Livro do Desassossego.pdf

May 26, 2017 | Autor: Ettore Finazzi-Agrò | Categoria: Fernando Pessoa
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Ettore Finazzi-Agrò Do Livro do desassossego ou da vida que transcorre por interstícios

E

sta breve ref lexão sobre a m at é r ia e a for m a qu e compõem – sem nunca, na verdade, o compor – o Livro do desassossego pretende ser uma afetuosa homenagem, em primeiro lugar, a Cleonice Berardinelli, pioneira dos estudos pessoanos, e, em segundo lugar, a dois estudiosos portugueses, um deles companheiro de geração de d. Cleo (embora de alguns anos mais novo) e o outro ligado aos dois pelo fato de ter dedicado, também ele, páginas memoráveis à analise da obra de Fernando Pessoa e pelo fato de ser filho de um deles. Refiro-me, evidentemente, a Jacinto e a Eduardo (do) Prado Coelho, ambos prematuramente falecidos. Intelectuais ilustres que eu tive a sorte de conhecer e frequentar, assim como bem conheço e tenho frequentado, ao longo dos anos, a grande Mãe dos estudos lusitanos no Brasil: de todos eles eu recebi de presente sugestões inesquecíveis, pelas quais, ainda hoje, fico grato. Assim como a d. Cleonice devemos, aliás, a primeira edição crítica dos poemas de Álvaro de Campos, a Jacinto do Prado Coelho a comunidade toda dos leitores deve, em particular, a primeira edição do Livro do desassossego, organizada junto com Teresa Sobral Cunha e Maria Aliete Galhoz e publicada em 1982, enquanto a Eduardo, enfim, continuamos devendo estudos fundamentais sobre a ideologia que sustenta e motiva a obra do grande escritor lisboeta. A todos eles chegue o nosso agradecimento e a nossa admiração por ter pensado Pessoa – seja como editores, seja como intérpretes – junto com ele e longe dele, tentando nos conduzir pela mão nos meandros de uma obra que, ainda hoje, acaba por subverter qualquer lógica habitual. O fato de trabalhar com a materialidade dos textos permite, de fato, compreender a escrita pessoana balançando entre a adesão máxima ao seu sentido e o distanciamento crítico necessário em relação a ela. Um modo então, o de

Ettore Finazzi-Agrò é professor da Sapienza Universidade de Roma. 206



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editar a obra de Pessoa, para penetrar no seu universo graças a um movimento de desafastamento, de aproximação ao contrário: numa dimensão singular/ plural, como aquela imaginada/construída pelo escritor, acho que seja lícito circular em ambas as direções, num vai e volta entre separação e conjunção, entre estranhamento e identificação, entre objetividade ecdótica e compenteração total com seu discurso. O que eu quero dizer é que, a partir do dispositivo heteronímico, o poeta parece colocar entre parênteses a sua identidade real (e a realidade inteira junto com ela), a sobrepondo, aliás, a todas as possíveis identidades, a todos os eus que o habitam de forma virtual e que ele, enquanto ele, justamente, enquanto terceira pessoa tenta a todo custo habitar – numa procura de si mesmo no outro e de uma alteridade (incluindo, aliás, a nossa, enquanto editores, leitores e críticos) que acaba por embaciar a sua identidade biográfica para disseminar aquela nominal, na tentativa absurda de dominar a dispersão, habitando-a através de identificativos virtuais. É justamente a Jacinto do Prado Coelho e ao seu livro matricial Diversidade e unidade em Fernando Pessoa – sua tese final do curso universitário, defendida em 1947 e publicada quatro anos depois pela Revista Ocidente,1 quando do escritor lisboeta sabia-se ainda muito pouco – que devemos a primeira importante leitura de um universo poético que não tem, como sugeriria a etimologia, apenas um verso, mas é, de fato, diverso e uno, multíplice e compacto, policêntrico na sua procura afanosa de um centro ou de um verso a ser dado à existência. Se dispor à escuta dessa fantasmagórica, assombrosa polifonia, ou, ainda, entender que Pessoa é sem si mesmo, no seu ser, fora de si mesmo, significou descobrir, pela primeira vez, que a obra do escritor lisboeta não pode ser pensada ou interpretada sem considerar esse trabalho incessante de de-posição do eu e, ao mesmo tempo, de dis-posição do sujeito em tantos lugares que a ele pertencem na sua pura virtualidade e na sua impura evidência, no seu estar-ali sem, realmente, ser-aí. A lição do pai, de resto, eu a leio e tento entendê-la ainda dentro e através das análises do filho, estudioso de formação bem diferente, mas portador, também ele, de uma visão não convencional da obra pessoana. Concepção pioneira, mais uma vez, a de Eduardo, mas no sentido de uma re-conexão ou 1  Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e unidade em Fernando Pessoa, 1a ed., Lisboa: Revista Ocidente, 1951. 207



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de uma re-colocação do poeta português no interior de uma tradição estética e hermenêutica de alcance europeu, evitando qualquer sensacionalismo, toda ênfase em relação à “exceção-Pessoa” – que tinha sido, por contra, a marca de uma leitura como a presencista, atenta sobretudo ao paratexto pessoano, ao projeto heteronímico, tornando o poeta mais um caso humano que poético, o apresentando como uma figura à parte e sem ascendência nem descendência. Não é esse, evidentemente, o ponto de partida de Eduardo Prado Coelho, mas sim – na esteira do pai e em diálogo com o outro, fundamental e incontornável, modelo crítico constituído pela obra de Eduardo Lourenço – aquele de interrogar de forma radical a produção de Pessoa, se valendo de um infindável repertório de leituras teóricas (e seria, nesse sentido, suficiente folhear o seu livro Os universos da crítica ou apenas a bibliografia que o acompanha para descobrir a variedade e a vastidão dos seus interesses). No interior desse acúmulo de hipóteses interpretativas relacionadas com o grande escritor português, sempre suportadas por um notável esmero metodológico e alimentadas por uma indubitável curiosidade hermenêutica, eu gostaria de escolher pelo menos uma que, como acabo de sublinhar, interroga de modo radical ou coloca em questão a própria concepção do Livro do desassossego, a partir, justamente, da sua intitulação. O texto dele que eu pretendo repercorrer, para depois colocar à margem algumas considerações pessoais, é intitulado “Pessoa: lógica do desassossego” e faz parte da sua coletânea de ensaios A mecânica dos fluidos, publicada no ano de 1984. Nesse artigo – fundamental, a meu ver, para quem se disponha à leitura da obra assinada como Bernardo Soares –, a pergunta que é nos colocada desde o início tem a ver com a natureza e o significado do prefixo des-, ou seja, daquilo que perturba e atrapalha o estado de sossego: daquele elemento gramatical, enfim, que, como afirma Prado Coelho, impõe a entrada no espaço literário através de um “passo atrás”, deixando que a escrita aconteça ou se manifeste “antes da obra, quando a ideia de obra perde sentido”.2 O des- se torna, então, um fator de de-significação e de des-objetivação do ato criativo, fazendo com que o texto flutue no espaço aberto da indeterminação, da falta daqueles confins que, o delimitando, fazem materialmente a obra, tanto em sentido espacial 2  Eduardo Prado Coelho, A mecânica dos fluidos. Literatura, cinema, teoria, Lisboa: INCM, 1984, p. 24. 208



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quanto temporal. O sujeito que escreve e assina se torna, assim, uma instância evanescente e duvidosa (ao ponto de poder até receber um nome provisório, como Vicente Guedes): uma instância aleatória, afinal, quanto o pode ser de fato um semi-heterónimo, um Pessoa antes ou depois, senão sem, Pessoa (“sou eu menos o raciocínio e a afectividade”).3 Considerando, aliás, a frequência com que, no Livro do desassossego, aparecem palavras como desacontecimento, desnaturo, desvegeta-se, desreconhecer, desdesertar ou desdurmo – e outras que Prado Coelho menciona, também na esteira das indicações fornecidas por Arnaldo Saraiva – poderíamos chegar à conclusão que o prefixo des- funciona, no livro, como uma espécie de “íman ao contrário”,4 de agente gramatical “desagregando” o âmbito semântico do termo a que se junta, não negando o seu significado mas, justamente, “desviando-o” do seu referente habitual e abrindo-o para uma área de sentido sem fronteiras definidas. Quem escreve, nesse sentido, se de-responsibiliza (ou melhor, se des-responzabiliza) em relação a uma obra sem mais garantias senão aquela de ser o produto de uma acumulação caótica de fragmentos de pensamento, de refugos de sensações, de escombros ou de detritos não componíveis que se amontoam na dimensão da “des-utilidade” (“o estatuto do lixo-fragmento é da ordem da des-utilidade”).5 E o resultado é o exercício gratuito de um pensamento inexequível, a armação de uma lógica sem efeitos práticos, visto que, afinal, reflete apenas a si mesma e sobre si mesma, embora nunca “dentro de si mesma”.6 O nome de Bernardo Soares se torna, nesse sentido, um operador de incerteza, ou melhor, um Eu arrebatado e abalado pela certeza e pela inexorabilidade de uma escrita que o rescreve e o domina com as suas convulsões, com as suas iluminações instantâneas que não permitem encontrar um abrigo ou um lugar salvo na obra, mas se sucedem como ondas imperiosas naquele mar de naufrágios que é a escrita antes da obra, ou melhor, naquele aberto de que nos fala Heidegger. Espaço, este, que pode ser apenas habitado pelo (e no) abandono, visto que, como escreveu o filósofo alemão, “se procuramos dentro de nós o abando3  Fernando Pessoa, Páginas de doutrina estética, Org. por Jorge de Sena, Lisboa: Inquérito, [1946] s.d., p. 206. 4  Eduardo Prado Coelho, op. cit., p. 28. 5  Idem. 6  Ibid., p. 26. 20 9



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no diante das coisas e a abertura ao mistério, conseguimos chegar a aquela senda que nos leva a um fundamento novo, a um novo chão”.7 E é talvez essa a meta almejada por Pessoa: aquele “espaço inteiro fora” onde encontrar uma nova consistência, uma nova completude do sujeito, não mais baseada na evidência da razão e, ainda menos, na aleatoriedade do sentimento, que poderiam conduzir provavelmente à Obra, e sim na abertura ao mistério que paira, inoperante (ou melhor, désœuvré, para utilizar um termo francês cheio de sentidos), no espaço entre o ser e o nada. Um mistério assombroso no qual se deveria penetrar com coragem: a coragem, justamente, ou a insistência em ser o si ou em ser-se na paradoxal e, no fundo, impossível desistência em relação ao ser. Não por acaso, para além do explícito endosso teórico fornecido por Maurice Blanchot e pela “absence d’œuvre”, Eduardo Prado Coelho remete constantemente, no seu ensaio, para o exemplo literário proporcionado pela Paixão segundo G. H., de Clarice Lispector. Vários anos depois de Pessoa (1964, como se sabe, é o ano de publicação do romance), é a escritora brasileira, com efeito, quem tem mostrado, com maior contundência, o valor hermenêutico do prefixo des- em relação ao Ser, chegando até a afirmar, através da personagem G.H.: “a insistência é o nosso esforço, a desistência é o prêmio. A este só se chega quando se experimentou o poder de construir, e, apesar do gosto de poder, prefere-se a desistência. A desistência tem que ser uma escolha. Desistir é a escolha mais sagrada de uma vida. Desistir é o verdadeiro instante humano. E só esta é a glória própria da minha condição. A desistência é uma revelação”.8 A desistência, de que nos fala Clarice/G.H., constitui, nessa perspectiva, o modelo de uma existência no des-: de um des-existir, se poderia dizer, abrindo mais uma vez para o mistério e o sagrado, para o pré-humano e o pré-lógico que é, na sua primordial consistência e na sua emaranhada definição, o espaço virtual e indefinido onde se realiza, sem se realizar, também o Livro do desassossego. Ainda nesse caso, o des-existir, ou o existir no des-, representa a opção pela qual Pessoa se entranha no aberto, no espaço bandido e abandonado onde redescobrir as raízes de um “ser em abandono”9 encontrando o seu sossego só 7  Martin Heidegger, L’abbandono, Genova: Il Melangolo, 1983, p. 40. 8  Clarice Lispector, A paixão segundo G.H. 7a ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979, p, 172. 9  Jean-Luc Nancy, “L’être abandonné”, in L’imperatif catégorique, Paris: Flammarion, 1983, p. 139-153, p. 141-153. 210



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no afastar-se dele, só no intervalo entre ser e ser-aí que nada consegue colmatar, senão a pura indicação. Escrita do inconsciente, então? Mais que isso – como tem afirmado Jacinto do Prado Coelho no prefácio à primeira edição do Livro,10 retomando uma sugestão de Henri-Frédéric Amiel, tão lido, amado e traído por Pessoa –, uma escrita que se dá como produto de uma “consciência da consciência”: de uma consciência, portanto, se dobrando sobre si mesma, descobrindo, porém, apenas a sua inconsistência. Ou, numa perspectiva um pouco diferente – apontada por Eduardo, num diálogo ideal com o pai e com o escritor –, um texto plural e disperso em que se manifesta uma “inconsciência da inconsciência”,11 furtando o estado de desassossego a qualquer análise, também freudiana, dessa paradoxal desistência. Não é, de fato, o Inconsciente que fala através de Bernardo Soares e sim aquela instância ilocável e intervalar se colocando no avesso dele, no seu fora ou na sua negação que, por outro lado, o reafirma. Eduardo Prado Coelho identifica essa instância no neutro: “a lógica do desassossego é uma lógica do neutro. O prefixo des- é um operador de neutralização”.12 Nem Ego nem Es, portanto, nem razão nem corpo, e, contemporaneamente, ambas essas dimensões que se sobrepõem e se confundem no espaço-tempo do desassossego. Tanto Pessoa, quanto, mais em geral, a arte e a filosofia do século XX têm atribuído, de fato, diversos nomes a essa deriva da consciência que toma dentro de si a inconsciência: para o escritor português, se poderiam mencionar termos como cansaço, ou sobretudo, como tédio e angústia, que tantas vezes se encontram no Livro do desassossego. Sobre esses últimos dois estados de alma, em particular, se deteve, mais uma vez, Martin Heidegger que, no seu O que é metafísica escreveu: O profundo tédio, que como névoa silenciosa desliza para cá e para lá nos abismos da existência, nivela todas as coisas, os homens e a gente mesmo com elas, numa estranha indiferença. Esse tédio manifesta o ente em sua totalidade.13 10  Jacinto do Prado Coelho, “Prefácio”, in Livro do desassossego, Lisboa: Ática, 1982, p. VII-XXIII, p. XIV-XV. 11  Eduardo Prado Coelho, op. cit., p. 26. 12  Ibid., p. 30. 13  Martin Heidegger, Que é metafísica?, disponível em , p. 6. (Trad. de Ernildo Stein). Acesso em 20 jan 2016. 211



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E um pouco mais adiante o filósofo alemão acrescenta: A angústia manifesta o nada. “Estamos suspensos” na angústia. Melhor dito: a angústia nos suspende porque ela põe em fuga o ente em sua totalidade. Nisto consiste o fato de nós próprios – os homens que somos refugiarmo-nos no seio dos entes. É por isso que, em última análise, não sou eu ou não és tu que te sentes estranho, mas a gente se sente assim. Somente continua presente o puro ser-aí no estremecimento deste estar suspenso onde nada há em que apoiar-se.14 Como se vê, Heidegger parece colocar tédio e angústia numa relação de contiguidade ou até de consequencialidade, enquanto, respectivamente, revelação do ente ou demissão dele. Mas aquilo que associa os dois estados é, justamente, a condição de suspensão e de indiferença a respeito das coisas, a angustiante sensação de um mundo em vias de desaparecer experimentada, no estranhamento em que se identifica sem se identificar, o sujeito anônimo – ou seja, a gente (o se que se é, ou, para ser mais claro e para utilizar um termo consonante, tantas vezes evocado para definir a presença ausente do poeta português, a persona/personne) que habita e é habitada pelo desassossego. Pessoa, por seu lado, representa de modo mais sensorial e pragmático esse estádio intermédio, esse entretempo, se referindo com frequência a aquela sensação de intervalo entre o sono e a vigília, a aquela condição do “não-dormir” e do “não estar despertos”, se cristalizando, enfim, no neutro, no perder-se/encontrar-se na floresta do alheamento: Sei que despertei e que ainda durmo. O meu corpo antigo, moído de eu viver, diz-me que é muito cedo ainda… Sinto-me febril de longe. Peso-me não sei porquê… Num torpor lúcido, pesadamente incorpóreo, estagno, entre o sono e a vigília, num sonho que é uma sombra de sonhar. Minha atenção bóia entre dois mundos e vê cegamente a profundeza de um mar e a profundeza de um céu; e estas profundezas interpenetram-se, misturam-se, e eu não sei onde estou nem o que sonho. Um vento de sombras sopra cinzas de propósitos mortos sobre o que eu sou de desespero. Cai de um firmamento desconhecido um orvalho de tédio. Uma grande 14  Ibid., p. 7. 212



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angústia inerte manuseia-me a alma por dentro e, incerta, altera-me, como a brisa aos perfis das copas.15 Nessa longa, necessária citação não encontramos apenas a confirmação da contiguidade – se poderia dizer, da “consanguinidade” – entre tédio e angústia, mas a constatação corpórea de uma subjetividade que, ao mesmo tempo, é e não é (ente e não-ente, ou seja, o nec-entem que se espelha no italiano niente, “nada”), manuseando e remanejando a alma, isto é, a instância mais incorpórea do indivíduo. Não, portanto, a fuga no sonho nem o permanecer teimoso dentro da consciência de si mesmo, mas um estado mediano que não é nem onírico nem lógico, nem físico nem metafísico e ambas essas coisas, neutralizando, por um lado, tais opostos numa “consciência da consciência”, como tem indicado Jacinto do Prado Coelho, e, pelo outro, numa “inconsciência da inconsciência”, como tem sugerido Eduardo Prado Coelho. Aquilo que vale e que fica, na extensão infinita e contínua do Ser e no processo discreto do Existir, é justamente o intervalo-entre, a fresta se (entre)abrindo na aparente solidez do pensamento e da sensação (ou melhor, da physis e do logos), revogando qualquer opção dialética, se furtando a toda síntese consolatória. Num livro constituído por interstícios, por reticências, mas ainda por escombros, por cacos, por restos como é, afinal, o Livro do desassossego, a própria forma determina o conteúdo, não encontrando nenhum esmero ou perfeição lógica senão, mais uma vez, aquela que se esconde e se manifesta no des-, nessa negação que afirma, que afasta do real no próprio gesto pelo qual revela a realidade na sua inexequível completude e na sua incontornável inexorabilidade. É justamente por esse motivo que eu me atrevo, por um lado, a formular uma objecção a Eduardo Prado Coelho, juntando a ela, pelo outro, considerações sobre a tradução em outras línguas do título do Livro. De fato, depois de ter ilustrado, de forma brilhante, aquilo que dá forma e sentido à lógica do desassossego, num ensaio que segue o primeiro na mesma coleção A mecânica 15  Fernando Pessoa, Livro do desassossego, Org. por Jacinto do Prado Coelho, Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha, Lisboa: Ática, 2 vols., 1982, p. 279-280; Livro do desassossego, Org. por Richard Zenith, 9a ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2011, p. 456-457. (Trad. inglesa pelo mesmo: The Book of Disquietude. 1a ed., Manchester: Carcanet, 1997; The Book of Disquiet, 2a ed., London/New York: Penguin Classics, 2002). 2 13



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dos fluidos e intitulado “Pessoa / Amiel”, após ter reafirmado que encontramos “fragmentos de texto de Pessoa em que se verifica a coincidência dos contrários” e “outros passos em que deparamos com uma coincidência dos subcontrários”, fazendo ambos sentido “se tivermos em conta os operadores de neutralização (determinados mecanismos morfo-sintácticos) que criam progressiva e interminavelmente uma área neutra subtraída à esfera da dialéctica”, o ilustre crítico conclui que “o prefixo des- (assim como o prefixo in-) é, em determinadas circunstâncias, um desses operadores, tal como o que poderemos chamar a sintaxe do sem”.16 Pois bem: depois de ter declinado a lógica do desassossego numa gramática da ausência que se torna presente ou de uma presença sempre no ato de desaparecer; depois de a ter colocado num espaço intermédio e inconsistente entre duas negações, me parece contraditório emparelhar o prefixo des- com um prefixo puramente negativo como in-, os juntando na área sintática do sem. Isso, de fato, acabaria a meu ver por dissipar a ambiguidade, apagando o neutro para o qual aponta o des-. Seria, em suma, como igualar a desistência ou a des-existência à insistência ou à inexistência, noções, por contra, que Clarice Lispector, como vimos, mantém bem distintas. É, aliás, esse o motivo pelo qual algumas traduções em outras línguas do título da obra (que, repito, não chega a ser Obra) de Pessoa me deixaram desde o início perplexo. Desde o aparecimento do texto na Itália e na França (sem falar da Alemanha, onde encontramos uma escolha similar), a substituição de um indicador de complexidade – que, em si mesmo, não é propriamente nem afirmativo nem negativo e ambas essas coisas – por uma negação pura (inquietudine, intranquillité ou unruhe, sabendo, porém, que o alemão não conhece a ambivalência do prefixo latino dis-) provocou, em mim, algumas dúvidas, embora as traduções em italiano e em francês do termo desassossego mantenham o caráter incomum e a ambiguidade semântica da palavra portuguesa graças ao uso, por um lado, de um termo obsoleto como quietudine e, pelo outro, ao emprego de uma palavra não dicionarizada como intranquillité. De minha parte, considerando a importância e o valor do des-, cheguei à conclusão – com certeza também ela discutível – que a tradução mais adequada na minha língua seria Libro del disagio. E isso por dois motivos: o primeiro, evidentemente, pela possibilidade de manter o mesmo prefixo de que, com o aval 16  Eduardo Prado Coelho, op. cit., p. 42-43. 214



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de Eduardo Prado Coelho, tentei mostrar a relevância semântica; a segunda razão tem a ver com a longa tradição, seja teórica seja literária, da palavra agio. Com efeito, como bem mostrou Giorgio Agamben – remetendo também para a etimologia ad-jacens, no seu significado daquilo ou daquele que “jaz ao lado” –, esse termo indica que o que todo sujeito ou objeto têm de mais próprio é, justamente, “a sua substituibilidade, o seu ser no lugar do outro”.17 Essa substituição eventual, segundo o filósofo italiano, “não conhece já lugar próprio, mas, para ela, o ter-lugar de cada ser singular é desde logo comum, espaço vazio oferecido à única, irrevogável hospitalidade”.18 Ele lembra, aliás, como as primeiras atestações de palavras derivadas da adjacentia latina nas línguas românicas remontam à lírica provençal, na qual os termos aizi ou aizimen indicam “não tanto o lugar do amor, quanto o amor como experiência do ter-lugar de uma singularidade qualquer”.19 Nessa perspectiva, o agio – como o francês (à l’)aise e como, talvez, o português assossego – se apresenta como a instância que não aponta tanto para a posição do sujeito, quanto para o seu dar-se numa condição de anonimato, ou melhor, para o seu ser-qualquer que o inclui e o “abandona” na comunidade: uma communauté desœuvrée, justamente, para utilizar a conhecida expressão de Jean-Luc Nancy. A meu ver, esse significado do termo pode ajudar ainda na interpretação da heteronímia enquanto condição agiata ou aisée (assossegada) de um sujeito que, se apresentando como ser-qualquer, se inclui numa comunidade virtual, multiplicando-se na polifonia de uma estrutura de significação que conjuga ou combina o idêntico com o seu outro. E o disagio indicaria, nessa ótica, o furtar-se ao comum (ao sentido comum) ficando no interior dele (num sentido em comum): num assossego não negado, enfim, mas habitado na desistência, no tédio e na angústia. De resto, ao lado da tradução espanhola desasosiego, facilitada pela coincidência lexical, encontramos ainda as traduções inglesas disquiet e disquietude. Termo insólito e pouco usado, este segundo, escolhido, não por acaso, para a primeira edição em inglês do Livro do desassossego, organizada e traduzida por um dos editores do texto pessoano em Portugal, Richard Zenith, que, na segunda edição inglesa, voltou, todavia, a utilizar o 17  Giorgio Agamben, A comunidade que vem, Lisboa: Presença, 1993, p. 25. 18  Ibid., p. 26. 19  Ibid., p. 27. 215



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mais comum disquiet – embora ele tivesse a possibilidade, na perspectiva que acabo de delinear, de recorrer a uma palavra muito mais conotada e usual como disease, provindo do antigo francês desaise e se conectando, na forma e no significado, ao italiano disagio. Essas opções ou possibilidades de tradução reafirmam, a meu ver, a importância de manter o prefixo originário que, por si mesmo, significa exatamente no seu furtar-se à irreversibilidade do sentido, no seu abrir-se a uma condição existencial que se dispõe (e se depõe) na sua precariedade, permanecendo no limiar que separa, sem as separar, identidade e alteridade. A “obra ausente”, a que se refere Eduardo Prado Coelho na esteira de Blanchot, esse livro que se dá de forma intervalar, tornando o intervalo, justamente, o modo de expressão de uma “dis-quietação” sem nome e com muitos nomes, se torna, nessa ótica, o texto axial, a arquitrave vacilante de uma experiência humana balançando entre o desejo de fugir diante da perspectiva de ser – de ser apenas, de um Ser absoluto e indeterminado – e a procura espantada e destemida de ser-se, ou seja, de ser-o-Si, de ser como se é, se entregando a uma impersonalidade (a um ele) que, na angústia e no tédio, permite todavia entrever o absurdo segredo do viver. De resto, uma existência, como a de Pessoa, atormentada pela procura de uma identidade e unidade que pode se manifestar apenas na dispersão e na diferença (como nos ensinou Jacinto do Prado Coelho), não pode senão procurar o seu sentido na “dis-quietação” ou no “des-assossego” de um pensamento que pensa a si próprio ou na neutralização de uma inconsciência que se afirma na sua negação, num estado de não-consciência – no interstício, enfim, entre a razão e o seu oposto. De fato, como conclui Bernardo Soares, “a consciência da inconsciência da vida é o mais antigo imposto à inteligência”,20 frase que nos arrasta, mais uma vez, no interior de uma lógica em que reencontrar-se no desassossego não é mais de que um dis-persar-se no vazio e na inconsistência/desistência do Eu, descobrindo nela, porém, a plenitude e a solidez de um sujeito que se torna, com muita pena, objeto de um perigoso processo de conhecimento, na fulgurante consciência daquilo que nos constitui enquanto seres-qualquer – enquanto, enfim, entes que preenchem o lugar do nada (do nec-entem). 20  Fernando Pessoa, Livro do desassossego, Org. por Jacinto do Prado Coelho, Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha, p. 71. 216



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