1
2
________________________
ENSAIOS DE LEITURA CRÍTICA MAGNA CAMPOS ________________________
VirtualBooks
3
© Copyright 2010, Magna Campos. Capa:Kythão, com ideia da autora 1ª edição 1ª impressão (2010) Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida - em qualquer meio ou forma -, nem apropriada e estocada sem a expressa autorização de Magna Campos. Campos, Magna ENSAIOS DE LEITURA CRÍTICA. Magna Campos. Pará de Minas, MG: Editora VirtualBooks, 2010. 156p.14x20 cm. ISBN 978-85-7953-227-6 1. Educação. Literatura. Jornalismo. Brasil. I. Título. CDD- 370
Livro preparado e editado por VIRTUALBOOKS EDITORA E LIVRARIA LTDA. Rua Benedito Valadares, 560 - centro – 35660-000- Pará de Minas - MG - Brasil Tel.: (37) 32316653 - e-mail:
[email protected] http://www.virtualbooks.com.br
4
SUMÁRIO
Apresentação 03 Ensaio 1: A representação da identidade feminina na publicidade “Um Toque de Seda” Ensaio 2: A imagem da leitura, no campo do ethos enunciativo, construída pela apresentação das diretrizes do PNLL. (As vozes de dois Ministros de Estado)
05
35
Ensaio 3: Jornalismo popular x sensacionalismo: um estudo do papel do fait divers no Jornal Super Notícia
74
Ensaio 4: Tecnologia subjetividades
109
como
mediadora
de
Ensaio 5: Vozes e ideologias na representação de Fóruns Mundiais: algumas considerações 138 Ensaio 6: Uma breve leitura do filme Quis Show: a verdade dos bastidores
5
149
Neste livro, reúno alguns dos textos que produzi na época em que realizei o Mestrado em Teoria Literária e Crítica da Cultura, afiliada que fui à linha de pesquisa, Discurso e Representação Social, pela Universidade Federal de São João Del-Rei, entre os anos de 2006- 2008. Os ensaios e artigos que aqui se apresentam são reelaborações de algumas comunicações e mesa-redonda apresentadas em congressos científicos, constituem esforços de uma proposta de leitura em diálogo com a complexa e produtiva relação de áreas do conhecimento tradicionalmente distintas – que vão desde as teorias do discurso, passando pelas teorias da comunicação e chegam às teorias sociais. Um diálogo que busca entremeios que possibilitem a realização de leituras na perspectiva da crítica cultural – esse grande cadinho que dilui fronteiras e propõe novos olhares menos segmentados para a sociedade e para suas práticas socioculturais. Magna Campos
6
A REPRESENTAÇÃO DA IDENTIDADE FEMININA NA PUBLICIDADE “UM TOQUE DE SEDA”1 Magna Campos – UFSJ Prof. Dr. Antônio Assunção – UFSJ Resumo: Neste texto será analisado como é representada a identidade feminina na campanha publicitária, um toque de Seda, veiculada na revista Claudia, em dezembro de 2006, pela Editora Abril. Considera-se neste trabalho a identidade como construída pela prática social, como uma construção também discursiva, na qual as representações sociais são o resultado da interação entre os mundos individual e social, possível no espaço discursivo criado entre ambos. Para se avaliar a questão proposta, percorreu-se a teoria buscando no conceito de identidade e de representação social. Constata-se que o tipo de identidade feminina representada pela peça publicitária em análise encaixa-se dentro do verdadeiro arquétipo mercadológico da mulher moderna: uma mulher que trabalha, que é independente, que tenta conciliar vida profissional com a vida social e que valoriza a beleza física, mas que, no entanto, dada a correria de sua “batalha” diária não tem tempo a perder com cuidados demorados em prol de alcançar a beleza. Verificada como uma representação de identidade que visa a incitar ainda mais o consumo de uma imagem do que é “ser mulher na atualidade” e, também, o consumo de produtos relativos à beleza, que prega a individualidade, o gosto e o estilo pessoal como marcas da mulher independente e realizada.
Contextualização:
A publicidade de cosméticos, de forma geral, tem buscado, através de formas persuasivas distintas, expandir 1
Texto escrito em 2007.
7
cada vez mais o uso de tais produtos através da adesão de novos e da confirmação de antigos consumidores. De acordo com Lopes (2005, p.6), o ciclo de vida de um cosmético é de, no máximo, cinco anos. Alguns produtos são retirados do mercado meses após o lançamento, conforme informação da autora. O que demonstra a grande rotatividade dos produtos. A
maior
parte
da
publicidade
de
cosméticos
é
estrategicamente dirigida às mulheres por serem elas as grandes consumidoras destes produtos. Tais publicidades investem na criação de um elo entre o produto e a vida emocional da mulher e isso pode ocorrer por meio de representações do feminino nelas engendradas. No entanto, esta mulher representada não figura sempre do mesmo modo, visto que é preciso aproximar-se dos arquétipos femininos de representação instaurados na sociedade, de acordo com a época corrente e com os desejos que a publicidade quer alcançar ou criar nas consumidoras a fim de que comprem os produtos anunciados. Muitas vezes as pessoas são impelidas a consumir não apenas os produtos anunciados pela publicidade, mas a consumir a própria publicidade. Kellner (2001, p.324) indica que “a publicidade está tão preocupada em vender estilos de vida e identidades socialmente desejáveis, associadas a seus produtos, quanto em vender o próprio produto”.
8
O termo consumismo, segundo Yúdice (2006, p.228), é historicamente associado a movimentos de proteção ao consumidor. No entanto, hoje, a noção de consumismo não se refere mais predominantemente à proteção ao consumidor, função que está perfeitamente alojada dentro do Estado, mas à permeação de todos os aspectos da vida (lar, lazer, psiquê, sexo, política, educação, religião) por um ethos (ou estilo de vida) em que todas as imagens nos consomem. De um movimento social de proteção ao consumidor, o consumismo foi transformado em um movimento empresarial para a instrumentação democrática do consentimento, ainda de acordo com Yúdice. Em parte, a permeação de tudo o que há na vida pelo consumo foi possibilitado pela mudança de uma seleção sempre mais específica de consumidores. A cultura de consumo define-se como o conjunto de práticas e representações que estabelecem uma relação estetizada e estilizada com os produtos. Bourdieu apud Souza (2004, p.173) define o estilo de vida (estilização) como sendo um conjunto unitário de preferências distintivas que exprimem, na lógica específica de cada um dos subespaços simbólicos, mobília, vestimentas, linguagem corporal, a mesma intenção expressiva. Trata-se de um consumo no qual os atributos simbólicos dos produtos são manipulados em função de uma intenção expressiva. Sob este aspecto, o consumo moderno caracteriza-se pela ênfase dos atributos simbólicos dos
9
produtos, em detrimento de suas qualidades estritamente funcionais e pela sua manipulação na composição de estilos de vida. O consumo foi convertido no espaço de articulação das distinções sociais, hierarquizadas em termos de uma distribuição diferencial de prestígio. Apesar de os discursos publicitários legitimarem e generalizarem as práticas de embelezamentos corporais para todos, as maneiras e graus de acesso aos produtos em prol da beleza revelam-se hierarquizados. A estetização do consumo, construindo universos imagéticos em torno dos produtos, envolve os indivíduos em fantasias tecnologicamente produzidas. É a inserção da mercadoria (corpo) em um mundo de sonho onde tudo é possível. A forma como o produto é apresentado causa nos indivíduos a sensação de estarem muito próximos do objeto oferecido, como se bastasse estender a mão e satisfazer seus mais íntimos anseios. Não há, então, distância entre objeto de consumo e consumidor, mas uma estreita relação de dependência de um para com o outro. Ao estimular os investimentos no corpo como forma de expressar a individualidade, o estilo de cada uma, a manifestação da personalidade de cada mulher, na “escolha” de cosméticos, roupas, práticas, bens de consumo, os discursos publicitários midiáticos englobam a todas em um discurso ideológico do gosto, num discurso legitimado,
10
impondo uma variedade de gostos, de modo naturalizado, fazendo com que não percebam seu caráter ideológico. No que se refere ao mercado, percebe-se a utilização de métodos
que
dão
ilusória
impressão
de
que
seus
consumidores são livres para escolher seus estilos de vida, seus hábitos, que têm liberdade para definir suas formas de vida. Contudo, essa desejada liberdade do consumidor – que significa uma orientação da vida para as mercadorias aprovadas pelo mercado – impede, pois, a liberdade decisiva de seu libertar das exigências que o mercado preparou para a escolha dentre os produtos que padronizou para o consumidor que ele quer conquistar. De acordo com Vestergaard e Schroder (2004) apud Reis (2006, p.42-3), as grandes agências de publicidade, principalmente nas últimas três décadas, têm empregado psicólogos e sociólogos que, munidos das mais recentes pesquisas de opinião, procuram determinar os valores e imagens que exercem maior apelo junto ao público de uma dada publicação. Um dos pressupostos básicos do seu trabalho é que os anúncios devem preencher a carência de identidade de cada leitor, a necessidade que cada pessoa tem de aderir a valores e estilos de vida que a confirmem como sujeito e permitam-lhe compreender o mundo e seu lugar nele. Para os autores, ocorre um processo de significação, no qual certo produto se torna expressão de um determinado
11
conteúdo (estilo de vida e valores). Esse processo teria como objetivo ligar a desejada identidade a um produto específico, de modo que a carência de uma identidade se transforme na carência do produto. Reis (2006, p.49), parafraseando Soulages (2001), diz que os efeitos visados pela instância de produção não se restringem apenas à aquisição do produto que está sendo veiculado pela publicidade, como, também, à adesão e assimilação dos valores que o mesmo traz subentendidos. Apesar de cada vez mais se investir em consolidação do nome da empresa, da marca, da agregação a ela de valores positivos
e
politicamente
corretos,
todos
estes
itens
pontuados, e outros mais, convergem para o mesmo fim: a venda do produto, que é o objetivo máximo da publicidade. A publicidade é, para Soulages (2001), uma forma insidiosa e mascarada de circulação das representações sociais. Longe de refletir as identidades reais, a publicidade participa
da
estereotipação
das
identidades
sociais,
constituindo-se como um autêntico programa de construção identitária. A publicidade cria e dissemina em suas peças, modelos estereotipados de beleza, de saúde etc., nos quais os consumidores possam se projetar, criando-se, assim, os mundos possíveis, que englobam a figura e o mundo do consumidor para que ele possa se ver através desse espelho de representação.
12
Hodiernamente, falar sobre o sujeito moderno ou formas como esse sujeito é interpelado por algum discurso, insira-se aí o discurso publicitário, requer que se leve em consideração, tal qual já expusemos, questões que versem sobre a identidade (s) desse sujeito. No “badalado” livro de Stuart Hall, A identidade cultural na pós-modernidade2, o autor afirma que as
identidades
estão
sendo
descentradas
devido
à
fragmentação crescente nas sociedades modernas. Hall (2004, p.10) distingue três concepções muito diferentes de identidade, sendo elas formuladas conforme a concepção de sujeito tomada, assim, teríamos: o sujeito do iluminismo, o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno. Para o autor, sujeito Iluminista, compreendido como indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado de razão, criou uma concepção muito “individualista” do sujeito. Um indivíduo
totalmente
capacidades
de
centrado,
razão.
unificado,
Essencialmente
dotado
descrito
de como
masculino. Mas, diante da crescente mudança do mundo moderno e da compreensão de que a autonomia deste sujeito não era exatamente como era concebida, pois ele também era formado na relação com outras pessoas, desenvolve-se a concepção do sujeito sociológico. A concepção de sujeito sociológico caracteriza-se, para Hall, como uma identidade em busca de uma estabilização 2
Versão usada de 2004.
13
entre o interior e o exterior, o mundo pessoal e o mundo público, internalizando sentimentos subjetivos em lugares objetivos (mundo social e cultural). De acordo com essa visão, que se tornou a concepção sociológica clássica da questão, a identidade é formada na interação entre o eu e a sociedade. (HALL, 2004, p.11) Estas duas concepções demonstram a busca por uma identidade fixa e permanente, todavia, no contexto atual, elas se encontram em colapso, em “crise”, ou em “deslocamento”, como prefere afirmar Hall. Desta transformação surge o conceito de sujeito pós-moderno, pois, diferentemente dos dois conceitos anteriores, este sujeito não é caracterizado por uma identidade fixa ou permanente. Ainda, segundo Hall (2004, p.12), o sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades. Sendo assim, deveríamos, em lugar de falar da identidade como uma coisa acabada, falar de identificação, e vê-la como um processo em andamento. Pois, a identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós enquanto indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é “preenchida” a partir do nosso exterior pelas formas através das quais nós imaginamos ser visto por outros. (HALL, 2004, p.39)
14
Essa forma do sujeito se enxergar a partir do que imagina ser a visão do outro sobre ele, leva à questão da representação, uma vez que a identidade não é algo inato, mas formado e transformado no interior das representações. Assim, a identidade resulta das interações entre os grupos e os procedimentos de diferenciação simbólica que eles utilizam em
suas
relações
construindo
e
se
reconstruindo
constantemente no interior das trocas sociais, num processo dinâmico e inacabado de (co)construção. Portanto, como prática social. Ao analisar uma campanha da Nova Linha Seda3, denominada Um toque de Seda, veiculada na revista Claudia de
dezembro
de
2006,
corpus
deste
breve
estudo,
concordamos com Hall e também com Moita Lopes (2002, p.31) quando afirmam que a identidade deve ser pensada como “um construto situado em circunstâncias sócio-históricas particulares”. E, também, que as identidades, além de serem construídas no discurso e pelo discurso, são fragmentadas e fruto de todas as experiências que os sujeitos experienciam durante toda a sua vida. A identidade, conforme caracterizada anteriormente, aponta também para uma noção de representação social que
3
Marca fabricante de produtos para cabelo, especificamente neste caso, o anúncio refere-se a shampoos e condicionadores.
15
fuja ao dualismo entre o mundo individual e mundo social, considerados como “dicotômicos”. Nessa perspectiva, entendemos com Jodelet (2001, p.22) que as representações sociais podem ser caracterizadas como “uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo prático, e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social”. As representações sociais configuram-se como sistemas de interpretação da realidade que produzem e constituem-se de valores, crenças e atitudes. E que ainda, de acordo com a autora, “as representações sociais circulam nos discursos, são trazidas pelas palavras e veiculadas em mensagens e imagens
midiáticas,
cristalizadas
em
condutas
e
em
organizações materiais e espaciais”. (idem, op. cit) No
entanto,
posicionando-nos
discursivamente,
acreditamos que o sujeito interaja com essas representações sociais,
atuando
não
apenas
como
receptáculo
de
informações, mas que haja na tensão entre a aceitação e a recusa
das
representações
sociais.
Pois,
sendo
fundamentalmente dinâmicas, as representações sociais levam
os
indivíduos
a
produzirem
comportamentos
e
interações com o meio, ações que, sem dúvida, modificam os dois. Devido a essa condição, as representações sociais revelam-se potencialmente capazes de orientar conceitos e influenciar condutas. Por isso a importância de seu estudo.
16
Análise
A revista Claudia, da Editora Abril, surgiu em 1960. Naquela época, de acordo com Jordão (2005, p.33), “a leitora da revista era a mulher que usava bobes no cabelo, enquanto preparava o jantar para o marido, e o esperava com um sorriso no rosto”. Paulatinamente a revista começou a tratar de temas mais profundos como aborto, divórcio, sexo, profissão, entre outros. Hoje seu público-alvo, ainda de acordo com a autora, é a mulher realizadora e ativa que buscou, em todos esses anos, prazer, felicidade, conforto, praticidade e principalmente a liberdade. Segundo dados do Instituto Marplan, do 2º semestre de 2005 e 1º semestre de 2006, obtidos no site da editora Abril, a revista Claudia tem um total de leitores de 2.397.000 e o perfil deste leitor pode ser traçado assim: 50% têm idade entre 18 e 39 anos; 87% são mulheres 62% são pertencentes às classes A e B. A revista é hoje a revista feminina mais vendida no país. E denomina-se como: Claudia é a revista que traz inspiração, reflexões e soluções para a mulher que desempenha múltiplos papéis. Claudia aborda uma grande variedade de assuntos todos os meses: serviços,
17
tendências, moda, família, carreira, qualidade de vida. É a revista feminina mais importante e mais lida do país. Claudia é completa, como a mulher tem 4 que ser. (site da Editora Abril )
Só mencionamos aqui alguns dados sobre a revista por julgarmos que o perfil de leitor da revista está em acordo com o perfil de consumidor buscado pela publicidade em questão. Usaremos, neste estudo, uma enumeração particular das páginas do anúncio para efeitos de organização desta análise: a página de apresentação será a página um, obviamente, seguidas das páginas dois, três e quatro. Com exceção da página um as demais seguem o mesmo padrão: foto, não de corpo inteiro da garota-propaganda, suposta consumidora do produto, que, devido ao recorte na imagem, direciona o olhar de quem olha para o rosto da mulher e obviamente para seus cabelos; nome da campanha publicitária no canto superior direito da página; trecho selecionado da fala da consumidora em destaque, à direita da foto, bem próxima à boca da suposta consumidora; 4
Disponível em: http://elle.abril.com.br/midia_kit/claudia/m_revista.html. Acesso em: 14 fev. 2007.
18
nome e sobrenome, idade e profissão das mulheres; texto relato da experiência que a Nova Linha Seda operou em cada uma delas, em forma de uma pequena entrevista; (Esses elementos todos em segundo plano na imagem). embaixo, em primeiro plano, e ocupando um tamanho na página que vai até a cintura de cada mulher fotografada, vem a imagem do produto: o shampoo
e
o
condicionador
experimentado-
anunciado. Fundo branco, não havendo outra coisa a não ser a mulher, o texto e o produto. O anúncio é introduzido por um texto “apresentativo” não apenas da Nova Linha Seda, mas também de três personagens que figuram como garotas-propaganda do produto. E que, ao longo da publicidade, verifica-se serem elas – as garotas-propaganda –, as protagonistas da história e não os produtos anunciados, como se poderia esperar de um anúncio, digamos, tradicional5. O texto introdutório ocupa a primeira página e cada uma das garotas-propaganda ocupam também uma página. Na
5
Isso não implica papel menor ao produto e sim uma representação da identidade da mulher que deve desejar a nova linha Seda. As garotas-propaganda funcionam com uma âncora para o produto.
19
página de abertura, uma frase ganha destaque: Três mulheres de bem com a vida, na qual a palavra bem é grafada em tamanho muito maior que as demais. Estar de bem com a vida é estar feliz, no entender da publicidade em questão. Em seguida a esta frase, segue a apresentação dessas três mulheres que estão de bem com a vida, mas ao contrário do que se poderia esperar, não são seus nomes que as identificam e sim suas profissões: uma designer de jóias, uma advogada e uma relações públicas. Vejamos o texto: “Uma designer de jóias, uma advogada e uma relações públicas6 contam como melhoraram sua relação com o cabelo. Cada uma teve uma experiência diferente com a Nova Linha Seda.”
Além de essas mulheres serem apresentadas pelas profissões e não pelos nomes, o texto diz que elas irão contar algo: ou seja, diferentemente das publicidades em que há uma voz que fala em lugar da mulher e nas quais as mulheres figuravam apenas como um apelo visual, aqui se diz que elas irão contar. Tenta-se representar, portanto, a mulher como uma profissional e como alguém que teria “voz”. E o que essas mulheres contam? Contam sobre uma relação, mas que não é entre elas e uma outra pessoa e, sim, de uma pessoa 6
O itálico já faz parte do texto original.
20
com um fragmento desta pessoa, neste caso, o cabelo. Podemos perceber que o corpo é, então, fragmentado metonimicamente. Após esse trecho, segue-se, ainda na página de abertura, um outro trecho com letras em tamanho normal, visto que os dois outros disponíveis estão em destaque nesta página. Dividido em dois parágrafos esse trecho descreve um pouco sobre o tipo, perfil, de mulher que precisa dessa nova linha Seda. Avultam-se, no primeiro parágrafo do trecho, vários verbos no infinitivo não-flexionado que designam ações, e que são ações das mulheres, conforme anúncio, que precisam de Seda: trabalhar, cuidar família, abrir espaço na agenda pra ver os amigos, correr atrás de compromissos, dar conta de inúmeras pendências, fazer-se presente e atuante em várias frentes, encontrar tempo para ficar bonita, aproveitar os melhores momentos da vida. Tudo isso representando a mulher ativa socialmente, que trabalha fora e é capaz de tomar decisões, de se organizar, de ter tempo para vida social, de cuidar da família e ainda de ser bonita, elegante, sensual e atraente, enfim, uma mulher realizada. Ou como o próprio anúncio menciona: estar de bem com a vida. O que não seria fácil, segundo a publicidade, pois essa mulher teria que vencer uma batalha diária: fazer-se presente em várias frentes.
21
Todas essas atividades desenvolvidas pela mulher, segundo o anúncio, dá muito trabalho, mas nos permite aproveitar os melhores momentos da vida. Perceba-se que agora aparece uma voz social que se inclui no texto e denuncia quem fala: uma posição mulher, pois ela se inclui quando diz: mas nos permite aproveitar... portanto, uma simulação de discurso de mulher para mulher, uma tentativa de estabelecer proximidade e intimidade. O texto desse parágrafo contrapõe o lugar social da mulher “pós-moderna” com o lugar ocupado pela mulher em outras épocas, pois a mulher atual, segundo a publicidade, se faz presente e atuante em várias frentes, ou seja, ela conquista espaços que antes lhe era negado e ainda é capaz de cuidar da família e aproveitar os melhores momentos da vida. O segundo parágrafo do trecho menciona o que a Nova Linha Seda pode fazer para cooperar com essa mulher que não tem tempo a perder, pois sua batalha diária é laboriosa. Nesta página, o discurso da beleza se aflora, pois não ter cabelo
bonito,
em
conformidade
com
o proposto
na
publicidade, impede a mulher de sair de casa. E a representação da mulher do anúncio é de uma mulher bonita, elegante, sensual e atraente. O parágrafo inicia-se por uma interrogação: O cabelo não está bom? Seguido de uma afirmação: Não tem problema.
22
É só encontrar um jeito diferente de secar, um corte mais estiloso e produtos que realcem a forma. O texto prossegue com um tom de aconselhamento tranquilizador: A Nova Linha Seda é isto: um verdadeiro tratamento de beleza para cabelo liso, ondulado ou cacheado. Você usa e sai de casa relaxada, para cuidar do que realmente importa na vida. Finalmente, tem-se os três tipos de cabelos diferentes com os quais a nova linha pode ajudar as mulheres a relacionarem-se melhor. Note-se também que aparece aqui a palavra tratamento dando uma ideia de cabelo doente, que precisa de cuidados verdadeiros. O imperativo deflagra o tom apelativo da publicidade, não no tom de ordem, mas ainda sim de aconselhamento: você usa e sai de casa relaxada. Para uma mulher tão ativa e atuante, na perspectiva do anúncio, a palavra relaxada é muito mais do que só uma palavra é também um tratamento contra o stress operado pela escolha linguística associada às qualidades do produto. Novamente volta a ação da mulher que deve cuidar do que realmente importa na vida. E o que importa está descrito pelas outras ações mencionadas no primeiro parágrafo. Encerrando o parágrafo e também a página inicial tem-se a frase: Porque – fala sério! – foi-se o tempo em que a mulher não saía de casa por causa do cabelo! O tom coloquial tenta estabelecer uma ideia de proximidade com a leitora-futuraconsumidora do produto, além de caracterizar uma variação
23
linguística típica na fala de pessoas mais jovens, como é o caso das três garotas-propaganda. Para finalizar esta parte, menciona-se o nome da campanha publicitária que ajuda a entender melhor a contribuição de Seda para a mulher pós-moderna: Um toque de Seda. Apenas um toque, o mínimo esforço, como em um passe de mágica. Na página dois da peça publicitária, aparece a foto da primeira garota-propaganda, suposta consumidora do produto anunciado e que fala, como se estivesse em uma entrevista, a respeito dela mesma e de como foi sua experiência com a linha Seda Liso Perfeito. Um trecho de sua fala é destacado na parte superior do texto de sua entrevista. Vejamos: “Sou perfeccionista, qualidade fundamental para a minha profissão. Do desenho de um anel até o polimento final,
não deixo
escapar
nenhum
detalhe. Um bom acabamento faz toda a diferença entre uma jóia de classe e uma bijuteria sem imaginação. Tenho o mesmo nível de exigência com o meu cabelo.”7
Nota-se a valorização da representação profissional desta mulher. Uma mulher com um alto nível de exigência e 7
Aspas do texto original
24
que se revela perfeccionista em tudo e com tudo. A contraposição entre uma jóia de classe e uma bijuteria ajuda, por extensão, a formar a ideia de qualidade do produto anunciado também, visto que uma mulher com um nível de exigência destes, que observa cada detalhe de suas peças, não iria usar qualquer produto em seus cabelos. Sua identidade, portanto, é delineada por seu estilo perfeccionista e exigente. Só
então
é
apresentado
ao
público-leitor-futuro-
consumidor (leitora-futura-consumidora) o suposto nome da mulher da foto e entrevistada, trata-se de Mariana Bittencourt, 28 anos, designer de jóias. Atente-se para a importância dada pela peça publicitária a questão da idade da mulher apresentada ao lado da profissão exercida. E após segue-se a fala inteira da suposta designer de jóias. No texto de sua fala, ganham relevo mais uma vez a questão profissional demonstrando ser o exercício de sua atividade profissional a realização de um sonho de infância e de sua autorrealização em ser competente neste quesito. Delineia-se uma mulher empenhada naquilo que faz, que busca novas técnicas para melhorar ainda mais suas criações, valorizando assim a mulher criativa e capaz de inovar. Uma analogia é traçada entre o aprimoramento de sua atividade profissional e o aprimoramento nos cuidados com o cabelo proporcionado à mulher pelo uso de Seda Liso
25
Perfeito. O que pode ser verificado no trecho final da entrevista:
Seda Liso Perfeito entrou em minha vida como uma autêntica “hair designer” para meu cabelo. Ele ganhou novamente leveza e brilho: fica bem mais solto, lisinho, mas com a forma que eu gosto. Ou seja: ganhou uma finalização perfeita, assim como as minhas jóias.
Os planos, eficiência profissional e eficiência do produto se cruzam nesta fala, construindo uma imagem positiva do produto, sem, no entanto, mencionar suas propriedades químicas como era comum em anúncios anteriores de cosméticos. Na página três, a mesma estrutura da página anterior é seguida e o trecho destacado da fala da suposta segunda consumidora é o seguinte: “Divido o dia-a-dia entre reuniões no escritório e encontros externos com os clientes. Nesse vaivém, meu cabelo ficava sem forma, armado. Irritada, eu tentava domá-lo fazendo escova. Agora aposentei o visual „liso‟: assumi o ondulado, que me dá mais personalidade.
É
uma
delícia
26
ter
um
produto
específico para o meu cabelo.”
Novamente a representação da mulher profissional ativa e atuante ganha relevo nesta segunda suposta entrevista. A correria do dia-a-dia é frisada a fim de valorizar a necessidade de um produto específico e prático para essas mulheres tão sem tempo. Neste trecho também é frisada a questão da especificidade de se ter um produto para cada tipo de mulher, é como se o anúncio dissesse: cada mulher é única e nós entendemos isso e desenvolvemos um produto para você! Além disso, ocorre um apelo para que a mulher liberte-se e mostre o seu natural, devidamente cuidado pela Nova Linha Seda, o que pode ser notado no uso de certas expressões como domá-lo, aposentei o visual liso, assumi o ondulado que me dá mais personalidade. A questão da identidade aqui gira em torno da personalidade. Depois do trecho, mais uma vez, o nome da suposta consumidora, Milena Barreto, 25 anos, advogada.
E no
mesmo molde da anterior, a valorização do lado profissional e da idade da consumidora. Esta entrevistada fala um pouco menos de sua profissão, sem, no entanto, desprender-se de ser esse o fator responsável pela falta de tempo para ficar presa a processos demorados de cuidados com o cabelo. Menciona a questão do ambiente de trabalho que favoreceria à perda da beleza
27
natural de seu cabelo: o contato diário com o ar condicionado do escritório prejudica meu cabelo: as ondas perdem o volume, murcham. Por esse motivo vivia presa a um ritual demorado da santa escova, que fazia até na praia. Mas isso até sua experiência com a nova linha Seda Ondas Marcantes. A importância do lado do bom convívio social, de ser bem vista pelo outro(s), é representada, no texto, no trecho em que diz:
Meus amigos dizem que estou com um ar mais jovial e o meu namorado diz que o cabelo ondulado me deixa mais “mulherão”. E eu me sinto mais segura por ter assumido meu cabelo do jeito que é.
Interessantemente essa mulher, apesar de ter apenas 25 anos, valoriza muito o fato de aparentar-se mais jovem aos olhos dos amigos. Pode ser observado ainda, que essa mulher profissional, jovem, com intensa agenda diária, capaz de se sair bem no lado profissional e no social é, apesar de todas as conquistas feministas de emancipação da mulher, pretensamente submissa ao olhar masculino que modela o ideal de beleza e de sensualidade feminina, como pode ser lido no trecho: meu namorado diz que o cabelo ondulado me deixa mais mulherão. Fator que juntamente com a aceitação da forma natural de seu cabelo – desde que tratado
28
adequadamente por Seda – faz com que essa mulher se sinta mais segura e com personalidade mais marcada, ou poderíamos pressupor que sua identidade estaria atrelada à representação que “recebe” dos outros. Na quarta e última página da peça publicitária, uma terceira mulher, também suposta consumidora, é apresentada nos mesmos moldes das duas anteriores: “Passo o dia lidando com clientes, funcionários, fornecedores e me esforço para que tudo saia conforme o planejado. Por isso, poder contar com uma linha de produtos que me livre da preocupação com meus cabelos é um alívio. Troquei cachos arrepiados e amassados por cachos bem definidos.”
Nesta terceira fala da consumidora destacada na peça publicitária, avultam-se além do dinamismo profissional da mulher
supostamente
entrevistada,
a
capacidade
de
planejamento. A falta de tempo a perder com cuidados para embelezamento dos cabelos é recorrente e o alívio em saber que existe uma linha de produtos que a livre da preocupação com isso é valorizada. A suposta consumidora é denominada de Carol Schoof, 27 anos, relações públicas. E assim como nas demais, aqui também a idade e a questão profissional são relevadas. No
29
texto da entrevista desta consumidora, há uma referência à correria normal de seu dia-a-dia, expressa em:
minha vida é muito corrida [...] principalmente nesta época do ano, em que aumenta o número de eventos que organizo para o restaurante onde trabalho: são almoços, confraternizações, festas de final de ano.
Notamos, portanto, a representação da mulher como dinâmica, vencedora de desafios que lhe são impostos. Dinamismo que também pode ser notado em: gasto muita energia, falo com muita gente.
E é justamente desses
contatos que surgem novas amizades desse contato com pessoas diferentes, das quais acabo me aproximando. Algumas viram até amigas. Novamente, o sucesso no convívio social tem lugar na publicidade. O produto também proporciona à entrevistada maior confiança nela mesma: a correria continua, mas agora me sinto confiante cada vez que olho no espelho. Tenta-se, portanto, agregar ao produto mais esse valor simbólico. A peça parece mostrar que mais do que ter um tipo de produto diferente para cada tipo de cabelo, tem um produto diferente para cada tipo de mulher, para cada personalidade ou estilo de vida. Essas mulheres, ou melhor, essas
30
representações, figuram como protagonistas das experiências diferentes, anunciadas na abertura da publicidade, na verdade, servem de suporte para apresentar ao público a Nova Linha Seda. As identidades arroladas, embora tratem todas de mulheres atuantes no mercado de trabalho, representam cada uma a seu jeito, fragmentações das mulheres que se desdobram para gerir terem sucesso nos campos profissional, pessoal e social, que não perdem a preocupação com a beleza, vista como essencial para a boa imagem perante os outros. Mulheres que fazem aquilo que gostam e não têm tempo a perder. São mulheres bonitas e esbeltas, que se encaixam dentro dos ditames dos padrões de beleza pregados pelo mercado consumidor, que querem ficar cada vez mais belas, sem terem que perder tempo demais com isso. Há na publicidade um silenciamento8 quanto ao segmento
masculino,
pois
a
propaganda
é
dirigida
exclusivamente ao público feminino, denunciando o maior apelo feito às mulheres com relação aos cuidados estéticos com a beleza. Que encontra sustentação na formação discursiva que preconiza os cuidados estéticos em muito 8
Orlandi diz que o silêncio pode ser compreendido não como ausência de palavras, mas como calar o interlocutor de sustentar outro discurso. O silêncio se produz em condições específicas que constituem seu modo de significar. (2002, p.105)
31
maior grau às mulheres que aos homens. Pois a mulher se sentiria muito mais pressionada socialmente a ser bela, o que estimularia o crescimento cada vez maior das ofertas de produtos dirigidos a esse filão do mercado: cuidados com a beleza. A mulher representada tem que enfrentar a sociedade dia-a-dia e em várias frentes e deve se apresentar bonita, elegante, sensual e atraente e para isso ela não deve se preocupar porque há uma linha de produtos que pensa exatamente nela, em sua falta de tempo, e que está ao seu alcance. Linha que apenas com um toque é capaz de relaxála, torná-la mais mulherão, mais confiante em si mesma. E por isso aparecem todas sorridentes nas imagens, demonstrando estarem de bem com a vida. Resta
mencionar
que
a
publicidade
se
encaixa
perfeitamente no perfil de leitora da revista Claudia, o pode significar adesão destas ao consumo do produto anunciado. Considerações finais:
Nesta publicidade, constatamos que as mulheres têm suas identidades representadas em forma de estilo, gosto, personalidade.
São
representadas
como
mulheres
independentes financeiramente, atuantes no mercado de trabalho, dinâmicas e competentes, capazes de gerir suas
32
vidas profissional e social com equilíbrio. Fazem aquilo que gostam e não têm tempo a perder. São mulheres bonitas e esbeltas, que se encaixam dentro dos ditames dos padrões de beleza pregados pelo mercado consumidor, que querem ficar cada vez mais belas, sem terem que perder tempo demais com isso. Essas representações são filiadas às classes média e alta, pois todas possuem curso superior como formação profissional e podem escolher os produtos a serem consumidos por elas. Mulheres que conseguiram um suposto lugar de fala, ainda que o texto seja apenas uma ilusão de realidade a fim de persuadir as leitoras-futurasconsumidoras de que as mulheres ali apresentadas são pessoas normais. Essa representação visa incitar ainda mais o discurso do gosto camuflado sobre a roupagem de estilo pessoal e individualidade, que seria, segundo esse discurso, marcas da personalidade. Identificamos ainda um jogo de sedução como uma estratégia de marketing: coloca-se nas palavras das mulheres a construção do corpo da mulher atual e de sua identidade para incrementar credibilidade / confiabilidade à marca anunciada. Cria-se uma imagem de mulher esclarecida que tem poder de discernimento quanto ao que é positivo e negativo em suas vidas, que sabe sempre o que quer e como quer, apenas como ilusão de valorização das individualidades,
33
de suas identidades, mas o que se tenciona, de fato, é a adequação destas mulheres aos padrões de beleza impostos pela sociedade e maior aproximação com a leitora-futuraconsumidora. Observamos também que, ao se colocar nas palavras da mulher a construção do corpo e da identidade da mulher pós-moderna, cria-se também um lugar determinado pelo mercado para essa mulher: o lugar de consumidora. Não se pode deixar de mencionar nesta análise a contradição existente entre o que se diz no anúncio e o que se mostra. Todas as supostas consumidoras, que dão seus depoimentos, se referem à praticidade de uso oferecida pelo produto, uma delas chega até mesmo a mencionar: eu só lavo e deixo secar naturalmente. Fica lindo, as ondas ganham forma e o volume está sob controle. Contudo, as três aparecem
na
publicidade
com
cabelo
produzido
artificialmente. Referências Bibliográficas: JODELET, Denise (org.) As representações sociais. Rio de Janeiro, Ed. UERJ, 2001. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. KELLNER, Douglas. A cultura da mídia: estudos culturais. São Paulo: EDUSC, 2001.
34
LOPES, Marcela Teixeira. O conceito de beleza e maternidade: um estudo exploratório do comportamento feminino. 135f. Dissertação (Mestrado). Instituto COPPEAD de Administração – UFRJ, 2005. MOITA LOPES, Luís. P. Identidades Fragmentadas: a construção discursiva de raça, gênero e sexualidade em sala de aula.Campinas: Mercado de Letras, 2002. ORLANDI, Eni P. As formas do silêncio. Campinas: Editora Unicamp, 2002. REIS, Alcione Aparecida Roque. Processos de construção discursiva em publicidades de produtos diet e light. 110f. Dissertação (Mestrado). Programa de pós-graduação em Estudos Linguísticos – FALE – UFMG, 2006. SOUZA, Areci de Fátima Costa Souza. O percurso dos sentidos sobre a beleza através dos séculos: uma análise discursiva. 221f. Dissertação (Mestrado). Departamento de Lingüística do IEL – UNICAMP, 2004. UNILEVER / SEDA. Campanha um toque de Seda. Revista Claudia, n.12, ano 45, dez. 2006. YÙDICE, George. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. Site da editora Abril. www.abril.com.br. Site da revista Claudia. www.claudia.com.br.
35
A IMAGEM DA LEITURA, NO CAMPO DO ETHOS ENUNCIATIVO, CONSTRUÍDA PELA APRESENTAÇÃO DAS DIRETRIZES DO PNLL. (As vozes de dois Ministros de Estado) 1 Magna Campos – UFSJ Profª. Dra. Dylia Lysardo Dias – UFSJ Resumo: Este trabalho tem por objetivo verificar a imagem da leitura (ethos) criada na cena de abertura do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), lançado em março de 2006, numa tentativa de ação coordenada entre dois ministérios: Ministério da Educação e Ministério da Cultura. Para tanto, usamos o conceito de ethos discursivo desenvolvido por Amoussy e Maingueneau, os quais consideram que sempre que enuncia, o sujeito deixa entrever uma imagem de si, não só pelo que ele diz, como também pela forma como diz. Todavia, nosso intento não é verificar a imagem discursiva criada pelos sujeitos em questão, no que diz respeito a eles mesmos, e sim, a imagem da leitura que construíram em suas enunciações. Verificamos que, embora, a proposta seja de articulação entre os dois ministérios, cada um dos textos de apresentação, assinado pelos respectivos ministros representantes de cada um dos dois ministérios envolvido, constrói um ethos diferente para a mesma questão: a leitura.
Introdução: A proposta deste trabalho é de analisar qual é o ethos discursivo construído para a questão da leitura naquela que chamaremos de cena de abertura do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), de 2006. Tal cena configura-se por dois textos de apresentação, cada qual assinado por um dos
1
Texto escrito em 2007.
36
ministros representantes
dos ministérios
envolvidos
na
elaboração do plano. O PNLL traz à pauta uma situação atípica aos planos que, de uma forma geral, pretendem servir ao fomento da leitura e ao incentivo do livro: a tentativa de ação coordenada entre dois ministérios. Neste caso, os Ministérios da Cultura e da Educação. De acordo com Maingueneau apud Amoussy (2005, p.16), a maneira de dizer autoriza uma construção de uma verdadeira imagem de si e, na medida que o locutário se vê obrigado a depreendê-la a partir de diversos índices discursivos, ela contribui para o estabelecimento de uma interrelação entre o locutor e seu parceiro. Participando da eficácia da palavra, a imagem quer causar impacto e suscitar a adesão. Ao mesmo tempo, o ethos está ligado ao estatuto do locutor e à questão de sua legitimidade, ou melhor, ao processo de sua legitimação pela fala.
Pressupomos que, ao enunciar, cada um dos ministros favorecerá à construção de uma imagem de si e do objeto de que falam: o PNLL. Por ser este último um plano que visa ações que sirvam ao fomento e à valorização da leitura, acreditamos que, por via secundária, em suas falas os dois ministros, também, acabem por criar uma imagem geral da leitura.
37
Nesse intento, esta breve análise será estruturada em quatro partes. A primeira versará sobre o PNLL e suas condições de produção, a fim de que possamos ter uma ideia mais concreta sobre o objeto apresentado pelos ministros. A segunda tratará da teoria que utilizaremos para tentar depreender qual a imagem da leitura construída, trata-se da questão do ethos discursivo ligado à cena de enunciação, proposto por Maingueneau e utilizado por Amoussy. Na terceira parte, usaremos a teoria proposta por Maingueneau para analisar a cena enunciativa de abertura do PNLL. E na quarta parte, auxiliados pelas observações depreendidas das partes anteriores, procederemos à análise da imagem da leitura propriamente dita. Por fim, traçaremos articulações entre as partes que compõem este trabalho em nossas considerações finais. 2.0 – O PNLL e a cena enunciativa de abertura: a construção discursiva da imagem da leitura 2.1 – Sobre o PNLL e suas condições de produção O Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL) foi lançado oficialmente, numa tentativa de ações coordenadas entre os Ministérios da Cultura e da Educação, em março de 2006. Configura-se como sendo o primeiro, em toda a história do Brasil, a priorizar a questão do Livro e da Leitura com vistas a
38
se tornar política de Estado. Apresenta ainda caráter permanente, com edições tri-anuais, que deverão ser avaliadas a cada ano, a entender pelo que está disposto em seu texto. O PNLL surgiu, segundo José Castilho Marques Neto2, dentro dos debates que envolveram as atividades do VivaLeitura3, cujos objetivos eram divulgar a leitura e promover a conscientização sobre o valor social do livro, atividades desenvolvidas em 2005. Segundo o documento, o objetivo central da Política de Estado aqui delineada é o de assegurar e democratizar o acesso à leitura e ao livro a toda a sociedade, com base na compreensão de que a leitura e a escrita são instrumentos indispensáveis na época contemporânea para que o ser humano possa desenvolver plenamente suas capacidades, seja no nível individual, seja no âmbito coletivo. (PNLL, 2006, p.25)
É designado como um conjunto de projetos, programas, atividades e eventos na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas, empreendidas pelo Estado (em âmbito federal, 2
Secretário-Executivo do PNLL em entrevista concedida ao jornal do Sindicato dos Bibliotecários do Estado de São Paulo (SinBiesp Notícias).Disponível em: < http://www.sinbiesp.org.br/detartigo.asp? cod=64.> Acesso em: 15 jul. 2007. 3 A ideia de se instituir 2005 como o ano da leitura foi gestada em 2003 num encontro de chefes de Estado acontecido na Bolívia, e aprovada pela Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI). Foi chamado de ano Ibero-americano da leitura.
39
estadual e municipal) e Sociedade (setor privado e terceiro setor). Apresenta, conforme citação acima, como finalidade básica assegurar a democratização do acesso ao livro, o fomento e a valorização da leitura e o fortalecimento da cadeia produtiva do livro, como fatores relevantes para o incremento da produção intelectual e o desenvolvimento da economia nacional, conforme explicitado pela Portaria Interministerial 1442 do Ministério da Cultura (MinC) e Ministério da Educação (MEC)4. O plano prevê atuações em quatro linhas de ações distribuídas nos seguintes eixos: •
Eixo 1: Democratização do Acesso
•
Eixo 2: Fomento à Leitura e Formação
•
Eixo 3: Valorização da Leitura e da Comunicação
•
Eixo 4: Apoio à Economia do Livro
O PNLL se integra ao Plano Nacional de Cultura (PNC) corroborando com uma indicação da Organização das Nações Unidas (ONU) de que o acesso aos equipamentos culturais passe a figurar como Índice de Desenvolvimento Humano
4
Site do Ministério da Cultura. Disponível em: < http://www.cultura.gov.br/noticias/noticias_do_minc/ index.php?p=23553&more=1&c=1&pb=1> . Acesso em: 15 jul.2007.
40
(IDH) juntamente com o acesso a bens e serviços5. Assim, tal documento atende ao preceito da ONU de inclusão social, conforme pode ser lido no seguinte trecho: têm por base a necessidade de se formar uma sociedade leitora como condição essencial e decisiva para promover a inclusão social de milhões de brasileiros no que diz respeito a bens, serviços e cultura, garantindo-lhes uma vida digna e a estruturação de um país economicamente viável. (PNLL, 2006, p.20)
O Plano é gerado em meio à indicação da ONU e também da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO6), sendo estas últimas as seguintes: o livro deve ocupar destaque no imaginário nacional; devem existir famílias leitoras, cujos integrantes se interessem vivamente pelos livros e compartilhem práticas de leitura; deve haver escolas que saibam formar leitores, valendo-se de mediadores bem formados (professores, bibliotecários) e de múltiplas estratégias e recursos para alcançar essa finalidade; deve ser garantido o acesso ao livro, com a disponibilidade de um número suficiente de bibliotecas e livrarias, entre outros aspectos; e o preço do livro deve ser acessível a grandes contingentes de potenciais leitores, os 5
Dado indicado na justificativa das diretrizes do PNLL, de dezembro de 2006. 6 Idem.
41
sujeitos sociais mais recorrentes no documento em questão. Pois, entende-se que, a leitura e a escrita constituem elementos fundamentais para a construção de sociedades democráticas, baseadas na diversidade, na pluralidade e no exercício da cidadania; são direitos de todos, constituindo condição necessária para que possam exercer seus direitos fundamentais, viver uma vida digna e contribuir na construção de uma sociedade mais justa. (PNLL, 2006, p.20)
Dessa forma, a leitura e a escrita atuariam como elementos capazes de construir a cidadania, da inclusão social. Favoreceram também para o surgimento do plano, vários resultados negativos, quanto à competência em leitura dos brasileiros, apontados pelas pesquisas realizadas, no país, por iniciativas públicas e privadas, nacionais ou internacionais. Um desses resultados foi o apontado pelo Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF) 20057, que evidenciava que apenas 26% dos entrevistados brasileiros com idade entre 15 e 64 anos foram classificados como pessoas capazes de ler, compreender
e
relacionar
o
texto
lido
com
outros
conhecimentos. Demonstrando que três quartos da população
7
Relatório do INAF 2005. Disponível em: www.ipm.org.com.br. Acesso em: 02 jul. 2007.
42
brasileira está à margem do efetivo letramento, tão essencial para o avanço do país. O resultado do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA) 20008, também mediu o letramento em leitura de alunos com 15 anos de idade e apontou que o Brasil apresentou o pior índice dentre os 32 países analisados. E para citarmos uma última pesquisa, apresentaremos dados da primeira investigação realizada no Brasil dirigida por setores particulares de nossa sociedade e que tinha por objetivo demonstrar o Retrato da Leitura no Brasil9. De acordo com o apurado pela pesquisa, que teve como referência de investigação a população com 14 anos ou mais e mínimo de três anos de escolaridade, o brasileiro lê em média 1,8 livro ao ano, índice considerado muito baixo e que fica atrás de outros países da América Latina, como é o caso da Colômbia, com índice de 2,4 livros por ano. Esse índice se revela ainda mais crítico quando a pesquisa demonstra que a penetração do livro no país e o acesso a esse objeto cultural são ainda bastante restritos, concentrando-se o mercado comprador de livros nas mãos de 20% da população alfabetizada, na Região 8
BRASIL leva bomba no Pisa. Disponível em: http://www.educacional.com.br/noticiacomentada/ 011207_not01.asp. Acesso em: 02 jul. 2007. 9 Realizada em 2001 pela Câmara Brasileira da Indústria do Livro (CBL), Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel) e Associação Brasileira dos Editores de Livros (Abrelivros). Disponível em: < www.cbl.org.br> Acesso em: 02 jul. 2007.
43
Sudeste, nas grandes cidades e metrópoles, nos estratos de renda mais elevados e com instrução superior. Outro dado da pesquisa aponta que apenas 50% dos livros de leitura corrente no país foram comprados, em contraposição a 8% pertencentes às bibliotecas e a 4% doados pela escola. O que demonstra a dificuldade de acesso aos livros em escolas e bibliotecas, o que, somados à baixa renda de grande maioria da população brasileira, contribuem para que não se concretize a leitura no país. Essas
pesquisas
ecoam
no
PNLL
(2006)
como
verdadeiras vozes motivadoras e justificadoras do intento, o que pode ser observado nas seguintes passagens:
O Brasil chega ao século XXI, momento em que a difusão do audiovisual assume imensas proporções, ainda com enorme déficit no que diz respeito às práticas leitoras dos textos escritos. Nossos índices de alfabetização (stricto e lato sensu) e de consumo de livros são ainda muito baixos, na comparação com parâmetros de países mais ricos e desenvolvidos e mesmo com alguns dos países em desenvolvimento da América Latina e da Ásia. (PNLL, 2006, p. 14) [No PISA] destaca-se ainda mais o péssimo desempenho dos alunos brasileiros, próximos do final da escolaridade obrigatória, revelando que não estão preparados para enfrentar os desafios do conhecimento nas complexas sociedades contemporâneas. Uma
44
performance dessa natureza acarreta prejuízos de toda ordem. A baixa competência de leitura não apenas influi no desenvolvimento pessoal e profissional dos estudantes como também, e até por isso, contribui decisivamente para ampliar o gigantesco fosso social existente em países como o Brasil, promovendo mais exclusão e menos cidadania. (PNLL, 2006, p.17)
A hipótese assumida pelo PNLL, de acordo com ZILBERMAN (2007), é a de que uma das causas de se ler pouco no Brasil é a circunstância de as pessoas ignorarem a importância que o livro e a leitura podem desempenhar em suas vidas. A autora ainda menciona que o plano é fruto de toda uma história da leitura e da educação no país que remonta os primórdios da educação brasileira. Zilberman resume o cenário evolutivo da história das tentativas de melhoria dos índices de leitura no seguinte trecho: Do século XVI ao XX, multiplicaram-se as proposições de melhoria dos índices de leitura e consumo de livros no País, intensificando-se sobretudo a partir dos anos 1980, quando a população brasileira, que, ao final dos anos 50, somava 60 milhões de habitantes, dobra para 120 milhões em 1980 e quase triplica para 160 milhões em 2000. Projetos de alfabetização de adultos, somados à ampliação da faixa de escolarização obrigatória (até 1970, correspondendo aos cinco anos do ensino primário; depois de 1970, correspondendo aos oito anos do
45
ensino básico), tentam atender à demanda crescente, mas as carências não diminuem, requerendo novos e mais extensos programas de leitura, de distribuição de livros (didáticos e infantis) à população de baixa renda, e de alfabetização acelerada. (ZILBERMAN, 2007, p.01)
Após essa contextualização, a autora insere o PNLL dentro
das
políticas
do
século
XXI,
no
âmbito
da
administração federal vigente, mas que, como mencionado anteriormente,
é
resultado,
ainda,
dessas
mesmas
coordenadas citadas por ela. Portanto, verificamos que o PNLL aparece como resultado da confluência de várias vozes: algumas políticas, outras econômicas, outras sociais e ainda outras culturais. E na tentativa de atender às determinações de alguns órgãos estrangeiros, aos apontamentos da comunidade científica, aos clamores do setor econômico e às exigências de uma sociedade contemporânea cada vez mais imersa nas tecnologias de comunicação e de informação que traz à tona uma constate exigência de um bom grau de letramento, pois a sociedade informatizada precisa cada vez mais de pessoas capazes de desfrutar dos bens e serviços que ela produz. Nesse contexto, os dados das pesquisas e dos índices sociais criam novos parâmetros, um novo discurso para a tentativa de superação das dificuldades encontradas para se formar
uma
sociedade
leitora,
46
na
medida
em
que
consideramos que a linguagem e o discurso não (apenas) descrevem uma realidade, mas a criam. 2.2 A questão do Ethos
Para Amoussy (2005, p.9), todo ato de tomar a palavra implica a construção de uma imagem de si. Para tanto não é necessário que o locutor faça o seu auto-retrato, detalhe as suas qualidades nem mesmo que fale explicitamente de si. Seu estilo, suas competências linguísticas e enciclopédicas, suas crenças implícitas são suficientes para construir uma apresentação de sua pessoa. Assim, deliberadamente ou não, o locutor efetua em seu discurso uma apresentação de si.
De acordo com a autora, o posicionamento discursivo do sujeito é acompanhado por uma imagem desse mesmo sujeito, não só pelo que ele diz, como também pela forma como diz. Diz também que o ethos não seria uma característica puramente linguageira e, nem tampouco, uma característica exclusivamente institucional. Trata-se de uma característica discursiva que se dá na relação entre o linguístico e o institucional (AMOUSSY, 2005). Nesta linha de raciocínio, Maingueneau (2005, p. 69), relaciona o ethos à cena de enunciação.
Segundo
Maingueneau (2001, p.79), o texto escrito possui, mesmo
47
quando o denega, um tom10 que dá autoridade ao que é dito. Esse tom permite ao leitor construir uma representação do corpo do enunciador, uma instância subjetiva encarnada que assume o papel do fiador do discurso enunciado e não, evidentemente, do corpo do autor efetivo (MAINGUENEAU, 2005, p. 72). A qualidade do ethos, dessa forma, está associada à imagem do fiador que, confere a si próprio, uma identidade compatível com o mundo que ele deverá construir em seu enunciado. O leitor deverá construir com base em indícios textuais de diversas ordens, a imagem do fiador, o qual vê-se, assim, investido
de
um
caráter
e
de
uma
corporalidade
(MAINGUENEAU, 2005, p.72). Portanto, para Maingueneau o caráter é o conjunto de traços psicológicos que o leitor/ouvinte atribui à figura do enunciador, em função de seu modo de dizer, e a corporalidade remete a uma representação do corpo do enunciador da formação discursiva. Não se trata de traços psicológicos ou da presença física dos enunciadores, mas do que o leitor/ouvinte atribui a eles em função de seu modo de dizer. Dessa forma, o posicionamento discursivo não pode ser dissociado da forma pela qual ele toma corpo e da cena na qual esse corpo tem existência social e histórica. Porém, a 10
Segundo Maingueneau, o termo “tom” apresenta a vantagem de valer tanto para o escrito quanto para o oral.
48
cena não é um quadro que exista anteriormente a constituição do ethos. A cena de enunciação e o ethos possuem uma relação paradoxal: o ethos não só pressupõe uma cena, quanto à valida. (MAINGUENEAU, 2005, p.72-74) Neste mesmo texto, Maingueneau diz que existe um processo de incorporação que opera em três registros indissociáveis: a) a criação de um ethos do fiador, conferido pelo co-enunciador, a partir de indícios da própria enunciação; b) a assimilação ou incorporação desse ethos por parte do coenunciador; c) a constituição de um corpo formado pela comunidade imaginária que comunga na adesão de um mesmo discurso. Tendo como base a Análise do Discurso (AD), Maingueneau afirma que o enunciador não é um ponto de origem estável que se “expressaria” dessa ou daquela maneira, mas é levado em conta em um quadro profundamente interativo, em uma instituição discursiva inscrita em uma certa configuração cultural e que implica papéis, lugares e momentos de enunciação legítimos, um suporte material em um modo de circulação para o enunciado. (MAINGUENEAU, 2005, p.75)
O ethos configura-se, então, como parte constitutiva da cena enunciativa e não apenas um meio de persuasão, conforme pregava a retórica tradicional. Para operacionalizar a noção em que o ethos é tanto uma característica linguageira,
49
quanto institucional, proposta por Amoussy, encontramos em Maingueneau a pressuposição de uma análise na qual é possível interpretar a situação de enunciação que é validada e pressuposta por determinado ethos discursivo. Desse modo, Maingueneau faz uma divisão da cena de enunciação em três instâncias: cena englobante, cena genérica e cenografia. De acordo com o autor: A cena englobante corresponde ao tipo de discurso; ela confere ao discurso seu estatuto pragmático: literário, religioso, filosófico... A cena genérica é a do contrato associado a um gênero, a uma “instituição discursiva”: o editorial, o sermão [...] Quanto à cenografia, ela é construída pelo próprio texto: um sermão pode ser enunciado por meio de uma cenografia professoral, profética, etc. (MAINGUENEAU, 2005, p.75)
Ao tratar a questão do gênero discursivo, o autor afirma que alguns apresentam maior possibilidade de suscitar cenografias do que outros. Como é o caso da lista telefônica que não admite a cenografia e de gêneros que, por natureza, exigem a escolha de uma cenografia, como os gêneros publicitários, literários, políticos etc.. Especificamente o discurso publicitário ou o político mobilizam cenografias variadas, uma vez que, para persuadir seu co-enunciador, devem captar seu imaginário, atribuir-lhe uma identidade invocando uma cena de fala valorizada. Citando o exemplo de
50
Amoussy (2005, p.16), o candidato de um partido pode falar a seus eleitores como homem do povo, como homem experiente, como tecnocrata etc. Nessa cenografia, de acordo com Maingueneau, a figura do enunciador, o fiador, e a figura correlativa do co-enunciador são associadas a uma cronografia (um momento) e uma topografia (um lugar) das quais supostamente o discurso surge. (MAINGUENEAU, 2005, p.77). Assim, enquanto a cena enunciativa corresponde ao tipo e gênero de discurso, a cenografia, por sua vez, é estabelecida pelo discurso. 2.3 A cena enunciativa de abertura do PNLL
No documento que apresenta as diretrizes do PNLL (2006), um fato curioso mostra-se já na abertura. Trata-se do que no documento é nomeado de Palavra do Ministro da Cultura e de Palavra do Ministro da Educação, uma espécie de apresentação ou prefácio do documento redigido pelos então ministros Gilberto Gil, do Ministério da Cultura (MinC) e Fernando Haddad, do Ministério da Educação (Mec). Cada um dos ministros assina uma das apresentações, numa tentativa assumida de articulação entre os ministérios, em prol da questão do Livro e da Leitura. Essa tentativa de articulação já se configura como uma circunstância atípica no cenário das políticas públicas de
51
leitura, haja vista que a própria desarticulação entre o MEC e o MinC desde 1985 sinaliza para os desafios e dificuldades de criar no Brasil, na escola, uma política cultural de formação de leitores. Distinguindo-se outrora um planejamento do outro, a relação da educação com a cultura foi seccionada e os programas e projetos governamentais em torno do livro e da leitura, colocados em prática nas últimas duas décadas, não conseguiram a profundidade e consistência necessária para serem eficientes de fato. Tal articulação em si já apontaria para uma encenação discursiva um pouco diferente dentro das políticas públicas e dentro da característica usual deste tipo de documento. Por opção metodológica, trabalharemos com as duas apresentações separadamente, constituindo, cada uma delas, uma cena de enunciação. No entanto, como nosso objetivo de análise é observar e descrever a imagem da leitura construída nessa confluência, que chamaremos de cena de abertura, não perderemos de vista a ideia de cena de abertura, que engloba, para nós, os dois discursos. Apresentamos de início as condições de produção do plano, pois como afirma Orlandi (1988, p.19), o dizer não é apenas do domínio do locutor, pois tem a ver com as condições em que se produz e com outros dizeres. E aproveitaremos nesta parte para tratar brevemente sobre cada um dos ministros em questão. Não como traços biográficos
52
apenas, mas para nos ajudar a visualizar o lugar social de onde cada um deles enuncia e de certa forma as condições de produção de seus discursos. Além disso, como sustentam Charaudeau & Maingueneau (2004, p. 221), o ethos discursivo relaciona-se estreitamente à imagem prévia que o alocutário pode ter do locutor, ou, pelo menos, com a ideia que este faz do modo como seus alocutários o percebem. Assim, segundo esses mesmos autores (2004, p. 221), existe um ethos prévio ou pré-discursivo que o locutor trabalha em seu discurso, consolidando-o, atenuando-o ou retificando-o. O modo de enunciar o discurso, portanto, não é aleatório: o ethos discursivo deve autorizar e legitimar o locutor como sujeito de seu discurso, sob pena de anular a validade, coerência e eficácia do discurso. Ethos pré-construído (prévio), diríamos, muito relevante no caso de representantes políticos, como é o caso dos ministros acima. A primeira cena enunciativa apresentada no documento do PNLL refere-se, tal qual já dissemos, à Palavra do Ministro da
Cultura:
Gilberto
Gil.O
ministro
em
questão,
é
constantemente apresentado como o músico e ministro. Apresentando uma carreira sólida na área da música, atuando como cantor, compositor, intérprete reconhecido não apenas no Brasil, como também de grande expressividade no exterior. O ministro (músico) é reconhecido como um ativista social, que usou as letras de suas músicas para “refletir” a
53
preocupação política e um inconformismo com a maneira de viver do povo brasileiro. Preso pelo regime militar brasileiro acusado de supostas atividades subversivas acabou sendo exilado em Londres. Participou, juntamente com outros artistas, do Tropicalismo11. Antes de ser nomeado Ministro de Estado da Cultura, já havia ingressado na vida política, em 1988, ocupando as cadeiras de vereador de Salvador, na Bahia, e de Secretário da Cultura de Salvador. Em prefácio ao livro organizado por Leonardo Brant, Diversidade Cultural, Gil afirma que: hoje, como ministro da cultura do meu país, vejo no conceito de cultura a possibilidade de lidar com o ser humano brasileiro em todas as suas dimensões, mergulhado num meio ambiente Brasil 11
A Tropicália, Tropicalismo ou Movimento tropicalista foi um movimento cultural que surgiu sob a influência das correntes artísticas de vanguarda e da cultura pop nacional e estrangeira; mesclou manifestações tradicionais da cultura brasileira a inovações estéticas radicais Tinha também objetivos sociais e políticos, mas principalmente comportamentais, que encontraram eco em boa parte da sociedade, sob o regime militar, no final da década de 1960. O movimento manifestou-se principalmente na música usando deboche, irreverência e improvisação, revoluciona a música popular brasileira, até então dominada pela estética da bossa nova. Liderado pelos músicos Caetano Veloso e Gilberto Gil, o tropicalismo usa as ideias do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade para aproveitar elementos estrangeiros que entram no país e, por meio de sua fusão com a cultura brasileira, criar um novo produto artístico. Também se baseia na contracultura, usando valores diferentes dos aceitos pela cultura dominante, incluindo referências consideradas cafonas, ultrapassadas ou subdesenvolvidas. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Tropic%C3%A1lia. Acesso em: 17 jul. 2007.
54
que é sempre já natureza e cultura. Como artista e cidadão do mundo, vejo na cultura o espaço para o encontro de países, credos, etnias, sexualidades e valores, na cacofonia de suas diferenças, no antagonismo de suas incompatibilidades, na generosidade de um lugar-comum, algo que nunca existiu, mas sempre foi sonhado por aqueles que deixam seu olhar perder-se no horizonte. (in: BRANT, 2005, p.10) grifo nosso.
Como podemos observar, o próprio ministro define-se como artista e cidadão do mundo e não apenas como um brasileiro. A cena de enunciação – Palavra do Ministro da Cultura – , neste caso, configura-se como um dos discursos de apresentação do PNLL, o primeiro plano, que como já mencionado, pretende tornar-se política pública permanente, fator bem frisado pelo ministro em seu texto, como pode ser observado em: [...] construir políticas duradouras12 que assegurem a ampliação do número de leitores no Brasil [...] [...] construir, portanto, uma política pública duradoura para o setor cultural constitui-se, indubitavelmente, numa daquelas grandes demandas da Sociedade [...]
12
Todos os grifos nas falas dos ministros são de nossa autoria.
55
Gilberto Gil fala, nesta cena, como ministro da Cultura, em
ação
coordenada
com
outro
ministro,
e
consequentemente, com outro ministério. Enuncia, portanto, ligando-se a uma instituição política. A cena englobante, assim configurada, refere-se ao discurso político, mas que ao mesmo tempo, arriscaríamos chamá-la de propaganda de Governo e do Ministério da Cultura. O que pode ser percebido em:
[...] É por esta razão básica que encaramos neste governo o conjunto de políticas que possibilitem a ampliação do acesso ao livro e à leitura como políticas fundamentais para a construção plena da cidadania em nosso país. [...] [...] A cultura, portanto, não apenas é assumida pela ONU como tarefa do governo, mas como uma tarefa prioritária de governo, capaz de definir o grau de desenvolvimento econômico e social de um país. [...]
A cena genérica configura-se como uma apresentaçãoprefácio das diretrizes de um plano de incentivo à leitura e ao livro. No entanto, sua filiação ao discurso político impõe-lhe um novo nome, comum à autoridade que lhe é investida, por isso é chamada de Palavra do Ministro da Cultura, tal qual é
56
comum ouvirmos em pronunciamentos oficiais, apresentados inicialmente por: “com a palavra o Presidente da República”. Quanto à cenografia, nela se deslinda o tom do artistaministro, Gilberto Gil. A apresentação-prefácio dá-se numa mescla de tom poético com professoral. A começar pelo próprio título dado à sua fala: Ler é abrir janelas. Vejamos alguns trechos em que tais tons podem ser observados: Poético:
Caracterizado
por
metáforas,
inversões
lexicais, pelo tom enfático de algumas proposições.
[...] Ler é transcender, é possibilitar, é ir além do nosso por vezes cruel mundo imediato – tantas e tantas vezes nos abrigamos no confronto acolhedor da leitura quando estamos amuados e pesarosos. Ler é abrir janelas, destramelar portas, enxergar com outros olhares, estabelecer novas conexões, construir pontes que ligam o que somos com o que outros, tantos outros, imaginaram, pensaram, escreveram. Ler é fazer-nos expandidos. [...]
Professoral: Caracterizado pela tentativa de explicação de processos, pelas próprias definições apresentadas para o que seja Ler (como nos dois trechos citados no exemplo anterior) e pela demonstração de como, segundo ele, o plano poderá obter sucesso.
57
[...] E que convívio maravilhoso se dá numa Biblioteca, esta magnífica invenção coletiva da Humanidade: envoltos no manto do silêncio que aí reside e que nos convida à concentração e à reflexão, as Bibliotecas nos dão acesso aos infindáveis conhecimentos encontrados nos livros [...] [...] A partir do ato da leitura podemos então desenvolver um certo número de operações cognitivas, hierarquizando os argumentos, comparando os enunciados, descartando ideias [...]. Usamos essas ideias [...] para sermos melhores amigos e amigas, melhores pais e mães, melhores trabalhadores, melhores empresários ou melhores políticos. [...] [...] Quem faz cultura é a Sociedade, não é o Estado. Mas, cabe ao Estado – porque isso é do mais alto interesse público – amplificar as possibilidades para a produção cultural e para a multiplicação dos canais de difusão e das oportunidades de acesso. [...] [...] É preciso salientar que nós só teremos sucesso se conseguirmos consolidar efetivamente um pacto republicano para a atuação conjunta: não é nenhum governo, nem um setor em particular, é a Sociedade brasileira que exige a consolidação de uma ação concertada para o livro e leitura em nosso país. Todo investimento neste setor é extremamente recompensador. A sociedade reconhece e agradece.
58
Interessante
salientar
que
o
ministro
justifica
o
“empreendimento” e, portanto, o plano, e antecipa-se no reconhecimento
deste
pela
sociedade
e
agradece
antecipadamente, também, em nome dela. No texto seguinte, temos a mesma configuração geral da cena de enunciação: um dos discursos de apresentação do PNLL – Palavra do Ministro da Educação –, desta vez, vinculada ao Ministério da Educação, também em ação coordenada com o Ministério da Cultura e, portanto, com outro ministro e ligada à instituição política. Antes
de
prosseguirmos,
na
análise,
porém,
mencionemos um pouco sobre o ministro em questão: Fernando Haddad, a exemplo do que realizamos com o ministro Gilberto Gil e munidos do mesmo objetivo. O referido ministro é geralmente apresentado como professor Fernando Haddad, mesmo ocupando a cadeira de ministro de estado. Isso porque Fernando Haddad foi professor de Teoria Política Contemporânea da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo (USP). Antes de ocupar o cargo de ministro, ocupou outros cargos políticos, dentre os quais, o de Secretário Executivo do Mec na administração de seu antecessor, Ministro da Educação, Tarso Genro.
59
Reconhecido por defender uma visão sistêmica13 da educação, desde a educação infantil até o pós-doutorado, à frente do ministério, rompeu com a ideia de que os diversos níveis de ensino devessem competir entre si. Também assume que a universidade deve se demonstrar como liderança na requalificação dos outros níveis de educacionais e ajudar a promover a inclusão social da população à margem, no universo da cultura letrada. Neste segundo caso, a cena englobante revela-se como um discurso político, que ainda mais que na apresentação anterior, propaga e promove o Ministério da Educação, os projetos e pesquisas realizadas por este, desde longa data e, especialmente, no atual mandato governamental. Como exemplificaremos a seguir:
13
CUNHA, Luiz Antônio. Zigue-Zague no Ministério da Educação: uma visão da educação superior. Revista Contemporânea de Educação. Publicação online do programa de pós-graduação em educação da UFRJ. Disponível em: http://www.educacao.ufrj.br/revista/indice/numero1/artigos/conjuntura .php. Acesso em: 17 jul. 2007.
60
[...] Na verdade, nesse início do século XXI, quando a sociedade brasileira conta com mais de 97% das crianças de 7 a 14 anos na escola, o país tem a oportunidade histórica de formar uma geração que teve acesso à educação. [...] [...] O MEC, por meio do INEP realizou avaliação, em matemática e português (leitura), de mais de 3 milhões de alunos de 4ª e 8ª séries em 40 mil escolas do país através do Prova Brasil. [...] [...] O MEC vem desenvolvendo, em parceria com os municípios, uma proposta de ação pública e conjunta de formação de leitores e de incentivo à leitura, que tem por princípio proporcionar melhores condições de inserção dos alunos na cultura letrada, no momento de sua escolarização. [...] [...] Nos últimos quatro anos, o MEC vem implementando uma série de ações de formação, em parceria com diversas universidades [...]
A cena genérica refere-se a uma apresentação-prefácio não só das diretrizes do PNLL, mas uma espécie de prestação de contas das ações do MEC em prol da livro e da
61
leitura efetuadas na atual administração. Os exemplos acima servem também a este caso. A cenografia aqui, diferentemente do tom poéticoprofessoral do ministro Gilberto Gil, ganha a seriedade e a “contundência” de um administrador-prestador de contas. O professor, talvez se apresente apenas na figura do articulador que aloja o PNLL dentro de um cenário de muitas outras políticas educacionais que dialogarão com ele e servir-lhe-ão de subsídio para que obtenha sucesso. Por isso, talvez, o título escolhido para seu texto tenha sido: O livro, a escola e a leitura. O tom do prestador de contas e articulador do tema dentro dos outros programas do ministério pode ser verificado em várias passagens de seu texto, destacamos algumas:
[...] Por meio da Secretaria de Educação Básica – SEB e do Fundo de Desenvolvimento da Educação – FNDE, o MEC coordena dois importantes Programas – o Programa Nacional do Livro Didático – PNLD e o Programa Nacional Biblioteca da Escola – PNBE que poderiam ser chamados dos grandes portais para o acesso ao livro no Brasil, pois atendem a milhões de alunos das escolas públicas. [...] [...] Nos últimos quatro anos, o MEC vem implementando uma série de ações de formação, em parceria com diversas universidades, entre elas o Programa de Formação Continuada de Professores das
62
Séries/Anos Iniciais do Ensino Fundamental (Pró-Letramento) nas áreas de Alfabetização e Linguagem e de Matemática. [...]investindo, assim, na formação dos professores como mediadores de leitura. [...] No acesso às novas mídias, merecem destaque as ações realizadas por meio da Secretaria de Educação a Distância – SEED, como os programas TV Escola e Mídias na Educação. [...] [...] A promoção da alfabetização de jovens e adultos através das ações do Programa Brasil Alfabetizado é complementada pela produção de material de leitura dedicado especificamente aos neo-leitores, jovens e adultos recém alfabetizados. [...] [...] O MEC também inovou com o PNLEM – Programa Nacional do Livro Didático para o ensino Médio que adquiriu e entregou 12, 5 milhões de exemplares de livros didáticos das disciplinas de português e matemática para estudantes de escolas públicas de nível médio. [...] [...] O Portal dos Periódicos da CAPES e a janela do “Domínio Público” na página do MEC também contribuem para a melhoria da qualidade na educação e para a formação de novos leitores ao facilitar o acesso a obras literárias e à produção científica. [...] [...] O incentivo à leitura, à divulgação do
63
livro e à produção de textos é outra vertente da política que busca a melhoria da qualidade da educação. Junto com o Ministério da Cultura e a OEI – Organização dos Estados Iberoamericanos, o MEC lançou o Prêmio Vivaleitura, que visa reconhecer e premiar boas experiências de formação de leitores. [...]
Essa articulação é sempre feita nos moldes: o que se fez dirigido ao para que ou quem se fez. O sujeito destas ações é sempre o mesmo, o Ministério da Educação, portanto um sujeito impessoal. Podemos observar nas duas falas que, embora haja uma condição preexistente de ação coordenada entre os ministérios, cada ministro justifica a importância do tema e do trabalho desenvolvido, mas poucas são as vezes que o articulam como atribuição conjunta dos dois ministérios. 2.4 A imagem da leitura construída na cena de abertura
Exploramos na caracterização da cena de enunciação as três cenas que a compõem, no entanto, ainda nos resta tentar apurar a(s) imagem(ns) que esta cena constrói para/da leitura.
64
Pensamos que ao criar uma imagem de si, cada um de nossos fiadores, cria também uma imagem do objeto PNLL, e, por consequência, já que a questão do incentivo à leitura é a desencadeadora do plano, supomos que eles acabam por criar, por uma via secundária, uma imagem da leitura com a qual o plano pretende trabalhar. No
texto
de
Gilberto
Gil,
encontramos
várias
proposições para a leitura. Elencamos as que conseguimos detectar: A
leitura
como
viagem
transcendental:
ler
é
transcender [...] é ir além do nosso por vezes cruel mundo imediato. A leitura como companheira: tantas e tantas vezes nos abrigamos no confronto acolhedor da leitura quando estamos amuados e pesarosos. A leitura libertadora: ler é abrir janelas, destramelar portas, enxergar com outros olhares, estabelecer novas conexões, construir pontes que ligam o que somos com o que outros, tantos outros, imaginaram, pensaram, escreveram. Ler é fazer-nos expandidos. A leitura como função didática presa às disciplinas: coloca ao nosso alcance saberes tão diversos como aqueles sobre a matemática aplicada à construção de relógios e ao vôo dos aviões; o desenho geométrico que fará casas e estradas; a composição molecular inscrita no cerne de nossas
65
células ou nos alimentos que nos dão uma vida mais saudável; a história do comércio, dos transportes e também a história daquela risonha menina a caminho. E até àquele poema que usamos para enternecer a quem amamos. A leitura como exercício da memória: seria um exercício absolutamente fascinante remontar em quantas dimensões, em quantos momentos, de quantas formas a leitura marcou a vida de cada um, a vida de cada cidade, de cada sociedade. A leitura como edificação: quando falamos de livro e leitura falamos, portanto, de expansões e de potencialidades. A leitura como emancipação social: É por esta razão básica que encaramos neste governo o conjunto de políticas que possibilitam a ampliação do acesso ao livro e à leitura como políticas fundamentais para a construção plena da cidadania em nosso país. O ministro ainda trata, sem que talvez se aperceba do fato, de rituais estereotipados de leitura, fato que podemos ilustrar na seguinte passagem: E que convívio maravilhoso se dá numa Biblioteca, esta magnífica invenção coletiva da Humanidade: envoltos no manto do silêncio que aí reside e que nos convida à concentração e à reflexão, as Bibliotecas nos dão acesso aos infindáveis conhecimentos encontrados nos livros, dispostos em convívio pacífico, lado a lado, em suas estantes e prateleiras.
66
Melhor seria, talvez, que esses livros se encontrassem desarrumados sobre a mesa de leitura, após terem sido folheados e lidos pelas pessoas. Todavia, em meio a essa proliferação de imagens de leitura que o texto do ministro constrói, acreditamos que o ethos construído para a leitura em sua fala, como um todo, seja o ethos da promessa. A promessa de libertação, de edificação,
de
emancipação,
de
companheirismo,
de
extravasamento, de conhecimento. Um ethos que promete a melhoria pessoal manifestada em:
a partir do ato da leitura podemos então desenvolver um certo número de operações cognitivas, hierarquizando os argumentos, comparando os enunciados, descartando ideias [...]. Usamos essas ideias [...] para sermos melhores amigos e amigas, melhores pais e mães, melhores trabalhadores, melhores empresários ou melhores políticos. Ainda salientamos que no texto em questão a leitura é tratada sempre em termos de leitura de livros apenas, daí os espaços de bibliotecas serem tão frisados, e a leitura apresenta sempre um caráter positivo, no discurso em questão. Na fala de Fernando Haddad, encontramos a leitura como processo para o letramento escolar: uma política
67
consistente que promova o domínio da leitura e da escrita ao longo da vida escolar/ [...] É preciso, portanto, que – da educação infantil à pós-graduação – a criança/aluno participe de um ambiente de forte e permanente estímulo à leitura, quer através do livro, quer através dos demais suportes que tornam a leitura uma atividade cada dia mais necessária a todos. A leitura como prática social: mas sobressai a regularidade das práticas de leitura, do estímulo às atividades de criação de textos, da valorização das experiências e saberes de seus alunos e das comunidades em que estão inseridas. A leitura e a escrita têm, nessas escolas, o caráter de uma atividade cotidiana, que vai além da função didática. A leitura irradiada a partir da escola: a formação de leitores se inicia na escola e deve prosseguir no ambiente familiar e comunitário [...]. A leitura como inclusão (social e tecnológica): o MEC vem desenvolvendo, em parceria com os municípios, uma proposta de ação pública e conjunta de formação de leitores e de incentivo à leitura, que tem por princípio proporcionar melhores condições de inserção dos alunos na cultura letrada, no momento de sua escolarização. [...] Através das ações do programa Mídias na Educação busca-se alcançar o objetivo de proporcionar formação continuada para o uso pedagógico das diferentes tecnologias da informação e da comunicação
68
Também aqui, observamos uma razoável proliferação de imagens da leitura, mas podemos agrupá-las sobre o ethos da esperança. Esperança de que todos os programas políticos que envolvem a educação e consequentemente a leitura, juntamente com este novo plano consigam incluir, atualizar, efetivar, formar e mudar o panorama da leitura no país, democratizar o acesso. Ethos da esperança que pode ser observado mais nitidamente em: Na verdade, nesse início do século XXI, quando a sociedade brasileira conta com mais de 97% das crianças de 7 a 14 anos na escola, o país tem a oportunidade histórica de formar uma geração que teve acesso à educação e formá-la na valorização da leitura, no domínio da escrita, na visão crítica das informações que recebe e no exercício da produção e criação de sentido para suas práticas cotidianas.
Chamamos a atenção para o fato de que nesta cena, considera-se a leitura não apenas do livro, mas também de outros suportes. Apesar de considerarmos aqui o fato de que o plano é uma proposta de fomento da leitura e do acesso ao livro, nada impediria que os ministros mencionassem a respeito de outros suportes. A exemplo do discurso anterior, no texto de Fernando Haddad, a leitura também se apresenta com caráter positivo.
69
3. Considerações finais:
Verificamos na fala do Ministro da Cultura a crença de que o acesso ao livro leva automaticamente à formação do leitor, por isso ele recorre corriqueiramente à necessidade de bibliotecas e de frequentá-las, cumprir ritos de leitura, de ampliar e melhorar a economia do livro como aquela que tem um vasto potencial de geração de empregos, renda e felicidade. Ao passo, que, para o Ministro da Educação, o leitor se constrói dentro do universo do letramento escolar, mediados pelo professor que necessita estar preparado para exercitar competentemente tal papel – Afinal, parafraseando o poeta14, precisa-se do livro fechado, mas também de quem o abra, interrogando-o – e por um sistema público que consiga promover a inclusão das classes populares na cultura letrada. Todavia, embora enfatizado, o ministro não restringe a leitura ao ambiente escolar apenas, o que corroboraria para diminuir a função social da leitura que ele enuncia e criaria uma noção equivocada de que a escola seja a única agenciadora eficaz da leitura. Embora reconheçamos ser a escola um local, por excelência, capaz de impulsionar
e, até mesmo, de
determinar a atividade de leitura. 14
Fernando Haddad cita João Cabral de Melo Neto em abertura a seu texto.
70
Interessante observarmos também que, especialmente no discurso político, a questão do ethos prévio funciona como um dispositivo que ajuda a construir o ethos discursivo, haja vista que o tom poético do artista se manifestou na Palavra do Ministro da Cultura e o tom do professor que defende uma visão sistêmica da educação e a inclusão social também aparece na Palavra do Ministro da Educação. Embora o artista tenha assumido muito mais um tom professoral do que o professor propriamente dito, que se demonstrou mais como um articulador-prestador de contas. Como já mencionamos, apesar do PNLL configurar-se como um conjunto de ações coordenadas entre dois ministérios, nos textos dos ministros essa articulação ocorre muito sutilmente. Logicamente cada um fala a partir de suas posições dentro do cenário político, e mais do que isso, no lugar social destinado e assumido por cada um deles, mesmo porque a própria separação dos textos da apresentação já induz a uma possível “desarticulação” desses discursos. Todavia, o que mais nos chamou atenção foi a construção de ethos distintos para a leitura nas duas apresentações. Esperávamos, de início, que as falas fossem diferentes, mas que houvesse uma convergência quanto ao ethos final construído. Mas a análise nos demonstrou uma outra realidade. Enquanto no texto do Ministro Gilberto Gil o ethos da promessa se delineou, no texto de Fernando
71
Haddad, foi o ethos da esperança que se apresentou como construído. O que nos indica que há modos de pensar e de problematizar a questão da leitura de forma diferente pelos dois ministros. Todavia, avulta-se, como ponto de encontro, a menção da leitura como capaz de expressão da diversidade cultural e de fortalecimento dos valores democráticos e a solução da desigualdade social, tópicos que, de uma ou outra maneira, são recorrentes em todo o documento e frequentam os discursos pedagógicos brasileiros mais gerais já há algum tempo. Certamente, tentar priorizar o livro e a leitura e transformá-los em política permanente do Estado é um grande avanço dentro dos incentivos e planos na área. Concordamos com o Ministro da Educação quando deixa entrever em sua fala que não basta um plano para que nosso status negativo neste setor seja superado. É preciso uma reunião de ações, em vários outros setores, que vão desde a melhoria no acesso aos materiais de leitura, quanto na preparação dos professores para que saibam trabalhar a leitura de forma produtiva e eficaz em sala de aula. É preciso entender a leitura como uma questão cultural (já que passa pelo valor simbólico que a sociedade lhe atribui) e econômica, mais do que uma questão de gosto ou de querer individual. É preciso que haja condições favoráveis para que ela se estabeleça muito mais do que, apenas, a
72
ampliação da quantidade de livros disponíveis. Pois não existe uma relação automática entre acesso ao livro e leitura, é preciso estabelecer-se uma cultura de promoção e de valorização da leitura. Porque além do Estado e da Sociedade disponibilizar informações, é preciso capacitar os indivíduos para acessá-las. Melhorar os índices de alfabetismo é uma dessas ações. Pois os altos índices de analfabetismo funcional, que hoje preocupam mais, talvez, que o analfabetismo absoluto ─ haja vista que esse indica que o ensino nas escolas brasileiras não tem conseguido atingir a eficácia, sequer, no processo de alfabetização, quiçá no de letramento15 ─ atravancam o desenvolvimento social e econômico do país. Mas não nos cabe avaliar o PNLL e sim verificar a imagem da leitura construída naquela que denominamos como cena de abertura do programa. Neste caso, imagens e ethos distintos em cada um dos textos avaliados. Referências bibliográficas: 15
Usamos alfabetização no sentido da aprendizagem da técnica de ler e escrever (decodificar e codificar) e letramento como o uso proficiente das habilidades de leitura e escrita como funções e práticas sociais. Concordando com Soares (2003) aponta para o letramento como algo importante e que se distingue da alfabetização, porque existe uma grande diferença entre aprender o código e saber utilizá-lo. A autora defende que os conceitos estão imbricados, de forma que entre eles não existe hierarquia ou cronologia. “Pode-se letrar antes de alfabetizar ou o contrário” (SOARES, 2003).
73
AMOUSSY, Ruth (org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005. BRANT, Leonardo (org.). Diversidade cultural: globalização e culturas locais – dimensões, efeitos e perspectivas. São Paulo: Instituto Pensarte, 2005. MAINGUENEAU, D. Ethos, cenografia, incorporação. In: Imagens de si no discurso: a construção do ethos. In: AMOUSSY, Ruth (org.). São Paulo: Contexto, 2005. p.69-92. ______. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2001. MAINGUENEAU, Dominique; CHARAUDEAU, Patrick. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004. ORLANDI, E. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez; Campinas: Editora da Unicamp, 1988. DIRETRIZES DO PLANO NACIONAL DO LIVRO E LEITURA (PNLL). Brasília: Governo Federal, 2006. SOARES, Magda Becker. O que é letramento. Diário do Grande ABC, Santo André, ago. 2003. Disponível em: http://www.diarionaescola.com.br/29se08.pdf>. Acesso em: 5 mar. 2004. ZILBERMAN, Regina. A leitura como bem público. Disponível em: http://catalogos.bn.br/proler/Artigos/ReginaZilberman.pdf. Acesso em: 02 jul. 2007.
74
JORNALISMO POPULAR X SENSACIONALISMO: UM ESTUDO DO PAPEL DO FAIT DIVERS NO JORNAL SUPER NOTÍCIA1 Magna Campos – UFSJ Prof. Dr. Guilherme Rezende – UFSJ Resumo: O objetivo deste trabalho é fazer um levantamento sobre o papel que teria o fait divers no jornal mineiro Super Notícia. Para tanto foi necessário recorrer ao gênero jornalista a que tal jornal se afilia, o jornalismo popular, a fim de levantar-se sua história e suas especificidades. E ainda estudar a vinculação deste gênero ao sensacionalismo, macroestrutura que engloba a categoria escolhida para análise, ou seja, o fait divers, buscando não uma condenação, mas sim, respaldo científico que permita um posicionamento menos preconceituoso diante das possíveis ligações entre esses três aspectos: jornalismo popular – sensacionalismo – fait divers. Constatou-se, no entanto, que são necessários muito mais estudos sobre as especificidades desses novos jornais populares que têm se tornado fenômenos de venda. Optou-se, então, por levantar-se a problemática envolvida na questão e deixar maiores conclusões a cargo de estudos posteriores.
Palavras-chave: sensacionalismo.
Fait
divers,
jornalismo
popular,
Introdução:
O jornal Super Notícia tem conquistado uma vendagem de exemplares, cada vez mais significativa, trazendo algumas 1
Texto escrito em 2006.
75
características em sua apresentação composicional que o difere dos jornais de referência no estado de Minas Gerais. E muitas vezes, estas características são designadas por seus concorrentes mais tradicionais e até mesmo por leitores de outros jornais, com certo “preconceitos”. Por isso, busca-se na análise dos fait divers a verificação do papel que tais elementos apresentariam neste jornal, tentando verificar se cabe ao jornal o título de sensacionalista que lhe tem sido imputado por algumas instâncias. De acordo com Amaral (2005), os periódicos voltados para os públicos das classes C, D e E são identificados como jornais populares por duas razões: pelo baixo preço e pelos assuntos cobertos, que têm critérios de noticiabilidade distintos dos praticados pelos jornais considerados de referência ou aqueles que se destinam aos leitores das classes A e B. Reconhecemos que o termo sensacionalista, geralmente é atribuído ao jornal que se utiliza de fait divers de uma forma demasiadamente vaga e recorrente, e quando usado para definir uma publicação que veicula aspectos culturais e sociais de uma camada da população deixados de lado pelo jornalismo de referência. Ser chamado de sensacionalista incute ao jornal assim nomeado o peso de ser classificado como jornalismo popular, dado o fato de que alguns veem a ligação direta entre uma e outra classificação. É como se ao
76
falar-se em jornalismo popular aparecesse como sinônimo a expressão, sensacionalista e vice-versa. Assim, os jornais populares são, em grande medida, vistos com certas reservas pelos críticos desse tipo de fazer jornalístico em função do modo como essas publicações constroem em suas páginas a realidade. Durante muito tempo, as publicações que se definiam como populares foram chamadas de sensacionalistas, tanto pela população, quanto por profissionais de jornalismo e pesquisadores. Alguns dessas publicações ligavam a presença sistemática de fait divers, especialmente abarcando a questão da violência, como traço marcante do sensacionalismo. Um dos estudos que estabelece a relação da cobertura sistemática da violência, sensacionalismo e jornalismo popular é Agrimani (1995). A escolha dessa categoria de análise é justificada pela tentativa de buscar, com tal análise, verificar se há fundamentação comprovada por algum critério (nesse caso uma presença significativa de fait divers) que não seja apenas o
"intuitivo2"
para
nomear
o
Super
Notícias
como
sensacionalista. No entanto, reconhecemos que este estudo é breve demais para pretender dar uma resposta a essa questão, portanto, nosso intento será apenas contribuir para a discussão do assunto. 2
Leia-se intuitivo aqui como caracterizador da nomeação desprovida de qualquer explicação científica.
77
Neste estudo, na tentativa de verificarmos o papel que teria o fait divers na publicação em estudo, traçaremos um percurso que buscará a definição deste termo por alguns estudiosos do assunto, passando pela história do jornal Super Notícia, com o propósito de mostrar o porquê de sua associação ao gênero jornalismo popular e, daí então, procederemos a uma exploração sobre os termos jornalismo popular e sensacionalismo. Após, com base na teoria apresentada, efetuaremos uma breve análise do fait divers na amostragem selecionada para o trabalho.
2.0 – Fundamentação teórica 2.1 – Sobre o fait divers: Histórias absurdas que poderiam acontecer a qualquer um, mas que raramente acontecem, assim poderiam ser caracterizados os fait divers. Segundo o Grande Dicionário Universal do Século XIX de Pierre Larousse, citado por Agrimani (1995, p.25), fait divers é uma rubrica sob a qual os jornais publicam com ilustrações as notícias de gêneros diversos que ocorrem no mundo. Ainda, de acordo com esse dicionário seriam exemplos típicos de fait divers: pequenos escândalos, acidentes de carro, crimes terríveis, suicídios de amor, operários caindo do quinto andar, roubo a mão armada, acontecimentos misteriosos, execuções etc.. O que há de comum nesses fatos é que todos pertenceriam a contextos
78
populares e particulares e que, de repente, ganham evidência em um contexto público e reconhecimento social. De acordo com Ramos (2004, p.57) a expressão francesa fait divers designa, em sua generalidade, a informação sensacionalista. E engana-se quem pensa que tal expressão é contemporânea à mídia impressa ou eletrônica, segundo o pesquisador acima, ela existe desde a época dos menestréis, portanto tem origens na oralidade. Agrimani (1995, p. 27), menciona que em 1631 o Gazette de France lançou edições extraordinárias, de grandes tiragens,
totalmente
dedicadas
aos
fait-divers
sensacionalistas. A exemplo desse jornal, muitos outros passaram a publicar os fait divers para alavancar suas vendas. Barthes
(1970,
p.58),
ao
falar
da
extraordinária
participação do fait divers na imprensa de hoje, propõe inicialmente que se proceda a uma análise estrutural a fim de diferenciar
as
ditas
"informações
gerais",
nome
dado
atualmente ao fait divers, dos outros tipos de informações. Elabora também seu conceito para fait divers, o qual significaria, segundo esse autor, fatos diversos que cobrem escândalos, curiosidades e bizarrices, caracterizando-se como sinônimo da imprensa popular e sensacionalista. Para ele: O fait divers é uma notícia de ordem não classificada, dentro de um catálogo mundialmente conhecido (políticas,
79
economia, guerras, espetáculos, ciências, etc.); numa só palavra, seria uma informação monstruosa, análoga a todos os fatos excepcionais ou insignificantes, em suma inomináveis, que se classificam em geral pudicamente sobre a rubrica dos Varia. […] é uma informação total, ou mais exatamente, imanente, ele contém em si todo o seu saber: não é preciso conhecer nada do mundo para consumir um fait divers; ele não remete a nada além dele próprio; evidentemente, seu conteúdo não é estranho ao mundo: desastres, assassinatos, raptos, agressões, acidentes, roubos, esquisitices, tudo isso remete ao homem, à sua história, à sua alienação, a seus fantasmas, aos seus sonhos, aos seus medos [...] no nível da leitura, tudo é dado num fait divers: suas circunstâncias, suas causas, seu passado, seus desenlace; sem duração e sem contexto, ele constitui um ser imediato que não remete, pelo menos formalmente, a nada de implícito. (BARTHES, 1970, p.58-59).
O fait divers é, assim compreendido, uma narrativa total, autossuficiente, pois o acontecimento, surgido ex nihilo , não precisa do mundo para ser “consumido”, na expressão de Barthes. Estrutura fechada, pura imanência, o fait divers contém em si todo o seu saber. Daí, talvez, o gosto popular pelos “casos sem importância num jornal”, que opõem dois paradigmas, o da vida pública e o da esfera privada. Barthes, ao falar da estrutura do fait divers, dá-lhe essas duas
categorias,
causalidade
e
coincidência,
ambas
direcionadas para a classificação da excepcionalidade, fixada no conflito.
80
Outro teórico a tratar a questão do fait divers é Maffesoli, para quem em uma sociedade de massa, mas também de comunicação, o fait divers é uma informação quente e circunstancial, localizada (...) ele emana de um lugar datado, ele é carne e sangue em sua origem(...) como o conto, o carnaval, o jogo pueril. O comentário do fait divers permite falar, sem falar, da morte, da violência , do sexo, das leis e de suas transgressões. (apud AGRIMANI, 1995, p. 25).
Posição que coincide com a de Barthes quando menciona sobre a imanência do fait divers como informação total, metaforizada por Maffesoli como carne e sangue. O pesquisador francês, Edgar Morin, apud Agrimani (1995, p.26), observa que, no fait divers, o limite do real ou do inesperado, o bizarro, o crime, o acidente, a aventura, irrompe na vida cotidiana. De acordo com Sommer (2004, p.03), Morin (1997) associa o sensacionalismo ao fait divers (fatos variados), destacando que a dramatização dos fatos (notícias) comove o público. Por serem gratuitos e descontextualizados da realidade, esses fatos variados reafirmam “a presença da paixão, da morte e do destino, para o leitor que domina as extremas virulências de suas paixões, proíbe seus instintos e se abriga contra os perigos” (MORIN, 1997 apud SOMMER, 2004, p. 03). Ainda de acordo com Morin, o fait divers vai até o fundo da morte e da mutilação, como lógica irreparável da
81
fatalidade. É consumido não como um rito criminal, mas na mesa, com café e leite, no metrô. Tal qual proposto por Barthes (1970), Morin esclarece que o fait divers se situa fora do contexto histórico. Pode-se dizer, então, que o fait divers nunca envelhece, já que se situa fora do contexto histórico, porque relatos de crimes e outras tragédias são narrativas da causalidade, do inesperado, construídas
para
provocar
espanto
no
leitor,
sendo
transportadas para o presente, o imediato, a cada leitura. De acordo com Meyer (1996, p.100), a narrativa do fait divers visa essencialmente provocar reações subjetivas e passionais no leitor-ouvinte. Tende a abolir a distância que o separa do acontecimento e dar-lhe a ilusão de que participa, ele próprio, da ação. Funcionando como um romance, o relato desse tipo de acontecimento convida o leitor a participar por meio da imaginação das situações descritas e a se identificar com os personagens cujas aventuras acompanha (...) ele estabelece com nosso inconsciente relações que refletem nossa própria ambivalência (...) é um lugar de exercício do imaginário. (apud Lanza, [s.d], p. 5)
Partilhando de ponto de vista semelhante, Sodré (1998, p.134) assinala que o texto noticioso encena uma causalidade, ao por em ordem as diferentes experiências vivenciadas pelo indivíduo no dia-a-dia. É a notícia assumindo o caráter teatral e
dramático
para
captar
leitores
e
espectadores.
Fundamentando-se em Roland Barthes, ele afirma que esse
82
tipo de texto – relato de algo aberrante – torna mais evidente a presença do romanesco na narrativa noticiosa, constituindo-se no
primeiro
exemplo
histórico
da
dramatização
do
acontecimento pela imprensa. Ideia essa que vai ao encontro do conceito dado também por Meyer, acima citado, e por Morin (1997) para os fatos diversos. Portanto, depreendemos que o que conta no fait divers é a exploração da emoção e também o seu caráter de entretenimento, de chamar atenção, tão explorado pelas diversas mídias na atualidade. 2.2 – Um pouco da história do Jornal Super Notícias
O Super, como é chamado por seus leitores, é um jornal3 popular em cores e em formato de tablóide4. Criado pela Sempre Editora, empresa proprietária de outros jornais, como O Tempo, Pampulha, O Tempo Betim e O Tempo Contagem, o Super apresenta em geral, segundo informações dos próprios editores5, matérias curtas, de fácil leitura, custos
3
Jornal de circulação inicial na capital mineira, Belo Horizonte, e que depois passou a ser vendido em muitas outras cidades de Minas Gerais. 4 Jornal feito com papel A3 ou duplo ofício, menor do que os tamanhos tradicionais. 5 Disponível em: http://www.otempo.com.br/sempre_editora/. Acesso em: 07 jan. 2007.
83
baixos e simplicidade de conteúdo, bem ao caráter dos ditos jornais populares. Lançado em 1º de maio de 2002, o jornal apresenta reportagens com ênfase em esportes, cidades e polícia, visa ao público das classes econômicas B, C e D, e também a um público constituído em sua grande maioria, pelo gênero masculino.
Observemos,
para
melhor
visualização
e
detalhamento do perfil de leitores, alguns dados apresentados pela equipe responsável pela publicidade do Jornal em questão.
84
Gráfico 1: Perfil de Leitores do Jornal Super Notícias 6 Fonte: conforme dados do Instituto Marplan . .
6
Disponível em: http://www.otempo.com.br/publicidade/perfil_leitores_super_noticias.j sp. Acesso em: 12 dez.2006.
85
Esse jornal têm em média 25 páginas e cobertura de pautas como notícias sobre violência, vida de celebridades, futebol, cidades, prestação de serviços e política. O Super Notícia abrange 7 editorias, sendo elas: Opinião, Cidades, Geral, Emprego, Variedades, Classificados e Esportes, além de contar com colaborações de colunistas. Apesar de ter sido lançado há quase cinco anos, foi a partir de outubro de 2005 que o jornal conseguiu uma vendagem mais significativa no Estado de Minas Gerais. Fato irônico, pois foi com o lançamento de um outro tablóide, o Aqui7, criado para concorrer diretamente com ele, e que levou a Sempre Editora a reduzir preço do jornal à metade a fim de igualar-se
a
seu
"agressivamente"
novo nas
concorrente,
suas
ações
além de
de
investir
marketing
com
promoções e ampliação de canais de distribuição em todas as regiões da capital mineira, Belo Horizonte, e de muitas outras cidades do interior do estado. Hoje o Super é vendido em mais de 200 cidades do estado de Minas Gerais, conforme Silva, em matéria publicada, em 21/06/2006, no jornal on-line da Puc Minas, intitulada - Super notícias: o tablóide que virou fenômeno.
7
Tablóide lançado pelo Grupo Diários Associados, proprietário do jornal Estado de Minas, em outubro de 2005 pela metade do preço do Super Notícias, R$ 0,25 e que levou o Super a baixar seu preço também a R$ 0,25.
86
Se em seus três primeiros anos o jornal não obteve tanta expressividade nas vendas, a partir de outubro de 2005, com a já mencionada campanha de marketing, o tablóide conseguiu um feito histórico: aumentar imensamente a sua vendagem e ainda ameaçar a liderança do jornal Estado de Minas, líder de venda no gênero jornalístico no estado, nas últimas quatro décadas. Segundo dados do Instituto Verificador de Circulação (ICV), publicados na primeira página do jornal O Tempo, de 23 de fevereiro de 2006, em janeiro de 2005, o Super vendia uma média diária de 7.377 exemplares contra 70.274 do Estado de Minas. Já em janeiro de 2006, o Super atingiu a vendagem média diária de 79.379 exemplares, que significou o crescimento de 976% em 12 meses, contra 69.926 do Estado de Minas, indicando queda de 0,99% na vendagem deste último no mesmo período. O último dado auditado pelo IVC sobre a vendagem do Super, obtido por este estudo, foi de agosto de 2006 que indicava uma média diária aproximada de 150 mil exemplares8. Criticado como sensacionalista e como popular, os responsáveis pelo jornal negam que ele seja sensacionalista, conforme as palavras do editor, Rogério Maurício Pereira: “se 8
CRESCIMENTO do "Super Notícia” estimula duplicação do Parque Gráfico da Sempre Editora. Disponível em: http://www.abigraf.org.br/index.php?option=com_content&task=view &id=1439&Itemid=43. Acesso em: 10 dez. 2006.
87
popular for um produto que atrai milhares de pessoas diariamente, o Super é popular. O Super não é sensacionalista […] o Super é um jornal sério, recheado com informações objetivas9” . Segundo Agrimani (1995, p.13) “sensacionalista é a primeira palavra que a maior parte das pessoas utiliza para condenar uma publicação”. E ainda, quando se enclausura um veículo nessa denominação, se faz também uma tentativa de colocá-lo à margem, de afastá-lo dos mídias "sérios". Se um jornal é tachado de sensacionalista, significa para o público que o meio não atendeu às suas expectativas. (AGRIMANI, 1995, p.13)
Verifica-se, portanto, com Agrimani o ônus de receber o título de sensacionalista. Nomeação que o jornal em estudo tenta negar. Ainda segundo o autor, a edição do produto sensacionalista
é
pouco
convencional,
tendendo
ao
escandaloso. O tópico escolhido para ser analisado no jornal, o fait divers, de acordo com Agrimani, seria o principal nutriente do sensacionalismo, embora não seja o único. 2.3 Jornalismo popular e sensacionalismo
9
SILVA; Sálua Zorkot. Super notícias: O tablóide que virou fenômeno. Disponível em: http://www.fca.pucminas.br/ooutro/bolso/bolso12006007.htm. Acesso em: 07 jan. 2007.
88
O jornalismo popular teve início no Brasil na década de 20, do século passado, quando surgiu o jornal Folha da Noite. Segundo Oliveira (2002, p.2), esse jornal teve o propósito de “apresentar-se como um órgão destemido de combate, mas de feição leve e graciosa, que contrastava com a sisudez e austeridade dos demais jornais da época”. A Folha da Noite foi um dos primeiros jornais que criou segmentos que visassem a diferentes tipos de leitores, como a criação do suplemento feminino, do suplemento esportivo e outros que atingissem a segmentos
distintos
da
população,
capitalizando
suas
insatisfações. O jornal traz características importantes no que tange a caracterização de um novo tipo de jornalismo: a preocupação em atingir a um público de composição social heterogênea, a busca de uma feição mais leve e "digestiva", a criação de uma seção de esportes, uma seção feminina, o tratamento novelesco de alguns fatos. Traços esses que ganhariam relevância na imprensa com o tempo, e nem sempre nos mesmos tipos de jornal. Nos anos 60, surge o jornal Notícias Populares10, dito expoente máximo de jornalismo popular no Brasil. Sua criação, ainda de acordo com Oliveira (2002, p.3) inscreverase como parte de estratégia de lutas de grupos políticos 10
Considerado por Agrimani como tipo representante do jornalismo "espreme que sai sangue".
89
antivarguistas e anticomunistas, que se viam preocupados com o que pareceria o poder de difusão do jornal Última Hora, por eles considerado esquerdista. Criaram-no visando a desviar o público daquele jornal para um jornal que tivesse um sinal político oposto, ou antes, que não falasse de política. O Notícias Populares aproveitou algumas fórmulas do Última Hora até a exaustão, como por exemplo, notícias sobre violência, crimes, sexo, esporte etc.. O jornalismo popular, voltado às camadas menos privilegiada economicamente da população, parece, desde então, ser uma tendência da especialização a que chegaram os meios impressos. Todavia, foi nos anos 90 que esse tipo de jornalismo – jornalismo popular – ganha ainda mais força e se consolida. Surgem publicações brasileiras como: O Dia, Extra, Lance. E do ano de 2000 para cá, surgem o Diário Gaúcho, o Agora São Paulo, o Meia Hora, o Expresso, o Super Notícias e o Aqui e que, em geral, têm em comum a grande vendagem de exemplares avulsa. Podemos
citar
dois
conceitos
para
o
termo
sensacionalismo que são muito utilizados nos estudos sobre o tema: o de Agrimani (1995) e de Pedroso (2001). Segundo Agrimani, o sensacionalismo é tornar sensacional um fato jornalístico que, em outras circunstâncias editoriais, não mereceria esse tratamento […] sensacionalizar aquilo que não é necessariamente sensacional, utilizando-se para isso de um
90
tom
escandaloso,
espalhafatoso.
Para
Pedroso,
o
sensacionalismo é um modo de produção discursiva da informação de atualidade, processado por critérios de intensificação e exagero gráfico, temático, linguístico e semântico,
contendo
em
si
valores
e
elementos
desproporcionais, destacados, acrescentados ou subtraídos no contexto de representação e construção do real social. No entanto, o surgimento de jornais ditos populares, não configuraria para alguns teóricos a existência de uma Imprensa Popular. Esse é o caso da pesquisadora brasileira, Rosa Nívea Pedroso que em seu livro, A construção do discurso de sedução em um jornal sensacionalista, propõe que
a
imprensa
brasileira
comumente
dividida
pelos
estudiosos em: Imprensa de Elite e Imprensa Popular, de acordo com as características de produção e recepção dos produtos por elas elaborados, no fundo, a dita Imprensa Popular não reproduziria a condição de vida das classes populares, ou seja, não seria um veículo que carrega em si características da cultura popular, mas apenas artifícios que agradam ao gosto popular. Ainda, segundo a autora, a imprensa popular vigente, não só a brasileira, mas comumente aquela dos países latinoamericanos, é caracterizada com aspectos da Grande Imprensa, isto é, obedece a fins mercadológicos. Leia-se a passagem abaixo na qual tal questionamento fica mais
91
delineado e é possível explicitar a posição da autora de que a Imprensa Popular não constituiria um tipo de jornalismo, mas um fruto (uma espécie de ramificação) da Grande Imprensa: Se não consegue explicá-lo como algo autônomo, com determinantes próprios de realização, é porque ela não existe como um tipo de imprensa que se opõe a outro, mas é uma divisão aparente, ou seja, um segmento que pertence a grande imprensa e a reproduz. (PEDROSO, 2001, p. 46)
Todavia, tomando-se por referência a Crítica Cultural é possível pensar essa questão e propor que no processo midiático, percebe-se uma tendência ao condicionamento da atividade criativa, o que não significa dizer que a cultura sofre de uma dependência dos fatores econômicos. No entanto, tem “influência e sofre consequências das relações políticoeconômicas” (ESCOSTEGUY, 2001, p.156). Não podemos, ao estudar-se a questão do jornalismo popular, eximirmos de pensar a questão acima lançada e da consideração
de
que
os
jornais
populares
sofreram
modificações e cresceram muito desde suas origens até hoje. Os jornais destinados às classes B, C e D integram um novo mercado a ser analisado, e que carecem de maiores estudos científicos, pois são, em muitas ocasiões, excluídos como objeto
de
estudo
considerados
dos
meios
"desvirtuantes"
da
acadêmicos
por
serem
referência:
os
jornais
destinados às classes A e B, a "elite cultural".
92
De
acordo
normalmente,
que
com
Amaral
“os
produtos
(2005,
p.01),
jornalísticos
diz-se,
populares
distorcem os fatos”. Segundo ela, se é possível distorcê-los, pressupõe-se que haja uma maneira certa de narrá-los, concepção muito ligada “à noção da notícia como espelho dos fatos”. E muitas vezes, cobra-se que as notícias tenham exatamente o mesmo formato das publicadas em um jornal de referência. Para ela, muitas críticas aos exageros e às distorções da imprensa popular, pertinentes do ponto de vista ético, caem no extremo de imaginar possível uma notícia límpida que faça os fatos transparecerem tal como aconteceram. Ora, as notícias não emergem naturalmente do mundo real para o papel, não são simplesmente o reflexo do que acontece. São redigidas a partir de formas narrativas, pautadas em símbolos, estereótipos, frases feitas, metáforas e imagens. (idem, op.cit.)
Expressões
como
"degradação
cultural",
"lixo"
e
"antijornalismo" são usadas para desqualificar os produtos informativos populares comerciais, o que os exclui do rol de objetos dignos de serem estudados e pesquisados. Dessa forma, os produtos jornalísticos populares, frequentemente nomeados como sensacionalistas, veem na amplitude desse conceito a sua condenação.
93
O sensacionalismo é um modo de caracterizar o segmento popular da Grande Imprensa, uma percepção do fenômeno fenômeno,
localizada de
historicamente
acordo
com
Amaral
e
não (2005),
do
próprio
pois
ele
corresponderia mais à perplexidade com o desenvolvimento da indústria cultural11 no âmbito da imprensa, do que um conceito capaz de traduzir os produtos midiáticos populares mais recentes. Uma importante relativização a ser feita refere-se à ampliação do conceito de cultura, ou seja, ao questionamento da divisão hierárquica entre cultura elitista (tida como superior) e cultura das classes populares (tida como inferior). No cerne da cultura, transitam os mais variados modos de vida perpassados por relações de poder. Existem distinções decorrentes de classe, raça, poder, linguagem etc., e isso está expresso no campo da cultura, que reflete, assim, as diferenças sociais, e não só as diferenças entre classes sociais. 11
A definição de indústria cultural surgiu no final da década de 40 quando Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, pensadores da Escola de Frankfurt, refugiados nos EUA em decorrência da Segunda Guerra Mundial, publicam em 1947, o clássico - Dialética do Esclarecimento. O uso do termo indústria cultural foi adotado a partir da publicação para substituir a expressão até então utilizada cultura de massa [...] Segundo Adorno e Horkheimer, a indústria cultural é a integração deliberada a partir do alto de seus consumidores, ou seja, a vulgarização da arte superior e inferior e sua distribuição através de veículos de comunicação de massa manipuladores e aniquiladores da consciência e do pensamento crítico humano.
94
É preciso considerar também que um jornal destinado ao público popular não se utiliza dos mesmos recursos do jornal de referência. Ainda, de acordo com Hall et al (1999) apud Amaral (2005, p.2), a construção do discurso informativo parte de mapas culturais. Cada tipo de publicação legitima-se por intermédio do uso maior ou menor dos recursos narrativos, desenhados culturalmente. O discurso informativo pode se inspirar em determinadas formas narrativas e, no segmento popular,
formas
narrativas
com
características
melodramáticas, grotescas e folhetinescas. Não se faz aqui uma apologia ao gênero popular, apenas tenta-se evidenciar a necessidade de considerá-lo relevante para estudos, visto seu grande crescimento e a capacidade de tornar não-leitores de jornais, em leitores, de tornar não-consumidores de jornais, em consumidores. E que o estudo destes jornais não sejam apenas objeto de comparação
com
os
jornais
de
referência,
não
se
negligenciando a necessidade de uma postura crítica em relação a esse tipo de jornalismo, assim como com relação a qualquer outro. No prefácio do livro Jornalismo Popular, Márcia Amaral, escreve que os jornais destinados às classes B, C e D, hoje, integram um novo mercado caracterizado por um público que não quer apenas histórias incríveis e inverossímeis, mas compra jornais em busca também de prestação de serviço e
95
de entretenimento. Os suportes usam como estratégia de sedução do público-leitor a cobertura da inoperância do poder público, a vida das celebridades e do cotidiano das pessoas. Os assuntos que interessam são prioritariamente os que mexem de imediato com a vida da população. Na pauta, o atendimento do SUS e do INSS, a segurança pública, o mercado de trabalho, o futebol e a televisão. Vendidos nas bancas ou em sinais de trânsito por ambulantes12, tais jornais seguem com capas chamativas e a violência permanece como assunto, mas agora em um nível que se poderia chamar de menos escatológico a despeito dos jornais populares de outras décadas. Tais jornais publicam, ao contrário do que muitos preconceituosamente acreditam, matérias exclusivas, dão "furos" e ganham prêmios13. Portanto, os jornais desse segmento têm assumido maior importância social. Evidentemente, essa mudança de rumo não significa que os jornais populares agora sejam de qualidade ou não mereçam uma crítica, mas indica que precisam ser vistos com um novo olhar.
12
Em Minas Gerais, o Jornal Super Notícia ressuscitou essa forma de venda por ambulantes. 13 Por exemplo, no Prêmio Esso 2004, o O Dia venceu na categoria Fotografia e ficou finalista, juntamente com o Extra, nas categorias Reportagem, Criação Gráfica e Primeira Página. Em 2005, Fábio Gusmão, do Extra, ganhou o prêmio Esso de Reportagem pelo trabalho Janela Indiscreta. Também em 2005, O Dia venceu a categoria Fotografia do XXII prêmio Direitos Humanos de Jornalismo.
96
Afinal, é preciso ampliar a noção de cultura como sendo “uma região de sérias disputas e de conflitos acerca do sentido; cultura diz respeito aos enfrentamentos entre modos de vida diferentes devido à existência de relações de poder” (ESCOSTEGUY, 2003, p. 68). Também é importante frisar que o leitor popular não é passivo em relação às notícias veiculadas. Nem o segmento popular da imprensa é simplesmente fruto de interesses empresariais e nem seu público responde cegamente aos chamados do produto. Isso seria considerar que todos de uma classe social efetuassem a leitura de um único segmento jornalístico a ela destinado. Esse endereçamento, embora exista, não é garantia de exclusividade, pois o sujeito-leitor, mesmo em épocas em que a leitura era muito menos popular, transitava entre os materiais e práticas de leitura de classes sociais distintas (Cf. CAVALLO; CHARTIER, 1998). Seria desconsiderar a capacidade de interação social do sujeitoleitor. Cabe salientar, aqui, que não se trata de subestimar a inteligência do receptor. Muito menos afirmar que as notícias transmitidas são consumidas uniforme e passivamente. É evidente que o modo de interlocução com as informações varia de pessoa para pessoa, tudo depende do contexto sociocultural de cada indivíduo. De acordo com Champagne (1998, p 18) “a capacidade para produzir uma opinião está
97
partilhada de forma desigual e, em particular, varia em função do capital cultural de cada indivíduo”. Se os jornais fazem sucesso, é porque há recompensas para esse leitor. Assim, existe uma complexa relação entre a produção e o consumo dos produtos populares. 3.0 – O fait divers no Jornal Super Notícias: uma análise
Como configura-se
mencionamos em
uma
anteriormente, importante
o
fait
divers
manifestação
do
sensacionalismo jornalístico. Tentaremos esboçar por meio desta análise o "peso" que teria o fait divers na publicação do jornal em estudo, verificando a utilização em maior ou menor número desse recurso tão caro ao sensacionalismo. Para fins de análise, serão consideradas apenas as primeiras páginas das edições do Jornal Super Notícias (doravante Super), publicadas entre os dias 18 e 24 de dezembro, de 2006. Esta amostra constitui-se, portanto, de um exemplar publicado em cada dia da semana, iniciando-se na segunda, dia 18 de dezembro e indo até o domingo, 24 de dezembro. A opção pela primeira página das edições, deu-se em função de ser ela a responsável por chamar a atenção dos possíveis compradores-leitores do jornal, já que sua venda se dá nas bancas e nas ruas e não por assinatura, como é característico aos jornais dirigidos à classe A e B. Portanto,
98
toma-se a primeira página como uma amostra significativa do todo, ainda que tal critério possa vir a ser questionado. No
quadro
abaixo,
classificamos
os
faits
divers
encontrados em três áreas distintas, sendo elas: polícia, esporte e cidade, visto que são essas as grandes áreas que a editoria do jornal afirma serem seu "carro-chefe".
Quadro 01: Relação de fait divers por área de ocorrência Edição do Super 18/12/200 6
nº16 85
19/12/200 6
nº16 86
Polícia
2. 3.
4.
5.
20/12/200 6
Esporte
Cidade 1.
Tragédia e mortes em duas horas
7.
Agressão a funcionária fecha posto de saúde no bairro Glória. Menina entra em coma após extrair dente. Menina
Padre na cadeia. Jornalista da Globo em quadrilha de caça-níquel. Deputado esfaqueado por eleitora na Bahia. Corpo de mulher fica 24 horas no sofá.
nº16 87
6.
President e do Galo denuncia do pelo mensalão
8.
9.
99
atropelada no Anel e motorista foge. 21/12/200 6 22/12/200 6
nº16 88 nº16 89
23/12/200 6
nº16 90
24/12/200 6
nº16 91
10. Barraco na Vida Real.*
12. Continua novela Suzana Vieira.*
a
11. Acaba Hoje novela do novo técnico do América. 13. Samu demora a chegar e idosa morre em Santa Luzia. 14. Fuga em massa 15. Papai Noel sem trenó. 16. Menino morre esmagado no portão de sua casa.
Como pode ser observado no quadro acima, foram 16 ocorrências de fait divers, nestes sete exemplares do jornal. Sendo seis deles assuntos policiais, embora o caso Suzana Vieira (presente em 10 e 12) esteja mais ligado à questão das celebridades do que policial propriamente dito. No entanto, como configurou uma questão na qual estiveram envolvidos policiais e advogados, optamos por enquadrá-lo também nesta seção. Além disso, foi o único que teve reincidência da
100
matéria no dia seguinte, a matéria Barraco na vida real e no dia seguinte a matéria Continua a novela Suzana Vieira. Coletamos apenas dois da área de esportes e os oito restantes podem ser enquadrados na área que denominamos cidade. E nenhuma ocorrência desse tipo foi registrada na capa do dia 18 de dezembro. No jornal Super, foi encontrado um traço comum em todas as edições analisadas, trata-se do fato de que em todas as primeiras páginas figurarem uma fotografia, em uma média de tamanho de meia página, de uma mulher - atriz ou modelo - sempre em roupas sumárias ou em poses mais sensuais. E tomando por pressuposto o que foi dito a respeito do fait divers, dado o seu consumo imediato e provido de um caráter atemporal, em suas diferentes manifestações, é utilizado, na mídia, com diversas abordagens. Aparece tanto no tratamento da realidade quanto da ficção. Entendemos que a presença dessas fotografias pode ser percebida, de uma forma não muito característica, como uma espécie de fait divers. Por isso, resolvemos enquadrar tais fotografias em uma categoria particular de fait divers, conforme o quadro à frente:
101
Quadro 02: Relação de fait divers na área de ocorrência Celebridade Edição do
Celebridade
Manchete
Super 18/12/2006
Christiane Fernandes
19/12/2006
Adriane Galisteu
Atriz de "Páginas da vida" exibe corpinho sarado Loira Cai no samba no Rio
20/12/2006
Bárbara Borges
Atriz conta como faz para ficar "zen".
21/12/2006
Fernanda
Renata
Com uma "Mamãe Noel" dessa, precisa de presente? Atriz diz que é uma
Dominguez
escrava da profissão
Camila Rodrigues
Gata mostra o corpão
Schonardie 22/12/2006
23/12/2006
sarado 24/12/2006
Caroline
Disse que não pretende
Dieckman
posar nua
Quanto à forma como são apresentados, no que tange ao aspecto gráfico, tais fait divers são sempre destacados dos demais elementos do texto. As manchetes: Tragédia e mortes em duas horas, Padre na Cadeia, Barraco na vida real, Fuga em massa, Papai Noel sem trenó figuraram na parte superior central do jornal, com letras destacadas e todas foram
102
acompanhadas de fotografias. Além dessas, também a manchete Corpo de mulher fica 24 horas no sofá foi complementada com fotografia e embora ocupasse um espaço considerável na primeira página da edição de 19/12/06, não ganhou o mesmo destaque que as citadas anteriormente. Já as reportagens, Jornalista da Globo em quadrilha de caça-níquel, Deputado esfaqueado por eleitora na Bahia, Agressão a funcionária fecha posto de saúde no bairro Glória, Menina entra em coma após extrair dente, Samu demora a chegar e idosa morre em Santa Luzia, Menino morre esmagado no portão de sua casa aparecem na metade inferior do jornal e não são acompanhadas de fotografias. E as manchetes Presidente do Galo denunciado pelo mensalão, Menina é atropelada no Anel e motorista foge, Acaba hoje novela do novo técnico do América e Continua a novela Suzana Vieira estão localizadas na parte superior direita primeira páginas e nenhuma delas também são complementadas por fotografia. Um fato curioso no Super é que muitas manchetes da capa apresentam acompanhamento de um balão de cor amarela, com um pequeno detalhamento da matéria. As chamadas para os fait divers das celebridades, como já mencionado, ocupam quase metade da página e com exceção do de Renata Dominguez, todos os demais estão na
103
metade inferior do jornal. Nenhuma celebridade masculina foi encontrada nesta amostra, o que mostra a orientação do jornal para o gênero masculino que constitui, segundo os dados arrolados anteriormente, 86% de seu público leitor.
Considerações Finais:
No decorrer deste breve estudo, deparamos com duas posições um pouco distintas no que tange às características dos jornais populares: uma que o olhava a partir de um modelo de jornal referência localizado fora de seu público alvo, tratava-se de uma referência pautada em jornais destinados às classes A e B; e outra que o olhava como um segmento da Grande Imprensa, porém que julga ser necessário
um
maior
estudo
a
respeito
de
suas
características, mas não tendo como parâmetro jornais destinados a outro público. Tal posicionamento constituiu-se para este estudo uma grande interrogação, pois dependendo de qual linha se adotasse, como guia dessa pequena investigação sobre o papel do fait-divers no jornal Super Notícias, levaria a uma conclusão muito distinta da outra. Pois, em uma, teríamos que a presença de maior ou menor número de fait divers determinaria ao jornal ser sensacionalista, o que lhe configuraria como sinônimo de “má qualidade” e “deteriorante do bom jornalismo”, isso para usarmos alguns dos clichês
104
costumeiros para tal designação. Em outra, teríamos o fait divers como uma característica marcante desse tipo de jornalismo o que configuraria apenas como estratégia de marketing para a vendagem do jornal, atendendo aos apelos mercadológicos. No entanto, seguindo uma linha crítica entendemos a possibilidade de uma terceira interpretação que vê no fait divers uma tentativa de aproximação da linguagem popular, seguindo novos tipos de mapas culturais que não aqueles da imprensa de elite. Mas essa terceira via implica certa relativização, pois não podemos perder de vista que não existe a suposta neutralidade e objetividade jornalística, assim como é provável que não exista a isenção intencional no emprego dos fatos do dia. Encontramos uma presença significativa de fait divers no jornal em estudo, mas como ressalta Amaral, citada anteriormente, não se enquadram mais no esquema espreme que sai sangue, descrito por Agrimani. Acreditamos mais naquela vertente que diz buscar novos mapas culturais para a construção de jornais, especialmente por pensar na relevância social de estudar-se a imprensa popular, seja ela uma dissidência ou não da imprensa de elite, que vem proporcionando uma certa democratização da leitura de jornais e de certa forma, da informação, ainda que em um formato diferenciado daquele
105
tido como "mais sério", para setores da população com baixa escolaridade. E para atender a tal setor, muitas vezes, os jornalistas não devem ficar circunscritos a uma única forma de se fazer jornalismo. É preciso democratizar o acesso à informação, mas também possibilitar e ajudar a formar a crítica, a atitude reflexiva que se espera que um leitor proficiente seja capaz de fazer. Para isso, tanto jornais ditos populares, quanto jornais de referência precisam se comprometer não com a realidade, uma vez que são sempre representações da realidade, já que esta, pela sua própria natureza, não pode ser apreendida pelas notícias ou fait divers. Mas com a forma como representam essa realidade e o comprometimento ético no qual estão envoltos, buscando não desviar a atenção dos assuntos realmente relevantes para a sociedade em que ocorre. Os jornais populares devem ser observados e estudados para que seja possível captar suas estratégias e, como uma forma de crítica importante, incorporá-las ou descartá-las no sentido de se criar bases técnicas para um jornalismo popular pautadas em qualidade do gênero e não na referência padrão atual, o jornal voltado para as classes A e B. Obviamente que não se apregoa aqui que tal jornal se dedique demasiadamente à dramatização das notícias, à priorização do interesse do público em detrimento do interesse
106
público e à representação das pessoas como sendo apenas consumidoras ou vítimas sociais. Entendemos juntamente com Kellner (2001) que os textos produzidos pela mídia não devem ser encarados pura e simplesmente como divulgadores da ideologia dominante ou dominada, tampouco entretenimento puro e inofensivo. Muito pelo contrário, consistem em produções complexas, que envolvem “discursos sociais e políticos cuja análise e interpretação exigem métodos de leitura e crítica capazes de articular sua inserção na economia política, nas relações sociais e no meio político em que são criados, veiculados e recebidos” (KELLNER, 2001,p. 13).
Decorre dessa consideração a grande necessidade de maiores estudos a respeito do gênero antes de condená-lo ou de simplificá-lo demais.
Referências Bibliográficas: AGRIMANI, Danilo. Espreme que sai sangue: um estudo do sensacionalismo. São Paulo: Summus Editorial, 1995. AMARAL, Márcia Franz. Sensacionalismo: um conceito errante. Revista Intertexto. Disponível em: < http:// www.intertexto.ufrgs.br/marcia_amaral_art.html_45.
107
______. Jornalismo popular. São Paulo: Contexto, 2006. BARTHES, Roland. Crítica e verdade. Perspectiva/Fundo Estadual de Cultura, 1970.
São
Paulo:
CAVALLO, Guglielmo; CHARTIER, Roger. História da leitura no mundo ocidental. São Paulo: Ática, 1998. vol. 2. CHAMPAGNE, Patrick. Formar a Opinião: o novo jogo político. Petrópolis: Vozes, 1998. ESCOSTEGUY, Ana Carolina. Os Estudos Culturais. In: HOHLFELDT, Antonio, MARTINO, Luiz; FRANÇA, Vera (orgs.) Teorias da Comunicação: conceitos, escolas e tendências. Petrópolis: Vozes, 2001, p.151-170. KELLNER, Douglas. A Cultura da Mídia. São Paulo: EDUSC, 2001. LANZA, Sônia Maria. Jornalismo: da origem folhetinesca à folhetinização da informação. Disponível em: Acesso em: 17 dez.2006. OLIVEIRA, Adilson. Um estudo da linguagem esportiva do jornal Agora. 2002. Disponível em: Acesso em: 28 dez. 2006. PEDROSO, Rosa Nívea. A construção do discurso de sedução em um jornal sensacionalista. São Paulo: Annablume, 2001. RAMOS, Roberto. Mídia e sensacionalismo: uma relação semiológica. Revista Famecos, Porto Alegre, n. 5, dez. 2004, p.57-62.
108
SODRÉ, Muniz. Reinventando a cultura: a comunicação e seus produtos. Petrópolis: Vozes, 1998. SOMMER, Vera Lúcia. A força do fait-divers no Diário do Litoral: jornal de destaque no Vale do Itajaí/SC. 2004. Disponível em: . Acesso em: 16 dez. 2006.
109
TECNOLOGIA COMO MEDIADORA DE SUBJETIVIDADES 1 Magna Campos – UFSJ Profª. Dra. Dylia Lysardo-Dias – UFSJ Resumo: O objetivo desta comunicação é analisar o folder divulgado na campanha de inclusão digital do CDI (Comitê para Democratização da Informática) do Paraná a fim de pensarmos a relação entre tecnologia-leitura-subjetividade no âmbito da sociedade contemporânea. Efetuaremos um estudo exploratório a partir das teorizações efetuadas por alguns expoentes teóricos no que tange ao estudo das relações espaço/tempo na atualidade. Prosseguiremos com os estudos de Martín-Barbero (2001), Santaella (2003) sobre a tecnologia como mediação, pressupondo a cultura como algo que se transforma constantemente nos e através dos meios; também por Woodward (2000) a despeito da subjetividade como construção social fundada na diferença; e por Bauman (1999) para quem a tecnologia digital pode ser entendida como mais uma fonte de consumo; coadunados ao pressuposto de que a leitura, como forma de linguagem, significa e, por isso, nos significa e nos relaciona com o mundo. Nesse âmbito, interessa-nos acima de tudo perceber como se apresenta o sujeito-leitor na tríade acima elencada.
Contextualização: 1.1 O cenário pós-moderno: espaço da ambivalência
Muito se tem discutido nos últimos tempos sobre a superação da modernidade por uma fase conseguinte nomeada ora de pós-modernidade2, ora de modernidade 1
Texto escrito em 2008. LYOTARD (1998), JAMESON (1997), HALL (2004) e CANCLINI (2008). 2
110
tardia3, modernidade líquida4, modernidade reflexiva5 ou de hipermodernidade6 e, provavelmente, de outros termos que aqui nos escapam. Encontramos, em nossas pesquisas, algumas definições de pós-modernidade, que ora a opõem à modernidade, ora a vêem como uma continuação da modernidade, ora como uma perspectiva que tudo critica e nada põe no lugar. No esforço de defini-la, as discussões, geralmente, giram em torno das transições paradigmáticas7 que vêm ocorrendo desde o final do século XX e, especialmente, nesse início de século XXI, o que nos levaria ao questionamento e à reescrita dos ideais da modernidade, tais
como:
a
racionalidade
a-histórica,
as
verdades
8
transcendentais , a homogeneidade do sujeito social, a autonomia, dentre outros. 3
HALL (2004). BAUMAN (2001). 5 GIDDENS (2002). 6 LIPOVETSKY (2004). 7 Paradigma, de acordo com Kuhn (1975, p.221-222), é algo compartilhado pelos membros de uma comunidade, ou seja, é o consenso de uma comunidade científica em relação a alguns conceitos que vão definir o que é válido para a comunidade. 8 Na visão de Jameson (1997), uma importante característica da pós-modernidade é a fragmentação. Para ele, a era pós-moderna não pressupõe a universalidade dos discursos característica da era moderna. Ao contrário, não parece haver, na pós-modernidade, o pressuposto da existência de uma verdade absoluta, mas, sim o pressuposto de que existem verdades relativas. Assim sendo, na medida em que se pressupõe que não há uma verdade que justifique a universalização dos discursos, o que resta são discursos fragmentados e heterogêneos coexistindo em uma mesma época. 4
111
Cumpre aqui discutirmos alguns traços distintivos da pós-modernidade em relação à modernidade, como forma de situarmos o sujeito-leitor dentro deste cenário, uma vez que concebemos a pós-modernidade como uma forma de interrogar a modernidade e de problematizar certas questões por ela trazidas. Nesse ínterim, encontramos em Canclini (2008) uma perspectiva na qual embasamos o nosso olhar sobre esse cenário: Concebemos a pós-modernidade não como uma etapa ou tendência que substitui o mundo moderno, mas como uma maneira de problematizar os vínculos equívocos que ele amarrou com as tradições que quis excluir ou superar para constituir-se. (CANCLINI, 2008, p.28)
Entendemos também, juntamente com Bauman (1999b), que a pós-modernidade não está em oposição à modernidade, mas em ambivalência com ela, criando assim, uma zona fronteiriça entre as duas. Dessa forma, o sujeito-leitor situado nesse entremeio, no espaço da ambivalência, entre a modernidade e a pós-modernidade, produz suas leituras e sentidos a cada momento diferentes, mergulhado nos fios do interdiscurso e na pluralidade de vozes9; diante de antigos ou de novos textos e de novos meios para a textualidade. Importa-nos, no que tange à pós-modernidade, mais detidamente, as questões que abarcam a temática da 9
Tomamos a leitura como prática social produzida discursivamente.
112
tecnologia10 a fim de efetivarmos um esforço de compreensão das subjetividades em jogo com relação ao tema da leitura e da leitura das textualidades relacionadas a essa tecnologia. Consideramos que o grande desenvolvimento tecnológico, especificamente aquele ligado às novas tecnologias de informação e comunicação (TIC), que vivenciamos nos últimos tempos, bem como a compressão tempo/espaço trazida pelo advento da informatização, mediam mudanças relacionadas à vida sociocultural, política, histórica e, dessa forma, afetam os sujeitos
inseridos
nesse
contexto
e
as
atividades
desempenhadas por estes, como é o caso da leitura. Numa perspectiva discursiva, é possível perceber os atravessamentos das questões sociais na atividade de leitura e na constituição do sujeito-leitor. Por esse motivo, ao inserirmos o sujeito-leitor no contexto da pós-modernidade não o podemos enxergar como imune a todo esse processo de mudança, imune à sócio-história e às práticas discursivas11 em que atua e que o constituem. Uma vez proposto como um sujeito social, precisamos enxergá-lo, como bem o propõe Coracini
(2002;
2005),
em
10
sua
heterogeneidade,
CAVALLO & CHARTIER (1998, vol 1 – vol 2) mostram como algumas tecnologias mudaram a história da humanidade e, consequentemente, da leitura, como é o caso da escrita, da imprensa, o conjunto de tecnologias eletroeletrônicas como o rádio, televisão, computador. Hoje temos todas elas integradas ao computador, por meio da internet. 11 Práticas discursivas tomadas no sentido foucaultiano, como sistemas que instauram o enunciado como acontecimento.
113
fragmentação, e, para usarmos um termo muito caro à pósmodernidade, em sua fluidez. Bauman (2001) esclarecendo-nos melhor sobre essa fluidez, defende a tese de que a modernidade12 é um longo processo de “liquefação” da solidez característica dos tempos pré-modernos. O que a modernidade se propõe é substituir os “sólidos” tradicionais por novos “sólidos”, mais confiáveis, previsíveis e administráveis segundo critérios racionais. O que de fato ocorreu, no entender de Bauman, foi que, ao longo dos tempos modernos, os sólidos se derreteram, ou seja, aqueles conceitos
centrais,
como
por
exemplo,
emancipação,
individualidade, tempo/espaço, os quais deveriam constituir o chão firme dos novos tempos, perderam sua rigidez. Dentre os tantos sólidos que a modernidade se encarregou de desfazer se encontram as categorias de tempo e de espaço, que a nós interessa bastante, tendo em vista que essa mudança ou liquefação das relações entre essas duas categorias – a qual ocasiona a compressão entre elas – foi ocasionada, em grande parte, pelo desenvolvimento e
12
Para Bauman haveria duas espécies de modernidades: a sólida (pesada) – referente ao que usualmente é chamado de modernidade, propriamente dita – e a líquida (leve) – referente ao que chamamos aqui de pós-modernidade. O termo “modernidade líquida” é cunhado por Bauman no livro que tem por título exatamente essa nomeação, publicado no Brasil em 2001.
114
utilização das novas TIC, como é o caso da internet13 e das comunicações eletrônicas. Bauman (2001) afirma que a modernidade começa quando o espaço e o tempo são separados da prática da vida e entre si, e assim podem ser teorizados como categorias distintas e mutuamente independentes da estratégia e da ação; quando deixam de ser, como eram ao longo dos séculos pré-modernos aspectos entrelaçados e dificilmente distinguíveis da experiência vivida, e presos numa estável e aparentemente invulnerável correspondência biunívoca. Na modernidade, o tempo tem história, tem história por causa de sua „capacidade de carga‟, perpetuamente em expansão – o alongamento dos trechos do espaço que unidades de tempo permite „passar‟, „atravessar‟, „cobrir‟ – ou conquistar. O tempo adquire história uma vez que a velocidade do movimento através do espaço (diferentemente do espaço eminentemente inflexível, que não pode ser esticado e que não encolhe) se torna uma questão de engenho, da imaginação e da capacidade humanas. (BAUMAN, 2001, p.15-16) grifos do autor.
No período moderno, tal separação teve como resultado o predomínio do tempo sobre o espaço, pois a modernidade (pesada) é, talvez, mais que qualquer outra coisa, a história do tempo. Decorre dessa dissolução entre tempo e espaço a 13
A qual, segundo Lévy (1996), possibilitou a configuração de um novo espaço: o ciberespaço.
115
metáfora do líquido usada por Bauman para definir a atual fase da modernidade em que nos encontramos, pois, segundo o autor, “para os fluidos o que conta é o tempo, e não o espaço,
que
(BAUMAN,
preenchem
2001,
p.8).
apenas
Por
terem
momentaneamente” uma
extraordinária
mobilidade e inconstância, associam-se os fluidos à ideia de “leveza” ou “ausência de peso”. Decorre dessas razões o fato de, conforme Bauman (2001), considerar-se fluidez ou liquidez como metáforas adequadas à natureza da fase em que vivemos, nova na história da modernidade. Enquanto a modernidade sólida colocava a duração eterna como principal motivo e princípio da ação, na modernidade líquida a duração eterna não tem função. O curto prazo substituiu o longo prazo, e fez da instantaneidade o ideal último. Se antes os indivíduos contabilizavam seu tempo e seu espaço a partir do que seu corpo podia fazer; e depois passaram a lidar com o tempo e o espaço que os automóveis produziam – estar a dez minutos de alguém/algum lugar não significa o mesmo para alguém a pé e para alguém motorizado –; agora o espaço dissolve-se, uma vez que por meio de um sinal eletrônico, uma mensagem pode atravessar o mundo em segundos ou frações de segundos14. 14
Com isso enveredamos de vez na era do “tempo real”, do “online”.
116
Por esse motivo, Bauman (2001) argumenta na direção de visões fluidas e heterogêneas e muito mais dinâmicas da sociedade contemporânea, construída “no aqui e no agora”. Essas tecidas sob uma trama movente15, ao contrário de visões duradouras e unificadoras da tradição moderna, baseadas nas verdades universais e na racionalidade, que, supostamente, levariam ao progresso e ao desenvolvimento, amparadas no ideal do Estado-nação. Uma nova ordem mundial ou de um novo capitalismo, chamada por Bauman (1999b) de nova (des)ordem mundial, que atravessa o mundo, em todas as esferas, por meio da globalização16, ameaça e enfraquece a fórmula do Estadonação, por meio dos muitos processos de integração e interpenetração econômica, cultural, tecnológica e ideológica entre os países, ocasionando uma crescente interpenetração de bens físicos e simbólicos entre os territórios e um aumento exponencial dos fluxos globais de pessoas. Segundo Hall (2004), baseado em Giddens (1990), a globalização implica um movimento de distanciamento da ideia sociológica clássica da “sociedade” como um sistema bem delimitado e sua substituição por uma perspectiva que se concentra na forma como a vida social está ordenada ao longo 15
A ideia do movimento é muito recorrente em Bauman, assim como em muitos outros autores que tratam da questão da pósmodernidade. 16 Ver: BAUMAN (1999; 2001); GIDDENS (1991); HALL (2004).
117
do tempo e do espaço. (HALL, 2004, p.67) grifos do autor
Isso nos permite pensar que a globalização, com suas configurações em que o tempo é um instante e o espaço é um quase nada, alcança a todos nós, indiferentemente de estarmos mais ou menos engajados no universo global17. Tal fato nos leva à conclusão de que o espaço e o tempo são produtos das relações sociais, culturais, adicionadas às políticas e econômicas. Completa a perspectiva da qual procuraremos falar sobre o sujeito-leitor na pós-modernidade – nesse cenário tecnológico, marcadamente globalizado e globalizante –, uma visão das novas TIC também como algo essencialmente heterogêneo
e
em
constante
transformação.
Podemos
considerar as tecnologias como heterogêneas no sentido de que nascem em contextos heterogêneos, e, especialmente no caso das TIC, no sentido de que misturam ou fazem convergir 17
Mesmo que o global tenha dado maior visibilidade também ao local, entendemos juntamente com Hall que esse “„localismo‟ não é um mero resíduo do passado. É algo novo – a sombra que acompanha a globalização: o que é deixado de lado pelo fluxo panorâmico da globalização, mas retorna para perturbar e transtornar seus estabelecimentos culturais. É o exterior constitutivo da globalização” (2003, p. 61). Com base nessa afirmativa que pensamos que todos estamos envoltos pelo advento da globalização, indiferentemente dessa contextualização ser global ou local. E é nesse sentido, que o local e o global andam juntos, sendo hoje, um existência do outro.
118
outras tecnologias, surgidas em outros contextos sóciohistóricos. Por isso, consideramos que uma abordagem da relação sociedade-tecnologia-cultura mais adequada à problemática da leitura deve tomar como pressuposto que a tecnologia, a exemplo da linguagem, tanto influencia os contextos nos quais surge (ou é introduzida), como tem seu sentido, sua forma e sua função transformados no tempo e no espaço pela maneira como é praticada em contextos heterogêneos.
1.2
As
novas
TIC
mediando
a
produção
de
subjetividades
Partimos do pressuposto de que a subjetividade, conforme apresentado por Woodward (2004, p.55), “é vivida em um contexto social no qual a linguagem e a cultura dão significado à experiência que temos de nós mesmos e no qual adotamos uma identidade”.Assim, a subjetividade é construída e significada pela interpelação18 dos atos de linguagem, e estes, por sua vez, encontram-se, no que se refere à contemporaneidade, atrelados às novas Tecnologias de Comunicação e Informação (TCI). Tecnologias essas que se 18
“Interpelação é o termo utilizado por Althusser (1971) para explicar a forma pela qual os sujeitos – ao se reconhecerem como tais: „sim, esse sou eu‟ – são recrutados para ocupar certas posições-desujeito”. (WOODWARD, 2004, p.59)
119
expandem com muita agilidade nos dias atuais, e penetram todo o tecido social, possibilitando o chamado cenário digital. De acordo com a autora, vivemos nossa subjetividade em um contexto social no qual a linguagem e a cultura dão significado à experiência que temos de nós mesmos e no qual adotamos uma identidade. Quaisquer que sejam os conjuntos de significados construídos pelos discursos, eles só podem ser eficazes se eles nos recrutam como sujeitos. Os sujeitos são, assim, sujeitados ao discurso e devem, eles próprios, assumi-lo como indivíduos que, dessa forma, se posicionam a si próprios. As posições que assumimos e com as quais nos identificamos constituem nossas identidades. (WOODWARD, 2000, p.55)
Decorre daí uma importância significativa do papel da tecnologia
como
mediadora
na
constituição
das
subjetividades, haja vista que ela figura como um importante meio para as formas simbólicas, especialmente em tal cenário. Em nosso entendimento, essa tecnologia terá seu sentido, sua forma e sua função transformados no tempo e no espaço por essas subjetividades. Além disso, consideramos os meios – incluindo-se as novas TIC – não como fontes de inovações em si, mas como mediações entre novas práticas de comunicação [e informação] e transformações sociais (Cf.
120
MARTÍN-BARBERO, 2001). Esse conceito de mediação19 nos ajuda a pensar que tecnologia e cultura não estão postas como instâncias isoladas e estáticas que se refletem, mas como dinâmicas que se influenciam mutuamente, portanto, se ela – a tecnologia – é condicionante dessa cultura, é também condicionada por ela, e ainda, pressupõe a cultura como algo que se transforma constantemente nos e através dos meios. Nesse cenário ambivalente da atualidade, a identidade é um construto, simbólico e social, fabricada pela marcação da diferença, que ocorre tanto por meio de sistemas simbólicos de representação quanto por meio de formas de exclusão social (Cf. WOODWARD, 2000, p.39). Nesses processos de fabricação
de
novas
identidades,
contudo,
na
pós-
modernidade, não se encontram mais o sujeito como ser fixo, coerente e estável, aquele sujeito unificado e centrado que estabilizava o mundo social, antes, temos aí o sujeito fragmentado, marcado pelas incertezas. Esse deslocamento
19
Conforme Santaella, “embora sejam responsáveis pelo crescimento e multiplicação dos códigos e linguagens, meios continuam sendo meios. Deixar de ver isso e, ainda por cima, considerar que as mediações sociais das mídias em si [estendemos também para as novas TIC] é incorrer em uma ingenuidade e equívoco epistemológicos básicos, pois a mediação primeira não vem das mídias, mas dos signos, linguagem e pensamento, que elas veiculam”. (SANTAELLA, [1992] 2000, apud SANTAELLA, 2003, p.116-117)
121
produz
novas
formas
de
posicionamento20
e
provoca
mudanças nos conceitos de sujeito e de identidade. Segundo
Hall,
a
identidade
“permanece
sempre
incompleta, está sempre “em processo”, sempre “sendo formada”, através de processos inconscientes. Por isso, em lugar de falar da identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar de identificação, e vê-la como um processo em andamento” (HALL, 2004, p.38). Identificar-se, como podemos deduzir, é identificar-se com a falta do outro e, portanto, dividir-se. A identidade não surge da plenitude interior do indivíduo, mas da falta a ser preenchida pelo nosso exterior – um exterior atravessado pela novas TIC. Para dar conta do sentido sempre inacabado da identidade, alguns teóricos recorrem ao conceito de différance elaborado por Derrida, pois para este autor, na leitura de Woodward, “o significado é sempre diferido ou adiado; ele não é completamente fixo ou completo, de forma que sempre existe algum deslizamento” (2000, p.28). Assim, a identidade é um tornar-se e aqueles que a reivindicam não se limitam a ser posicionados por ela: “eles seriam capazes de posicionar a si próprios e de reconstruir e transformar as identidades históricas, herdadas de um suposto passado comum”. (WOODWARD, 2000, p.28) 20
Hall argumenta que o sujeito fala sempre a partir de uma posição histórica e cultural específica. (Cf. Woodward, 2000, p.27)
122
Todavia, no que se refere à leitura, se tomarmos como pressuposto que todos os sujeitos-leitores lêem da mesma maneira e não considerarmos a heterogeneidade desses sujeitos, bem como dos textos lidos e dos sentidos produzidos, estamos ao mesmo tempo desconsiderando os processos identitários nos quais esses sujeitos se constituem. Pois, esses processos são construídos ao longo da vida do sujeito-leitor e são marcados pela diferença, conforme propõe Woodward, ao postular que a identidade “não é o oposto da diferença: a identidade depende da diferença” (2000, p.40). Sendo a diferença condição básica para a construção da identidade na própria configuração do sujeito, seja ele leitor ou não, o outro já o constitui. Portanto, as identidades são multiplamente construídas ao longo dos discursos, das práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicas. Nesse sentido, pensando na leitura como uma prática social21 de significação, embrenhada nas redes
discursivas,
podemos
entender,
juntamente com
Coracini, que, ler pressuponha um sujeito que produz sentido, envolvendo-se, dizendo-se, significando-se, identificando-se, abrindo espaço para a subjetividade e para a 21
Para Woodward (2000, p.33) toda prática social é simbolicamente marcada. Entendemos a leitura como prática social, uma vez que a linguagem o é. Sendo assim, como dissemos outrora, estudando a linguagem (e, portanto, a leitura) estamos estudando a sociedade e a cultura das quais ela é parte constitutiva e constituinte.
123
heterogeneidade que vez por outra rompe a barreira porosa e opacificante das palavras e se deixa representar, de modo 22 imprevisível, pela linguagem . (CORACINI, apud GALLI, p.6)
A leitura, assim, torna-se uma forma de identificação e de construir identidades que deixa entrever o sujeito por meio da linguagem, permeado que é pela alteridade e pela fragmentação, não nos esquecendo que esse sujeito é sempre historicamente situado. E a partir do momento em que há a valorização da alteridade e da ideia de construção provisória da identidade por meio da linguagem, e nesse caso, a leitura está subtendida, não se pode negar a relação intercambiante entre sujeito-linguagem (pois ao se dizer o sujeito se diz), sujeito-mundo (ao representar ele se representa) e sujeitosentido
(ao
significar
ele
se
significa),
envoltos
movimentando-se no limite da ambivalência,
e
não nos
esquecendo que essas relações de linguagem. Ler não pressupõe simplesmente um conhecimento consciente do uso da linguagem; antes, constitui momentos importantes de produção de sentidos que só ocorrem como
22
Conforme Coracini (2003a, p.113), se esse sujeito é internamente múltiplo, heterogêneo, clivado, não nos é possível falar de identidade como algo acabado, estável e fixo. Por isso, a identidade é ilusória e só existe como construção imaginária. Nós somente podemos captála por irrupções esporádicas no fio do discurso, quando o sujeito deixa, de forma inconsciente, resvalar a sua heterogeneidade.
124
consequência de uma série de identificações que pressupõem um investimento do sujeito na linguagem. No entanto, a leitura, contemporaneamente, encontra-se enredada com outros espaços que configuram um novo local para o texto e novas textualidades, possibilitados pelas novas TIC. Esses novos espaços, promovidos pelas novas TIC, têm proporcionado uma crescente multiplicação dos sistemas de significação e de representação, o que implica, para o sujeitoleitor, o aumento de possibilidades de assumir, negar e reivindicar
identidades
diferentes
a
cada
circunstância
deparada, a cada texto que se lhe dá à leitura. Em nosso entendimento, o espaço em que a textualidade ( digital) aparece tem significação , tem materialidade e não é indiferente em seus distintos modos de significar. Também, devemos atentar, conforme propõe Santaella (2003), para a relação da cultura contemporânea, mediada pelas novas TIC, com a linguagem, na constituição de novas posições para o sujeito, isto é, novos lugares na rede da comunicação, e acrescentamos, da interação social. Pois essas formas de subjetivação na era digital reclamam por novos olhares. Pensemos, então, nessa relação tecnologia-leiturasubjetividade com o auxílio de um material que conseguimos por meio de uma busca efetuada na internet, em junho de 2008, no banco de imagens do Google, no qual digitamos a
125
expressão “sujeito-leitor+tecnologia”, no sistema de busca do site. Todavia, chamamos a atenção para o fato de que esse é apenas um estudo exploratório, no sentido de que não pretendemos obter, a partir dele, grandes generalizações ou formulações que possam ser estendidas indiscriminadamente a outros casos. Antes, trata-se de uma tentativa de por em prática o poder explicativo das teorizações que tecemos e assim problematizar algumas questões. Ainda é preciso ressaltar que a mesma peça publicitária foi analisada por Nunes (2005) em um artigo sobre inclusão digital, dessa autora aproveitamos a nomeação de sujeito-leitor tecnológico por ela cunhada. Feito essa ressalva, passemos ao material:
126
Figura 1: Folder divulgado na campanha de inclusão digital do CDI 23 (Comitê para Democratização da Informática) do Paraná .
A peça publicitária acima chamou-nos a atenção não só pela configuração do que ela diz, como também e, principalmente, pela forma como diz. Em formato retangular, traz em um segundo plano, a imagem de um rosto sem qualquer designação de gênero, podendo ser de um jovem ou de uma jovem, o qual fita diretamente o interlocutor. À sua frente, em primeiro plano, ocultando e ocupando o lugar de
23
Comitê de Democratização da Informática do Paraná é uma organização não-governamental – que faz parte de uma rede presente em dezenove estados brasileiros e em oito países.
127
sua boca, há uma janela de navegação na internet24 com suas ferramentas de navegação: voltar, avançar, atualizar, início, preencher, imprimir e correio, janela essa que funciona como uma tarja preta, tendo em vista que essa janela, além das ferramentas citadas, tem seu corpo – onde geralmente aparecem os textos digitais25 – preenchido pela cor escura, sem imagem ou palavra alguma. Abaixo e fora dessa janela de navegação, há, em tom imperativo, os seguintes dizeres: “Quem não conhece informática, não tem vez. Nem voz”. Notamos de início a interdição da fala daquele/a que aparece na imagem, o/a qual tem em seu rosto, a substituição da boca por um mecanismo eletrônico – a janela de navegação.
Todavia,
esse
mecanismo
apresenta
as
ferramentas para seu funcionamento, mas falta-lhe quem as coloque em movimento e funcionamento: o sujeito que saiba operá-las. Interdição porque, numa sociedade permeada, ou diríamos atravessada, pelas novas TIC, não saber operá-las, a julgar pela peça, é não ter acesso às formas de informação e nem às formas de sociabilidade possibilitadas por ela. Enfim, é
não
ingressar
no processo
constitutivo
de
sentido
possibilitado por esse meio, é não ser seu sujeito. 24
É possível saber que se trata de uma janela de navegação não apenas pelo formato característico, mas pelo endereço eletrônico que apresenta na parte superior do browser: www.cdipr.org.br . 25 Geralmente designados de hipertextos, no entanto, entendemos que nem todos os textos digitais são hipertextos. Exploraremos essa questão no tópico seguinte desta dissertação.
128
Diferentemente da fala, que no indivíduo é um mecanismo físico, o direito à fala é estabelecido em relação à posição ocupada pelo sujeito no discurso, e tem a ver com as relações de poder estabelecidas em uma cultura. E, no caso da peça, tem direito à fala “apenas os que conhecem informática”, ou seja, os que se tornam leitores26 de sua textualidade digital. Tendo em vista que as relações de poder são muito importantes na construção de subjetividades, e decorrentemente, de identidades, Woodward nos alerta que “todas as práticas de significação que produzem significados envolvem relações de poder, incluindo o poder para definir quem é incluído e quem é excluído” (2000, p.18-19). E, assim, essas relações de poder, em nosso exemplo, ajudam a definir uma subjetividade adequada à textualidade digital, que chamaremos aqui de sujeito-leitor-tecnológico, aproveitando a nomeação empregada por Nunes (2005). Mas partindo do pressuposto de que a linguagem e, como manifestação desta, a leitura, significa e, por isso, nos significa, não podemos nos esquecer, que falar ou ler é estar no sentido com as palavras – ditas, não ditas ou a se dizer –, pois elas significam e nos relacionam com o mundo, com as
26
Muitos podem não escrever, isto é, tornarem-se autores, nos espaços de fluxos, ou ambientes virtuais, mas fatalmente, tornar-seão leitores da textualidade aí disposta, uma vez que tal imperativo funciona como porta de acesso a esse espaço, mesmo que essa leitura seja apenas “intuitiva”.
129
coisas, com as pessoas, e com nós mesmos. Constituem nossa subjetividade, produzindo sentidos. E dar sentido é considerar o lugar da história e da sociedade. É, também, aceitar que se está sempre no jogo da produção, na relação entre as diferenças e as relações de poder que entram na constituição do sujeito. Portanto, o apetrecho técnico que funciona como uma tarja preta à frente da boca do/a jovem interdita não só suas palavras, mas sua relação plural com os sentidos e com o mundo, interdita o acesso à leitura, por falta de domínio das ferramentas que possibilitam acessar os textos digitais. A produção da subjetividade que aqui nos interessa, qual seja a do sujeito-leitor-tecnológico, na peça, não tem outra saída: ou aprende a dispor do recurso técnico, que possibilita o acesso à textualidade em questão, ou estará condenada a “não ter voz nem vez” e, assim, à nulidade. Não há opção. E isso é válido para qualquer pessoa, haja vista a indefinição do pronome “quem” utilizado no enunciado. A autora Woodward nos lembra que, os discursos e os sistemas de representação constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar. (WOODWARD, 2000, p.17)
E ainda, que só podemos compreender os significados envolvidos nesses sistemas [de
130
representação] se tivermos alguma ideia sobre quais posições-de-sujeito eles produzem e como nós, como sujeitos, podemos ser posicionados em seu interior. (WOODWARD, 2000, p.17)
Nesse caso, as posições-de-sujeito produzidas são: a do incluído – em nossa perspectiva, o sujeito-leitor-tecnológico – criando para isso uma identidade, a do/a jovem esperto/a que não “fica de fora do barco tecnológico e se torna seu navegante”, e, inevitavelmente, a do excluído digital, aquele que não está apto a “embarcar nesse navio”. O incluído, ou seja, aquele que “conhece informática” e é capaz de ler sua textualidade, tem acesso ao dizer e por isso pode se dizer. Em contrapartida, aquele que não a conhece, é interditado, barrado, e, por isso silenciado27. No entanto, não podemos nos esquecer que toda subjetividade é construída sempre em relação ao outro, pois o outro é constitutivo do eu. Decorre daí que podemos, então, concluir que o excluído, o nãosujeito-leitor-tecnológico, é o exterior constitutivo do incluído, é o seu outro. E ambos convivem juntos no mesmo mundo que agrega e segrega pessoas por meio das novas TIC e por meio de seus discursos.
27
Lembrando que Orlandi (1992) chama a atenção para o fato de que o silêncio também produz sentido, também é significativo no dizer.
131
Nesse sentido, ao mesmo tempo que a peça, como forma de representação, define, com seu discurso, que tipo de sujeito devemos ser e como devemos ocupar essa posiçãode-sujeito em nossa cultura atravessada pelas novas TIC, não podemos ignorar o papel ativo da instância de recepção, a qual não absorve simplesmente os sentidos que lhe são criados e essas posições. O sujeito da instância da recepção está constantemente estabelecendo negociações de sentido em seu contexto de mediações simbólicas. E, por esse motivo, uma vez que tomamos o pressuposto da heterogeneidade como constitutiva não só da linguagem28, mas também, da tecnologia e da subjetividade, não nos é possível entender a inclusão ou a exclusão como um estar dentro ou um estar fora de um sistema ou do que se prega desse sistema, conforme propõe a campanha. Por meio da heterogeneidade é possível visualizar que somos inevitavelmente, de alguma forma, incluídos e excluídos ao mesmo tempo. Além disso, a inclusão pode abrir a possibilidade de subverter as relações de poder 28
Authier-Revuz, no livro, Palavras Incertas: as não-coincidências do dizer, explora com propriedade a constituição heterogênea da linguagem, todavia, no que tange ao universo da linguagem digital, tão fortemente atrelada à questão das novas TIC, deparamo-nos com mais uma forma de heterogeneidade: aquela que diz respeito à tradução dos dados (sejam eles letras, números, som, imagem, vídeo, etc.) inseridos no computador, para uma mesma linguagem, a codificação digital em bits, que é a linguagem processada pelo computador. E que, transcodificada, é devolvida a nós na sua forma original, o som como som, a imagem como imagem, a escrita como escrita, por exemplo.
132
que tentam homogeneizar todos os incluídos – como tendo vez e voz –, bem como homogeneizar todos os excluídos – destituídos de vez e voz –, impondo-lhes, assim, as necessidades do outro – qual seja, a interpelação social ao consumo, simbólico ou material, das novas TIC. Interpelação esta que, muitas vezes, apagam as diferenças em uma tentativa de ação homogeneizadora da sociedade. Em outras palavras, incluir-se envolveria, ao mesmo tempo, ter contato com a demanda do outro, e, a partir de então, negociar, estabelecer-se e transformar-se, elaborar as suas próprias demandas e não simplesmente as aceitar passivamente. Tomamos emprestado de Canclini (2005) uma afirmação feita por ele relativa à globalização, e a transpusemos para o contexto de nossa análise por julgarmos que em certa medida ela nos serve bem. O autor, ao afirmar que, nos dias de hoje, as diferenças e as desigualdades deixam de ser fraturas a superar, diz que esses termos foram substituídos por dois outros: inclusão e exclusão. Nas palavras de Canclini o predomínio deste vocabulário significa que: A sociedade, antes concebida em termos de estratos e níveis, ou distinguindo-se segundo identidades étnicas ou nacionais, agora é pensada com a metáfora da rede. Os incluídos são os que estão conectados; os outros são os excluídos, os que vêem rompidos seus vínculos ao ficar sem trabalho, sem casa, sem conexão. (CANCLINI, 2005, p.17)
133
Em
nosso 29
“desconectados”
caso,
os
excluídos
e,
por
isso,
da rede perdem até mesmo seu direito de
dizer e assim “não terão vez” na sociedade – ou será porque não têm vez, não poderão dizer e dizer-se – tem seu espaço de fala invadido pela tonalidade escura da janela de navegação numa possível alusão à sua desconectividade. Não ler o digital é estar desconectado do mundo. “Ou [o sujeito] se adéqua às tecnologias de comunicação [e de informação], ou está fora da possibilidade de pluralizar sentidos e percepções” (NUNES, 2005, [s.p]), na pósmodernidade. Parece que poderíamos, até mesmo, empregar aqui a proposição parodística formulada por Kenneth Gergen – da qual nos dispensaremos de comentá-la – em que o autor propõe: Estou conectado, logo existo. (apud SANTAELLA, 2007, p.231) Mas, se adaptar-se ao digital é inserir-se, organizar-se numa rede de informações e de sociabilidade, como dissemos anteriormente, podemos pensar mais uma vez nas teorizações de Bauman (1999a) no que diz respeito a inovações tecnológicas contemporâneas. O autor as relaciona à expansão capitalista e à categoria de consumo. Esta última é por ele considerada como fator de referência e de organização da sociedade pós-moderna. Em sua perspectiva, todas as 29
Usamos a expressão de Canclini, todavia, com certa ressalva, tendo em vista que nos posicionamos desde a abertura desta unidade a favor da não existência da possibilidade de exclusão total.
134
sociedades sempre consumiram, mas aquilo que caracteriza a sociedade contemporânea como sociedade de consumo é a ênfase dada a esse consumo. Os membros da sociedade moderna definiam suas redes de sociabilidade em torno da capacidade
de
produção.
Já
na
pós-modernidade,
a
organização social se dá mais pela capacidade e pelo desejo de consumir do que pelo que cada um de seus membros produz. Nesse âmbito, a tecnologia digital pode ser entendida, em Bauman (1999a), como mais uma fonte de consumo. A conexão de computadores através da Internet intensificou a possibilidade de consumir e deslocou sua ênfase dos bens materiais para o consumo de informação. Grande quantidade de informação é consumida30 instantaneamente e a custos baixos, independentemente do local onde é gerada ou recebida.
Então,
podemos
depreender
a
partir
dessa
consideração que adentrar o universo da informática ou digital, é consumir além de bens materiais representados pelos artefatos técnicos, como por exemplo, dispositivos digitais e meios de conexão à rede de internet; também os bens simbólicos representados por bibliotecas digitais, ebooks, softwares, websites, bancos de dados, enciclopédias on-line, jornais on-line, serviços de compras, e muitos outros, e tudo 30
O que Santaella (2003, p.73) irá chamar de economia global informacional, designada por ela como a mais recente expressão da mobilização capitalista da sociedade.
135
isso enredados no formato de informação. Fato que contribui para que alguns estudiosos designem nossa sociedade contemporânea
como
sociedade
de
informação
ou
informacional, como é o caso de Castells, no livro Sociedade em Rede . Parece-nos assim que, se tomarmos a tecnologia no sentido de mediadora, podemos chegar a noção de que o consumo das novas TIC – seja ele em forma material ou simbólica – ou de seu discurso, é uma espécie de produção da inclusão digital, e, por conseguinte, de produção do sujeitoleitor-tecnológico. Pois essas novas tecnologias parecem prometer um processo de transformação de um modo de ser, num outro, visto que as informações estariam ao alcance de qualquer um, bastando apenas ser um incluído digital, isto é, um leitor da textualidade digital. No entanto, não podemos enxergar o consumo de informação como uma atividade pacífica e passiva por parte do sujeito – higienizado de todo seu entorno sócio-histórico e cultural – entorno este que é constituído pela mediação das novas TIC. Pois, entendemos que esse sujeito estará no/em constante fluxo de informação, não apenas a recebendo, mas produzindo-a singularmente, em uma negociação constante de sentidos os quais, por sua vez, são circunscritos pela exterioridade, pelo outro. E é nesse jogo, muitas vezes tenso,
136
que as subjetividades, bem como as identidades, podem ser constituídas e estabelecem-se. Referência bibliográfica: BAUMAN, Zigmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. BAUMAN, Zigmunt. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999b. BAUMAN, Zigmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas. São Paulo: EDUSP, 2008. CANCLINI, Nestor Garcia. Diferentes, desiguais e desconectados: mapas da interculturalidade. Rio de Janeiro: UFRJ, 2005. CAVALLO, Guglielmo; CHARTIER, Roger (orgs.). História da leitura no mundo ocidental. São Paulo: Ática, 1998, vol.1. CAVALLO, Guglielmo; CHARTIER, Roger (Orgs.). História da leitura no mundo ocidental. São Paulo: Ática, 1998, vol.2. CORACINI, Maria José (Org.). O jogo discursivo na aula de leitura. Campinas: Pontes, 2002. CORACINI, Maria José. Concepções de leitura na (pós)modernidade. In: CARVALHO, Regina Célia; LIMA, Paschoal (Orgs.). Leitura: múltiplos olhares. Campinas: Mercado das Letras, 2005. p.15-44.
137
GALLI, Fernanda Correa Silveira. O sujeito-leitor e o atual cenário tecnológico e globalizado. Revista Letra Magna, ano 2, n.3, 2005. p.1-13. Disponível em: http://www.letramagna.com/Fernanda_Correa_Silveira_Galli.p df. Acesso em: 11 jun./2008. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. HALL, Stuart. Da Diáspora Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. NUNES, Maíra. Quem tem vez e voz? Revista Eletrônica Temática. Set/2005. Disponível em: < http://www.insite.pro.br/Artigo%20Ma%EDra%20inclus%E3o.h tm>. Acesso em: ago/2008. MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ, 2001. WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA; Tomaz Tadeu (org.). identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2004. pp. 7-72. SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.
138
VOZES E IDEOLOGIAS NA REPRESENTAÇÃO DE FÓRUNS MUNDIAIS: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES1 Magna Campos – UFSJ Prof. Dra. Adelaine LaGardia – UFSJ Resumo: O trabalho em questão versará sobre uma leitura de uma charge publicada no Jornal Folha de São Paulo, em janeiro de 2001. Tal leitura incidirá sobre a questão da ideologia à luz de alguns pressupostos de Karl Marx, e da releitura da teoria marxista efetuada por Louis Althusser e Stuart Hall. Na charge analisada, pode-se observar certa ironia quanto ao acontecimento de dois eventos em âmbito mundial, sendo eles o Fórum Social Mundial e o Fórum Econômico Mundial. No entanto, a leitura aqui pretendida levantará questões concernentes ao funcionamento da ideologia, de acordo com as posturas teóricas dos autores acima citados, e, para isso, será relevante considerar o contexto de produção a que a tal charge remete, bem como às estratégias discursivas e visuais implícitas na crítica veiculada.
O termo “ideologia” apresenta acepções diferenciadas de acordo com a filiação teórica em que é empregado. Pode-se dizer que se configura como uma trama de diferentes fios conceituais, traçado por divergentes histórias, e, neste caso, mais importante provavelmente do que tentar agrupar essa polissemia em uma grande teoria global, seja determinar o que há de valioso em cada uma delas e o que pode ser descartado.
1
Texto escrito em 2007.
139
Nesta vertente de estudo, é que este trabalho se filia na tentativa de proceder a uma pequena leitura de uma charge publicada no Jornal Folha de São Paulo, em janeiro de 2001. Essa leitura será pautada em algumas considerações concernentes ao funcionamento da ideologia, baseadas na releitura efetuada por Staurt Hall sobre essa questão em Karl Marx e em Louis Althusser, bem como no funcionamento do discursivo da ideologia, conforme pressupostos da análise do discurso. Desde já, adianta-se que tal leitura apresenta um caráter exploratório sem pretender-se alcançar o caráter exaustivo de análise, tendo em vista a característica do gênero acadêmico a que se propõe: uma comunicação coordenada. A fim de situar-se o arcabouço teórico no qual essa leitura será pautada, será realizada uma pequena exposição a respeito do tema ideologia em conformidade com os autores mencionados. Pode-se
mencionar
que
um
dos
maiores
questionamentos no que se refere à temática da ideologia em Marx, diz respeito à problemática deste autor ter considerado a ideologia concernente apenas às relações econômicas – ou seja, às questões que envolvem a produção/consumo de mercadorias em uma sociedade capitalista. Marx atribuía as origens das categorias espontâneas do pensamento burguês na materialização comum às formas superficiais do circuito capitalista. Esse pensador identificou, especificamente, a
140
importância do mercado e das trocas de mercado, onde as coisas são negociadas e os lucros obtidos. Para isso, primeiro estabeleceu, como fonte de ideias, um momento particular do circuito econômico do capital. Segundo, demonstrou como a tradução das categorias econômicas para as ideológicas pode ser efetuada. E por último afirma que as categorias ideológicas "escondem" a realidade subjacente e as substituem pelas "verdades" das relações de mercado. Neste posicionamento, ideologia passa a configurar-se como de caráter ilusório e negativo. Pode-se identificar tal tradução nos dizeres de Brandão (2004) acerca das proposições teóricas de Marx. Segundo Brandão (2004, p.21), os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épocas, os pensamentos dominantes, ou seja, a classe que tem o poder material dominante numa dada sociedade é também a “potência” dominante espiritual. A classe que dispõe dos meios de produção material dispõe igualmente dos meios de produção intelectual, de tal modo que o pensamento daqueles a quem são recusados os meios de produção intelectual está submetido igualmente à classe dominante. Os pensamentos dominantes são apenas a expressão ideal das relações materiais dominantes sob a forma de ideias e, portanto, a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante; dizendo de outro modo, são as ideias de seu domínio.
141
Já em Althusser, nota-se um grande avanço neste aspecto ao tentar descrever as formas de disseminação, perpetuação e reprodução da ideologia, não a “sufocando” apenas em termos de economia. No entanto, a ideologia para Althusser ainda é “a Ideologia”, assim mesmo, no singular, fortemente atrelada a uma classe social específica: a burguesia. Segundo essa linha de pensamento, às demais classes sociais, caberia o papel de reprodução fixa da ideologia de sua classe, eternamente subordinada aos ditadores da ideologia: a classe dominante. Portanto, pode-se conjecturar
que
se
em
Marx
ocorre
o
reducionismo
econômico, em Althusser ocorre o reducionismo de classe. Se em Marx o Estado é visto de forma unificada e como instrumento de dominação de uma classe, fator, aliás, que expõe o teórico a inúmeras críticas; em Althusser o Estado e, por extensão, a própria ideologia, possui distintos modos de ação, atuando em diferentes locais. O Estado althusseriano é visto como pluricentrado e multidimensional, apresentando como função a união e a articulação, em uma instância complexa, de gama de discursos políticos e de práticas sociais que, em diferentes locais, ocupam-se da transmissão e transformação do poder. Portanto, há um deslocamento da questão da instrumentalidade do Estado (Marx) para a de seu funcionamento, repressivo ou ideológico (Althusser).
142
Ideologia, para Althusser, seria configurada como representação, pois, para ele, não são as suas condições reais de existência, seu mundo real que os “homens representam” na ideologia; o que é nelas representado é, antes de qualquer coisa, a sua relação com as suas condições reais de existência. Em Althusser, a ideologia possui uma existência material na prática ou práticas nos Aparelhos Ideológicos de Estado, em outras palavras, a ideologia se materializa nos atos dos indivíduos, portanto, Althusser não separa o conhecimento das práticas. Partindo
desse
pressuposto,
tem-se
uma
outra
conclusão a que Althusser chega, trata-se de caracterizar a função
da
ideologia
como
constituidora de
indivíduos
concretos em sujeitos. Pois para ele só há prática através de e sob uma ideologia e só há ideologia pelo sujeito e para o sujeito. É com base nesse pensamento que Althusser pode concluir que a Ideologia interpela os indivíduos enquanto sujeito. Dessa forma, traça uma concepção mais linguística ou discursiva para ideologia, tendo em vista que colocou em discussão o fato de como a ideologia é internalizada pelos sujeitos. Pensar em sujeito interpelado acarreta pensar também em um sujeito interpelador, e, segundo Althusser, tal papel caberia
aos
Aparelhos
Ideológicos
do
Estado
que
reproduziriam a ideologia da classe dominante. Hall (2003b)
143
ensaia uma possível crítica à interpelação dizendo que se trata de mera especulação afirmar que eles (mecanismos de interpelação) fornecem as condições concretas e suficientes à enunciação
de
ideologias
historicamente
específicas
e
diferenciadas. Ao contrário de Marx e Althusser, tem-se em Hall uma concepção de ideologia, ou melhor, de ideologias capaz de representar
diferentes
grupos
e
classes,
que
existe
materialmente nas práticas sociais e nos signos na forma de discurso. A ideologia, neste sentido, figuraria como um discurso sobre a realidade, o que fica mais fácil de compreender se considerar-se o fato que só é possível ter acesso à realidade por meio do discurso que a organiza. Seriam as ideologias como representações possíveis da realidade por um grupo, que dão sentido às suas práticas. Stuart Hall (2003) considera a ideologia como inerente ao próprio ato de representar/significar e codificar/decodificar. Pode-se, então, conceber ideologia como um discurso que “empregado” por uma classe ou grupo social – o que significa que estes discursos não são nem necessariamente produzidos dentro destas classes ou grupos sociais, nem que eles sejam reflexos destas classes ou grupos sociais – organiza uma determinada representação da realidade e que, ao refletir uma determinada posição, estabelece relações de poder com as demais posições, com outras representações da
144
realidade, com outros discursos. Desta feita, não haveria, segundo
Hall,
a
obrigatoriedade
da
correspondência
necessária entre a classe socioeconômica e a ideologia. Assim, um discurso seria ideológico quando classes e grupos sociais o “empregam” para dar sentido ao modo como a sociedade opera. Ressalta-se, no entanto, que nem todo discurso, nem toda formação simbólica é ideológica, mas somente o é, quando serve para dar sentido a algo que lhe é externo, estabelecendo relações de poder - que são, de todo modo, inerentes ao funcionamento dos signos, mas que não são inerentes ao próprio objeto. Tendo em vista esses apontamentos, passa-se agora para a sua aplicação na leitura da charge, mencionada no início deste trabalho, e impressa a seguir:
145
Fonte: Jornal Folha de São Paulo, veiculado em 27/01/2001
Nessa charge2, o sentido da expressão - Vamos invadir o McDonald’s - só pode ser atribuído considerando-se o contexto de produção a que a charge nos remete. O texto em estudo remete-nos a dois contextos distintos sobre o mesmo signo: fórum. No entanto, um refere-se a fórum social e outro a fórum econômico, os dois, porém, em âmbito mundial. Portanto, duas situações que, como podemos observar pela própria charge, configuram dois sujeitos diferentes valendo-se do mesmo enunciado: Vamos invadir o McDonald’s. Sujeitos 2
Também usada pela professora Dra. Maria José Rodrigues Faria Coracini, da Unicamp, em um texto de sua autoria.
146
esses que perspectiva althusseriana seriam interpelados pela ideologia. Numa perspectiva discursiva, pode-se dizer que os enunciados
mudam
de
sentido
segundo
as
posições
sustentadas por aqueles que as empregam, uma vez que tais enunciados estão inseridos em uma determinada formação discursiva, o que quer dizer que é a partir de uma posição dada, numa conjuntura específica, que se pode determinar o que pode e deve ser dito. Sendo assim, infere-se que formações discursivas significariam para Marx o conteúdo das formas ideológicas, a expressão do ideal das relações materiais dominantes, sendo o seu conteúdo dado pela classe que, por deter os meios de produção, o material, detém também os meios de produção intelectual. Se
considerar-se
o
preceito
da
correspondência
necessária entre classe socioeconômica e ideologia, tem-se que a formação discursiva funcionaria como uma espécie de “camisa de força” que circunscreveria o sentido a uma única possibilidade. No entanto, relativizando-se essa situação e aproveitando a proposta de ideologia sugerida Hall (2003), haveria
a
possibilidade
de
poder
ou
não
haver
correspondência, o que tornaria possível sair-se do patamar da obrigatoriedade para o de evento, com isso a formação discursiva apontaria para alguns sentidos possíveis e silenciaria outros, mas não os negaria.
147
Veja-se o contexto de produção a que cada um dos enunciados nos remete: o
primeiro
enunciado
é
proferido
pelos
participantes do Fórum Social Mundial (realizado em Porto Alegre-RS) que são contrários à globalização, à política do neoliberalismo, aos países ricos, o
segundo,
pelos
participantes
do
Fórum
Econômico Mundial (realizado na Europa ou USA) que reúne representantes dos países mais ricos do mundo liderados pelos USA. Vê-se, então, que se tratam de duas formações discursivas antagônicas em que os sujeitos que falam, falam de posições políticas, sociais, ideológicas diferentes. Dessa forma os enunciados, apesar de gramaticalmente idênticos, apresentam sentidos diferentes. No Fórum Social Mundial, a ideologia marxista ligada à luta de classes “impele” os sujeitos à luta e, neste sentido, o termo invadir significa ocupar pela força, tomar posse3. Daí o uso, na charge, de imagens de foices e bandeiras e até mesmo de dupla exclamação ao fim do enunciado, dando esta uma ideia de grito. Já no Fórum Econômico Mundial, o cenário é outro, em lugar da balbúrdia do primeiro, há apenas dois sujeitos, cujos vestuários remetem a condições sociais e 3
Conforme dicionário eletrônico Houaiss.
148
econômicas bem distintas da primeira imagem. Neste caso, precedido de outro enunciado - que fome - que ajuda na produção do sentido do enunciado, o termo invadir agora se refere no sentido mais coloquial de ir para. No entanto, os dois enunciados referem-se ao mesmo local: McDonald‟s, símbolo do neoliberalismo e da dominação americana. Aliás, um dos ditames do Fórum Social Mundial questiona o chamado Primeiro Mundo e a hegemonia dos valores da sociedade norte-americana como o modelo ideal a ser seguido. Assim, observa-se que na charge em questão, é ainda o conceito marxista de ideologia que está em jogo de formação discursiva como determinante do sentido dos enunciados.
Referências bibliográficas: HALL, Stuart. Significação, representação, ideologia: Althusser e os debates pós-estruturalistas. In: ______.Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003a.p.160-198. HALL, Stuart. O problema da ideologia: o marxismo sem garantias. In: ______. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003b. p.265-293. BRANDÃO, Helena Nagamine. Introdução à análise do discurso. Campinas: Editora Unicamp, 2004.
149
UMA BREVE LEITURA DO FILME QUIS SHOW: A VERDADE DOS BASTIDORES1 Magna Campos – UFSJ Prof. Dr. Guilherme Rezende – UFSJ
O filme narra uma história, baseada em fatos reais, sobre um programa de televisão do tipo Perguntas e Respostas. O enredo acontece na década de 1950, nos Estados Unidos, e versa sobre o programa da NBC chamado de 21 o qual se dizia um jogo isento de manipulações e sem a interferência de seus
produtores.
Para
ganhar
o
respeito
de
seus
telespectadores, as perguntas e respostas do programa eram guardadas e um cofre “acima de qualquer suspeita”, pois essa era a afirmação ostentada no anúncio e propaganda do programa, cria-se, assim, o elemento – credibilidade –
do
jogo. O filme mostra, logo no início, o apresentador do programa se preparando para entrar em cena e repassando o texto de suas falas. Neste ponto, percebe-se que o apresentador tenta imprimir um ar emotivo e, ao mesmo tempo, de naturalidade daquilo que fala, tentando, assim, levar ao público a falsa impressão de fala real, sem texto, sem “decoreba”. Neste papel, pode-se dizer que o apresentador configura-se num 1
Texto escrito em 2006.
150
ator que é responsável pela mediação entre o “21” e a plateia local e a de casa. Essa preocupação com a suposta naturalidade ainda pode ser percebida na ordem para que os participantes do jogo, os concorrentes, cumprimentem o apresentador sempre pelo primeiro nome. Herbert, um dos participantes do jogo, de origem judaica, representante do que poderíamos chamar de classe operária, após algumas vitórias, não mais despertava grande interesse dos telespectadores e o programa encontra-se numa fase de estagnação de audiência. Tal personagem é representado no filme de uma forma um pouco caricatural, pois traja sempre um terno desajustado, exibe uma falha na arcada dentária que torna grosseiro seu sorriso; fato, aliás, que muito perturbava ao personagem, fissurado na ideia de recapear o tal dente e melhorar não só sua imagem, mas também, mas também, no entender dessa personagem, capaz de lhe conferir status social. Hebert ainda representa um desajuste na ordem natural do programa, uma vez que fala entre as falas do apresentador e desconcerta-o em seu “texto-pronto-natural”. No entanto, essa fala de Herbert é sempre sobre um tema pontual: GERITOL, produto patrocinador do programa em questão. Desde a caracterização do personagem-jogador, Herbert, vê-se um fator subversivo sendo construído, pois toda essa caricatura
indica
em
seus
151
interstícios
que
embora
desajustado, desalinhado, esse dito gênio do programa traz em sua própria condição os elementos da anarquia, da rebelião contra a ordem do silenciamento-humilhante que lhe é imposto pela organização do programa, quando estes, valendo-se de uma tática para alavancar a audiência do programa, aceitam-recrutam um novo e perfeito concorrentejogador. Charles Van Doren surge no filme depois de ser delineado para os telespectadores, agora do filme e não do Programa 21, como um rapaz inteligente, culto, capaz de responder às questões propostas pelo programa e que se sente atraído pelo tal jogo. Ao procurar um desses programas em que se conseguia ganhar algum dinheiro por meio do conhecimento-estudo que possuía, Charles é “recrutado” pelos dois diretores do Programa 21 que viram no rapaz exatamente a imagem do novo
“personagem-jogador-garoto-propaganda”
que
precisavam. Diferentemente de Herbert, Charles era bem apresentável, com cabelos, barba e terno alinhados. Ostentava um sorriso simpático, sem a “mancha” de uma falha dentária, tal qual o concorrente. Era professor universitário, com alta formação literária e oriundo de uma família reconhecida por seus méritos intelectuais. Seu pai havia ganhado um prêmio reconhecido de poesia e seu tio era um historiador renomado.
152
Tanto que, logo de início, seu sobrenome é ostentado e repetido pelos diretores do programa. Para dissuadi-lo a participar do programa e a cooperar com direção, os organizadores usam a causa da educação como justificativa até mesmo de atos ilícitos, como o de receber as respostas das questões a fim de que o “mocinho” permanecesse o tempo que lhes aprouvessem no programa. Fator recusado por Van Doren inicialmente, mas que, a partir da primeira vitória, parece ter se tornado comum ao personagem. Os conflitos têm início quando Herbert recebe a notícia de que para ele o jogo acabara e que deveria errar uma das questões do programa seguinte, justamente o que disputaria com Van Doren. Não bastasse a queda repentina, ainda teria que se humilhar errando, exatamente, uma questão que seria de fácil resposta. Ou seja, cria-se o cenário da rebeldia, pois além da exclusão, haveria também a humilhação pública. É interessante observar alguns signos visuais que auxiliam na encenação do desafio intelectual que são apresentados no programa, tais como: posição de palco, o ritual de limpar o suor, a pausa respiratória, o desligar do ar-condicionado, o olhar introspectivo antes das respostas e mesmo o sorriso aliviado da resposta correta. Tudo isso escapava aos olhos até mesmo da plateia, programada para aplaudir e sorrir,
153
presente no estúdio-cenário de gravação do jogo, utilizada também como fiscal da segurança do jogo. Durante o filme, podem-se perceber várias cenas em que patrocinador, diretor, organizador e toda a cúpula da televisão valem-se da comunicação interna para deliberar sobre os rumos do programa na hora mesma em que o jogo estava sendo transmitido. Fator de crítica à mercantilização, latente do filme. O jovem e bem quisto Van Doren, assusta-se ao ver que sua primeira vitória foi manipulada e sai meio transtornado do estúdio com o fato, recusando-se a descer no elevador juntamente com aqueles que sabia ter armado toda a vitória. Curiosamente, ele que se recusara, em um primeiro momento, a fazer parte dessa falcatrua se vê enredado pala trama, pelo dinheiro e pela fama que tal vitória lhe proporciona. Nesse sentido, seria possível apontar a escada que ele escolhe descer sozinho, ao recusar descer de elevador, como uma metáfora, via consciente da “decadência moral”. A descida durante a qual o suor é real e a busca de uma justificativa para aliviar-se do peso da consciência era buscada e encontrada: tudo isso pela causa da educação! O novo ganhador facilmente se torna o novo garoto propaganda do anunciante e patrocinador do programa e também se torna o novo herói para o qual os telespectadores torcem ansiosamente e admiram-no por sua inteligência.
154
Revoltado com a humilhação que lhe fora imposta, Herbert tenta mover uma ação contra o programa, o que não é levado muito a sério, nem mesmo pela diretoria que tenta silenciá-lo simplesmente para enterrarem o assunto e não por se sentir realmente ameaçada. Eis que surge no filme um personagem crucial, um jovem advogado de uma subcomissão do congresso, que atraído por uma pequena nota em um jornal sobre o processo contra o programa convence seus superiores em liberá-lo para pesquisar a respeito, em New York, onde é gravado o programa. Apesar da grande dificuldade em descobrir informações, o advogado consegue por meio de Herbert, alguns dados que foram cruciais para suas investigações, mesmo lhe parecendo um tanto quanto insólitos, pela própria configuração das informações que lhe foram repassadas por um personagem atordoado pelo silenciamento que lhe fora imposto tanto pela televisão, quanto pela justiça, o caricato Herbert. Mas, mesmo o advogado, sente-se atraído pela imagem de rapaz honesto que Van Doren ostentava. Assustado e atordoado com as investigações Van Doren tem cada vez mais noção da falta de ética de seus atos; a popularidade agora se configura como um “peso” e esse fantasma volta a perseguir-lhe, embora tivesse sido exorcizado anteriormente naquela escada, já mencionada neste texto.
155
Tentando aliviar-se, Van Doren propõe a diretoria que não lhe dessem as respostas, dessem-lhe apenas as perguntas e que ele mesmo fosse o responsável pelas respostas. Talvez para tentar sentir-se menos culpado na situação. Ainda assim, o professor universitário não aguenta a forte pressão psicológica e resolve “cair fora” do jogo, errando, por escolha própria uma questão que também sabia a resposta. Descoberta a trapaça do programa, Van Doren continua com a imagem de bom moço, vítima da difamação que lhe era imputada, todavia, pela sua própria formação moral e configuração familiar não suporta mais a mentira e resolve apresentar-se ao júri especial e não dá um depoimento, propriamente
dito,
visto
que
enuncia
sua
declaração
antecipadamente e assume publicamente que recebia as respostas das questões, tal qual os outros concorrentes também deviam tê-las recebido. No entanto, Van Doren, doutor em Literatura, usa de metáforas para assumir e relatar seus erros, fator que jamais seria colocado na boca de outro personagem como Herbert, por exemplo, a quem coube a desmedida e a caricatura. Van Doren, personagem que no auge do sucesso encantou-se com a fama, o reconhecimento e com a fortuna, vira seu mundo transtornado e restaram-lhe as metáforas para se desculpar com todos aqueles que torceram, admiraram e se espelharam nele.
156
O filme termina com o desolamento do advogado em perceber que o verdadeiro alvo de suas denúncias, a televisão, esquivara-se e saíra ilesa das acusações, recaindo sobre “pobres mortais” as punições pelo grande jogo de poder entre televisão e mercado. As legendas finais aludem à continuidade da televisão, com um pequeno e consertado arranhão na imagem e com a marcação
cicatrizante
deixada
na
história-carreira
dos
personagens do jogo, que nunca passara da ilusão de um jogo, ilusão, aliás, que faz parte da rotina dos telespectadores e, para lembrar Bourdieu, que configuram “os mecanismos anônimos, invisíveis [...] que fazem da televisão um formidável instrumento de manutenção da ordem simbólica” (1997, p.20)2.
***
2
BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Tradução Maria Lúcia Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
157