos públicos, que implicam participação no exercício do poder civil” (PIRES, 2014, s/p). A bancada católica é formada por parlamentares católicos que, ao longo dos anos, diminuiu em relação ao número total de candidatos eleitos. Como uma forma de fazer essa religião ganhar força no campo político e reforçar a bancada, foi reestruturado, em 2015, a Frente Parlamentar Mista Católica Apostólica Romana, formada por duzentos e nove deputados e cinco senadores. Vide o documento de sua constituição disponível em: . Acesso em 10 jun. 2016. Assim, apesar das orientações do Direito Canônico serem restritivas ao envolvimento de seus padres, bispos e cardeais na política, por não haver previsão expressa de punição de nenhum tipo para aqueles que infringirem essas regras, constata-se que há diversos parlamentares membros da religião católica.

Bancada Evangélica A Frente Parlamentar Evangélica teve sua formação em 1986. De modo geral, foi criada no intuito de manifestar conjuntamente os interesses das diversas denominações das igrejas evangélicas e é formada por todas as espécies de igrejas dessa religião. Em sua composição têm-se pastores, bispos e parlamentares leigos alinhados aos dogmas religiosos de diferentes partidos6. No ano de 2014, ao menos 23 padres brasileiros, segundo dados do próprio Tribunal Superior Eleitoral, se candidataram para os cargos de deputado estadual, federal ou mesmo de governador (PIRES, 2014, s/p). 6 Diferentemente da Frente Parlamentar Mista Católica Apostólica Romana, o número de deputados que compõe a Frente Parlamentar Evangélica vem crescendo cada vez mais, assim como o número de fiéis dessas denominações no Brasil. 5

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Atualmente é considerada a terceira maior Casa em número de parlamentares7. Na última eleição conseguiu eleger setenta e oito representantes, sendo setenta e cinco deputados federais e três senadores, além de conquistar a presidência da Câmara dos Deputados, com o Deputado Eduardo Cunha8, que era ligado à igreja Sara Nossa Terra, há 20 anos, mas recentemente afirmou que trocou de denominação e foi apresentado na igreja Assembleia de Deus Madureira, mas sem formalizar sua saída do quadro de membros da Sara Nossa Terra. Frisa-se que não há qualquer impedimento dos membros das igrejas evangélicas se candidatarem para cargos de qualquer dos poderes (legislativo ou executivo), nos termos do Estatuto registrados para constituição dessas denominações religiosas. Criticando a ideologia dessa frente Parlamentar, Magali do Nascimento Cunha (2014, s/p) explica que: É o forte tradicionalismo moral que tem marcado a atuação da Frente Parlamentar Evangélica, que trouxe para si o mandato da defesa da família e da moral cristã contra a plataforma dos movimentos feministas e de homossexuais e dos grupos de direitos humanos, valendo-se de alianças até mesmo com parlamentares católicos, diálogo historicamente impensável no campo eclesiástico.

Essas frentes parlamentares criam obstáculos para a aprovação de projetos que, segundo o ponto de vista desse grupo de parlamentares, se aprovados, são uma ameaça aos valores morais, religiosos e da família. Outro dado significativo é que a votação a respeito do aborto foi declaradamente adiada pelo Presidente da Câmara, que é integrante da bancada evangélica com uma justificativa paliativa (Disponível em: . Acesso em 25 mai. 2016) Outrossim, os parlamentares evangélicos, bem como os católicos também buscam obter vantagens comuns a ambos, como uma das medidas do pacote fiscal proposto no ano de 2015(MP 668), que isenta as igrejas,de qualquer religião, Fazendo uma comparação com as bancadas dos partidos políticos, a Frente Parlamentar Evangélica pode ser considerada o terceiro maior grupo de partidários de uma mesma ideologia no Congresso Nacional, ficando apenas atrás, em números dos partidos políticos do PT e do PMDB, e praticamente empatada com o PSDB. Assim, a bancada evangélica mostra a cada dia mais sua força, como, por exemplo, no caso do apoio na votação do impeachment da Presidente Dilma. Vide notícia da Câmara dos Deputados disponível em: . Acesso em 02 jun. 2016. 8 Cargo que ocupou de 1º de fevereiro de 2015 a05 de maio de 2016, quando o plenário do STF por unanimidade manteve a decisão do ministro Teori Zavascki, que determinou o afastamento de Cunha de seu mandato de deputado federal e, consequentemente, do cargo de Presidente da Câmara dos Deputados. 7

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ao pagamento de qualquer tributo sobre os repasses em dinheiro realizados aos líderes religiosos9. Ressalta-se que na pesquisa não foram encontradas frentes parlamentares de membros das religiões afrodescendentes, o que é um espanto, pois o Brasil é um país multicultural e essas são religiões com seguidores contabilizados pelo IBGE.

As Polêmicas em torno dos Projetos de Lei apresentados pelas Frentes Parlamentares Religiosas no Congresso Nacional Os principais temas discutidos por essas bancadas de ideologia religiosa são sobre a criminalização do aborto, as drogas, a redução da maioridade penal, os direitos do grupo LGBT e a união civil de pessoas do mesmo sexo, que obtiveram o reconhecimento do Estado quanto ao relacionamento afetivo e à partilha de direitos e deveres entre casais nas relações homoafetivas. Desses assuntos todos, o projeto mais discutido e chamou a atenção de toda a população, nos últimos anos, foi o Projeto da “Cura Gay” (PDC 234/2011), protocolado pelo deputado João Campos, cujo objetivo principal é eliminar uma resolução do Conselho Federal de Psicologia (CFP), que proibia o tratamento da homossexualidade como uma doença. Segundo o deputado, o Conselho Federal de Psicologia teria se excedido ao restringir a atuação dos profissionais da área. Dessa forma, aqueles que quisessem reverter sua homossexualidade poderiam realizar tratamentos com psicólogos (Mais informações em: . Acesso em: 19 mai. 2016). O projeto foi arquivado em 2013. Outro tema proposto pelo deputado João Campos, Coordenador da Frente Parlamentar Evangélica, é uma emenda constitucional (PEC 99/2011) que possibilita incluir as instituições religiosas entre as entidades com competência para questionar leis junto ao Supremo Tribunal Federal,com a justificativa de que haverá uma maior representatividade no dispositivo legal constitucional relativo à ação direta de inconstitucionalidade ou ação declaratória de constitucionalidade ao Supremo Tribunal Federal. O texto limita-se a indicar que o assunto principal deve ser considerado uma afronta à moralidade cristã. (Mais informações em: . Acesso em: 19 mai. 2016). O projeto encontra-se na fase de elaboração de parecer. O Estatuto da Família(PL 6583/2013), proposto pelo Deputado Anderson Ferreira é mais um projeto polêmico, principalmente ao modificar o conceito de família – artigo 2°. “Define-se entidade familiar como núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio do casamento ou 9

Enquanto funcionários de empresas privadas são obrigados a pagar a alíquota máxima de 27,5% de IR sobre seus bônus por mérito, alguns líderes, pastores e conferencistas que atraem multidões e arrecadam dízimos mais altos terão o aval para sonegação fiscal recebendo quase tudo como ajuda de custo.

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união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”, limitando a possibilidade de abranger as famílias formadas por pessoas do mesmo sexo. (Mais informações em: . Acesso em: 19 mai. 2016). A situação do PL é sui generis – há um recurso face ao seu arquivamento tramitando. Isso se deu porque a República Federativa do Brasil tem como um de seus fundamentos o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º), além de preceituar uma série de dispositivos que asseguram a liberdade e a igualdade aos indivíduos. Logo, não é condizente aos seus preceitos um Estatuto Democrático de Direito excluir da sua proteção um grupo de indivíduos devido a sua orientação sexual, uma vez que deve ser assegurada as minorias, os mesmos direitos das maiorias, para que possam escolher livremente o que melhor lhes convém, desde que esse ato seja lícito. Corroborando com tais ideais, o Ministro Luiz Fux (BRASIL, 2011, p. 60) fundamenta em seu voto: “[...] não poderia o Pretório Excelso deixar de promover os direitos de minorias, nem permitir que se fizesse uma leitura do conceito de família que permitisse o amesquinhamento de prerrogativas fundamentais. É pretensão legítima de que suas relações familiares mereçam o tratamento que o ordenamento jurídico confere aos atos da vida civil praticados de boa-fé, voluntariamente e sem qualquer potencial de causar dano às partes envolvidas ou a terceiros. Portanto, entende o Ministro que chegou o momento de compatibilizar a leitura e aplicação da Carta Maior ao momento histórico atual da sociedade, mormente porque “a interpretação constitucional está submetida ao princípio da ótima concretização da norma (Gebotoptimaler Verwirklichung der Norm)”. Ou seja, o aplicador da lei deve estar atento à legislação escrita, mas mudanças fáticas podem/ devem provocar mudanças na interpretação, de forma a atender aos anseios do cidadão e da comunidade”.

A Frente Parlamentar Evangélica já havia tentado, anteriormente, tipificar a homofobia como crime com a aprovação da PLC 122/2006 para assegurar o direito de condenar as práticas homossexuais sem que sofram qualquer tipo de sanção como a aplicação do tipo penal do crime de racismo e discriminação. (Mais informações em: . Acesso em: 19 mai. 2016). O projeto foi arquivado em 2014. Também há uma proposta visando à alteração no Estatuto do Nascituro – PL 478/2007 – pelo deputado Luiz Bassuma e Miguel Martini. (Mais informações em: . Acesso em: 19 mai. 2016). O Parecer do Relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC),requer a realização de Audiência Pública com a finalidade de debater o Estado do Nascituro por ser um projeto que limita direitos já garantidos em lei.

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O PL 5069/2013 tipifica como crime contra a vida o anúncio de meio abortivo e prevê penas específicas para quem induz a gestante à prática de aborto. O Projeto foi proposto por Eduardo Cunha, entre outros deputados evangélicos. (Mais informações em: . Acesso em: 19 mai. 2016). Há ofício nº 50/2015, da Agência Nacional dos Defensores Públicos – ANADEP, manifestando-se contrária a aprovação deste por ser ilegal. Tendo em vista que esses grupos sempre se opõem a qualquer avanço que contradiga seus valores religiosos, fica claro que a laicidade do Estado Democrático de Direito, conforme conceitua a Constituição da República Federativa do Brasil está sendo utilizada pelos parlamentares de forma deturpada, justificando que patrocinem interesses relativos aos dogmas religiosos, no âmbito de suas funções como representantes do povo (FEREIRA FILHO, 2012, p. 133). Apesar de não haver uma religião adotada oficialmente, há no Poder Legislativo, uma maioria que atua em nome da religião cristã, defendendo interesses contrários às minorias, o que não pode acontecer, uma vez que ao serem eleitos os parlamentares devem (...) fazer valer a vontade do povo e governar de forma democrática para todos os cidadãos, devem desempenhar suas atividades em busca do bem comum, levando em consideração todos os indivíduos e respeitando as diferenças (CANOTILHO, 1999, p. 27).

Diante do exposto, constata-se que as formas como esses parlamentares com ideologia religiosa atuam, respaldos pela liberdade religiosa que lhes foram conferidos constitucionalmente, afeta a laicidade do Estado.

Considerações finais A ideologia religiosa dos parlamentares influencia e diminui a laicidade do Estado. Isso é percebido na análise do conteúdo dos projetos apresentados por essas bancadas, principalmente, os da Frente Parlamentar Evangélica, que é maior, em relação ao número total de integrantes, é feita de forma absolutamente conservadora e é totalmente voltada para a aplicação dos preceitos religiosos, sob o argumento de que, dessa forma, está se preservando a moralidade e os bons costumes da família brasileira. Percebe-se que não é apenas uma frente parlamentar que se preocupa em representar os interesses dos indivíduos que seguem a religião, mas sim, que o grupo de parlamentares tem por objetivo implantar e influenciar a política brasileira com os preceitos cristãos e dogmas religiosos tradicionais. Além dos projetos, a forma como conduzem suas atividades no Congresso Nacional demonstra claramente que usam a religião como diretriz na atuação política. Um exemplo disso é a forma como controlam a pauta do Congresso Nacional, colocando sempre em primeiro lugar e dando celeridade aos seus

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projetos, ou até mesmo colocando empecilhos para atrasar ou não votar projetos que, de acordo com esses políticos religiosos, ferem a bíblia sagrada.Pode-se afirmar que a meta dessas frentes parlamentares é a de estabelecer uma pauta conservadora. Por invadirem os direitos das minorias, por meio da alegação de estarem em defesa dos valores morais, religiosos e da família, esses políticos entram em confronto com grupos feministas, homossexuais e de direitos humanos, por não compartilharem da mesma forma de pensamento e visão política destes. Principalmente, a Frente Parlamentar Evangélica interfere no andamento dos projetos defendidos pelas minorias, tendo como principais embates o aborto, a homossexualidade, a religião, a família e as drogas. Ao adotar essa postura,os parlamentares que integram as “bancadas de ideologia religiosa”acabam de uma forma nada democrática inserindo uma postura dogmática religiosa na vida política do Estado, mesmo sabendo que isso é vedado dentro de um Estado laico, gerando insatisfação da parcela da população que não compartilha da mesma visão religiosa ou que não segue nenhuma religião como os agnósticos e os ateus. Para esses eleitores e eleitos, isso se caracteriza como um retrocesso político, uma vez que as interferências realizadas por essas bancadas abordam até aqueles temas que já possuem uma diretriz, como é o caso da união homoafetiva, até outros assuntos que, segundo a sociedade brasileira, não devem ser resolvidos apenas por um grupo que tenha um ponto de vista religioso, como é o caso do aborto.

Referências bibiográficas BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva,2014 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4277. Min. Relator: Ayres Brito. Pub.em: 14 out. 2011. – Voto do Min. Luiz Fux foi o utilizado na pesquisa. ______. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. In: Vade Mecum Compacto. 9. ed. São Paulo: Saraiva,2013. ______. Câmara dos Deputados. Listas das Frentes Parlamentares. Disponível em: . Acesso em 15 jun. 2016. ______. Câmara dos Deputados. Frente Parlamentar Mista Católica Apostólica Romana. Disponível em: . Acesso em 10 jun. 2016. ______.Câmara dos Deputados. Frente Parlamentar Evangélica declara apoio ao impeachment de Dilma. Disponível em: . Acesso em 02 jun. 2016.

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COUTINHO, Simone Andréa Barcelos. Escolha eleitoral deve considerar secularismo do Estado. 2011.Disponível em: . Acessado em: 01 mai 2016. CUNHA, Magali do Nascimento.O neoconservadorismo evangélico. 2014. Disponível em: . Acesso em 03 jun. 2016. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional, 38. ed.,São Paulo: Saraiva, 2012. O GLOBO. Eduardo Cunha sobre aborto: “vai ter que passar por cima do meu cadáver para votar”. Disponível em: . Acesso em 25 mai. 2016. SILVA JUNIOR, Edison Miguel da.No Estado Democrático, não existe nenhum direito absoluto.2007. Disponível em: . Acesso em: 06 mai. 2016. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional, 30. ed. São Paulo: Atlas, 2014. PAUL, Alfred. Quem somos? A Saga Menonita: rompendo a barreira cultural, Curitba: PfugundFlug, 2010. PIRES, Maurício. A Religião e o Estado Laico. 2014.Disponível em: . Acesso em 05 mai. 2016. SILVA, José Afonso da.Curso de Direito Constitucional Positivo. 38. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2015.

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Democracia e Ativismo Judicial Pós-Constituição de 1988 Fernando Bentes1

Introdução O ativismo judicial é um fenômeno que possui uma pluralidade de acepções. De modo sintético, podem-se destacar as seguintes características deste conceito: a assunção de um papel político nas prestações jurisdicionais, marcado mais pela ação positiva do que pela omissão; a maior procura pelo judiciário, bem como a preferência deste poder aos demais, na resolução de demandas pela sociedade; a crescente ingerência do judiciário nos demais poderes por meio da revisão judicial de seus atos, ainda que de constitucionalidade defensável; a não aplicação horizontal de precedentes pela jurisdição constitucional2; construção de novos cânones de interpretação; fundamentação judicial voltada a resultados pré-determinados3. O objetivo deste trabalho é discutir algumas dificuldades que o ativismo judicial pode encontrar no Brasil, analisado à luz de um conceito procedimental de democracia. Cada parte abordará uma etapa necessária a este objetivo, a saber, o processo de ativismo judicial, suas particularidades no Brasil, a importância da jurisdição constitucional neste debate, a concepção democrática de jurisdição constitucional de John Hart Ely e a análise do ativismo no Brasil à luz dos conceitos de democracia procedimental. Neste sentido, será dado um enfoque especial no ativismo do Supremo Tribunal Federal (doravante: STF), dada a importância que o processo de incorporação de poder, funções e responsabilidades que esta corte sofreu a partir da Constituição de 1988, decidindo questões de grande relevância nacional e que, até aquele momento, eram objeto de deliberação em outras esferas políticas4. Professor-Adjunto de Direito Constitucional da UFRRJ, Professor da Pós-graduação/ Mestrado da UNIPAC, Doutor em Direito Constitucional (Puc-Rio), Advogado. E-mail: [email protected] 2 SEGAL, Jeffrey A. “Judicial Behavior.” In WHITTINGTON, Keith E., KELEMEN, R. Daniel, CALDEIRA, Gregory A. (ORG.), The Oxford Handbook of Law and Politics, Oxford University Press, 2008, p. 19. 3 ACKERMAN, Bruce. “The New Separation of Powers” in Harvard Law Review, Vol 113, Jan 2000, n° 3, p. 692; GINSBURG, Tom. “The Global Spread of Constitucional Review” In WHITTINGTON, Keith E., KELEMEN, R. Daniel, CALDEIRA, Gregory A. (ORG.). The Oxford Handbook of Law and Politics, Oxford University Press, 2008, p. 81. 4 BARROSO, Luís Roberto. “Constituição, Democracia e Supremacia Judicial: Direito e Política no Brasil Contemporâneo”, p. 10, no prelo. 1

Democracia e Ativismo Judicial Pós-Constituição de 1988

Este tema se impõe como objeto de estudo pela necessidade de discussão dos controles democráticos de sua atuação. Na medida em que se constata a atuação do judiciário e do STF, em especial, na decisão de importantes temas nacionais, torna-se importante conhecer em que bases este processo se desenvolve, para que se estabeleçam os limites desta ação, uma vez que, em nenhuma república há atribuição de poder sem a problematização sobre os limites e meios necessários para sua fiscalização5. A escolha desta abordagem se justifica na medida em que a democracia procedimental habermasiana se habilita como meio de conciliar discussões fundamentais no tema do ativismo judicial – a proteção de direitos individuais e a legitimidade democrática deste controle à luz da democracia.

Ativismo Judicial As origens do ativismo judicial remetem à atuação do poder judiciário frente à interferência cada vez maior do Estado nas sociedades democráticas, processo que se desenvolveu a partir da necessidade de implementação de direitos sociais6. A incorporação da justiça social como objetivo estatal, desde fins do século XIX, determinou uma inversão do paradigma fundacional da separação de poderes. Para efetivar os direitos sociais, o Estado teve que coordenar mais efetivamente as instituições políticas e patrocinar o crescimento de sua burocracia estatal, o que acarretou numa concentração de poder no executivo. Formavase, então, um modelo de “Estado administrativo”, pautado na eficiência e intervenção e contrário aos fundamentos de legitimidade do Estado liberal, que adotava mecanismos de controle popular e de freios e contrapesos para impedir a concentração de poder7. DAHL, Robert. Democracy and its Critics. New Haven:Yale University Press, 1989, p. 65. VILE, M. J. C. Constitutionalism and Separation of Powers. Indianapolis: Liberty Fund, 1998, p. 381. Ackerman evidencia a importância da justiça social ao propor a criação de novo poder, o ramo da justiça distributiva. Na verdade, propõe um olhar realista sobre as instituições norte-americanas, o que apontaria cinco ramos de governo: Câmara dos Representantes, Senado, Presidência, burocracia estatal e Judiciário. Propõe uma nova divisão funcional de poderes, numa espécie de “constrained parliamentarism”: casa legislativa eleita democraticamente que aponta governo e produz leis; este centro de comando pode ser fiscalizado por decisões populares diretas (referendos), pelo senado federal, eleito por parâmetros de representação dos Estados e pelo judiciário; além disso, torna-se imperativo um ramo de governo que fiscalize a corrupção e outro que fiscalize a eficiência da burocracia estatal; os direitos fundamentais são garantidos por um ramo de implementação de justiça distributiva e por um ramo judicial de controle de constitucionalidade que defende os diretos individuais ACKERMAN, op. Cit., p. 727). 7 As bases deste Estado Administrativo podem ser sintetizadas: a divisão interna do poder executivo entre governo e burocracia; o alto escalão do governo assume uma posição mais legislativa, de proposição e liderança de alterações legais e não de execução das políticas públicas; os partidos políticos atuam em todos os poderes como um agente de coordenação institucional; o legislativo se torna um mero órgão de controle com caráter representativo; 5

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Este Estado administrativo é criticado pela concentração de poder no executivo, pela possibilidade da influência de corporações econômicas diretamente na burocracia estatal e pela grande margem de competências e autonomia deste corpo burocrático, cujo perfil técnico e instrumental de ação serviria sempre como argumento contrário a qualquer espécie de fiscalização e controle externos, seja por ausência de qualificação técnica para esta tarefa, seja porque a burocracia se apresenta de modo imparcial e apolítico8. Tendo em vista a constatação de que a burocracia estatal sempre apresenta algum grau de partidarização política, não se sustenta que sua legitimidade possa recair numa confiança cega em seus atributos de neutralidade e objetividade técnica9. O surgimento do Estado administrativo apontou para a necessidade de uma reorganização dos poderes que pudesse conter a proeminência do executivo e garantir a democracia, mas, também, implementar a justiça social10. Embora o legislativo exerça uma função fiscalizatória no âmbito do Estado administrativo, a fraqueza das democracias parlamentares, centradas na supremacia legislativa, em conter a emergência de regimes autoritários ao longo do século XX minou parte da confiança nas instituições representativas para proteção dos direitos fundamentais.11 Atualmente, o poder legislativo também enfrenta críticas quanto ao seu descolamento da vontade popular, inércia no tratamento de questões de alto custo político-eleitoral, prática de corrupção e incapacidade de implementar ou exigir o cumprimento da justiça social, fato que ao invés de diferenciá-lo, aproxima-o do executivo12. Diante desta crise de legitimidade, a capacidade de o legislativo assumir o papel nodal de controle do executivo é questionada, abrindo-se espaço à atuação do judiciário, que poderia responder à dupla necessidade de fiscalização do executivo e de implementação dos direitos fundamentais13. e a burocracia se apropria da tarefa supostamente técnica de implementação das políticas públicas. (VILE, op. Cit., pp. 398-400). Ackerman chega a defender que existem tarefas tão específicas no Estado Administrativo que somente a burocracia especializada poderia apontar soluções e indicar alternativas legislativas para sua regulação (ACKERMAN, op. Cit., pp. 693 e 696). 8 Na lógica do estado administrativo, a única forma de controle possível seria a autoregulação burocrática, como conselhos de fiscalização, tribunais administrativos e agências reguladoras (VILE, op. Cit., pp. 419 e 420). 9 ACKERMAN, op. Cit., p. 692. 10 VILE, op. Cit., p. 387 11 Diante da crise do poder legislativo, surge uma sociedade centrada no caráter protetivo das constituições e no papel dos tribunais constitucionais em defender e promover os direitos fundamentais no âmbito do Estado administrativo CHAVEZ, Rebeca Bill. “The Rule of Law and Courts in Democratizing Regimes”In WHITTINGTON, Keith E., KELEMEN, R. Daniel, CALDEIRA, Gregory A. (ORG.), The Oxford Handbook of Law and Politics, Oxford University Press, 2008CHAVEZ, 2008, p. 63 et. seq.. 12 ACKERMAN, op. Cit., p. 692. 13 ACKERMAN, La Nueva División de Poderes. México: FCE, 20072007, pp. 88-95; VILE, op. Cit., p. 403.

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Este protagonismo judicial começou a se popularizar como objeto de estudo a partir da obra de C. N. Tate e T. Valinder, em 1995, “The Global Expansion of Judicial Power” (New York, NYU Press) que tomava o conceito de “judicialização da política” como uma expressão de dois movimentos constatáveis nas democracias-constitucionais: a tribunalização da política, que indica a incorporação por esferas não judiciais de princípios e procedimentos típicos do judiciário e o ativismo judicial, conceito já definido anteriormente. O ativismo judicial aponta para um protagonismo do judiciário que não só relativiza a tradicional neutralidade deste poder, como resulta na construção de um direito judicial, elaborado a partir da atividade construtiva de suas decisões, tomando a tradicional certeza do direito legal como mero ponto de partida14.

O Ativismo Judicial no Brasil O fenômeno ativista também se desenvolveu no Brasil, após a Constituição de 1988, assumindo contornos tão ou mais acentuados do que os verificados em outros países15. Dentre os fatores que contribuíram para o ativismo no Brasil, podese citar: a ampliação dos instrumentos de proteção judicial consagradas na Constituição de 1988, utilizados por minorias que não alcançam seus objetivos nas arenas majoritárias (partidos pequenos, governos estaduais, associações civis e profissionais); proeminência dos direitos fundamentais, alçados à posição de referencial interpretativo e centro valorativo da ordem jurídica; a redemocratização do país e natural reforço da magistratura e ministério público (doravante: MP) como instituições de defesa do Estado de Direito e da garantia dos direitos individuais, aviltados no regime militar; a afirmação deste tipo de comportamento ativo do judiciário como obra de consolidação da democracia; maior mobilização de grupos sociais, num processo de internalização do Estado pela sociedade civil; e a imputação de um papel progressista ao judiciário contra uma tradição clientelista e conservadora da elite política-econômica brasileiras16. BULYGIN, Eugenio. “Los Jueces crean Derecho?” in Función Judicial- Ética e Democracia. Jorge Malem, Jesús Orosco e Rodolfo Vasquez (ORG.), Barcelona: Gedisa, 2003, p. 21 a 37; GANUZAS, Francisco Javier Esquiaga. “Función Legislativa y Función Judicial: la sujeción del juez a la ley” in Función Judicial- Ética e Democracia. Jorge Malem, Jesús Orosco e Rodolfo Vasquez (ORG.), Barcelona: Gedisa, 2003, pp. 39-55; BARRAGÁN, Julia. “Decisiones Judiciales y Desempeño Institucional” in Función Judicial- Ética e Democracia. Jorge Malem, Jesús Orosco e Rodolfo Vasquez (ORG.), Barcelona: Gedisa, 2003., pp. 181-205. 15 VIEIRA, Oscar Vilhena. “Supremocracia” in Revista de Direito do Estado, n° 12, out/dez de 2008, p. 59. 16 BARCELLOS, Ana Paula. “Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático” In A constitucionalização do direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. 1ª ed, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, v. 1, pp. 606-616 e 627; CITTADINO, Gisele. “Judicialização da Política, Constitucionalismo Democrático e Separação de Poderes” in A democracia e os Três Poderes no Brasil. Luís Werneck Vianna (org. )Belo Horizonte: 14

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Luís Werneck Vianna considera que se estrutura, no Brasil, um processo de reinterpretação judicial, sob uma ótica pública ou republicana, da concepção privada que informa a rivalidade de grupos heterogêneos na sociedade civil. A igualdade inerente às teorias socialistas encontraria no judiciário um meio de concretização possível dos ideais não consagrados pela revolução social. Magistrados seriam os verdadeiros arautos de uma nova era de efetivação dos valores positivados constitucionalmente17 ( ).18 Este cenário mudaria completamente a conformação clássica da separação de poderes, que limitava a tarefa do magistrado à subsunção, em um modelo de democracia jurisdicional, sendo desejável e legítima a intervenção do judiciário nos demais poderes19. UFMG, 2002. pp. 17 e 18; CITTADINO, Gisele. “Poder Judiciário, Ativismo judiciário e democracia” in Alceu – v. 5-n.9- p. 105 a 113 – jul./dez., 2004, pp. 105-113; EISENBERG, José. “Pragmatismo, Direito Reflexivo e Judicialização da Política” in A Democracia e os Três Poderes no Brasil. Luís Werneck Vianna (ORG.). Belo Horizonte: UFMG, 2002, p. 47; MACIEL, Débora Alves e KOERNER, Andrei. “Sentidos da Judicialização da Política” in Lua Nova, n° 57 – 2002, p. 116 et. seq.; MAUS, Ingeborg. “Judiciário como Superego da Sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na sociedade órfã”. Novos Estudos CEBRAP, nº 58, Novembro 2000 (183-202), pp. 186-7; VIANNA, Luís Werneck et all. A Judicialização da Política e das Relações Sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999, pp. 1, 4, 9 e 12, 118 e 131; VIEIRA, J. R.; Silva, Alexandre Garrido da; BRASIL, D. R.; Silva, M. F. S. da; CAMARGO, Margarida Maria Lacombe; Tavares, R. S.. Ativismo Jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal – Laboratório de Análise Jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 12 e 13. 17 VIANNA, op. Cit., pp. 24-32. 18 O constitucionalismo contemporâneo consideraria afastada a revolução como um mecanismo de ruptura abrupta da ordem, sendo o Judiciário um avatar de uma “revolução sem revolução”, ou ainda, uma revolução institucional, do qual se tomam exemplos o protagonismo das magistraturas norte-americanas e italiana na proteção de direitos fundamentais e no combate à corrupção. A democracia jurisdicional seria uma forma de autogoverno da magistratura, resposta viável diante dos desafios de um mundo que não confia mais no messianismo político (VIANNA, op. Cit., pp. 8, 10 e 12). 19 Para uma definição do modelo tecnoburocrático do Judiciário brasileiro, marcado pela concentração de poder nos órgão de cúpula e pela seleção técnica dos juízes: BANDEIRA, Maria Regina Groba. “Democratização e controle externo do poder judiciário” in ESTUDO, abril de 2002 e CASTRO JÚNIOR, Oswaldo Agripino de. A Democratização do Poder Judiciário. Dissertação de Mestrado/Puc-Rio, 1996. Silva Júnior esclarece que a independência do judiciário brasileiro deve ser mitigada na medida em que o aumento de sua despesa depende da apreciação do legislador e a gestão e definição da aplicação dos recursos pertence, apenas, à cúpula dos Tribunais, que ainda têm a prerrogativa de escolherem os magistrados de seus principais cargos. Juízes singulares ficam ausentes de qualquer processo decisório interno e ainda são cooptados política e doutrinariamente pela jurisprudência dominante da Segunda Instância, numa espécie de vínculo vertical aos precedentes de instâncias superiores. No mesmo sentido, SILVA JÚNIOR, Walter Nunes. “Independência do Judiciário: o caso brasileiro.” http://www.ajufe.org.br/ sites/700/785/00000577.pdf., acesso em 29 de abril de 2015, p. 5. Para uma leitura crítica do ativismo judicial no Brasil: OLIVEIRA, Cláudio Ladeira . “Ativismo judicial, autorrestrição judicial e o minimalismo”. Diritto & Diritti, v. 1, 2008, p. 7 e 9 e VIEIRA, BRASIL, SILVA, CAMARGO e TAVARES, op. Cit., p. 15.

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O fenômeno do ativismo judicial desperta inúmeras questões importantes como o limite da jurisdição constitucional na defesa dos direitos fundamentais, em que medida a jurisdição constitucional pode servir como um fórum democraticamente legítimo para o debate de questões de megapolítica20 se, de um ponto de vista histórico-institucional, não foi concebido com esta função e de que maneira o ativismo causa uma redefinição na relação entre os poderes e no papel das instituições do Estado.

Jurisdição Constitucional no Brasil Existem, de maneira geral, dois grandes modelos de jurisdição constitucional, considerados clássicos pela sua influência em vários ordenamentos jurídicos. No sistema americano, chamado de difuso e concreto, a questão da constitucionalidade de lei ou ato normativo nasce dentro de um caso específico, de uma situação determinada (concreta) de conflito de interesses, julgada pelo juiz de primeira instância (controle difuso), com possibilidade de recurso até a Suprema Corte (“Supreme Court”). A decisão em matéria constitucional se restringirá, apenas, às partes em litígio no processo; seus efeitos não se estendem aos outros casos com a mesma matéria. O modelo de “judicial review” americano tem uma inconveniência: como nem todos os casos chegam até a Suprema Corte, que teria um caráter uniformizador das decisões, juízes diferentes podem decidir uma matéria constitucional de maneira oposta. Isto é contornado, no entanto, pelo sistema jurídico americano, de “common law”, que estabelece o vínculo aos precedentes. Desta maneira, as informações sobre as decisões judiciais circulam mais do que nos sistemas jurídicos de raiz romano-germânica e os juízes são obrigados a julgar em conformidade com a jurisprudência, uniformizando, assim, as decisões em matéria constitucional. No modelo europeu, qualificado como concentrado e abstrato, um órgão é competente pela interpretação de constitucional, o tribunal constitucional (controle concentrado). Há duas maneiras para que este questionamento se efetive: por via direta, quando algumas instituições se legitimam para propor uma ação específica de discussão da constitucionalidade; por via indireta ou incidental, quando um caso concreto suscita a questão de constitucionalidade. Neste caso, o andamento do processo é suspenso e a questão de constitucionalidade é remetida ao tribunal constitucional. Decidida esta incidental de constitucionalidade, o processo retorna ao seu curso normal. Este controle é abstrato porque a avaliação da constitucionalidade se faz em tese, sem que o caso concreto seja decidido – o tribunal constitucional só trata da questão pertinente à constitucionalidade. Esta decisão em tese ou abstrata tem efeito erga omnes, vale para todos os casos novos que sejam propostos à Justiça sobre aquela matéria. Este é, em linhas mestras, o modelo europeu, com algumas variações e particularidades em cada país. O 20

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A megapolítica definida como o núcleo de questões políticas controversas de um país, que envolvem temas como a alteração de processo político-eleitoral ou a definição de uma identidade nacional (HIRSCHL, Ron. “The Judicialization of Mega-Politics and the Rise of Political Courts” in Annu. Rev. Polt. Sci., 2008).

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Brasil, utilizando uma mescla dos dois sistemas, adotou um modelo híbrido ou duplo de controle de constitucionalidade: o juiz singular decide questões incidentais de constitucionalidade nos casos concretos e, ao mesmo tempo, permite-se o questionamento abstrato e concentrado de lei ou ato normativo, pelo STF.

A Jurisdição Constitucional Democrática de John Hart Ely A superação do paradigma positivista, que implicava na subsunção do caso concreto à lei, determinou uma esfera cada vez maior de discricionariedade ao juiz. Em alguns casos, isto se torna mais claro, porque a norma que serve de base ao aplicador do direito possui múltiplos sentidos e interpretações (normas de textura aberta). A alternativa de se recorrer, novamente, ao direito natural, não é válida, pois uma concepção unívoca de “bem” não pode ser definido com base em parâmetros universais e abstratos que não especificam seu conteúdo. Da mesma forma, repudia-se a filosofia moral, que pretende aperfeiçoar a interpretação constitucional para restringir a discricionariedade do julgador. Ely não só afirma o dissenso entre os próprios filósofos desta área, como ainda duvida que os juízes possam cumprir este papel21. Ely argumenta que o papel dos tribunais não é preencher o conteúdo, mas garantir o processo democrático de definição da norma de textura aberta. Para isso, os juízes devem seguir três diretrizes: toda leitura da constituição deve se ater, ao máximo, ao texto; toda norma que se quer impugnar deve ser analisada quanto a sua forma de elaboração, apurando-se o grau de participação política envolvido na sua confecção; avaliação de grupos minoritários desprezados no processo de elaboração da norma, o que leva a uma fragilização da democracia. As minorias devem ser protegidas, assim, de duas maneiras: tanto pela constituição, com a institucionalização de direitos fundamentais, quanto pelo judiciário, que vela pela participação política de grupos insulares no processo democrático. O papel dos tribunais é, portanto, de defesa regulatória da democracia, como uma espécie de mecanismo “antitrust”, que não define o conteúdo das regras de mercado, mas apenas atua em situações de curto-circuito do sistema22. A teoria de Ely tira a legitimidade do Judiciário para tomar decisões substantivas – isto pertence ao povo, que por meio de cidadãos autônomos irá definir o modo como deseja viver – o que se coaduna perfeitamente com o princípio da autonomia rousseauniana. O cidadão deve ter garantida sua liberdade para se autodeterminar, ainda que isto seja efetivado de modo indireto, por representantes, na esfera do poder legislativo. Há, porém, distorções neste processo democrático, geralmente, ligadas à exclusão da participação das minorias ou da dissonância entre vontade popular e representantes. Em ambos os casos, o ELY, John Hart. Democracy and Distrust: A Theory of Judicial Review. Harvard University Press, 1980, p. 137. 22 VIEIRA, op. Cit., pp. 71-73. 21

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judiciário deve atuar para garantir o processo democrático. Na segunda questão, avulta-se mais uma necessidade de intervenção judicial: não se pode deixar a cargo dos próprios representantes que tomem decisões sobre o mal funcionamento democrático. Em síntese, Ely se vincula a Habermas, “para quem o fundamental é se buscar a construção de procedimentos éticos de deliberação e não valores éticos a priori”. Ely defende, assim, uma teoria procedimental democrática da jurisdição constitucional: o papel judicial na interpretação constitucional se limita não a definir conteúdos de normas de textura aberta, mas de garantir a realização de procedimentos democráticos que a definem. Numa sociedade de pluralismo cultural – diria Habermas – e segundo o eixo central da democracia – o princípio da autonomia – não se pode conceber que decisões de alta relevância para a sociedade sejam arbitradas por um número ínfimo de pessoas não eleitas e que se consideram guardiões superiores da constituição23. Para aclarar o que Ely considera como regulação do processo democrático, Vieira cita um exemplo brasileiro: os cidadãos dos Estados mais populosos da Federação são sub-representados em relação aos cidadãos dos Estados menos populosos, no Congresso Nacional. Esperar que os próprios congressistas, beneficiários desta situação, corrijam esta distorção seria ingenuidade; logo, neste caso em que a igualdade e o procedimento democrático são violados, o judiciário deve intervir. Assim, a função judicial não se restringe aos aspectos contramajoritários e passa a ser um instrumento “de defesa da maioria contra os obstáculos decorrentes da adoção de mecanismos de representação.” A teoria de Ely consegue cumprir quatro objetivos principais: garantir o procedimento democrático no controle de constitucionalidade; permitir a efetivação do princípio da autonomia, na medida em que o próprio cidadão escolha a forma de interpretação de sua constituição; proteger as minorias seja pelos direitos fundamentais solidificados constitucionalmente, seja pela garantia do processo democrático; impedir distorções entre a vontade popular e a representação política legislativa. Viera considera a teoria de Ely extremamente importante para a consideração dos limites e do papel da jurisdição constitucional. É inegável que a teoria de Ely evidencia aspectos antidemocráticos da jurisdição constitucional. No caso brasileiro, o STF possui prerrogativas completamente destoantes dos tribunais constitucionais europeus, o que não só o separa da vontade popular, como aumenta sua independência para decidir questões substantivas de alto impacto na sociedade24. Na Alemanha, a eleição dos juízes do Tribunal Constitucional (“Bundesverfassungsgericht”) é feita por dois órgãos: o Conselho Federal (equivalente ao Senado), que representa os Estados, garantindo a representação HABERMAS, Jürgen. Democracia e Direito: entre facticidade e validade. Vol. II, Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro, 1997, pp. 44-46; HELD, David. Modelos de Democracia. Madrid: Alianza, 2002, p. 333. 24 No entanto, Vieira critica Ely por eleger o procedimento democrático como fim e não como um meio de se construir cláusulas supraconstitucionais que garantam a liberdade e a autodeterminação dos indivíduos. VIEIRA, Oscar Vilhena. “Supremocracia” in Revista de Direito do Estado, n° 12, out/dez de 2008, p. 74. 23

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das minorias federais (Estados menos populosos em comparação com os mais populosos) e o Parlamento Federal, que representa o voto popular majoritário, responsável por formar uma comissão de doze parlamentares, de acordo com a representação proporcional partidária, decidindo a escolha por uma maioria qualificada de 2/3. Entendendo-se o legislativo como a casa em que o povo exerce sua autonomia por via indireta, percebe-se um alto grau de controle popular na escolha da composição do Tribunal. Conforme Mendes, “É inevitável, pois, que a composição do Tribunal reflita a representatividade parlamentar dos partidos políticos.” O Presidente da República tem um papel meramente formaldeclaratório ao final do processo25. Na França, seguindo uma tendência mais aberta e democrática de eleição dos membros do Tribunal Constitucional (“Conseil Constitutionnel”), determina-se que sua composição seja renovada de um terço a cada três anos e que seu modo de indicação seja tripartite: os Presidentes do Senado, da Assembleia Nacional e da República indicam três membros cada um26. No Brasil, a escolha dos ministros do STF navega de acordo com o humor político do Presidente da República em exercício, seguindo o modelo norteamericano, com aprovação apenas do Senado Federal, por maioria absoluta. Além de se excluir a casa legislativa representante da população em termos majoritários, a Câmara dos Deputados (o Senado representa os Estados). A maioria necessária para a aprovação do candidato é pequena, muito inferior, por exemplo, ao modelo alemão. A composição do STF, absolutamente, não se submete à vontade popular, ao passo que na França e na Alemanha, minorias e maiorias têm seu espaço de participação política no processo de escolha. Dos três modelos em análise, o brasileiro é o único a não envolver a via legislativa de expressão das maiorias, uma vez que a Câmara dos Deputados não participa dos processos de escolha e, mesmo o Senado, historicamente, não se opõe à nomeação presidencial, diferentemente do que se verifica nos EUA. Além disso, a independência total do ministro do STF em relação à vontade popular é reforçada pelo fato de sua “eternização”: só é obrigado a deixar o cargo por vontade própria ou por ter atingido a idade da aposentadoria compulsória (setenta e cinco anos). Na Alemanha, há mandato de doze anos, proibida a reeleição, e idade limite de sessenta e oito anos para os juízes do Tribunal Constitucional. Na França, o mandato é menor ainda, de nove anos, não renováveis. Como se percebe, a composição e forma de escolha do STF têm um caráter completamente destoante com o modelo adotado em outros países, além de evidenciar um descompromisso com a prestação de contas à sociedade. Embora se atribua aos tribunais constitucionais a função protetora das minorias, não há um meio de se apurar o cumprimento deste dever institucional. Diferentes são os países em que o legislativo possui, realmente, poder de canalizar a vontade popular na escolha dos membros dos tribunais constitucionais. 25 26

MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 5. DANTAS, Ivo. O valor da constituição. Do controle de constitucionalidade como garantia da supralegalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 1996, p. 42.

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Congregam, num mesmo candidato, tanto as maiorias quanto as minorias – sem estas, não é possível alcançar os votos necessários para a nomeação, como se verifica na Alemanha. O fato do processo de escolha incorporar as minorias permite, assim, que apenas um nome consensual seja alçado ao tribunal, resguardando – em tese – os interesses minoritários. Frisa-se “em tese”, porque, uma vez nomeado, a vontade popular só pode apelar ao altruísmo do escolhido na garantia dos direitos das minorias27. Na teoria de Ely, no entanto, as decisões substantivas possuem um vínculo maior com seus destinatários. O princípio da autonomia se efetiva pelo fato de que o conteúdo das normas não se aloca na decisão de uma comissão de notáveis, mas pertence ao próprio povo, via seus representantes legislativos. Aliando-se a Habermas, na dupla proteção da soberania pública e privada, Ely defende a garantia dos direitos individuais universais (liberalismo) pela jurisdição constitucional, como meio de se viabilizar o autogoverno (republicanismo, que Habermas equivale ao comunitarismo). Assim, resguarda o direito das minorias sem desrespeitar a vontade soberana das maiorias. Outro ponto que realça o caráter antidemocrático do STF é o fato de estar integrado ao judiciário, como a Suprema Corte norte-americana. Já o modelo europeu qualifica o tribunal constitucional como um órgão de controle, fora do âmbito dos três poderes – judiciário, executivo e legislativo. Embora fundamente suas decisões em termos técnicos e jurídicos, o tribunal constitucional decide questões de interesses, com um impacto enorme sobre o modo de vida das pessoas. Além disso, Dantas afirma que pode não haver inconveniência maior na apreciação de atos administrativos pelo judiciário, fato que não ocorre “quanto à constitucionalidade das Leis, pelo fato de serem estas oriundas de um poder que representa a soberania do povo e que, por isto mesmo, não deveria ter os seus atos julgados por um outro poder (no caso, o Judiciário)”28. Aliando-se o impacto de suas decisões com a necessidade de se garantir o princípio da independência dos três poderes, a doutrina europeia qualificou o tribunal constitucional como um órgão político, que decide de acordo com uma motivação não só jurídica, mas também política. É obvio que o STF e a Suprema Corte também são órgãos políticos, embora não assumam este papel de modo franco e aberto. Isto se explica porque, se uma instituição é política, no contexto de uma democracia, ela deve permitir a expressão da vontade geral consolidada no legislativo. Isto ocorre no modelo europeu – como se constatou, o legislativo tem ampla ingerência na escolha dos membros do tribunal constitucional. No Brasil e EUA, a essência de sua função e a importância de sua decisão são as mesmas, mas os canais de participação democrática são bem mais estreitos, restando uma residual capacidade de controle dos membros do STF e da Suprema Corte pelo legislativo. Kant predeterminou o ordenamento jurídico MENDES, op. Cit., p. 6; DANTAS, Ivo. O valor da constituição. Do controle de constitucionalidade como garantia da supralegalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 1996, p. 37. 28 DANTAS, op. Cit., 1996, p.37. 27

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como a expressão da vontade universal, reflexo da atuação de seres racionais construindo uma sociedade na qual gozem de liberdade e cujas leis possam ser extensíveis a todos, como membros e autores daquela norma. A realização da justiça se dará, apenas, por um ordenamento jurídico construído com base na atuação da liberdade e da racionalidade. Será legítimo se as normas forem criadas pelos seus destinatários (princípio da autonomia). Será racional o ordenamento que vincula a lei ao imperativo da moralidade, da razão prática que busca a realização plena da liberdade. Aliás, a própria liberdade como ação autônoma, incondicionada e espontânea é a expressão da razão prática. O Estado de Direito surge, assim, como obra da vontade geral ou universal de indivíduos autônomos e racionais. Concluindo, a aplicação das considerações kantianas à legitimidade democrática da jurisdição constitucional resume a necessidade de que o controle de constitucionalidade busque uma abertura maior à soberania popular, seja pelo modelo europeu – que delega ao legislativo a competência pela eleição dos juízes – seja pelo sistema de Ely, que concentra a decisão conteudística no legislativo, atribuindo ao tribunal constitucional a responsabilidade pela manutenção procedimental da democracia29.

Conclusão: Democracia Procedimental e Ativismo Judicial A democracia procedimental de Habermas consegue unir algumas preocupações atinentes tanto à perspectiva liberal, quanto à perspectiva comunitária ou republicana na análise de alguns problemas fundamentais do ativismo judicial. Na perspectiva liberal, o processo democrático é entendido como um compromisso de interesses heterogêneos, como uma dinâmica que depende de direitos individuais para se sustentar e que tem como principal objetivo manter estes direitos humanos universais que garantem a autonomia privada. Importa menos a autodeterminação do sujeito como um ator político e mais a sua satisfação como pessoa privada que busca a felicidade numa sociedade econômica30. A participação dos cidadãos na política tem, por objetivo imediato, a realização do autointeresse e, como objetivo mais amplo, disciplinar o conflito de interesses sociais através do Estado, que assume o papel central de ação política. A avaliação da vontade política é considerada mais no “output” da ação estatal do que no “input” de avaliar a participação social na definição de sua ação31. A constituição e as normas jurídicas em geral desempenham o papel de disciplinar o Estado (princípio da legalidade, divisão de poderes, respeito SALGADO, Joaquim. A Ideia de Justiça em Kant. Seu fundamento na liberdade e na igualdade. Belo Horizonte: UFMG, 1986, pp. 240, 277 e 281. 30 HABERMAS, Jürgen. Democracia e Direito: entre facticidade e validade. Vol. II, Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro, 1997, p. 19. 31 Ibidem, pp. 19 et. seq.. 29

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aos direitos individuais) e obrigá-lo a manter o respeito da sociedade pelos direitos individuais. O liberalismo possui uma consideração realista, que obrigatoriamente dá relevância às eleições e aos órgãos estatais na prática e na garantia da democracia32. A perspectiva liberal, portanto, não pode desprezar a ação do judiciário na interpretação e aplicação do direito. À luz de seus postulados de proteção dos direitos individuais e valorização do papel do Estado, o liberalismo tende a atribuir ao Judiciário a mesma importância que dispensa aos demais órgãos estatais e a lhe dedicar especial atribuição na medida em que a retórica do ativismo judicial se coloca como principal guardiã dos direitos individuais. Para a perspectiva liberal de democracia, a atividade judicial e, em especial, da jurisdição constitucional, torna-se de extrema importância, uma vez que são os tribunais que contêm os excessos do Estado, fazem respeitar a autonomia privada. Pouco importa o aspecto procedimental de formação e tomada de decisão do judiciário, tal qual estabelecido no Brasil e nos EUA e criticado por Ely – o liberalismo está preocupado como output da decisão judicial e não como ela é formada, se franqueou a participação da sociedade, de que maneira as decisões são tomadas – estas são preocupações republicanas33. A perspectiva democrática comunitária se estrutura numa dimensão éticocultural de ligação entre sujeitos de uma comunidade. Essa comunhão remete a um momento fundacional da República e é reiterada ritualmente em cada momento de participação política. Não se compreende a sociedade como um agregado de sujeitos privados utilitários, mas como um sujeito coletivo, capaz de abstrair preocupações autocentradas em nome do bem comum e do consenso. Em certa medida, o republicanismo expõe um antagonismo entre a sociedade, dotada de personalidade política e o Estado, defendendo uma comunidade de autoadministração descentralizada contra a força da burocracia do Estado Administrativo34. Contrariamente ao realismo da concepção liberal, que destaca o exercício da soberania de modo delegado, pelos mecanismos da democracia representativa e pela ação estatal, o comunitarismo determina que a soberania não deve se afastar do povo, destacando-se o papel do poder constituinte, que nunca desaparece e sempre pode se manifestar35. É inegável que o republicanismo se aproxime mais de uma concepção do Estado baseada na democracia parlamentar. Embora minimize o papel da representação, esta concepção deve se vincular aos mecanismos que mais viabilizem a participação do Estado na sociedade, valorizando mais os processos eleitorais do que o exercício do poder que não depende de nenhuma influência direta ou indireta do povo, como a atividade jurisdicional. A concepção procedimental de democracia tenta unir as duas principais Ibidem, p. 20. Ibidem, p. 24. 34 Ibidem, p. 20. 35 Ibidem, p. 24. 32 33

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preocupações que permeiam o pensamento liberal e comunitário: a defesa dos direitos individuais e a participação política do cidadão, respectivamente. Na verdade ambos os temas são, ao mesmo tempo, a força e a fraqueza de ambas as concepções. Ao fortalecer a soberania privada, o liberalismo despreza a dimensão criativa e solidária da participação política coletiva. O republicanismo, por sua vez, ao defender a soberania pública pode esmagar a dimensão privada, a individualidade do sujeito em nome de uma soberania coletiva, que, em muitas situações, pode ser injusta ou imoral. O fundamento na teoria do discurso estrutura a democracia como um procedimento que deve reunir todos os atores políticos da sociedade em um processo comunicacional que vocaliza diferentes visões de mundo, sem interferências internas ou externas, na construção de normas comuns. Há uma defesa de um processo intersubjetivo, em que cada ator social exponha sua concepção de mundo. A democracia está no fato de se garantir que o mundo da vida possa ter o máximo de expressão para influenciar as decisões administrativas e dirigir o Estado. Esta concepção de política deliberativa se afasta do liberalismo e se aproxima do comunitarismo ao possibilitar a construção de valores comuns que emergem da intersubjetividade – não se garante que um ator social mude de opinião, mas, ao compreender a alteridade, ele pode não desprezá-la ou ignorar os efeitos danosos de uma decisão. Ao mesmo tempo, a democracia procedimental se afasta da concepção comunitária e se aproxima da liberal ao valorizar os direitos fundamentais como pressupostos fundamentais para a existência da democracia36. Aplicando-se esta concepção procedimental de democracia às decisões do STF, pode-se analisar que os mecanismos existentes de participação da sociedade são insuficientes e não determinantes, ou seja, não há instrumentos para que o mundo da vida influencie de modo determinante um órgão estatal que possui poder para decidir quase todas as questões que permeiam a vida social. A principal preocupação da democracia é permitir o acesso ao poder. Se o STF concentra boa parte das decisões importantes numa sociedade – as questões da “Megapolítica”, de Hirschl – deve-se ponderar se os meios disponíveis ao controle e à participação popular ou da sociedade civil organizada nessas decisões está sendo satisfatório ou insuficiente. A legitimidade democrática do Estado repousa na sua capacidade em ouvir e acolher as demandas que são debatidas na esfera pública. Se o Estado é fechado e a intersubjetividade exposta no mundo da vida não consegue se mostrar suficientemente, expressar todas as suas demandas e influenciar a ação estatal, não há que se falar em legitimidade democrática. No entanto, Habermas vai além, apontando um ciclo de problema, mesmo quando esta legitimidade democrática é respeitada37. Se o Estado obedece à complexidade social, sua ação é legítima e deve ser dotada de máxima efetividade. Mas quando a comporta que liga sociedade e Estado deve se reabrir? Isto é importante numa sociedade cada vez mais complexa, 36 37

Ibidem, p. 20. Ibidem, pp. 55 e 56.

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que possui mudanças muito mais rápidas do que se pode acompanhar na esfera legiferante e que deixa ao encargo de órgãos não representativos a incumbência pela decisão – judiciário e burocracia estatal, que tornam-se agentes executores de compromissos normativos pretéritos. As instituições do Estado de Direito normalmente têm um instinto de autopreservação que pode sufocar a renovação de suas bases sociais de legitimidade. Mas o que se discute exatamente é: será que têm legitimidade para continuar atuando? Não seria hora de a comporta se reabrir? Torna-se problemático saber quando esta “comporta” deve se reabrir e em que medida o fato de o Estado tomar uma decisão legítima em um momento pode não sê-lo, depois, se a sociedade não mostrou sua vontade, não se exprimiu, enfim, se os pressupostos da política deliberativa não foram seguidos. Concentrando a análise no foco deste trabalho – o ativismo judicial – podese perquirir se as formas de participação da sociedade no Judiciário permitem determinar se há um processo de abertura hermenêutica na tomada de decisão judicial. Dentre estas formas, citam-se: o perito, o júri, o Amicus Curie, a abertura maior na propositura de ação direta de inconstitucionalidade por algumas entidades (Conselho Federal da OAB, Confederações Sindicais), a transmissão ao vivo das sessões, além de outros mecanismos. Obviamente, estes canais de participação não se afiguram como meios determinantes de participação da sociedade nas decisões do STF. Podem significar certa abertura cognitiva do STF, mas não são decisivos ou deliberativos, mas consultivos e que garantem alguma transparência nas decisões. Ou seja, são insuficientes para que se afirme que há um processo procedimentalmente democrático na tomada de decisões do STF. Em certa medida, não se pode negar que o Judiciário se configura como um fórum da sociedade, da comunidade jurídica, da academia, de diferentes órgãos estatais e múltiplas esferas de governo, transformando-o numa arena de acesso de diferentes atores-intérpretes. Sendo assim, a judicialização da política no Brasil assume a feição de um processo hermenêutico aberto que resulta na proteção da soberania pública e da soberania privada, sem depender de tradições que respeitem os direitos humanos e a ação cívico-democrática, ou seja, sem confiar em uma herança cultural desta natureza38. O único perigo é que a assunção de uma parcela cada vez maior de poder pelo STF e pelo judiciário possa transformá-lo não em fórum ou árbitro da sociedade, mas em mediador cultural, ou seja, em um conselho de éforos responsável por interpretar valores constitucionais abertos e impor esta visão de mundo ao restante da sociedade.

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CITTADINO, Gisele. “Poder Judiciário, Ativismo judiciário e democracia” in Alceu – v. 5 – n. 9- p. 105-113 – jul./dez., 2004, p. 110.

A Necessária Distinção entre demos e kratos – Poder do Povo ou Poder sobre o Povo? Quem é o Povo? A Titularidade do Poder Constituinte Originário Vânia Aieta1 Resumo Apesar das significativas credenciais democráticas advindas do legado exposto pela fórmula de Lincoln, qualquer regime advoga para si a virtude democrática ainda que, em nível material, ela esteja distante. Desse modo, resta-nos perceber que a utilização literal dos termos demos e kratos, em uma perspectiva descritiva, já acabada, não exaurirá a problemática e o desafio de darmos alcance e balizamento à Democracia. A perspectiva de análise prescritiva perfaz-se como algo inacabado, necessitando de uma construção permanente para o reconhecimento do seu propósito e valor. Para tal escopo, faz-se necessário apreciar as correlações de demos e kratos com a ideia de povo como agente do poder, como instância global de atribuição de legitimidade democrática, como ícone do ideal democrático e como destinatário das prestações civilizatórias do Estado. O conceito de  demos  não é algo dado, mas sim um construído prescritivo. E o  kratos, por sua vez, pertenceria, de fato, ao titular do poder ou a quem promove o seu exercício? Palavras-chave: Democracia; poder; povo. Abstract Despite the significant democratic credentials resulting from the legacy of Lincoln’s formula, all regimes claim to have democratic virtue, even when at a material level they are far from it. Therefore, it is necessary to perceive that the literal utilization of the terms demos and kratos to describe the form of government will not overcome the problem and the challenge of attaining and delineating democracy. The perspective of prescriptive analysis leaves much unfinished, needing a permanent construct to recognize its power and value. For that scope, it is necessary to consider the correlations of demos and kratos with the idea of the people as the agents of power, of the highest instance for attribution of democratic legitimacy, as an icon of the democratic ideal and receiver of the civilizing services of the State. The concept of demos is not something bestowed, but rather a prescriptive construct. And does kratos, in turn, belong to the holders of power or to those who promote its exercise? Keywords: Democracy; power; people. Professora Adjunta da Faculdade de Direito da UERJ (PPGD-UERJ), da Escola da Magistratura, da Escola Judiciária Eleitoral, da Universidade Veiga de Almeida, da UNILASALLE e do Instituto de Direito da PUC-Rio. Pós-Doutorado em Direito Constitucional pela PUC-Rio. E-mail: [email protected]

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A Ideia Conceitual de DEMOCRACIA A ideia de democracia, nos moldes participativos, surge com o constitucionalismo contemporâneo ou material, divorciado do paradigma do constitucionalismo clássico2 e é apontada como um direito humano de quarta geração. No Constitucionalismo Material, ocorrido na passagem do século XIX para o XX, os caracteres principais passam a ser o conteúdo plúrimo3 e o perfil ideológico neutro4. Por democracia, no seu sentido etimológico, pode-se entender a democracia no plano literal ou semântico. A priori, a definição etimológica de democracia é “governo cujo poder pertence ao povo”. No entanto, há de se ressaltar que a construção interpretativa não se restringe exclusivamente ao conteúdo semântico, do texto em si, ou melhor explicando, do “corpus” do vocábulo. Devese considerar também os pilares do contexto e, sobretudo, o legado axiológico trazido pelo intérprete.5 Por isso, sustentar que a democracia é o poder do povo não oferece um resultado preciso para a problemática desta empreitada de busca conceitual, pois o significado do vocábulo democracia apresenta múltiplas interpretações acerca de quem possa ser considerado como povo. A ambiguidade do termo povo já podia ser detectada na antiga Grécia. Desse modo, o significado de demos apresentava distintas facetas. Demos significava não só muitas pessoas, mas também espelhava as classes mais pobres.6 Giovanni Sartori ensina que, no século V a.C, demos significava a comunidade ateniense reunida na ekklesia (a assembleia popular), reunindo tanto os polloi (os muitos) como também os pleíones (a maioria) e até mesmo os óchlos (o populacho no sentido degenerativo já que significava o que se entende atualmente por lumpesinato).7 Por sua vez, o conceito romano de povo deve ser compreendido exclusivamente no contexto de seu constitucionalismo, embora Sartori pondere que sendo o latim a língua oficial da Idade Média, não se pode desprezar a “leitura” romana do significado de povo. Desse modo, durante cinco séculos, o conceito de populus foi concebido, assim como o demos grego, como uma corporação e não como a soma total dos indivíduos considerados no plano No Constitucionalismo Clássico, deflagrado pelas Revoluções Liberais Burguesas do século XVIII, os pilares de sustentação desse modelo eram a separação de poderes e um rol de direitos que asseguravam direitos individuais em face do Estado. 3 Conteúdo plúrimo pois traz à cena constitucional um quantitativo maior de possibilidades de positivações como a inclusão dos Direitos Sociais. 4 Perfil ideológico neutro não significa necessariamente neutralidade política. Aqui, significa que nessa fase constitucional não ocorre alinhamento ideológico com um vetor ideológico específico, possibilitando a ocorrência de um constitucionalismo que pode oferecer múltiplas matizes ideológicas. 5 Dessarte, a resultam em uma compreensão mais aproximada do real. 6 Giovanni Sartori, A Teoria da Democracia Revisitada, p. 41. 7 Ibidem. 2

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singular.8 A noção do povo como totalidade orgânica espelha um entendimento de “todos como uma só unidade”, cuja geratriz pode ser detectada, na ideia grega de demos, como o corpo coletivo derivado da imagem da praça ou da assembleia, olhadas do alto.9 O ideal de unidade das massas deflagra o eidos diferencial entre aristocracia e democracia. Esta observância não reside na diferença entre poucos ou muitos indivíduos, mas sim no fato de que, nas democracias, os muitos a decidir são transformados, para parafrasear Norberto Bobbio: “em uma massa que pode ser considerada globalmente, porque a massa, enquanto tal, não decide nada.”10

A Ideia conceitual de POVO Sobre o entendimento do vocábulo povo, não obstante suas múltiplas interpretações, Sartori apresenta seis caminhos hermenêuticos. Em um primeiro plano, povo significaria todas as pessoas. Ao depois, poderia significar uma grande parte indeterminada de pessoas (muitos). Também, surge a possibilidade do termo significar uma classe inferior ou uma entidade indivisível (um todo orgânico). Além disso, poderia ser, ainda, uma parte maior (princípio da maioria absoluta ou princípio da maioria limitada). A primeira interpretação sartoriana faz referência à ideia de todos, instigando-nos, no plano literal, ao incluir, neste mister, absolutamente todo o mundo. Mas, na democracia grega a ideia de demos excluía as mulheres e os escravos.11 Na realidade, o cerne da questão está na busca do alcance e dos limites que o vocábulo povo possa apresentar. No que tange à segunda interpretação sartoriana, em sendo a democracia um procedimento, a ideia de povo enquanto muitos (grande quantidade de pessoas) realiza-se como uma noção que espelha a obstrução procedimental de se conseguir detectar, com precisão numérica, quantas pessoas são decisivamente suficientes para a construção do conceito.12 Porém, na terceira interpretação de Sartori poder-se-ia alcançar uma solução para a problemática procedimental aventada nas duas primeiras interpretações, pois pela terceira via poder-se-ia sustentar que a dita “grande quantidade de pessoas” Op. cit., p. 44. Norberto Bobbio, Teoria Geral da Política, p. 377 adição de texto, contexto e intérprete. 10 Explana o autor que a proximidade com as assembleias resulta na constatação de que são compostas de muitos indivíduos que, ao exercerem o seu direito de aprovar ou desaprovar as propostas dos oradores, contavam singularmente por um, o que significa que tanto a democracia como a monarquia e a aristocracia são, antes de qualquer coisa, compostas de indivíduos. Ibidem. 11 O autor alerta que o único caso em que se pode falar de decisão de massa é o caso da aclamação, que é o oposto de uma decisão democrática. A exclusão no universo do conceito de “povo” não se apresenta apenas como um fenômeno da Antiguidade. Vale afirmar que hodiernamente há algumas categorias de pessoas como, por exemplo, os presos, e os que possuem incapacidade eleitoral em razão da idade. 12 Sartori chega a refletir sobre o seguinte dilema: uma grande quantidade de pessoas baseada a que total? 8

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seria especificamente a classe trabalhadora, ou seja, a base da sociedade.13 Por outro lado, o autor sustenta que em democracias mais avançadas, onde a divisão de riquezas ocorre de forma mais igualitária, desprezando-se os “abismos sociais” característicos dos países terceiro-mundistas, torna-se difícil dizer que a classe pobre seria necessariamente a mais numerosa, o que, ao revés, pode-se com rigor asseverar, em conjunturas políticas em que o número de pobres excede concretamente o percentual dos detentores de recursos. Além disso, a ideia de povo como classe pobre revela uma exclusão permanente na medida em que o não pertencer à classe popular provocaria um banimento ad eternum do universo conceitual da compreensão de povo.14 Pela quarta interpretação sartoriana, o termo povo não é concebido de modo individualista, ou seja, como a soma total de indivíduos distintos capazes de decidir por si mesmos, mas sim como uma corporação.15 Porém, adverte o autor que por trás da fórmula “todos como uma só unidade”, poderia se vislumbrar a viabilidade de justificar autocracias totalitárias e não de democracias, pois, segundo Sartori: “uma democracia não pode sequer começar a existir se não recusar essa fórmula.” Por fim, a quinta e a sexta interpretação sartoriana versam acerca do princípio da maioria absoluta ou da maioria limitada. Na maioria absoluta, o direito da maioria tem um perfil absoluto, despido de limitações. Ao revés, pelo princípio da maioria limitada, o direito da maioria não pode ser absoluto, demonstrando tal interpretação uma maior razoabilidade já que concretiza as necessárias limitações impostas pelos direitos das minorias.16

Demos e Kratos Etimologicamente, a democracia vem dos termos demos e kratos. Por demos, pode-se entender o povo e, por kratos, o poder. Em grego antigo a palavra demokratia significava que o povo (demos) é de fato o poder (kratos) no Estado. O entendimento de demos, previsto na quarta interpretação sartoriana e alicerçado no legado de Rousseau, ao ser concretizado através de um paradigma de multiplicidade “não unitária”, mista e constituída por grupos17 não obstante a ficção da corporação, pode resultar em uma alternativa de razoabilidade para a construção científica do conceito de demos. No eidos da corporação, residiria um universo de microssistemas capazes de assegurar, de modo concomitante, a unidade em si cujo eixo é a própria pluralidade. Friedrich Müller procura analisar, de modo preciso, a construção do conceito jurídico de demos nos textos normativos das constituições democráticas. O escopo buscado pelas constituições Giovanni Sartori, A Teoria da Democracia Revisitada, p. 43. Ibidem. 15 Sartori assevera que tanto o demos grego quanto o populus latino foram concebidos como corporação. 16 Norberto Bobbio, Teoria Geral da Política, p. 377. 17 Friedrich Müller, Quem é o Povo? A Questão Fundamental da Democracia, p. 53. 13 14

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é sempre o da “legitimação do sistema político constituído”.18 O autor sustenta que o povo atua como sujeito de dominação do poder político quando, através da eleição de uma assembleia constituinte, propicia o irromper de uma constituição. Seria um critério de aferição do povo como sujeito ativo, sendo a ideia fundamental da democracia a determinação normativa do tipo de convívio de um povo pelo mesmo povo, o que resulta no entendimento de que não existe nenhuma razão democrática para desprezar o mais antigo dos conceitos de povo, provavelmente o mais abrangente que é o da totalidade dos atingidos pelo Ordenamento Jurídico, tal como reza Müller, em sua obra, in verbis: “one man one vote.”19 Porém, deve-se ressaltar que no universo da Teoria Política e do Constitucionalismo, o vocábulo povo não pode apresentar um conceito meramente descritivo, matemático, restrito exclusivamente à definição etimológica, mas também deve demonstrar como vetor principal o que a sociedade espera e exige de uma Democracia onde o princípio de que o Estado está a serviço dos cidadãos e não o contrário, ou seja, que o governo existe para os governados e não vice-versa seja um fator sine qua non. Assim, com fulcro nesse aspecto, a controvérsia gerada pelo célebre discurso de Lincoln, em 1863, onde o mesmo apresentou a mais memorável de todas as caracterizações de Democracia ao propagar o “governo do povo, pelo povo e para o povo” reside na preposição “de” (governo de + o povo), pois essa pode indicar tanto o sujeito quanto, ao revés, o objeto da ação.20 Já, a expressão “governo pelo povo” apresenta a imperfeição semântica da vaguidade, pois se revela obscura na necessária empreitada de instigar a deflagração de conjecturas determinadas. Dessarte, carece tal expressão de explicitar em que sentido se dá a assertiva “pelo povo”.21Em uma perspectiva estritamente exegética, o terceiro elemento da fórmula de Lincoln apresenta-se despido de ambiguidades na medida em que a expressão “para o povo” significa, sem qualquer nesga de dúvida, em benefício ou vantagem do povo. No entanto, malgrado as significativas credenciais democráticas advindas do legado exposto pela fórmula de Lincoln, qualquer regime advoga para si a Müller advoga que não obstante a capacidade eleitoral ativa não seja um direito de todos, as pesquisas de opinião, as atividades políticas individuais e associativas produzem efeitos sensíveis na formação da vontade política do povo, contando não só com os “cidadãos”, mas com um universo mais alargado de pessoas. Op. cit., p. 52. 19 Op. cit., p. 58. 20 Giovanni Sartori, A Teoria da Democracia Revisitada, p. 57. O autor sustenta que, no que diz respeito ao aspecto da expressão “governo do povo”, várias conjecturas são admissíveis, entre elas: •governo do povo significando um povo que se autogoverna, uma democracia direta; • inversamente, que o povo é o objeto do governo, que é governado; • que o governo emana do povo no sentido de derivar sua legitimidade do consentimento do povo; • que o governo é escolhido pelo povo; • que o governo é guiado pelo povo. 21 Op. cit., p. 58. 18

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virtude democrática ainda que, em nível material, ela esteja distante. Desse modo, resta-nos perceber que a utilização literal dos termos demos e kratos, em uma perspectiva descritiva já acabada não exaurirá a problemática. Ao revés, a perspectiva de análise prescritiva perfaz-se como algo inacabado, necessitando de uma construção permanente para o reconhecimento do seu propósito e valor. Para tal escopo, faz-se necessário a apreciação das correlações de demos e kratos com a ideia de povo como agente do poder, como instância global de atribuição de legitimidade democrática, como ícone do ideal democrático e como destinatário das prestações civilizatórias do Estado.22 O conceito de demos não é algo dado, mas sim um construído prescritivo. O kratos, por sua vez, pertenceria, de fato, ao titular do poder ou a quem promove o seu exercício? A utilização pioneira do termo demos pode ser encontrada, na história do constitucionalismo, entre os americanos. Eles utilizaram o conceito de povo como titular da soberania democrática. Jefferson, ao redigir o projeto de Constituição para a Virgínia, em 1776, propôs que esta Carta Magna fosse promulgada pela autoridade do povo, ao sustentar: “Be it therefore enacled by the authority of the people ...”23 Há de se inferir que, na sociedade americana, a inexistência de estamentos facilitou consideravelmente a sedimentação da ideia de povo (demos) como titular da soberania. Ao contrário da França, na sociedade americana, a existência da escravidão legal não representou um obstáculo teórico à concretização desse entendimento, pois o precedente da democracia ateniense, que excluía escravos, metecos e mulheres do universo da cidadania, não deixou de ser um paradigma de análise.24 Ao revés, em França, a ideia de nação deu esteio à construção conceitual dos regimes antidemocráticos. Os revolucionários franceses, no afã de afastar a ambiguidade do termo povo, entronizaram, no lugar do rei, a ideia de nação.25 Assim sendo, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, no bojo da Era das Antecipações, contém, no esteio da influência de Siéyès e de seu famoso panfleto Qu’est-ce que le Tiers État?, em seu artigo 3º, a prova cabal de defesa da ideia de nação, in verbis: “O princípio de toda soberania reside essencialmente na Nação. Nenhum corpo, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que dela não emane expressamente.” Mais tarde, por influência de Robespierre, a Constituição da Convenção de 1793, conclamando a concretização dos fatores reais de poder sustentou que: “a soberania reside no povo; ela é una e indivisível.” Robespierre, ao apresentar seu projeto de declaração de direitos à Convenção, em 1793, asseverou: “O povo é soberano: o governo é a sua obra e sua propriedade, os funcionários públicos são seus empregados. O povo pode, a seu talante, mudar o governo e destituir seus mandatários.”

Friedrich Müller, Quem é o Povo? A questão fundamental da Democracia, passim. Op. cit., p. 15. Müller aduz que o recurso à ideia de povo como titular da soberania, mesmo num Estado federal e não unitário, tornou-se inevitável na história do constitucionalismo americano. 24 Op. cit., p. 17. 25 Op. cit., p. 19. 22 23

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A atenuação da dificultosa empreitada conceitual de definição do demos encontrou esteio nas lições proferidas por Friedrich Müller. Müller sustenta, em sua obra “Quem é o Povo? A questão fundamental da democracia” que o conceito de povo é plurívoco e não unívoco, sendo antropomorfista a tentativa de redução política de “povo” a um só entendimento, opinião ou vontade.26 A primeira consideração de Müller acerca dos pilares construtivistas de demos e kratos se dá com a assertiva de que o demos deva ser o agente ativo do kratos, atuando como sujeito de dominação através da eleição de uma Assembleia Constituinte, além das eleições ordinárias dos mecanismos de democracia semidireta, dos instrumentos de autogestão e quaisquer outras formas assecuratórias da participação popular. Dessarte, a máxima one man one vote consagra-se como um mecanismo que propicia a inclusão política da totalidade dos atingidos pelas normas como agentes do kratos, em nível material.27 Além disso, o demos se consagraria ainda como uma instância global de atribuição de legitimidade através de uma estrutura de legitimação formada por um ciclo onde o povo ativo elege seus representantes e o trabalho dos mesmos resulta na textificação das normas que implementarão as funções dos aparelhos estatais produtores de atos destinados a todo o povo, nesse caso, enquanto população, pois engloba a todos e não exclusivamente os eleitores alcançando também os não-eleitores e os eleitores vencidos pelo voto (considerando-se um direito eleitoral que adote o princípio da maioria).28 Porém, a invocação do poder constituinte pelo povo num sentido amplo e não só enquanto povo ativo eleitoralmente implica por obrigatoriedade na vigência, na prática e na eficácia dos direitos fundamentais políticos (não como valores e privilégios, mas como normas igualitárias assecuratórias de uma participação ativa de todas as pessoas que fazem parte de uma sociedade). Uma terceira perspectiva acerca do demos, formulada por Müller, se dá com a ideia de povo como ícone. Trata-se da problemática da legitimidade, pois não há representatividade concreta em uma ambiência de eleições fraudadas ou através de quaisquer manipulações do procedimento de votação. A iconização, para Müller, consiste no abandono da ideia de povo per si, de modo a mitificar a população como uma hipótese sacralizada, inofensiva perante o monopólio legítimo da violência exercida pelo grupo composto pelos “atores dominantes” da cena política. Dessa forma, os atores dominantes almejam “invocar o povo”, “agir em nome do povo” desde que esse povo seja um grupo majoritário composto à imagem e semelhança dos atores dominantes.29 Müller considera que a ideia da nação tenha se transformado em um dos mais notáveis ícones políticos dos tempos modernos. Op. cit., p. 20. 27 Desse modo, o autor assinala que a adoção do princípio majoritário perfaz-se como algo inevitável. Porém, Müller revela-se cauteloso ao diferenciar totalidade do povo em contraposição de fração dominante do povo. Op. cit., p. 58. 28 Op. cit., p. 61. 29 Op. cit., p. 68. 26

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O fenômeno da iconização reside na tarefa de unificar na mítica de “povo” uma população diferenciada, marcada pelas diferenças axiológicas, de classes sociais, de gênero, de etnia, de língua, de cultura e de religião. Mas tal tarefa revela-se, em termos de legitimação, deveras precária. A razão disso é a evidência de que a população, heterogênea, vai sendo submetida a um processo para se tornar homogênea em prol dos privilegiados e dos ocupantes do establishment.30 Assim, a constituinte é ungida como povo e mantenedora da constituição através de um simulacro de legitimidade.31 No entanto, não obstante o caráter de simulacro, a fórmula ilusória de “poder constituinte do povo” como unidade demanda apresentar-se como sujeito político real, como destinatário e também agente de responsabilidade e controle. Para isso, são necessárias algumas instituições e procedimentos tais como: eleições livres e a criação de uma Assembleia Constituinte que venha a garantir mecanismos assecuratórios de uma concreta participação popular.32 Parte-se, então, para a análise do conceito mülleriano de povo, asseverado na proposta de ser o mesmo o destinatário das prestações civilizatórias do Estado. O autor assevera que o conceito de povo, enquanto atribuição, compreende os cidadãos de um respectivo país, mas avança politicamente ao propor o alargamento do universo dos destinatários do elemento finalístico do Estado, o bem comum, para que se possa alcançar, também, a população de um modo geral, alicerçando tal proposição no princípio da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, advoga Friedrich Müller: “O mero fato de que as pessoas se encontram no território de um Estado é tudo menos irrelevante. Compete-lhes, juridicamente, a qualidade do ser humano, a dignidade humana, a personalidade jurídica [Rechtsfähigkeit]. Elas são protegidas pelo direito constitucional e pelo direito infraconstitucional vigente.”33

Dessarte, constrói a distinção entre povo ativo e povo destinatário. O primeiro, como instância de atribuição restrita aos eleitores e o segundo salvaguardando a máxima de que ninguém estaria legitimamente excluído da proteção estatal.34 Müller aduz que o fenômeno de “criação do povo” pode se apresentar através de práticas de colonização, reassentamento, expulsão, liquidação e, mais recentemente, até mesmo a limpeza ética. Op. cit., p. 72. 31 Ibidem. 32 bidem. 33 Op. cit., p. 75. 34 Assim, as pessoas que fazem parte da “população” devem gozar de proteção jurídica, tendo o direito de serem ouvidas nos tribunais através de um sistema que assegure o devido processo legal, estando protegidas por direitos humanos e direitos fundamentais que venham inibir ou punir a ação ilegal do Estado. Müller conclama o conceito revolucionário de povo, produzido por Mao Tsé-Tung, em sua obra “Citações do Presidente Mao Tsé-Tung”, quando o mesmo sustenta que, na etapa 30

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Por fim, pode-se com rigor concluir, no esteio dos ensinamentos müllerianos, advogando a ideia de povo prescritiva e não somente descritiva, que a concepção de povo como conceito jurídico deve ser interpretado de modo que quaisquer exclusões políticas sejam eliminadas. Desse modo, as “hierarquizações” existentes no universo do conceito de povo, como por exemplo, a incidência de desigualdade material (ainda que não formal) que possa contribuir para a construção de privilégios sociais que massacrem as mulheres, os negros, os índios, os pobres, enfim, toda e qualquer sorte de excluídos deve ser severamente exterminada, não só no plano jurídico como também, politicamente, em nível de práxis. Ao se alcançar esse status já não basta pensar em heterogeneidade estrutural ou marginalidade (no sentido de não integração dos grupos marcados pela exclusão). Ao tratar da problemática, Niklas Luhmann ressalta que a diferenciação funcional da sociedade moderna, geradora da diferença nítida entre inclusão e exclusão, solapa tal distinção produzida pelo fato de não incluir grandes contingentes populacionais na comunicação dos sistemas funcionais.35 A exclusão deslegitima. Por isso, faz-se necessário vencê-la não mais exclusivamente por meio dos textos constitucionais, mas através da ação do Estado. A legitimação advém da ideia do conceito concreto de povo, trazida pela concepção sociológica de Lassalle dos “fatores reais de poder”. Por isso, a legitimidade, como normatividade jurídica, é um processo e não uma substância ou mesmo uma qualidade de textos no patamar constitucional.36 Depois, resta-nos aduzir que o kratos traz a evidência de que governar significa tradicionalmente ser sujeito agente do poder decisório e do exercício do poder. Por isso, para que se possa alcançar a concretização do elo que necessariamente deve unir a trilogia demos – democracia – kratos, a legitimação do kratos será desencadeada através da interpenetração do mesmo com o demos, provocando um eidos uniforme.37 Com isso, pode-se assegurar que o binômio demos – kratos extrapola as fronteiras do universo da estrutura textual para alcançar um nível de demandas maior, fulcrado em uma democracia que apresente um status negativus e um status positivus, representando um nexo legitimador com a concretização dos ideais de igualdade e liberdade no plano das normatividades (em uma perspectiva de Ordenamento e não meramente da Lei como fonte), divorciando-se das limitações semânticas da letra da lei e adotando uma concretização hermenêutica que considere os pilares do texto, do contexto e do intérprete para a construção dos conceitos de demos e kratos. de construção do socialismo, o conceito de povo deveria ser entendido como “todas as classes, camadas e grupos sociais que concordassem com a revolução”. 35 Friedrich Müller, Quem é o Povo? A questão fundamental da Democracia, p. 93 apud Niklas Luhman, Das Recht der Gesellscraft, pp. 582s. 36 Op. cit., p. 107. 37 Tal construção impõe o total afastamento da ideia da correlação entre demos e kratos apenas pelo viés da dominação. Ao revés a essência dessa trilogia demos – democracia – kratos pode ser expressa na aclamação de Rousseau “colocar o povo no trono”. Müller adverte-nos que a deformação autoritária ainda apresenta resquícios não obstante o “sujeito do kratos” tenha sido substituído.

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Desse modo, pode-se vislumbrar que a titularidade do poder constituinte originário tenha como sujeito um conceito de demos marcado pela inclusão dos partícipes, num ideal de democracia participativa e não de exclusão, restringindo essa titularidade ao universo dos eleitores. O poder constituinte realiza-se como um poder para a ação, diferenciandose da força, marcando a passagem do Poder,38 em seu estado bruto, para o Direito. Dá-se pela institucionalização do fenômeno social, jurisdicionalizando-o. A problemática da titularidade do poder constituinte implica a apreciação do conceito de soberania.39 Nesse sentido, tanto Apel quanto Habermas advogam “o homem como o parceiro da sociedade”. Há de se considerar que a Constituição é uma peça lógico-sistemática existente em qualquer Estado, de qualquer época, com qualquer significado e conteúdo. Porém, deve-se ter cautela com a concretização, no plano prático, do conceito meramente normativo de Constituição, pois a crença em conceitos meramente assépticos numa Constituição, esvaziados de qualquer valor, podem apresentar um perigo concreto à dignidade da pessoa humana. A concretização do conceito prescritivo do demos, como titular do poder constituinte, exige um compromisso, através de consenso fundamental que exija a conciliação de ideias, o pluralismo e o respeito aos antagonismos. Michel de Miñon considera, ao tratar da Teoria da Constituição e suas correlações com a concórdia política, que a decisão do que diz respeito à Constituição pode oferecer formas múltiplas, o que exigiria do demos, a concórdia, o compromisso do consenso. Tal postura deflagraria uma ascese constitucional do demos, fazendo com que o povo possa dar primazia aos interesses da comunidade em detrimento dos interesses individuais ou particulares. As correlações entre a titularidade do poder constituinte e o exercício do kratos sugerem a apreciação da indagação sobre quem manda e para que se manda. Ainda, na recepção dos ensinamentos de Michel de Miñon, o autor sustenta que a primeira indagação se destina a designar e controlar os governantes (quem manda?); a segunda dirige seu foco à finalidade do kratos (para que se manda?); a terceira versa sobre os limites de ação dos agentes do kratos e, por fim, a quarta trata do problema concreto do objeto (o que é que se vai mandar?).40 O alcance do consenso apresenta uma dupla via: a limitação do conteúdo (limitação do poder do governante e do governado) e o compromisso autêntico (em razão das vias falsas e verdadeiras do consenso constitucional). Assim, os compromissos autênticos do demos, através de seus representantes ou diretamente, no exercício do kratos, devem apresentar elasticidade Nélson Saldanha define poder como a possibilidade que se tem de impor a própria vontade a outrem, democraticamente ou não. 39 Para Celso Lafer, soberania é o poder incontrastável de mando em nível interno e internacional. Bobbio ensina que a soberania é o nome dado ao poder, já domesticado de físico e bruto, passa pelo (“filtro do Direito” transformando-se em institucional e jurídico). 40 Michel de Miñon, As Vias Falsas e Verdadeiras do Consenso Constitucional: a experiência espanhola, passim. 38

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constitucional que é a suprema arte de prever instituições jurídicas e políticas que sem perderem a sua lógica interna, sobrevivem nas situações mais adversas. A importância da elasticidade constitucional do demos para a manutenção do consenso e o exercício do kratos protege o sistema das mudanças súbitas, que podem se realizar de modo científico, de modo religioso, filosófico, estético ou político.41 Isto não significa um impedimento ao “direito de revolução” embora, a priori, entenda-se por direito algo que pode ser exercido, diferenciandose revolução de direito de revolução. Sobre o assunto, Kelsen ensina que uma revolução ocorre quando a Ordem Política de uma comunidade é mudada ou anulada por meios ilegítimos, não previstos pela Ordem Jurídica anterior. Diferencia-se do poder constituinte, pois na revolução substitui-se a Ordem Política/Jurídica estabelecida.42 Para conciliar juspositivismo com direito de revolução exercido pelo demos, titular do poder constituinte, Kelsen enfatiza que ao jurista vai interessar a Constituição quando ela já for jurisdicizada, pois para o autor, Direito é o “direito posto”. Porém, uma concepção democrática de Direito não é nem pode ser mais o outrora realizado exclusivamente nos corredores dos Parlamentos, mas sim aquele que faz urgir o verdadeiro sentido do demos como titular do poder constituinte, de modo direto e participativo, oriundo das ruas, através da liberação da palavra, dos slogans, dos panfletos, através do alargamento do espaço público, pois é nele que podem ser encontradas as pessoas que devem fazer parte do exercício de titularidade do poder constituinte originário, através de um conceito de demos alargado, que proponha uma maior inserção e participação dos outrora excluídos do exercício do kratos. Tal perspectiva demonstra o quão significativa é a problemática da titularidade do poder constituinte, em grande parte, para parafrasear os ensinamentos de Vanossi, de natureza ideológica. As origens históricas da titularidade do poder constituinte encontram a sua geratriz na lex regia romana, com o demos transmitindo para o Imperador o kratos. Mais tarde, São Tomás de Aquino sustentou o kratos como fenômeno divino vindo, porém, através do demos. Rousseau advogou a origem popular do poder, propiciando a concretização do entendimento ideológico que almeja se sustentar. Para ele, o governo legítimo é o da vontade geral, o da maioria, vislumbrando-se o eleitorado como direito. Ao revés, Siéyès sustentou o eleitorado como função e não como direito. Desse modo, a Nação43 pode atribuir a quem achar por bem o poder de falar por ela, de representá-la, de exercer o kratos. Entre muitas, a Revolução Coopernica, o Cristianismo, a Reforma, o Iluminismo, o Renascimento e o Socialismo. 42 Meirelles Teixeira, ao tecer comentários sobre o tema, ensina ser esse momento político a modificação dos quadros funcionais vigentes, geral-mente por meios violentos, dos fundamentos do Direito e do Estado ou a Restauração da Ordem Constitucional violada. 43 Atualmente, trata-se o conceito de Nação como demos (cidadãos/conceito jurídico e político), mas não se deve esquecer que a Nação é a permanência de interesses, valores e questões culturais de uma comunidade. 41

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A Necessária Distinção entre demos e kratos – Poder do Povo ou Poder Sobre o Povo? Quem é o Povo? A Titularidade do Poder Constituinte Originário

A legitimidade do demos para o exercício do kratos, remete à apreciação da Antropologia Jurídica, pois há de se considerar o plano formal e material, através da adição da necessidade com o crivo da razão já que a Constituição, ensina-nos Hesse, deve sua legitimidade, quando existir acordo em torno do seu conteúdo, através do atendimento de princípios superiores da convivência humana e política. Portanto, é a razão que transforma a realidade em norma. Há de se aduzir, ainda, para a existência de um duplo aspecto na legitimidade constitucional,44 bifurcandose a problemática na origem (quem a fez?) e no conteúdo político e filosófico (titularidade do poder constituinte, fins e limites do Estado). Georges Burdeau ensina ser o acordo através do qual se propicia o exercício do kratos o conteúdo em torno do qual de constrói uma Constituição, não através da obstrução, mas sim através da consciência jurídica da real consciência das necessidades coletivas e públicas, quando as primeiras tenham sido escolhidas pelo Estado como prioridades, o que as transformam em necessidades públicas. Por fim, para lembrar Vanossi, em uma Constituição democrática, a titularidade do poder constituinte precisa residir sempre no entendimento de povo. No entanto, isto gera o enfrentamento do fenômeno da vaguidade e da textura aberta, pois o conceito de demos, conforme já analisado, pode oferecer inúmeras possibilidades conceituais, todas comprometidas pela ideologia.

A Ideologia As amarras da ideologia provocam um modo próprio de ver o mundo. Os estudos ópticos de Kepler podem aclarar a análise. Não é sem um fito determinado que a teoria óptica kepleriana tenha sido sintetizada, na obra “Epistula ad Pisones”,45 numa glosa à fórmula horaciana: ao ut pictura poesis da Epistula antiga, correspondendo, na Dioptrica moderna, a um ut pictura, ita visio, ou seja: “a pintura é como a visão.”46

Resta-nos concluir que as noções keplerianas podem nos levar a assegurar que a percepção visual47 do que, venha a ser o povo (demos) ou o poder (kratos) serão elas mesmas atos de representação. Nestas representações, o senso do intérprete, Hesse, ao tratar da legitimidade constitucional, diferencia consentimento de assentimento. Assentimento é o acordo básico, o cumprimento e conteúdo da norma jurídica. Esta aceitação é necessária mesmo nas normas jurídicas em que malgrado exista caráter vinculante, por ser norma, as pessoas não têm convicção acerca da sua existência, cumprindo o pacto mesmo sem aceitá-lo. No entanto, não se perfaz como um comportamento que concretize a legitimidade política pois, para tal, faz-se necessária a aceitação. 45 Carlinda Fragale Pate Nuñez, Figurações do Invisível – O que os olhos não vêem, a mão inventa, p. 27, in Ana Cristina Chiara, Forçando os Limites do Texto. 46 Op. cit., 39, apud Horácio, Epistula ad Pisones, p. 361. 47 Op. cit., p. 27. A questão da visibilidade constituiu um mote primordial para a Ciência e as Artes, nos séculos XVI e XVII. 44

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seus valores, a subjetividade de quem vê e sua própria mente comparecerão por inteiro.48

Conclusão Contudo, nos dias atuais, pensar em participação política do eleitor implica em atendimento ao princípio da dignidade da pessoa humana, princípio da soberania popular, soberania nacional, unidade da Constituição (tanto pelo viés lógico como pelo axiológico), lembrando SEMPRE que o povo, notadamente o CIDADÃO ELEITOR, é o verdadeiro titular do poder político.

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Op. cit., p. 25.

Direitos Sociais e Desigualdades no Rio de Janeiro Contemporâneo Cleyson de Moraes Mello1 Vanderlei Martins2 Qualquer olhar que se lance em um primeiro momento sobre o Rio de Janeiro, será sempre um olhar pessimista, haja visto que a realidade social da cidade está permeada de crises que se propagam pelas diferentes instituições sociais responsáveis pelo ordenamento e organização sociocultural da convivência urbana. Tais crises, dentro de uma perspectiva sócio antropológica, são inconcebíveis, pois as instituições sociais são os grandes referenciais sociais, que têm como maior responsabilidade o estabelecimento de um convívio justo e harmonioso. Mas quando ocorre a falência desses referenciais garantidores da harmonia, a anomia se instaura de forma avassaladora provocando a degradação do convívio social urbano. Assim é que, vivencia-se no Rio de Janeiro contemporâneo uma decadência econômica, que está atrelada à uma decadência política, que, juntas e derivadas da degradação moral, estimulam o caos social e a proliferação das desigualdades, da violência, da criminalidade e diferentes outras formas de conflitos de natureza sociocultural. No âmbito econômico, a decadência se manifesta por uma recessão contínua e duradoura, onde não se criam condições capazes de neutralizar tal quadro caótico. A incapacidade de criação de inovações para aumento da competitividade à nível mundial, aliada à incapacidade de estabelecimento de uma tecnologia de ponta para produção de mercadorias e serviços compatíveis com as novas demandas nacionais e globais e um déficit público que insiste em crescer e só aumenta e dificulta a capacidade de reação econômica diante da crise. O atraso que se tem em ciência e tecnologia é decorrência direta do baixo nível acadêmico das instituições de ensino superior, impotentes na criação de quadros técnico-científicos preparados o suficiente para darem respostas positivas e consistentes às necessidades da crise econômica que ora é vivenciada e que perpetua a dependência protecionista. Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UERJ; Professor da linha de pesquisa Direito da Cidade do PPGD da UERJ. Diretor Adjunto da Faculdade de Direito de Valença – FAA/FDV. Advogado. E-mail: [email protected] 2 Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em Regime de Dedicação Exclusiva. Atua na área de Ciências Sociais Aplicadas. Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ. E-mail: [email protected] 1

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Alie-se à isso, um sistema jurídico elitista e afastado das populações excluídas socialmente; um sistema previdenciário deficitário que em nada estimula uma forma de trabalho que se processe de forma confiante quanto ao futuro. Tal quebra de confiança também se manifesta de forma latente em uma legislação trabalhista que mais desampara do que ampara. Nesse sentido, a crise instaurada e perpetuada nos paradigmas sócio institucionais, é longa o suficiente para provocar o que se chama de explosão social na convivência urbana contemporânea, que os mais pessimistas já denominam de forma categórica como ‘guerra civil’. Como exemplos concretos dessa interpretação, apontam os céticos, em uma ponta, o descaso com a infância e o baixo nível de escolaridade e na outra ponta, o mesmo descaso com os idosos, alijados socialmente por esse sistema perverso, marcadamente excludente e desagregador. No aspecto político, a decadência institucional se reflete de forma repulsiva na descrença da população nos poderes Legislativo e Executivo, com rejeição quase absoluta aos partidos políticos e aos políticos que os representam publicamente, uma vez que falta nos políticos exatamente aquilo que define seu papel social, ou seja, o espírito público na condução da coisa pública. Além disso, é nas instituições políticas que nasce a corrupção e a improbidade administrativa, onde os líderes dão para a população em geral, o péssimo exemplo de conduta antiética, que espalha de maneira nefasta a degradação moral da sociedade. As denúncias, bem como as punições que ora se realizam como forma de contraponto à essa realidade obscura e historicamente estabelecida, serve como alento e esperança para uma cidade que padece e carece de bons exemplos. Ainda como alento, em artigo publicado no jornal O Globo, Flavia Piovesan e Eduardo Suplicy informam que “...No âmbito regional, a América Latina destaca-se como a região mais desigual do mundo, com 167 milhões vivendo na pobreza, sendo 71 milhões na pobreza extrema... No âmbito nacional, enfrenta-se o desafio de diminuir as desigualdades, o desemprego e a precarização do trabalho. Nesse cenário, emergencial é a criação de um grupo de trabalho, integrado por especialista nacionais e internacionais, com o objetivo de propor medidas para a garantia da renda básica, nos termos da Lei 10.835/2004, erradicando de forma progressiva a pobreza extrema” (PIAVEZAN, SUPLICY, 2016: 15). ***

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Voltando à questão das diferentes crises institucionais vivenciadas pelo Rio de Janeiro na atualidade, aqui já referidas, a causa maior dessas anomalias talvez esteja na má gestão da coisa pública à nível institucional que é provocada (a má gestão) pela total e absoluta falta de compromisso ético por parte daqueles que foram elevados à condição de autoridades responsáveis por essa gestão. Basta dizer que, no período compreendido entre 2011 e 2015, os governantes incorporaram cerca de 32 bilhões ao já elevado endividamento do estado. Acreditando e apostando nos dividendos do petróleo como sendo uma receita “eterna”, não

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viam nenhum risco aparente para as decisões tomadas. Erraram feio e a conta dessa irresponsabilidade político-administrativa ficou para ser paga pelo estado. Nesse sentido, a responsabilidade maior no pagamento dessas contas é a população através da elevação dos impostos que já são historicamente elevados. Se não bastasse, cortes são feitos no orçamento do estado e as áreas mais afetadas por esses cortes são justamente as áreas que envolvem a população menos favorecida, tais como educação, saúde pública, transportes e segurança pública. Desnecessário dizer que tais decisões restritivas às políticas públicas só alimentam e aprofundam as desigualdades sociais na convivência urbana. Somente uma ação conjunta e apolítica que envolva o Ministério Público, o Tribunal de Contas e, por que não, a Assembleia Legislativa do estado, para, mediante uma rigorosa fiscalização e controle, neutralizar o uso indevido das verbas públicas, pois somente através de um radical controle ético e administrativo talvez seja possível reverter tais improbidades com a coisa pública. ***

Como grande alento para aqueles que vivem no Rio de Janeiro, está ganhando solidez na Lapa um movimento que pretende dar respostas imediatas à crise institucional que corrói a economia, a política e as principais questões sociais e ambientais que envolvem a cidade. Trata-se do grupo de moradores reunidos na associação cultural Amebeco que, a partir do Programa de Apoio à Restauração de Imóveis Privados da Prefeitura do Rio, pretende revitalizar e preservar a cultura arquitetônica, artística e de convivência de um dos bairros mais antigos da cidade, a Lapa. Esse movimento de natureza cultural pretende ir muito além da maneira política com que se olha o Rio de Janeiro, ou seja, uma forma de olhar político que ocorre apenas e tão somente a partir da engenharia, o que compromete a memória cultural da cidade em sua totalidade. É uma espécie de olhar histórico ‘obtuso’ que acompanha a cidade desde Pereira Passos e consagrada com a construção de Brasília. Nesse sentido, aqueles que governaram o Rio de Janeiro ao longo de sua história, sempre optaram pela megalomania, as obras de grande impacto engenheiral, cuja finalidade maior sempre foram produzir dividendos políticos imediatos e que foram e são ‘vendidas’ à população como progresso através de discursos ufanistas. “Há muitas ‘engenharias’ a serem feitas na Rua Morais e Vale, na Lapa, ainda: melhor drenagem, melhor esgoto, a maldita fiação aérea da telefonia das fachadas históricas. Há imóveis com população vulnerável, carente de alguma política habitacional consistente. Proprietários que não conservam. Há terrenos privados ociosos há décadas esperando a aprovação do IPTU progressivo e a realização da função social da propriedade (...)Hoje, numa pequena rua da Lapa há respostas de magnitude para habitação social, para empregos, para empreendedorismo, para mudanças climáticas, e até para financiar novas campanhas políticas e governar livre dos vícios dos conglomerados, mas é urgente inovar na pequena escala , diametralmente grande” (FAJARDO, 2016: 15).

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Na verdade, o que falta ao Rio de Janeiro é uma proposta de planejamento meticuloso e abrangente, capaz de propiciar melhorias na qualidade de vida daqueles que vivem e convivem em seu espaço urbano. Entretanto, o que se tem de forma efetiva são obras emergenciais, mal planejadas e, via de regra, inacabadas por falta de verbas, que também são mal administradas ou desviadas de forma imoral, fato que é rotineiramente mencionado pela imprensa diária da cidade. Apenas como ilustração, um exemplo pontual, mas corriqueiro, final de 2015/início de 2016, é sabido que a situação financeira do estado está à beira de colapso, com a área da saúde pública em estado de emergência decretada pelo próprio governo, onde 11 hospitais e 17 UPAS não recebem pacientes por falta de condições adequadas de funcionamento e a UERJ a ponto de fechar as portas. Pois bem, nesse cenário o governador aliado ao presidente da ALERJ, concede um subsídio de R$ 39 milhões para a SUPER VIA pagar suas contas de luz junto à Light. Enquanto a área pública fica na penúria, o governo estadual socorre financeiramente o setor privado de forma imoral e irresponsável, conforme relato de Cid Benjamin (2015). Voltando à questão do planejamento, é notório a falta de cuidado e bom senso com os recursos disponíveis nos cofres públicos. O uso desses recursos é motivado basicamente por interesses políticos e não por interesses de natureza pública, ou seja, não são colocados como prioridades setores diretamente ligados à população comum como a saúde, a educação, a segurança, os transportes e à própria qualidade e respeito à vida da população que dependem desses setores básicos. É ponto comum que a qualidade de vida da população está diretamente ligada à qualidade dos serviços públicos disponíveis para seu uso. Falta essa consciência aos governantes. Tomando como referência o pensamento do Papa Francisco, através do Padre Josafá Carlos de Siqueira(2016), Reitor da PUC-RJ, o legado social que a cidade do Rio de Janeiro carece é uma espécie de mentalidade ecológica da vida cotidiana de caráter inclusivo que privilegie os espaços urbanos comuns, estimuladora do sentimento de pertencimento no indivíduo em relação à cidade que lhe envolve através do convívio. Além disso, deve ser amplamente cobrado a prioridade na melhoria dos transportes públicos garantidora do conforto cotidiano e da segurança para a livre circulação dos indivíduos, independente da classe social à qual pertença. É através da possibilidade do encontro livre, pacífico e despojado entre os indivíduos que reside à alma da cidade. Aliado a esse legado social, deve emergir um legado político voltado para uma gestão justa e ampla da coisa pública, sem privilégios e que atenue as diferenças sociais, neutralizando assim a cisão social a que está submetida a cidade, fazendo com que os espaços públicos sejam efetivamente públicos, sem demarcações preconceituosas e excludentes. Alie-se a isso, uma iniciativa institucional que agregue os poderes municipal, estadual e federal para estabelecimento de uma política unificada de gestão socioambiental no que concerne aos investimentos necessários para manutenção e garantia desse legado.

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“A esperança é que o legado possa abrir espaços para pensar a cidade do futuro, não esquecendo que as crises econômicas e os cenários das mudanças climáticas sempre nos obrigam a repensar nossos modelos buscando outros horizontes mais realistas com os grandes desafios e anseios daqueles que integram e se sacrificam para construir uma cidade socialmente mais humana e solidária, ecologicamente correta e sustentável” (SIQUEIRA, 2016: 9).

A partir desse raciocínio, pode-se definir a cidade como local de encontros e não de confrontos. Mas para que assim seja, as desigualdades têm que ser atenuadas porque é humanamente impossível aproximar segmentos sociais antagônicos economicamente entre si. Os centros e as periferias fazem parte de um mesmo cenário e um mesmo contexto, logo não podem ser vividos como se fossem mundos distintos e inconciliáveis. O Rio de Janeiro é uma cidade peculiar, pois estimula a aproximação espontânea entre o ‘norte’ e o ‘sul’, possibilitando ainda a inserção do estrangeiro nesse convívio sociocultural, pois ao aqui chegar também se sente como carioca ‘nato’. Maracanã, réveillon, carnaval e praia são as mais expressivas representações do Rio de Janeiro como a cidade dos encontros. Não se deve deixar, portanto, que a desigualdade bloqueie essa cultura. É justamente nessa linha de pensamento que Sergio Besserman (2016) propõe a quebra de ‘muros’ sociais e se construam ‘pontes’ de aproximação. Dentre esses muros, o estabelecimento de um Direito mais justo, que não faça distinção entre o ‘norte’ e o ‘sul’. Outro ‘muro’ que precisa ser quebrado diz respeito ao saneamento básico, que deve abarcar todas as regiões da cidade, inclusive as favelas. Um terceiro ‘muro’ que deve ser substituído por uma ‘ponte’, diz respeito ao acesso ao conhecimento, mas que vá além do formalismo estabelecido pela educação pública. Um tipo de conhecimento que conscientize o cidadão e não contribua para a alienação do indivíduo, ou seja, que se eduque para o comprometimento social e para a responsabilidade ética em relação à cidade. A melhor forma de se iniciar o combate às desigualdades socioculturais talvez esteja em assumir a crença no princípio do envolvimento nas relações sociais entre indivíduos e instituições. ***

A cidade do Rio de Janeiro tem experimentado algumas transformações importantes na atualidade. Talvez tendo como motivação maior o fato de ser um ‘ano olímpico’, a Prefeitura tem feito algumas obras que estão modificando de forma significativa a geografia e o cenário urbano da cidade. A derrubada da Avenida Perimetral e a consequente revitalização da zona portuária que envolve a Praça Mauá e o antigo cais do porto, agora denominado Porto Maravilha, são as expressões mais significativas dessas transformações. O Museu do Amanhã e o Museu de Arte do Rio transformaram a Praça Mauá em polo cultural importante da cidade. A recuperação do Centro da cidade, que se estende desde a Praça Mauá indo até ao Museu de Arte Moderna no Aterro do Flamengo, transformou esse território urbano em um espaço repleto de cultura e história patrimonial, que

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traz consigo vitalidade política e econômica significativas. A saber, conforme Sérgio Magalhaes (2016), Teatro Municipal, Biblioteca Nacional, Museu de Belas Artes, Câmara de Vereadores, Clube Militar, Naval e de Engenharia, Casa França-Brasil, Centro Cultural Banco do Brasil, Museu dos Correios, Museu de Arte do Rio, Museu do Amanhã e Museu de Arte Moderna, sede da Petrobras, sede do BNDES, Convento de Santo Antônio, Largo de São Francisco, Palácio Capanema, Academia Brasileira de Letras, Passeio Público, Monumento aos Pracinhas, Aterro do Flamengo, Aeroporto Santos Dumont, Museu Histórico, Mosteiro de São Bento, Palácio Tiradentes, Paço Imperial e a Lapa como espaços culturais revitalizados. Esse conjunto patrimonial representa simbolicamente o coração da cidade do Rio de Janeiro e sua recuperação abre a possibilidade de reestruturação das regiões adjacentes que envolvem a chamada região central do Rio, que vai da Glória até São Cristóvão/Benfica. Vale dizer que nesse território existem muitas áreas com terrenos e galpões abandonados que podem ser transformados em espaços de utilidade pública e, por que não, em aumento da qualidade de vida da cidade. Se não bastasse, a Prefeitura do Rio de Janeiro lançou no dia em que a cidade completava 451 anos de fundação, o Plano Estratégico, documento denominado ‘Visão Rio 500’ com metas a curto, médio e longo prazo para o desenvolvimento da cidade nos próximos 50 anos. Tal projeto tem propostas ambiciosas para o município do Rio de Janeiro e 70 metas foram definidas nesse sentido, segundo matéria do jornal O Globo de 01/03/2016 em sua página 14. O Plano, segundo a mesma matéria, envolve Educação, Transporte, Saúde, Segurança, Assistência Social, Urbanismo, além de outras áreas que cuidam do Saneamento, Habitação e Turismo. Na área de Educação, segue a mesma matéria mencionada acima, as metas para o período 2016/2020 incluem a abertura de 30 mil vagas no pré-escolar da rede municipal. A ideia é ter um Ideb (Índice de Desenvolvimento do Ensino Básico) mínimo de 4.8 em todas as escolas do sistema. Na área de Saúde, uma das prioridades é reduzir o índice de mortalidade infantil, atualmente de 11,3 para cada mil nascidos, bem como a redução da mortalidade materno-infantil, hoje com um índice elevado de 76,43 por cada 100 mil partos. A redução da obesidade também aparece como prioridade no Plano Estratégico, uma vez que o Rio de Janeiro é a segunda capital com maior número de adultos obesos (21% da população). A área de Segurança Pública, mesmo sendo atribuição do governo estadual, terá um programa específico de prevenção destinado aos jovens, com ações sociais para evitar o consumo de drogas e envolvimento com o tráfico. Na área de Assistência Social, no período compreendido entre 2017/2020, o foco será na redução da chamada população de rua. Além disso, será criado o programa Amigo do Idoso, voltado para o envelhecimento da população e dar suporte e facilitar a rotina na terceira idade. Através de um serviço específico, os idosos serão monitorados por um serviço comunitário. Atrelado à esse programa, na área de Urbanismo a meta é ter espaços públicos destinados à cultura e ao lazer e devidamente adaptados às necessidades da terceira idade.

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Como visto, a idealização para afirmação de uma cidade sustentável no futuro próximo, passou a ser prioridade para a Prefeitura do Rio. O que se espera, principalmente por parte da população mais sofrida e necessitada da cidade, é que essas metas estabelecidas pelo Programa ‘Visão Rio 500’ não se percam pelos caminhos da política e se transformem em ‘vaga lembrança’ pelos políticos da hora. O Programa Estratégico condutor do Visão Rio 500, vai muito além de qualquer viés ideológico-partidário, pois coloca a cidade acima dessas questões, ou seja, visa dar uma nova qualidade aos espaços públicos, sanear, urbanizar e integrar a convivência na cidade. As desigualdades sociais presentes na convivência urbana no Rio de Janeiro precisam ser devidamente atenuadas e, nesse sentido, o Plano de Metas estabelecido pela Prefeitura para curto, médio e longo prazo, podem servir com alento às dificuldades por que passa a população carioca nesse momento. As idealizações estabelecidas inicialmente pelo Plano Estratégico para 2017/2020 precisam ser imediatamente implementadas, pois a tensão social que ora se vivencia na cidade beira o insuportável e, pior, beira o incontrolável. Nesse sentido, é preciso uma reação imediata do poder público no enfrentamento dessas desigualdades. Esse é o desejo, esse é o sonho do carioca comum. É preciso que se preserve a tradicional cordialidade e alegria que conduz a alma do carioca, que, apesar de toda penúria, ainda resiste, haja visto o clima que toma conta da cidade durante os quatro dias de carnaval e nas datas festivas do calendário anual. É preciso que a classe política do Rio de Janeiro assuma sua responsabilidade de natureza social e ponha em prática de forma imediata toda a idealização do projeto Visão Rio 500 e o Plano de Metas que o conduz. Se assim for, é bem provável que a população carioca retome a credibilidade nas autoridades responsáveis pela gestão da cidade. As desigualdades sociais tem a mesma intensidade que o descrédito que se sente em relação à classe política, é preciso, pois, que os dirigentes resgatem de forma imediata o respeito da população combatendo devidamente as desigualdades sociais. É a presença das desigualdades que alimenta a tensão social e a desarmonia na convivência. É preciso que se supere a chamada política de gestão imediatista, que atenua mas não erradica os desequilíbrios sócio institucionais. “...A maioria dos investimentos em serviços públicos essenciais – saúde educação, transporte, infraestrutura e segurança pública – foi destinada prioritariamente a atender aos interesses políticos partidários e aos lobbies das grandes empresas. Institui-se como regra do jogo, um pacto sinistro da convivência mútua que está sendo difícil de ser desarticulado. Esse tipo de comportamento alcançou, também, a produção de habitação popular. A construção dos indefectíveis conjuntos residenciais nas periferias das grandes cidades não trouxe nada de novo em benefício da sociedade. Muito pelo contrário. Pobre da população que vive nessas localidades distantes e que é obrigada a se deslocar, diariamente, por horas a fio, entre a sua residência e o trabalho. E depois não querem que favela no núcleo central e nos bairros da cidade. Não podemos continuar indiferentes diante desses e de outros desvios de conduta” (JANOT, 2016: 13).

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É sabido que da construção estrutural histórica/política/econômica/ educacional/científica de uma sociedade, derivam, ou não, as desigualdades sociais; transformando essas sociedades em expressões societárias saudáveis ou doentes em todos os seus níveis institucionais. No caso brasileiro, dentro da construção aludida, o Brasil é um país altamente contraditório, ou seja, segundo Cotta e Outros (2007) é a décima terceira economia do mundo, mas seu Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é 0,792, o que o deixa na posição 69 entre 171 países do mundo. Depreende-se, a partir desses dados, que o Brasil nunca foi um país pobre, sem recursos naturais, mas sim um país historicamente injusto e desigual, onde a renda sempre foi absurdamente concentrada. Tal trajetória histórica de desigualdades sociais vem desde os tempos da colonização, tendo se agravado com o fenômeno da globalização contemporânea, que acentua o distanciamento entre centros e periferias, aumenta a marginalização e alimenta a criminalidade, em uma flagrante regressão no que concerne aos direitos humanos e sociais. O que fica claro é que desigualdade, pobreza, marginalização e doenças formam uma ciranda social que se retroalimentam entre si dentro da convivência urbana, provocando baixa qualidade de vida e, por que não dizer, sofrimento e penúria. Assim, realidades como saneamento básico deficiente, desemprego, violência, criminalidade, analfabetismo, alimentação deficiente e inacessível, saúde pública deficiente, são fatores que provocam e alimentam a exclusão social. Para o devido enfrentamento, de forma profunda e consistente dessas anomalias sociais, a educação talvez seja o único caminho seguro para construção de algo que ainda não foi devidamente cogitado/empreendido no Brasil, ou seja, apostar e investir firme em um projeto civilizatório genuinamente nacional e forjador da chamada identidade nacional. Através da educação é possível essa empreitada voltada para formar devidamente o cidadão comum, mas também formar profissionalmente as elites intelectuais comprometidas com tal projeto civilizatório. “Como formar esse profissional? – eis a questão. Nesse sentido, cabe a revisão radical do papel das instituições de ensino -o aparelho formador- na educação de seus estudantes. A adoção de um posicionamento encastelado, não permissivo ao diálogo dentro e fora dos muros institucionais (...) é um grave contra senso, ao se ter em vista a perspectiva de devolver à sociedade um profissional que seja capaz de dialogar” (COTTA, GOMES,MAIA,MAGALHÃES, 2007 : 283 ) .

Referências bibliográficas BENJAMIN, Cid. CHAMA o LADRÃO. In O Globo, 29/12/2015, 13. BESSERMAN, Sergio. O RIO QUE DESEJA. In O Globo, 01/03/2016, p. 3. BUARQUE, C. PREOCUPAÇÃO E ESPERANÇAS. In O Globo, 09/01/2016, p. 15. COTTA, Rosangela. E Outros. POBREZA, INJUSTIÇA E DESIGUALDADE SOCIAL. Viçosa, Universidade Federal de Viçosa, 2007. FAJARDO, Washington. POTENCIAS DE DEZ. In O Globo, 20/02/2016, p. 15.

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O GLOBO. PLANO ESTRATÉGICO. As Novas Propostas. 01/03/2016, p. 14. JANOT, Luiz Fernando. ACABOU-SE O QUE ERA DOCE, In O Globo, 13/02/2016, p. 13. PIAVEZAN, Flavia. SUPLICY, Eduardo M. RENDA BÁSICA DE CIDADANIA. In O Globo, 07/01/2016, p.15. SIQUEIRA, Pe. Josafá Carlos de. OS CARIOCAS E O LEGADO OLÍMPICO. In O Globo, 01/03/2016, p.9.

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Este livro foi impresso em novembro de 2016 por Editar Editora Associada Ltda. Juiz de Fora/MG – Tel.: (32) 3213-2529 www.editar.com.br

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