Livro Indivíduo e Educação na Crise do Capitalismo.pdf

May 18, 2017 | Autor: Eduardo Chagas | Categoria: Education, Marxism, Marxist theory, Marxist political economy, Capitalismo, Crise do Capitalismo
Share Embed


Descrição do Produto

INDIVÍDUO E EDUCAÇÃO NA CRISE DO CAPITALISMO

ORGANIZAÇÃO Eduardo F. Chagas Hildemar Luiz Rech Raquel Vasconcelos Wildiana Jovino

INDIVÍDUO E EDUCAÇÃO NA CRISE DO CAPITALISMO

EDIÇÕES UFC

© 2012 Copyright by os autores

CAPA/PINTURA E PROJETO GRÁFICO/GRAPHICS EDITORS Raquel Célia Silva de Vasconcelos APRESENTAÇÃO José Rômulo Soares Lucíola Andrade Maia EDITORAÇÃO/DESKTOP PUBLISHING

COMISSÃO CIENTÍFICA/SCIENTIFIC COMMITTEE:

NORMALIZAÇÃO DE TEXTO/ TEXT NORMALIZATION

REVISÃO/ REVIEW

IMPREESÃO/PRINTING

Todos os direitos reservados .....

________________________________________________________________________________________________________ CHAGAS, Eduardo F., RECH, Hildemar Luiz, VASCONCELOS. Raquel Célia Silva de e JOVINO, Wildiana Kátia Monteiro Jovino. Indivíduo e Educação na crise do capitalismo/organizado por Eduardo Ferreira Chagas, Hildemar Luiz Rech, Raquel Célia Silva de Vasconcelos e Wildiana Kátia Monteiro Jovino. Fortaleza: Edições UFC, 2012. 298p. ISBN: 1. Filosofia 2. Indivíduo 3. Educação. II Título CDU

SUMÁRIO 08

APRESENTAÇÃO José Rômulo Soares Lucíola Andrade Maia

I MARXISMO E A CRISE DO CAPITALISMO 13

O Indivíduo em Marx Eduardo F. Chagas

25

Educação e Indivíduo Pragmático na Crise Capitalista Contemporânea Rômulo Soares

39

Uma Filosofia Política para a Crise do Capital Aluisio Pampolha Beviláqua

48

Emancipação e Educação no Capitalismo em Crise: A Conservação do Aprisionamento na Aparência de Liberdade Vilson Aparecido da Mata

60

Diálogos Sobre Formação Humana e Educação Socialista: Makarenko e Pistrak Lucíola Andrade Maia

72

Marx e Mészáros: Uma Análise da Crise do Capital e da Transição Socialista Wildiana Kátia Monteiro Jovino

82

Uma Análise Ontológica sobre a Relação de Identidade entre Produção, Distribuição, Troca e Consumo José Pereira Sobrinho

94

O Problema da Ideologia nas Ciências Sociais e as suas Implicações para a História do Marxismo Maria Teresa Buonomo de Pinho

101

Propriedade Privada em Marx como Condição do Trabalho Negado Antonio Carlos da Costa e Silva

109

Contradição entre Trabalho e Educação na Sociedade Capitalista: Desnaturalização da Precária Formação Escolar de Jovens e Adultos Trabalhadores Graziela Lucchesi Rosa da Silva

122

Corpo, HIV/AIDS e as Contradições do Mundo do Trabalho Roberto Kennedy Gomes Franco

II TEORIA CRÍTICA E FORMAÇÃO HUMANA 136

Trabalho e Reconhecimento: Pressupostos Fundamentais para se Pensar a Formação Integrada do Trabalhador Samuel Brasileiro Filho

146

Ócio, Ociosidade e Educação em Walter Benjamin Tereza Castro Callado

159

Sujeito, Cultura e Educação: (Des)Ajustando a Crise do Capital, uma vivência do Inevitável Raquel Célia Silva de Vasconcelos

173

O “Outro” da Filosofia da Educação de Adorno: A Psicanálise Pedro Rogério Sousa da Silva

185

Dialética Negativa: Formação e Resistência como Superação da Menoridade em Adorno Solon Sales Lemos

191

Prática Docente, Reflexão Filosófica e Formação em Theodor W. Adorno Maria Socorro Gomes

201

O Narrador, um Agente Construtor na Comunidade Conceição Ribeiro Guimarães

III FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA E NEOCAPITALISMO 211

Metafísica da Vontade de Poder e o Pensamento do Super-Homem: Da Educação do Super-Homem Homero Luís Alves de Lima

222

Slavoj Zizek: Sujeito, Saber Científico e do Inconsciente e Ato Educativo Hildemar Luiz Rech

240

O Sorriso Insuportável de Bartleby Segundo Slavoj Zizek Fernando Facó de Assis Fonseca

250

O Sujeito na Experiência Psicanalítica e nas Narrativas Contemporâneas: Uma Abordagem na Filsofia de Zizek Maria Anita Vieira Lustosa Márcia Gardênia Lustosa Pires

259

Decodificando o Neocapitalismo Thiago Mota Fontenele e Silva

273

A Questão Ambiental e a Teoria da Sociedade de Risco Paulo Rodrigues dos Santos

285

Os Efeitos da Incorporação da “Crítica Social” e da “Crítica Estética” ao Capitalismo no Campo da Educação Pablo Severiano Benevides

296

Pedagogia Teatral e Processos de Subjetivação: Assujeitamento e Singularização André Luiz Lopes Magela

309

Investindo no Corpo da Mãe: A Subjetivação da Mãe Naturalista como Modelo de Maternidade Karina Mirian Valença Lima

319

Heroína ou Vilã? Notas sobre Experiência de Ensino de Sociologia da Educação Bernadete Beserra e Rémi Lavergn Rémi Lavergne

Apresentação José Rômulo Soares Lucíola Andrade Maia

Os textos da obra ora apresentada resultam, mais diretamente, das conferências e palestras proferidas no II Colóquio Nacional Indivíduo e Educação no Contexto da Crise do Capitalismo, realizado em Fortaleza, Ceará, em novembro de 2011. Organizado pelos professores Eduardo F. Chagas e Hildemar Luiz Rech, coordenadores do Eixo Temático Filosofia, Educação e Política, pertencente à linha de pesquisa Filosofia e Sociologia da Educação (FILOS), do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Faculdade de Educação (FACED), da Universidade Federal do Ceará (UFC), o aludido evento objetivou debater questões relevantes sobre as complexas relações entre o desenvolvimento da individualidade e a crise atual do capitalismo. O livro Indivíduo e Educação na Crise do Capitalismo, organizado pelo professor Eduardo F. Chagas e pelas doutorandas, Raquel Célia Silva Vasconcelos e Wildiana Kátia Monteiro Jovino registra a produção dos pesquisadores da Linha de Pesquisa Filosofia e Sociologia da Educação, composta pelos eixos: 1) Filosofia, Política e Educação; 2) Filosofias da Diferença, Antropologia e Educação. Da mencionada linha, participam professores de várias universidades brasileiras, além de mestrandos e doutorandos vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Educação, da FACED. Em nome da coerência teórico-metodológica e para melhor orientar a leitura desta produção, seus organizadores, membros do Eixo Filosofia, Política e Educação, dispuseram os textos em três campos temáticos intimamente ligados às discussões dos eixos pertencentes à linha de pesquisa Filosofia e Sociologia da Educação, quais sejam: 1) Marxismo e a crise do capitalismo;

 

Professor Doutor da Universidade Estadual do Ceará do Centro de Educação no curso de Pedagogia. Professora Doutora da Universidade Estadual do Ceará do Centro de Educação no curso de Pedagogia.

2) Teoria crítica e formação humana; 3) Filosofia contemporânea e neocapitalismo. O primeiro campo temático, como indicado em seu título, aborda a crise contemporânea do capitalismo, perseguindo compreendê-la em suas múltiplas contradições. Nesse sentido, a abordagem debate a respeito das raízes da crise corrente, suas determinações mais essenciais e suas consequências no complexo educacional e na vida dos indivíduos singulares. A partir de Marx e do legado teórico-práxico marxiano, os textos em relevo argumentam acerca das características da atual crise capitalista, demonstrando a necessidade de uma tomada de posição da classe trabalhadora relativamente aos graves problemas impostos pelo capital, à condição humana, aprofundados diante da agudeza da crise em foco. Desse modo, os autores explanam sobre individualidade, ideologia, propriedade privada, mundo do trabalho, dentre outros temas, assumindo a perspectiva da emancipação humana, na qual a formação do homem, pela contribuição da educação socialista, aparece como horizonte a guiar nossos passos. Apoiado numa filosofia política questionadora das relações sociais alienadas, o debate refuta a formação humana precária subjugada à lógica pragmática e produtivista do capitalismo. Essa discussão revela o esforço de seus autores em melhor entender a problemática da individualidade no contexto da crise capitalista hodierna, como de elucidar os princípios de uma sociabilidade fincada em novas relações sociais, nas quais os seres humanos encontrem reais possibilidades de crescimento de suas potencialidades criativas e de desfrutar da abundância material e intelectual existente no planeta. A análise incita a compreensão do papel dos educadores no sentido da realização de um trabalho em prol do rompimento com o atual quadro de carência material e espiritual ao qual está submetida a maioria da população mundial, pois o desenvolvimento das forças produtivas atuais, em tese, permite a satisfação das carências humanas enumeradas e o consequente desenvolvimento grandioso das individualidades. De acordo com a ponderação dos autores em foco, somente livre dos impedimentos fundados na concentração e na centralização das riquezas, algo

semelhante poderá se efetivar, sob pena da humanidade ser encaminhada para tempos marcados por mais exploração e sofrimento. O segundo campo temático, denominado teoria crítica e formação humana, apresenta discussões alicerçadas, especialmente, nas ideias de filósofos como Hegel, Adorno, Benjamim e Honneth. O norte teórico deste campo orienta-se por uma perspectiva crítica e libertária, questionando o enquadramento das relações sociais sob a lógica controladora do sistema em vigor. Preocupa-se, portanto, com uma educação rica, assentada em circunstâncias de emancipação. Decorre destes pressupostos, o compromisso com uma prática educativa que intente superar o tecnicismo vigente, portanto crítica, criativa, consciente e transformadora. Para realizá-la, indicam os textos em destaque, a filosofia poderá contribuir com uma formação para além do instrumentalismo dominante, geradora de indivíduos pensantes e livres. Como exemplo de possibilidades emancipatórias, os autores realçam o docente em uma práxis educativa questionadora, como ainda o resgate do indivíduo narrador, ou seja, daquele que compreende suas experiências pessoais e grupais, retirando delas sabedoria para exercer uma vida social apoiada em relações comunitárias, nas quais as decisões políticas se impõem no cotidiano. Teoria crítica e formação humana, portanto, contribui com a busca do entendimento sobre a individualidade submetida às amarras da ciência e da tecnologia e a respeito da construção de uma individualidade consciente e emancipada, vigorosamente pensante, atuante e criativa. O terceiro e último campo temático denominado Filosofia contemporânea e neocapitalismo, expressa estudos realizados a partir de Heidegger, Zizek, Boltansky e Chiapello, Foucault, dentre outros filósofos de reconhecida importância acadêmica. Abordando diferentes questões filosóficas alinhadas à filosofia contemporânea, o campo em foco versa sobre as inquietações de seus pesquisadores acerca do sujeito e dos processos de subjetivação da sociedade contemporânea. Desse modo, ascendem temas como: o corpo, o inconsciente; a experiência psicanalítica; a questão ambiental; a pedagogia teatral; o ensino de sociologia da educação, dentre outros de igual relevância. O veio crítico dos textos demarca uma linguagem provocativa à leitura, contribuindo

com

a

discussão

em

torno

de

importantes

problemas

da

contemporaneidade quanto às questões do indivíduo na complexidade da vida social e da educação, em particular. Esta coletânea revela, portanto, o esforço coletivo de pesquisadores diante dos sérios desafios de nosso tempo, dentre eles, o de compreender a realidade e nela intervir. Por caminhos teórico-metodológicos diferenciados, os autores em evidência, expõem suas contribuições ao tema do II Colóquio Nacional Indivíduo e Educação no contexto da crise do capitalismo, enriquecendo a pauta temática do referido evento e elevando a produção deste livro. Para nós, o grande mérito desse trabalho coletivo é o chamado à reflexão, pois a filosofia intermedeia o debate sobre os temas propostos. Não, qualquer filosofia, ou filosofias adequadas à ordem estabelecida, mas ao contrário, correntes filosóficas identificadas com a inquietação humana em transformar a vida em sentido plenamente emancipador. Fortaleza, março de 2012

I MARXISMO E A CRISE DO CAPITALISMO

O Indivíduo na Teoria de Marx

Eduardo F. Chagas*

Este artigo versa sobre o indivíduo e, a princípio, é necessário fazer uma distinção entre indivíduo e individualidade: o indivíduo é o homem na sua singularidade, singularidade essa que, na sociedade capitalista, aparece como singularidade negativa, isolada; e a individualidade são os traços essenciais físicos e intelectuais, psicológicos, as qualidades distintivas, de cada indivíduo, que diferenciam um indivíduo de outros, traços esses que, na sociedade moderna capitalista, são anulados, na medida em que os indivíduos são reduzidos apenas a mercadorias indistintas. Irei tratar aqui apenas do indivíduo e, especificamente, do indivíduo na obra de Marx, que foi pouco investigado, e até mesmo não trabalhado, por boa parte dos intérpretes marxistas. Para muitos destes, não há, no pensamento de Marx, lugar para uma concepção de indivíduo humano, ou até mesmo defendem que Marx nega a concepção de indivíduo humano. Penso que isto é um mal-entendido, pois pode-se levantar, a meu ver, quatro pressupostos básicos, que podem servir de auxílio para a construção ou reconstrução de uma teoria do indivíduo em Marx. Estes quatro pressupostos são os seguintes: 1. o indivíduo, enquanto ente singular, é um indivíduo natural (corpóreo, concreto, sensível), natural consciente, como parte da natureza e da cultura; 2. o indivíduo humano é histórico, resultado do desenvolvimento histórico, portanto não é uma substância perene, eterna, a-histórico, como um pressuposto dado naturalmente, o que seria limitado e unilateral; 3. o indivíduo humano é social (um produto social), como parte da sociedade; não é, então, um indivíduo a priori, antes da sociedade, isolado, atomístico, como uma mônada, fora da sociedade, pois a concepção de indivíduos autônomos são ―robinsonadas‖, que ocultam as relações sociais, que explicam os próprios indivíduos, embora elas não passem de ficções e 4. o indivíduo humano é um indivíduo ativo, dinâmico, que se autoforma; criação de si mesmo, não

*

Doutor em Filosofia; professor da graduação e da pós-graduação do Curso de Filosofia da Universidade Federal do Ceará (UFCE) e colaborador do programa de pós-graduação da Faculdade de Educação (FACED) da UFC. E-mail: [email protected].

dado imediatamente pela natureza, nem criado do nada arbitrariamente por um Deus; o indivíduo humano é autocriação, autoconstituição de si pelo trabalho e pela política. Nas condições objetivas da sociedade moderna capitalista, o indivíduo aparece, todavia, como singularidade negativa, como unidade negativa, como mera unidade ou parte deslocada do conjunto, desarticulada dentro de um todo formal, ou seja, como indivíduo segregado, apartado, divorciado da comunidade, dos outros indivíduos e das condições de sua existência, da produção, ou seja, dos meios necessários à produção e reprodução de si mesmo. Quer dizer, na sociabilidade capitalista, o indivíduo: 1. surge como indivíduo egoísta, relacionado apenas consigo mesmo, puramente exterior, indiferente, autônomo, independente, como unidade singular negativa, preocupado apenas consigo mesmo, com seus interesses particulares; assim, o indivíduo aparece como simples trabalhador, como capitalista, como proprietário fundiário etc.; 2. disto resulta o indivíduo isolado, não mais como membro de uma comunidade, ou seja, a dissolução do nexo de pertença do indivíduo com a comunidade, a quebra da unidade do indivíduo com a totalidade, o divórcio dos laços entre os indivíduos e a sociedade; não só o rompimento do intercâmbio, mas também a oposição do indivíduo à comunidade; 3. essa ruptura com a comunidade se estende ao rompimento do indivíduo com outros indivíduos, com os demais; ou seja, dá-se o isolamento, a indiferença mútua, a indistinção, a desconexão e a exterioridade entre os indivíduos; 4. esse indivíduo egoísta passa a ser tratado como coisa, como mercadoria; 5. e as relações entre os indivíduos passa a ser uma relação coisal, coisificante; 6. esse indivíduo egoísta, coisificado, como mercadoria, está divorciado dos meios de produção, das condições de sua existência, na medida em que produz uma produção que não lhe pertence, uma riqueza que lhe é estranha, que se volta contra ele e o desumaniza e, portanto, não a serviço dele e das condições de sua existência e 7. esse indivíduo egoísta, coisificado, rompido com o outro, possui apenas uma comunidade ilusória, uma totalidade fictícia, que é a própria sociedade moderna e sua organização política, o Estado. Vimos, logo no início, que o indivíduo é, imediatamente, um ser concreto, um ente natural consciente, que dizer, que a naturalidade, a fisiologia, o corporeidade, é um aspecto insuprimível dele, que ele, para existir, precisa, pois, satisfazer as suas necessidades fisiológicas, como comer, beber, procriar-se, vestir-se, habitar, ou seja, produzir e reproduzir as condições de sua existência. Na Ideologia Alemã, enfatiza Marx: ―As premissas de onde partimos não são premissas arbitrárias, não são dogmas, mas premissas reais... elas são os indivíduos reais, sua atividade e as condições

materiais em que vivem... A primeira premissa de qualquer história humana é, evidentemente, a existência de indivíduos humanos viventes.‖ (Marx, Id. Al., p. 19) Daí sua crítica a Feuerbach, que vê o indivíduo apenas como indivíduo abstrato: ―Feuerbach [...] não entende os homens em sua determinada relação social, nem em suas determinadas condições de vida, responsáveis por torná-los aquilo que são. Desta forma, nunca chegou aos homens ativos que realmente existem, ficando no abstrato ‗o homem‘. Só chegou a reconhecer o ‗homem real, individual, corporal‘ na sensibilidade, isto é, não conheceu outras ‗relações humanas‘ ‗do homem para o homem‘, senão amor e amizade, e de forma idealizada.‖ Portanto, para Marx, o indivíduo é, em primeira instância, um ser natural vivente, um ser orgânico, possuidor de necessidades naturais e de potencialidades, que produzem as condições de sua própria vida material, os meios para satisfazer as suas necessidade vitais. O indivíduo é também um ser consciente e social, que transcende o estreito limite de sua constituição natural, biológica, pois ele não se encontra completamente pronto em sua natureza, mas se autoconstitui, se autoforma, se cria através de seu trabalho. Na distinção entre o animal e o indivíduo humano, Marx diz nos Manuscritos de 1844: ―o animal é imediatamente um com sua atividade vital. É sua atividade vital. O homem faz da sua atividade vital mesma um objeto do seu querer e da sua consciência. Tem atividade vital consciente‖ (MEF, p. 276). E mais: ―O indivíduo é o ser social. A sua expressão vital – mesmo se não aparecesse na maneira direta de uma expressão vital coletiva, realizada junto a outras – é, portanto, uma expressão e uma confirmação da vida social. A vida individual e a vida genérica do homem não são diferentes, embora a existência da vida individual seja necessariamente um modo mais especial ou mais geral da vida genérica, ou a vida genérica uma vida individual mais especial ou mais geral...‖ ―O homem é, por conseguinte, um indivíduo especial, e esta característica torna-o um indivíduo especial, e esta característica torna-o um indivíduo e um ser coletivo realmente individual‖. (Mega, vol 3, p. 117) O indivíduo humano não é exclusivamente um ser natural, mas natural humano, dotado de consciência e liberdade, que, diferentemente do animal, tem consciência de si, de sua atividade vital, de seu trabalho, e que não é passivo diante das condições naturais, mas ativo, que intervém e transforma tais condições a seu favor. Em A Questão Judaica, Marx analisa a situação do indivíduo na sociedade capitalista, que produz a sua mutilação, a sua cisão: em indivíduo egoísta, individualista, competitivo, preocupado apenas consigo mesmo, com seus interesses

privados, que é o indivíduo como burguês (bourgeois), e o indivíduo cidadão abstrato, o indivíduo genérico (citoyen), membro ilusório da comunidade política, voltado abstratamente, formalmente, para os interesses coletivos, para o bem comum. No Estado moderno, a universalidade, a generidade, localiza-se na cidadania, nos direitos humanos, mas não permite ao indivíduo fragmentado reencontrar na sua vida real a sua unidade, pois a universalidade presente nele não é concreta, efetiva, mas abstrata, formal. No Estado moderno, o indivíduo é reconhecido como cidadão, como um ser universal, mas esta idealidade universal está separada, abstraída, de sua existência real e particular.

Diz

Marx:

―Onde

o

Estado

político

alcançou

seu

verdadeiro

desenvolvimento, o homem leva, não só no pensamento, na consciência, mas na realidade, na vida, uma dupla vida – celeste e terrestre – a vida na comunidade política, em que ele vale como ser comunitário, e a vida na sociedade burguesa, em que ele é ativo como homem privado.‖1 ―No Estado [...], onde o homem vale como ser genérico, ele é o membro imaginário de uma soberania quimérica, está despojado de sua real existência individual e repleto de uma universalidade irreal.‖2 O Estado moderno faz abstração do indivíduo real e só o satisfaz de forma imaginária, abstrata. Tal Estado não pode, pois, suprimir as raízes da fragmentação e da ilusão humana; ele é, antes, a fonte da religiosidade, à medida que ele aparece, agora, como uma comunidade ilusória, como um universal abstrato, tal como o Deus cristão, como um ser ilimitado, todo poderoso, sem o qual o indivíduo não pode subsistir. O ponto de partida de Marx, para compreender a produção material da sociedade moderna burguesa, são os ―indivíduos produzindo em sociedade‖. Com isto, Marx se opõe ao indivíduo abstrato, isolado, atomístico, da sociedade capitalista, ao indivíduo independente dos seus vínculos naturais e sociais. Na sociedade capitalista, diz Marx, ―é que as várias formas de conjunto social confrontam o indivíduo como um simples meio para seus propósitos particulares, como necessidades externa. Mas a época que produz esse ponto de vista, o do indivíduo isolado, é também justamente a das até agora mais desenvolvidas relações sociais (gerais deste ponto de vista). O ser humano é no sentido mais literal um animal político, não simplesmente um animal gregário, mas um animal

1

MARX, K. Zur Judenfrage.In: MARX/ENGELS Werke (MEGA), Berlin, Dietz Verlag, 1957, v. 1. p. 354-355. 2 Ibid., p. 355. Sobre a crítica de Marx à política liberal-burguesa e ao Estado moderno, cf. também CHAGAS, Eduardo F. ―A crítica da política em Marx‖. In___: Trabalho,Filosofia e Educação no Espectro da Modernidade Tardia. Fortaleza: Edições UFC, 2007. p. 67-82.

que pode individuar-se somente no seio da sociedade.‖ (Introdução de 1857 e Grundrisse, p. 84). Também na VI Tese sobre Feuerbach, Marx mostra que o indivíduo humano não é um indivíduo isolado, abstrato, mas está situado nas relações sociais, é produto delas. Diz ele: ―a essência humana não é uma abstração inerente ao indivíduo singular. Em sua realidade, é o conjunto das relações sociais. Feuerbach, que não empreende a crítica dessa essência real, é por isto forçado ... a pressupor um indivíduo humano abstrato, isolado...‖(Ideologia Alemã, p. 127). É necessário aqui acrescentar que o indivíduo é, sim, um produto social da sociedade, mas é um produtocriador, um indivíduo ativo que cria também a sociedade. Na III Tese sobre Feuerbach, Marx deixa isto claro, ao afirmar que ―A doutrina materialista segundo a qual os homens são produtos das circunstâncias e da educação e, portanto, segundo a qual os homens transformados em produtos de outras circunstâncias e de uma educação modificada, esquece que são precisamente os homens que transformam as circunstâncias e que o próprio educador deve ser educado.‖ (Ideologia Alemã, III Tese, p. 126). Para Marx, tanto as relações sociais são relações entre indivíduos humanos, quanto a própria sociedade é produto dos indivíduos humanos. Há, portanto, uma ação recíproca entre a sociedade e o indivíduo, entre o todo e a parte, ou seja, há uma conexão necessária entre indivíduo e sociedade, a saber: o indivíduo está vinculado às relações sociais, à sociedade, que o produz, mas, ao mesmo, ele também a produz. O indivíduo não é só produto da sociedade (das relações sociais), mas é produto e produtor da mesma. Marx vê o indivíduo no seu elo com o social, dentro das relações sociais; o indivíduo em conjunto com o complexo de relações sociais. Com isto não se deve ver aqui a negação do indivíduo em Marx, pois as relações sociais são relações entre indivíduos. Mas, na sociedade capitalista, essas relações são relações de mercado, em que o valor de troca é que medeia as relações, produzindo, assim, uma esvaziamento das relações humanas, da vida humana e, por conseguinte, um total esvaziamento dos indivíduos.3 (Newton Duarte, Crítica ao Fetichismo, p. 235). Os laços sócio-culturais que uniam os indivíduos são substituídos por laços mercantis entre eles, o mundo das mercadorias e do capital, produzindo a desumanização dos próprios indivíduos. Marx não vê, portanto, o indivíduo como indivíduo em geral, fora da sociedade, mas como indivíduo determinado socialmente; o indivíduo com uma determinação

3

Cf. Newton Duarte, Crítica ao Fetichismo, p. 235.

social, a partir de suas relações sociais. Na sociedade capitalista, o indivíduo é um indivíduo determinado por esta sociedade; é pressuposto nas relações capitalistas que o constituem. De fato, na produção capitalista, o indivíduo tem uma existência particular, na medida em que tal produção implica a exclusão das diferenças qualitativas, peculiares, entre os indivíduos, ou seja, implica uma indiferença especifica para com as determinações ―naturais‖ e sociais que pertencem ao indivíduo, para as qualidades específicas dele, reduzindo-o a uma mera mercadoria entre outras, ou, melhor ainda, a uma mercadoria especial que gera valor, e o seu trabalho a mero trabalho abstrato. Nas relações de produção capitalista, marcada pela produção de troca de mercadorias, Marx mostra que ela pressupõe ―indivíduos que são indiferentes uns aos outros‖ (Grundrisse, p. 156)4 Essa indiferença dos indivíduos entre si significa que eles, na relação de troca capitalista, aparecem como ―iguais, e ao mesmo tempo indiferentes uns aos outros; qualquer outra distinção individual que possa haver não lhes diz respeito; eles são indiferentes a todos as suas outras peculiaridades individuais.‖ (Grundrisse, p. 242) Esta indiferença está relacionada com a ―igualdade‖ entre os indivíduos como mercadoria, como força de trabalho, pressuposta na produção capitalista, aparecendo o indivíduo apenas em seu caráter econômico, mercantil, e não em seu caráter qualitativo, natural e social. Em O Capital, Marx mostra que o indivíduo, na sociedade capitalista, é reduzido a caráter econômico, a agente de produção, rotulado apenas como portador e agente de valor, a saber, o capitalista e o trabalhador assalariado, como corporações, personificações, do capital e do trabalho assalariado. Diz ele: ―aqui os indivíduos são tratados somente na medida em que são as personificações de categorias econômicas, corporações de relações de classe e interesses de classe particulares.‖ (Capital I, p. 20 e 92). Os indivíduos aparecem, pois, em categorias econômicas, como ―personagens econômicos‖ (Capital I, p. 147), confrontando-se mutuamente como comprador e vendedor, como capitalista e trabalhador assalariado. O trabalhador assalariado é o realizador do trabalho abstrato, voltado para a produção de mais-valia, para a criação de valor, para a reprodução do capital, que se lhe opõe, produzindo, portanto, uma riqueza que o nega e o arruína espiritual e materialmente.

4

Sobre a individualidade nos Grundrisse de Marx, cf. o artigo de Alves, Antônio José Lopes, ―A Individualidade Moderna nos Grundrisse‖, in: Ensaios Ad Hominem. Nº 1, tomo IV – Dossiê Marx. São Paulo: Edições Ad Hominem, 2001, p. 255-307.

Em suma, essa indiferença mútua entre os indivíduos decorre da produção capitalista, que pressupõe o rompimento de todas as relações de dependência pessoais, a dissolução de distinção de sangue, de educação, gerando relações exteriores, autônomas e dilaceradas entre os indivíduos. Embora a conexão entre os indivíduos seja externa, caracterizada por indivíduos indiferentes uns aos outros, há, na sociedade capitalista, uma dependência recíproca e multifacetada dos indivíduos, que precisam do trabalho do outro para viver, e isto só é possível na conexão entre eles. Como diz Marx nos Grundrisse: ―A atividade, não considerando sua manifestação individual, e o produto da atividade, independente de seu aspecto particular, são sempre valores de troca, e valor de troca é uma generalidade na qual toda individualidade e peculiaridade são negadas e extinguidas.‖(Grundrisse, p. 157) Portanto, o que deriva da sociedade capitalista são relações exteriores entre os indivíduos, onde há uma indiferença mútua entre eles. E o próprio trabalho assume também, na sociedade capitalista, esta indiferença. Diz Marx: ―O trabalho não é este ou aquele trabalho, mas trabalho puro e simples, trabalho abstrato; absolutamente indiferente à sua especificidade particular, mas capaz de todas as especificidades ... o próprio trabalhador é absolutamente indiferente à especificidade de seu trabalho; este não tem nenhum interesse para ele como tal, mas somente na medida em que seja de fato trabalho e, como tal, um valor de uso para o capital.‖ (Grundrisse, p. 296). Em geral, em toda formação social baseada na propriedade privada, o trabalho deixa de ser uma atividade positiva, livre e consciente, com a qual o homem se identifica, e se transforma numa atividade sob o controle de um outro, numa potência negativa, estranha e hostil ao indivíduo humano. Particularmente, no capitalismo, a sociedade material que havia entre os trabalhos úteis-concretos, ligados externamente, passa a ser uma sociedade formal, artificial, articulada pelo trabalho abstrato, mas contra o trabalho útil-concreto. Então, a sociedade do capital, articulada pelo trabalho abstrato, é uma sociedade formal, artificial, que não é uma comunidade efetiva, já que ela, embora precise do trabalho útil-concreto e o conserve, está em oposição a ele, negando-o, excluindo-o. O produto do trabalho é um valor de uso, como linho, fio, casaco, cadeira, sapatos etc. Embora cadeira, sapatos sejam úteis à sociedade, o capitalismo não os produz tendo em vista simplesmente os valores de uso, mas produz esses valores de uso por serem o substrato material do valor de troca; ou seja, só produz um valor de uso que tenha um valor de troca, que seja destinado à venda, uma mercadoria de valor mais elevado do que o valor que foi necessário para produzi-la, isto

é, superior à soma dos valores dos meios de produção (matéria-prima + desgaste de ferramentas) e da força de trabalho (salário), pelos quais o capitalista ―antecipou‖ seu dinheiro no mercado. Quer dizer, no capitalismo, produz-se não só valor de uso, mas mercadoria, valor de troca, valor excedente (mais-valia). E, na medida em que a mercadoria é unidade imediata de valor de uso e valor de troca, o trabalho deixa de ser exclusivamente trabalho útil-concreto, que produz valor de uso, e se transforma em trabalho abstrato, trabalho simples, trabalho social médio, que produz valor de uso e, ao mesmo tempo, valor. O trabalho do carpinteiro, por exemplo, enquanto trabalho útil concreto, que produz valor de uso, é distinto de outros trabalhos produtivos, como o trabalho do sapateiro. Considerando-se, porém, o trabalho do carpinteiro como criador de valor, como fonte de valor, sob este aspecto, ele não difere do trabalho do sapateiro. É essa identidade que permite aos trabalhos do carpinteiro e do sapateiro constituírem partes, que diferem apenas quantitativamente, do mesmo valor global, como, por exemplo, do valor do couro, das botas, do banco de quatro pés forrado a couro. Não se trata mais, aqui, da qualidade, do conteúdo específico do trabalho, mas apenas de sua quantidade, do dispêndio da força de trabalho (Arbeitskraft), do trabalho abstrato. No capitalismo, o trabalho não aparecerá mais exclusivamente como trabalho útil-concreto, que visa à satisfação das necessidades humanas (M-D-M), mas, substancialmente, como mero gasto de força humana de trabalho, como trabalho abstrato, que tem como função específica, como expresso, a valorização do valor (D-MD‘). Trabalho abstrato não é, para Marx, nem simples generalização (generalização não posta), trabalho em geral (generalidade fisiológica, universalidade natural, como gasto de cérebro, músculos e nervos humanos), nem um constructum subjetivo do espírito, uma abstração imaginária, um conceito abstrato, ou um processo mental de abstração, exterior ao mundo, mas sim uma abstração que se opera no real, uma abstração objetiva do trabalho no capitalismo, a homogeneidade, a redução, a simplicidade, a equivalência, o comum do trabalho social cristalizado num produto, numa mercadoria, que é trocada por outra, a fim de se obter mais-valia. Marx expõe isto, de forma clara, na Introdução (Einleitung) aos Fundamentos da Crítica à Economia Política (Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie) (1857-1858): ―Essa abstração do trabalho em geral não é apenas o resultado espiritual de uma totalidade concreta de trabalhos. A indiferença para com o trabalho determinado corresponde a uma forma de sociedade na qual os indivíduos podem, com facilidade, transferir-se de um trabalho para outro, e onde o tipo determinado de trabalho é para eles algo casual e, portanto, indiferente. O trabalho,

aqui, não só na categoria, mas na realidade, não é mais do que um meio para a criação de riqueza em geral e deixou de estar organicamente ligado com os indivíduos numa particularidade, como determinação. Esse estado de coisas está mais desenvolvido na forma mais moderna da existência da sociedade burguesa – nos Estados Unidos. Aqui, então, pela primeira vez, o ponto de partida da Economia moderna, ou seja, a abstração da categoria ‗trabalho‘, ‗trabalho em geral‘, trabalho sem frase, torna-se verdadeira na prática.‖9 E, mais adiante, no capítulo I de Para a Crítica da Economia Política (Contribuição) (Zur Kritik der politischen Ökonomie) (1859), enfatiza Marx ainda: ―Esta redução aparece como uma abstração, mas é uma abstração que se realiza todos os dias no processo de produção social. A redução de todas as mercadorias em tempo de trabalho não é uma abstração maior nem ao mesmo tempo menos real do que a redução em ar de todos os corpos orgânicos‖10 Trabalho abstrato é, por um lado, trabalho simples, comum, homogêneo, indiferente às diversas variedades de trabalho, e, por outro, é trabalho socialmente necessário; é ―trabalho morto‖, trabalho contido, inserido, num produto, quer dizer, tempo de trabalho consumido na produção de coisas, de modo que o produto do trabalho (Arbeitsprodukt), o seu valor de uso, perde seu caráter particular, sua diferença qualitativa, passando a ser apenas um produto do trabalho, um quantum de tempo de trabalho cristalizado. O trabalho abstrato é, pois, a forma de trabalho particular, tipo e especificamente do modo de produção capitalista. Para entendê-lo melhor, Marx recorre à troca de mercadorias equivalentes, como, suponha-se, por exemplo, 1 cadeira = 1 par de sapatos. Como será feita a permuta entre cadeira e sapatos? Para que essas duas coisas possam ser trocadas, comparadas quantitativamente, é necessário que a forma sensível delas seja reduzida a algo homogêneo, isto é, deve haver entre elas uma igualdade, algo comum a ambas; uma grandeza comum de cadeira e de sapatos, que lhes permite serem equacionadas numa troca. Para isto, o modo de produção capitalista faz a abstração tanto das diferenças qualitativas dos produtos, das propriedades, dos atributos particulares das coisas (cor, cheiro, peso etc.), isto é, daquilo que distingue materialmente os valores de uso particulares da cadeira e dos sapatos, não sendo mais cadeira e sapatos, mas meros produtos do trabalho, quanto das formas específicas do

9

Marx, K. Einleitung zu den “Grundrisse der Kritik der polstischen Ökonomie”. In: Marx/Engels, Werke (MEGA), Bd. 42. Dietz Verlag, Berlin, 1983, p. 38-39. 10 Marx, K. Kritik der politischen Ökonomie. In: Marx/Engels, Werke (MEGA), Bd. 13..Berlin: Dietz Verlag, 1983, p. 18.

trabalho útil-concreto, que produziu essas coisas, a saber: os trabalhos concretos do carpinteiro, que fazem a cadeira, e do sapateiro, que fazem os sapatos, reduzindo-os, assim, a uma única espécie de trabalho, o trabalho humano abstrato. Como diz Marx: ―Para medir os valores de troca das mercadorias pelo tempo de trabalho que elas contêm, é preciso que os diferentes trabalhos sejam, eles próprios, reduzidos a um trabalho não diferenciado, uniforme, simples, em resumo, a um trabalho que seja qualitativamente o mesmo e só se diferencie quantitativamente.‖11 Essa abstração do trabalho útil, isto é, o trabalho concreto, indiferente ao conteúdo particular do trabalho, é o que Marx denomina de trabalho humano em geral, de dispêndio de força de trabalho humano, de ―trabalho morto‖ (materializado), trabalho passado (pretérito) ou trabalho abstrato, que está solidificado nos produtos. É, portanto, o trabalho abstrato, ou o tempo de trabalho socialmente necessário à produção, que permite que cadeira e sapatos sejam trocados, embora eles nada tenham em comum em termos de qualidade, a não ser uma qualidade homogênea, a saber, a quantidade (a duração social média do trabalho). Na obra os Grundrisse, Marx diz que o que especifica a sociedade capitalista é o valor de troca, o capital, e este determina o nexo da sociedade, o convívio social entre os indivíduos, fazendo com que estes assumam a forma de coisa. Diz ele: ―A dependência mútua e generalizada dos indivíduos reciprocamente indiferentes forma a sua conexão social. Esta conexão social está expressa no valor de troca [...], isto é, num universal, no qual toda individualidade, toda particularidade, é negada e cancelada.‖ 5 E mais: ―O caráter social da atividade, tal como a forma social do produto e a participação do indivíduo na produção, aparece aqui como algo estranho e com caráter de coisa frente aos indivíduos; não como seu estar reciprocamente relacionados, mas como seu estar subordinados a relações que subsistem independentemente deles e nascem do choque dos indivíduos reciprocamente indiferentes. O intercâmbio geral das atividades e dos produtos, que se converte em condição de vida para cada indivíduo particular e é sua conexão recíproca com os outros, aparece a eles próprios como algo estranho, independente, como uma coisa. No valor de troca, o vínculo social entre as pessoas transforma-se em relação social entre coisas; a capacidade pessoal, em uma capacidade das coisas‖.6 Marx destaca aqui a indistinção, a indiferença, o alheamento, como a característica particular do indivíduo na sociedade capitalista. É o capital, o valor de

11

Ibid., p. 18. ___., p 90-91. 6 ___., p 91. 5

troca, o dinheiro, que medeia as relações sociais, anulando as diversidades, as diferenças sociais dos indivíduos ou tornando-as indiferentes. Essa indiferenciação entre os indivíduos, na sociedade capitalista, é uma consequência do modo de produção capitalista que elimina não só as características específicas, as determinações particulares em relação aos indivíduos e as diferenças qualitativas dos produtos, das propriedades, dos atributos particulares das coisas (cor, cheiro, peso etc.), isto é, daquilo que distingue materialmente os valores de uso particulares das coisas, tornando-as meras mercadorias, como também as formas específicas do trabalho útil-concreto, reduzindo-os, assim, a uma única espécie de trabalho, o trabalho humano abstrato.7 Portanto, nas condições do capitalismo, o indivíduo se determina como força de trabalho, como mercadoria, como coisa. E como coisa, as relações entre os indivíduos se transformam em relações entre coisas; cada um é indiferente ao outro, está separado dos demais, levando o indivíduo a um completo isolamento social, a uma ausência de comunidade. Essa extinção das diferenças naturais e sociais entre os indivíduos, que está na base da produção de mercadorias na sociedade capitalista, implica no fetichismo dos próprios indivíduos. O indivíduo tem a mesma forma de coisa, e as relações entre os indivíduos aparecem como relações entre coisas. Embora os indivíduos não sejam coisas, pois eles são ativos e tem consciência e vontade, a produção capitalista produz, no entanto, uma individualidade específica, indivíduos que se assemelham às mercadorias como ―coisas dotadas de sentido e que são ao mesmo tempo suprasensíveis ou sociais‖. (Capital I, p. 165). Um texto importante sobre o indivíduo coisificado, reificado, é, precisamente, ―O Caráter Fetichista da Mercadoria e o seu Segredo‖, publicado em O Capital. Investigando o fetichismo da mercadoria, Marx observa que o caráter ―místico‖, ―enigmático‖, da mercadoria não provém de seu valor de uso, mas da forma do valor, do valor de troca. Assim ele descreve o fenômeno do fetichismo da mercadoria: ―O mistério da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens as características sociais de seu próprio trabalho como características objetivas dos produtos do trabalho mesmo, como qualidades naturais sociais destas coisas, por isso, também reflete a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social de objetos, que existe fora

7

Sobre a distinção entre trabalho útil-concreto e trabalho abstrato em Marx, cf. CHAGAS, Eduardo F. ―A natureza dúplice do trabalho em Marx: Trabalho útil-concreto e trabalho abstrato.‖ In: Revista Outubro, nº. 19, 2011, p. 61-80.

deles. Por meio desses quiproquós os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sociais, sensíveis e suprasensíveis. [...] É apenas a relação social determinada dos próprios homens, tomada aqui por eles como a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas.‖ ―Já que os produtores somente entram em contato social mediante a troca dos produtos de seu trabalho, também as características especificamente sociais de seus trabalhos privados só aparecem dentro dessa troca. [...] Por isso, aos últimos [aos produtores], as relações sociais entre seus trabalhos privados aparecem como o que elas são, isto é, não como relações imediatamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos, mas, pelo contrário, como relações reificadas entre as pessoas e relações sociais entre as coisas.‖8 Marx enfatiza, aqui, o drama do indivíduo no mundo moderno, pois, no processo produtivo de mercadorias, cria-se uma objetividade que anula os próprios indivíduos. Nessas condições fetichizadas, os indivíduos enquanto indivíduos são abolidos e se tornam coisas vivas (de ordem mercadológica), e os produtos de seu trabalho, as mercadorias, aparecem como atributos de si mesmas, autonomizadas, dotadas de um poder sobrenatural, ocultando, assim, a sua origem, a sua fonte, isto é, o trabalho social que as fundamenta. O indivíduo que Marx tem em vista não é esse indivíduo individualista, isolado, indiferente, egoísta, que aceita a si como tal, conformado com o seu fetichismo, a sua coisificação e o seu estranhamento; não é o indivíduo pobre em conteúdo, limitado à luta pela sobrevivência imediata, mas o indivíduo multifacetado, plenamente constituído, livre, universal, consciente e não estranhado. Para isto, é necessário, na perspectiva de Marx, o controle coletivo das forças produtivas, da produção a serviço de todos, ou da maioria, para que os indivíduos possam dedicar a maior parte de suas energias físicas e espirituais às atividades criativas, nas quais eles possam se enriquecerem e se desenvolverem como indivíduos humanos, plenamente humanos. Ou seja, Marx acredita que o desenvolvimento das forças produtivas e o domínio delas a serviço da coletividade criariam as condições materiais e subjetivas para a universalização do indivíduo humano. (Newton Duarte, Crítica ao Fetichismo, p. 234).

8

MARX, K. Das Kapital. Op. cit., p. 86-87.

Educação e Indivíduo Pragmático na Crise Capitalista Contemporânea Rômulo Soares

Caracterização da crise Nossa exposição tematiza as relações complexas e contraditórias entre educação escolar, indivíduo e sociedade, no contexto da crise capitalista contemporânea. Analisamos os fundamentos da sociedade erigida e administrada pela burguesia e seus colaboradores, a exemplo dos reformistas pragmáticos, seu modelo escolar e a forma como esta classe dominante concebeu a individualidade nos marcos das relações sociais alienadas. Elegemos como objeto de estudo o indivíduo forjado no processo histórico, com a colaboração da escola capitalista, que, na perspectiva da burguesia, serve de instrumento às tentativas de superação da crise em relevo. Diante disto, situaremos, em linhas gerais, e nos limites de espaço desta exposição, o quadro gerador da crise atual e seus contornos mais significativos para efeito de nossa abordagem. Conforme Meszáros (2002), para além das aparências das explicações midiáticas correntes, a crise capitalista em ato encontra sua gênese na essência do próprio sistema, ancorado na propriedade privada, na divisão e na exploração do trabalho, na mercantilização da vida humana e natural, na produção destrutiva, dentre outros aspectos relevantes. Segundo o pensador marxista distintamente das crises cíclicas do capitalismo do passado, a crise contemporânea atinge de maneira profunda o sistema do capital, revelando-se como estrutural ou crônica. Dessa maneira, o reformismo pragmático, seja na versão de John Dewey ou na de Richard Rorty, desconhece um fato adverso às vãs tentativas de humanizar as relações sociais capitalistas e de reformar a educação: de acordo com Mészáros, a crise estrutural



Doutor em Educação – UFC; Professor da Universidade Estadual do Ceará – UECE; Centro de Educação; Curso de Pedagogia.

revelou a incorrigibilidade do sistema do capital! Amparados na obra do filósofo húngaro, inferimos: a concentração e a centralização de riquezas, fundamento da lógica economicista-produtivista de reprodução ampliada do capital, impôs a desumanização dos seres humanos, criando e aprofundando contradições históricas, ora insolúveis sob sua própria forma de controle sóciometabólico, pondo os seres humanos num beco sem saída, pois, sob a égide do domínio do capital, somente nos resta a barbárie e a ―(...) própria sobrevivência da humanidade‖ (MÉSZÁROS, 2003, p. 150) se vê ameaçada. Para Mészáros, diante da extrema exploração da natureza e dos seres humanos, da contraditória convivência com ciclos viciosos de abundância e escassez e da produção destrutiva, o caráter civilizatório do capital atingiu seu apogeu, exigindo da humanidade uma nova forma sociometabólica de organização da vida econômico-social e educacional: o socialismo. De modo mais imediato, a crise em pauta, advém da década de 1970, com o prenúncio do colapso do Estado de Bem Estar Social, tornado fato nos anos 80, do século passado e de maneira mais clara, nos últimos meses de 2011, quando assistimos ao possível desmoronamento de economias consideradas sólidas pelos organismos de análise econômica, como as dos países da zona do euro, a exemplo da Itália, da Espanha, de Portugal e da França, após a recente tragédia grega, vivida com dor e sangue, diante da qual, os escritos de Shakespeare parecem contos de fadas com final feliz. Nesse momento crítico do capitalismo, devemos voltar nossa atenção para a grave crise nos Estados Unidos, centro do império, inclusive para os movimentos sociais mobilizados contra o poder das grandes corporações e dos bancos, não somente nos Estados Unidos, como em mais de oitenta países. A título de provocação, lembramos que Mészáros (2003) sugere: por mais polêmico e surpreendente que possa parecer, o futuro do socialismo será decidido nos Estados Unidos. Os indignados de Wall Street apontam essa possibilidade? Cumpre lembrar: após o fim do Estado de Bem Estar Social, o Estado mínimo para os interesses sociais e o Estado macro para os interesses do capital, funcionou como regra, na qual o capitalismo financeirizado afanou os cofres públicos, seja através de privatizações suspeitas, de empréstimos benevolentes, de calotes de dividas ou concordatas altamente rentáveis, ou ainda pela isenção de impostos, dentre outros métodos protecionistas do capital, aprofundando a crise. Ademais, a referida crise se distingue igualmente pelo desemprego estrutural ou crônico e pela dependência do

capital da ajuda externa (estatal), que segundo Mészáros alcançou o limite sistêmico, pois, por sua vez, o Estado esgotou seus recursos. Isto ocorre num contexto no qual as grandes corporações tornaram-se imensamente poderosas, verdadeiras proprietárias de Estados nacionais, decidindo sobre eleições de presidentes, governadores e prefeitos, como informa Pochmann, ―(...) sugando como carrapatos, parcela crescente do orçamento público (...)‖ (POCHMANN, 2011, p. 7). Entrementes, os trabalhadores pagaram e pagam as contas, vendo negados seus direitos básicos, inclusive o direito a uma educação integral, de tempo integral e transformadora. Aos mesmos, tem sido imposta uma educação limitada ao trato com saberes básicos e instrumentais aos interesses do capital em crise, por nós qualificada como uma educação para a ilusão de aprender a empreender com vistas ao sucesso individual, como advoga, por exemplo, a propalada pedagogia das competências em seu afã pragmático. Nestes termos, o declínio do modelo taylorista-fordista e a assunção do modelo toyotista, nos anos 1980 e 1990, impôs uma nova pedagogia no chão da fábrica, propagando a flexibilidade da produção e do trabalhador, o trabalho em grupo, a criatividade e a participação. A constituição de uma nova subjetividade seria necessária com a colaboração, não somente dos trabalhadores, nas organizações, mas fundamentalmente da educação escolar, na qual a redefinição dos currículos e a formação dos professores despontam como aspectos estratégicos com vistas a atingir este fim. Nesses termos, a reabilitação do pragmatismo escolanovista, articulado com um tecnicismo renovado, responde às necessidades economicistas da chamada era digital, marcada por cursos aligeirados e à distância e pelo abandono dos conhecimentos clássicos das ciências, da filosofia e da arte, substituídos pelos saberes utilitários da experiência. Fabrica-se, portanto, uma educação ideologizada e adaptativa, criadora de ilusões com o modus operandi empresarial, na qual o empreendedorismo se espraia de maneira vulgar e descolada da realidade, como ilustra o ensino técnico hoje propagado pelos organismos internacionais como a Organização das Nações Unidas - ONU e o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento – BIRD (Banco Mundial – BM) e pelos governos nacionais e locais, a exemplo das escolas profissionalizantes de tempo integral no Estado do Ceará, orientadas política e pedagogicamente pela Tecnologia Empresarial Socioeducacional – TESE, Uma nova escola para a juventude brasileira, elaborada conforme os princípios empresariais da Fundação Odebrecht e vendida como

a tábua de salvação das crianças e jovens oriundos do povo cearense. Neste sentido, a educação escolar, denominada de cidadã, pelos referidos órgãos e pelos governos, contribui sobremaneira para formar uma subjetividade passiva conformada à realidade, especialmente através da suposta inclusão do chamado cidadão planetário nas malhas das relações sociais, sob a insígnia de indivíduos praticistas de segunda ou terceira classes, servidores passivos do mercado. Educação e individualidade Assentados em Marx, consideramos o indivíduo em sua vida cotidiana e em constante atividade criativa e transformadora. Noutras palavras, analisamos o indivíduo em sua práxis sócio-histórica, intentando elevar nosso pensamento ao ponto em que, pelo exercício da atividade crítica, compreendamos o indivíduo para além do pragmatismo cotidiano, como nos adverte Heller, secundada em Marx, qual seja na forma de um concreto pensado. Desse modo, seguimos a trilha traçada por Marx e Engels, no clássico A ideologia Alemã, buscando nos libertar do empirismo, doutrina pretensamente prática, mas essencialmente abstrata, pois não opera com o concreto pensado, contentando-se com os dados provindos dos sentidos e da ―(...) ação imaginária de sujeitos imaginários, tal como é para os idealistas‖ (MARX e ENGELS, 1989, p. 22). Lembramos: para Marx, o indivíduo é enraizado na sociedade e a raiz da sociedade é o próprio homem. Destarte, tratamos não de um indivíduo atomizado, nem de robsionadas, como explicam Marx e Engels, na obra a pouco mencionada, pois, como nos adverte Heller, o indivíduo somente existe em sociedade. Deste modo, somos convidados, pela realidade analisada sob a ótica marxista, a compreender o indivíduo não somente em sua vida particular, mas nos marcos das circunstâncias históricas e sociais de produção e reprodução de sua existência. Assim, gênero humano e individualidade, objetividade e subjetividade articulam-se de maneira interdependentes na totalidade complexa da vida social, mediadas de modo dialético pelas relações dos seres humanos entre si e destes com a natureza, especialmente no contraditório mundo do trabalho, mas também nas esferas da ética e da estética. Na esteira de Marx, Vázquez compreende o individuo como ser social e ―(...) não (é) um aglomerado de átomos sociais (...)‖ (VÁZQUEZ, 2008, p. 173), como o

apresenta o liberalismo, pois indivíduo e sociedade possuem implicações dialéticas recíprocas. O filósofo mexicano-espanhol acentua que somente a participação ativa do indivíduo em nome dos interesses coletivos, poderá superar essa separação de interesses entre sociedade e individuo. Isso se dá em condições históricas e sociais específicas e depende dessas mesmas condições para poder realizar-se. Nesse caso, a educação pode contribuir através do trabalho com a herança cultural e com a elevação da consciência crítica dos indivíduos. Entretanto, nos marcos do imediatismo economicista pragmático há uma imposição ao produtivismo, como se a vida fosse mera existência imediata, dessencializando o homem, negando seu ser genérico, reconhecendo-o apenas como ser fabricador e utilizador de instrumentos, relegando o indivíduo a uma vida quase somente física e animal, na qual o pensamento se desenvolve de modo raso e utilitário. Isso resvala em uma prática pedagógica superficial, empobrecedora das capacidades humanas e afeita a uma crítica limitada ao aperfeiçoamento das relações de dominação existentes, aos moldes do (neo)pragmatismo. Na crítica ao materialismo mecanicista de Feuerbach e ao idealismo hegeliano, Marx e Engels nos ensinam: o indivíduo é um ser ao mesmo tempo teórico e prático, crítico e transformador, capaz de desenvolver potencialidades infinitas de afirmação de sua humanidade. Nesses termos, a educação escolar pode contribuir sobremaneira para a formação integral dos seres humanos em constante crescimento físico e intelectual, de modo a engendrar as condições superadoras dos problemas reais impostos pelas circunstâncias históricas. Corroborando com essa ideia, Vázquez informa: ―Segundo Marx, o homem real é, unidade indissolúvel, um ser espiritual e sensível, natural e propriamente humano, teórico e prático, objetivo e subjetivo. O homem é, antes de tudo práxis (...)‖ (2008, p. 291) e histórico. Daí decorre nossa recusa à formação do individuo meramente prático, por meio da escola, nos marcos da educação (neo)pragmática, pois, para Vázquez, o pragmatismo americano, por identificar verdade com utilidade ou êxito, representa a nível filosófico uma ética egoísta, ligada ao espírito empresarial e ―(...) rejeitando a existência de valores ou normas objetivas, apresenta-se como mais uma versão do subjetivismo e do irracionalismo‖ (2008, p. 288). Desse modo, nossa reflexão não separa o desenvolvimento da individualidade, do processo socializador da educação, nem da crise econômico-social capitalismo hodierno. Intentamos realizar esta análise considerando a totalidade da vida sócio-

humana e a riqueza de suas inter-relações. Para atingirmos este fim, perseguimos uma abordagem comprometida em compreender as raízes do fenômeno em questão, na forma de uma totalidade concreta, como nos explica Kosik (1995). Temos clareza que essa via não é de fácil acesso, pois, vivemos o ―Monopólio da aparência‖ (DEBORD, 1997, p. 17), portanto do pensamento pragmático e vazio de conteúdo. Vivemos sob o domínio de uma concepção filosófica, o (neo)pragmatismo, que reserva à ciência caráter técnico prático-instrumental, focada em resultados, como registra Japiassu (2001). Para o referido autor, o neopragmatismo contextualista de Rorty, ao reabilitar o senso comum, desqualifica a universalidade e toma a verdade como conversação entre sujeitos em consenso localista e prático, comprometendo o conhecimento da verdade. Por outro lado a filosofia política rortyana, revela-se atrelada aos poderes instituídos pelo capital, conquanto o autor neopragmático assuma a aparência de um intelectual crítico. Liberal assumido, Rorty considera os Estados Unidos como a melhor forma de sociedade existente até hoje. Segundo Japiassu, Rorty (...) converte-se no ideólogo de uma ética incapaz de tomar o indivíduo como um ser livre e soberano, mas como alguém devendo viver sua liberdade como um simples complemento instrumental dos dispositivos maximizadores das ‗vantagens‘ e ‗gozos‘ individual, realizando espasmodicamente os gestos que lhe impõe o campo sócio-histórico: ganhar dinheiro, levar vantagem, consumir, gozar, etc (JAPIASSU, 2008, p. 144).

Além de não acreditar na emancipação, Rorty (1999, p. 130) critica o que considera ―Estes esforços fúteis para filosofar (...)‖. Afirma também que não precisamos fundamentar nada, pois o filósofo deve ser intencionalmente periférico. Nos moldes do neopragmatismo rortyano, o indivíduo torna-se um consumidor de objetos e um consumidor de ilusões, vivendo uma falsa vida. Uma sobrevida voltada para o aqui e agora, cúmplice com a alienação do presente e sem compromissos com o futuro. Portanto, defendemos a tese segundo a qual o pragmatismo é a filosofia dos tempos de crise do capitalismo nos quais o indivíduo se vê atacado em seu ser genérico e na sua individualidade, sem autonomia, sem liberdade. Nas condições específicas da crise atual, a formação passou a confundir-se com armazenamento de informações úteis e abreviadas, realizada em cursos à distância e aplicáveis à prática corriqueira, mormente em finais de semana ou em período de férias escolares. Nesses, a conceituação da realidade é substituída pela opinião, pela experiência ou pela prática

sem fundamentos. Nota-se nesse processo o elogio ao espontaneísmo das falas desligadas dos fundamentos das ciências e da análise profunda da vida real com suas relações contraditórias e conflitantes, fincadas na alienação do cotidiano. Conquanto receba a capa de ensino crítico e participativo, essas práticas educativas ensinam para a obediência aos padrões estabelecidos, para a reprodução da ordem dominante, para a manutenção das relações de exploração de classe, reproduzindo assim, a velha pedagogia dos pobres lincada num fazer limitado e folclórico, afeito a brincadeiras denominadas de ludismo, como denuncia Lepape (1975). Nesse sentido, na relação entre professor e alunos um elo perdeu-se, pois o sistema descaracterizou a práxis pedagógica, esvaziando-a ao nível do senso comum ao invés de elevar os alunos ao nível do mestre. O caminho apontado pelas práticas pedagógicas da moda, a exemplo das pedagogias do aprender a aprender, é o do rebaixamento da reflexão do professor ao nível infantil. A práxis educativa perde sua maioridade e o professor declina de sua função de ensinar, pois a práxis educativa quedou relativizada, em nível de conhecimento, rebaixada, na medida em que o professor abriu mão de seu papel de organizador e articulador da reflexão crítica acerca do conhecimento acumulado e jogou nas mãos dos alunos a responsabilidade sobre o ato educativo, num cristalino espontaneísmo. O recuo da teoria, denunciado por Moraes, afeta a formação humana, empobrecendo os indivíduos, comprometendo o acesso ao conhecimento, seja da língua pátria, na qual os alunos demonstram parco condimento da gramática, da literatura e do desenvolvimento da escrita meramente formal e muito menos de uma escrita questionadora e criativa, como da história e da memória histórica, da geografia e da memória geográfica, especialmente numa época de luta pelo espaço geográfico e de redefinições de mapas, como os últimos trinta anos. Ademais, carecem do domínio mínimo das operações lógico-matemática, como do conhecimento físico-químico e, sobretudo da sensibilidade artístico-cultural, pois a lógica da abordagem escolar fundamenta-se nas relações mercadológicas dominantes, obviamente, inumanas. Quando o objetivo é aprender a fazer para tornar-se útil e quando se prioriza a formação do empreendedor, os fins mercantis justificam os meios e o conhecimento transforma-se em saberes da experiência, práticos, instrumentais, pobremente articulados, superficiais, funcionais.

Longe está o incentivo ao cultivo do espírito, à uma formação cultural sólida, fundamentada no melhor conhecimento histórico, filosófico, artístico e ligado às bases de todas as ciências. Como nos adverte Saviani, a escola precisa ensinar o conhecimento mais elaborado e em consonância com a vida real do povo e suas necessidades de alimentação, habitação, vestuário, fruição. Para nós, essa escola seria bela, trabalharia o jogo e as brincadeiras, como forma de educar e deveria ser alegre. Além disto, mobilizaria as energias físicas e mentais das crianças e jovens, operando na zona de desenvolvimento próximo, como explica Vigotsky, incentivando a criatividade e elevando o conhecimento. A escola é um espaço de formação da individualidade, não o lugar de formação do pequeno empresário, do homem de negócios. Dessa forma, a escola funciona como meio de introjeção da lógica competitiva do capitalismo em crise. Em nosso horizonte, a escola é lugar de formação de sujeitos omnilaterais, ricos de conhecimento, capazes de operar como filósofos, químicos, pedagogos ou médicos, dentre outras profissões, mas sempre senhores de suas decisões conscientes, pois fundamentados em conhecimentos largos, não meramente mecânicos e fragmentados. É ainda lugar da formação de educandos dominadores da ciência e da técnica, sabedores do valor social do conhecimento e pondo-o à serviço da coletividade. Mas como realizarmos esta proposta, se estamos na era do império dos bancos na educação, inaugurada por volta dos anos 70, do século XX, quando o BM passou a operar de modo mais incisivo no setor educacional, tornando-se uma espécie de ministério mundial da educação dos países periféricos, como registrado por Leher? Nesta época imperial dos bancos, na educação, destacamos o empenho do Banco Central do Brasil em implantar projetos de educação financeira nas escolas públicas brasileiras, com a participação de bancos privados, como o Unibanco. O que podemos esperar de uma época na qual as instituições financeiras decidem os destinos da educação? A formação ilusória do empreendedor? A propagação da livre iniciativa entre os alunos da escola pública? A divulgação das regras do mercado como as mais adequadas para as relações entre os indivíduos, no caso os alunos filhos dos trabalhadores? Até aqui nos referimos ao indivíduo prático, que nos marcos do capitalismo se confunde com o individuo praticista, unilateral, fragmentado, partido, como escreve Drummond no poema Nosso Tempo. Na lógica capitalista a prática do indivíduo se

relaciona à utilidade ligada às necessidades reprodutivas do capital, portanto, relacionada à exploração dos trabalhadores e ao lucro dos patrões. Como demonstra Marx, na extensão de sua obra, o indivíduo só recebe valor enquanto produz valor, embora perca valor à medida que produz mais valor. Por sua vez, a individualidade emancipada dos grilhões do capital encontraria possibilidades de desenvolvimento sem precedentes, inserida numa práxis relacionada às verdadeiras necessidades humanas. Nesse sentido, a prática diz respeito à cadeia complexa de atividades humanas no processo de constante de humanização dos homens, permitindo um tipo de desenvolvimento omnilateral, sem a imposição de atividades exclusivas, no qual o indivíduo (...) pode se aperfeiçoar no ramo que lhe agradar (...) o que cria para mim a possibilidade de hoje fazer uma coisa, amanhã outra, caçar de manhã, pescar na parte da tarde, cuidar do gado ao anoitecer, fazer crítica após as refeições, a meu bel prazer, sem nunca me tornar caçador, pescador ou crítico‖. Assim, teoria e prática corporificam-se num par dialético, promovendo o livre desenvolvimento das potencialidades humanas, certamente ilimitadas (MARX & ENGELS, 1989, p. 29).

Mas, ao contrário, as relações de dominação do capital, materializadas especialmente em grandes corporações transnacionais e em Estados poderosos, impõem ao indivíduo uma vida empobrecida de conteúdo, provocando um vazio teórico paralisador da criatividade, pois, em nome do lucro, o capital produz e reproduz, reduzindo as atividades humanas a simples cópias de modelos, como ocorre na engenharia, na moda, na educação, na indústria cultural e em outros setores. Nesse contexto, reina a mercadoria, personificada em diferentes objetos, como um computador, ou uma cadeira; no corpo humano, posto à exploração, seja nas fábricas ou na prostituição feminina ou masculina, adulta ou infantil; nas drogas mortais, a exemplo do crack; na educação escolar e universitária, dentre outras. No mercado, todas possuem igual estatuto à disposição dos consumidores. Ao utilitarismo do capital, importa o indivíduo prático, no sentido mais desqualificado ou pobre do termo. Assim, o indivíduo necessita apenas saber fazer algo, ou seja, executar as tarefas determinadas pela hierarquia, garantindo perdas mínimas ou perda zero na produção. Está claro, portanto, que o antiteoricismo pragmático produz o rebaixamento cultural da individualidade exposta à atividade educativa sob suas premissas praticistas e de resultados.

O pragmatismo educacional e a formação do indivíduo prático No contexto do liberalismo deweyano, adotado por Anísio Teixeira, no Brasil, o individuo pragmático insere-se nas relações sociais objetivando aperfeiçoá-las e humanizá-las. Nesse sentido, a educação escolar surge como elemento primordial para formar as subjetividades propícias à sociedade democrática a qual defendem. No formato de uma comunidade em miniatura, a escola redireciona as atividades dos indivíduos de modo a sensibilizá-los para a vida comunitária e a participação cidadã nos organismos sociais. Em seu percurso idealista, Dewey pretende reatar os liames quebrados entre os indivíduos e a comunidade, apresentando essa cisão como mera disfunção das relações sociais, desconhecendo, como descreve Heller, que, na sociedade burguesa, diante das relações desiguais de classes, ―(...) o homem converteu-se em um ser social não necessariamente comunitário, (HELLER, 2004, p. 73). Para a filósofa húngara, o alimento do individualismo burguês é o distanciamento da comunidade. Para Heller, o indivíduo nasce e vive sem vida comunitária, sendo esse, seu ideal de vida, identificado por ele, como liberdade pessoal. Nesse sentido, esclarece Heller, imperam os interesses privados e egoístas do individualismo sobre os interesses gerais e comunitários. Já na perspectiva de Dewey, há indivíduos desajustados necessitando ser integrados à ordem como pessoas, não como sujeitos vitimados pela lógica corrente e com potencial superador dela. Em consequência, o reformismo pragmático deweyano aponta para ações assistencialistas para os desajustados e complacência para os dominantes, esperando destes atos humanizadores das relações sociais, pelo esclarecimento. Porém, Para Heller (2004, p. 80), O homem torna-se indivíduo na medida em que produz uma síntese em seu eu, em que, transforma conscientemente os objetivos e aspirações sociais em objetivos e aspirações particulares de si mesmo e que, desse modo, ‗socializa‘ sua particularidade.

De acordo com a filósofa supracitada, a experiência educativo-comunitária de Makarenko na Colônia Górki, na Rússia revolucionária, ao contrário da comunidade em miniatura de Dewey, representa a possibilidade de encontro do individuo com o gênero humano, pois a experiência de Makarenko apresenta uma comunidade de conteúdo axiológico positivo, na qual os sujeitos encontram possibilidades concretas de

desenvolvimento de suas individualidades na comunidade, superando assim o conflito entre interesses individuais e gerais. Na esteira de Heller, Duarte (1993) compreende a educação escolar como elo mediador entre as esferas da cotidianidade e as esferas não cotidianas da vida social, ou seja, a arte, a filosofia e a ciência. Dessa feita, a atividade prática do individuo só se eleva ao nível da práxis, quando é atividade humano-genérica consciente, na unidade viva de particularidade e genericidade, ou seja, na cotidianidade, a atividade individual não é mais do que uma parte da práxis, da ação total da humanidade, pois A individualidade e as formas dos indivíduos se relacionarem estão condicionadas histórica e socialmente. O modo pelo qual produzem ou se inserem no modo de produção, sua vinculação com os órgãos do poder, sua maneira de amar e de enfrentar a morte, seus gostos e preferências estão condicionados socialmente. No indivíduo, se sintetiza toda uma série de relações sociais. (VÁZQUEZ, 1977, p. 331).

Ao passo em que o capitalismo investe no praticismo para tentar superar a crise, a profundidade da mesma exige, para superação dos sinuosos problemas criados pelo sistema do capital, abordagens profundas que examinem suas raízes, não somente a superficialidade. Como expressa Kosik, a totalidade concreta é composta de aparência e essência, donde a aparência apresenta elementos de verdade, mas também de enganos. Para

apreender

a

realidade

e

seus

nexos,

precisamos

romper

com

a

pseudoconcreticidade do fático, das maquiagens, compreendendo o real par além dos jogos de cena ou dos jogos de linguagens. Somente sujeitos com capacidade de análise totalizante, com profundidade de conhecimento da realidade, poderão expressar o caminho de superação da inédita crise a qual vivenciamos neste século XXI, mas herdada das relações de exploração do século passado. Estes defenderão outra lógica de organização social, contrária, portanto, ao esvaziamento da consciência, ao parasitismo do pensamento e a favor da igualdade entre os seres humanos. Essa igualdade pressupõe acesso igualitário e solidário aos bens materais e culturais, por parte de todos os povos, raças e etnias, como o direito inquestionável de viver livremente a individualidade no campo da sexualidade e do prazer, resultando na existência de indivíduos plenamente desenvolvidos. Acerca da crise capitalista em curso e do esvaziamento do humano, corroboramos com Freitas, quando nos explica: Não é relevante definirmos quanto tempo ainda tem o capitalismo. O relevante é definirmos quanto tempo nós ainda temos, antes que (...) o sistema desabe sobre nossas cabeças. Não precisamos de rotas de fuga –

quando o sistema ruir não haverá para onde fugir. Precisamos de rotas de enfrentamento e combate agora (FREITAS, 2005, p. 107).

Nessa época de crise capitalista e de imposição neopragmática, a individualidade alienada domina historicamente a vida sócio-econômica na qual a apropriação privada dos bens matérias e culturais e a exploração dos trabalhadores funcionam como a regra mestra das relações entre os seres humanos. Se na fábrica o trabalhador encontra seu algoz: o patrão e as normas hierárquicas de trabalho, na escola, seus filhos encontram a negação histórica do conhecimento, realizada através de uma série de relações complexas que impedem os filhos dos trabalhadores de acessarem a mais elevada cultura escolar. Na condição de educadores, precisamos nos unir aos lutadores sociais, objetivando efetivar atividades mediadoras, que, em meio às contradições atuais, garantam aos trabalhadores e aos seus filhos a compreensão crítica das relações sociais vigentes e a necessidade urgente de transformá-las a favor do desenvolvimento de individualidades plenas, construtoras de uma vida nova de sentido emancipador. Lembrando sempre, que, para além do limitado dualismo pragmático, ―a vida cotidiana é a vida do homem do homem inteiro: ou seja, o homem participa na vida cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de sua personalidade‖ (Heller, 2004, p. 17). Somente como seres inteiros poderemos enfrentar a enorme tarefa de mudar a vida e criar o desenvolvimento superior da individualidade na qual o indivíduo se enlaça com a universalidade humana, portanto, com sua essencialidade.

Referências ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. São Paulo, SP: Record, 2001. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Tradução: Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. DEWEY, John. Democracia e educação. Introdução à filosofia da educação. Tradução: Godofredo Rangel e Anísio Teixeira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959. DUARTE, Newton. A individualidade para si. Contribuição a uma teoria históricosocial da formação do indivíduo. Campinas, SP: Editora Autores Associados, 1993 (coleção educação contemporânea). FREITAS, Luis. Carlos de. Uma pós-modernidade de libertação. Reconstruindo as esperanças Campinas, SP: Autores Associados, 2005. (Coleção Polêmicas do Nosso tempo).

HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. Tradução: Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004. INSTITUTO DE CO-RESPONSABILIDADE PELA EDUCAÇÃO-ICE. Modelo de gestão – Tecnologia Empresarial Socioeducacional (TESE). Uma Nova Escola para a Juventude Brasileira. Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral. Recife, PE. Disponível em: www.ccv.ufc.br/newpage/seduc2010/seduc_prof/dowload/manual_Modelogestao.pdf Acesso: 10/10/2011. JAPIASSU, Hilton. Nem tudo é relativo. A questão da verdade. São Paulo: Editora Letras & Letras, 2001. KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Tradução: Célia Neves, Alderico Toríbio. São Paulo: Paz e Terra, 1995. LEHER, Roberto. Da ideologia do desenvolvimento à ideologia da globalização: a educação como estratégia do Banco Mundial para ―alívio à pobreza‖. 1998. Tese (Doutorado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo. LEPAPE, Marie. Claire. Pedagogia e Pedagogias. Tradução de Agostinho Trindade de Sousa. [S.l.]. Empresa Norte editora, biblioteca 70, 1975. MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Tradução: Luis Claudio de Castro e Costa. São Paulo: Martins Fontes, 1989. MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Textos sobre educação e ensino. São Paulo: editora Moraes, 1992. MÉSZÁROS, István. Produção destrutiva e estado capitalista. São Paulo: Ensaio, 1989. MÉSZÁROS, István. Para além do capital. Tradução: Paulo Sérgio Castanheira, Sérgio Lessa. São Paulo: Boitempo; Campinas: Editora da UNICAMP, 2002. MÉSZÁROS, István. O século XXI: Socialismo ou barbárie? Tradução: Paulo César Castanheira. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003. MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. Tradução: Isa Tavares. São Paulo: Boitempo, 2005. MORAES, Maria. Célia. Marcondes de. (Org.) Iluminismo às avessas. Produção de conhecimento e políticas de formação docente. Rio de janeiro, DP&A, 2003. POCHMANN, Marcio. Transformações do capitalismo. IN: Le Monde diplomatique Brasil. São Paulo, SP: Instituto Pólis, Ano 5, n. 51, pág. 6, 7, Out. 2011. REVISTA ÉPOCA. Dívida da zona do euro diminui no 3º trimestre de 2011. Disponível em www.epocanegocios.globo.com/revista. Acesso: 10/02/2012. RORTY, Richard. Para realizar a América: o pensamento de esquerda no século XX na América. Tradução: Paulo Ghiraldelli Jr., Alberto Tosi Rodrigues e Leoni Henning. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 1999.

SAVIANI, Dermeval. História das ideias pedagógicas no Brasil. Campinas: SP: Autores Associados, 2007 (Coleção memória da educação). VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da práxis. Tradução: Luis Fernando Cardoso. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. Tradução: João Dell‘anna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

Uma Filosofia Política para a Crise do Capital Aluisio Pampolha Bevilaqua*

Introdução A crise do capital que voltou a se manifestar de forma aguda na economia dos Estados Unidos e Europa na primeira e segunda década (2008-2012) do século XXI, configura-se, cada vez mais, como expressão dramática dos estertores de um sistema social – o capitalismo –, que luta por não perecer frente suas contradições intrínsecas (MARX, 1973; LENINE, 1985). Enquanto tal, a crise sugere ao pensamento dominante, por um lado, imagens e predições cataclísmicas e irracionais em relação à sua natureza e finalidade histórica, conduzindo os sujeitos sociais à ações desesperadas e para uma conjuntura de extrema incerteza em relação aos paradigmas dominantes que fundam as estruturas de relações sociais vigentes – do maior ao menor grau de desenvolvimento socioeconômico, científico-técnico e político-cultural (MARX, 1977); por outro lado, revela também uma crise de paradigmas na ciência decorrente da profunda fissura do substrato material que sustenta o racionalismo vulgar, dominante da concepção geral da sociedade e da própria ciência moderna, exigindo o repensar filosófico com mais e não menos ciência na definição conceitual deste fenômeno social: seja como objeto para si inédito no movimento histórico do modo de produção do capital; seja como objeto em si universal e comum a todos os processos de transições de uma etapa à outra na história dialética das sociedades humanas (LENINE, 1986). O objetivo deste artigo é apresentar evidências e sustentar a hipótese de que a crise do capital, ao ruir o substrato material em que se fundamenta o racionalismo vulgar, deflagrou uma crise de paradigmas na ciência moderna, conduzindo ao retorno do irracionalismo presente no discurso pós-moderno, metafísico e, por outro lado, ao fundamento filosófico da teoria marxista – a dialética materialista (GRAMSCI, 1971). Ele se constitui de quatro partes: 1) Introdução, que apresenta a questão temática; 2) O desenvolvimento, que descreve as evidências e analisa as relações entre dados empíricos e categorias conceituais, sustentando a hipótese problemática e possíveis soluções; 3) a

*

Cientista Social, Mestre em Educação Brasileira e Doutorando em Educação pela UFC, Bolsista do CNPq e Pesquisador do Labor e do CEPPES.

conclusão, que argumenta a validade da hipótese a priori ou declina a mesma sugerindo nova hipótese e, 4) as referências bibliográficas. O método aplicado é o método do materialismo dialético e histórico, fundado em Marx, Engels e Lenine. A crise do capital e a crise de paradigmas da ciência A crise na economia mundial se apresentou nos EUA e Europa empiricamente nos seguintes fatos: a) a bancarrota da Nasdaq em março de 2000 (SHILLER, 2008); b) os custos de guerra de US$ 3 trilhões dólares no déficit dos EUA (BILMES e STIGLITZ, 2008); c) a crise nos títulos de hipotecas subprime nas mãos dos Hedge Funds em julho de 2007 (SHILLER, 2008); d) a bancarrota das companhias Fannie Mae e Freddie Mac quebra a Lehman Brothers em setembro de 2008); e) a bancarrota das três gigantes automotrizes estadunidenses: Ford, Crysler e General Motors (KRUGMAN, 2009), e f) finalmente, na Europa, a crise se apresentou mais sentidamente na forma de dívida pública: Irlanda, Grécia, Portugal, Itália e Espanha. Em síntese: o PIB mundial caiu de 3% em 2008, para -0,6% em 2009; queda de -3,6%. Nas economias avançadas (G-7) o PIB passou de 0,2% em 2008, para -3,4% em 2009; queda de -3,6% (EUA de 0,4% para -2,4%, União Europeia de 0,9% para -4,1%, com a Zona do Euro de 5,5% para -6,6% e o Japão de 1,2 % para -5,2%) (IMF, 2010). A crise na política suscitou imagens metafóricas que vão da turbulência ao tsunami. O vice-presidente do Banco da Inglaterra, Charles Bean, explicou que “é uma crise que acontece uma vez na vida, e possivelmente a maior crise financeira deste tipo na história da humanidade”. O presidente francês, Nicolas Sarkozy, afirmou que “A crise é mundial, estrutural e não é um parêntese que será fechado em breve‖. Alan Greenspan a descreveu como ―um tsunami de crédito que acontece uma vez por século‖. O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, pediu medidas “drásticas” (...) contra a crise financeira global que ―pode ser uma turbulência à qual muitas das pessoas dos países pobres não poderão sobreviver… ameaça todos os progressos que fizemos para combater a pobreza e a doença, nossos esforços contra as mudanças climáticas...‖. (BEVILAQUA, 2011). Diante destas evidências empíricas, o problema teórico-filosófico tornou-se inescamoteável, sobretudo, na ciência econômica. Nesta, a questão se apresenta inteiramente ao se indagar: por que o marginalismo - monetário e historicista – não foi capaz de predizer e evitar as crises? Naturalmente, não é razoável uma resposta ad hoc, como a proposição do ex-presidente do FED (Federal Reserve), Alan Greenspan, que

passou à história no contradictio in adjecto da “Exuberância Irracional dos Mercados”. Esta formulação tornou-se debate acadêmico com a publicação do livro Irrational Exuberance, do Professor Robert J. Shiller, que explicou o problema nos seguintes termos: Por que as pessoas ainda se referem aos anos de exuberância irracional? (…) Muitas pessoas foram perceptivas que no contínuo impulso do mercado de ações, como a grande onda dos anos 90, havia algo palpavelmente irracional no ar, ainda que fosse de natureza sutil a irracionalidade. (…) A exuberância irracional não é aquela loucura. Por sua vez - pensar como uma mania ou pensar como uma orgia – em termos populares - parece demasiado forte para descrever o que atravessávamos nos anos de 1990. Foi mais como uma espécie de mau juízo que nos lembramos ter feito em algum momento de nossas vidas quando o nosso entusiasmo adquiriu o melhor de nós. A exuberância irracional parece um termo muito descritivo para o que acontece em mercados quando eles saem da linha (SHILLER, 2005).

Mas esta explicação de Shiller também não convence, pois fundamenta a proposição a partir do ―lapso de memória‖ ou ―inocência‖, o que não é aceitável para um sistema teórico que tem por subteorias a tese da ―expectativa racional‖ de Robert Lucas e a tese da ―expectativa adaptativa‖ de Milton Friedman e Edmund Phelps. Estas formulações fizeram da teoria da ―Curva de Phillips‖9 um instrumento fundamental das metas de inflação macroeconômicas utilizadas pelas instituições governamentais e privadas. (MANKIW, 2006, pp. 3-5)10. Portanto, a questão permanece sem resposta, na verdade, a tese da Exuberância Irracional é mais um modo de dizer ―risco moral‖, ―efeito pangloss11‖ (KRUGMAN, 2009; SHILLER, 2003), isto é, atribuir a explicação da crise a um fator subjetivo (psicológico) e irracional (metafísico), que nem de perto indica objetivamente a natureza e implicações da mesma para a sociedade. E este fato conduz à problemática teórica do presente artigo: as crises gerais, como realidades imanentes à produção social do capital, são ou não crises típicas do capitalismo, segundo os paradigmas da macroeconomia e sua vã filosofia?

9

O conceito teórico da Curva de Phillips, compreende a relação inversa entre salário e emprego, adaptada para fixar metas de inflação macroeconômicas. Seu nome foi atribuído pelos economistas Paul Samuelson e Robert Solow em reconhecimento ao economista Alban William Phillips que a formulou pela primeira vez. 10 Palestra proferida na Universidade de Harvard, Cambridge, MA, em maio de 2006. 11 Dr. Pangloss, personagem criado por Voltaire no romance Cândido, sustenta a filosofia que o mundo é perfeito e todos os fatos e coisas são explicáveis pela lógica causal – a lógica de Leibniz (que é representado no romance por Pangloss). Voltaire critica Leibniz apoiado em Rousseau e em seu próprio pragma, como se observa na seguinte resposta de Cândido após toda a explicação causal da história por Pangloss: ―tudo isto está muito bem dito, mas devemos cultivar nosso jardim.‖. (VOLTAIRE, 1759, p. 187).

As evidências apresentadas neste trabalho sustentam que as crises atuais não correspondem aos modelos teóricos da macroeconomia, limitados ao racionalismo positivista sob fundamento metafísico. Por um lado, porque considerando o dilema ético-existencial humano denunciado por Marx, em relação à tese do equilíbrio natural dos mercados – ―pela mão invisível‖ – pressupõe a crise como mecanismo darwinistamalthusiano implícito à economia política clássica, que reverbera a humanidade pela autodestruição seletiva: dos mais fracos, dos pobres; da classe que ―produz seu próprio produto como capital‖ (MARX, 1985, Liv I, Vol II, pp. 209-210). Por outro lado, porque o neokeynesianismo e o neoliberalismo, como teorias, pressupõem a incorporação, em parte, da crítica do socialismo utópico, do anarquismo e do marxismo, como já se observa em Mill (1996, Vol I pp. 183-189, passim e Vol II, pp. 405-408, passim), Keynes (1985, p. 241) e até mesmo Friedman (1982, p. 173); e, finalmente, porque a própria abordagem marxista contemporânea sustenta que a ―tese da pauperização (…) hoje é citada ad nauseam‖ (MÈSZÁROS, 2002, p. 521). Deste modo, a hipótese deste trabalho – de que as crises atuais não correspondem aos modelos teóricos da macroeconomia – constitui proposição plausível, pois se fundamenta no fato desta disciplina não ser consequente para com seu objeto, logo, permite sugerir que as crises atuais são momentos de negação objetiva dos paradigmas teóricos da macroeconomia. As evidências que sustentam a problemática teorética são deduzidas, com suficiente clareza, da comunicação do economista Joseph Stiglitz, ao receber o Nobel em 2001: Mas qualquer disciplina tem uma vida própria, um paradigma dominante, com os pressupostos e convenções. (...) Por mais de uma centena de anos, a modelagem formal na economia tem-se centrado nos modelos como se a informação fosse perfeita. (…) seguindo a máxima de Marshall "Natura non Facit saltum" (...) Um dos principais resultados de nossa pesquisa foi mostrar que isto não é verdade (...) O paradigma dominante do século XX, o modelo neoclássico, ignorou as advertências do século XIX e mestres anteriores, (...) talvez porque isso teria levado à conclusões desconfortáveis sobre a eficiência dos mercados12.

Elas também se apoiam no livro do Nobel em Economia de 2008, Paul Krugman, De Regresso à Economia da Depressão reeditado em 2009, quando afirma: Em 2003, Robert Lucas, um professor da Universidade de Chicago galardoado com o Prêmio Nobel da Economia em 1995 (...). Depois de

12

Stiglitz, Joseph E. INFORMATION AND THE CHANGE IN THE PARADIGM IN ECONOMICS, Prize Lecture, December 8, 2001, Columbia Business School, Columbia University, New York. (p. 475).

explicar que a macroeconomia surgiu como resposta à Grande Depressão, declarou que (...): 'O problema fulcral de prevenção da depressão'... 'foi resolvido em todos os seus aspectos práticos'. (…) Um ano depois, Ben Bernanke, um antigo professor de Princenton (...) da Reserva Federal – e que em breve seria nomeado presidente deste organismo – fez um discurso notoriamente otimista intitulado 'A Grande Moderação', no qual, à semelhança de Lucas, defendia que a política macroeconômica moderna resolvera o problema do ciclo econômico (...) Quando, escassos anos decorridos, com a maior parte do mundo mergulhado numa crise econômica e financeira que em tudo recorda a da década de 1930, encaramos em retrospectivas estas declarações otimistas, parecem-nos duma presunção que quase nos custa acreditar‖ (KRUGMAN; 2009, pp. 15 e 16).

Portanto, parece bastante razoável sustentar esta linha hipotética problemática bem como sustentar, ainda, que a maior parte da literatura especializada atual pretende explicar a natureza e implicações desta sobre a sociedade e indivíduos sociais, a partir de trabalhos fundamentados nos paradigmas dominantes da ciência econômica, que relacionados à teoria da estrutura das revoluções científicas em Thomas Kuhn (1971, pp. 114-115), sugerem a ―anomalia‖ da ciência e configuram um quadro de ―crise de paradigma‖; justificando teoricamente porque as crises econômicas, de per si, objetivamente, negam tanto os paradigmas oficiais, como as análises assentadas nos mesmos, e assim, sinalizam uma profunda contradição entre a teoria econômica e a realidade concreta. Mas, a crise do capital não é apenas negação objetiva do paradigma teórico neoliberal, ela também fez reemergir tanto o pensamento de Keynes – que se apresenta nas publicações desta linha teórica: Joseph Stiglitz (2003), Robert Shiller (2006), Paul Krugman (2009), entre outros –, quanto o pensamento de Marx através de crescentes publicações de prestigiados intelectuais marxistas, aceitos pela própria academia burguesa, em torno da temática: Más allá de El Capital de Michel Lebowitz (2004), Para Além do Capital de Istvan Mèszáros (2002), The Importance of Marx, 150 Years after the Grundrisse de Eric Hobsbawm (2009), L'Idée du Communisme, de Alain Badiou e Slavo Zizek (2010), entre outros. Apesar de um marxismo acadêmico, subsumido aos imperativos categóricos do paradigma dominante e, grosso modo, rebaixar o status da teoria de Marx à coadjuvante da ciência oficial, o que dificulta enormemente a teoria de Marx se constituir em alternativa autônoma, aporta elementos teóricos que dificilmente o ―marxismo empírico‖ desenvolveria de per si. E o que traz de novidade este ressurgimento da literatura marxista na análise da crise do capital? Em termos sintéticos e a propósito de propedêutica, o problema fundamental arguido pelas análises do marxismo ocidental é a revalorização dos

Grundrisse (2009 e 2011), considerado os rascunhos de O Capital de Marx, de 18571858. Em termos filosóficos neste se recupera a concepção do método, enfatizando as categorias dialéticas da lógica subjetiva tomadas de empréstimo do sistema filosófico hegeliano, embora o próprio Marx (1977), no Prefácio à Contribuição Para Crítica da Economia Política de 1859, tenha censurado a publicação destes rascunhos sem a devida revisão e preparação por ele para uma publicação, como se observa em seus manuscritos ulteriores, de 1861 à 1863, e a genial síntese efetuada em O Capital de 1867. Neste, em seu posfácio à 2ª Edição Alemã (1873), Marx indica que ―Por sua fundamentação meu método dialético não só difere do hegeliano, mas é também a sua antítese direta‖ (1985, Livro I, Vol. I, pp. 20-21). Contudo, a questão mais importante e que estriba todas as teses desta nova literatura marxista sob a hegemonia do ―marxismo ocidental‖, é a questão da superação da lei do valor no capitalismo que Marx desenvolve em uma abstração partindo da tendência à aplicação do capital fixo na produção (composição orgânica do capital) e as relações entre o tempo necessário e tempo excedente (valor abstrato) e o tempo ocupado e o tempo livre da produção na sociedade. Daí, a conclusão lógica de quanto maior a composição orgânica do capital, menor a validade da categoria tempo socialmente necessário como medida de valor na sociedade, passando esta ao tempo livre da produção, dedicada ao gozo e desfrute da mesma, para além das necessidades imediatas e básicas. Portanto, uma mudança radical no paradigma de valor que embasa todas as relações sociais na sociedade capitalista. (MARX, 2009, Vol. II, p. 227-229) Conclusão A emergência de uma filosofia política para a crise do capital fundamenta-se nas evidências de que as crises significam histórica e empiricamente momentos de negação objetiva do paradigma dominante da economia política e da ação estatal da sociedade capitalista atual. Ela também se expressa na crise de paradigma e aduz como evidências o afluxo da literatura especializada que revela além da anomia do paradigma dominante, a limitação gnoseológica do material fático das crises e a incapacidade de se defender da crítica à sua explicação insuficiente da natureza e implicações das mesmas para a sociedade. Na literatura crítica ex post facto é visível tanto o ressurgimento teórico de

Keynes através do neokeynesianismo (TOBIN, 1986, p. 238)13, quanto de Marx através da ―esquerda acadêmica‖, sinalizando uma inversão histórica do processo dialético em que estes pensamentos teóricos surgiram e se embateram no passado. No processo atual, o keynesianismo ressurgiu como negação imediata e prática do paradigma neoliberal nas ações governamentais; o marxismo, como negação da negação, mais teórica que prática, embora apareça residualmente nas nacionalizações de empresas financeiras e industriais em alguns países, denunciando as limitações tanto do neoliberalismo como do neokeynesianismo. Esta assertiva apoia-se também nos organismos internacionais que na atualidade têm a mesma função da histórica Conferência de Bretton Woods (instância de consenso normativo dos paradigmas gerais do sistema econômico): a instituição do Nobel, o Fórum de Davos, o Consenso de Washington, e outros. Em termos de paradigma econômico, a premiação do Nobel a Paul Krugman em 2008, significou a mudança do paradigma neoliberal ao keynesiano. Portanto, não é arbitrário supor o ressurgimento de Marx em negação a negação ou superação da macroeconomia como um todo, mesmo que surja uma ―nova‖ síntese entre neoliberalismo e neokeynesianismo, como predica Tobin (1986) e Mankiw (2006). Isto não mudará os efeitos dramáticos da crise sobre a sociedade e a exigência aos sujeitos cognoscentes de nova concepção filosófica da finalidade e rasion d'être da mesma. A crise do capital, enquanto crise de paradigmas da ciência e, consequentemente, da educação [atividades humanas virtualmente transformadoras e forças produtivas sociais (MARX, 2009, Vol. 2, pp. 302-303; 1973, idem, pp. 7-8), posto que têm, em tese, o objetivo comum de produzir e reproduzir a consciência científica e técnica formal da sociedade nas novas gerações humanas (MANACORDA, 2007, pp. 43-53; passim)], não podem se esquivar à temática: por um lado, porque a educação como atividade desdobrada em ensino e pesquisa, tem por pressuposto as teorias comprovadas e instituídas como paradigmas nas diversas disciplinas da cognição (VYGOTSKY,1991, pp. 22-23) logo, a ciência é condição necessária à sua existência; por outro, a medida em que as crises emergem da acrisia14 teórica de uma disciplina científica cujo material fático atravessa todo o campo de objetos que abarcam as ciências sociais – como é o caso da economia –, então sua afecção por tal problemática torna-se tema de primeiro 13 14

Palestra proferida na Easter Economic Association, Filadélfia, em 10 de Abril de 1986. There was not the kind of investor euphoria or madness described by some storytellers, who chronicled

earlier speculative excesses like the stock market boom of the 1920s (SHILLER, 2005)

plano, posto que afecciona também de forma mediada e imediadamente todos os elementos substantivos do seu fazer produtivo: docente-ciência-discente. (MARX, 1985, Liv I, Vol I, pp. 283-284, 1977, pp. 27-31, passim). Porém, a problemática é mais profunda do que se supõe, posto que a contradição intrínseca à dialetização entre produto teórico e atividade cognoscente, diz respeito à universalidade das ciências – subsumida aos paradigmas definidos nos países do capitalismo avançado, em sua maior parte controlada pelos centros de P&D das grandes corporações monopolistas e oligopolistas globais (MUELLER e OLIVEIRA, 2003, pp. 59-65; passim) – e a particularidade da realização da atividade cognitiva – mediatizada pelas instituições e organismos governamentais que, em tese, expressam as prioridades gerais da sociedade historicamente determinada –; e ainda, a própria singularidade do desenvolvimento científico e educacional em que os sujeitos cognoscentes estão inseridos. Tudo isto sugere uma solução de maior envergadura, quiçá comparável ao ato realizado pela Europa quando se libertou do domínio eclesiástico. Assim, a hipótese teórica específica sobre a educação é que uma crise de paradigmas na ciência conduz a primeira necessariamente ao afastamento de seus fins. Portanto, a crise de paradigma na ciência implica a perda de efetividade do ensino porque imobiliza a pedagogia, amplia o hiato entre a teoria e a prática social, com isto, a contradição entre a escola e a vida real, o docente e o discente, embotando o desiderato pedagógico atribuído pela sociedade à Educação. Nestas circunstâncias, vale lembrar Marx: ―o homem não é só um animal social, em sua expressão mais literal é um animal político‖ (2009, p. 4). A saída da pedagogia é chamar a filosofia em seu concurso. Referências BEVILAQUA, Aluisio Pampolha. A Crise do Capital em Marx e suas Implicações nos Paradigmas da Educação: Contribuição ao Repensar Pedagógico no Século XXI, Rio de Janeiro: Inverta; Fortaleza, Edições UFC, 2011. INTERNATIONAL MONETARY FOUND – IMF Washington DC. Word Economic Outlook: Rebalancing Growth. Washington DC: Multimedia Services Division, April 2010. FRIEDMAN, M. Capitalismo e Liberdade. São Paulo: Nova Cultural, 1982-1985. GRAMSCI, Antonio. El Materialismo Histórico y la Filosofia de Benedetto Croc., Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión. 1971 KEYNES, Jonh M. A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda: Inflação e Deflação, São Paulo: Nova Cultural,1985.

KRUGMAN, Paul. O Regresso da Economia da Depressão e a Crise Actual, 3º ed. Lisboa: Presença, 2009. KUHN, Thomas S. La Estructura de las Revoluciones Científicas, México Fondo de Cultura Económica, 1971. LENINE, V. I. Cadernos Filosóficos. Moscú: Edítorial Progreso, OC, Tomo 29, 1986. ____________. El Imperialismo, Fase Superior del Capitalismo. Moscú: Edítorial Progreso, OC, Tomo 27, 1985b. MANACORDA, M. Alighiero. Marx e a Pedagogia Moderna. Capinas, São Paulo: Editora Alínea, 2007. MANKIW, N. G. El Macroeconomista como Científico y como Ingenier. Buenos Aires: Desenvolvimiento Económico Revista de Ciencia Sociales, Vol. 47, n.185, AbrilJunio, 2007. MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política, São Paulo: Nova Cultural, 3 Livs. 5 Vols, 1985. Os Economistas. ___________. Elementos Fundamentales para la Crítica de la Economia Política (GRUNDRISSE) 1857-1858, México, DF: Buenos Aires; Madrid: Siglo Veintiuno Editores, 3 Vols., 2009. _________. Contribuição para a Crítica da Economia Política, 5ª Edição, Lisboa: Editorial Estampa, 1977. _________. O Dieciocho Brumario de Luis Bonaparte, OE, Moscú: Editorial Progresso, Tomo I, 1973. MÈSZÁROS, István. Para Além do Capital: Rumo a uma teoria da transição, 2º Re., São Paulo: Boitempo, 2002/ 2006. MILL, Stuart. Princípios de Economia Política: Com algumas de suas Aplicações à Filosofia Social. 2ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 2 Vols., 1986. MUELLER, Suzana P. M. e OLIVEIRA, Hamilton V. Autonomia e Dependência na Produção da Ciência: uma base conceitual para estudar relações na comunicação científica. Belo Horizonte: in Perspect. cienc. inf., v. 8, n. 1, p.58-65, jan./jun. 2003. SHILLER, Robert J. Irrational Exuberance, New Jersey: Princenton University Press, 2005. STIGLITZ, Joseph. Information and the Change in the Paradigm in Economics, Prize lecture, December 8, 2001. Columbia Business School, Columbia University, Disponível em: http://nobelprize.org/nobel_prizes/economics/laureates/2001/stiglitzlecture.pdf, acesso: 20 de Março 2009. TOBIN, James. O Futuro da Economia Keynesiana: Palestra proferida na Easter Economic Association, Philadelphia. Abril, 1986. In, Pesquisa e Planejamento Econômico, Rio de Janeiro: Vol. 16, n. 2, pp. 237-250, ago. 1986. VYGOTSKY, L. S. A Formação Social da Mente: O Desenvolvimento dos Processos Psicológicos Superiores, 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991. VOLTAIRE, François-Marie Arouet. Cândido. Edição Ridendo Castigat Mores, 1759, eBookBrasil.com, Disponível em: www.jahr.org. Acesso em: 21/10/2010.

Emancipação e Educação no Capitalismo em Crise: A Conservação do Aprisionamento na Aparência de Liberdade Vilson Aparecido da Mata Introdução Desenvolver reflexões sobre a questão da emancipação e da educação em um contexto de crise do capital significa ter em mente uma dupla determinação: por um lado, a emancipação política das formas societárias anteriores ao capital significou importante avanço para a humanidade; por outro lado, este mesmo movimento, que se colocou como revolucionário em tempos passados significa, hoje, o aprisionamento da liberdade humana nos meandros de uma ordem social permanentemente em crise, desigual intrinsecamente e incapaz de efetivar, para todos os seres humanos, a liberdade prometida em seu nascedouro. É inegável que o capitalismo trouxe à humanidade importantes avanços. Pela primeira vez, a produção de bens de consumo superou o mínimo necessário à vida de todos os seres humanos; a liberdade civil e a igualdade (ao menos formal, jurídica) entre todos os homens tornou-se desejável; a superação das relações aristocráticas, feudais, nas quais a ―cor‖ do sangue definia quem tinha mais direitos dentro da sociedade. Porém, o problema com esses avanços é que eles não se efetivaram para todos os seres humanos: se é verdade que nunca se produziu tantos bens de consumo como na atualidade, também é verdade que nunca houve tantos seres humanos alienados dos gozos que esses bens produzidos pelo trabalho proporcionaram. A emancipação política do jugo da servidão obrigou o trabalhador a entregar-se ao jugo, ainda mais perverso, do trabalho assalariado; garantiu liberdade de vender a força de trabalho, mas aprisionou em relações sociais de exploração ainda mais profundas. O capitalismo destruiu a propriedade privada baseada em direitos de sangue e privilégios religiosos, emancipando politicamente o ser humano da servidão, mas não foi e nem é capaz de emancipá-lo da propriedade privada individual.



Universidade Federal do Paraná, Curitiba. Mestre em Fundamentos da Educação pelo Programa de PósGraduação em Educação da UEM, Área de concentração em Fundamentos da Educação. Atualmente é Doutorando em Filosofia e Sociologia da Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da FACED/UFC. E-mail: [email protected]

A liberdade do indivíduo entendido como mônada isolada é uma liberdade murada. É como se houvesse uma divisória limitadora da liberdade, para que as ações de uns não prejudiquem as possibilidades de ação de outros. Evidentemente, se é liberdade parcial, então, não é liberdade, porque a sua limitação faz com que o homem dobre-se sobre si mesmo, não vendo a si como ser genérico, ao contrário, faz da vida genérica, da sociedade, algo exterior, estranho, alienado. Fica, assim, evidente a antinomia da emancipação política no contexto do capitalismo em crise: por um lado, liberta os homens do jugo da servidão; por outro lado, não é capaz estender a liberdade a todos os homens. Este texto está organizado em três partes. Em primeiro lugar, procura-se evidenciar os limites da emancipação política como necessária em um determinado momento histórico, em que era preciso superar as relações feudais, mas também como uma emancipação ilusória, posto que diz respeito unicamente à parcialidade política. Em segundo lugar, a questão da emancipação humana, conforme a elaboração de Marx, demonstra que a superação do capital demanda uma subjetividade rica, não no sentido material unicamente, mas rica em termos de elevação da cultura, da arte, da educação e da formação do homem. Por fim, a relação entre emancipação e educação a partir da compreensão de que é impossível à educação ser emancipadora no interior da sociedade capitalista a não ser como elemento de ruptura com tal sociedade. Emancipação Política: a liberdade individual ilusória

Em Marx, a questão da emancipação política é tratada como sendo uma parcialidade. Embora representando um importante avanço para a humanidade, a constituição do aparato político que dá corpo às liberdades na sociedade capitalista se mostra insuficiente para efetivar a liberdade para todos os seres humanos. A verdadeira questão é a relação entre emancipação política e emancipação humana. O Estado moderno não pode efetivar a emancipação humana porque não é capaz de resolver os males sociais. Isto se dá porque, como criação da sociedade civil burguesa, o Estado moderno tem a função de protegê-la até mesmo em suas contradições. A separação entre esfera pública e esfera privada é uma expressão tanto do Estado moderno quanto da emancipação política que o funda. O Estado, instância da universalidade, é distanciado da sociedade civil, instância da particularidade:

A constituição do estado político e a dissolução da sociedade civil burguesa nos indivíduos independentes [...] é consumada num só e mesmo ato. O homem como membro da sociedade civil burguesa, o homem não-político, inevitavelmente aparece, não obstante, como homem natural. Os droits de l‟homme aparecem como droits naturels, porque a atividade consciente está concentrada na ação política. O homem egoísta é o resultado passivo da sociedade dissolvida, um resultado simplesmente encontrado na existência, um objeto de certeza imediata, portanto, um objeto natural. A revolução política dissolve a vida burguesa em suas partes componentes sem revolucionar essas partes ou submetê-las à crítica. Ela resguarda a sociedade civil burguesa, o mundo das necessidades, o trabalho, os interesses privados, o direito civil. Como a base para sua existência, como a precondição que não requer fundamento e, por isso, como sua base natural15.

Naturalizadas as relações sociais, a sociedade civil burguesa passa a ser apresentada como sendo a única sociedade possível e o Estado moderno sua expressão máxima. O homem verdadeiro torna-se o homem burguês, membro da sociedade civil. O egoísmo é entendido como sua essência atemporal na busca pela satisfação dos interesses particulares no mundo das necessidades, na exploração do trabalho, no lucro, na competição. É a assim chamada natureza humana egoísta que impede a perfeição da eticidade do Estado moderno, não as contradições impetradas pela sociedade civil burguesa. Sendo livre, é responsabilidade do indivíduo a satisfação de suas necessidades. Enquanto, por um lado, o Estado é isento das limitações à liberdade, podendo conduzir-se livremente na garantia e conservação das relações sociais burguesas, o indivíduo, tomado como mônada isolada, tem sua liberdade limitada. ―Os limites da emancipação política são evidentes imediatamente no fato de que o estado pode ser livre de uma restrição sem que o homem seja realmente livre dela, no fato de que o estado pode ser um estado livre sem que o homem seja homem livre‖16. A emancipação política, então, diz respeito à parcialidade. A cisão entre o homem público (cidadão) e o homem privado (indivíduo) é um traço ineliminável do Estado moderno. A parcialidade política tornou-se universalidade ilusória na efetivação dos direitos humanos como direitos do homem burguês. Um importante elemento da crítica de Marx aos direitos do homem está exatamente no fato de que eles tomam a parcialidade da emancipação política como totalidade ilusória e abstrata da emancipação humana, naturalizando a parcialidade como lei eterna e essência a-histórica do homem.

15

MARX, Karl. On the Jewish Question. In: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Collected Works. New York. International Publishers, 2005; V. 3, p. 167. Grifos do autor. 16 Ibid. p. 152. Grifos do autor.

Para Marx: ―A liberdade do homem egoísta e o reconhecimento da sua liberdade, porém, é mais propriamente o reconhecimento do irrestrito movimento dos elementos espirituais e materiais os quais formam o conteúdo de sua vida‖17. Por ser parcial, limitada, a emancipação política não liberta o ser humano efetivamente, mas, na verdade, o faz cativo, prisioneiro do próprio egoísmo. A própria estrutura que, no início da sociedade moderna pretendia a liberdade do homem tornouse o calabouço da liberdade, não aboliu seus entraves, mas os aprofundou. A emancipação humana não se realiza na sociedade capitalista. A conservação da sociedade civil burguesa não efetiva a liberdade porque reduz o humano ao solipsismo: ―A necessidade prática, o egoísmo, é o princípio da sociedade burguesa, e torna-se visível de forma pura tão logo a sociedade civil extrai completamente de si o Estado político‖18. Em sua estrutura, a sociedade civil burguesa não pode efetivar a liberdade humana: a contradição entre capital e trabalho, a competição, o egoísmo, são óbices à liberdade; suas consequências são o aprofundamento da miséria, da exploração, da dissolução da consciência da relação vital, necessária, do homem com o mundo natural e com os demais seres humanos, a redução da subjetividade à mera necessidade prática: ―A concepção a que se chega da natureza sob o domínio da propriedade privada e do dinheiro é o real desprezo e a depravação prática da natureza [...]‖19. A emancipação política não é um estágio para a emancipação humana, uma vez que promove a fratura entre o cidadão e o indivíduo privado. A emancipação política é a completude do processo que faz da parcialidade da liberdade política uma universalidade fictícia. ―Toda emancipação é a redução do mundo humano, das relações, ao próprio homem. A emancipação política é a redução do homem, de um lado, a membro da sociedade civil burguesa, a uma individualidade egoística, independente, e, de outro, a cidadão, a pessoa moral (juridical)"20. A emancipação política rebaixa até mesmo a cidadania à condição de garantia da esfera privada, do homem parcial. Fica evidenciada uma universalidade fictícia: o sujeito egoísta surge como a única essência humana possível. A contradição hostil entre a parcialidade e a

17

Ibid. p. 167. Grifo do autor. Ibid. p. 172. Grifos do autor 19 Ibidem. 20 Ibid. p. 168. Grifos do autor 18

universalidade faz com que o homem seja entendido como mônada desde os primórdios do capitalismo. A parcialidade põe-se como a própria expressão do sujeito egoísta. A emancipação política reforça a cisão do homem em vida pública e vida privada, pressupondo o aprisionamento deste mesmo homem à ordem da propriedade privada real, desintegrando o homem. Sendo parcial e restrita, não alcança a totalidade das relações histórico-sociais presentes na sociedade, restringindo-se a aspectos isolados, como a educação. Não supera o essencial na alienação e nutre o antagonismo entre a crença na emancipação e a prática social concretamente alienante. Quando se defende a emancipação dentro dos limites da própria ordem que a aprisiona, revela-se unicamente a exortação moral por uma emancipação cindida, parcial, restrita. Emancipação humana: a liberdade efetiva

A necessidade da emancipação só pode existir em um contexto de alienação e estranhamento, tornando-se luta pela sua superação nos limites que se impõem historicamente. O movimento histórico mostra que a mesma estrutura social que aprisiona gesta as condições de sua superação e esta superação é condicionada às possibilidades efetivamente objetivadas socialmente. Somente com a ascensão histórica do capitalismo é que a emancipação humana surge no horizonte como possibilidade efetiva. Realizar a emancipação humana, porém, não é um processo ―natural‖ da sociedade. Se fosse assim, confirmar-se-ia uma essência a-histórica do homem. Para ser conquistada, a emancipação humana passa pela abolição da propriedade privada dos meios de produção, da exploração da mais valia, da redução do mundo humano ao indivíduo egoísta e burguês. A emancipação humana é projeto consciente de superação dos grilhões do mundo capitalista. Tal projeto não será efetivado sem a luta pelo fim das condições que aprisionam a humanidade na mediocridade. São inegáveis os avanços conquistados em relação à liberdade humana dentro da sociedade capitalista, entretanto: Somente quando o homem individual real reassimilar em si o cidadão abstrato, como homem individual, como ser genérico, em sua vida diária, em seu trabalho particular e em suas circunstâncias particulares, somente quando o homem tiver reconhecido e organizado suas forces propres, e

consequentemente não mais separar o poder social de si mesmo na forma de poder político, somente então a emancipação humana será realizada21.

A tarefa da emancipação deve ser construída na forma política que implica uma atitude praticamente crítica. A emancipação humana só pode ser conquistada pelos indivíduos organizados em torno do ideal de transformação radical da sociedade. A política precisa ser combatida com a política. Porém, não com a política baseada na vontade, porque esta é uma forma de política que não se constitui como antítese do intelecto político moderno, ao contrário, expressa a parcialidade da emancipação política. O intelecto político obscurece o ―instinto social‖22. A emancipação humana não se realiza aprisionada à lógica da sociedade da propriedade privada, cujo elemento fundante é a alienação do trabalho que, de antemão, a impede. Emancipação humana realiza-se apenas na negação e na superação da ordem social que a aprisiona. É transformação qualitativa, é mudança no modo como as forças produtivas se organizam. Assim sendo, não pode prescindir da ruptura que se dirige à essência do capital: a propriedade privada dos meios de produção e a alienação do trabalho. A emancipação humana não está, portanto, realizada pura e simplesmente no aforismo moral da liberdade nos limites da ordem social vigente. Neste caso, o que há é a expectativa de emancipação política. O ponto em que se encontra a sociedade hoje obriga os indivíduos a apropriarem-se da totalidade das forças produtivas. A transformação da sociedade, a emancipação humana, não é apenas uma necessidade de manifestação livre de si, para o indivíduo contemporâneo, a emancipação humana é, sobretudo, assegurar a existência humana. Mas, a apropriação da totalidade das forças produtivas é condicionada pelas próprias forças produtivas. Isto significa dizer que, na medida em que as forças produtivas do capital se tornaram uma totalidade mundial no interior da qual há o jogo de forças das particularidades nacionais, cabe ao indivíduo revolucionário apropriar-se da totalidade de tais forças, a universalidade deve ser a marca ineliminável da emancipação humana. Por isso mesmo, a apropriação de uma totalidade de instrumentos de produção constitui já o desenvolvimento de uma totalidade de faculdades nos próprios indivíduos. Esta apropriação é ainda condicionada pelos próprios

21

Ibid. p. 168. MARX, Karl. Critical Marginal Notes on the Article ―The King of Prussia and Social Reform. By a Prussian‖. In: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Collected Works. New York. International Publishers, 2005; V. 3, p. 201. 22

indivíduos que se apropriam. Só os proletários da época atual, totalmente excluídos de qualquer manifestação de si, se encontram em condições de poderem alcançar uma manifestação de si total, não limitada, que consiste na apropriação de uma totalidade de forças produtivas e no desenvolvimento de uma totalidade de faculdades que isso implica 23.

A apropriação da universalidade das forças produtivas só se pode efetivar pela totalidade dos proletários (trabalhadores). O desenvolvimento e a complexificação de uma ―totalidade de faculdades‖ implica o desenvolvimento e a complexificação das capacidades intelectuais dos trabalhadores a fim de apropriarem-se da totalidade das forças produtivas. É certo que o próprio processo revolucionário irá desenvolver as ―faculdades dos indivíduos‖, entretanto, se não houver, a priori, subjetividades ricas, a própria emancipação humana fica comprometida. Não basta que as forças produtivas do capital tenham encontrado seu limite e/ou que a sua crise o lance em derrocada, sem uma subjetividade revolucionária rica, a barbárie torna-se assustadoramente mais próxima no horizonte do que a emancipação humana. É fato, no entanto, que a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas, o poder material tem de ser derrubado pelo poder material, no entanto, também uma teoria se transforma em poder material assim que se apodera das massas. A teoria se apodera das massas assim que se evidencia ad hominen [no homem], e de fato ela se evidencia ad hominen tão logo se torna radical. Ser radical significa agarrar a questão pela raiz. Mas a raiz é, para o ser humano, o próprio ser humano24.

Uma revolução que lance mão apenas da crítica da arma está fadada a se tornar um banho de sangue inútil; uma revolução que permaneça apenas no campo da crítica não é revolução, mas apenas um vago ladrar no deserto. Para que uma transformação social seja viável, a própria realidade material deve demandar a arma da crítica. ―A teoria só se efetiva num povo na medida em que representa a caracterização de suas necessidades. [...] Não basta o pensamento insistir na sua caracterização, é preciso que a própria realidade insista no pensamento‖25. É na realidade, na vida cotidiana, no dia a dia destruidor, nas idas e vindas do próprio movimento histórico que as condições e a necessidade da transformação profunda da sociedade se impõem. Mas não como a necessidade de tornar as condições presentes na sociedade presente mais justas somente, isto seria uma reforma. Na 23

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. The German Ideology. In: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Collected Works. New York. International Publishers, 2005; V. 5, p. 87. 24 MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução. São Paulo: Expressão Popular, 2010, p. 44. Ver também: MARX, K. Zur kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie Einleitung. IN: MARX, K. e ENGELS, F. Werke. Berlin: Dietz Verlag, 1981. V. 1. p. 385. 25 Ibid. p. 46-7. Na edição alemã, p. 386.

verdade, a necessidade da emancipação humana deve surgir como necessidade profunda de o homem reencontrar-se com sua própria humanidade; como necessidade de alimento, abrigo e calor para toda humanidade, mas também como necessidade estética, de filosofia, de cultura e de poesia; como demanda por aquilo que na sociedade ainda não existe, como desejo coletivo de que o ser humano realize plenamente suas potencialidades. ―Uma revolução radical só pode ser a revolução de necessidades radicais, cujas condições prévias e procedências estão justamente ausentes‖26. De que maneira se conhece as condições e procedências ausentes? Pela identificação das falhas, desequilíbrios, limites e contradições presentes. As falhas presentes na sociedade capitalista não são nem podem ser eternas, contudo, sua revolução em uma sociedade que supere as falhas presentes também não pode efetivarse espontaneamente. A humanidade precisa demandar os potenciais ausentes, precisa agir conscientemente na direção da concretização daquilo que ainda não existe. A revolução radical da sociedade não é um sonho utópico, mas uma possibilidade objetiva de que a humanidade seja capaz de transformar as atuais condições de vida tomando a história em suas mãos. Sonho utópico, na verdade, é a crença de que as instituições secularmente responsáveis pela miséria humana sejam capazes de ―melhorar‖ a sociedade capitalista através da política democrático burguesa. A revolução radical é a expressão de uma realidade que demanda o pensamento crítico na ação crítica e a ação crítica de pensar de forma emancipadora. Somente quando o homem perder-se de si, exteriorizar-se no mundo e reconhecer a si próprio no mundo, sem mais estranhamento, é que poderá recuperar-se completamente como ser humano. Perder-se de si significa exteriorizar-se, apropriar-se da totalidade das relações concretizadas historicamente; significa pôr-se para fora de sua atual condição de sofrimento e brutalização. O reconhecimento da própria condição desumana criada pelo capital é um dos fatores indispensáveis para que, a partir de então, o humano se reconheça como humano apenas no seu ser genérico, e não mais naquilo que desumaniza. Para transformar a sociedade é necessário, dentre outros elementos, diminuir a fronteira do conhecimento entre as classes. A classe trabalhadora é oprimida pela classe possuidora dos meios de produção não só materialmente, mas também e fundamentalmente submissa e inerte culturalmente. Sem o conhecimento teórico não há

26

Ibid. p. 47. Na edição alemã, p. 387.

domínio teórico e, sem domínio teórico, não há possibilidade de a classe trabalhadora superar o domínio ideológico da classe dominante. Se é absurdo pensar na transformação do mundo tendo como base a vontade individual ou a transformação do indivíduo, não é, contudo, absurdo considerar que a transformação do mundo deve ter determinação recíproca com a transformação do indivíduo. A transformação que mantém no horizonte da humanidade a perspectiva de um mundo mais humano para todos contém já a afirmação de uma subjetividade também transformada e transformadora que, na medida em que efetiva a liberdade humana, traz consigo a efetivação da liberdade individual que constrói uma sociedade sem desigualdades, uma sociedade do trabalho não alienado, concretizando uma subjetividade rica, independente, com capacidade de desenvolver infinitamente suas potencialidades. Emancipação e educação: limites da concepção redentora da educação

Um ideal de transformação radical da sociedade deve passar, inevitavelmente, pela educação. A transformação social radical é impossível sem uma formação humana radical. Por isso, conceber a educação como instância capaz de transformar os horizontes individuais desconsiderando-se a totalidade histórica que engendra os processos educacionais é entendê-la como tendo um papel redentor, quase místico, de transformar pela ação isolada a sociedade toda. O cerne das propostas educacionais que se consideram emancipadoras está na defesa da tese de que, pela educação, as situações de pauperismo e subdesenvolvimento podem ser superadas; pela educação, o indivíduo pode vir a ser o empreendedor do próprio sucesso, entendido este como sendo o sucesso burguês da acumulação egoísta de capital. A formação técnica e a capacidade de trabalho do homem seriam o caminho pelo qual a educação contribuiria para a liberdade humana. À educação caberia o papel de formar as mentes e braços capazes de elevar a sociedade a um patamar de desenvolvimento condizente com os ideais de igualdade e de gozo das benesses do mundo do consumo globalizado. O foco no processo de aprender, e não no produto da aprendizagem, efetiva uma educação desocupada de pensar o futuro, desvinculada de uma teleologia e que pretende assegurar ao aprendiz a possibilidade de se tornar sujeito de sua própria história e, por si só, este processo enriqueceria as possibilidades renovadas de uma sociedade em transformação. O dístico do progresso e da transformação social está presente como sendo o produto da iniciativa

individual, do aprendiz sujeito de sua própria aprendizagem, capaz de, a partir de suas impressões pessoais, transformar toda uma realidade histórica. A emancipação, assim, seria proveniente de uma vontade, independeria da história real. Esta vontade fundamentaria uma ação em direção à emancipação dos homens. É importante ressaltar que, sem a educação, não será possível a emancipação humana, e esta é uma positividade das concepções ditas ―emancipatórias‖. Entretanto, quando a educação é entendida como a instância propulsora das transformações que levarão à extirpação da sociedade daquilo que é ―mal‖ (a pobreza, a miséria, a violência, etc.), ao mesmo tempo em que cultiva e promove aquilo que é ―bom‖ (generosidade, amor, paz, etc.), não se mostra capaz de realizar a emancipação humana universalmente. A educação termina por assumir o discurso moral da reforma parcial, reforçando o sujeito egoísta a partir do contraditório discurso do bem de todos. Atribuir à vontade política (parcial, individual) a realização de qualquer programa emancipatório não atinge o sustentáculo daquilo que aprisiona a liberdade humana: a sociedade da propriedade privada dos meios de produção. O Estado burguês não tem condições de eliminar as desigualdades sociais, nem pela educação, nem por qualquer outro meio. Conforme Marx: ―Para educar as crianças, é preciso alimentá-las e liberá-las da necessidade de trabalhar para viver. Alimentar e educar as crianças abandonadas, isto é, alimentar e educar todo o proletariado que está crescendo, significaria eliminar o proletariado e o pauperismo‖27. Eliminar o proletariado e o pauperismo significaria eliminar o próprio capitalismo. A emancipação humana só pode começar com a anulação, a destruição e a superação da propriedade privada dos meios de produção. Isto as ―propostas emancipatórias‖ desconsideram por completo. Não supõem a superação da luta de classes ou da propriedade privada burguesa, ao contrário, as reforça, aprofundando a universalização do isolamento brutal do homem em relação a sua comunidade, em relação a sua própria vida. Se a essência humana é a verdadeira comunidade humana, então a essência humana isolada da totalidade das relações sociais e históricas encaminha o isolamento universal do homem, efetivado em concepções educacionais

27

MARX, Karl. Critical Marginal Notes on the Article ―The King of Prussia and Social Reform. By a Prussian‖. In: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Collected Works. New York. International Publishers, 2005; V. 3, p. 192.

parciais, que não suprimem tal isolamento, mas dão-lhe corpo. Priva-se o homem do entendimento de que produz socialmente a si mesmo. Clamar pela educação emancipatória, sem superar as forças produtivas que nutrem a alienação é proferir discurso de reformismo moral. A desejada emancipação pela educação não se realiza porque pretende emancipar a partir da mesma estrutura que aprisiona. Ao perceber a alienação do homem do ponto de vista do capital, a educação não tem condições de propor sua superação a não ser no quadro dos postulados morais mais gerais e na conformação reformista, ―melhorando‖, ―humanizando‖, por assim dizer, o capitalismo. A superação da alienação e a conquista da emancipação é também uma tarefa educacional, porém, apenas quando esta tarefa assume o caráter de ruptura profunda. A transcendência das relações sociais alienadas só pode ser concebida no quadro geral das relações sociais construídas. A contradição hostil entre particularidade e universalidade reflete-se na educação: quando tomada isoladamente, alienada de sua determinação histórica e social, assume a forma de uma atividade alienante, que produz homens e mulheres para o mercado de trabalho reificado. A educação, tomada a partir do ponto de vista da universalidade, é atividade social que produz o ser humano capaz de inventar potencialidades e usufruir dessas mesmas potencialidades socialmente. A ênfase de Marx28 é de que a teoria só se efetiva num povo na medida em que representa a concretização de suas necessidades. Mais que isso, a teoria é o corolário da emancipação humana, entendida como a emancipação que não deixa os pilares da casa em pé, que destrói a velha sociedade e institui a nova, que supera a estrutura social antiga, preservando suas conquistas. A teoria só pode tornar-se material quando a sociedade em geral se confunde com ela, reconhecendo-a como sua representante universal. O papel da educação, numa perspectiva emancipatória, é o de orientar a promoção da superação da parcialidade das relações políticas e da emancipação política. Porém, um projeto como este é impossível se pensado apenas a partir do ponto de vista da educação, posto que ela é uma instância da sociedade democrático burguesa que, embora expressando a totalidade dos processos sociais, necessita de todas as demais instâncias para efetivar seu papel emancipatório.

28

MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução. São Paulo: Expressão Popular, 2010. Ver também: MARX, K. Zur kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie Einleitung. IN: MARX, K. e ENGELS, F. Werke. Berlin: Dietz Verlag, 1981. V. 1.

Referências MARX, K. Zur kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie - Einleitung. IN: MARX, K. e ENGELS, F. Werke. Berlin: Dietz Verlag, 1981. V. 1. p. 378-391. MARX, Karl. On de Jewish Question. IN: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Collected Works. New York: International Publishers, 2005 (Volume 3); p. 146 – 174. MARX, Karl. Critical Marginal Notes on the Article ―The King of Prussia and Social Reform. By a Prussian‖. In: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Collected Works. New York. International Publishers, 2005; V. 3, p. 189-206. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. The German Ideology. In: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Collected Works. New York. International Publishers, 2005; V. 5, p. 19-451. MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

Diálogos sobre Formação Humana e Educação Socialista: Makarenko e Pistrak

Lucíola Andrade Maia “Quando o homem estiver compreendido na estrutura da realidade e a realidade for entendida como totalidade de natureza e história, serão criados os pressupostos para a solução da problemática filosófica do homem. Se a realidade é incompleta sem o homem, também o homem é igualmente fragmentário sem a realidade. Não se pode conhecer a natureza do homem na antropologia filosófica, a qual encerra o homem na subjetividade da consciência, da raça, da sociabilidade e o separa radicalmente do universo” (Karel Kosik).

Introdução Este artigo enfoca uma discussão sobre educação socialista, em seu sentido histórico, demarcando especialmente autores partícipes do processo revolucionário e da implantação do sistema educacional soviético no início do século XX, como Makarenko (1986)29

e

Pistrak

(2002).30

Realizamos

diálogos

com

esses

autores

por

compreendermos a perspectiva socialista em educação como um processo omnilateral, portanto, rico e diversificado, abrangendo várias atividades humanas. O objetivo central de nossa discussão é demonstrar a importância da formação do novo homem para a escola, para a universidade, e para a sociedade. Assim, tomamos como paradigma a filosofia socialista, interligando o debate sobre a formação do homem em Makarenko, e o problema da relação indivíduo-coletividade em Pistrak, importantes contribuições históricas para a educação mundial. Na mesma direção, destacamos a colaboração pedagógica e científica de linhagem socialista para as ciências humanas apoiados também em Lênin (1988), Gramsci (1978), (1980) From (1964), Manacorda (2000 a), (2000 b) Fernandes (1995).



Profª Doutora da Universidade Estadual do Ceará, do Centro de Educação. Coordena as pesquisas A obra de Florestan Fernandes, teoria e método: interpretação da realidade brasileira; Florestan Fernandes, Movimentos Sociais e Educação no Brasil; Florestan Fernandes e o Movimento dos Sem Terra – MST. 29 Importante pedagogo, liderança e autor marxista russo, lutou para construir um processo de educação revolucionária na União Soviética. Dirigiu a Colônia Maxim Gorki e a Comuna Dzerjinski. 30 Um dos mais notáveis autores russos em educação, doutor em Ciências Pedagógicas com formação em físico-matemática, trabalhou pela implantação de uma educação marxista na União Soviética. Dirigiu a Escola-Comuna NarKomPros. Foi diretor do Instituto Central de Pesquisa Científica de Pedagogia junto ao instituto Superior Comunista de Educação do Partido Comunista.

Os referidos autores nos orientam ser de fundamental importância no debate acerca da educação e da formação do homem socialista, encetarmos uma conexão entre a educação e o processo de acumulação do capital31. Isso nos auxilia a entender as razões estruturais da exclusão social da classe trabalhadora e seus direitos sociais, tópico que não discutiremos a fundo neste texto. Nossa abordagem considera as desigualdades sociais, dentre elas as educacionais, construções históricas da lógica fundamentada no acúmulo de capital. Nesse processo de acumulação de capital, a classe que vive do trabalho carece de bens essenciais a uma vida material e intelectual digna, como o alto desenvolvimento das forças produtivas demonstram ser possível ocorrer. Portanto, a discussão sobre o homem socialista, suas lutas e seus nexos com a realidade é a centralidade desse texto, o que passamos a desenvolver a seguir. Que tipo de homem queremos formar? Objetivando elaborarmos uma discussão relativamente aos fins sociais e educacionais a se perseguir no mundo contemporâneo e sobre suas consequências a respeito da vida humana sob uma nova forma de organização social, elencamos as seguintes perguntas: Queremos formar um homem individualista, movido pela indústria, pelo consumo e pela robótica, ou um homem que pensa, elabora, luta coletivamente por direitos sociais, pela transformação e emancipação da sociedade? De qual homem a humanidade e a escola necessitam? Quais suas características, quais seus princípios? Quais fundamentos filosóficos-práxicos e de vida esse homem necessita ter? Intentando responder a essas indagações expostas nos apoiamos em Pistrak (2009) reconhecido escritor russo que elabora importante discussão sobre a referida temática. Em A Escola-Comuna, obra-prima da educação socialista, Pistrak escreve: Que tipo de homens a fase revolucionária em que vivemos atualmente ( e que será provavelmente muito longa) exige de nós? À pergunta podemos dar a seguinte resposta: A fase que vivemos é uma fase de luta e de construção, construção que se faz por baixo, de baixo para cima, e que só será possível e benéfica na condição em que cada membro da sociedade compreenda claramente o que é preciso construir e como é preciso construir (PISTRAK, 2002, p. 33).

31

Sobre o tópico conferir a teoria detalhada em: MESZÁROS, István. Para Além do Capital. Campinas: Boi Tempo Editorial, 2002. Confira também a obra de MESZÁROS, István. A teoria da Alienação em Marx. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.

Nessa perspectiva, a indagação de Pistrak expressa sentido nos transportando para reflexões anunciadas no alvor do século XX, período em que ganhavam força as ideias de uma educação socialista. Seus ecos ressoam no século XXI, nos corredores do tempo, seja nas universidades, nas escolas, nos sindicatos, nas avenidas nas quais passaram marchas imortais pela liberdade, nos braços erguidos dos movimentos sociais32, seja em mobilizações populares, na tentativa de construção de uma sociedade livre do modo de produção capitalista. Os hinos do socialismo ainda embalam e pintam as bandeiras em lutas por uma nova forma de vida. O escritor citado continua sua exposição apresentando questões organizativas relevantes para a formação do homem socialista em construção. Ao realçar que o sistema precisa trabalhar nos educadores e no povo os seguintes tópicos como solução para problemas emergenciais de natureza teórica e prática: atributos para trabalhar coletivamente e para encontrar espaço num trabalho coletivo; aptidão para analisar cada problema novo como organizador; disposição e criatividade para criar as condições eficazes de organização.33 Relativamente a esta questão, Lênin apresenta importantes contribuições. De acordo com o referido pensador, na linha teórica e prática de enfrentar o desafio de edificar o socialismo é essencial investir na educação do homem, reconstruir o país e sanar os problemas emergenciais em seus diferenciados e múltiplos sentidos. Dessa maneira, relevantes atividades políticas haveriam de ser realizadas: organizar os trabalhadores do campo e da cidade, nas fábricas, no terreno filosófico, fundando uma nova mentalidade internacionalista de homem, seja no âmbito de construir as bases fundamentais do socialismo naquele país em nome da própria sobrevivência e soberania do povo. Desse modo, Lênin, em 1918, no histórico acontecimento no primeiro Congresso do Ensino na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS, discursava “ Em toda a linha da educação, parece-nos impossível conservar a antiga concepção de uma educação apolítica; parece-nos impossível colocar o trabalho cultural fora da política.‖ (LÊNIN, apud PISTRAK, 2002, p. 23). Essa fala implica em dizer que Lênin

32

Vejamos por exemplo a Passeata das Mulheres de pano ―rojo‖ (vermelho) em Madrid em julho de 2011, a Marcha Nacional dos Sem Terra – MST a Brasília em maio de 2005, a gloriosa Passeata dos educadores (em greve) da educação básica do Estado do Ceará no segundo semestre de 2011. 33 Há importantes e intermináveis tarefas urgentes determinadas pelo governo revolucionário da URSS. naquele período, por exemplo, a reforma agrária.

(1988) defende uma educação politizada diferente da educação domesticadora do capital, caracterizada pela produção mecânica de técnicas e pela dualidade e unilateralidade. Nesse sentido, Lênin (1988) entende que a escola fora da vida, fora da política, é uma educação apolítica e como a educação e ciência não são neutras, a sociedade não é neutra, não é harmônica como defende o positivismo em seu lema ―Ordem e Progresso.‖ Para Lênin, a educação não deve nem pode ser apolítica. Todo ser humano pensa e ao pensar elabora concepções desde a infância até a morte porque, segundo Paracelso. ninguém passa dez horas sem aprender.34 Portanto, a compreensão leninista de escola e de educação do ponto de vista das teses do socialismo, imprime uma educação politizada na qual o homem seja crítico e consciente do seu papel social, como homem e pensador socialista. Mais ainda: o homem numa concepção socialista passa a edificar a práxis da coletividade, cooperação, ativismo e radicalidade da luta e da defesa de uma educação comprometida com o conhecimento científico, técnico, artístico-cultural, pautada na Filosofia da Práxis35 transformadora e livre da exploração do capital. Isso ocorre, visando a formação de homens capazes de aprender, ensinar e aplicar, no sentido socialista uma nova ―leitura do mundo e da palavra‖, parafraseando Paulo Freire36 em suas obras nas quais advoga a conscientização política das classes populares. Na esteira do pensamento leninista a partir de fundamentos socialistas, Florestan Fernandes (1995),37 sociólogo e um dos mais notáveis marxistas brasileiros, difusor do ideário socialista na América Latina, sustenta que o homem a se formar é um ser

34

Cf. MESZÁROS, István. A Educação Para além do Capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005. Recomenda-se relevante contribuição sobre o tema elaborado por: Vázquez, Adolfo Sánchez. Filosofia da práxis. Editora Expressão Popular, 2007. ―A práxis revolucionária, na análise imediatamente anterior aos manuscritos econômico-filosóficos de 1844, mostra-se em estreita aliança com a filosofia e tendo por sujeito o proletariado como classe destinada a revolucionar a sociedade existente. Vemos aí o proletariado como a expressão concentrada dos sofrimentos que são infligidos ao homem, e impelido a libertar-se, em uma libertação que implica, enquanto tal, sua abolição e a libertação da humanidade inteira‖ (VÁZQUEZ, 2007, p.120). 36 Cf. FREIRE, Paulo; MACEDO, Donaldo. Alfabetização: leitura do mundo, leitura da Palavra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. Cf. mais detalhes em FREIRE, Paulo. Conscientização. São Paulo: Moraes, 1980. 37 Importante referência teórica do socialismo na América Latina, esse autor de cunho universal, aborda em suas obras discussões sobre o tema em pauta. Florestan Fernandes organizou no Brasil, livros sobre o pensamento de Lênin, escreveu o prefácio de Que Fazer? da edição brasileira e proferiu inúmeros discursos a favor de uma educação socialista e dos ―debaixo‖ como ele costumava chamar. Maiores detalhes ver em: FERNANDES. Florestan. Em Busca do Socialismo – últimos escritos e outros textos, São Paulo: Xamã, 1995. 35

humano engajado nas lutas sociais comprometido com a verdadeira transformação da sociedade em constantes movimentos sociais. A coletividade socialista em Makarenko e Pistrak Makarenko em meio a inúmeros conflitos da Revolução Russa trabalhando numa situação adversa e com várias linhas de pensamentos pedagógicos, enfrentou os desafios de criar uma nova educação, elaborar métodos inseridos nos princípios socialistas, reconstruir a escola, estabelecer o novo sistema educacional, educar crianças abandonadas. Nesse percurso pensamos em Makarenko ao ver esse educador imprimir com vigor a pedagogia construída por ele que serviria de base teórica e prática para a educação socialista em várias partes do mundo, inclusive em escolas comandadas por movimentos sociais, a exemplo do MST, referendando a proposta de educação de Makarenko através de suas lutas38, no Brasil. Nesse sentido, no dizer de Manacorda: Makarenko elabora, então uma pedagogia original, anti-rousseauniana e não espontânea, embora toda a literatura pedagógica da época fosse tal, mas voltada para uma exigentíssima ―educação dos sentimentos‖, frequentemente num aparente contraste com os interesses das crianças, assim como elas os entendiam. Esta educação tão exigente se realiza especialmente através da conexão entre instrução e trabalho produtivo, do qual as crianças devem ver os frutos concretos e no qual são necessariamente levadas à colaboração com o objetivo de que são parte. (MANACORDA, 2000, p. 316).

Makarenko busca, ao longo de sua vida de educador, formar jovens constantemente envolvidos com a dinâmica social, tendo como meta a edificação e o fortalecimento do socialismo. Esse educador trabalha com uma visão internacionalista de homem e de sociedade, pensando no congraçamento dos povos e na elevação do homem socialista, livre e consciente. O pedagogo socialista ressalta a necessidade da existência de um sistema político internacional que ultrapasse os limites territoriais dos países e desenvolva uma política de alianças da classe operária em âmbito mundial, com o intuito de desenvolver relações políticas entre os povos trabalhadores do mundo, com a finalidade de organizar-se coletivamente pela defesa dos seus direitos sociais e trabalhistas e pela construção de uma consciência de classe internacionalista. No percurso de sua vida como homem e como educador revolucionário,

38

Sobre a questão do MST ver maiores detalhes em: MAIA, Lucíola Andrade. Mística educação e resistência no movimento dos sem-terra. Fortaleza: Edições UFC, 2008.

Makarenko busca subsídios filosóficos nos conceitos gerais de Marx e Engels (1992), os quais veem a educação numa perspectiva dialética como geradora de conhecimento e trabalho. Para Marx e Engels, o saber deve retornar à coletividade sob a forma de tecnologia e de profissionais ricos em conhecimentos interligados ao socialismo. Nesse sentido: Para educar, os jovens poderão recorrer rapidamente a todo o sistema produtivo, a fim de que possam passar sucessivamente pelos diversos ramos da produção - segundo as diversas necessidades sociais e suas próprias inclinações. (MARX & ENGELS, 1992, p. 95).

Conforme Maia (2010), Makarenko serve-se dos fundamentos de Marx e Engels para aplicá-los em sua prática político-pedagógica, a exemplo da ênfase na relação entre trabalho e educação nas atividades desenvolvidas na Colônia Maxim Gorki. No entendimento de Makarenko (1981), (1987), (1991), a formação de um coletivo não é um conjunto de regras que os indivíduos devem seguir sem questionamentos. Para ele, o coletivo de educadores necessita trabalhar em acordo com os princípios práxicos e ideológicos do homem socialista. O trabalho com a coletividade constitui uma das tarefas mais importantes e difíceis do ato pedagógico, compartilhando com o processo de estruturação do novo homem, da formação do espírito coletivo tanto na escola como em toda a sociedade. A coletividade deve estar presente nas relações sociais, individuais, coletivas, profissionais, considerando a abordagem dos mais diversos problemas nacionais e internacionais. Um dos principais objetivos da coletividade é formar nos homens uma consciência política coerente com os preceitos socialistas. Sobre a disciplina, o aludido escritor explana: ―não se pode apresentar nenhuma exigência se não tiver uma coletividade verdadeiramente coesa.‖ (MAKARENKO, 1986, p. 41). O pedagogo em análise, em sua práxis político-pedagógica, seja em seus escritos, discursos, reuniões e assembleias está sempre preocupado com a formação do homem, com a disciplina e com a coletividade numa compreensão socialista dos educadores e dos educandos. Dentre as principais atividades coletivas realizadas na Colônia Górki, sobrelevamos: trabalhos agrícolas, pecuários; oficinas de mobiliários, oficinas de artes, teatro, música, poesia; jogos e brincadeiras educativas. Ademais, realizavam uma variedade de oficinas criadas de acordo com as necessidades emergenciais exigidas pelo cotidiano. Sobre as relações na Colônia Górki Maia (2010), na esteira do pensamento

makarenkiano expõe que os alunos se espelham nos professores, portanto, os docentes devem ser os mais dedicados possíveis; zelando pelas atividades escolares, não devem ter horários ociosos, sendo importante compartilhar do lazer dos alunos, e participar de todas as atividades importantes envolvendo os educandos. Acerca da temática Makarenko se expressa: Uma verdadeira coletividade é algo muito difícil. Por isso, se uma pessoa tiver ou não tiver razão, estas questões devem resolver-se não por humor da pessoa ou a favor de interesses particulares, mas atendendo aos interesses da coletividade. Observar sempre a disciplina, cumprir aquilo que é desagradável, mas é indispensável – nisto consiste o elevado sentido de disciplina (MAKARENKO, 1986, p.41).

Apoiado nesses pressupostos teóricos e práticos, afinados com a filosofia da práxis, a experiência de Makarenko mostra a coletividade no homem socialista primordialmente construída a partir dos princípios políticos filosóficos e ideológicos do marxismo-leninismo. Como o próprio autor escreve em sua obra: Como na vida tive que, fundamentalmente resolver objectivos e problemas relacionados com a educação sofri muito com esta questão, quando me enviam educadores sem educação. Gastei vários anos de minha vida e de trabalho, pois é uma grande estupidez contar que um educador sem educação eduque alguém. Considerei que era melhor ter na coletividade quatro educadores talentosos do que 40 sem talento e sem educação. Com meus próprios olhos vi pessoas sem talento e sem educação trabalharem na coletividade. Que resultado poderia dar um trabalho destes? Só a desintegração da coletividade. Não pode haver outros resultados (MAKARENKO, 1986, p. 101).

Nessa dimensão teórica Makarenko (1989), enfatiza a extrema relevância das experiências da vida coletiva no processo de formação da consciência política do homem e que o coletivo comprometido com as transformações sociais deve ter obrigatoriamente características afinadas com as teses socialistas. Todos os coletivos possuem objetivos teórico-práticos rigorosamente definidos visando a construção de um projeto político maior de superação das velhas estruturas do Império, pois: o coletivo é um organismo social vivo e, por isso mesmo, possui órgãos, atribuições, responsabilidades, correlações e interdependência entre as partes. Se tudo isso não existe, não há coletivo, há uma simples multidão, uma concentração de indivíduos (MAKARENKO apud CAPRILES, 1989, p.13).

Portanto, esse modelo makarenkiano de educação e disciplina diferente da educação liberal está ausente nas nossas escolas. Na educação liberal a disciplina privilegia a submissão, a subserviência de forma inconsciente e adestrada. Já a disciplina makarenkiana trabalha a formação e a conscientização política do homem,

indicando a necessidade de profundas transformações pretendendo consolidar o novo paradigma teórico educacional em todos os seus aspectos e em todas as áreas do conhecimento. As obras e os legados sociais de Makarenko (1987) e Pistrak (2009) nos apresentam exemplos de educação, de teoria e de prática nos propondo um pensar e um repensar sobre a temática em debate. Essas reflexões são relevantes e necessárias pois os movimentos sociais abraçam as teorias dos autores citados em suas práticas, educativas, políticas, artísticas, culturais. Por exemplo, no Movimento dos Sem Terra – MST, algumas atividades são fundamentadas nos coletivos, nos destacamentos, nas brigadas revolucionárias descritas por Pistrak e Makarenko, pensando na transformação do homem e da coletividade. Daí a importância entre essas conexões teóricas e práticas entre movimentos sociais e educação também advogada por Pistrak em A Escola-Comuna e Fundamentos da Escola do Trabalho: Os movimentos sociais também ensinam e não porque a escola não entrelaçar-se com eles. Mais ainda: se a escola é necessária, mas insuficiente para produzir muitas das transformações sociais, sua ligação com os movimentos sociais permite potencializar sua ação (PISTRAK, 2009, p. 93).

É relevante destacarmos que a articulação entre escola, universidade, movimentos sociais (sindicatos, partidos políticos), sociedade é indispensável ao processo de formação humana numa perspectiva socialista. Para a formação de variados coletivos, por exemplo, coletivos de educação física e ginásticas, de educadores, de arte, de cultura, de mobilização, de grupos de estudo em diversas áreas, buscando novos caminhos teóricos e novas aprendizagens. Na compreensão do educador russo Pistrak, a função de coletivo é atuar como um meio educativo, isto é, ―que o ser humano não pode esquecer que existe enquanto indivíduo, que existem as necessidades individuais, coletivas e sociais.” (PISTRAK, 2009, p.93). Nessa direção, Pistrak entende que para a criação de uma coletividade forte deve ser realizado um trabalho articulado com os movimentos sociais, pois estes já desenvolvem práticas políticas coletivistas. Para isso é necessário o homem possuir espírito de luta, de comunidade, de organização, de cooperação, dispor de um vasto conhecimento sobre a realidade do mundo dos homens e fundamentalmente uma práxis solidária.

Aprendendo, este homem, portanto, a definir papéis entre indivíduo e coletividade, pois para se construir um coletivo organizado e comprometido é necessário existir os indivíduos conscientes e em formação de suas claras funções. Desse modo, respeitando e aprimorando as decisões coletivas colocando-as em prática igualmente como definidas pela coletividade em assembleias. Compreendemos que esse processo demanda tempo histórico e a construção do homem em seus múltiplos sentidos e dimensões, inclusive educativas. Na esteira da elaboração socialista de seu tempo e de seu contexto histórico Pistrak expressa que: ―A nova aprendizagem implica assumir que há momentos para o coletivo e há momentos para o indivíduo e que seu desenvolvimento deve colocar estes momentos em uma continuidade dialética.‖ (PISTRAK, 2009, p. 94), pois pensando de acordo com esse pressuposto teórico, entendemos que a construção do par dialético individual-coletivo é indissolúvel assim como são inseparáveis teoria e prática numa perspectiva do materialismo histórico-dialético. É essa a intenção de Pistrak ao versar sobre a temática: o coletivo, não deve ser a negação pura e simples do indivíduo, de sua individualidade. Assim o autor advoga que nas práticas políticas e sociais a própria individualidade precisa do coletivo para seu desenvolvimento

e

aprimoramento,

pois

―Nem

se

aprende,

nem

se

luta

espontaneamente.” (PISTRAK, 2009, p. 95). (in) conclusão: Diante do exposto compreendemos que a concepção socialista de homem e a fomação humana requer um amplo debate em torno do tema. Devido a proeminência do assunto é necessário uma discussão aprofundada no movimento do real in lócus com docentes, discentes, comunidade escolar, universidade, movimentos sociais, partidos políticos, visando a transformação da consciência dos homens, tanto nos aspectos políticos como nos tópicos pedagógicos. Construindo nesse sentido, uma perspectiva crítica de educação comprometida com as tarefas de formar o novo homem e uma nova sociedade livre do modo de produção vigente. Entendemos que a escola em seu nicho isolada não conseguirá alcançar a práxis pedagógica e a superação do sistema. Porém, a escola é contraditória, é um importante espaço e instrumento na sua essência fundada para a aprendizagem, instrução, aquisição e socialização do conhecimento, assim como espaço para as lutas da humanidade. Em meio as suas contradições a escola é um importante lugar para a conscientização política. E é por isso que Makarenko e Pistrak atribuem o devido

destaque a escola e a educação por entenderem que é também através da escola e dos processos educativos em seus variados espaços que a juventude e a comunidade na concepção socialista aprendem e formam uma consciência crítica e política. Aprendem a reivindicar seus direitos políticos e sociais, aprendem a participar da vida da comunidade. Aprendem que a escola não é o único local em que se aprende, a aprendizagem no sentido crítico e socialista se dá também e principalmente nos movimentos sociais, nas lutas, nas tarefas políticas. Nessa perspectiva teórica, o trabalho coletivo para formar o novo homem, uma nova sociedade, o novo espírito coletivo de homem, de mulheres é supervalorizado na práxis de Makarenko e Pistrak. A coletividade tanto para Makarenko como para Pistrak são indispensáveis para a formação do novo homem e do educador socialista, abarcando também uma educação popular. Que a educação, a escola, a universidade, a comunidade sem trabalhar seus problemas em coletividade não se desenvolverá a contento pois, nos princípios socialistas, uma das características principais é a coletividade, inclusive a propriedade coletiva dos meios de produção tendo seus desdobramentos práticos e teóricos na formação da humanidade, da sociedade e particularmente na construção do educador ancorado nesses pressupostos. Ademais, a compreensão de coletividade em Pistak (2009) é também o lado da luta pelo desenvolvimento material de novas formas sociais acolhedoras tanto do homem no sentido de indivíduo, como dos coletivos; novas formas sociais não excludentes dos outros indivíduos, o que pode ser obtido pela superação das relações sociais capitalistas, traçadas pelo exercício do individualismo e da competição. Diante da explanação e do debate da atualidade do socialismo no século XXI, ficam algumas indagações: quais as principais dificuldades que os homens enfrentam para desenvolver um trabalho coletivo coeso e coerente visando a superação do atual sistema ? Quais os problemas elencandos para a convivência em coletividade, seja na escola, na universidade, nos movimentos sociais, nos partidos políticos buscando as utopias e a transcendência? Quais as principais questões trabalhadas objetivando a superação e do individualismo e da competição tão praticada pelos homens capitalistas? Sabemos que esses são alguns dos grandes desafios que os homens verdadeiramente comprometidos com a transformação da sociedade precisam enfrentar, mais ainda sabemos que esse é um processo em construção, a construção da utopia revolucionária.

A organização coletiva e solidária da sociedade é um dos maiores legados das experiências de Makarenko e Pistrak, como de diversas lutas realizadas a favor da emancipação humana. Essa herança torna-se fundamental para que possamos encontrar as respostas às perguntas do inicio de nossa reflexão acerca de que tipo de homem e de sociedade necessitamos. Com essas reflexões aprendemos que o homem novo somente poderá existir com o exercício da práxis transformadora, fundada na organização consciente, solidária, autônoma livremente associado ao modo de produção socialista.

Referências

CAPRILES, René. MAKARENKO - O nascimento da pedagogia socialista. [s.l.]: Scipione, 1989. FERNANDES, Florestan. Em Busca do Socialismo – últimos escritos e outros textos, São Paulo: Xamã, 1995. FREIRE, Paulo. Conscientização. São Paulo: Moraes, 1980. ________; MACEDO, Donaldo. Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. FROM. Eric. Conceito marxista do homem. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1964. GRAMSCI. Antonio. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. _________. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. LENIN, Vladimir Ulianov. Que fazer? São Paulo: Hucitec, 1988. MAIA, Lucíola Andrade. Mística educação e resistência no movimento dos sem-terra. Fortaleza: Edições UFC, 2008. __________; PINHEIRO, Carísia Maia. Mestres da educação socialista. Fortaleza: CCB Editora, 2010. MANACORDA, Mario Alighiero. História da educação: da antiguidade aos nossos dias. São Paulo: Cortez, 2000. _________. Marx e a pedagogia moderna. 3. ed. Tradução de Newton Ramos de Oliveira; Revisão técninca de Paolo Nosella. [s.l]: Cortez Editora, 2000. MAKARENKO, Anton Semionovich. Conferências sobre educação infantil. São Paulo: Moraes, 1981.

_________. Poema pedagógico. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. V.1. _________. _________. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, [s. d]. V.2. _________._________. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1991. V.3. _________. Problemas da educação escolar. Moscou: Editora Progresso, 1986. MARX, Karl & ENGELS, Frederich. Textos sobre educação e ensino. 2. ed. São Paulo: Moraes, 1992. MESZÁROS, István. Para além do capital. Campinas: Boitempo Editorial, 2002. __________ A teoria da Alienação em Marx. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003. __________ A Educação Para além do Capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005. PITRAK, M. Moisey (Org). A Escola-comuna. São Paulo: Expressão Popular, 2009. _______. Fundamentos da escola do trabalho. São Paulo: Expressão Popular, 2002. VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da práxis. São Paulo: Expressão Popular, 2007.

Marx e Mészáros: Uma Análise da Crise do Capital e da Transição Socialista Wildiana Kátia Monteiro Jovino

Introdução Marx evidenciou as crises capitalistas como inerentes à dinâmica que movimenta a vida social no capitalismo. Com igual intensidade, ele assevera as premissas objetivas e subjetivas de ruptura do ser social ao atual modo de produção e reprodução social. Mészáros, por sua vez, corroborando com o pensamento de Marx, fundamenta a transcendência histórica do socialismo como uma construção humana plenamente realizável. Neste sentido, este artigo pretende investigar, por um lado, as premissas subjacentes à crise capitalista presentes em Marx e Mészáros e, por outro lado, os fundamentos que embasam a transição socialista defendido por Mészáros. O argumento utilizado versará em alguns dos princípios orientadores à transformação socialista apontados por Mészáros, para o qual a ―ação extraparlamentar‖ a progressiva transferência do poder de decisão aos produtores associados e a igualdade substantiva, dentre outros, figuram como importantes aportes no desenvolvimento da consciência socialista. Para clarear tal proposição, guiaremo-nos por uma concepção de mundo que se põe em franca oposição às verdades carcomidas do capitalismo e pela afirmação da teoria revolucionária que dispõe dos fundamentos basilares à concretização do projeto emancipatório de sociedade. Pretendemos argumentar que, não obstante a proclamação ideológica neoliberal e o niilismo existencial que implode as subjetividades contemporâneas, o ideal socialista de sociedade não está morto. Esta afirmação não tem por base nenhuma crença utópica de terra prometida ou algum devaneio surrealista. As bases das quais partimos são reais. É no interior do próprio modo de produção capitalista, com suas tendências e contradições, que se gestam os elementos para um novo tipo de sociedade, precisamente a sociedade comunista, sociedade esta que não demarca o fim da



Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da Universidade Federal do Ceará – UFC, sob a orientação do Prof. Dr. Eduardo F. Chagas (UFC). Bolsista do Prograd/Capes [email protected]

caminhada humana, mas apenas o alvorecer da verdadeira história da humanidade. Antes, porém, de investigar a estratégia orientadora ao socialismo defendida por Mészáros, iniciaremos este artigo analisando a equação reprodutiva do capital no interior do capitalismo, desvendado por Marx, trazendo à margem a natureza contraditória do sistema do capital. O movimento de acumulação do capital por Marx Em sua forma mais amadurecida, a acumulação do capital se expressa na fórmula39 geral D – M – D‘. Nesse circuito, o valor de troca se sobrepõe ao valor de uso, pois o dinheiro obtido ao final do processo será quantitativamente maior do que o inicialmente investido, e este movimento transforma o dinheiro em capital. Esta transformação só pode ser explicada a partir do momento em que as condições históricas fazem surgir uma mercadoria peculiar, a força de trabalho humano, cujo processo de consumo seja um processo de criação de valor e de mais valor que ela tem, de modo que o possuidor do dinheiro compra mercadorias por seu valor, vende mercadorias por seu valor e, mesmo assim, obtém valor excedente, isto é, mais-valia. Para transformar dinheiro em capital, tem o possuidor do dinheiro de encontrar o trabalhador livre no mercado de mercadorias, livre nos dois sentidos, o de dispor, como pessoa livre, de sua força de trabalho como sua mercadoria, e o de estar livre, inteiramente despojado de todas as coisas necessárias à materialização de sua força de trabalho, não tendo, além desta, outra mercadoria para vender (MARX, 2008, p. 199).

O capitalista compra máquinas, utensílios, instrumentos, matérias-primas (capital constante) e força de trabalho (capital variável) para produzir novas mercadorias, as quais terão um valor a mais do que o gasto por ele. É a diferença entre o inicial investido na compra e o final arrecadado na venda que alimenta e motiva o capitalista, o lucro. Marx, porém, dá-nos os elementos para uma leitura mais apurada dessa imediaticidade e nos esclarece que o lucro do capitalista não se origina, de forma isolada, na esfera da circulação. A mais-valia, porém, também não tem origem fora da circulação, mas através do uso pelo capitalista da mercadoria força de trabalho por ele comprada, uso este que consiste como processo social de produção. A mais-valia surge

39

Não nos deteremos na análise da forma simples da circulação de mercadorias (M – D – M), tendo em vista que tal equação exprime a satisfação das necessidades humanas, na medida em que se inicia com a conversão de mercadoria em dinheiro e reconversão de dinheiro em mercadoria e esta, por sua vez, é consumida como valor de uso, tendo na esfera do consumo a finalização do processo.

do tempo de trabalho excedente, não pago, do trabalhador. Dessa forma, o capitalista promove novas e melhores formas de extração do excedente, de transformá-lo novamente em capital, e, por sua vez, dá andamento à sua acumulação ampliada. Quando há o prolongamento da jornada de trabalho, o capitalista motiva, por exemplo, a produção de 20 cadeiras, ao invés das 15 produzidas nas oito horas habituais de trabalho (mais-valia absoluta). Pode-se, ainda, aumentar a produtividade do trabalho, reduzindo o tempo de trabalho necessário à produção do equivalente à subsistência do trabalhador, que se era de quatro, por exemplo, passa a três horas, sendo incorporado essa diferença como acréscimo ao trabalho excedente, que passa a cinco horas e o trabalho necessário se reduz a três horas, ou seja, o excedente, que já pertence ao capitalista, era de quatro, agora passou a cinco horas (mais-valia relativa). Esta proeza é o que torna possível a acumulação do capital, facilitada pela aplicação de novos métodos de produção. Daí surge o fetiche da técnica como condição e caminho para o progresso da humanidade. O que esses fetichistas esquecem é que o trabalho vivo é a única fonte de novo valor. Os disfarces que a produção capitalista assume para mascarar seu objetivo predominante têm apenas uma forma, a saber, a extração incessante do excedente do trabalho humano. Mas, a produção capitalista não é somente a reprodução de mercadorias e maisvalia, pressupõe também a produção e reprodução das relações sociais de produção que lhe servem de base: De um lado, sujeitos aptos a comprar mercadorias a fim de produzir outras novas se impõem a outros que necessitam vender sua força de trabalho pelo preço que a eles mesmos custam. A equação capitalista, portanto, ainda que se alimente da produção de mercadorias e excedentes, necessita igualmente de relações sociais que lhes dêem sustentação e legitimidade, pois, para que tenha continuidade, faz-se mister que os indivíduos adotem ―as perspectivas gerais da sociedade de mercadorias como limites inquestionáveis de suas próprias aspirações‖ (MÉSZÁROS, 2006, p. 263-264). Ademais, a dinâmica que movimenta a vida social confronta a produção capitalista com uma tendência que ergue obstáculos ao seu próprio desenvolvimento. Se a classe dos capitalistas, para sobreviver à concorrência acirrada, precisa reduzir seus custos continuamente e esse objetivo demanda investimentos de forma contínua e crescente em maquinário e matérias-primas, e, como conseqüência, tem-se uma diminuição relativa do capital variável empregado, em comparação com o constante, ou seja, há uma tendência à negação do trabalho vivo pelo trabalho morto, determinando uma elevação no que Marx chama de composição orgânica do capital. Esse aumento na

composição orgânica do capital implica um estreitamento da base de sustentação do processo de valorização do capital que se projeta na tendência à queda da taxa de lucro. Essa barreira ao desenvolvimento da produção capitalista é o ―mistério‖ que atormenta a economia política desde Adam Smith e cuja tentativa de formulação teórica envolve os economistas, anteriores e posteriores à Marx, em grandes divergências 40. É este o paradoxo essencial da produção capitalista, que ―ao desenvolver-se, a taxa média geral da mais-valia tenha de exprimir-se em taxa geral cadente de lucro‖ (MARX, 1983, p. 243). Por um lado, para se obter um lucro superior, é necessário o aumento da produtividade do trabalho e a consequente redução dos custos de produção das mercadorias, situação que empurra o conjunto dos capitalistas ao investimento em capital constante. Por outro lado, essa operação implica na redução relativa do capital variável, e, por conseguinte, à queda da taxa de lucro, queda esta que é, em parte, atenuada41 pela taxa mais alta de mais-valia da qual se utiliza o capitalista. Marx diz: [...] e nisto consiste todo o mistério da tendência à baixa da taxa de lucro – que os meios de produzir mais-valia relativa reduzem-se, em suma, ao seguinte: converter a maior quantidade possível de dada massa de trabalho em mais-valia, ou empregar a menor quantidade possível de trabalho em relação ao capital adiantado. Assim, as mesmas causas que permitem elevarse o grau de exploração do trabalho, impedem que se explore com o mesmo capital global a mesma quantidade anterior de trabalho. Há aí tendências opostas que simultaneamente atuam no sentido de elevar a taxa de mais-valia e de baixar a massa de mais-valia e por conseguinte a taxa de lucro correspondentes a dado capital (MARX, 1983, p. 267).

Marx adverte, no entanto, que a queda da taxa de lucro tem um caráter controlado. À lei geral da queda da taxa de lucro sobrelevam-se ―fatores contrários‖ que ―anulam‖ a consumação absoluta da baixa geral da taxa de lucro, o que lhe imprime o caráter de tendência, são eles: O aumento do grau de exploração do trabalho, a redução dos salários, a baixa dos preços dos elementos do capital constante, a superpopulação

40

Segundo observa, ―embora a economia política vislumbrasse a diferença entre capital constante e variável, não chegou a formulá-la claramente; [...] nunca apresentou a mais-valia separada do lucro e a configurar o lucro em sua pureza, destacado de seus componentes diversos que ostentam autonomia recíproca, como lucro industrial, lucro comercial, juros, renda fundiária; [...] nunca analisou em seus fundamentos a variação da composição orgânica do capital e por isso tampouco a formação da taxa de lucro‖ (MARX, 1983, p. 244). 41 Cabe ressaltar que, embora a taxa de mais-valia se constituir no elemento fundamental do processo de acumulação e reprodução do capital, a tentativa da classe capitalista de incremento da taxa de lucro por meio da intensificação do grau de exploração da força de trabalho se depara sempre com a resistência, passiva ou velada, da classe operária. Ainda que a taxa de mais-valia seja intensificada através de processos alternativos que não impliquem um confronto direto com os trabalhadores, essas fontes de superexploração tendem ao progressivo esgotamento, tendo em vista que a mundialização do capital conduz a uma crescente homogeneização da produção.

relativa (exército industrial de reserva), o comércio exterior e o aumento do capital em ações são os fatores contrários à lei da queda do lucro apresentados por Marx, que retardam e/ou paralisam parcialmente essa queda (MARX, 1983, p. 267-276). A correlação dessas forças, que objetivam suplantar os limites que se interferem à expansão do capital, no entanto, não altera a regra de que, na produção capitalista, o desenvolvimento da produtividade do trabalho equivale à redução da taxa de lucro. Sendo o lucro o ―estimulante‖ da produção capitalista e por ele se impor o aumento da produtividade - relação que conduz não ao aumento do trabalho social, mas, de forma inversa, à diminuição relativa do trabalho vivo em geral - temos, então, revelada a contradição do modo capitalista de produção. Vejamos o que Marx nos diz: Mais uma vez revela-se o limite específico da produção capitalista e vê-se que não é, de maneira alguma, forma absoluta do desenvolvimento das forças produtivas e da criação da riqueza, colidindo com este desenvolvimento a partir de certo ponto (MARX, 1983, p. 302).

A contradição permanente entre os objetivos e meios empregados para se atingir o desenvolvimento ilimitado da produção colidem com as relações de produção que lhe correspondem. O conflito entre esses elementos antagônicos se realiza, periodicamente, nas crises que perturbam o processo de circulação e reprodução do capital. ―As crises não são mais do que soluções momentâneas e violentas das contradições existentes, erupções bruscas que restauram transitoriamente o equilíbrio desfeito‖ (Marx, 1983, p. 286). São, portanto, inerentes ao modo de produção capitalista, é produto das contradições internas que vigoram nas relações de produção e, ao mesmo tempo, motor funcional de reação, restauração e sobrevida do próprio sistema, pois está na natureza do capital superar as barreiras que afrontem a sua fome ininterrupta de expansão. Não obstante, ainda que postergada indefinidamente em seus conflitos, tenderá à fratura e eis que se apresenta o calcanhar de Aquiles. Todavia, é importante destacar que o capitalismo não tem limites puramente econômicos, devendo ser superado por uma revolução social. Trata-se, pois, de um processo histórico-social diretamente vinculado ao desdobramento da luta de classes. O movimento alternativo de István Mészáros A reflexão sobre a crise do capital, sua indelével rede de contradições que abarcam a totalidade do complexo social, confronta-nos com posições ideológicas – e

conhecimentos compatíveis a cada um deles - que retratam os embates e distorções, com os quais o projeto socialista e marxismo têm se deparado ao longo da sua história. Digno de nota acerca desse movimento degenerativo da teoria revolucionária pode ser ilustrado com o embate ―científico‖ de Rosa Luxemburgo pela transformação socialista do mundo contra o ―revisionismo‖ de Eduardo Bernstein pela na luta sindical e política do movimento operário como forma de ―reduzir, por etapas, a própria exploração capitalista, arrancar cada vez mais à sociedade capitalista o seu caráter capitalista‖ (Luxemburgo, 1999, p. 59) como estratégia de realização do objetivo final. De fato, circunstâncias históricas adversas têm conduzido o movimento operário à prática acomodativa aos interesses do capital, aniquilando a original e impreterível unidade internacional da classe trabalhadora em torno da alternativa socialista. Soma-se ao quadro a insígnia apologética da onipresença das contradições crônicas do sistema que projeta e conforma nossos cérebros ao apelativo letreiro luminoso de que ―nada de novo sob o Sol é produzido42‖ (Hegel, 1998, p.53). Contrapor-se às tendências ideológicas que eternizam o capitalismo sobre outra forma social possível não se constitui tarefa simples, afinal a consciência social de uma dada época é expressa pela ideia da classe hegemônica e assume, de forma aparente e idealista, a representação dos interesses universais da sociedade. A consequência teórica dessa ideologia recaí na condenação do marxismo e na insistente negação das forças possíveis de emancipação. Como rota de fuga à promessa de desvencilhamento das contradições sociais que insistem em não desaparecer, novas teorizações mistificadoras são elaboradas: o fim da história (Fukuyama, 1999), a pós-modernidade, a perda de credibilidade do grande relato da emancipação (Lyotard, 2009), a comunidade ideal de comunicação intersubjetiva (Habermas apud Mészáros, 2004), que são apenas alguns exemplos do ideário relativista pós-moderno que busca o consenso político e o subterfúgio das contradições sob a alegativa da inacessibilidade da razão humana à realidade objetiva. Tal versão, em última instância, procura inviabilizar a transcendência do consenso obtido em esferas isoladas e localizadas do discurso ou da linguagem, relegando para a ―terra do nunca‖ o compromisso de luta pelo ideal socialista de sociedade. Paradoxalmente, todo esse entorpecimento ideológico não é capaz de

42

De acordo com Hegel, ―apenas nas transformações que acontecem no campo espiritual surge o novo‖ (HEGEL, 1998, p. 53).

esgueirar-se da crise do capital, do capitalismo e dos dilemas sociais que se interpõem para a humanidade. Para Mészáros, a crise que vivenciamos hoje se diferencia da natureza de outrora. Segundo sua análise, não há mais intervalos cíclicos entre expansão e recessão. A própria realização do valor foi acometida pela lógica irrefutável de valorização do capital, que corrói as engrenagens do ―sistema sociometabólico‖. O sistema de ―mediações de segunda ordem‖ – a produção alienada e suas personificações - atrela a produção e o consumo à degradação do trabalho e da natureza às ―consequências destrutivas‖, que mais e mais se intensificam devido ao inerente distanciamento da produção voltada às necessidades sociais, humanas, diferentes daquelas dominantes, voltadas para a desmedida reprodução do valor. Desta feita, a crise nas estruturas do capital demarca limites intransponíveis ao desenvolvimento humano e expõe uma rede nefasta de contradições entre o capital e o trabalho que evidência a exaustão do atual modo de produção. A submissão das necessidades humanas ao poder alienante da expansão do capital, a desumanização do trabalho vivo transformado em mercadoria, a taxa de utilização sempre decrescente dos bens e serviços que põe em colapso o meio ambiente, são alguns dos fenômenos que destacam o caráter incontrolável e totalizador do sistema que enlaça todas as relações e esferas sociais sob os mesmos imperativos da viabilidade produtiva. Todavia, ainda que as complicações advindas desse quadro não possam ser refutadas nem mesmo pelas apologéticas hegemônicas, não podemos, igualmente, cair no ilusório discurso de que o capitalismo está sentenciado ao ‖ponto de não-retorno‖ do colapso geral, não obstante sua indiscutível capacidade de reinvenção. A crise estrutural do capital deve ser entendida como o pano de fundo não apenas da implacável confrontação dos limites do capital, mas também para ―novas potencialidades históricas‖. Os problemas que dela emergem abrem caminho para o exame crítico de problemas cruciais e estreitamente vinculados ao o salto para além do capital43, à atualidade histórica da ofensiva socialista e à teoria da transição socialista adequada ao contexto atual (MÉSZÁROS, 2009a, p. 76-83). No espírito da transição para o socialismo em escala global defendido por Marx, Mészáros aponta princípios orientadores à transformação socialista que devem ser

43

Há, em Mészáros, uma distinção entre capital e capitalismo. O capital antecede o capitalismo e é também posterior a ele. A analogia também se aplica à produção de mercadorias, que precede e não se identifica com a produção capitalista de mercadorias (MÉSZÁROS, 2009a, p. 76-78).

considerados numa totalidade integrada de determinações recíprocas e implicações globais que devem estar conjugados à negação radical do sistema do capital e do capitalismo, de forma a entrincheirar resquícios que possam revitalizar e restaurar as antigas estruturas conforme ocorrido no modelo soviético, afinal o ―êxito relativo da restauração capitalista‖ é responsável pela ―paralisia ideológica‖ que mantém as forças socialistas reféns dessa devastadora internalização (MÉSZÁROS, 2007, p. 228). Dentre as princípios necessários à ordem social alternativa, Mészáros sobrepuja à estratégia da ―participação democrática‖ da força de trabalho preconizado pela empresa capitalista, a ―progressiva transferência do poder de decisão aos produtores associados‖ na tomada de decisão em todos os níveis de controle político, cultural e econômico (Idem, 2007. p. 229). Apenas por este meio pode-se despertar nas massas um autêntico interesse, identificação e expansão das potencialidades positivas de reprodução da existência social. A participação só será significativa se os poderes de decisão forem realmente transferidos aos trabalhadores associados44, os quais deverão superar as determinações conflitantes e autoritárias herdadas do capital e isso só se torna realizável em um outro modo de intercâmbio produtivo. Na seqüência, a ―igualdade substantiva‖ será a consequência necessária e imprescindível à plena realização da estratégia da participação genuína dos trabalhadores, ―sujeito real do poder‖ e ao êxito do projeto socialista. Sem confrontar de forma consciente o problema da desigualdade estrutural arraigada à ordem do capital, a superação dos conflitos internos dos nossos microcosmos sociais torna-se tarefa sisifiana. Não é à toa que, no curso do desenvolvimento histórico do capital, grandes personalidades que levantaram a bandeira de uma sociedade igualitária tenham silenciado ou sucumbiram num cadafalso, e até mesmo a filosofia racionalista se mostrou incapaz de fornecer a salvação daquela sociedade ao despotismo e à miséria. Em lugar das relações sociais existentes em que a igualdade existe apenas como uma exigência formal/jurídica – perfeitamente manipulada em favor de determinados interesses – ou sob a fórmula da ―igualdade de oportunidades‖, a plena realização da igualdade substantiva se apresenta como uma necessidade de imensa complexidade e do qual o projeto socialista não poderá esquivar-se. E, naturalmente, essas mudanças (e demais outras não abordadas neste espaço) não podem realizar-se no interior do domínio político constituído no decurso do

44

Para Mészáros (2004), o sujeito social da emancipação envolve todo o grupo de trabalhadores.

desenvolvimento do capitalista. Como bem alerta Mészáros (2007, p. 281), ―o capital é a força extraparlamentar por excelência de nossa ordem social‖ e domina completamente o parlamento, este edificado historicamente na separação da política da dimensão reprodutiva material da sociedade. Estamos diante de um dos fatores apontados pelo autor que inviabiliza uma solução sustentável aos problemas sociais genuínos no interior da estrutura política parlamentar. Com efeito, contrapor-se à hostilidade de tais forças exige um movimento consciente e ativo das massas engajado em todas as lutas sociais e políticas se utilizando das oportunidades parlamentares disponíveis, por menores que sejam para firmar as demandas necessárias de uma ação extraparlamentar. Por certo, um movimento revolucionário organizado conscientemente não pode edificar-se no interior da política restritiva do parlamento dominado pelos interesses reprodutivos do capital e pela sobreposição dos interesses privados sobre a coletividade, tampouco pode ser obra de um partido político engajado na luta por concessões parlamentares, úteis somente na medida em que abram espaços para a formação de uma força de combate extraparlamentar. Para tanto, ―o desenvolvimento contínuo da consciência socialista‖ (Idem, 2007 p. 298) é um dos grandes desafios postos à educação das massas, que deve interagir, recíproca e dialeticamente, com a construção socialista de sociedade, bem como analisar claramente as concepções apropriadas aos desafios históricos que temos de enfrentar no curso de uma mudança qualitativa.

Referências HEGEL, G. W. F. Filosofia da História. Tradução Maria Rodrigues e Hans Harden. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998. MARX, K. O Capital: Crítica da Economia Política: Livro I: O Processo de Produção do Capital. Vol. I. 26. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008b. ______. O Capital: Crítica da Economia Política: Livro III: O Processo Global da Produção Capitalista. Vol. IV. 4. ed. São Paulo: Difel, 1983. MARX, K, F, ENGELS. A Ideologia Alemã (I – Feuerbach). 8. ed. São Paulo: Editora Hucitec, 1991. MÉSZÁROS, I. A Crise Estrutural do Capital. São Paulo: Boitempo Editorial. 2009a. ______. Para Além do Capital. São Paulo: Boitempo Editorial. 2009b.

______. O Desafio e o Fardo do Tempo Histórico: O Socialismo no Século XXI. São Paulo: Boitempo, 2007. ______. O Poder da Ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004.

Uma Análise Ontológica sobre a Relação de Identidade entre Produção, Distribuição, Troca e Consumo Pendência: falta identificação

José Pereira de Sousa Sobrinho

A apreensão de Marx (1987) a respeito da natureza humana leva-o à seguinte conclusão: o homem é um ser da natureza, contudo a sua natureza é essencialmente social, assim, a produção individual ou isolada é sempre uma produção em sociedade – de onde o autor conclui que as apreensões do ser em seu suposto isolamento tão comum à filosofia de Rousseau não passam de uma apreensão da aparência do real, pois o homem mesmo isolado efetiva seu isolamento em sociedade. Dessa conclusão, podemos afirmar que a produção humana é sempre uma produção em sociedade através da qual os homens em conjunto buscam meios para atender às suas necessidades coletivas. Desse movimento, estabelecem-se os diversos modelos históricos de organização da vida, desde as comunidades primitivas até a ordem burguesa, onde são originadas determinadas estruturas de reprodução social. Estrutura que pressupõe quatro fundamentos: produção, distribuição, troca e consumo, que constituem uma unidade socialmente articulada, onde cada fundamento representa uma estrutura e, em conjunto, dão forma ao processo de reprodução social em sua totalidade. A análise marxiana do processo de reprodução social segue o percurso metodológico na qual a exposição inicia-se com os diversos conceitos apreendidos do real apresentados em suas determinações gerais abstratas. Nesse primeiro momento da análise do processo de reprodução social os quatro fundamentos – produção, distribuição, troca e consumo – são expostos em seu conteúdo geral, ou seja, o filósofo alemão apresenta o seu conteúdo interno comum a todas as formas sociais. Assim, Marx afirma Na produção, membros da sociedade adaptam (produzem, dão forma) os produtos da natureza em conformidade com as necessidades humanas; a distribuição determina a proporção em que o indivíduo participa na repartição desses produtos; a troca obtém-lhe os produtos particulares em que o indivíduo quer converter a quota-parte que lhe é reservada pela distribuição; no consumo, finalmente, os produtos tornam-se objetos de prazer, de



apropriação individual. A produção cria os objetos que correspondem às necessidades; a distribuição reparte-os segundo leis sociais; a troca reparte de novo o que já tinha sido repartido, mas segundo as necessidades individuais; no consumo, enfim, o produto evade-se desse movimento social, torna-se diretamente objeto e servidor da necessidade individual, que satisfaz pela fruição. A produção surge assim como o ponto de partida, o consumo como o ponto de chegada, a distribuição e a troca como o meio termo que, por seu lado, tem um duplo caráter, sendo a distribuição o momento que tem por origem a sociedade e a troca o momento que tem por origem o indivíduo (Marx, 1983, p. 207).

Portanto, a relação entre produção, distribuição, troca e consumo é uma relação entre determinantes e determinados na qual os diversos fundamentos constituem sua particularidade em uma unidade estabelecida diante dos diversos nexos causais originados no interior das relações sociais. A tese marxiana é que o movimento interno destes fundamentos – movimento geral do processo de reprodução da vida humana – pressupõe uma determinada ordem, na qual está expressa a existência de leis sociais. Mas, a formulação expressa por Marx na citação acima apenas expõe o conteúdo superficial da relação de unidade entre os quatro fundamentos, trata-se do momento da aparência. A continuidade do método dialético de investigação efetiva-se na necessidade de isolar o fenômeno e estudar as suas diversas determinações abstratas, ao isolá-lo, podemos apreender o conteúdo interno da coisa. O que é efetivado na investigação da relação de unidade estabelecida entre os quatro fundamentos, unidades determinantes menores, que estão constituídas entre, produção e consumo, produção e distribuição, produção e troca. O método marxiano efetiva-se na análise das múltiplas determinações que compõem o conteúdo interno da coisa. A primeira determinação sobre a qual Marx se debruça é a relação de unidade entre produção e consumo. Sua análise se inicia sobre o fundamento mais singular e mais superficial da unidade entre consumo e produção, qual seja, o consumo na produção – o que é realizado sobre o duplo caráter do consumo. O caráter subjetivo presente ―no indivíduo que desenvolve as suas faculdades ao produzir, igualmente as despende, as consome no ato da produção, [...] é um consumo de forças vitais‖ (MARX, 1983, p. 208). O segundo momento é o consumo objetivo dos meios de produção empregados que se desgastam e se dissolvem, e objetivam um novo objeto. A riqueza do conteúdo exposto por Marx (1983, p. 207) delineia a unidade entre elementos objetivos e subjetivos, no qual se efetiva numa síntese no processo de autoconstituição do novo indivíduo que surge na esfera da produção, pois ―na produção o indivíduo objetiva-se e no indivíduo subjetiva-se o objeto‖. O novo ser social, com

novas capacidades objetivadas tem as suas capacidades adquiridas, também consumidas no ato da produção. Nesse momento, Marx expõe os resultados das formulações produzidas pela economia política burguesa sobre produção e consumo de onde surgem os conceitos de consumo produtivo e produção consumidora. Não se trata, para Marx, de expor o equívoco de tais formulações, já que os economistas clássicos estão corretos ao apresentarem a relação de unidade entre produção e consumo. Contudo, o conteúdo dessa unidade, expressa pelos economistas clássicos, expõe apenas a sua aparência, já que Ricardo e Smith apenas apreenderam a relação de unidade entre produção e consumo em seu caráter imediato. A análise marxiana denuncia os limites das formulações da economia clássica burguesa onde a apreensão da ―unidade imediata, em que a produção coincide com o consumo e o consumo com a produção, deixa subsistir a dualidade intrínseca entre ambas‖ (MARX, 1983, p. 209). A análise marxiana avança sobre as formulações dos economistas burgueses ao expor que a unidade entre produção e consumo não contém apenas uma unidade imediata. A unidade imediata é supra-sumida nesse momento da análise, pois no movimento da aparência para a essência a relação de unidade entre produção e consumo adquire uma nova qualidade, ao desvendar que a unidade geral entre produção e consumo, não se efetiva somente de forma imediata, mas também através de relações intermediadas, já que a produção é imediatamente consumo, o consumo imediatamente produção. Cada um é imediatamente o seu contrário. Mas opera-se simultaneamente um movimento intermediário entre os dois termos. A produção é a intermediária do consumo, a quem fornece os elementos materiais e que, sem ela, não teria qualquer objetivo. Por seu lado, o consumo é também o intermediário a produção, dando aos produtos o motivo que os justifica como produtos. Só no consumo o produto conhece a sua realização última. [...]. Sem produção não há consumo; mas sem consumo também não haveria produção, porque neste caso a produção não teria qualquer objetivo (MARX, 1983, p. 209).

O método marxiano permite um salto qualitativo em relação à análise econômica clássica, um novo determinante é incorporado à investigação ao avançarmos da unidade imediata para a relação de unidade intermediada. O segundo caso pressupõe relações multilaterais de determinação, que desvenda que o consumo produz a produção, assim como a produção produz o consumo. No desenvolvimento da análise do real, Marx (1983, p. 209 -210) acaba por demonstrar que o consumo produz duplamente a produção:

1º, Somente pelo consumo o produto se torna realmente produto. [...] Apenas o consumo, ao absorver o produto, lhe dá o retoque final (finish stroke); porque produção não se desencadeou enquanto a atividade objetivada, mas como mero objeto para o sujeito ativo [o consumo produz a produção]. 2º, O consumo cria a necessidade de uma nova produção, por conseguinte a razão prévia. O consumo cria o móbil da produção; cria também o objeto que, atuando sobre a produção, lhe determina a finalidade. Se é evidente que a produção oferece, na sua forma material, o objeto do consumo, não menos evidente que o consumo supõe idealmente o objeto da produção, na forma de imagem interior, de necessidade, de móbil, e fim. Cria os objetos da produção sob uma forma ainda subjetiva. Sem necessidade não há produção. Ora, o consumo reproduz a necessidade.

Da análise de Marx (1983) podemos compreender que a relação entre produção e consumo é intermediada pela necessidade. O consumo produz a produção quando esta deve objetivar um produto que atenda uma necessidade específica. Assim, a sua produção enquanto produto é concretizado apenas no ato de consumo. Quando um objeto é incapaz de atender a uma necessidade este não é útil, por conseguinte, também não é produto. Por sua vez, o consumo produz a produção quando determina que o produto deve ser rigorosamente coerente com a necessidade a ser atendida. Mas a análise dialética também apresenta a própria necessidade como histórica. O que permite compreender que da necessidade atendida pelo consumo surge a possibilidade de uma nova necessidade. Assim, o consumo produz uma nova necessidade e, por conseguinte, produz a produção ainda no campo do ideal quando determina a existência ideal do produto que atenderá à nova necessidade, produção subjetiva do produto. Portanto, do consumo surge a atividade teleológica, a qual conduz a ação – as causalidades postas – coerentes para a concretização da finalidade previamente estabelecida pela nova necessidade. Ou seja, no consumo está a origem da nova objetivação, o que significa que o consumo cria a produção. As relações de múltiplas determinações entre os fenômenos, expostas pelo método dialético, estão expressas quando apontamos que do duplo caráter de determinação do consumo sobre a produção resulta uma relação de tripla determinação da produção em relação ao consumo. 1º, A produção fornece ao consumo a sua matéria, o seu objeto. Um consumo sem objeto não é consumo; nesse sentido, portanto, a produção cria, produz o consumo. 2º, Mas não unicamente o objeto que a produção dá ao consumo. Dá-lhe ainda o seu aspecto determinado, o seu caráter, o seu acabamento (finish). Tal como o consumo dá o retoque final a produção, a produção dá-o ao consumo. Em primeiro lugar o objeto não é um objeto geral, mas um objeto determinado, que deve ser consumido de forma determinada, à qual a própria produção deve servir de intermediário. A fome é a fome, mas a fome que se satisfaz com a carne cozinhada, comida com faca e garfo, não é a mesma fome que come a carne crua servindo-se das mãos, das unhas, dos

dentes. Por conseguinte, a produção determina não só o objeto do consumo, mas também o modo de consumo, e não só de forma objetiva, mas também subjetiva. Logo, a produção cria o consumidor. 3º, A produção não se limita a fornecer um objeto material à necessidade, fornece ainda uma necessidade ao objeto material. Quando o consumo se liberta da sua grosseria primitiva e perde o seu caráter imediato [...], próprio consumo, enquanto instinto, tem como intermediário o objeto. A necessidade que sente desse objeto é criada pela percepção deste (MARX, 1983, p. 210).

Da determinação da produção pelo consumo, surge a determinação do consumo pela produção. Vimos anteriormente que no consumo está a possibilidade histórica de concretização de uma nova necessidade, da qual surge a produção subjetiva do objeto, prévia ideação, que determina a produção do objeto. O movimento dialético está completo quando o produto objetivado permite a objetivação do consumo, portanto, a produção cria o consumo ao fornecer-lhe a sua matéria. Entretanto a produção também lhe fornece uma matéria determinada – o produto enquanto objeto subjetivado – que atende a uma necessidade específica. Esse objeto humanizado, que é determinado, determina o seu modo de utilização, o modo consumo. Para Marx, como explica Leontiev (s/d), o produto é um objeto social no qual está incorporado e fixado um conjunto de operações com conteúdo sócio-histórico. A utilização do objeto pressupõe uma determinada ação prática em seu consumo. Contudo, essa ação prática é efetivada no ato da produção, no conjunto de conteúdos que são exteriorizados no objeto pelo homem. Assim, a produção objetiva produz a maneira exata de atender a uma necessidade, trata-se da produção do consumo de maneira objetiva. Mas também determina o modo de realização do indíviduo, sua fruição do ser social ao consumir o objeto; também determina o modo de consumo em sua forma subjetiva. O consumo determina a produção ao criar uma necessidade que dá origem a um produto particular. Mas o caminho inverso também se realiza quando um produto particular cria uma necessidade. O consumo é criado pelo objeto, ou seja, pela produção – já que o objeto é intermediário do consumo na medida em que a percepção do objeto em seu conteúdo sócio-histórico cria no indivíduo uma nova necessidade vinculada diretamente à função útil que o produto é capaz de atender, a necessidade é originada a partir da existência corpórea do produto. Assim, sobre a relação entre produção e consumo, conclui Marx (1983, p. 210): ―a produção não cria somente um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto [...]. De igual modo o consumo engendra a vocação do produtor, solicitando-lhe a finalidade da produção sob a forma de uma

necessidade determinante‖. No desenvolvimento da investigação, Marx (1983, p. 211) compreende a relação de identidade entre produção e consumo sobre um triplo aspecto: 1º Identidade imediata. A produção é consumo; o consumo é produção. Produção consumidora. Consumo produtivo. 2º Ambos surgem como intermediários um do outro; uma é intermediada pelo outro, o que se exprime pela sua interdependência, movimento, movimento que os relaciona entre si e os torna reciprocamente indispensáveis, embora se conservem exteriores um ao outro. 3º A produção não é apenas imediatamente consumo, nem o consumo produção; igualmente a produção não é apenas um meio para o consumo, nem o consumo um fim para a produção, no sentido em que cada um dá ao outro o seu objeto, a produção o objeto exterior do consumo, o consumo o objeto figurado da produção. De fato, cada um não é apenas imediatamente o outro, nem apenas intermediário do outro: cada um, ao realizar-se, cria o outro; cria-se sob a forma do outro.

Portanto, na relação de identidade entre produção e consumo, produtor e consumidor objetivam-se na medida em que personificam o objeto. A relação de identidade está no indivíduo quando consumo e produção possuem em si o conteúdo que oferece forma ao ser social, expressam, portanto, o seu processo de hominização. A objetivação do objeto – que se dá na esfera da produção e do consumo – contém em si o processo de tornar-se homem do homem, sua subjetivação. A relação de identidade entre consumo e produção concretiza-se no ser e, portanto, contém em si um conteúdo ontológico ao determinar a existência do ser social enquanto indivíduo produtorconsumidor. Marx (1983, p. 211) confirma a nossa análise ao afirmar que É o consumo que realiza plenamente o ato da produção ao dar ao produto o seu caráter acabado de produto, ao dissolvê-lo consumindo a forma objetiva independente que ele reveste, ao elevar a destreza, pela necessidade de repetição, a aptidão desenvolvida no primeiro ato da produção; ele não é somente o ato último pelo qual o produto se torna realmente produto, mas o ato pelo qual o produtor se torna também verdadeiramente produtor. Por outro lado, a produção motiva o consumo ao criar o modo determinado do consumo, e originando em seguida o apetite do consumo, a faculdade de consumo sob a forma de necessidade.

A unidade entre consumo e produção engendra a individualidade humana, essa surge como resultado de uma relação de totalidade entre os fundamentos do processo de reprodução, o que nos permite compreender o consumo como meio de objetivação do ser, no qual a capacidade exteriorizada do ser durante a produção retorna ao ser e o determina enquanto indivíduo. O consumo é, pois, o momento de fruição das diversas capacidades humanas, um dos momentos de desenvolvimento da subjetividade, resultado do atendimento das necessidades. A produção também é um momento de

fruição do ser, na qual as suas capacidades de produtor são desenvolvidas e através do produto, são compartilhadas socialmente. Assim, a relação de identidade entre produção e consumo tem sua síntese na constituição do ser social, no seu processo de reprodução enquanto membro de uma sociabilidade – o que permite a Marx (1987, p. 14) afirmar que produção e consumo são dois momentos de um mesmo processo, já que: Para um indivíduo, produção e consumo manifestam-se como momentos de um mesmo ato. Importa apenas sublinhar que quer se considere a produção e o consumo como atividade de um sujeito ou de numerosos indivíduos, ambos os atos surgem de qualquer modo como momentos de um processo em que a produção é o verdadeiro ponto de partida e portanto também o momento predominante. O consumo enquanto necessidade é um fator interno da atividade produtiva; mas esta é o ponto de partida da realização e, portanto, o seu fator predominante, o ato em que todo o processo novamente se desenvolve. O indivíduo produz um objeto, e pelo consumo deste regressa a si mesmo, mas o faz enquanto indivíduo produtivo e que reproduz. O consumo surge assim como um momento da produção.

A relação intermediada pela necessidade entre produção e consumo pressupõe uma relação de movimento, um percurso contínuo de ida e volta nos dois momentos do mesmo processo. Esse movimento dialético adquire a forma de uma espiral ao originar mutuamente uma nova produção e um novo consumo, e, consequentemente, um novo ser social. A produção é a exteriorização das capacidades do ser social no objeto, o consumo é consumo da própria capacidade do ser social, a capacidade que retorna a si. No retorno a si mesmo encontra-se um homem transformado, pois a produção do produto e o seu consumo o transformam ao realizar a fruição entre os homens. A transformação do ser se dá ao apreenderem as suas diversas capacidades sociais, efetivando a transformação individual que ao mesmo tempo é coletiva. O ser social é consumidor e produtor, e no seu ser-em-si o movimento ineliminável concretiza o processo de autoreprodução, como uma constante objetivação do novo, o que permite um constante reinventar do ser. A exposição marxiana denuncia o caráter de unidade entre produção e consumo como dois momentos de um mesmo processo. Todavia, ―na sociedade a relação entre produtor e o produto, quando este último se considera acabado, é uma relação exterior, e o retorno do produto ao sujeito depende das relações deste com os outros indivíduos‖ (MARX, 1983, p. 212). Portanto, produção e consumo como atos efetivados em sociedade não são dois momentos de um processo individual, mas são dois momentos de um processo coletivo o que pressupõe relações sociais por intermédio das quais a produção se completa no consumo. Assim, Marx (1983, p. 212) define que o produtor

Não se torna imediatamente proprietário. Tanto mais que a imediata apropriação do produto não é o objetivo do produtor ao produzir em sociedade. Entre o produtor e os produtos interpõe-se a distribuição, que obedecendo a leis sociais determina a parte que lhe pertence na totalidade dos produtos, colocando-se assim entre a produção e o consumo.

A unidade entre produção e consumo – enquanto fenômenos objetivados em momento distintos por diferentes indivíduos na sociedade – é efetivada ao encontrar na distribuição uma mediação necessária. Marx (1983), ao apresentar o fenômeno da distribuição como uma categoria social, submetida às leis sociais gerais sobre as quais estão submetidos também os momentos da produção e do consumo, dá-nos a indicação para compreendermos que a distribuição não é um fenômeno autônomo ou exterior a produção. Mas é justamente determinado pela produção, já que o modo como os indivíduos a organizam carrega em si a forma pela qual organizam a distribuição da riqueza social. Marx (1987) encontra o conteúdo dessa afirmação na história dos homens, ao observarmos a relação de produção estabelecida sob a égide do trabalho escravo e servil que expressa o modo pelo qual os indivíduos participam da produção assim como determina a forma como estes participam da distribuição. Portanto, a forma como os indivíduos participam da produção determina a forma como estes indivíduos participam da distribuição. Desta afirmação deduzimos uma lei social que expressa a unidade entre produção e distribuição, de onde se apreende a relação de determinação do modelo de produção sobre a forma de distribuição da riqueza social. Marx expressa a validade desta lei quando se refere ao trabalho assalariado e confirma a relação da produção enquanto determinante da distribuição ao afirmar que um indivíduo que participe da produção por meio do trabalho assalariado, participa na repartição dos produtos, resultados da produção, através do salário. A estrutura da distribuição é inteiramente determinada pela estrutura da produção. A própria distribuição é um produto da produção, não só no que diz respeito ao objeto, apenas podendo ser distribuído o resultado da produção, mas também no que diz respeito à forma, determinando o modo preciso de participação na produção as formas particulares da distribuição, isto é, determinando de que forma o produtor participará da produção (MARX, 1983, p. 213).

A unidade entre produção e distribuição não se resume à relação de determinação da produção sobre a distribuição, já que a distribuição também exerce sobre a produção uma relação de determinação. O conteúdo desse segundo momento da relação entre determinantes expresso na unidade entre produção e distribuição está presente quando refletimos sobre os demais momentos da distribuição, pois essa antes de ser distribuição

dos produtos, ela é: 1º, distribuição dos instrumentos de produção e, 2º, distribuição dos membros da sociedade pelos diferentes gêneros de produção, o que é uma outra determinação da relação anterior. (Subordinação dos indivíduos a relações de produções determinadas.) A distribuição dos produtos é manifestamente o resultado desta distribuição que, incluída no próprio processo de produção, lhe determina a estrutura (MARX, 1983, p. 214).

Assim, a distribuição dos meios de produção e dos indivíduos no processo de produção – a concretização da divisão social do trabalho – efetiva uma estrutura de distribuição que acaba por determinar toda a produção, assim como a parcela destinada aos diversos sujeitos da totalidade da produção, o que determina o indivíduo. Portanto, a distribuição determina não só a produção, mas determina o produtor, ou seja, determina o ser social. Marx (1983, p. 213-214) coloca a questão sobre os seguintes termos: Em relação ao indivíduo isolado, a distribuição surge naturalmente como uma lei social, que condiciona a sua posição no interior da produção no quadro, da qual ele produz, e que precede portanto a produção. Originariamente, o indivíduo não tem capital nem propriedade fundiária. Logo ao nascer é reduzido ao trabalho assalariado pela distribuição social.

A unidade entre produção e distribuição expressa a sua síntese no processo de constituição do ser social, ao determinar a individualidade do ser e o ser enquanto membro de uma coletividade, o que significa que a individualidade é sempre expressão singular de um coletivo, ou seja, a constituição do ser é um processo de fruição no qual estão expressos os diversos determinantes sociais – entre os quais enfatizamos a produção e a distribuição – que constituem uma síntese no individuo. Contudo, a determinação do indivíduo é concretizada no processo de distribuição e produção, onde as diferentes parcelas do produto social destinadas aos indivíduos na distribuição, determinada pelas funções exercidas pelos distintos sujeitos sociais no interior da produção, os constituem como diversos e desiguais entre si. Portanto, a síntese dialética entre produção e distribuição constitui o todo social como uma coletividade partida, uma síntese da particularidade no interior da universalidade, que é a constituição ontológica das classes sociais. A classe social, portanto, configura-se como um coletivo particular que constrói sua unidade a partir de determinações particulares no interior das diversas relações estabelecidas entre produção e distribuição. Assim, o coletivo se estabelece enquanto classe social ao ter, enquanto determinantes para sua reprodução coletiva nexos causais similares postos pelo modo de distribuição dos meios de produção, e a consequente distribuição dos indivíduos no processo de produção.

A continuidade da exposição marxiana denuncia que o processo de distribuição da riqueza é concretizado quando o produto chega ao indivíduo, o que apenas se efetiva através da mediação da relação de troca, já que a troca surge como a continuação do processo de divisão da riqueza, mas a partir das necessidades individuais. Assim sendo, a ―distribuição determina a proporção (a quantidade) de produtos que cabem ao indivíduo; a troca determina os produtos que cada indivíduo reclama como parte que lhe foi designada pela distribuição‖ (MARX, 1983, p. 207). A distribuição enquanto distribuição social da riqueza surge na sociedade como um todo, enquanto a troca tem por origem o indivíduo, o ser social em suas necessidades singulares. Assim como a ―própria circulação é apenas um momento determinado da troca, ou a troca considerada em sua totalidade‖ (MARX, 1983, p. 214). Portanto, a troca é o segundo momento do processo de distribuição, momento de repartição individual da riqueza coletiva, que por sua vez também determina a existência das classes sociais. Logo, produção e distribuição são mediadas pelas relações de troca. Chegamos, assim, a necessidade de expor o momento último da relação geral de reprodução, a relação entre produção e troca. Marx (1983, p. 216) expõe essa relação ao afirmar que na medida em que a troca não é mais do que um fator servindo de intermediário entre a produção e a distribuição que ela determina tal como o consumo, na medida, por outro lado, em que este último surge como um dos fatores da produção – a troca constitui manifestamente um momento da produção.

Portanto, Marx (1983) expressa a relação de unidade entre troca e produção, na medida em que a primeira é expressão da necessidade do ser social, o que determina diretamente o processo de produção ao apresentar a alternativa do que exatamente produzir. Expõe, assim, a relação de determinação entre produção e troca como dois momentos do processo social de reprodução, dois momentos de uma totalidade, que constroem a sua unidade em uma relação de determinação sobre três momentos distintos: Em primeiro lugar; é evidente que a troca de atividades e de capacidade que tem lugar na própria produção, faz diretamente parte desta, constituindo um dos seus elementos essenciais. Em segundo lugar, isto é verdade para a troca de produtos, na medida em que esta troca é o instrumento que fornece o produto acabado, destinado ao consumo imediato. Nesse sentido, a própria troca é um ato incluído na produção. Em terceiro lugar, a troca (exchange) entre negociantes (dealers) é, pela sua organização, inteiramente determinada pela produção, ao mesmo tempo que atividade produtiva. A troca só aparece como independente ao lado da produção, como indiferente em presença

desta, no último estágio em que o produto é trocado para ser imediatamente consumido (MARX, 1983, p. 217).

Da relação entre determinante e determinado estabelecida na unidade entre produção e troca, Marx (1983, p. 217) deduz leis gerais constituídas socialmente que dão forma e conteúdo às relações sociais de troca geral: 1º, não há troca sem divisão do trabalho, quer esta seja natural quer um resultado histórico; 2º, a troca privada supõe a produção privada; 3º, a intensidade da troca, tal como a sua extensão e o seu modo, são determinados pelo desenvolvimento e pela estrutura da produção.

Então, um modo de produção evoluído produz uma estrutura de circulação de toda a produção social, ou seja, trata-se de constituir um modelo de circulação coerente com as capacidades produtivas. Assim como a produção privada constitui a troca privada o que em conjunto com o modelo de divisão de trabalho historicamente constituído dá forma a um modelo de reprodução, onde diferentes classes sociais exercem posições distintas e antagônicas no processo de produção, acabam por ocupar também posições desiguais na relação de circulação da produção, o que significa a apropriação desigual dos bens produzidos. Do exposto, podemos concluir que, no seio desse processo de reprodução histórica, encontramos os nexos causais que constituem as classes sociais como uma determinação coletiva do ser social, como uma construção do ser social em sua existência individual e coletiva que se efetiva nas determinações constituídas na unidade orgânica expressa nos fundamentos do processo de reprodução social. Marx, sobre essa relação de unidade entre os quatro fatores expressa: Não chegamos à conclusão de que a produção, a distribuição, a troca e o consumo são idênticos, mas que são antes elementos de uma totalidade, diferenciações no interior de uma unidade. A produção ultrapassa também o seu próprio quadro de determinação antitética de si mesma, tal como os outros momentos. É a partir dela que o processo recomeça sem cessar. É evidente que a troca e o consumo não podem prevalecer sobre ela. O mesmo acontece com a distribuição enquanto distribuição dos produtos. Mas, enquanto distribuição dos agentes de produção a distribuição é um momento da produção. Uma produção determinada determina portanto um consumo, uma distribuição, uma troca determinados, regulando igualmente as relações recíprocas determinadas desses diferentes momentos. A bem dizer a produção, na sua forma exclusiva é também, por seu lado, determinada pelos outros fatores. Quando o mercado, ou seja, a esfera da troca, por exemplo, se desenvolve, cresce o volume da produção, operando-se nela uma divisão mais profunda. Uma transformação da distribuição provoca uma transformação da produção; é o caso da concentração do capital, da repartição diferente da população entre a cidade e o campo, etc. Finalmente, as necessidades inerentes ao consumo determinam a produção. Há reciprocidade de ação entre os diferentes momentos. O que acontece com qualquer totalidade orgânica (MARX, 1983, p. 217).

Portanto, os quatro fatores compõem uma unidade insuperável, de unidade na diferença, onde o conteúdo de cada fator é distinto dos demais, mas o seu conteúdo pode ser apreendido somente em sua essência, em sua relação de totalidade com os demais fatores. A unidade se constitui no próprio movimento dialético estabelecido entre os quatro elementos, no qual a produção é ao mesmo tempo síntese e nova tese, já que o constante movimento em espiral, que perpassa os diferentes momentos – produção, distribuição, troca, consumo, produção – sempre dá origem a um novo movimento. Assim, o movimento dialético constitui uma totalidade orgânica a exteriorizar leis próprias que regem o movimento da totalidade social – que constituem o ser social enquanto consumidor e produtor em uma apreensão do fenômeno, que adquire na sociedade capitalista, um conteúdo particular ao formar o ser social em sua existência fragmentada em classes sociais com conteúdo historicamente determinado.

Referências LEONTIEV, Alexis. O Desenvolvimento do Psiquismo. São Paulo: Editora Moraes, s/d. MARX, Karl. Contribuição à Critica da Economia Política. Tradução Maria Helena Barreiro Alves, 2º ed. São Paulo: Martins Fontes, 1983. MARX, Karl. Elementos Fundamentales para la Crítica de la Economía Política (Grundrisse) 1857 - 1858. 15º ed. México: Siglo Veintiuno Editores, 1987.

O Problema da Ideologia nas Ciências Sociais e as suas Implicações para a História do Marxismo

Maria Teresa Buonomo de Pinho*

Nosso objetivo é examinar o problema da ideologia nas ciências sociais e suas implicações para a história do marxismo, tanto no que se refere às suas elaborações teóricas, quanto no que se refere às suas realizações práticas. Nosso referencial teóricoideológico é a ontologia do ser social instaurada por Marx e Engels e seu desdobramento marxista, em particular em Lukács. Desenvolvemos nossa argumentação através de três seções. Na primeira, apresentamos a nossa concepção do problema da ideologia na vida social. Na segunda, tecemos considerações acerca dos componentes ideológicos das ciências sociais. Na terceira, discutimos a relação entre os fenômenos ideológicos da vida social e a história do marxismo desde os tempos de Marx até o mundo contemporâneo, marcado pelo domínio da ideologia neoliberal e por forte crise estrutural do capital.

O problema da ideologia na vida social Partimos da concepção marxiana e lukacsiana de ideologia, que repousa na sua concepção de ser social. Este é ser natural e objetivo, isto é, tem objetos naturais fora de si. Demais, tem a capacidade de transformar estes objetos em objetos sociais, através da categoria trabalho, que é uma categoria social através da qual os homens transformam a natureza externa e a natureza humana. O trabalho é, portanto, um processo teleológico, que principia por uma antecipação mental da transformação a ser operada nos elementos naturais. O trabalho tem a capacidade de produzir excedente, base tanto da liberdade humana, quanto das sociedades de classes, isto é, baseadas na exploração do homem pelo homem. Esta exploração, de início, se baseia na violência extra-econômica, tal como na escravidão e na servidão. Esta exploração se torna regulada por mecanismos

*

Professora Assistente da Universidade Federal de Sergipe. Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Ceará, sob orientação do Prof. Dr. Eduardo F. Chagas.

puramente econômicos (relativamente autônomos) na sociedade do capital, que emerge a partir das últimas décadas do século XVIII e vem se desenvolvendo até hoje. O caráter social do trabalho implica as formas ideológicas da vida social (direito, política, arte, filosofia, etc.), através das quais os homens tomam consciência dos conflitos sociais e operacionalizam a sua resolução, fazendo assim da sua subjetividade a objetividade do mundo humano. No famoso Prefácio de 1859, Marx, falando do momento de uma revolução social, se refere ao papel das formas ideológicas da vida social na transformação do mundo humano. Escreve: O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de fio condutor aos meus estudos, pode ser formulado em poucas palavras: na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e â qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que nada mais é do que sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais aquelas até então se tinham movido. De formas de desenvolvimento das forças produtivas essas relações se transformam em seus grilhões. Sobrevém então uma época de revolução social. Com a transformação da base econômica, toda a enorme superestrutura se transforma com maior ou menor rapidez. Na consideração de tais transformações é necessário distinguir sempre entre a transformação material das condições econômicas de produção, que pode ser objeto de rigorosa verificação da ciência natural, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência desse conflito e o conduzem até o fim. (MARX, 1982, p. 25).

Neste importantíssimo trecho, Marx define as ideologias como formas de consciência através das quais a vida social dos homens se torna consciente e operativa. Segundo as palavras de Lukács: ―L´ideologia è anzitutto quella forma di elaborazione ideale della realtà che serve a rendere consapevole e capace di agire la prassi sociale degli uomini‖ (LUKÁCS, 1981, p. 446). Lukács pondera que, não obstante Marx se referir a um momento de revolução social (no trecho citado), as formas ideológicas da vida social podem ser consideradas também como formas de conscientização e operacionalização de conflitos sociais na vida cotidiana dos homens. Dessa maneira, podemos definir as formas ideológicas da vida social, de acordo com Marx e Lukács, como instrumentos ideais dos conflitos

sociais. Ou seja, como formas de consciência que antecipam na mente humana a resolução dos conflitos sociais. Isto significa que as ações humanas que visam a sua realidade social são também ações teleológicas, ou seja, que partem de uma préviaideação e de uma decisão entre alternativas oferecidas pelo mundo objetivo. Na definição de Lukács, fundada em Marx, as formas ideológicas da vida social são precisamente os momentos ideais destas posições teleológicas de segundo tipo, que têm como objeto a realidade social e não a natureza externa ao homem. Nas sociedades baseadas em categorias sociais contrapostas, - isto é, na divisão entre classes antagônicas e na luta de classes -, os conflitos entre as diferentes classes sociais são a principal forma de conflito social. Desse modo, junto com Lukács fundamentado em Marx, podemos definir as formas ideológicas da vida social como instrumentos ideais da luta de classes, ou seja, como produtos espirituais através dos quais a luta de classes se torna consciente e ativa. Os pensamentos reinantes numa sociedade, que constituem a ideologia da classe dominante, representam os interesses particulares da classe dominante enquanto interesses universais desta sociedade. Estes pensamentos reinantes são cada vez mais universais. Na sociedade escravista, a violência extra-econômica era a base da exploração do homem pelo homem. No feudalismo, já reinam conceitos mais universais como honra, fidelidade, etc, como instrumentos ideais da exploração da classe dominada. Na sociedade do capital, vigoram os conceitos de liberdade, fraternidade e igualdade, que dão a aparência de que esta sociedade não está baseada na exploração econômica e na subordinação política. O problema da ideologia nas Ciências Sociais As ciências naturais não são em si ideologia. Isto porque não são edificadas enquanto instrumentos ideais para a resolução de conflitos sociais, mas enquanto conhecimentos objetivos, verdadeiros, da realidade existente em si. Em uma palavra: ser ideologia não é um objetivo primordial das ciências da natureza. Porém, alerta Lukács, as ciências naturais podem assumir e têm assumido, ao longo da história, a função social de ideologia. Por exemplo: a teoria de Galileu e a de Darwin assumiram a função de ideologia. A relação entre ciências sociais e ideologia é muito mais complexa do que o vínculo entre ciências naturais e ideologia. O fato ideológico, de acordo com Lukács,

está sempre presente nas ciências sociais. Isto porque as ciências sociais pretendem formar a consciência dos homens acerca do seu mundo e, portanto, levam os homens a colocar na realidade certas teleologias. Isto significa que a base das ciências sociais é constituída pelas posições teleológicas de segundo tipo. Dessa maneira, as ciências sociais são sempre veículos de interesses e valores, pretendem objetivar-se no mundo humano, pretendem moldar o mundo humano de modo reacionário ou revolucionário. A ideologia não se contrapõe à ciência e, além disso, não se identifica necessariamente à falsa consciência. Lukács argumenta que são muitos os produtos espirituais da falsa consciência que nunca se tornam ideologia. O que determina que certo produto espiritual seja ideologia é o seu papel de instrumento de conscientização e operacionalização de conflitos sociais. A mais pura verdade científica, tal como o pensamento de Marx, pode desempenhar esse papel. Lukács argumenta que o componente ideológico, nas ciências sociais, pode tanto obstaculizar quanto desempenhar um importante papel no desenvolvimento científico. As idéias dominantes, em uma determinada sociedade, são as idéias da classe dominante. Este fato faz com que estas idéias dominantes possam obstruir o caminho para uma ontologia verdadeira do ser social, tal como ocorre na ciência econômica contemporânea, que varre da sua teoria o problema da luta de classes e da possibilidade histórica do socialismo, quando a realidade da sociedade capitalista já explicitou todas as suas contradições internas desde a década de 1840. Por outro lado, Marx reconhecendo enfaticamente a emergência de uma nova categoria histórica, o proletariado, e representando seus novos interesses de classe, levou o pensamento social ao caminho de uma ontologia verdadeira, de uma autêntica ciência da realidade social. Desenvolvimento das formas ideológicas da vida social desde o século XVIII até o mundo contemporâneo O período que se estende entre as últimas décadas do século XVIII e os anos 1840 constitui o período revolucionário da burguesia, quando esta classe foi responsável por grandes realizações, tanto no plano da vida material, quanto no plano das idéias, bastando citar o iluminismo, a economia política clássica e o pensamento hegeliano. O pensamento burguês então, - apesar de contido dentro dos limites da concepção da sociedade burguesa como sociedade baseada nas leis da natureza -, tinha os olhos

abertos para a luta de classes e para as contradições sociais. Daí as grandes realizações científico-filosóficas da burguesia no período. As antinomias em que se envolvem os grandes pensadores da época são antinomias da própria realidade, ainda insolúveis devido ao ainda limitado desenvolvimento da vida material. Nos anos 1840, quando o proletariado surge no cenário histórico lutando pelos seus próprios interesses particulares contra a burguesia, emerge a reflexão científicofilosófica de Marx enquanto ideologia da revolução comunista. Marx parte da crítica à concepção hegeliana que afirma a possibilidade do aperfeiçoamento do Estado em direção ao Estado racional, identificado ao Estado moderno. Marx compreende que a sociedade civil e suas contradições são o fundamento do Estado. Compreende que o Estado é sempre uma forma da dominação de classes e, por conseguinte, é impotente diante das contradições sociais, por maior que seja a sua boa vontade perante a sociedade. Decide então procurar a ―anatomia da sociedade civil‖, que é vista como estando contida na economia política. Passa a seus estudos econômicos, onde faz a crítica das categorias da vida material do capital, caracterizada pelo fato de que o homem se torna meio de produção da riqueza e só satisfaz necessidades na medida em que esta satisfação é necessária à produção da riqueza. Elabora a sua teoria da tendência a queda da taxa de lucro, que explica as crises econômicas, quando o capital alcança sua superprodução e não pode se valorizar totalmente a uma taxa de lucro adequada. Nas crises econômicas, uma parte do capital é destruída, o que revela a natureza autodestrutiva do modo de produção capitalista. Marx coloca a urgência histórica da superação do capital e, por conseqüência, da política, o que deve se efetivar através de um duplo ato revolucionário. Uma revolução política protagonizada pelo proletariado, cuja meta é negativa: destruir a sociedade burguesa e seu Estado político. Após esse ato político, deve se desenvolver uma prolongada revolução social, que precisa transformar radicalmente a forma de sociabilidade para que a sociedade comunista possa ser alcançada. Ao mesmo tempo em que Marx desenvolve sua atividade intelectual e prática, a ciência social burguesa começa seu declínio como parte da decadência geral da ideologia da burguesia. O problema da exploração do homem pelo homem e das contradições da vida social desaparece da teoria social. Surge também o mito da neutralidade das ciências humanas. Temos já o positivismo em sua longa fase reacionária - que se inicia com Augusto Comte e prossegue até hoje com todas as suas diversas variações e aparentes superações. A sociedade burguesa continua sendo

representada pelos seus ideólogos como sociedade baseada nas leis da natureza, quando esta sociedade já manifestou seu caráter histórico e relativo. Já se inicia a profunda deformação do pensamento marxiano que vem caracterizando a história do marxismo. Deformação que explicamos como sendo resultado do domínio da ideologia da classe dominante sobre a ideologia da classe dominada. Esta deformação é contemporânea ao desenvolvimento do pensamento de Marx e da I Internacional. Nas últimas décadas do século XIX, ocorreram transformações na vida material do capital, tais como: a grande depressão de então levou o capitalismo a uma Segunda Revolução Industrial; o capitalismo passou da sua fase liberal para a monopolista; ascendeu o movimento imperialista do capital, etc. Estas mudanças na vida material foram acompanhadas pelo triunfo do caráter reacionário da ideologia burguesa, bastando citar a ascensão da teoria econômica neoclássica e o aparecimento da sociologia de Durkheim. A ideologia da classe dominante, além de produzir suas próprias teorias, desenvolveu o processo de deformação do marxismo. Vários teóricos da II Internacional passaram a excluir a concepção marxiana da necessidade de uma revolução social para resolver as contradições sociais, passando a acreditar nas reformas sociais e na democratização do Estado. O domínio da ideologia burguesa sobre o marxismo autêntico levou a humanidade a uma Primeira Guerra Imperialista Mundial, quando o proletariado se submeteu às burguesias nacionais dos países imperialistas, lutando entre si, ao invés de lutar em bloco contra o conjunto das burguesias nacionais. Cabe lembrar, por outro lado, a presença de autores marxistas genuínos no período, tais como Lênin, Rosa Luxemburgo, Trotsky e outros. Lênin lidera a Revolução Russa de 1917, uma grande vitória do proletariado, cuja tragédia foi não ter sido acompanhada por revoluções vitoriosas nos países capitalistas desenvolvidos da Europa. O comunismo só é possível numa escala histórico-universal e Lênin sabia disso, que esperava o sucesso da revolução alemã como condição do sucesso da revolução russa. Nos anos 1930, o capital entra em crise: cai a taxa de lucro. O capital responde através da Segunda Guerra Mundial, que deu início a um período de crescimento acelerado baseado na destruição de forças produtivas. Esta destruição se torna a base do funcionamento do modo de produção capitalista, pois indústria de guerra e destruição de

forças produtivas são funcionais ao capital por uma série de motivos, em particular porque destroem o capital super-produzido que ocasiona baixa da taxa de lucro. Demais, criam demanda agregada que constitui um estimulante da economia capitalista. A ideologia dominante produziu então vários representantes. A sociologia de Weber, por exemplo, que elimina a problemática da exploração, contrapondo o capitalismo como ―sociedade moderna‖, baseada em cidadania, etc. às chamadas sociedades tradicionais. No campo da ciência econômica, triunfa o keynesianismo, uma tentativa desesperada de salvar o capitalismo através de gastos dissipatórios, em especial da economia de guerra. No campo do pseudo-marxismo, isto é, da deformação do pensamento de Marx, basta citar a Escola de Frankfurt e o estruturalismo althusseriano. A primeira elimina por completo o problema da exploração, da luta de classes, do imperialismo, etc. O segundo nega que o homem é sujeito histórico. A partir de meados da década de 1970, - quando o capital entra em grave crise estrutural devido ao parasitismo da indústria bélica e do seu parasitismo paralelo, isto é, do capital financeiro hipertrofiado -, triunfa a ideologia neoliberal, triunfo este que é facilitado pela morte do marxismo vulgar, com a derrocada do pseudo-socialismo, que existia no leste europeu e em outras regiões geográficas. Na época atual, vivemos um período sombrio, caracterizado pela produção destrutiva, pela precarização da vida humana e pela destruição da natureza. Coloca-se a urgência histórica de resgate do pensamento de Marx e do marxismo autêntico, como pré-requisito fundamental da construção de uma ciência social autêntica, base imprescindível da revolução social. Nosso trabalho pretende ser uma contribuição para este projeto teórico e prático. Referências LUKÁCS, Gyorgy. Ontologia dell´Essere Sociale. Roma: Editori Riuniti, v. II**. MARX, Karl. Prefácio de 1859. In: MARX, Karl. Para a Crítica da Economia Política. São Paulo: Abril Cultural, 1982.

Propriedade Privada em Marx como Condição do Trabalho Negado Antonio Carlos da Costa e Silva Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, escrito por Marx entre abril e agosto de 1844, temos o terceiro Manuscrito intitulado ―Propriedade Privada e Trabalho‖, onde Marx trata da questão do trabalho numa dimensão mais ampla do seu sentido, isto é, o trabalho em geral e não em particular. Assim como também a relação com a propriedade privada em seu desenvolvimento histórico que é tomada por ele, na forma objetiva e acabada do capital industrial. Então aqui fizemos a opção de começar com um breve histórico sobre propriedade privada. A origem da propriedade privada e as concepções de trabalho antes de Marx O conceito de propriedade no decorrer do tempo sofreu inúmeras transformações, adaptando-se ao contexto histórico, a cada época e a cada lugar. Tal conceito nos informa a maneira como cada sociedade vive e como seus membros dispõem dos meios para transformá-los em riqueza e satisfazer suas necessidades. Ou seja, expressa o modo de produção que adotam. De acordo com Engels: ―a ordem social em que vivem os homens de determinada época ou determinado país está condicionada por duas espécies de produção: pelo grau de desenvolvimento do trabalho, de um lado, e da família, de outro‖. (ENGELS, 1991, p.08). A propriedade teve sua história criada através dos tempos. Então, vejamos, por exemplo, como as ideias sobre propriedade mudaram no decorrer do tempo. Primeiramente noticia-se que a propriedade era coletiva, quando a população humana ainda era pequena e estruturada numa forma de organização social primitiva em agrupamentos humanos reduzidos, vivendo basicamente como coletores e caçadores nômades. Nada era de ninguém, ou seja, não se possuía nada privadamente, a não ser a própria vestimenta e as armas como lança, pau ou o quer que fosse. Aos poucos, a propriedade passa de coletiva para individual. Os agrupamentos humanos crescem, tornam-se sedentários e descobrem a agricultura e o comércio. Esse processo de sedentarização e a descoberta da agricultura que chamamos de Revolução



Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da FACED/ UFC, sob orientação do Prof. Dr. Eduardo F. Chagas. E-mail: [email protected]

Agrícola foram a base para a institucionalização da propriedade privada e o surgimento do Estado. Como nos afirma Rousseau (1998, p. 84): ―o homem deixou o Estado de Natureza quando alguém cercou um pedaço de terra e disse que era seu e os outros acreditaram‖. Na sequência, a ideia de propriedade passa a ter um caráter sagrado de direito Divino como aparece nas primeiras civilizações da antiguidade. A evolução da agricultura fez com que os grupos humanos antigos evoluíssem para além da agricultura de subsistência e o homem começou a produzir além do necessário para o consumo. A produção excedente passou a ter valor de troca, surgindo a partir daí o comércio e o dinheiro; passando o homem a se apropriar da terra, o meio de produção, atribuindo-lhe um valor e introduzindo a noção de propriedade. Todas essas transformações verificadas nesse período contribuíram para o desaparecimento da propriedade coletiva dos primórdios e para o surgimento da propriedade privada que aos poucos, como dissemos, foi-se intensificando através do comércio e do artesanato, esses elementos propulsores do crescimento até então tinham pouca

importância

devido

à

estagnação

social

e

econômica

do

limitado

desenvolvimento das atividades comerciais. A estrutura sócio-econômica baseada no Estado despótico e no controle da produção agrícola comunitária sustentada por grandes obras deu-se o nome de Modo de Produção Asiático. Desta forma na Antiguidade ou Idade Antiga, as Grandes Civilizações (Egito, Mesopotâmia, Gregos e Romanos) tiveram como Modo de Produção Escravista ou Escravocrata, enquanto na Idade Média, temos uma mudança fundamental no sistema de propriedade e produção. Assim, em lugar do sistema de produção escravagista, que entrara em crise com o advento do cristianismo e com as invasões bárbaras que obrigaram a população a se refugiar no campo, promovendo a ruralização de Roma, por esta época, ganha força o sistema feudalista, que constitui a base da sociedade medieval e sobreviveu até o alvorecer das ideias que deram vazão à Revolução Francesa. O Liberalismo e a Revolução Francesa vieram acabar com os últimos vestígios de feudalismo. O pensamento Iluminista considerava que o princípio organizador da sociedade deveria ser a busca da felicidade. Aos governos caberia garantir o direito à liberdade individual e a livre posse dos bens e igualdade perante a lei. Assim sendo, as relações econômicas deveriam ser regida por uma ―liberdade natural‖ que se estabeleceria por si mesma.

A propriedade privada no contexto da sociedade burguesa Se até a Idade Média, a riqueza se restringia à posse de terras com predominância na economia no chamado setor primário nos séculos XVI e XVII as atividades mercantis e manufatureiras se desenvolveram a tal ponto que a riqueza passou a significar também a posse do dinheiro e do capital, o que exigiu o desenvolvimento da ciência e da técnica para a ampliação das indústrias, ou seja, do setor secundário. Com a Revolução Francesa e o advento da sociedade liberal, a propriedade passou a ser encarada como instrumento de afirmação da liberdade humana. Enquanto sujeito de direitos, o homem é caracterizado por sua liberdade de contratar e dispor de seus bens conforme melhor lhe aprouver. Não cabe qualquer intervenção de ninguém na esfera privada particular, podendo o indivíduo gerir suas riquezas como bem entender. Essa perspectiva liberal é a base do capitalismo mundial. No entanto a liberdade política adquirida na Revolução, que é contratual e a igualdade formal pouco fizeram para a grande maioria da população. Essa, despossuída não tinha a mínima condição de contratar ou dispor de seus bens. Vale destacar ainda que, no século XVIII e XIX, os Estados europeus se encontravam em profundas desigualdades sociais acirrados com a Revolução Industrial. Esta por sua vez, transformou as relações de trabalho existentes e obrigou contingentes enormes de pessoas cada vez mais miseráveis a se adaptar as condições desumanas de trabalho e por outro lado propiciou a concentração de riquezas. É esse cenário que propicia o surgimento das obras de Karl Marx e Friederich Engels. Eles surgiram com críticas ao modelo de propriedade liberal burguesa. Marx propõe, entre outras coisas, a supressão da propriedade sobre os bens de produção, qualificando com: ―homo hominis lúpus‖ (exploração do homem pelo homem) o fato de uma minoria da população, deter os meios de produção sem os quais nenhum indivíduo pode trabalhar. Para Marx, a propriedade privada resulta do conceito de trabalho exteriorizado e do homem exteriorizado, ou seja, do trabalho estranhado e do homem estranhado. Segundo o próprio autor: A propriedade privada é o produto, o resultado, a consequência necessária do trabalho exteriorizado, da relação externa (äusserlichen) do trabalhador com a natureza e consigo mesmo. [...] onde a relação do trabalho estranhado com a propriedade privada depreende-se além do mais, que a emancipação da

sociedade da propriedade privada, da servidão, se manifesta na forma política da emancipação dos trabalhadores (MARX, 2010, p. 87-88).

Como vimos, a propriedade privada é a expressão material-sensível da vida humana estranhada. Para Marx, a suprassunção positiva da propriedade privada, como apropriação da vida humana, é a superação de todo o estranhamento e, por conseguinte, a emancipação completa de todas as qualidades e sentidos humanos. No complemento ao caderno II dos Manuscritos intitulado ―Propriedade Privada e Comunismo‖, Marx, ao se referir à sociedade futura, defini a relação da propriedade como a “transcendência positiva da propriedade privada‖, como ―naturalismo plenamente desenvolvido‖, e ―humanismo plenamente desenvolvido‖. Para ele, essa fase de desenvolvimento da humanidade em que os poderes essenciais do homem são plenamente exercidos (O Comunismo) é descrito como: A verdadeira dissolução (Auflösung) do antagonismo do homem com a natureza e com o homem; a verdadeira resolução do conflito entre existência e essência, entre objetivação e auto-confirmação (Selbstbestätigung), entre liberdade e necessidade (Notwendigkeit), entre indivíduo e gênero (MARX, 2010, p. 105).

Como podemos perceber em Marx, a supressão da propriedade privada é condição sine qua non para a sociedade futura; pois só ―o trabalho é a propriedade ativa do homem‖ (Marx, 2010, p. 29), e como tal é considerado como propriedade interna que se deve manifestar numa ―atividade livre‖. O trabalho é, portanto, específico no homem como uma atividade livre, sendo contrastado com as ―funções animais, comer, beber e procriar‖ (Marx, 2010, p. 84), que pertencem à esfera da necessidade, sem liberdade, sem consciência. Marx difere propriedade privada de propriedade fundiária, a posse da terra, pois ―à verdadeira propriedade privada é o trabalho não estranhado‖, trabalho livre. Conforme nosso autor: A essência subjetiva da propriedade privada, a propriedade privada enquanto atividade sendo para si, enquanto sujeito, enquanto pessoa é o trabalho. Compreende-se, portanto, que só a economia nacional, que reconheceu o trabalho como seu princípio – Adam Smith – não sabia a propriedade privada apenas como um estado exterior ao homem (MARX, 2010, p. 99).

Para Marx, a economia política é a grande reveladora da essência subjetiva da riqueza, ao considerar o trabalho como o princípio da formação da riqueza objetiva das coisas, como resultado da energia real e do movimento da propriedade privada que acelera e intensifica o dinamismo e o desenvolvimento da indústria, tornando-a uma

potência no domínio da consciência. Contudo, a Economia Política nada mais faz do que negar o homem, quando ela faz do trabalho o princípio da riqueza sob o aparente modo apologético de reconhecimento do homem como peça fundamental da lógica da produção da riqueza privada. Assim sendo, o homem transformou-se apenas num instrumento vital da atividade produtiva cuja alienação emerge do ato da objetivação, pois se antes a propriedade privada como trabalho incorporado – a exteriorização real do homem – era um ser-externo-a-si-mesmo, agora ela transformou-se em mero ato de objetivação, de alienação. Portanto, o homem na sua atividade de trabalho se aliena de si mesmo, do produto do seu trabalho. Propriedade privada e comunismo A problematização da ―Propriedade Privada e Comunismo‖ é iniciada por Marx com a antítese entre a falta de propriedade e a propriedade. Ele considera tal antítese ainda indeterminada, pois ela além de não se conceber na sua referência ativa às suas relações intrínsecas, também ainda não é concebida ainda como contradição. A solução de tal antítese entre capital e trabalho é a abolição da sua autoalienação a partir da forma mais evoluída de propriedade, ou seja, a propriedade comunal ou comunismo enquanto sistema da propriedade universal. Como vimos a relação entre estranhamento, trabalho estranhado e propriedade privada são centrais e decisivas nesse escrito de Marx, uma vez que só quando se entende o trabalho como essência da propriedade privada é que se pode penetrar o movimento econômico como tal em sua determinação real. Dessa forma, trabalho estranhado e propriedade privada se determinam mutuamente, de tal maneira que a superação do primeiro implica a supressão da segunda, o que se materializa num modo de produção que suplante o capitalismo, qual seja, o comunismo. Na condição de suprassunção (Aufhebung) positiva da propriedade privada, enquanto estranhamento-de-si (Selbstentfremdung) humano, e por isso apropriação efetiva da essência humana pelo e para o homem. Por isso, tratase do retorno pleno, tornado consciente e interior a toda riqueza do desenvolvimento até aqui realizado, retorno do homem para si enquanto homem social, isto é, humano. Este comunismo é [...] a verdadeira dissolução (Auflösung) do antagonismo do homem com a natureza e com o homem; a verdadeira resolução (Auflösung) do conflito entre existência e essência, entre objetivação e auto-confirmação (Selbstestätigung), entre liberdade e necessidade (Notwendigkeit), entre indivíduo e gênero. É o

enigma resolvido da história e se sabe como esta solução (MARX, 2010, p.105)

Marx faz uma exposição relativamente rica e detalhada a respeito de sua proposta de comunismo, com realização da superação, a um só tempo, da propriedade privada e do trabalho estranhado e, portanto, do reencontro do homem com sua essência humana, e depois volta a examinar a relação entre capitalismo, propriedade privada e estranhamento. Então vejamos em sua indagação: que significação tem do ponto de vista do socialismo, a riqueza das necessidades humanas e, por isso, que significação tem tanto um novo modo de produção como um novo objeto da mesma. Nova afirmação da força essencial humana e novo enriquecimento da essência humana. No interior da propriedade privada, o significado inverso (MARX, 2010, p. 105).

Se o novo modo de produção, o comunismo, fundado na superação da propriedade privada, significa a afirmação da força essencial humana e o enriquecimento da essência humana, um modo de produção baseado na propriedade privada, como é o capitalismo, tem um significado inverso, ou seja, a negação da força essencial humana e o empobrecimento da essência humana. Em outras palavras, no comunismo, ao se negar o estranhamento e o trabalho estranhado, por meio da negação da propriedade privada, se afirma a essência humana; no capitalismo, ao contrário, ao se afirmar a propriedade privada, se afirmam também o estranhamento e o trabalho estranhado e, por essa razão, se nega a essência humana. No entanto, lembramos que esta desqualificação do trabalho era antiga, pois entre os romanos, o trabalho para sustentar a vida era identificado com a palavra negocio, literalmente, ―negação do ócio‖. O ócio significava, para os antigos, a forma nobre e digna de ocupar o tempo livre com o lazer, a arte de governar e a reflexão. Enquanto as atividades relacionadas diretamente com a sobrevivência material ficavam a cargo dos escravos, cujas funções eram consideradas desprezíveis. Também é um fato que as sociedades descobrem mecanismos para manter a divisão do trabalho, não conforme os talentos, mas de acordo com a classe a que cada um pertence. É claro que um dos instrumentos de manutenção desse estado de coisas é a educação, privilégio daqueles que são proprietários. Não é por acaso, que a palavra grega ―scholé”, de onde deriva escola, significa inicialmente o ―lugar do ócio‖. Aí as crianças das classes abastadas se ocupam com jogos, ginásticas, música e retórica, enquanto as demais, pertencentes aos seguimentos pobres, seguem seu ―destino‖ social, sem que se levem em conta as tendências individuais.

Como dissemos anteriormente, a propósito do ―ócio e negócio‖, podemos concluir que, na sociedade futura, haverá de ser recuperada a dignidade humana. Isto porque o proprietário mais importante da nova sociedade deixara de ser o senhor ou o nobre ―ocioso‖ que sempre desprezara a atividade manual, mas o homem Omnilateral. (SOUSA JR, 2010). Em suma, a propriedade privada material é a expressão material e sensível da vida alienada e do homem unilateral. Nesse sentido, entendemos que, quando Marx se refere à abolição da propriedade privada, ele não se refere apenas no sentido do ter, mas a abolição positiva significa uma apropriação da essência da vida humana. Pois só assim, o homem se apropria do seu ser omnilateral (multiforme) de um modo omnicompreesivo (global), como ser integral e pleno. È neste sentido que Marx nos fala do homem rico como efetivação social da natureza humana, pois que: O homem rico é simultaneamente o homem crente de uma totalidade da manifestação humana de vida. O homem, no qual a sua efetivação própria existe como necessidade interior (...). Um ser só é independente quando dono de si mesmo, e só é dono de si próprio quando a si mesmo deve a existência. O homem que vive pelo favor de outrem considera-se como ser dependente. (MARX, 2010, p. 113).

Conforme Marx, a dependência só ocorre na medida em que o homem vive pelo favor do outro, ou seja, esse outro faz com que o homem deva-lhe a manutenção de sua vida e sua criação. A fonte da vida do homem dependente é o outro e quando a vida do devedor possui a fonte fora de si é porque não é sua criação. Ou seja, é necessário para a emancipação humana, o homem sair do reino da necessidade para entrar no mar tranqüilo do reino da liberdade – onde desapareceriam a propriedade privada, a divisão social do trabalho, o dinheiro, o Estado e as classes. Só assim os produtores diretos se livrariam da ―maldição eterna‖ do trabalho alienado, se tornando livres e capazes tanto de suprirem suas necessidades materiais quanto desenvolverem ao máximo suas capacidades individuais e o gênero universal.



Omnilateral – O conceito de omnilteralidade é e grande importância para a reflexão em torno do problema da educação em Marx. Ele se refere a uma formação humana oposta à formação unilateral provocada pelo trabalho alienado, pela divisão social do trabalho, pela reificação, pelas elações estranhadas. (...) compreendido como uma ruptura ampla e radical com o homem limitado da sociedade capitalista. SOUSA JUNIOR, Justino de. Marx e a crítica da educação: da expansão liberal-democrática à crise regressivo-destrutiva do capital / Justino de Sousa Junior. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2010.

Referências ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Tradução de Leandro Konder. 12ª Ed; Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil S.A, 1991. CHAGAS, Eduardo F. A Determinação Dupla do Trabalho em Marx: Trabalho Concreto e Trabalho abstrato, in: Revista Outubro, Nº19. Agosto/2011. acesso pelo seite www.revistaoutubro.com.br. Em 12/09/2011 às 08h12min. _______ Diferença entre Alienação e Estranhamento nos Manuscritos EconômicoFilosóficos (1844), de Karl Marx, in: Revista Educação e Filosofia. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia, Junho/Dezembro de 1994, vol. 8, nº 16, p. 23-33. MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos./ tradução, apresentação e notas Jesus Ranieri, São Paulo: Boitempo, 2010. MÉSZÁROS, István. A Teoria da Alienação em Marx. Tradução de Isa Tavares. São Paulo: Boitempo, 2006. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Editora Ática, 1989. SOUSA JUNIOR, Justino de. Marx e a crítica da educação: da expansão liberaldemocrática à crise regressivo-destrutiva do capital / Justino de Sousa Junior. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2010.

Contradição entre Trabalho e Educação na Sociedade Capitalista: Desnaturalização da Precária Formação Escolar de Jovens e Adultos Trabalhadores

Graziela Lucchesi Rosa da Silva Introdução Ganha cada vez mais proficuidade, na conjuntura atual, estudos e investigações sobre um tema que nos é muito caro: a precarização da escolarização, explicitada, dentre outras situações, pelo fracasso escolar, pela evasão e pelo iletrismo. A precarização escolar pode ser constatada em índices tais como os descritos na Síntese de Indicadores Sociais, divulgados pelo IBGE (2010a): 85,2% dos adolescentes de 15 a 17 anos frequentavam a escola, no entanto, o percentual dos que se encontravam no nível adequado à sua idade – ou seja, no Ensino Médio – era de 50,9%. Em relação às taxas de abandono escolar, tanto no Ensino Fundamental quanto no Ensino Médio, a maior prevalência verificada é no Brasil45: 3,2% e 10% respectivamente (IBGE, 2010a). Atrelado aos dados de abandono escolar, no Brasil, segundo o Censo Demográfico 2010, 9,6 % (13. 940.729) da população com 15 anos ou mais é analfabeta. Na faixa de 10 a 14 anos 3,9% (671 mil) não estavam alfabetizadas em 2010 (IBGE, 2011). Conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2009, a taxa de analfabetismo das pessoas de 50 anos ou mais de idade era de 21% da população (IBGE, 2010b). Esses índices, que poderiam ser somados a tantos outros publicados pelos órgãos governamentais, dão indícios da premência da situação. No entanto, a descrição dos dados não revelam as condições objetivas que propiciam a dinâmica instalada, apenas expõe os fatos, sem explicá-los. É, por assim dizer, necessário submetê-los a uma análise crítica com o fim de explicitar as bases materiais e as contradições sociais que os produzem. Caso se atenha apenas à aparência do fenômeno ou a mera descrição dos índices, nega-se que cada fato ou evento traz em si a totalidade das relações sociais e,



Doutora em Educação pela Universidade Federal do Paraná e Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Paraná – área de Psicologia e Educação. Participa dos Grupos de Pesquisa – CNPq ―Psicologia Histórico-Cultural e Educação‖ e ―Educação e Marxismo – NUPEMARX/UFPR‖. Endereço eletrônico: [email protected] 45 Dentre os países pesquisados estão Argentina, Chile, Paraguai, Uruguai e Venezuela.

consequentemente, esvazia-se a possibilidade do entendimento das causas que o originam, bem como embota-se a possibilidade de enfrentamentos possíveis, em sentido prospectivo. É, pois, com essa diretriz que abordamos, neste texto, uma decorrência específica da precarização da escolarização: a modalidade de ensino da Educação de Jovens e Adultos (EJA). Do ponto de vista legal, a EJA é uma modalidade da educação básica oferecida ―[...] àqueles que não tiveram acesso ou continuidade de estudos no ensino fundamental e médio na idade própria‖, conforme consta no artigo 37, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB 9394/96 (BRASIL, 1996). Na mesma direção, consta nas Diretrizes Curriculares para a EJA, que esta modalidade possui especificidade própria em função do perfil e situação dos estudantes a serem atendidos, uma vez que o destinatário primeiro e maior desta modalidade é um ―[...] contingente plural e heterogêneo de jovens e adultos, predominantemente marcado pelo trabalho‖ (BRASIL, 2000, p. 27, grifos nossos). Desprovido de fundamentação teórica precisa bem como de referência mais analítica da realidade concreta, menciona-se, no referido Documento, que a EJA representa uma ―[...] dívida social não reparada para com os que não tiveram acesso a e nem domínio da escrita e leitura como bens sociais, na escola ou fora dela, e tenham sido a força de trabalho empregada na constituição de riquezas e na elevação de obras públicas‖ (BRASIL, 2000, p. 5, grifos nossos). Neste sentido, ―fazer a reparação desta realidade, dívida inscrita em nossa história social e na vida de tantos indivíduos, é um imperativo e um dos fins da EJA porque reconhece o advento para todos deste princípio de igualdade‖ (BRASIL, 2000, p. 9, grifos nossos). Lembramos que a proposição governamental referente à EJA de reparar esta ―dívida social‖, fundamentada no direito de ―todos‖ os cidadãos pela educação básica não é uma questão nova na história brasileira, ao contrário, esse discurso remonta a velhas questões coadunadas à luta, cada vez mais intensa, pelo direito ao acesso aos bens sociais pela classe trabalhadora, destinatária, por primazia, da EJA. Consideramos que a mera referência, nas Diretrizes da EJA, sobre a origem sóciohistórica da reprodução destes ―excluídos‖, é insuficiente para a compreensão dos mecanismos que estão na origem da desigualdade social, ou seja, os mecanismos da base econômica da sociedade de classes.

Desta constatação, elaboramos o presente capítulo, cujo objetivo é discutir, sob os fundamentos do materialismo histórico-dialético e da Psicologia Histórico-Cultural, que a precária formação de jovens e adultos trabalhadores é um fenômeno que só adquire significação real se entendido no quadro histórico-concreto do modo de produção capitalista. Para tanto, organizamos o texto em três partes. Primeiramente, procuramos demonstrar que a desigualdade social, aspecto reiterativamente citado como justificativa para a proposição da EJA como política pública, é condição da sociedade de classes capitalista. Em seguida, enfatizamos que a precária formação escolar de jovens e adultos trabalhadores implica compreender a formação humana sob as determinações do trabalho. A partir destas considerações, apontamos contribuições da Psicologia Histórico-Cultural para a desnaturalização da precária formação escolar de jovens e adultos trabalhadores. A desigualdade na sociedade de classes capitalista: a precarização da formação humana A precária formação humana não é questão recente na história da humanidade, não surgiu com o advento da sociedade capitalista, mas ganha nova forma e conteúdo nesta sociedade e se intensifica na crise estrutural do capital. Entender essa questão suscita o entendimento de que a desigualdade social é condição das sociedades de classes antagônicas, contudo, assume uma configuração determinada na sociedade capitalista dadas as condições de exploração do homem pelo próprio homem e da apropriação privada dos meios de produção. Nesse sentido, a polarização entre pobreza e riqueza e, por conseguinte, a desigualdade não são recentes na história da humanidade, já que em sociedades baseadas em outros modos de produção – como por exemplo, no escravismo e no feudalismo – segmentos se apropriavam da riqueza social enquanto outros extratos sobreviviam em precárias condições. São fenômenos antigos, porém não eternos. Mas, na sociedade capitalista, como indica Netto (2008), há um caráter novo e contraditório: pela primeira vez na história da humanidade produz-se massivamente a pobreza material e intelectual ao mesmo instante que estão sendo dadas as condições para sua superação. Precisamente hoje a questão do pauperismo se generaliza e isto se deve não a herança genética desfavorável ou desinteresse intrínseco, mas, fundamentalmente, a impossibilidade de uma massa populacional de ter acesso a certos bens culturais, em

função das condições objetivas do processo produtivo capitalista (KLEIN, SILVA, DA MATA, 2011). Esse fato é candente à compreensão da EJA, pois esta modalidade de ensino emerge na sociedade capitalista e busca justamente enfrentar e minimizar as injustiças causadas pela desigualdade social, que inviabiliza uma parcela significativa de seres humanos ao acesso a um bem produzido historicamente – a leitura e escrita e os conhecimentos científicos. São justamente estes os indivíduos recorrentemente denominados nos documentos governamentais e deliberativos da EJA como ―excluídos dos ensinos fundamental e médio‖ (BRASIL, 2000, p.4), ―sujeitos marginais ao sistema‖ (BRASIL, 2007, p. 11) ou àqueles que devem ser dirigidos mecanismos de reparação da ―dívida social‖ (BRASIL, 2000, p. 5), que devem ter garantido a sua ―cidadania‖. A incompreensão das bases reais e concretas que fomentam as desigualdades sociais – a sociedade de classes – faz com que essas sejam entendidas como algo que devem ser combatidas em si mesmas. Neste sentido, são disseminadas, reiteradamente e secularmente, propostas governamentais e ações sociais que visam enfrentar as mazelas sociais como a fome, a violência, o desemprego estrutural, a miséria intelectual e material que assolou a humanidade no decorrer dos últimos séculos e que se apresentam em níveis mais aprofundados no atual. No caso da educação escolar, o artifício retórico no discurso oficial dos órgãos do Estado inviabiliza a compreensão de que em uma sociedade de classes, baseada nos ideais liberais, a expansão e difusão da escola não significam que o acesso a ela tenha ocorrido nas mesmas condições para todos os indivíduos. Ao contrário, o que os fatos e os dados históricos demonstram é que as situações pedagógicas específicas existentes no interior da escola não são disponibilizadas a todos e quando disponibilizadas não ocorrem com a mesma forma e conteúdo. Isso porque na sociedade capitalista, em função da intensidade da luta de classes, não há interesses e nem possibilidades de formar indivíduos iguais, mas se busca manter a desigualdade presente (VIEIRA PINTO, 1989). Reiteramos que a escola, não obstante fundar-se sobre determinações materiais, é difundida universalmente como se tivesse o poder de formação do cidadão, independentemente das determinações materiais. Concretamente esta predição igualitária não se efetiva, haja vista que a educação escolar chega à grande parte da população de forma superficial e rala. Isso porque a escola, nesta sociedade, não tem

como finalidade cumprir as suas proclamadas funções; contudo, a sua expansão, inclusive àqueles que não tiveram acesso na idade adequada, é necessária, do ponto de vista material, como afirma Alves (2001). É neste contexto, portanto, que emerge a Educação de Jovens e Adultos. Destas constatações, afirmamos que para além dos discursos pretensamente igualitários, é preciso entender que as condições objetivas de vida provocam um nível crescente de desumanização e ocorrem justamente pelo acirramento da contradição entre capital e trabalho e pela formação humana em caráter cada vez mais alienado. Discutir

a

precária

formação

escolar

de

jovens

e

adultos

trabalhadores,

desnaturalizando-a, implica, pois, compreender que a formação humana baseia-se nas determinações do trabalho. Fundamentos do materialismo histórico dialético: ontologia do trabalho e alienação do trabalho na sociedade capitalista Por não dispor de espaço para uma discussão que considere os múltiplos aspectos da ontologia do trabalho, optamos pela discussão, ainda que breve, dos processos que levam à formação humana por meio da produção dos meios de vida e dos fatores que levam à alienação quando a propriedade privada dos meios de produção estabelece-se como a base para a produção e reprodução da vida. Podemos compreender claramente em Marx e Engels a concepção de formação humana determinada pelo modo de produção de vida material, ou seja, pelo modo como os homens46 produzem a sua existência e pelas relações sociais estabelecidas neste processo, historicamente determinadas. A definição da constituição humana parte, portanto, da existência de indivíduos humanos vivos que se destacam da natureza por produzirem intencionalmente seus meios de vida e ao produzi-los, desenvolvem a sua própria vida material, sendo este o primeiro ato propriamente humano (MARX, ENGELS, 1976). Das objetivações criadas pelos homens, novas necessidades – bem como novas habilidades e capacidades – foram geradas e, então, novas atividades exigidas, caracterizando a formação do gênero humano interrelacionado ao processo ininterrupto

46

A fim de evitar a repetição homem/mulher, no decorrer desse trabalho, utilizaremos a terminologia homem enquanto sinônimo de gênero humano, o qual é constituído por homens e mulheres.

da produção (DUARTE, 1993; MÁRKUS, 1974) a que podemos atribuir o papel de gerador da história humana. A história da humanidade caracteriza-se por uma sucessão de gerações, sendo que a cada nova geração cabe a tarefa de se apropriar das objetivações elaboradas pelas anteriores, isto é, dos instrumentos, conhecimentos, funções, habilidades e técnicas que, no transcurso da atividade criadora e produtiva dos homens, objetivaram-se em produtos materiais e intelectuais (LEONTIEV, 1978). Eis que a formação da genericidade humana no indivíduo singular é possível somente pela apropriação das objetivações desenvolvidas pela humanidade, em determinado contexto. Leontiev (1978) afirma que esse processo formativo só é possível por meio da educação. É preciso considerar que quanto mais as objetivações tornam-se diversificadas e complexas, maiores são as exigências para a formação de seus membros. Contudo, as especificidades do grau de desenvolvimento das relações sociais de produção nas sociedades de classes, em função da divisão social do trabalho e da propriedade privada, acarretam a incorporação das objetivações sociais de forma desigual pelos homens. Neste ínterim, vale frisar que a universalização do gênero humano não pressupõe, necessariamente, a formação de indivíduos cada vez mais universais e livres. Ao contrário. Em condições de exploração de uma classe social por outra, o processo de universalização do gênero humano sucumbe à produção de indivíduos cada vez mais unilaterais e limitados, alienados das riquezas materiais e espirituais criadas pelos homens. Neste pormenor, ―A diferença entre o alcance do desenvolvimento genérico do homem e do homem particular, em uma mesma época, pode ser imensa‖ (BARROCO, 2007, p. 236). Especificamente no capitalismo, as relações humanas regidas pela propriedade privada dos meios de produção subtraem do gênero humano o poder de atuação sobre a natureza, transformando-o em propriedade particular de alguns. Mészáros (2006) pontua que, sob a forma do capital, a universalidade é necessariamente cindida do homem, já que a própria humanidade está divorciada de suas potencialidades efetivas, restando à realização de suas potencialidades alienadas. ―[...] Assim, ao invés de ampliar a gama de capacidades efetivas do indivíduo, o desenvolvimento capitalista termina restringindo e negando também as potencialidades humanas‖ (MÉSZÁROS, 2006, p. 258). Conforme salientam Klein, Silva e Da Mata (2011), na medida em que aliena-se a maior parte das pessoas das potencialidades conquistadas socialmente, produz-se um abalo na formação humana. O analfabetismo e a precarização da aprendizagem de

conteúdos científicos são, assim, manifestações de um processo mais amplo de alienação, posto que um sistema produtivo que articula um enorme desenvolvimento, mas também a expropriação dos bens produzidos, inevitavelmente produz uma educação marcada por essa mesma contradição (KLEIN, SILVA, DA MATA, 2011). Sob esta lógica, não é no indivíduo em si mesmo que se há de buscar a explicação para o fracasso escolar e seu produto inevitável: o jovem ou adulto de precária escolarização. Nesta perspectiva, esses jovens e adultos precariamente escolarizados não são casos de anomalia ou desvio social, mas, ao contrário, são produtos normais da sociedade em que vivemos (VIEIRA PINTO, 1989). O adulto se torna precariamente escolarizado porque as condições materiais de sua existência lhe permitem sobreviver dessa forma. A educação escolar é proporcionada, pois, nos estritos limites das necessidades objetivas da sociedade capitalista, ou seja, a fragmentação do trabalho decorrente da divisão técnica do trabalho impõe um modelo educacional igualmente fragmentário, que se expressa na formação do trabalhador enquanto adaptabilidade ao mercado de trabalho da forma mais precária, a qual se centra, por um lado, na perspectiva pragmática de adaptação às demandas do capital e, por outro, na precarização do conhecimento e na ausência de uma perspectiva da totalidade. Asseveramos que a escolarização de jovens e adultos trabalhadores, dirigida à formação de níveis mais elevados de consciência, demanda o desvelamento do processo da constituição e do desenvolvimento do modo de produção capitalista.A Psicologia, sob a concepção histórico-cultural, pode auxiliar neste sentido, na medida em que favorece explicações que explicitam as causas da constituição e do desenvolvimento humanos. Psicologia Histórico-Cultural e EJA: desnaturalização da precária formação escolar do trabalhador Compreender a raiz material da alienação humana na sociedade capitalista – a alienação do trabalho – faz frente com a resignação da desumanização na realidade, à aceitação ―natural‖ das condições humanas postas e engendra a compreensão que o processo que resulta na criação de seres humanos fragmentados pode ser revertido, a partir de mudanças radicais no modo de produção da humanidade. Esta era a defesa

incondicional de Lev S. Vigotski47, A. Luria e A. Leontiev: a possibilidade real de superação da alienação do trabalho reinante na sociedade capitalista, sendo esta a condição vital para o aniquilamento da exploração do homem pelo próprio homem e para o início da ―verdadeira história da humanidade‖ (MARX, [19--]). No contexto pósrevolucionário soviético, os autores se esforçaram para formular um novo tipo de Psicologia que compreendesse o homem a partir daquilo que produz e do modo como se reproduz. Tinham clara a empreitada de que a atividade vital ao deixar de ser baseada na propriedade privada e na troca – sem a mediação alienante da divisão do trabalho na sociedade capitalista –, adquiriria o caráter da atividade do homem como ser genérico. Defendiam, portanto, que a liberdade humana de exercer os poderes essenciais do homem, cindidos pelas limitações criadas pelas reificadas relações sociais de produção capitalista, pode ser alcançada a partir de mudanças radicais no modo de produção da humanidade. De acordo com Leontiev (1978, p. 173-174), Na sociedade de classes, a encarnação no desenvolvimento dos indivíduos dos resultados adquiridos pela humanidade na sequência do desenvolvimento da sua actividade global, e a de todas as aptidões humanas, permanecem sempre unilaterais e parciais. Só a supressão do reino da propriedade privada e das relações antagonistas que ela engendra pode pôr fim à necessidade de um desenvolvimento parcial e unilateral dos indivíduos. Só ela cria, com efeito, as condições em que o princípio fundamental da ontogênese humana – a saber, a reprodução nas aptidões e propriedades múltiplas formadas durante o processo sócio-histórico – se pode plenamente exercer.

Consoante ao materialismo histórico-dialético é explicitado nesta abordagem – Psicologia Histórico-Cultural – que nenhuma sociedade pós-capitalista poderia ter esperanças de realizar o indivíduo social sem aniquilar aquilo que é especifico da sociedade de classes: a exploração do homem pelo próprio homem, a luta de classes, a propriedade privada. No entanto, Vygotsky (2004) salienta que a produção tecnológica e objetivação do trabalho têm encaminhado, no decurso da história da humanidade, à produção de homens cindidos das potencialidades humanas, pois quanto mais a divisão do trabalho se impõe, mais degradado se torna o homem). Esta defesa corrobora com aquilo que

47

Optamos por esta forma de representação do sobrenome do autor por ser a mais recente no Brasil e ser a forma utilizada na tradução literal da obra russa que chegou ao Brasil no ano de 2001 (A construção do pensamento e da linguagem), pela editora Martins Fontes. No entanto, podemos encontrar seu sobrenome grafado como Vygotsky, Vigotsky, Vygotski, Vigotskii, entre outras variações, conforme a tradução. Nas citações e referências, no presente texto, foi mantida a grafia utilizada no original.

Marx e Engels (1976, p. 28) postulavam: ―A ‗libertação‘ é um facto histórico e não um facto de intelectual, e é provocado por condições históricas [...]‖. Sob essa perspectiva, Vigotski compreende que a degradação humana não é inerente ao homem, mas é produzida em determinada época e por determinadas condições criadas pelos homens. É justamente por isso que pode ser superada, à medida que o trabalho se torne um fim em si mesmo, enquanto atividade interior, enquanto atividade livre não impeditiva dos poderes humanos. Tal mudança não deriva de mudanças institucionais, mas como um processo complexo de mudanças estruturais e radicais em todas as partes da totalidade humana, inclusive na educação do povo para a transformação e elevação da consciência, para o aprimoramento dos instrumentos do pensamento, para o fortalecimento da personalidade e da individualidade, para o desenvolvimento das potencialidades e dos sentidos humanos e para formação do espírito de responsabilidade coletiva, questões candentes no contexto pós-revolucionário. Vygotsky (2004. p. 10-11) enfatiza que A educação deve desempenhar o papel central na transformação do homem, nesta estrada de formação social consciente de gerações novas, a educação deve ser a base para alteração do tipo humano histórico. As novas gerações e suas novas formas de educação representam a rota principal que a história seguirá para criar o novo tipo de homem. Neste sentido, o papel da educação social e politécnica48 é extraordinariamente importante. As ideias básicas que justificam a educação politécnica consistem em uma tentativa de superar a divisão entre trabalho físico e intelectual e reunir pensamento e trabalho que foram separados durante o processo de desenvolvimento capitalista.

Vigotski é claro ao pontuar que a ciência, a arte e a filosofia, pautadas na instrução teórica, por si só não levam ao reino da liberdade; mas é firme ao esclarecer que a educação formal desempenha papel central na transformação do homem e na formação humana, na edificação da nova sociedade e novo homem. Empenho da ciência, portanto, à humanização, à educação para o povo e para o trabalho enriquecedor e criativo. Para tanto, a valorização do conhecimento cientifico e a vinculação do trabalho cotidiano com a teoria a todos era imprescindível para a promoção do homem

48

Vygotsky (2004, p. 10-11) explica que ―De acordo com Marx, a educação politécnica proporciona a familiaridade com os princípios científicos gerais a todos os processos de produção e, ao mesmo tempo, ensina as crianças e adolescentes que habilidades práticas tornam possível para eles operarem as ferramentas básicas utilizadas em todas as indústrias. Krupskaja formula esta ideia da seguinte maneira: ‗Uma escola politécnica pode ser distinguida de uma escola de comércio pelo fato de centrar-se na interpretação de processos de trabalho, no desenvolvimento da habilidade para unificar teoria e prática e na habilidade para entender a interdependência de certos fenômenos, enquanto em uma escola de comércio o centro de gravidade está em proporcionar para os alunos habilidades para o trabalho‘".

desenvolvido, livre e rico, no sentido proposto por Marx. Sob esta concepção, Vigotski enfatiza que a formação do trabalhador deve caminhar passo a passo com a ciência, pois Em semelhantes formas o trabalho se transforma em conhecimento científico cristalizado e para adquirir habilidades é efetivamente necessário dominar um imenso capital de conhecimentos acumulados sobre a natureza, que são utilizados em cada aperfeiçoamento técnico. Pela primeira vez na história da humanidade, o trabalho politécnico forma o cruzamento de todas as linhas fundamentais da cultura humana que era impensável nas épocas anteriores. O significado educativo desse tipo de trabalho é infinito porque, para dominá-lo plenamente, é necessário o mais pleno domínio do material da ciência acumulada por todos os séculos. Por último, a questão mais importante: a influência puramente educativa exercida pelo trabalho. Esse trabalho se transforma predominantemente em um trabalho consciente e exige dos seus participantes uma suprema intensificação da inteligência e da atenção, promovendo um labor do operário comum aos níveis superiores do trabalho criador humano (VIGOTSKI, 2001, p. 257, 258).

Marx e Engels ao tratarem da educação49 pontuam que esta não constitui uma revolução por si mesma, mas é um instrumento importante para criar condições de superação daquilo que avilta o homem na sociedade de classes. Por via da educação é possível provocar o conhecimento da realidade, o desenvolvimento das funções psicológicas superiores e o aprimoramento da formação cultural, embora as condições históricas não estejam encaminhando para isso. Notoriamente os autores soviéticos defendem, por um lado, a educação de qualidade para todos, para os trabalhadores e para sua prole; mas, por outro, entendem que é preciso criar condições que transcendam a educação que vigora na sociedade capitalista, já que neste modo de produção a educação igualitária é ilusória. Fica, assim, evidente, que os pressupostos teóricos desta escola psicológica além de possibilitar pensar sobre os resultados e consequências da educação sob os moldes da sociedade capitalista, nos permite refletir sobre as suas causas e ter uma visão prospectiva do que pode ser feito. Tomando por base Marx e Engels, os autores soviéticos defendem que as transformações dependem dos homens concretos, sendo fundamental a apreensão das leis que regem o funcionamento da sociedade para que, dialeticamente, ocorra uma atuação ativa que, se não modifica a realidade posta, cria

49

Marx e Engels abordam a temática da educação em obras, como por exemplo, O Capital, escrita por Marx, em específico no capítulo XIII – A Grande Indústria; A Ideologia Alemã, elaborada por Marx e Engels entre os anos de 1845-1846; Crítica ao Programa de Gotha, produzida por Marx entre os anos de 1875 e 1878; Princípios do Comunismo, escrita por Engels em 1847 (BARROCO, 2007; LOMBARDI, 2005).

condições para modificações significativas no nível de consciência dos indivíduos sobre a sua condição de ser datado e histórico. Os autores da Psicologia Histórico-Cultural destacam a essencialidade da educação sistematizada no desenvolvimento do psiquismo, na estruturação dos processos psicológicos. Se, por um lado, explicitam que a escola por si mesma não gera mudanças radicais na sociedade por não ser independente das relações econômicas e sociais, por outro, revelam a essencialidade da educação formal para transformação e elevação da consciência, para o aprimoramento dos instrumentos do pensamento, para o desenvolvimento das potencialidades e dos sentidos humanos.

Considerações finais A análise sobre a precária formação escolar, sob os fundamentos do materialismo histórico-dialético e da Psicologia Histórico-Cultural, evidencia que a EJA está amarrada ao fio da história do desenvolvimento das forças produtivas capitalistas. Essa modalidade é, pois, uma expressão desta época histórica e está em consonância com o discurso ideológico e com as concepções jurídica e política de igualdade e liberdade do pensamento liberal que alicerçam as relações capitalistas e ofuscam a exacerbação das contradições e luta de classes deste sistema produtivo. Barroco (2007) salienta que nesta fase, em que se tornam mais agudas as contradições do processo de reprodução sóciometabólica do capital, é preciso entender que não se pode falar de propostas de inclusão social e escolar – como é o caso da EJA – sem atentar para as contradições existentes entre trabalho e educação. É preciso esclarecer que não somos contra a proposição desta modalidade de ensino. Mas não basta ser contra ou a favor, é fundamental buscar propostas e enfrentamentos pautados na razão e não na emoção ou no julgamento moral (BARROCO, 2004). Se não conhecermos a lógica histórica que movimenta tais propostas, caímos no discurso do ―desafio social‖ de combater a ―dívida aos sujeitos marginais do sistema‖ e não nos atentamos ao porquê da existência dos marginalizados e como a educação de adultos se constituiu enquanto modalidade de ensino no Brasil. Se não entendemos as causas reais dos limites da escolarização dos adultos somos conduzidos à armadilha ideológica que difunde a ideia que as possibilidades para o estudo estão postas, mediante os inúmeros programas disponibilizados pelo governo e

pela sociedade civil, bastando aproveitá-las para ter vida melhor e fazer do mundo um lugar melhor para se viver. A educação, aqui, ganha status de redentora da sociedade. Sair dos limites da escola e apreender o que movimenta a não aprendizagem de determinados conhecimentos é o que pode mobilizar ações concretas de enfrentamento para revolucionar a consciência e os instrumentos do pensamento, para a complexificação dos sentidos humanos, enriquecendo a formação do trabalhador.

Referências ALVES, Gilberto Luiz. A produção da escola pública contemporânea. Campo Grande, MS: Ed. UFMS; Campinas, SP: Autores Associados, 2001. BARROCO, Sônia Mari Shima. Considerações sobre uma prática educacional inclusiva em tempos de prática social excludente. IN: Proposta Curricular para a Educação Especial: norteadores teóricos. Sarandi: Orfeu Gráfica e Editora Ltda., 2004. (p. 15-22) BARROCO, Sônia Shima Mari. A Educação Especial do novo homem soviético e a Psicologia de L. S. Vigotski: implicações e contribuições para a Psicologia e a Educação atuais. 414 p. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2007. BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 23 dez. 1996. BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Básica. Parecer nº.11, homologada em 07 de junho de 2000. Diretrizes Curriculares para a Educação de Jovens e Adultos. Brasília: MEC, 2000. BRASIL, Ministério da Educação. Documento Base – Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos – Educação Profissional Técnica De Nível Médio/Ensino Médio. Brasília: MEC/SETEC, 2007. DUARTE, Newton. A Individualidade Para-Si: Contribuição a uma Teoria HistóricoSocial da Formação do Indivíduo. Campinas: Autores Associados, 1993. IBGE. Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2010a. IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Rio de Janeiro: IBGE, 2010b. IBGE. Censo Demográfico 2010. Disponível em http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=201 7&id_pagina=1. Acesso em dezembro de 2011. KLEIN, Lígia Regina; SILVA, Graziela Lucchesi Rosa da; DA MATA, Vilson Aparecido. Alienação ou exclusão: refletindo o processo de inclusão na educação de jovens e adultos. IN: FACCI, Marilda Gonçalves Dias; MEIRA, Marisa Eugênia

Melillo; TULESKI, Silvana Calvo. Exclusão e inclusão: falsas dicotomias, Maringá: EDUEM, 2011. LEONTIEV, Aléxis. N. O desenvolvimento do psiquismo. Tradução de Manuel Dias Duarte. Lisboa: Livros Horizonte, 1978. LOMBARDI, José Claudinei. Educação, Ensino e Formação Profissional em Marx e Engels. IN: LOMBARDI, José Claudinei; SAVIANI, Demerval (orgs.). Marxismo e educação: debates contemporâneos. Campinas, SP: Autores Associados: HISTEDBR, 2005. (p. 1-38). MÁRKUS, Gyorgy. Teoria do Conhecimento no Jovem Marx. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. MARX, Karl. Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política [1859]. IN: Obras Escolhidas de Karl Marx e Friedrich Engels. V. 1. São Paulo: Ed. Alfa - Omega, [19--]. (p. 300-303). MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Tradução de Conceição Jardim e Eduardo Lúcio Nogueira. 3ª ed. Vol. I. Rio de Janeiro: Martins Fontes; Lisboa: Editorial Presença, 1976. Coleção Síntese. MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx. Tradução de Isa Tavares. São Paulo: Boitempo, 2006. NETTO, José Paulo. Questão social no Brasil. Matinhos, PR: UFPR Litoral, 23 ago. 2008. Palestra de abertura do Curso de Especialização em Serviço Social da UFPR Litoral. 2008. VIEIRA PINTO, Álvaro. Sete lições sobre Educação de Adultos. 6ª ed. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1989. (Coleção Educação Contemporânea). VIGOTSKI, Lev Semenovich. Psicologia Pedagógica. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2001b. VYGOTSKY, Lev. A Transformação socialista do homem 1930. Trad. Nilson Dória. Marxists Internet Archive, 2004. Disponível em: http://www.marxists.org/portugues/vygotsky/1930/atransformacaosocialistadohomem.ht m. Acesso em: outubro de 2009.

Corpo, HIV/AIDS e as Contradições do Mundo do Trabalho Roberto Kennedy Gomes Franco

Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano com sua própria ação impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo, braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza. Desenvolve as potencialidades nela adormecidas e submete ao seu domínio o jogo das forças naturais. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade (MARX, 2008, p. 202).

Este texto é parte da Tese de Doutorado intitulada a Face Pobre da AIDS51, onde analisamos a proliferação do vírus da imunodeficiência humana – VIH sob a perspectiva do materialismo histórico-dialético. A centralidade da Tese foi denunciar de forma engajada as contradições do capitalismo contemporâneo por intermédio da face pobre da AIDS/SIDA. O fio condutor de análise se processou metodologicamente pela articulação de fontes diversas (orais e escritas). Historicamente, o inicio da epidemia de AIDS no Brasil ocorreu ao longo da década de 1980, afetando inicialmente as classes sociais de maior escolaridade. Hoje, na terceira década de pandemia, os dados pesquisados claramente denunciam que o vírus dissemina-se de maneira crescente nas classes sociais de menor escolaridade, ou seja, a AIDS afeta especificamente a classe pobre. No contexto de mercantilização da saúde, as estimativas indicam que, hegemonicamente, mais de 90% dos casos da pandemia de AIDS se concentram em 

Professor Adjunto do Curso de História da Universidade Estadual do Piauí – UESPI; Doutor em Educação Brasileira (UFC); Mestre em Ciências da Educação (UFPI); Graduado em História (UFC); Email: [email protected]; [email protected]; [email protected] 50 FRANCO, Roberto Kennedy Gomes. A Face Pobre da AIDS. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em educação Brasileira, Fortaleza(CE), 26/08/2010. Na produção da Tese tive como Orientador o Prof. Dr. Eduardo Chagas. 51 FRANCO, Roberto Kennedy Gomes. A Face Pobre da AIDS. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em educação Brasileira, Fortaleza(CE), 26/08/2010. Na produção da Tese tive como Orientador o Prof. Dr. Eduardo Chagas.

alguns países de economias periféricas da África e América Latina. Na realidade histórico-educativa brasileira, os dados apontam que cerca de 50% da população sorologicamente positiva para o HIV é pobre e com baixíssimo nível de escolaridade. O adoecimento, nesse sentido, reproduz as contradições de classe da sociabilidade do Capital. Atrelado a este processo, analisa-se também o advento de um engajamento político caracterizado como ativismo de luta contra a AIDS, particularmente, o Movimento Social denominado de Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/AIDS (RNP+Brasil). Organizado na década de 1990, o associativismo deflagrado por este novo movimento social diz respeito ao processo histórico de tomada de consciência política e de mobilização por melhores condições por melhores condições de existência (saúde, moradia, alimentação, emprego etc.), para vidas em experiências corporais de adoecimento. Nesta luta pelos meios necessários à vida, Marx e Engels (1982, p. 39), diante da precarização e pobreza econômica, destacam o fato de que, ―para viver, é preciso antes de tudo comer, beber, ter habitação, vestir-se e algumas coisas mais. Dentre estas, algumas coisas mais necessárias ao corpo como condições para viver‖, evidenciamos a luta social por trabalho, saúde e contra as doenças como o HIV/AIDS como ―uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, como há milhares de anos, deve ser cumprida todos os dias e todas as horas, simplesmente para manter os homens vivos.‖ (MARX e ENGELS: 1982, p. 39). Isto porque é inadiável a organização social em torno de luta por melhores condições de atendimento às experiências de adoecimento. Partindo deste entendimento, procedeu-se à análise da relação entre a sorologia positiva para o HIV e as contradições do mundo do trabalho. Iniciamos do entendimento de que é pela mediação do trabalho que o corpo aprendiz historicamente organiza sua relação social com o meio ambiente, pois é ao mesmo tempo produtor e produto do meio social em que vive e se adapta ao longo de sua trajetória como espécie biológica, aliando as características específicas de cada ecossistema às suas e, assim, provendo sua sobrevivência pelo prolongamento de sua saúde. Esta é a forma pela qual, dialeticamente, durante milhares de anos, o corpo humano se relaciona materialmente por meio do trabalho, categoria ontológica do ser social, com o meio ambiente e com as outras pessoas.

Ao longo desta trajetória, o corpo humano se foi adaptando ao meio mediante o princípio educativo do trabalho. À medida que novas e inusitadas situações exigiam um comportamento laboral específico à realidade experienciada, aprendia a prover sua existência. Esta adaptação aos diferentes espaços, ambientes, desenrola-se desde os primórdios, quando o homem ainda era nômade, e por excelência vivia exclusivamente do aprendizado corporal necessário para a caça e a coleta. Inicialmente esse processo trouxe ao homem a simples tarefa de coletar e caçar, tendo o meio ambiente, as florestas, savanas, pântanos, desertos, enfim, espacialidades plurais, que exigiam um comportamento também plural em relação às diversas condições climáticas e espaciais onde estivesse inserido. Para Soares (2001, 109-110), Cada gesto apreendido e internalizado revela trechos da história da sociedade ... Os corpos são educados por toda realidade que os circunda, por todas as coisas com as quais convivem, pelas relações que se estabelecem em espaços definidos e delimitados por atos de conhecimento (SOARES, 2001, p. 109110).

Paradoxalmente, nos marcos da lógica hegemônica do capital, escamoteia-se o fato de que a pessoa não nasce ela mesma. Contraditoriamente, o ser humano internaliza como naturais pela técnica educativa efetivada por meio da família, escola, religião, trabalho e saberes médicos, entre outros, certos sentidos do corpo. Nesta direção, Valverde (2000, p. 41) ressalta o fato de que Temos de admitir que o corpo é datado, que ele já teve vários sentidos e que já foi submetido a vários olhares, a vários tipos de recortes; e que não só o conceito de corpo é histórico, mas o corpo mesmo, enquanto sensibilidade partilhada pela coletividade humana, é também histórico. Os ―sentidos do corpo‖ nos remetem aos sentidos da cultura. Não podemos dissociar a experiência que cada um tem, através de seu próprio corpo, dos padrões nos quais a cultura se reconhece. Não possuímos um corpo abstrato; os seus poderes e limites só se revelam nas práticas de cada cultura (VALVERDE, 2000, p. 41)

Dialeticamente no processo de trabalho o corpo, além de ser a principal morada do homem, é seu essencial meio de trabalho52 e, ainda, seu primeiro instrumento de

52

Em Marx (1983, p.149): ―O meio de trabalho é uma coisa ou um complexo de coisas, que o trabalhador insere entre si mesmo e o objeto de trabalho e lhe serve para dirigir sua atividade sobre esse objeto. Ele utiliza as propriedades mecânicas, físicas, químicas das coisas, para fazê-las atuarem como forças sobre outras coisas, de acordo com o fim que tem em mira. A coisa de que o trabalhador se apossa imediatamente, - excetuados meios de subsistência colhidos já prontos, como frutas, quando seus próprios membros servem de meio de trabalho, - não é o objeto de trabalho, mas o meio de trabalho. Desse modo, faz de uma coisa da natureza órgão de sua própria atividade, um órgão que acrescenta a seus próprios órgãos corporais, aumentando seu próprio corpo natural, apesar da Bíblia.‖

trabalho53. O processo de trabalho, portanto, é uma relação ocorrente entre os corpos dos seres humanos de um lado e a natureza de outra parte. O próprio corpo humano pertence à natureza e, ao interagir com esta, se apropria dela, transformando-a em algo útil às suas necessidades materiais e espirituais. Isso é o processo de trabalho em seus aspectos abstratos, abordados por Marx no V capítulo do O Capital. De acordo com Marx (1983, p.149), ―ao atuar, por meio desse movimento, sobre a Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza.‖ A este respeito, Marcel Mauss (1974, p. 07) fala primeiro que ―o corpo é o mais natural instrumento do homem; depois, que em todos os elementos da arte de utilizá-lo, os fatos de educação o dominam‖. Para tanto, enumera biograficamente o fato de as ―técnicas corporais‖, ou seja, ―as maneiras como os homens, sabem servir-se de seus corpos, e ainda que essas técnicas variam ao infinito‖. Terceiro: ―há na vida em grupo uma espécie de educação dos movimentos, em qualquer sociedade, todos sabem e devem saber ou aprender aquilo que devem fazer em todas as condições, isto demonstra que coisas inteiramente naturais para nós são produções históricas‖. Por fim, para Mauss: ―a educação fundamental de todas essas técnicas consiste em fazer adaptar o corpo ao agir biocultural‖. Todos estes movimentos do processo de trabalho educativo, desde os primórdios até os tempos contemporâneos, acumulam uma infindável parafernália de invenções culturais, que simbolizam e significam a própria intervenção humana como reconstrutora de novas condições de vida, verdadeiras pegadas cravadas no passado e no presente de nossas vidas, o que nos proporciona um espetáculo na multiplicação de fontes, vestígios, que ampliam o leque de entendimento do humano. Nestas circunstâncias, o aprendizado histórico da virada do século XX para o XXI representa um aprofundamento dos antagonismos da relação trabalho assalariado e capital. As estatísticas anunciam a formação de um excedente de força de trabalho54 da ordem de milhões, o que situa o Brasil entre os primeiros na lista de países onde o desemprego em massa é determinante para a precarização social. Os fatores são os mais

53

Em Marx (1983, p.149) ―O uso e a fabricação de meios de trabalho, embora em germe em certas espécies animais, caracterizam o processo especificamente humano de trabalho e Franklin define o homem como "a toolmaking animal", um animal que faz instrumentos de trabalho.‖ Em nossas hipóteses, dialeticamente, o próprio corpo deste ―animal que faz instrumentos de trabalho‖ também é pesquisa, um instrumento de trabalho. 54 Por força de trabalho ou capacidade de trabalho compreendemos o conjunto das faculdades físicas e mentais existentes no corpo e na personalidade viva de um ser humano, as quais ele põe em ação toda vez que produz valores-de-uso de qualquer espécie. (MARX, 2008, p. 197).

diversos, a saber, reestruturação produtiva, aliada ao desenvolvimento tecnológico que substitui em larga escala o trabalho vivo dos seres humanos pelo trabalho morto das máquinas, flexibilização das leis trabalhistas e da produção, fato que intensifica a exploração e a precarização por meio do e sobre o trabalho, esfacelamento dos movimentos sociais e dilapidação do patrimônio público por privatizações, que culminam com a redução do Estado na oferta de serviços sociais básicos, como a educação e a saúde. De maneira peculiar ao procedermos à análise do desenvolvimento histórico do capitalismo atual, aprende-se que este modo de produção, acumulação e exploração do homem pelo homem, além de apresentar sua natureza contraditória e conflitante, manifesta ainda um caráter antagônico, que, segundo Mészáros (2005), nos situa para além de meras crises periódicas e abruptas. Esta análise é presente também em Antunes (1997) e Harvey (1992), pois, para ambos, não se trata mais de um movimento essencialmente cíclico, já que as estruturas sociais estão profundamente abaladas. O desemprego estrutural é um bom exemplo, pois milhões e milhões de trabalhadores simplesmente são mão de obra descartável pela base produtiva. Não se trata apenas de uma falta momentânea de emprego, visto que a quantidade de desempregados só tem aumentado e se tornado irreversível. Vale destacar o fato de que Marx (1890) considera o desemprego como um ―exército industrial de reserva‖, porque, no momento histórico vivenciado pelo referido autor, os trabalhadores sem emprego ficavam à espera de uma reabsorção do mercado quando este retomasse o processo de valorização do capital. Esse movimento, todavia, parece ter sido substituído por um modo de produção que, implementando altos índices de tecnologia, sobrevive com um número mínimo de empregados. Percebe-se, pois, que, de crise em crise, com o desenvolvimento tecnológico, o desemprego foi-se tornando ―natural” e crescente diante das relações capitalistas. Esta dinâmica de racionalização organizacional do sistema empresarial contemporâneo, imposta pela reestruturação produtiva mundial, gradativamente substitui o trabalho vivo pelo trabalho morto, ou seja, substitui o labor humano pela forma mecânica/informatizada. Neste sentido, desejando moldar a sociedade às novas demandas do capitalismo, temos uma frenética busca pelo avanço do desenvolvimento das forças produtivas, que, incrementado pela ciência e tecnologia, almeja produzir mercadorias a menor custo e maximizar a mais-valia.

Para Frigotto (1999, p. 65), O caráter contraditório (de crise portanto) do modo de produção capitalista explicita-se, historicamente e em formações sociais específicas, de formas e conteúdos diversos, porém, inexoravelmente, pela sua própria virtude de potenciar as forças produtivas e por sua impossibilidade de romper com as relações sociais de exclusão e socializar o resultado do trabalho humano para satisfazer as necessidades sociais coletivas (FRIGOTTO, 1999, p. 65).

O capitalismo contemporâneo, que emerge no final da década de 1970, consolidou ainda o processo de flexibilização das fronteiras nacionais e projetou para âmbitos internacionais as novas investidas do capital, sendo, portanto, considerada a era da ―globalização‖ dos mercados e da ascensão do capital financeiro, esse movimento histórico ter sido amplamente categorizado como de ―mundialização do capital‖ (CHESNAIS, 1996). Esse avanço das forças produtivas, como já discutimos, aconteceu vinculado ao desenvolvimento da informática e à utilização de novas fontes de energia, acoplando-se a uma geração de máquinas que incorporam a microeletrônica e a robótica, fatores básicos para um funcionamento racional, eficiente e produtivo. No que se refere, por exemplo, à relação da AIDS com as contradições do mundo do trabalho, a ativista Márcia aponta com desgosto o fato de estar desempregada, rememorando que em sua trajetória de vida sempre foi uma mulher autônoma. Relata que desde jovem nunca se acomodou com as condições adversas apresentadas pela vida de menina pobre do interior do Piauí. Muito pelo contrário, aos dezoito anos, migrou para Teresina, onde trabalhou na articulação de eventos da recémchegada Rádio Jovem Pan, e, logo em seguida, foi para a Cidade maravilhosa, o Rio de Janeiro, onde vivenciou as aventuras de uma menina do interior na cidade grande, atividade esta que a fez migrar ainda para a fronteira com a Bolívia, morando e trabalhando no Estado do Mato Grosso. Durante toda a sua vida, expressa ela, ―sempre vivi do fruto de meu trabalho, sempre fui articulada com várias outras atividades, sei que posso e que sou capaz de trabalhar e produzir meu próprio sustento, mas quem vai querer contratar uma pessoa sorologicamente positiva para o HIV e que conscientemente faz questão de dar visibilidade a sua sorologia?‖ Para Márcia, a experiência de adoecimento é interpretada como mais um elemento de exclusão, segregação e vulnerabilidade social, porquanto os interesses sociais do tempo presente estão diretamente interligados à produção capitalista. A doença, então, torna o enfermo incapaz de produzir e, uma vez impossibilitado de pelo trabalho gerar

mais-valia, este sujeito vira mão de obra descartável. Então, isto quer dizer que, historicamente, o indivíduo se realiza como ser social por meio do trabalho, isto porque os seres humanos, ao longo de suas trajetórias, têm necessidades corporais efetivas (objetivas e subjetivas). A análise de (SILVA, 1999, p 24) articula bem este aspecto levantado pela narrativa de Márcia. A este respeito, diz assim: ―a partir da Aids, também acontece um encadeamento de fatores que provocam a exclusão, sendo a perda do emprego, por exemplo, uma situação bastante comum. A Aids, nesse caso, funciona como porta de entrada no campo da vulnerabilidade econômica.‖ De forma complementar à fala de Márcia, Parker et alii (1993, p. 17-18, 20) comentam que é preciso Entender que o HIV pode afetar potencialmente qualquer ser humano. [...] E que a luta contra a AIDS surge necessariamente dentro da luta mais ampla contra a injustiça – contra a pobreza e a miséria, contra o racismo, contra a opressão de mulheres e minorias sexuais e assim por diante [...] cujo objetivo é tentar responder, através dos conceitos e métodos da análise social, aos desafios e dilemas que nos são apresentados no final do século XX pela epidemia de HIV/AIDS (PARKER, et alii, 1993, p. 17-18, 20).

Estes reflexões são presentes também quando analisamos no Site da Organização Internacional do Trabalho55 os aspectos da relação HIV-AIDS nos locais de trabalho. Segundo Juan Somavia, Diretor Geral da OIT, A Aids ameaça os princípios de justiça social e igualdade, assim como o trabalho decente e produtivo realizado em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade humana. A epidemia do HIV/Aids atinge de forma decisiva a estrutura social, econômica e cultural dos países, constituindo-se uma grave ameaça ao mundo do trabalho. (2010).

Segundo ainda a pesquisa da OIT ―El VIH/SIDA y el mundo del trabajo: estimaciones a nível mundial, impacto y medidas adoptadas‖, de 2004, Estima-se que mais de 38 milhões de pessoas vivam com o HIV em todo o mundo, a maioria delas entre 15 e 49 anos, e que, do início da epidemia até 2005, 28 milhões de trabalhadores em todo o mundo tenham perdido suas vidas em conseqüência da Aids. Esse número deverá sofrer um aumento expressivo caso o acesso a tratamento adequado não seja ampliado, podendo chegar a 74 milhões em 2015. Isso transformaria o HIV/Aids em uma das maiores causas de mortalidade no mundo do trabalho. Além de afetar as vidas de tantos trabalhadores e de suas famílias, a epidemia também atinge as

55

Fonte: http://www.oitbrasil.org.br/prgatv/prg_esp/hiv_aids.php.

empresas e a economia nacional. O impacto no nível de desenvolvimento se reflete na diminuição do crescimento econômico e na redução da renda nacional decorrente da perda de receita e do aumento do gasto público em saúde e previdência.

No site é possível, ainda, perceber a visão de que, para a OIT, o local de trabalho pode ajudar a conter a disseminação e mitigar o impacto do HIV/Aids, por meio da promoção dos direitos humanos, disseminação de informações, desenvolvimento de programas de capacitação e educação, adoção de medidas preventivas práticas, oferta de assistência, apoio e tratamento, e garantia de previdência social. O principal papel da OIT é fortalecer a capacidade nacional para implementar políticas e programas específicos de HIV/Aids e o mundo do trabalho e assessorar a implementação das normas internacionais do trabalho e da legislação nacional. Para tanto, o Programa da OIT sobre HIV/Aids e o Mundo do Trabalho (ILO/AIDS) está ―implementando uma estratégia global que contribua para conter a epidemia, por meio da conscientização e mobilização dos governos, organizações de empregadores e de trabalhadores e da integração do local de trabalho nos Planos Nacionais de HIV/Aids.‖ A bandeira de luta da OIT estabelece dez princípios para ações no local de trabalho. São eles: 1.Reconhecimento do HIV/Aids como questão relacionada com o local de trabalho; 2. Não discriminação; 3. Igualdade de gênero; 4. Ambiente de trabalho saudável; 5. Diálogo social; 6. Screening para fins de exclusão do emprego ou de atividades de trabalho; 7 Confidencialidade; 8 . Continuidade da relação de emprego; 9.Prevenção e 10. Assistência e apoio.

Como vemos, infelizmente, sendo a OIT co-patrocinadora do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids – UNAIDS, não observamos em momento algum ao procedermos à análise, nenhuma crítica ao mundo do trabalho mediante a radical crítica ao modelo de desenvolvimento capitalista em voga na atualidade, pois os argumentos são sempre para ―fortalecer e apoiar uma ampla resposta à epidemia que ofereça atenção e apoio para infectados e afetados pela doença, reduza a vulnerabilidade dos indivíduos e comunidades ao HIV/Aids e alivie os impactos socioeconômicos e humanos da epidemia‖. (2010).

Trazendo estas análises para nossas pesquisas no Nordeste brasileiro, um aspecto pertinente a ser analisado sobre a relação HIV/AIDS e os antagonismos do mundo do trabalho denunciado pelo ativista da RNP+NE Maranhão, João, é que hoje as pessoas são escravas do modelo de desenvolvimento capitalista que, na realidade, escraviza o

trabalhador de maneira legal. Segundo o ativista, um exemplo de trabalho escravo é aquele ―legal‖ em que o povo trabalha só por três meses e não tem carteira assinada porque são trabalhos temporários feitos para algumas indústrias canavieiras de São Paulo, que chegam apenas uma vez ao ano por conta do período de safra e vão embora depois; ―é tipo curral mesmo!‖ salienta. Nessa mesma entrevista, João denunciou o fato de que na região de Codó, Timbiras e Coroatá, no Maranhão, são quase seis mil trabalhadores rurais que vão para as plantações de cana-de-açúcar em Ribeirão Preto/SP. Em resumo, sua análise sobre esta situação é a seguinte: No Nordeste o modelo de desenvolvimento capitalista que temos afasta o povo da escola, se a pessoa está numa atividade como essa ela não vai ter tempo para ficar estudando. Se você visita as cidades onde a grande questão da economia é a agro-indústria vai ver que esse povo todo não tem acesso à educação e que não tem escola para todo mundo, tem no máximo só até a quarta série e pronto. Então quando eu falo que esse modelo de desenvolvimento contribui para o aumento da epidemia é no sentido da educação, as pessoas são formadas para estarem alienadas mesmo. É tão absurdo que essas indústrias chegam a fazer parcerias com as Prefeituras locais, pra ta levando esse povo, isso contribui pra esse IDH baixo, pois isso tem a ver com a questão da sustentabilidade. As pessoas voltam doentes, então no ônibus chega gente com hérnia de disco, com tuberculose, isso eles não tratam lá, apenas mandam o povo de volta, chega gente infectado com HIV! alguns já chegam já com a situação de AIDS. Tudo isso por conta da situação precária de vida que eles vivem lá. A infecção, portanto tem a ver com a migração por melhores condições de trabalho.

Este relato denota precisamente a precarização social a que se encontra submetida a população nordestina e, ainda, demonstra com clareza a atualidade das análises de Marx para o século XXI. Em tempos de desemprego estrutural, qualquer oferta de trabalho é uma ―esperança‖ por melhores condições de vida, uma vez que, ―dada a existência do indivíduo, a produção da força de trabalho consiste em sua manutenção ou reprodução. Para manter-se, precisa o indivíduo de certa soma de meios de subsistência. Isto por que ―a soma dos meios de subsistência deve ser, portanto, suficiente para mantê-lo no nível de vida normal do trabalhador‖ (MARX, 2008, p. 201). Contraditoriamente, esta necessidade primeira de subsistência é a porta de entrada de mais precarização e vulnerabilidade social, pois, na próxima safra, os doentes são descartados da seleção e novas ―vítimas‖ selecionadas para trabalhar nos canaviais. Esta exclusão impede o exercício do trabalho, pois, conforme Marx (2008, p. 201), ―a força de trabalho só se torna realidade com seu exercício, só se põe em ação no trabalho. Através da sua ação, o trabalho, despende-se determinada quantidade de músculos, de nervos, de cérebro etc., que se tem de renovar‖.

Estes trabalhadores, com pouco ou quase nenhuma instrução, além da triste realidade de terem de conviver excluídos do mercado de trabalho, agora enfermos e sem condições de tratamento de doenças como o HIV/AIDS, entre outras, têm suas situações de pauperismo ainda mais agudizadas. Tal fato ocorre, segundo ainda Marx (2008, p. 201), porque, ―depois de ter trabalhado hoje, é mister que o proprietário da força de trabalho possa repetir amanhã a mesma atividade, sob as mesmas condições de força e saúde”. Sem saúde, estes trabalhadores encontram-se impossibilitados de efetuar o processo de trabalho56 ou o processo de produzir valores-de-uso. A mais-valia, entretanto, extraída desta relação, enriquece ainda mais os detentores dos meios de produção, entre outros derivados da produção. Nesta mesma perspectiva, a ativista Márcia (2007) conta, sobre a relação HIV/AIDS e pauperização no Nordeste do Brasil, que Estava em casa quando a menina da Secretária de Saúde chega aos gritos me pedindo ajuda, pois havia um homem positivo com um corte no pé, espalhando sangue e quebrado tudo na Praça Matriz. Era seu Antonio Alves, ele tava completamente surtado, quando me aproximei e pedi para falar, ele perguntou: ―quem é você?‖, Eu me chamo Márcia, mas pode me chamar de Xuxa, brinquei. Seu Antonio depois diz que ―a vida é ingrata comigo‖. Bicho a praça neste momento já estava lotada de gente que nem urubu de longe observando a carniça, daí convido seu Antônio para ir até o hospital, e enquanto agilizava um carro, a polícia que já havia sido acionada, chega e coloca seu Antonio na gaiola da viatura, preso. No meio da confusão lembro que acabei por entrar também na viatura dizendo que ia com ele. Dentro do carro da polícia me virei para seu Antônio e falei que também tinha HIV, ele primeiro se assustou e depois se acalmou. No hospital tempo depois chega a mulher de seu Antônio, que diz não saber de nada, que até já haviam se separado pois ele tava sem trabalhar a seis meses, desde que chegou com um envelope secreto, era o exame positivo de HIV. Depois de 15 dias deste ocorrido seu Antônio Alves morreu de ulcera estrangulada. Depois disso a mãe e as duas filhas pequenas também fizeram exames que deu positivo para HIV. Agora imagina você como vai ser a vida dessa mãe paupérrima, com essas duas meninas pequenas?

Conforme se apreende da narrativa de Márcia, quando as pessoas não estão tecnicamente educadas/conscientes a respeito do HIV/AIDS, o observado é a proliferação desenfreada de novos casos, medo generalizado, preconceito e segregação social. Em decorrência das múltiplas formas de transmissão, o HIV/AIDS afeta radicalmente a existência social de toda uma geração, ceifando precocemente muitas vidas e, ainda, desencadeando a metamorfose de certas práticas culturais dos seres

56

O processo de trabalho, que descrevemos em seus elementos simples e abstratos, é atividade dirigida com o fim de criar valores-de-uso, de apropriar os elementos naturais ás necessidades humanas; é condição natural eterna da vida humana, sem depender, portanto, de qualquer forma dessa vida, sendo antes comum a todas as suas formas sociais (MARX, 2008, p.218).

humanos no tempo presente. Isto nos faz pensar que a compreensão dos pormenores da vida de pessoas sorologicamente positivas para o HIV no território nordestino só pode acontecer na medida em que nos movemos entre eles. Assim, a interpretação da memória-histórica das lutas e resistências sociais incomoda, é arma potente em virtude da sua dimensão engajada e permanentemente crítica das formas de consciência humana no tempo e no espaço. Os ativistas da RNP+ que, de forma consciente, lutam politicamente contra o HIV/AIDS ao protestarem contra o Estado e sua inoperância ao atendimento em saúde; são testemunhas vivas da exclusão imposta pela economia política burguesa e lutando pela vida dia a dia, debatem-se com adversidades, angústias e vitórias do aprender a viver sorologicamente positivo para o HIV. O trabalho da RNP+ NE, além de denunciar a precarização social, procura contribuir para a redução de danos das vidas destas pessoas. Em agosto de 2008, ao participarmos do VI Encontro da RNP+NE, observamos um aspecto pertinente a ser ressaltado sobre a relação HIV/AIDS e mundo do trabalho. Na programação do evento, foi ofertada a oficina Artesanato como Forma de Sustentabilidade e Geração de Renda. O objetivo era ampliar as possibilidades de geração de renda em segmento social já historicamente segregado e que agora, ante a experiência de adoecimento decorrente do HIV/AIDS, por exemplo, se encontra ainda mais segregado; o intuito foi fortalecer laços de solidariedade e fomentar um aprendizado que trouxesse uma mínima sustentabilidade às suas vidas. Ao final da oficina, cada participante produziu seu artesanato. Durante o evento, o material produzido já estava de maneira simbólica sendo comercializado: eram chaveiros coloridos em formas de bonecos, pulseiras, brincos, colares e outros artigos que aliavam criatividade aos produtos específicos da região. É preciso salientar, entretanto, o limite dessa ação, que propõe uma convivência pacífica com o sistema e não a ruptura com ele, como também apontar a ―ingenuidade‖ nesse sentido, pois a oficina nem de longe soluciona o desemprego ou a redistribuição de renda, como também não é uma saída plausível do ponto de vista da vulnerabilidade social a que estão expostas estas pessoas. Vale destacar também a experiência relatada por parte de Rafael, em João Pessoa/PB, onde foram implantadas oficinas de arte terapia com os adultos. O intuito, segundo o ativista da RNP+NE, era trabalhar muito com projetos de sustentabilidade. O material era o retalho doado por três empresas; daí começou-se a fazer almofada, começou-se a fazer tapete.

Segundo Rafael (2008), Uma vez por mês tínhamos um bazar no meio da rua, a gente arrecadava dinheiro que dava para pagar, por exemplo, toda refeição de duas semanas,. Dai a gente foi se mobilizando, fomos fazer saquinhos de balas e vender no sinal no domingo, ia sempre alguém da diretoria e mais algumas pessoas voluntários que ajudaram muito nesse início. Tudo com muita luta! Para ter financiamento a gente vendia muita roupa, por exemplo, a gente fazia campanha de doação de roupa e ia para um bairro que era mais pobre, geralmente ia no sábado e passava quase o sábado inteiro vendendo roupa pelo preço baratinho. A gente começou de uma forma muito organizada porque com dois anos a gente conseguiu um contrato com a fundação da Inglaterra e eles passaram a financiar já o primeiro projeto.

São opções de cooperação entre a experiência do ativismo anti-AIDS, que, na prática, em nada modificam o modelo de desenvolvimento em voga, mas que, de maneira imediata, trazem resultados, seja na autoestima, por fazer as pessoas se sentirem capazes, seja na geração de uma pequena mas importante geração de renda para a compra de, pelo menos, arroz e feijão e um ovo para comer. Os limites e possibilidades dos novos movimentos sociais pões em xeque a luta por melhores condições de vida, mas não tocam no central da crítica política, ou seja, o fim das distinções de classe social imposta pela lógica do capitalismo. Não se trata apenas, como a maioria acredita, de mudar a elite política dirigente, pois é necessário planificar as relações sociais, objetivando assim, finalmente, extinguir a exploração do homem pelo homem. Neste sentido, os novos movimentos sociais perdem de vista a possibilidade histórica de transpor as demandas imediatas, contingenciais como as quotas, o movimento ecológico, negro, gay, indígena, enfim, o movimento da diversidade dentro da ordem do capital. Compreendemos ser necessária maior centralidade em ações políticas de construção de uma nova ordem social, revolucionária e anticapitalista.

Referências ANTUNES, Ricardo. Adeus ao Trabalho? Ensaios sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 1997. BRASIL. Boletim Epidemiológico AIDS - Ano VI nº 1 - julho a dezembro de 2008/janeiro a junho de 2009. Ano VI nº 01 - 27ª a 52ª semanas epidemiológicas - julho a dezembro de 2008 - 01ª a 26ª semanas epidemiológicas - janeiro a junho de 2009 / ISSN 1517 1159. CHESNAIS, François. A Mundialização do Capital. São Paulo: Xamã, 1996

FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e a Crise do Capitalismo Real. 3ª edição, São Paulo SP: Cortez, 1999. HAYEK, Friedrich August. O Caminho da Servidão. 5ª edição, Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1990. http://www.oitbrasil.org.br/prgatv/prg_esp/hiv_aids.php. MARX, Karl. O Capital – Crítica da Economia Política. Livro Primeiro – O Processo de Produção do Capital – Volume I. 4ª edição, 1890, Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A., 2008. MARX, Karl. O Capital. São Paulo: Abril, Cultural, 1983. V.I. MARX, K; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. 3.ed. São Paulo: Livraria Editora Ciências Sociais, 1982. MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo, EPU, 1974. MÉSZÁROS, István. A Educação Para Além do Capital. São Paulo: Boitempo, 2005. PARKER, R. (Org.). GALVAO, J., PEDROSA, J. S. (Orgs.). AIDS no mundo. Rio de Janeiro: ABIA : IMS/UERJ : Relume Dumara, 1993. (Historia Social da AIDS, 1). SILVA, Carmen. Existe um Movimento Aids? In: ROCHA, Solange; HOLANDA, Violeta (Orgs.). Articulando o Ativismo em Aids no Nordeste. Recife/Fortaleza: SOS CORPO – Instituto Feminista para a Democracia/Grab-Grupo de Resistência Asa Branca, 2006. SOARES, Carmem Lúcia (org.). Corpo e História. Campinas, SP: Autores Associados, 2001. VALVERDE, Monclar. Corpo e Sensibilidade. In: O Corpo ainda é pouco: seminário sobre a contemporaneidade, Feira de Santana/Organizadoras: Sonia T. Lisboa Cabeda, Nadia Virgínia B. Carneiro, Denise Helena P. Laranjeira. – Feira de Santana: NUC/UEFS, 2000.

II TEORIA CRÍTICA E FORMAÇÃO HUMANA

Trabalho e Reconhecimento: Alternativa para Melhoria Qualitativa da Formação Integrada do Trabalhador Samuel Brasileiro Filho

A formação integrada do trabalhador: conceitos e pressupostos

No presente artigo tem-se a pretensão de realizar uma investigação introdutória sobre a formação integrada do trabalhador, a partir das especificidades da educação profissional, enquanto mediun das articulações entre trabalho e educação, buscando-se ampliar o espectro investigativo deste campo, por meio de um referencial teórico fundamentado na Teoria Crítica de Axel Honneth. A luta pela reformulação das relações de trabalho e pela formação dos trabalhadores, sob uma retomada de um conceito emancipatório do trabalho social, orientou o retorno do Ensino Técnico Integrado como uma das alternativas de inserção sóciolaboral57 de jovens e adultos no mundo do trabalho, que tem sido considerada uma alternativa de inclusão social com maior potencial emancipatório. Tal luta não poderá ser conduzida com chances reais de sucesso sem uma contraposição crítica de uma luta para reformulação do modelo de formação dos trabalhadores que não seja meramente utópica.

O contexto do capitalismo e a centralidade do trabalho A emergência de teses escatológicas como as que propõem ―o fim da história‖ e ―o fim da sociedade do trabalho‖, soam, segundo Altvater (2010, p.147), apenas como ―perífrases da pretendida infinitude e da falta de limites do modo de produção capitalista, nas quais estão embutidas intenções políticas de manter o status quo das classes privilegiadas, sob o argumento que o capitalismo é eterno, e que neste sentido, não haveria alternativas sociais para sua superação.‖ Sob tal lógica, da inexorável



Doutorando em Educação Brasileira na Universidade Federal do Ceará; Mestre em Computação Aplicada (UECE), Especialista em Gestão da Educação Tecnológica. (Oklahoma State University) pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Trabalho e Qualificação Profissional - LABOR; pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Educação Profissional – NUPEP; professor do IFCE. [email protected] 57 Inserção Sóciolaboral – designa um conjunto de ações que interagem para a inserção do trabalhador na esfera produtiva.

infinitude do capitalismo, todas as alternativas críticas são passíveis de serem repelidas pela factibilidade e pela superioridade normativa dos mecanismos de coação inerentes à própria

dinâmica

da

sociedade,

não

havendo

alternativas

ao

modelo

de

gorvernamentalidade58 capitalista, onde tudo está sob o jugo da lógica de mercado. A despeito das tentativas dos denominados filósofos do ―fim da sociedade do trabalho‖, dentre os quais figuram com destaque André Gorz, Clauss Offe e Habermas, não se pode afirmar, sob qualquer alternativa empírica ou teórica, conforme ressalta Honneth (2009, p.47), que a busca por uma inclusão social e laboral, que não apenas assegure a subsistência, mas que também satisfaça os anseios de emancipação individual e coletiva, de modo algum desapareceu, bem como não se pode deduzir, do estranho e encabulado silêncio sobre esta temática, que as exigências de uma reformulação das relações de trabalho pertençam definitivamente ao passado, o que seria empiricamente falso e quase cínico. Para tanto, considera-se como pressuposto59 da abordagem teórica da temática proposta neste artigo, que a categoria trabalho, sob suas diversas formas evolutivas, continua como categoria social central para compreensão das relações sociais que se estabelecem na sociedade capitalista.

Porém, tanto o trabalho quanto a educação

guardam entre si uma relação de interdependência e um vínculo comum em que ambas se transformam em categorias históricas. No estágio atual de desenvolvimento da sociedade capitalista, onde a ciência e a tecnologia atingiram grande desenvolvimento e assumiram os status de ideologia dominante, sob a forma da sociedade do conhecimento e da crescente hegemonia qualitativa do trabalho imaterial na valorização e reprodução do capital, exigem novas formas de articular o trabalho e a educação, que sejam capazes de superar as contradições e inadequações da formação dos trabalhadores em um ambiente de permanente instabilidade social. Neste sentido o princípio educativo do trabalho, a

58

Governamentalidade (gouvernamentalité) – Termo criado por Michel Foucault para designar as tecnologias de governo que emergem na transição da sociedade disciplinar para a sociedade do controle, que ampliam a arte de governar. A educação, sob a governamentalidade biopolítica, assume papel fundamental no desenvolvimento das forças produtivas da sociedade capitalista, na medida em que se tornam mais complexos os processos de produção, pela crescente incorporação de inovações tecnológicas e modernização das técnicas de gestão do trabalho, a ponto de fundamentar uma das bases da governamentalidade neoliberal na forma da teoria do capital humano. 59 Considera-se o conceito de pressuposto como um fundamento que estabelece uma pressuposição de um referencial ético-moral, de natureza antropológica, sem o qual questões de sociabilidade não poderiam ser pensadas, conforme pontua Flinckinger (2011).

despeito de sua centralidade, não parece ser suficiente a acoplar estruturalmente o trabalho e a educação numa perspectiva emancipatória de formação do trabalhador.

O conceito de formação do trabalhador A investigação de pressupostos que sirvam de fundamentos para a reflexão sobre a formação do trabalhador, com a premissa de que o trabalho ainda é categoria central, torna imperativo reconhecer que a relação entre trabalho e educação constitui o cenário em que se coloca em pauta a educação profissional, em todas as suas diversas modalidades formativas.

Tal problematização não pode ser enfrentada sem os

fundamentos de uma teoria social de largo alcance que seja capaz de estabelecer as bases um conceito emancipatório e humano de trabalho. Mas o que vem a ser a formação integrada do trabalhador e que teoria social pode fundamentar tal concepção de educação profissional? Que pressupostos fundamentam tal formação e como estes se relacionam com um conceito emancipatório de trabalho? É na tentativa responder a tais questionamentos, sem intenção de esgotar tal temática, que se constitui o fio condutor deste artigo. Segundo Maia (2011) o conceito de formação, na sua concepção mais ampla, relaciona-se com formação do homem, a significaria dar uma forma ao ser humano nas circunstâncias do tempo/espaço (história/contexto), na sua materialidade de ser humano, não segundo um ideal (platonismo), mas enquanto uma intenção construída nessa historicidade, enquanto essência possível decorrente da evolução desse homem em sua materialidade e do projeto de homem decorrido de sua própria ação no mundo. É nesta abordagem ampla do conceito de formação ampla que ancoramos nossa análise sobre a formação do trabalhador, a qual tem como referência a concepção hegeliana de “bildung” que trata este conceito como uma formação da totalidade das capacidades humanas, mediante a formação do indivíduo vivente para superação de suas limitações, para ser agente de sua emancipação.60

60

―Bildung‖ – Termo hegeliano para designar uma formação cultural e política do homem, cujo sentido de totalidade não tem a intenção de completude, mas de um conceito com pretensões de universalidade. ―A educação (Bildung) considerada a partir do indivíduo consiste em adquirir o que lhe é apresentado, consumindo em si mesmo sua natureza não natural (unorganische) e apropriando-se dela. Vista, porém, do ângulo do espírito universal, enquanto é a substância, a educação (Bildung) consiste apenas em que essa substância se dá a sua consciência-de-si, e em si produz seu vir-a-ser e sua reflexão‖ (HEGEL,Fenomenologia do Espírito, 1992, § 28, p36)

Parafraseando com Adorno (1995) a formação para rimar com emancipação deve necessariamente estar amparada em uma auto-reflexão crítica. Ela não pode consistir em um processo de modelagem de indivíduos, nem pode restringir a uma mera transmissão de conhecimentos, mas deve antes visar uma formação expressiva da consciência crítica, cônscia das contradições do universo econômico-social e político-cultural e das deficiências de sua própria constituição enquanto sujeito.61 A abordagem da formação do trabalhador confronta-se com a formação para o trabalho, está última trás consigo a dependência da lógica do mercado, a qual na perspectiva adorniana está vinculada à semi-cultura e a pseudo-formação que orientam a formação para seu sentido restrito de treinamento para o mercado de trabalho. O presente artigo busca explorar uma alternativa para enfrentar à seguinte questão, cuja resposta ficará em aberto, apontando-se apenas a uma possibilidade a ser explorada: como a categoria trabalho social deveria ser incluída no marco de uma teoria social para que dentro dela abra perspectiva de melhoria qualitativa da formação integrada do trabalhador que não seja meramente utópica? A formação integrada do trabalhador: uma tentativa de conceituação

A investigação dos pressupostos filosóficos e políticos que norteiam uma concepção de formação integrada do trabalhador exigem que seja delimitado o conceito de integração. Compreende-se por formação integrada uma formação que integre teoria e prática, a partir de uma concepção ampliada de formação, que seja orientada por um conceito emancipatório de trabalho, de maneira a se contrapor a uma formação utilitarista, fragmentária orientada pelo mercado, uma semiformação na perspectiva adorniana, para se firmar como uma formação voltada para o saber do trabalho e para a emancipação. A concepção de formação integrada tem sido influenciada, ao longo do processo histórico de desenvolvimento da sociedade capitalista desde o início do século XX, pelas disputas de dois modelos societários antagônicos que refletem diferentes orientações explicitadas na relação entre trabalho e educação. O modelo societário liberal conservador estabeleceu as condições para a concepção de uma formação integrada orientada pela lógica de ação do mercado, com

61

Ibid.

um sentido de formação flexível e adaptável à impredictibilidade do mercado de trabalho, a qual tem sido denominada de formação polivalente. Já o modelo marxista progressista tem orientado uma formação integrada que aponte para uma omnilarelalidade, uma perspectiva de formação integral, onde a formação geral se torne parte inseparável da formação para o trabalho. Tal abordagem tem como referência para a formação integrada a formação dita politécnica.

O potencial da teoria crítica de Axel Honneth para a expansão do conceito formação integrada do trabalhador

O constructo teórico de Honneth (2009:29) toma como ponto de partida a teoria do reconhecimento do jovem Hegel que considera a luta por reconhecimento o medium central de um processo de transformação ética do espírito humano em cujo fundamento podem ser reconstruídas as premissas de uma teoria social autônoma. Para Honneth (2009:117) o programa hegeliano da doutrina do reconhecimento tem potencial para ser compreendido como uma teoria da condição necessária da socialização humana, desde que seja posto num quadro pós-metafísico, no qual será possível fazer das pressuposições normativas da relação de reconhecimento o ponto de referência de uma explicação dos processos de transformação histórica e empírica da sociedade. Os deslocamentos da teoria hegeliana do reconhecimento propostos por Honneth envolve o enfrentamento de três tarefas fundamentais, assim explicitadas nas seguintes teses: 1) abandonar os fundamentos especulativos de Hegel à luz de uma teoria empiricamente sustentada; 2) Buscar uma fenomenologia empiricamente controlada para identificar as esferas de reconhecimento de Hegel nos processos intersubjetivos (as esferas do amor, do direito e da eticidade) e 3) Investigar se estas etapas de reconhecimento e podem resistir a considerações empíricas e como elas se relacionam com a experiências correspondentes de desrespeito . (HONNETH, 2009. p. 120 -122) Para enfrentamento dos deslocamentos referentes à primeira tese Honneth recorre à psicologia social de Mead, que estabelece uma base empírica para o abandono do fundamento especulativo de Hegel. Já na segunda tese Honneth recorre à psicologia pragmática de Dewey, a qual possibilita a identificação uma relação dialética de cada esfera de reconhecimento de Hegel com as correspondentes formas de desrespeitos sociais assim definidas: o desrespeito das relações afetivas na forma de violação, o

desrespeito relacionado com a privação do direito e o desrespeito aos valores socialmente compartilhados na forma de degradação. O percurso teórico de Honneth avança no sentido de completar o seu deslocamento conceitual da teoria do reconhecimento de Hegel buscando encontrar comprovações históricas e sociológicas de que essas formas autorrelações práticas negativas inerentes às formas de desrespeito social atuam de fato como fontes motivacionais para lutas sociais. Para tanto, adota um procedimento metodológico indireto propondo um exame histórico dos pensamentos pós-hegelianos (escolhendo Marx, Sorel e Sartre) a fim de verificar se encontram neles teorias com uma intenção básica análoga para compreensão do desenvolvimento social de luta por reconhecimento. A conclusão de Honneth é de que os sentimentos morais assumem o papel central na motivação das lutas sociais, acelerando ou retardando a evolução histórica da sociedade e o modelo de luta por reconhecimento passa a ser visto como um referencial normativo, a partir do qual é possível definir o estágio atual de desenvolvimento moral da sociedade. Trabalho e reconhecimento – uma tentativa de redefinição Em um breve ensaio intitulado ―Trabalho e Reconhecimento: tentativa de uma redefinição‖, Honneth (2008) aponta que há certo afastamento da teoria crítica da sociedade das questões relativas ao mundo trabalho, deslocando-se o interesse investigativo crítico para temas relacionados à integração política e aos direitos de cidadania e suas relações com os processos de transformação cultural. Para Honneth (2008) o afastamento da teoria social crítica do campo de trabalho não se dá por razões meramente oportunistas, mas a desproblematização da esfera do trabalho se expressa, sobretudo, pela percepção de que a luta pela melhoria qualitativa do trabalho, nas condições impostas pelas forças globalizantes do mercado capitalista, converte-se em exigências de caráter meramente normativo. Na investigação sobre o acoplamento entre o trabalho e reconhecimento Honneth (2008) propõe um percurso metodológico estratificado em três etapas, assim especificada: 1.

Realização da distinção entre crítica externa e imanente para o

propósito de uma crítica das relações de trabalho existentes; 2. Demonstração de que o trabalho social só poderá assumir o papel de uma norma imanente se ele for conectado

às condições de reconhecimento na moderna troca de realizações; e 3. Desenvolvimento da questão sobre quais as exigências imanentes que estão conectadas com esse acoplamento estrutural entre trabalho e reconhecimento com vistas à estruturação do moderno mundo do trabalho. Segundo Honneth (2008) a crítica externa às relações de trabalho, vinculadas à fundamentação das necessidades de organização do trabalho e sua relação com os padrões de uma vida boa, de um trabalho digno, foram feitas a partir de um referencial utópico do trabalho artesanal, que se contrapõe ao modelo heterônomo e fragmentado do trabalho assalariado, e da crítica de uma visão romântica fundada em modelos estéticos de produção, onde o trabalho alienado é superado por uma concepção de um trabalho estético, como a produção de uma obra de arte. Para este autor, em oposição à crítica externa, uma forma de crítica imanente das relações de trabalho pressupõe que se possa encontrar um padrão de medida que seja interno às próprias relações criticadas como uma reivindicação justificada, racional. A genial análise de Hegel sobre a correlação entre sua concepção de reconhecimento e o sistema de trocas de realizações medidas pelo mercado, o leva a apontar que a primeira realização integradora é o ―egoísmo subjetivo‖ que restringe as inclinações pessoais para a ociosidade que conduzem os indivíduos a trabalhar para satisfazer suas necessidades. A esta condição normativa de disposição para contribuir com o bem comum pela obrigação generalizada de produzir resultados, está vinculada ao pressuposto de que haja uma contrapartida, o ―direito de ganhar o pão‖, criando desta maneira a segunda condição normativa, a qual está relacionada um sistema econômico de dependência recíproca. A análise hegeliana apud Honneth (2008) é lúcida o suficiente para antever as ameaças que poderão surgir com o desenvolvimento do capitalismo que poderão entrar em contradição as suas condições normativas de reconhecimento. Embora genial, a construção de Hegel está vinculada às condições histórica de sua época, mas apontam para Honneth que é viável a busca de uma crítica imanente às relações de trabalho com base na explicitação de princípios normativos inerentes ao próprio sistema econômico. Embora a construção conceitual de Hegel apresente os elementos básicos para fundamentação do reconhecimento como pressuposto normativo das relações de trabalho mediadas pelo mercado elas não estão suficientemente desenvolvidas para abranger normativamente todos os males combatidos no mundo capitalista do trabalho. Para superar estas limitações, Honneth recorre às análises sociológicas de Emile

Durkheim, na qual este analisa as estruturas da organização capitalista do trabalho e suas implicações normativas para a integração da sociedade moderna. Enquanto Hegel aponta o pressuposto normativo da autonomia individual orientada pela disposição do indivíduo para o agir laboral, motivado pela imperativo moral de satisfação de suas necessidades e do direito de ―ganhar o pão‖ sob a forma de uma remuneração justa, Durkheim enfatiza a equidade e a transparência da divisão social do trabalho. O passo final do percurso analítico de Honneth é dirigido no sentido de buscar identificar as exigências imanentes que estão conectadas no acoplamento estrutural entre trabalho e reconhecimento e que tenham força normativa para um reposicionamento emancipatório e da efetiva melhoria qualitativa do trabalho. Para Honneth

(2008)

as

relações

de

trabalho

hoje

existentes,

crescentemente

desregulamentadas e degradadas, não podem justificar um abandono da busca de uma infraestutura moral, conforme proposta por Hegel e Durkheim. A teoria crítica Honneth expressa em sua teoria social do reconhecimento, em função do que foi sucintamente apresentado, desvela uma alternativa mais ampla de acoplamento estrutural da luta por reconhecimento com o trabalho social, de forma a estabelecer as bases para uma crítica das relações de trabalho a partir da perspectiva de que o trabalho ainda exerce papel central na integração social.

Considerações finais

O ideário liberal conservador, sob o contexto da governamentalidade neoliberal e da teoria do capital humano, tem orientado a formação do trabalhador pela perspectiva de integração sistêmica da educação profissional, destacando a função social e política da educação orientada pela lógica do mercado. Tal ideário resulta numa concepção de formação flexível que integre o aprendizado dos fundamentos científicos e tecnológicos necessários para uma permanente adaptação do trabalhador a um ambiente de trabalho flexível que incorpora cada vez mais inovações tecnológicas e novos modelos gerenciais. Os pressupostos filosóficos e políticos, vinculados ao modelo societário marxista, expressão a formação do trabalhador como um processo formação humana, fundamentada numa perspectiva articulada de integração sistêmica e social do trabalho com as dimensões da vida no processo formativo. Sob tal referencial a formação

integrada do trabalhador é concebida como um processo formação omnilateral, que integre as dimensões do trabalho, da ciência e da cultura, tendo o trabalho como princípio educativo e uma modelo de formação unitário e politécnico que promova as condições de superação da dualidade formativa. Os pressupostos filosóficos e políticos da formação integrada do trabalhador, fundamentada pela matriz marxista apresenta maior potencial de integração social por assegurar a existência de condições unitárias de educação dos trabalhadores e de condições igualitárias de vida numa sociedade sem classes. Embora tal concepção formativa marxista seja mais ampla que o modelo liberal ela ainda mantem uma vinculação sistêmica ao estabelecer a correlação da formação humana com o modo de produção, apontando para um modelo de formação com forte componente utópico de difícil materialização, em função do processo histórico de transfiguração do trabalho e da elevação da ciência e da técnica a um status de ideologia, resultando numa crítica das relações de trabalho centrada prioritariamente em pressupostos empiristas de uma luta por emancipação do trabalho. A investigação das formas de resistência, que vêm emergindo juntamente com os inúmeros e variados tipos de inserção ocupacional, se configura, assim, como um elemento central à compreensão do novo momento que o trabalho vem vivendo. O enfretamento das condições de precarização das relações de trabalho e a luta pela concepção de um trabalho rico em qualidade e dotado de sentido somente ganha status de reivindicação de luta por reconhecimento se for ancorado nas próprias condições normativas do sistema econômico, apontando a opção pela perspectiva da integração social. Com base no deslocamento conceitual da teoria do reconhecimento de Hegel, Honneth conclui que a análises das relações de trabalho somente podem ser amplamente apreendidas a partir de uma investigação dos pressupostos normativos que possibilitem justificar a pertinência social do agir laboral e da necessária solidariedade para integração da sociedade. Com base no exposto pode-se afirmar que a busca de um acoplamento estrutural entre trabalho e reconhecimento pode ser a ―pedra de toque‖ para a formulação de novos pressupostos filosóficos e políticos para a formação do trabalhador. A base teórica de Axel Honneth possibilita a ampliação do referencial marxista pela inserção da luta por reconhecimento como pressuposto fundamental para a formação humana, que

promova as motivações morais necessárias para a luta por melhoria qualitativa do trabalho e sua integração social com as demais dimensões do mundo da vida.

Referências ADORNO, T.. ―Educação – Para quê?‖. Educação e Emancipação, SP, Paz e Terra, 1995, p.139-154. ALTVATER, Elmar. O Fim do Capitalismo como o Conhecemos: uma crítica radial do capitalismo. Tradução Peter Naum – Rio de Janeiro: Civilizações, 2010. 363 p. HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais; tradução de Luiz Repa. 2ª. Ed.São Paulo: Ed. 34, 2009. 296 p. ______. Observações sobre a reificação. Civitas, v.8, n.1, PUCRS, Porto Alegre, jan – abr.2008. p. 68-79. Disponível em http://revistaseletronica.purs.br . Acessado em 03/03/2011. ______. Trabalho e Reconhecimento: tentativa de uma redefinição. Civitas,v.8, n. 1, PUCRS :Porto Alegre, jan-abr.2008, p. 46 – 67. Disponível em http://revistaseletronica.purs.br . Acessado em 03/03/2011. MAIA, Osterne. Formação para o Trabalho ou Formação do Trabalhador? Estudos Psicoanalíticos na Clínica e no Social. Clara Virgínia de Queiroz Pinheiro, Jannayna Queiroz Carvalho e Maria Flávia Vieira da Silva (orgs.) – Fortaleza: Imprenssa Univeesitária, 2011. 296 p.

Ócio versus Ociosidade: Diferença que Reclama um Princípio para o Conceito de Educação em Walter Benjamin

Tereza de Castro Callado

A reflexão se destina a analisar a diferença entre o ócio e a ociosidade, tendo como base o ensaio de Walter Benjamin de 1936 com o mesmo título e traduzido para o português desde 2006 por Willi Bolle do Konvolut M de Passagen-Werk ( Obra das Passagens). Lá é mostrado o motivo, no nosso tempo, do retraimento do ócio dos antigos e a consequente degeneração do tempo livre para pensar. O intento de Benjamin nessa avaliação é articular uma forma de repensar as contingências da realidade atual, o que não tem implícito o objetivo de adestrar o homem, pelo contrário, adensa o apelo à diferença evidenciando o desvio do pensamento na tradição que se manifesta em cada categoria filosófica com a qual a humanidade se movimenta em seu tempo e espaço para a eleição de um modus vivendi. A deferência ao ócio fica explícita na análise daquela forma de existência política dos antigos: ―conversar e conhecer, era sobretudo nisso que consistia, segundo Platão, a felicidade da vida privada‖,62 diz, o ensaio citando Correspondence de Joubert, na Paris de 1924, referida à classe de conhecedores e amadores, quase desaparecida da França, ―depois que cada um assumiu um ofício‖. Da harmoniosa disposição do tempo para o ato reflexivo sobeja atualmente a infinita cadeia de apelos... à dispersão. Parece que penetramos no limiar da mera ociosidade. Não, Benjamin não quer dizer com isso que não somos seres menos fabris. Trata-se apenas de um condicionamento. Pois nunca nossa consistência física e compleição anímica foram tão exercitadas, no mundo tecnicizado, com a noção de desempenho (Leistung). Essa passagem sobre o ócio registrada na análise crítica da Filosofia da Historia sinaliza apenas uma interface da vida moderna concretizada no trabalho, mas carrega o incômodo do ajuste no desenvolvimento da imaginação e da fantasia criativas. Falo do



Professora de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará. Pós-Graduação em Munique-Alemanha. Doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e Doutora em Literatura pela Universidade de São Paulo (USP). Dirige o ―Grupo de Pesquisa Walter Benjamin e a Filosofia Contemporânea‖. Editora de Cadernos Walter Benjamin, acessível no site: http://www.gewebe.com.br/cadernos.htm. 62 ―Esta classe de conhecedores e amadores ... quase desapareceu na França, depois que cada um assumiu um ofício‖ Correspondance de Joubert, Paris, 1924, p. XCIX citado por Walter Benjamin em Passagens (tradução Willi Bolle et allii, Belo Horizonte: Humanitas. 2006, p. 840.

fastio da repetição que nesse caso pode muito bem ser explicado pelo Konvolut D da mesma Obra das Passagens, intitulada Tédio, eterno retorno: ―esta tristeza eloquente e sem vida que se chama tédio‖, ao lembrar Les Odeurs de Paris de 1914 de Louis Veuillot.

63

(Passagens, 2006, p.147). A ociosidade interrompe os meios de realização

individual. O salto da experiência, nutrida no tempo da sabedoria, para o seu oposto, a vivência, império da espontaneidade e da improvisação – representa essa quebra. Não é de admirar a prática ampla da lúdica bricolage - essencialmente representativa da atividade residual do pensamento: juntar cacos, ou... os próprios cacos. Cacos com certeza que não atingem o pensamento sólido, legitimado pelo sistema. O mérito de Benjamin está em não aceitar a afirmação. E cita o criador de Zaratustra para expressar sua desolação diante da reflexão coroada pelo Etablissement: ―No grande pensamento, como cabeça de Medusa, todos os traços do mundo se enrijecem numa agonia congelada‖, diz Nietzsche no Aus dem Nachlass (artigo do Espólio, p. 188). O homem de hoje, de tão programado para a repetição do mesmo, isto é, para a robotização, perdeu a noção do que fazer no tempo livre. Na verdade ele não suporta o tempo livre. Por mais íntimos que possam parecer, ociosidade e divertimento são excludentes. Já faz tempo, diz Benjamin, que Saint-Marc Girardin foi obrigado a constatar que ―o homem consegue se divertir por tão pouco tempo‖. Este parece estar sempre delegando ao futuro essa faculdade – a de nos perdermos no esquecimento, na diversão e... sermos felizes Disso já nos falava Pascal nos seus Pensamentos publicados em 1650, ao desenvolver o conceito de Divertissement como saída, reconhecidamente humana, do tédio da existência, e constata até em Jesus e sua condição divina a tentação do tédio. 64 O que representaria a atualização desse conceito ao nosso status quo? - A incapacidade psíquica de estar só consigo mesmo faz o homem entulhar-se de reuniões, encontros sociais, sensabores para a ocasião exigida, tal aquele estadista barroco, da dramaturgia alemã do século XVII, habita, na solidão da sua consciência, a orgia sonora e visual dos salamaleques e meneios de dançarinos da corte dirigidos ironicamente pelo bufão, que celebra ironicamente a superioridade frente ao impasse da figura real em lidar com a própria tristeza. A necessidade de uma ilusão de poder transforma aquela figura maior, na ordem hierárquica do tempo, num mero refém da boa vontade dos cortesãos ao

63

―Tédio, eterno retorno in: Passagens‖. Opus cit, p. 145. ―Jesus vendo todos os seus amigos adormecidos e todos os seus inimigos vigilantes, entrega-se inteiramente a seu Pai‖. PASCAL Blaise, ―Pensamentos‖ in: Os Pensadores, Tradução de Sérgio Milliet, São Paulo: Victor Civita, 1973, p. 173. 64

distraí-lo da própria alma. A dialética na imobilidade de Benjamin (Dialektik im Stillstand) mostra, através dessa alegoria, de que forma, desvalido frente à certeza da incapacidade de levar avante uma soberania pseudo existente, fica aquele a mercê do outro, das migalhas de sua compreensão, pois as contingências políticas do absolutismo o condicionaram a imaginar que, pensar, para tomar as próprias decisões significa sofrer. ―Pascal retrata nossa condição de humanidade. – Mas não é ser feliz, ser confortado pelo divertimento?‖ Pergunta-se o filósofo. ―– Não, porque ele vem de longe e de fora, e assim é dependente e, portanto, sujeito a ser perturbado por mil acidentes, que tornam as aflições inevitáveis‖. Pascal nos adverte da nossa necessidade do devanear-se, perder-se no trabalho estafante, nos jogos lúdicos, diversão e dispersão da miséria da condição humana. Benjamin atualiza a reflexão premonitória de Pascal,65 confirmando na análise desde a produção fabril a infra-estrutura do tédio ideológico que atinge até as classes superiores. ―A triste rotina de um infindável sofrimento no trabalho, no qual o mesmo processo mecânico é repetido, guarda semelhança com a teoria de Camus: o fardo do trabalho tal qual a pedra de Sísifo, ―despenca sempre sobre o operário esgotado‖, diz Engels na página 217 de ―Die Lage der arbeitenden Klasse in England” de 1848, ensaio esse comentado por Benjamin. O ritmo acelerado, a velocidade imposta pelas condições da existência moderna motiva o sentimento de ―imperfeição incurável‖, diz o escrito em homenagem a Andre Gide, Les Plaisirs et les Jours . Para compensar o vazio causado por esse sentimento o mundo precisa ser preenchido de significação, sentimento que levou Proust

a procurar a sociedade

mundana até as suas últimas nervuras, e ―talvez seja mesmo um motivo fundamental das reuniões sociais dos homens em geral‖. A frase é de Benjamin. Cada uma dessas dobras deslancha numa catarata de memórias. Não é de admirar que à avalanche conceitual da ― imperfeição incurável‖ do nosso tempo venha atrelada, de forma caótica, no aparelho psíquico, o impulso em direção à satisfação, ao ornamento que dá a ilusão do liberar-se da luta, no devaneio da mercadoria, na miragem da felicidade, até a desfiguração do sujeito na sujeição, condição de sua existência aliás já presa à sua raiz. Benjamin anteviu a vinculação do tédio ao ornamento. O evadir-se dos compromissos, a inclinação ao flanar é o ritmo de uma sonolência, ao qual é aliado o conformismo. Esse

65

―Não tendo conseguido curar a morte, a miséria, a ignorância, os homens lembraram-se, para ser felizes, de não pensar nisso tudo‖. Idem, ibidem, p. 83.

estado de inanição, em que o espírito perdeu todo o seu ―elan vital‖

66

- condição

precípua do laissez faire, da passividade, compromete sobretudo. É responsável pela catástrofe da social democracia alemã diz a tese 11 de Sobre o conceito de História.

67

Outra condição do tédio que gera o ócio e é gerado por ele. num círculo vicioso pode ser explicada no sentimento de repulsa do homem pelo seu presente. Ele só sabe se relacionar com seu passado ou sonhar para o futuro. É Pascal também que nos ensina a respeito: Não ficamos nunca no tempo presente. Antecipamos o futuro, por chegar demasiado lentamente, como para apressar-lhe o curso; recordamos o passado para detê-lo, por demasiado rápido, tão imprudentes que erramos nos tempos que não são nossos. E só não pensamos no único que nos pertence. E tão vãos que sonhamos com os que já não existem e evitamos sem reflexão o único que subsiste. É que o presente de ordinário nos fere. Ocultamo-lo à vista, porque nos aflige; e, se nos é agradável, lamentamos vê-lo escapar. Tratamos de sustentá-lo pelo futuro e pensamos em dispor das coisas que não estão ao nosso alcance para um tempo que não temos nenhuma certeza de alcançar.

A relação do divertissement pascalino com a passagem do ócio para a ociosidade põe em relevo a distância entre existência e felicidade. Essa transição realça o desenlace da informação com o conhecimento que acumula sabedoria. Uma vez debilitado o trânsito para o aprendizado formador, a substituição do ócio, deduzimos, coloca em risco a educação de uma forma geral. Com isso não queremos negar quão é determinante, no processo de aprendizado, a contribuição do lúdico que se encontra na ociosidade, principalmente se ele acata a gestualidade recorrendo à imaginação e a sensibilidade ou seja, aos sentidos visão, audição e tato, negando a exclusão do entendimento ao intelecto, intuído cartesianamente.

66

68

O ludismo recorre à faculdade

Henri Bergson. Energia Espiritual. Tradução de Rosemary Costhek Abíliio, São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 21 67 Der Konformismus, der von Anfang an in der Sozialdemokratie heimisch gewesen ist, haftet nicht nur an ihrer politlischen Taktik, sondern auch an ihren ökonomischen Vorstellungen. Es ist eine Ursache des späteren Zusammenbruchs. 6Uber den Begriff der Geschichte in: Illuminationen, Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1977, S. 256. 68 Descartes faz a distinção entre a alma e o corpo do homem. Para ele os sentidos são fonte de engano e condição de erro. Tentando estabelecer algo de firme e de constante nas ciências, procura como método abster-se das representações fornecidas pelos sentidos. René Descartes. ―Meditação Primeira – Das coisas que se podem colocar em dúvida‖. In: Os Pensadores, tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Junior, São Paulo: Victor Civita , 1983, pp. 85-86. Para Benjamin com o declínio da Experiência (Erfahrung) e a crescente assessoria da Vivência (Erlebnis) como sinal de nossos tempos, os sentidos serão um ponto de referência para a percepção que situará doravante o lugar do homem, na situação de choque da metrópole moderna, servindo de bússola para as relações. Conferir ―Experiência e Pobreza‖ in: Magia e Técnica Arte e Política. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet, São Paulo: Brasiliense, 1985, pp. 114-119; e Sobre alguns temas em Baudelaire in: Charles Baudelaire – um pp. 103-149.

mimética, aos sentidos onto e filogenéticos responsáveis pelo primeiro contato da criança com o mundo que desconhece. A socialização desde a mais tenra fase de desenvolvimento, permite, de forma saudável, a expansão da faculdade mimética com seu estímulo – o modelo. Mas essa susserana só encontra assessoria na disciplina, caso se pretenda formar o aprendiz. Em outras palavras, a educação alia a repetição ao invólucro de conhecimento – e não foram poucos os filósofos que se basearam na repetição do mors, do costume (Sitte) ao longo de suas reflexões - e o fizeram apelando para a mimese, mas ao mesmo tempo a recorrência precisa do estofo tecido na atenção ao conhecimento seria impossível na carência da disciplina para lhe gerar o equilíbrio dos conteúdos. Nesse ponto a disciplina é revolucionária. Tanto isso é verdade na óptica política de atualização da tradição que a disciplina se encontra vinculada à harmonia e à criatividade no jogo da transformação social, diz o ensaio ―O Surrealismo - último instantâneo da inteligência europeia‖ de 1929. Não se negligencia aí a percepção de que, ao sentido da contemplação (encantamento – thauma) de onde os gregos partiram para ousar conhecer, vinha agregada a experiência de toda uma existência tecida no ato de rememorar trazido para o ―hoje‖ de seus dias. Essa atualização revigora aquilo a que Benjamin chamou experiência (Erfahrung). Sedimentada em níveis da mais profunda aproximação dos lampejos de verdade de cada tempo, permite que os feixes de conhecimento se iluminem na mutualidade sutil para formar os laços da competência. Sobre a relação entre trabalho e ociosidade podemos dizer que no complexo capitalista burguês a ética do trabalho exige o escoamento das tensões acumuladas durante a jornada cotidiana. Isso se faz no conceito de lazer, que vem atrelado a uma maquinaria incondicionalmente projetada pelo processo industrial (Herstellungsverfahren) para tais fins. A sonolência prandial da sociedade de massas é causada pela dose de endorfina fantasmagórica da Metrópole injetada no trabalhador desavisado. Do estágio narcotizante à cegueira é gerado um ser desmemoriado. Para Adorno, na esteira do trabalho alienante (entfremdte Arbeit) para citar um conceito marxiano, o lazer também se encontra, na condição de troca que determina o mercado de consumo e, portanto, suspenso da real distensão do corpo e da mente, necessária a uma renovação de energia, é o que nos dar a entender em Palavras e Sinais (Stichworte), pois antes o satura nos locais adequados ao Feierabend - mais um pseudo necessário na lista dos desvios (Umwege) conceito da Erkenntnistheorie, Theorie des Fortschritts de Benjamin. Para exemplificar a concepção negativa de trabalho Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis pincela a moldura de Brás com o desprezo a essa categoria burguesa,

expressando cinicamente a sua superioridade diante dos que trabalham: Verdade é que não casei, diz o personagem, nem fui ministro. Mas não precisei ganhar o pão com o suor de meu rosto. Confirmando a malfadada herança dessa percepção caótica, Raízes do Brasil (1989) de Sérgio Buarque de Holanda mostra sua compatibilidade com a ―arte‖ do sultanato herdada pela Península Ibérica, quando alerta para uma possível origem étnica da ociosidade brasileira envolta nos lençóis mouriscos da monarquia árabe, quando segundo a lei consignada nas Ordenações, aos homens da linhagem dos Filhos d´algo (fidalgos) , desde os oficiais industriais, até os arrendatários de bens rústicos, é negada a honra enquanto viverem de trabalhos mecânicos.

69

O historiador

comenta a necessidade de se tomar em consideração, no exame da psicologia do povo ibérico, a invencível repulsa que sempre lhes inspirou toda moral fundada no culto ao trabalho. 70 Benjamin confirma a categoria aristotélica da ação superando-a ao acrescentar que o mérito não está somente na ação, mas no hábito. Na viagem que faz a Moscou a convite de Asia Lacis ele observa o prolongamento lúdico do trabalho artesanal dos campesinos entre os filhos quando, do material residual, constrói brinquedos para os niños. E ao contrário do consumismo imposto que alcança até o brinquedo infantil, Benjamin também alerta, na esteira de Adorno, para o excesso, nos jogos de diversão regados ao vinho, na medida em que por outro lado inocenta o choque, que para Adorno compromete o aparelho psíquico, como sinal da realidade atual e condição precípua do despertar (Erwachen) – uma saída da orgia do consumo. Sobre o vinho não objeta que seja uma forma de alienar um problema, mesmo de forma torcida. A taverna é o complemento da fábrica e a embriaguez necessária à jornada do dia seguinte, ironiza. Na nossa realidade a poluição auditiva e visual do lazer antes atordoa ao invés de tranquilizar. A avalanche de afazeres, que encontra na ociosidade seu contrapeso, condiz com as condições de aceleração da máquina, danificando a forma de existência e transformando cada homem num autômato. A violência vem agregada ao automatismo.

69

Sérgio Buarque de Holanda. Raízes do Brasil, Rio de Janeiro: José Olympio, 1989, p. 7. No espírito da Contra-Reforma nunca o mundo católico formado por Espanhóis e Portugueses se sentiu muito a vontade diante de teorias onde o mérito e a responsabilidade individuais não se encontrassem ao abrigo de um reconhecimento satisfatório. Tais teorias tem seu mérito próprio, mas representavam o maior óbice com relação à geração de uma organização espontânea que estaria na raiz de um espírito de cooperação. Esse espírito seria a motivação para o trabalho, ―tão característica dos povos protestantes sobretudo calvinistas‖. Em contraste com a obediência dos povos ibéricos cultivada pela espírito autoritária da Companhia de Jesus, o valor do trabalho só aprece tardiamente naquele espaço cristão, sob a influência dos povos do norte. Conferir Sérgio Buarque de Holanda. Raízes do Brasil. Opus cit. pp. 9-10 70

Pensando em como as portas de geladeiras e carros são projetadas para bater, Adorno nos lembra a compulsão do motorizado, de passar por cima desses pirralhos que infestam a rua junto a transeuntes, crianças e ciclistas: ...und welchen Chauffierenden hätten nicht schon die Kräfte seines Motors in Versuchungen geführt, das Ungeziefer der Strasse, Passanten, Kinder, und Radfahrer zuschanden zu fahren? 71

A outra face do trabalho – seu pretenso contraponto – o lazer - acaba sendo, com a saturação, a continuidade da obrigatoriedade da luta diária. No exíguo espaço individual o trabalhador não quer fazer nada. No máximo sua função é ingerir o lixo preparado pelos massmidia para um consumo indigesto. E aqui me refiro às cenas de ―ação‖, um eufemismo para a violência em um cenário televisivo de sangue – recurso contra o tédio. Adorno alerta para o encontro social com hora marcada –pretenso lazer. Ele vinca a obrigatoriedade do compromisso social. Entulha para que não se pense mais. Em outro caso o tônus do lazer traz a pincelada da excentricidade – uma forma de distanciamento da rotina. De todos os modos o lazer se mostra desvinculado do apaziguamento necessário para repor a energia perdida ou diluir a sobrecarga preparando para o afazer do dia seguinte. Compensadoras poderiam ser as horas fora do trabalho, quando a reconciliação de corpo e mente consigo mesmos se realizaria na aproximação doméstica, no contato com os objetos familiares. Nada disso acontece e a afetividade tão necessária como reposição anímica e física, se retrai, cedendo seu espaço ao nada fazer. Entre os meios de lazer e sua inutilidade Benjamin quer salvaguardar o caráter impar de uma possibilidade de imunização contra os perigos que espreitam a vida nas grandes cidades. E faz uma análise das contingências do aparecimento do filme no nosso tempo: ―der Film ist die der gesteigerten Lebensgefahr, der die Heutigen ins Auge zu sehen haben, entsprechende Kunstform.‖

72

A invenção do filme daria uma

resposta à necessidade de mudanças profundas no aparelho perceptivo do habitante da cidade, sempre alvo de uma descarga crescente de perigos: ―der Film entspricht tiefgreifenden Veränderungen des Apperzeptionsapparates

- Veranderungen (...) wie

sie im gesdchichtlichen Massstaab der Privatexistenz jeder heutige Staatsbürger

71

Theodor Wiesengrund Adorno. Minima Moralia. Tradução de Gabriel Cohn, Rio de Janeiro: Beco do Azougue Editorial Ltda, 2008, As contingências da aceleração atual assimiladas ao modus vivendi são registradas no ensaio ―Entre sem bater‖, p. 36. 72 Walter Benjamin. ―Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit‖ in: Abhandlungen.Band I, 2. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag. 1991, S. 503.

erlebt.‖

Todavia, se levarmos em conta, continua Benjamin, as consequências que a

máquina impôs à massa, e as tensões provocadas pelo seu uso continuado, que podem chegar a situações psicóticas, o caráter do apelo aberto pela imagem no filme pode representar uma descarga dessas tensões, resultantes das repressões sofridas pela humanidade. Assim nos filmes de Chaplin ―a hilaridade coletiva representa a eclosão precoce e saudável dessa psicose de massa (...). Aqui situa-se Chaplin como figura heroica‖.

73

Dessa forma se instala a exceção na linha de montagem fílmica,

comprovando possuir o que é concebido pelo homem como sempre um excedente da generalização. Dessa maneira também a maquinaria fotográfica, como produto da técnica ―vinga-se‖ de sua origem na medida em que possibilita, contra toda expectativa e fim compactuados com a aceleração dos novos tempos, a caça e o aprisionamento do instante para sua perenização, contra toda a velocidade imposta ao homem. Um erro dos antigos quanto ao preconceito a partir do ócio criativo – o rebaixamento da atividade artesanal – poderia ser hoje a saída – E aqui chegamos na valorização da arte de narrar – um atenuante no distanciamento da repetição infernal do ato de produzir, totalmente desvinculado da atividade artesanal. Para Benjamin ―gênio é industriosidade‖,74 de onde se pode deduzir que o mundo não permite mais atividade do pensamento sem a ação. Ao contrário do que conjecturavam os antigos, trabalho artesanal e reflexão são interligados. A energia de um provê o outro, o que não se pode dizer do trabalho industrial, que atomiza o todo e intercepta qualquer movimento em direção a uma realização desse projeto. Encontra-se dessa forma para Benjamin a novidade da informação, constantemente cadente e por isso mesmo candente, devido a sua efemeridade, diretamente proporcional a um movimento que equivale à impaciência do leitor, e que exige uma alimentação diária. Da mesma forma que a arte de narrar está para a criatividade do artesanato, a informação folhetinesca está para o movimento mecânico da reprodução. O processo de fabricação é automático e repetitivo. Renuncia à imaginação. Ao contrário, na narrativa, a destreza da fala, o elevar e baixar da voz, a pausa e o silêncio, encontram-se em relação direta com o movimento exato da mão e do olho sobre o objeto esculpido. Benjamin nos alerta para a memória visceral que trazemos no nosso corpo e sangue, reconduzindo a ideia de organicidade às últimas consequências, superando a divisão, feita pela tradição filosófica, entre corpo e alma ao

73

Walter Benjamin. Magia e Técnica Arte e Política. Opus cit. p. 190 ―Relógio Normal‖ in: Rua de Mão Única Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa, São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 14.. 74

incluir nela a matéria da memória. Diante desse novo dado filosófico o conceito de espírito, puro e isolado da concretude se reduz à ―faculdade de exercer a ditadura‖.

75

No belo texto Zur Ästhetk 76 Benjamin se pergunta se a mais remota mimesis dos objetos nas danças e na estatuária não repousariam na mimese das funções do corpo, na memória do corpo, por exemplo? Talvez o homem do paleolítico, no seu ato mágico de evocação à boa caça desenhasse com tamanha nitidez o bisão nas paredes da caverna por ser a mão que sustentava o pincel a mesma que guardava a lembrança de distender o arco sobre a flecha que o abatia: ...ob die früheste Mimesis der Objekte in der tänzerischen und bildnerischen Darstellung nicht weitgehend auf der Mimesis der Verrichtungen beruht, in denen der primitive Mensch zu diesen Objekten in Beziehung trat. Vielleicht zeichnet der Mensch der Steinzeit das Elentier nur darum so unvergleichlich, weil die Hand, die den Stift führte, sich noch des Bogens erinnerte, mit dem sie das Tier erlegt hat.

Vinculada ao ato de criar, o movimento da mão, no homem da idade da pedra, ia buscar a reminiscência das linhas delineadas e realçadas no ato reflexivo. Na nossa realidade a repetição fastidiosa da esteira da fábrica embota a memória. Para o movimento da mão sobre a máquina, realizada no ato involuntário, é exigida toda concentração possível. Estamos aqui na vivência do choque (Chockerlebnis), do trauma, indizível pela linguagem humana, a não ser na violência. Sua condição guarda o efeito irremeável. No risco da mutilação a exigência mecânica está em consonância direta com o aparelho visual não permitindo nenhum deslize, sem falar no ensurdecimento provocado pelo zoar da máquina. O trabalho artesanal, ao contrário, obedece a um ritmo, cromaticamente harmonizado entre os lances do corpo e a afetividade do ato da fala, como se daí exalasse uma melodia. Não é por acaso que as primeiras letras e sílabas, em tempos dos avós, eram ensinadas no canto, ou pelo menos na recitação, arrastando-se as vogais em cadência sonora. Benjamin confere ao ato artesanal a capacidade de narrar e vice-versa. Enquanto se fala, todo o corpo entra em sintonia com a emoção despertada pela palavra. O deleite que ressurge em cada talhe certeiro desfere um fluxo novo de criatividade interpretativa à audição e a fala. Vendo-se impulsionadas pelo ritmo da narrativa, as mãos acompanham o gesto mental da reflexão com o movimento criativo sobre o artefato. E o

75

Walter Benjamin. Origem do drama barroco alemão. Opus cit. p. 120. Walter Benjamin. ―Zur Ästhetik‖ in: Fragmente Autobiographische Schriften – Gesammelte Schriften Band VI, Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1991, p. 127. 76

ritmo da disciplina envolve, fornecendo a medida da atenção nos ouvintes, prováveis narradores futuros. Nessa atividade atenção e hábito se entrecruzam, um no reparo para a harmonia do outro, mutualidade e equilíbrio: A primeira de todas as qualidades – a atenção - encontra-se tanto no narrador como nos ouvintes. Diz Benjamin que ela divide a primazia com o hábito: ―Toda atenção deve desembocar no hábito se não pretende desmantelar o homem; todo hábito deve ser estorvado pela atenção se não pretende paralisar o homem. Atenção e hábito, assim como repulsa e aceitação constituem cristas e depressões de ondas no mar da alma‖.77 O hábito de estar só adotado pelo homem moderno o faz refém da calmaria que antecipa a tormenta. É o que acontece ao príncipe barroco no seu mal de individualismo, na sua subjetividade exacerbada, na sua ociosidade. Ele se torna incapaz de pensar, de decidir, de deliberar. Ao contrário, o conceito de ócio alimentava e revitalizava o pensamento do sábio antigo, mais tarde repartido entre os demais, é o que podemos concluir dos diálogos platônicos. O ócio dos antigos não incluía a solidão. Nesse paralelo podemos nos inclinar agora para a compreensão da distancia entre experiência e vivência, iluminadas pela moldura dos tempos marcados pela modificação das condições de existência no status quo do mercado. Enquanto a experiência é o resultado de um processo cumulativo entre gerações, sedimentando um conhecimento distante ainda do pragmatismo, a vivência encontra-se na periferia do aqui agora (hic et nunc) e portanto da improvisação. Seu recurso é a sensação tecida na ocasionalidade da mensagem atirada a queima-roupa. A informação, diz Benjamin é uma pólvora atiçada pelo gesto da aventura, única matéria-prima que conhece para despertar atenção. Seu ponto nevrálgico encontra-se na sensação. Ela se alimenta do calafrio – aquele provocado pela notícia da queda das torres gêmeas no 11 de setembro de 2011. 78 A experiência, ao contrário, acumula afetividade, desperta a vontade para além do objeto da experiência. O ocioso é o homem que não tem direito à sabedoria acumulada na experiência e só sobrevive à custa de sensações. A empatia é a doença do ocioso que perdeu a racionalidade de sua conduta afetiva e se encontra a mercê da sorte e da deusa menor Fortuna. Só lhe resta o jogo. E se sentirá compensado se encontrar um conselheiro no acaso. Não se recorre mais ao ócio criativo porque não se precisa mais pensar. A

77

Walter Benjamin. Rua de Mão Única; Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa, São Paulo: Brasiliense, 1987. P. 247. 78 Giovanna Borradori. Filosofia em tempos de terror – diálogos com Habermas e Derrida, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, p. 7.

megamáquina ideológica que sustenta a política pensa por todos. O sistema diz o que se tem que fazer e impõe a ociosidade para que se permaneça sem o poder de interferir e de deliberar. Os antigos erraram ao separar o trabalho do ócio, nos faz pensar Benjamin. Nessa reflexão a análise de Benjamin sobre as condições da existência na modernidade, os supera. A ociosidade moderna pode ser mitigada com o trabalho artesanal. A aceleração das condições atuais introjeta o taedim vitae. Fora do ritmo frenético não há saída a não ser a apatia. Em um rompante de auto-firmação ela se inclina para o seu outro lado, a empatia com o dominador (Einfühlung in den Sieger ) - mal do nosso século. O tédio é o lado externo dos acontecimentos inconscientes. Isso o fazia parecer elegante aos grandes dândis. A única maneira de parecer diferente no meio da massa com a extravagância, a excentricidade. Mas a empatia não está só. Ela vem atrelada à solidão. A empatia é própria da vida solitária do burguês. Ao colecionar objetos ele acredita apaziguar o seu destino.

A experiência, ao contrário, é desenvolvida na

comunidade. Não conhece solidão. O elo de conhecimento em conhecimento apreendido na existência faz a narrativa crescer em direção à sabedoria. O narrador é recepcionado pela atenção. A memória vai escandindo a atenção dada a determinado conteúdo e transformando-a em hábito, que agrega a visão do outro, expandindo-o a esse novo para nova recepção na comunidade. O acúmulo vai sedimentando conteúdos necessários à existência. Esse processo não conhece a improvisação. Muito pelo contrário, ele sedimenta o conhecimento que forja a competência e produz autoridade positiva, capaz de educar: a autoridade tecida na experiência. A empatia é um sentimento próprio do trabalho que não realiza mais, trabalho movediço, fragmentado, suspenso da identidade, onde o homem só o elabora no fragmento, ou seja, em um trabalho compulsivo (workaholic) mau hábito de se preencher ou não preencher o tempo, não mais imprescindível para se pensar o todo. Nos movimentos que as máquinas exigem de seus operadores já está o violento, o brutal, o percussivamente interminável dos maus tratos fascistas: In den Bewegungen, welche die Machinen von den sie Bedienenden verlangen, liegt schon das Gewaltsame, Zuschlagende, stossweis Unaufhörliche der fascistischen Misshandlungen 79.

79

Theodor Wiesengrund Adorno. Minima Moralia. Reflexionen aus dem beschädigten Leben. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 2001, S. 60.

Com o trabalho mecânico perde-se o sentido de totalidade para o civilizado. Talvez seja esse o maior efeito da especialização que se sofisticou - castigo pelo excesso. As mais belas almas, diz Montaigne nos ensaios III ―são aquelas que seguem o modelo humano, com ordem, mas sem milagres, nem extravagância‖. A sofisticação só é conveniente para evitar o pensamento, barreira contra a doença maior do civilizado – a solidão. O homem que não pensa mais acomoda-se, tenta apaziguar seu sofrimento enquanto um colecionador de objetos, de informações. A informação oscila do lado de fora da existência – vista como ponto de fuga. Apenas toca o homem com a sensação. Feixe de eus de sensações visuais, táteis auditivas, só o que ele toca o faz sentir-se vivo. Até a arte precisa ser fruída no toque – Leidenschaft zum Antasten - Paixão pelo palpável, diz Adorno. E o homem está pronto para a sua via crucis – na ociosidade. Na solidão ele renuncia a desmantelar o estabelecido. O que Benjamin quer evitar é que se cumpra a sensação na empatia, uma vez retraída a afetividade presente na atividade artesanal - forma de apreensão do todo contra a mecanização dos sentidos - metodologia para o aprendizado. Contra o devaneio vazio - a ociosidade – cultuada pelo Flaneur, a humanidade se prepara para o ato de educar, com a percepção (Wahrnehmung), alimentada pela vivência na superfície do choque (Chockerlebnis) e advinda dos sentidos. Referências ADORNO. Minima Moralia – reflexões a partir da vida lesada. Tradução de Gabriel Cohn. Rio de Janeiro: Beco do Azougue Editorial Ltda, 2008. ADORNO. Minima Moralia – Reflexionen aus dem beschädigten Leben, Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 2001. BENJAMIN, Walter. Ursprung des deutschen Trauerspiels. Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1999. ___________. Origem do Drama Barroco Alemão. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet, São Paulo: Brasiliense, 1984. ___________. Magia e Técnica, Arte e Política, Tradução de Sérgio Paulo Rouanet, São Paulo: Brasiliense,1985. ___________. Rua de Mão Única, Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa, São Paulo: Brasiliense, 1987. ___________. Passagens, Tradução de Willi Bolle et allii. Belo Horizonte: Humanitas, 2006.

__________. Illuminationen. Ausgewählten Schriften 1, Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1977 BORRADORI, Giovanna. Filosofia em tempo de terror. Diálogos com Habermas e Derrida, Tradução de Roberto Muggiati, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, p. 7 CALLADO. Tereza de Castro. Walter Benjamin – A Experiência da Origem. Fortaleza: Eduece, 2006. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. MACHADO DE ASIS. ―Memórias Póstumas de Brás Cubas” in: Obra Completa (Organizada por Afrânio Coutinho), Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S. A. 1992. MONTAIGNE, Michel de. ―Ensaios III‖ in: Os Pensadores, Tradução de Sérgio Milliet, São Paulo: Nova Cultural, 1988. PASCAL, Blaise. ―Pensamentos‖ in: Os Pensadores, Tradução de Sérgio Milliet, São Paulo: Victor Civita, 1973.

Sujeito, Cultura e Educação: (Des)Ajustando a Crise do Capitalismo, uma Vivência do Inevitável Raquel Célia Silva de Vasconcelos Nunca podemos recuperar totalmente o que foi esquecido. E talvez seja bom assim. O choque do resgate do passado seria tão destrutivo que, no exato momento, forçosamente deixaríamos de compreender nossa saudade. Mas é por isso que a compreendemos, e tanto melhor, quanto mais profundamente jaz em nós o esquecido. [...] Tal como a palavra que ainda há pouco se achava em nossos lábios, libertaria a língua para arroubos demostênicos, assim o esquecido nos parece pesado por causa de toda a vida vivida que nos reserva. Talvez o que o faça tão carregado e prenhe não seja outra coisa que o vestígio de hábitos perdidos, nos quais já não nos poderíamos encontrar. [...] Neles são formadas as aptidões que se tornam decisivas em sua existência 80.

Benjamin, inicialmente, afirma que a rememorização do passado remete à experiência dolorosa porque o processo rememoração de algo ―esquecido‖ que se apresenta à memória por completo traz o inevitável, o choque. A experiência do passado é fundamental e necessária à memória, uma vez que o choque é responsável pela rememoração de um passado que se dá através de uma experiência singular possibilitada pela relação com objetos ainda não cristalizados pelo olhar. Tal relação delimita uma percepção que jaz de modo preciso o passado fugidio à memória e somente o objeto percebido transfigura o ―esquecido‖. Desse modo, o choque assume a função de desencadear emoções que contribuem na formação da subjetividade e nos prepara para recepção de uma saudade que faz emergir ―hábitos perdidos‖, muitas vezes, responsáveis por aptidões que definem nossas ações. O choque facilita o desmembramento de hábitos, outrora perdidos, porque aguça nossa percepção e compreensão de que são eles os delimitadores de nossa participação na constituição de nossa própria subjetividade. Ademais, a experiência do choque permite perceber que os hábitos são responsáveis pelas aptidões e, estas, por sua vez, demarcam nossas ações. 

Mestra em Filosofia e doutoranda da FACED/UFC, bolsista Demanda-Social/Capes. Integra o grupo de Pesquisa Walter Benjamin e a Filosofia Contemporânea e o Projeto PROCAD – CAPES: 137/2007―Biopolítica, escola e resistência: infância e resistência para a formação de professores‖ do Eixo Filosofia da Diferença, Antropologia e Educação. [email protected]

Nesse sentido, o esquecimento é apaziguador da saudade quando afasta qualquer possibilidade da experiência do choque. Contudo, sem o choque, a rememoração não seria possível, consequentemente, não se alcançaria o reconhecimento das aptidões, essenciais à constituição de um sujeito consciente de suas ações. O reconhecimento das aptidões facilita perceber que nossos atos são delimitados pela intrínseca relação sujeito-cultura-educação. É a relação entre passado e presente que nos possibilita o encontro dos vestígios das aptidões adquiridas através da educação e da cultura, responsáveis pelas ações do sujeito no campo simbólico de ordenamento do mundo. Assim, quando Benjamin demarca os hábitos como precursores das aptidões e, estas, como formadoras das ações subjetivas, ele só confirma que a apreensão da vida e das coisas do mundo na ordem simbólica determina as ações tanto intelectual quanto política. É através da ordem simbólica que o sujeito interpreta e organiza o mundo definindo suas ações nos campos políticos, culturais e sociais. É na experiência do choque que o novo se transfigura no antigo porque nessa transfiguração se revela o desejo de imagens oriundas do esquecido e a saudade surge como conforto, pois jamais se pode rememorar o esquecido quando o sujeito não é capaz de apreender imagens sem torná-las presentes na ordem simbólica. E esta, muitas vezes, desperdiça a percepção infantil desenvolvida através do gesto. Assim, o esquecido delineia uma memória que pressupõe um sujeito, cuja consciência delimita a ordem do simbólico. Mas, é nessa busca da interioridade que se dá a constituição da subjetividade no campo do simbólico. Se nos remetermos à constituição da subjetividade moderna, pode-se perceber que o próprio sujeito moderno fora elaborado a partir do processo de simbolização dele pela ―consciência pura‖ cartesiana. E esta, na condição de ―substância pura‖, nega o corpo na apreensão da vida e do mundo, subtraindo suas experiências através de seu esfacelamento. O corpo na tradição moderna é negado no momento dessa apreensão, toda sua experiência é subtraída no momento de elaboração da ordem simbólica de apreensão do mundo. Ademais, a consciência pura foi responsável pela constituição de um sujeito, cuja função é estabelecer relações simbólicas com o próprio corpo. Por certo, a recuperação dos ―hábitos perdidos‖ como condição de possibilidade de compreensão das aptidões, delineia três aspectos fundamentais no que diz respeito ao sujeito, a cultura e a educação. O primeiro aspecto é fundamental porque aponta que a cultura depende da força do hábito para sobreviver e, o hábito, por sua vez, determina o modo como o sujeito capta a própria existência, tornando suas ações enrijecidas e/ou

flexíveis. O segundo aspecto diz respeito à interferência do hábito na formação das aptidões, pois são fundamentais à existência individual e coletiva, revelando que a cultura também integra e, muitas vezes, é decisiva no processo educativo. O terceiro aspecto aponta que a educação pode resultar de um processo de formação de subjetividades capazes de estabilizar ou desestabilizar paradigmas de dimensões socioeconômicas e culturais.

O hábito e as ações subjetivas: elementos presentes no interior do grupo social A cultura é entendida como algo que expressa uma sociedade do ponto de vista axiológico, epistemológico e, sobretudo, estético. Isto significa que nas relações e ações subjetivas estão presentes fatores determinantes para o desenvolvimento de uma cultura que delineiam os campos valorativo, técnico – científico e criativo. No entanto, a coerência de um hábito cultural deve ser analisada a partir do sistema a que pertence. No Ocidente Moderno, o hábito se dá a partir do paradigma educacional estabelecido no interior do grupo social, determinando o que deve ser apropriado enquanto cultura a partir das práticas sociais estabelecidas pelo grupo. Assim, as práticas sociais assumem um ―caráter universal‖ e ―necessário‖ para que a cultura permita o sujeito expressar aptidões nos âmbitos valorativo, científico e criativo. Daí a importância de universalizar o conhecimento técnico-científico atrelado ao progresso como efetivação dos paradigmas socioeconômicos e culturais através da educação. Desse modo, os paradigmas são vistos como critério único de sentido à existência em que tudo é válido, mesmo que seja com pretensões repressoras, muitas vezes sutis. Isso é perceptível nos dois conceitos fundamentais relacionados às concepções de cultura que se firmou no Ocidente na Modernidade. A Cultura (Kultur) com pretensão civilizatória e a cultura de dimensão antropológica que se define nas características da identidade cultural de um povo. Ambas buscam espaço de sobrevivência na dimensão espaço-temporal apropriado pela concepção que a Modernidade compreende de progresso. Se a Modernidade privilegia dois conceitos de cultura como espaço de criação e aprendizagem, isto pressupõe que ambas demarcam o próprio espaço de ação a partir da

lógica do Capital determinando os hábitos condicionados ao progresso técnicocientífico e, este oficializa o que deve ser constituído como paradigma educacional. Assim, a Modernidade avança com duas concepções: a Cultura (Kultur) constituída como sinônimo de civilização e convergente com o Iluminismo - demarca o espaço de uma crítica racional que busca universalizar-se e fundamentar-se em si mesma. Desse modo, estabelece a ordem social e reivindica a totalidade como condição de possibilidade de apreensão da vida e do mundo através da razão, vista como única capaz de conduzir o homem ao refinamento e à formação dentro dos parâmetros burgueses de civilização. E outra concepção de cultura que expressa ―identidade‖ e ―solidariedade‖ de respaldo antropológico mediado pelo particularismo coletivo, esquivando-se da normativa estética e elitista do ideal civilizatório iluminista, como forma de particularizar e demarcar seu espaço social. Todavia, a demarcação e particularização do espaço coletivo facilitam a expansão do processo de massificação quando propõe a autoidentidade através da lógica coercitiva e do aprisionamento da estética81 à lógica do capital. Nesse aspecto, a Cultura (Kultur) vista como sinônimo de Civilização difere da cultura de caráter antropológico quando privilegia o indivíduo e busca a universalidade estabelecida na relação entre o individual e o universal. A Cultura não cultiva o particular porque busca na sua constituição a identidade em si mesma através da emancipação racional, facilitando a universalização de seus valores para atingir sua superioridade. Assim, a constituição da Cultura se realiza na identidade do espírito humano em si mesmo através da expressão da essência da espécie demarcada pela individualização do espírito da humanidade. Portanto, a Cultura concebida como Civilização delimita um discurso que estabelece a relação entre individual e universal, em que o cerne do eu e a verdade da humanidade convergem sem precisar da intervenção do particular. Nesse sentido, o universal torna-se o oposto e o próprio paradigma do individual, negando o que Eagleton (2005) denomina de ―particulares arbitrários‖. A Cultura, cujo cultivo é mediado pelo espírito, permeia a esteira do que ficou conhecido como Civilização e,

81

A esse respeito Eagleton afirma que a ―Cultura como identidade é avessa tanto à universalidade como a individualidade; em vez disso, ela valoriza a particularidade coletiva. Do ponto de vista da Cultura, a cultura apodera-se perversamente dos particulares acidentais da existência – gênero, etnicidade, nacionalidade, origem social, inclinação sexual etc. – e os converte nos portadores da necessidade‖ (EAGLETON, 2005, p. 84).

esta, por sua vez, concebida a partir da universalização do individual que realiza sua verdadeira identidade na Ideia. No entanto, essa Cultura, numa perspectiva benjaminiana, tornou-se na ―cultura de vidro‖, presente no Bauhaus que alimenta, de certo modo, a opacidade porque exige do homem a máxima aquisição de hábitos para que consiga se ajustar ao interior cheio de vestígios, onde precisa se desvencilhar de toda experiência porque não consegue eliminar os rastros. E nesse aspecto, a ―cultura de vidro‖ é a condição de possibilidade que alimentação do sonho burguês de uma pseudocivilização, cujo princípio é conduzir a vida na esteira do progresso da ciência e da técnica, como forma de edificar seu projeto de emancipação. Portanto, a única cultura capaz de sobreviver a uma pobreza de experiência e consiga sanar a dicotomia, natureza e técnica, primitivismo e conforto, é a utilitária, porque não exige novas experiências quando os hábitos são condicionados e enrijecidos, ela aspira somente à vivência como imediatez das relações e da fugacidade da vida moderna. Assim, determinados hábitos que condizem ao individualismo, empobrecem a capacidade do homem em almejar experiências novas porque a cultura utilitária cultua a prática de uma vida inspirada no Pragmatismo exacerbado da sociedade capitalista. Como afirma Benjamin, ―todo hábito deve ser estorvado pela atenção se não pretende paralisar o homem82‖. Ademais, o Pragmatismo forja uma racionalidade técnica e impõe à arte e às culturas a dimensão técnico-científica como único critério para o estabelecimento das ações criativas e inovadoras dentro do espaço sócio-cultural através dos hábitos incorporados à formação subjetiva. Nesse aspecto, a cultura utilitária se expande quando permite a técnica conduzir o ―ato criativo‖. Desse modo, eles entregam a técnica o poder de delegar o que é arte, apropriando-se do campo da estética. É nesse momento que a técnica assume o poder de ―segunda natureza‖, escamoteando quem concebe a arte como criação de um saber que se faz no próprio poder de contemplação do artista sem intervenção direta da técnica. Aqui se faz necessária uma análise mais profunda do conceito de cultura na perspectiva de Benjamin e como a cultura utilitária interfere na educação que diretamente é responsável pela formação de subjetividades condicionadas a hábitos de consumo que delineiam as aptidões de culto a mercadoria. Aptidões essas também alimentadas pela educação para o consumo.

82

BENJAMIN, Walter. ―Hábitos e atenção‖ IN: Rua de Mão Única, p. 247.

Contudo, qualquer tentativa de compreensão e assimilação do discurso, cujo princípio é o avanço científico e técnico como única possibilidade de melhorar as condições de vida e solucionar todos os problemas do homem, só se sustentaria com o poder da informação. A guerra só confirmou que a técnica e a ciência sobrepujaram a humanidade a partir do discurso burguês de progresso que põe todos subservientes à técnica e, esta, por sua vez, como uma ―força fáustica83‖ impele a todos irem ao encontro de um futuro mais promissor apostando no avanço da ciência como via direta à apreensão racional da vida e do mundo. Nesse sentido, a cultura é fundamental no avanço técnico-científico e a educação é sua aliada na condução do futuro promissor. Daí, percebermos o jogo que presenciamos hoje entre a cultura de dimensão antropológica e a Cultura como atuação do espirito (Geist) no mundo.

O Espírito (Geist) Infinito e a interferência do hábito nas aptidões: a derrocada da função filosófica e existencial da cultura diante do poder da técnica A técnica expressa sua força fáustica quando conduz a vida e o mundo na esteira de uma educação, cujo campo de ação é delimitar, a partir do hábito, o elemento promissor e sedutor do avanço técnico-científico. Isso alimenta no imaginário do homem uma falsa emancipação uma vez que sobrepõe à cultura a função de moldar sujeitos, cuja dimensão criativa aponta a ação de subjetividades fractárias porque submete o ato criativo à inervação do conhecimento técnico-científico. Embora a técnica possibilite a manifestação de sujeitos ativos, no entanto, ela subscreve com sutiliza o campo da criatividade subjetiva porque obedece às lógicas do capital e do progresso. Isto permeia a concepção de História, como observa Benjamin, ―que confiando na infinitude do tempo, distingue apenas o ritmo dos homens e das épocas que rápida ou lentamente avançam pela via do progresso84‖. Assim, o conhecimento técnico-científico se torna a via que conduz o homem à emancipação por meio do sujeito racional que através do progresso apreende o poder de delinear aptidões que lidam com a vida e o mundo através da racionalidade técnica. E esta, por sua vez, subscreve, através do sujeito racional, o campo de ação do homem, sobretudo, no que

83

SIBILIA, Paula. O homem pós-orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais, p. 43. BENJAMIN, Walter. ―A vida dos estudantes‖. In: Reflexões sobre acriança, o brinquedo e a educação, p. 31. 84

diz respeito à ciência, à cultura de modo geral e a educação do ponto de vista de sua aplicabilidade. E isso se faz presente nas palavras de Benjamin, O marcante na vida dos estudantes é, de fato, a aversão em submeter-se a um princípio, em se deixar imbuir de uma idéia. O nome da ciência presta-se por excelência a ocultar uma indiferença comprovada e profundamente arraigada. Mensurar a vida estudantil com a idéia da ciência não significa de maneira alguma panlogismo ou intelectualismo — como se está inclinado a temer —, mas é uma crítica legítima, uma vez que na maioria dos casos a ciência é levantada, como a muralha férrea dos estudantes, contra reivindicações ―estranhas‖. Trata-se portanto de uma unidade interior, não de uma crítica de fora. Neste ponto, a resposta está dada com a observação de que, para a grande maioria dos estudantes, a ciência é uma escola profissionalizante. Já que ―ciência não tem nada a ver com a vida‖, então ela deve moldar com exclusividade a vida de quem a segue. Entre as reservas mais inocentes e mentirosas que se têm perante ela, encontra-se na expectativa de que ela deva ajudar este ou aquele a se prepararem para uma profissão. A profissão decorre tão minimamente da ciência que esta pode até excluí-la85.

Todavia, para o autor, fazer ciência pressupõe um ato de criação imerso em uma ―liberdade vindoura‖ que se firma na ―totalidade do indivíduo ativo e desejoso‖ por uma vida atuante de um espírito verdadeiramente criador e comprometido com ―a vida intelectual criativa86‖. Assim, uma educação que traduz o individualismo é o reflexo de um paradigma educacional de uma sociedade que está comprometida com o ―espírito profissional‖ subjugado ao Pragmatismo. Esse paradigma educacional restringe o campo visual dos estudantes uma vez que a ―aplicação prática‖ da ciência os conduz à relação de estranheza e hostilidade com a escola da vida, em que seus ensinamentos se dão através da arte de viver com autonomia e liberdade. Assim, a relação da Cultura, como processo para o alcance da Civilização, e da cultura, como expressão da identidade e solidariedade antropológica, são estabelecidas na lógica do espírito profissional, cuja atuação converge com o poder e a pragmática da técnica, impondo à humanidade o progresso da ciência como única alternativa de apreensão do mundo e, isso leva a uma ruptura definitiva com a tradição do aprender com autoridade e autonomia. Vale ressaltar que a Cultura não corresponde a qualquer modo de vida particular, ela tem sua origem e história, o que lhe possibilita seguir em direção ao universal. Embora, seus valores sejam universais, isso não significa dizer que sejam abstratos, uma vez que a necessidade da Cultura em se direcionar para universalização de seus valores

85 86

Idem, p. 32. Idem, p. 37 e 39.

remete à origem e ao espaço que delimitou seu aparecimento. É desse modo que a Cultura se apresenta como uma espécie de ―símbolo romântico‖, porque na condição de infinito, ela assume seu lugar no mundo mediado pelo espírito 87 (Geist) infinito encarnado na Europa. Dessa maneira, a Cultura assume uma dupla face: em um momento ela representa os valores derivados do espírito que busca universalizá-los; em outro momento ela é concebida como símbolo quando assume sua condição de representação simbólica para o povo europeu, sobretudo, para o povo alemão que vivenciou a emergência do discurso de atuação do espírito (Geist) no mundo. Na realidade acadêmica e escolar da Alemanha, esse espírito não se realizou porque o caráter imediato da ciência e da técnica sobrepujou a Cultura que poderia proporcionar o verdadeiro ―espírito criador‖, o próprio Nazismo aponta a ausência do espírito criador. Benjamin traz essa discussão, em seu ensaio de 1932, quando afirma a partir de sua personagem intitulada ―Voz do Século XIX‖ que comenta a respeito de uma fala de Goethe,

Tudo hoje em dia é ultrapassado, tudo transcende incessantemente. No pensamento como na ação. Ninguém conhece a ninguém. Ninguém compreende o meio em que vive e trabalha, nem o material com que está trabalhando. Riqueza e rapidez, eis o que o mundo admira e o que todo o mundo quer. [...]. No fundo, é o século dos homens práticos, de compreensão rápida, de muitas aptidões, homens que se sentem superiores em relação à massa, embora eles próprios não tenham talento para coisas mais elevadas 88.

No referido ensaio, Benjamin deixa transparecer que a ―institucionalização da tirania do minuto89‖ impossibilita a atuação do verdadeiro espírito criativo, permitindo apenas a ação de um espírito educado através da ―cultura média‖ como profetizara Goethe. Na verdade, o povo alemão fica refém de uma Cultura que propaga todo Idealismo alemão, cujo referencial se encontra no ideal civilizatório iluminista e buscará todas as formas de encontrar espaços de resistência.

87

A esse respeito comenta Eagleton quando afirma que ―ela (Cultura) é o ponto imóvel do mundo em rotação no qual se intersectam tempo e eternidade, os sentidos e o espírito, o movimento e a imobilidade. A Europa teve a sorte de ser escolhida pelo Geist como o lugar onde ele se fez carne, assim como o planeta Terra teve a sorte de ser selecionado como o ponto onde Deus optou por se tornar humano. Ao interpretar a Cultura, então, como ao interpretar o símbolo, devemos operar com uma espécie de codificação dupla e apreendê-la ao mesmo tempo como ela mesma e alguma outra coisa, o produto de uma civilização específica embora também de um espírito universal (EAGLETON, 2005, p. 82). 88 BENJAMIN, Walter. ―O que os Alemães Liam, Enquanto Seus Clássicos Escreviam‖. IN: Documentos de cultura, documentos de barbárie: escritos escolhidos, p. 83. 89 Idem, p. 83

Assim, a Cultura, na tentativa de sobrevivência e efetivação de seu poder, designa um laço entre civilização europeia e humanidade universal, impondo assim seu poder moral e forjando uma identidade ao mundo. Nessa condição, ela assume um duplo caráter porque expressa ao mesmo tempo temor e entusiasmo aos seus adeptos porque em determinado momento ela se apresenta como acessível e ao alcance de todos, mas, simultaneamente, ela nega essa possibilidade porque nasce, de certo modo, desvinculada da tradição de uma experiência coletiva. Isto aponta seu caráter elitista porque nasce junto com a ascensão burguesa, tornando-se o símbolo da concepção de civilização do Iluminismo que se difunde por toda Europa como ―patrimônio cultural 90‖ de uma classe que deu origem a riqueza de ideias de um processo civilizatório. Contudo, a Cultura falha quando utiliza os valores tradicionais burgueses de caráter persuasivo e dimensão moral uma vez que não consegue conduzir ou ordenar a vida dos jovens, porque a percepção (Wahrnehmung) dos jovens aponta que não existe ética como discurso, mas reflexão (Grübeln). Entretanto, a reflexão está de certo modo vinculada ao Idealismo que propicia o ofuscamento do ―Real‖ porque não existe mais experiência (Erfahrung) do ponto de vista da autoridade e da liberdade, isto é, a experiência coletiva que outrora é transmitida oralmente pela tradição, mas apenas vivência (Erlebnis), ou seja, preserva-se apenas a experiência individual vazia de sentido e de significado. Diante do fim da experiência e da fugacidade da vivência, a humanidade é conduzida aos paradigmas cultural e educacional que privilegiam um conhecimento especializado, cujo campo de observação é delimitado pelo método indutivo de apreensão objetiva. Ademais, a cientificidade em todos os campos do conhecimento humano é sempre estabelecida pela fragmentação do saber, onde se faz presente a relação de pares. Esta é característica da leitura do mundo pelo olhar técnico-científico porque privilegia a fragmentação no processo de observação e, desse modo, concebe uma leitura da vida e do mundo à luz da vivência. Isso também passa à dimensão das relações sociais estabelecidas, onde o próprio sujeito do conhecimento, habituado à fragmentação do saber, apreende a própria subjetividade aprisionada à lógica do progresso que vislumbra o mundo assegurado da tecnologia e da ciência. Portanto, o século XX é a

90

Termo denominado por Benjamin para designar que o desvio da razão transformou esse patrimônio na ―a horrível mixórdia de estilos e concepções do mundo do século passado mostrou-nos com tanta clareza aonde os valores culturais podem nos conduzir, quando a experiência nos é subtraída, hipócrita ou sorrateiramente‖ (BENJAMIN, 1994, p. 115).

transfiguração do século XVII, isto é, é um século transfigurado de barroco, porque se presencia na Modernidade a ofuscação do espírito pelo claro e escuro das ideias. Assim, presencia-se na Modernidade um homem desprovido de espírito, o total ofuscamento das ideias ―claras‖ e ―distintas‖ como provera Descartes. Isso revela que o ―patrimônio cultural‖ de uma geração que buscou a ―presença de espírito‖ no mundo é ―substituído por um mundo antigenealógico, científico e técnico91‖. O declínio da experiência, da ação moral exemplar, do impulso racional pelo autoconhecimento e do refinamento de si representa a derrocada da função filosófica e existencial da Cultura. Assim, toda herança cultural de Goethe e Schiller e da própria noção de civilização é sobrepujada pela visão técnico-científica do homem na Modernidade. Esta também sobrepuja o espírito como fizera o Barroco, nesses períodos o que existe é a total ausência de espírito diante do ―conflito entre a sensibilidade e a vontade‖. Na verdade, como bem observa Benjamin,

é com efeito característico do século XVII que a representação dos afetos se torna cada vez mais enfática, ao passo que o delineamento da ação se torna cada vez mais inseguro. O ritmo da vida afetiva ganha tal velocidade que as ações serenas e as decisões maduras ficam cada vez mais raras92.

Por certo, a ciência e a técnica se tornam o paradigma para o alcance civilizatório, embora, o Século das Luzes veja na razão o caminho viável para o processo de emancipação do homem e acredita que a razão possibilitaria a ―presença de espírito‖ no mundo, malogram diante do poder da técnica. Esta assume a presença do espírito no mundo, impondo a todos sua ação através de sua força fáustica devastadora e incontrolável. E, nesse sentido, essa força da técnica recai sobre a educação porque a função de educar para o progresso pressupõe preparar o campo visual de crianças e jovens a partir da apreensão de um sujeito que se constitui no campo simbólico e imaginário do progresso para apreender e compreender a vida e o mundo. Se inicialmente a Cultura (Kultur), sinônimo de civilização, não viu na narrativa uma aliada no processo civilizatório, jamais conseguiria alcançar seus objetivos, o esclarecimento de todos, porque seu discurso é pautado na capacidade racional de todos os seres dotados de razão. O Iluminismo no percurso civilizatório, cujo princípio é a repressão e domínio da natureza e a produção da subjetividade, elabora novos mitos que

91 92

MATOS, Olgária C. F. Benjaminianas: cultura capitalista e fetichismo contemporâneo, p. 55. BENJAMIN, Walter. Drama barroco alemão, p. 121.

conduz a humanidade ao domínio e a barbárie quando atrela civilização ao progresso técnico-científico. E, isso, só reafirma que a expansão do domínio da ―segunda natureza‖ sobre a ―primeira natureza‖ facilitou a instrumentalização da razão como bem observa Adorno. É na promessa de transformação proposto pela Aufklärung: desencantamento do mundo, expulsão dos mitos, destruição anímica da natureza pela capacidade racional do homem, que se instala uma subjetividade do controle pelo controle das forças da natureza exterior e interior. É nessa perspectiva que Benjamin elabora sua crítica ao ideal de progresso porque percebe que tal concepção é o pressuposto da Aufklärung com sua proposta de plena luz ―total‖ e/ou ―totalizadora‖. E na Modernidade que esse ideal é assinalado com a intensificação do trabalho fabril que traz um tempo vazio de sentido, porque a tradição do passado apreendida no presente é da acumulação de objetos e, não da experiência. Na verdade, presencia-se na Modernidade uma herança impulsionada pelo ressentimento das massas que responde à apropriação da tradição através da mímesis do consumo de bens, não por seu valor de uso dos bens necessários, mas por seu valor de troca. É nessa lógica traz no seu bojo o fardo da tradição dos valores burgueses e o peso do status quo.

Considerações finais

A cultura e a educação dependem das ações de subjetividades que incorporam aptidões herdadas de parâmetros apreendidos no grupo social. Assim, uma sociedade com múltiplos parâmetros de conduta aponta uma total desestabilidade nas relações institucionalizadas, dificultando uma permanência segura no mundo diante de vivência fugaz, vazias de sentido e significado. A saída dos sujeitos sempre é uma via aprisionada ao que está em voga para grande maioria, o que facilita ações que privilegiam juízos de valores imersos no controle emocional dos sujeitos através de uma lógica que determina a existência atrelada ao nivelamento cultural. A atual crise do Capitalismo repercute de modo direto na educação e na cultura, ele propõe mudanças nos hábitos para que as ações subjetivas possam convergir com as vias de saídas que ele propõe à permanência do status quo. E isto pressupõe que as saídas estão submetidas à lógica do sistema. É característica da Modernidade a formação de subjetividades condicionadas à lógica da sociedade de consumo, nas quais o acúmulo dos bens não corresponde ao consumo dos bens necessários à sobrevivência.

Tal sociedade cria indivíduos obedientes à ―fantasia imagética‖ que os impulsionar a sempre buscarem o novo através de seu poder de sedução, condicionando o campo da percepção às ―imagens de desejo‖ numa tentativa de substituição do antigo pelo novo. É prática da sociedade de consumo delimitar a relação entre ―valor de troca‖ e ―valor de uso‖ a partir do processo de subjetivação da ―mercadoria‖, onde o ―valor de uso‖ já não se insere no consumo de bens necessários, mas no poder que o consumo pode propiciar o status social. A mercadoria uma vez subjetivada reduz os sujeitos à condição de objetos, facilitando assim as ações individualistas diante da distorção de papéis, em que a mercadoria passa a conduzir as escolhas que determinam as ações do homem. Nesse contexto, a própria dinâmica do ato de educar é comprometida pela lógica do processo de subjetivação da mercadoria. Por certo, a educação ainda impõe o peso do status quo às crianças e jovens através do mercado de bens culturais. São bens de consumo que alimentam e fortalecem a informação e a comunicação como espaços de disseminação da lógica das vias de saída da crise. O Capitalismo através da informação e da comunicação conduz a educação para a formação de sujeitos fractários, cujos saberes são fragmentados, muitas vezes oriundos da mesmice dos valores apreendidos e incorporas à lógica da conduta de hábitos enrijecidos e condicionados. Assim, a informação e a comunicação como critério para o conhecimento de fácil assimilação e entendimento trazem um caráter fugaz e pragmático presente na concepção de ensino que propicia o imediato. O aspecto pragmático do ensino facilita a fragmentação do saber que uma vez setorizado, dificulta encontrar linhas de fuga e espaço de criação. É comum nas ações da criança e do adolescente um desprendimento em relação ao desenvolvimento intelectual, não visualizam qual são os sentidos e os significados da educação, sobretudo, o grupo dos desfavorecidos cuja única preocupação é sobreviver. Para ele, a sobrevivência não depende do modelo de educação instituída. Nossa educação ainda hoje é pautada no ―esclarecimento médio popular‖, embora toda a reviravolta na tentativa de reverter o quadro com o discurso de uma educação para o desenvolvimento de habilidades e competências. Ainda não fugimos da norma de encontrar saídas para superar as crises constantes do sistema que exige da educação adaptações como via de fuga da crise. Atualmente, a educação vive o impasse do discurso da formação para o trabalho diante do paradigma da empregabilidade, cuja característica é uma instabilidade geral dos postos de trabalho. Diante disso, o Capitalismo demarca seu espaço de fuga da crise

no Setor de Serviços, em que concentra um número bastante significativo de posto de trabalho, mas que também se encontra preso à lógica da empregabilidade. Tal setor define e demonstra o contexto que alimenta a cultura utilitária e submete as subjetividades ao velho paradigma do status quo que delimita a ―criatividade‖ de acordo com a educação conveniente a superação da crise. Por certo, a educação como serviço também sofre as consequências da superação da crise, obedece à lógica da empregabilidade e se vê vitimada pela cultura utilitária cujo reduto de sobrevivência é o Setor de Serviços. Assim, a cultura utilitária se sustenta a partir de uma educação que prioriza o ensino, em que qualquer espaço é local de aprendizagem, sobretudo, espaços onde a tirania da imagem determina esse ensino. Desse modo, a própria a educação incorpora a lógica dos fast foods, na qual a tirania da imagem invade escolas e universidades cujo princípio está vinculado ao discurso da boa estrutura, ambiente de diversão, juventude descolada e conectada às informações das comunidades virtuais. Esse é o grande trunfo do domínio da informação e da comunicação imediatas, fugazes e estanques. Elas estabelecem hábitos que tornam os sujeitos fractários, incapazes, muitas vezes, de prover novas experiências que lhes permitam a criação e encontrar pontos de fuga. Embora, a sociedade contemporânea aponte o lugar do corpo na constituição da ordem simbólica de apreensão da cultura e da educação, mas tal constituição se delineia através de subjetividades fractárias, cujo espaço de criação também é demarcado pela crise. Mesmo para as subjetividades que buscam linhas de fuga, a lógica permanece a mesma, ou seja, a educação do controle e do adestramento do corpo e do ―espírito‖, quando se afastam do ―ócio‖ criativo e buscam preencher a ―ociosidade‖ com o entretenimento. Isso demonstra que a Aufklärung não atingiu seu objetivo, o alcance da maioridade através da razão. A proposta iluminista malogrou uma vez que a humanidade não atingiu o esclarecimento previsto, mas apenas despertou a consciência do sonho (Traum le wusst sein) desvinculada completamente da experiência. A experiência que aproximava os valores de uma geração a outra através da oralidade presente na narração, não comunga do discurso da Aufklärung. Com isso, posso arriscar a partir do título aqui proposto que a crise da economia de mercado aponta duas faces do Capitalismo. A primeira diz respeito ao ajuste e ao desajuste das crises do sistema econômico que interfere na educação, forjando aptidões a partir de hábitos que se apresentam como novo configurado de ―sempre igual‖. E a

segunda face demonstra subjetividades imersas na assimilação do ―sempre igual‖, incorporando apenas as mudanças uma vez que elas vivenciam o inevitável, a crise que se ajusta no em si mesmo do status quo.

Referências ARENDT, Hannah. Hannah Arendt: entre o passado e o presente (organizadores Adriano Correia e Mariângela Nascimento). Juiz de Fora: UFJF, 2008. BENJAMIN, Walter. A modernidade e os modernos. 2ª ed., Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000. ___________. (Org. BOLLE, Willi). Documentos de cultura, documentos de barbárie. São Paulo: Cultrix, 1986. ___________. Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política, ensaios sobre literatura e história da cultura. 7ª ed., 10 reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 1994. ___________. Obras escolhidas II: Rua de mão única. 5ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1995. ___________. Obras escolhidas III: Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. ___________ (Tradução Sérgio Paulo Rouanet). Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984. ___________ (Org. BOLLE, Willi). Passagens. Belo Horizonte: UFMG, 2006. MATOS, Olgária Chain Féres. Benjaminianas: cultura capitalista e fetichismo contemporâneo. São Paulo: Editora, UNESP, 2010. SIBILIA, Paula. O homem pós-orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

O “Outro” da Filosofia da Educação de Adorno: A Psicanálise Pedro Rogério Sousa da Silva (identificação) Somando-se a grande influência marxista e a fim de melhor compreender essa problemática do capitalismo nos meandros do Século XX e suas consequências deletérias para a vida humana ou, ainda, para a subjetividade, os integrantes do Instituto de Pesquisa Social, sobretudo os que pertenceram à primeira geração deste Instituto, em especial Adorno, passam a inaugurar e a reconhecer o espectro da psicologia e/ou psicanálise como uma teoria social e do conhecimento em um território que tradicionalmente fora colonizado e dominado pelos grandes filósofos. Nestes termos, podemos dizer que essa integração do pensamento de Freud em tal Instituto implica em um elo entre a teoria freudiana do inconsciente (e da sexualidade) em ―parceria‖ com a dimensão filosófico-econômica de Marx, mas ressaltando que esse entrelaçamento não acontecera de modo aleatório. Pois dois acontecimentos históricos do começo do século passado, tais como a Revolução Bolchevista de 1917 e a tomada do poder de Adolf Hitler na Alemanha, fora significativo para implicar de vez tal elo (ROUANET, 1989). Ainda porque, como sabemos a psicanálise nos tempos de Lenin ou no inicio de tal Revolução esteve sempre em contato com a teoria crítica marxista, havendo traduções da obra de Freud para a língua russa, surgindo consultórios de clínica psicanalítica, disciplinas de psicanálise nas universidades soviéticas e durante a gestão ―de Bela Kun, na Hungria, em 1919, Ferenczi foi convidado para criar uma cadeira de psicanálise na Universidade de Budapeste‖ (ROUANET, 1989, p.15). Não obstante, nem tudo na vida é eterno, ocorrera um drástico rompimento destas correntes: a psicanalítica e a marxista. O motivo de tal rompimento iniciou-se com a morte de Lenin. Com esse acontecimento, o(s) discípulos que o sucederam não continuaram com o mesmo legado deixado pelo mestre, ou seja, a parceria entre tais correntes de pensamentos europeias. Nesta circunstância, a psicanálise, em especial a de linha freudiana, foi perdendo espaço, acusada pelos marxistas como algo que estaria vinculado a uma espécie de ‗charlatanice‘ por alguns críticos mais severos, a saber, aqueles que organizavam a Revista Unter dem Banner, mas também por outros



opositores que faziam a seguinte indagação: a psicanálise é realmente ciência? Ou, ainda melhor, caso a psicanálise seja considerada como ciência como ela se classificaria: como ciência da humanidade ou da natureza?. Depois de todas essas acusações infrutíferas, não restou outro caminho ao legado teórico de Freud ao não ser o desaparecimento quase que totalitário da esfera soviética, inclusive de outros lugares, por um tempo significativo, para dar lugar a outros pensamentos considerados adequados e condizentes com a ordem vigente da época, como os propósitos de Ivan Pavlov e do marxismo. Mas neste último propósito pode-se dizer que isto não fora apenas uma simples teoria, mas a grande teoria que se implantou no Estado da URSS, tanto que fora para muitas pessoas uma religião (ROUANET, 1989). Seguindo essa onda de ataque a psicologia, a mesma nos tempos de Adorno fora o espectro da psicanálise. Entretanto, vale dizer que não fora apenas o legado dos sucessores de Lenin que fizerem severas críticas a tal espectro, haja vista que o âmbito psicológico esteve sempre presente no âmbito filosófico, em especial na história da filosofia moderna como algo que deveria ser superado. Ou seja, entendido como uma área do conhecimento de segunda categoria que, aliás, teria de ser refutada de tal ambiente. Isto tem origem, certamente, no discurso, que a partir, de Kant, sobretudo de suas três críticas, tais como Crítica da razão pura, Crítica da razão prática e Crítica do juízo, ganhou fundamentação para denegrir todo pensamento filosófico que se aproximasse da temática psicológica, acusando-a de ser um modo de proceder que dissimularia a circulação da razão e concebendo esse espectro como se fosse algo composto de elementos que não ofereciam nenhum pressuposto de validade transcendental para o sujeito cognoscível. (SAFATLE, 2008). A parir dessa situação, Vladimir Safatle nos faz refletir sobre estes questionamentos em torno do espectro do psicologismo, enveredando a possibilidade de que: Por trás do psicologismo, pulse a compreensão de que nada que aspira validade incondicional para nós é indissociável de sua gênese. Como se questões de validade e de gênese não pudessem em absoluto ser separadas. Digamos que foi isto que um ―psicólogo‖, Sigmund Freud, compreendeu ao se perguntar sobre a gênese empírica dos sentimentos morais a partir dos conflitos familiares. Tratava-se de mostrar como o sentido daquilo que aspira validade transcendental no domínio da razão prática é indissociável da determinação de sua gênese. Uma determinação que acaba por fornecer as coordenadas gerais para a crítica (SAFATLE, 2008, p. 45-46).

Nesta direção, os pesquisadores frankfurtianos concretizaram seus pressupostos, que é peculiar, neste caso, ao espectro do psicologismo, dando a esta, um valor positivo. Mas podemos nos referir à forma do próprio tratamento de Adorno, a psicanálise, em

especial a de linhagem freudiana, que era um tipo de saber esclarecedor ou, melhor ainda, um ramo do conhecimento que adentra no psiquismo humano para entendê-lo. Não obstante, lembremos que vale a pena observar, no que diz respeito a Adorno, o mesmo se diferencia, neste ponto, sobretudo, de Erich Fromm e de Jürgen Habermas, porque de maneira alguma pretendia fazer algum tipo de enveredação com a clínica psicanalítica. Como se sabe, Adorno conhecia muito bem a psicanálise e sabia do perigo que estava correndo caso fosse utilizar sua filosofia de modo clínico, uma vez que não aceitava os rigores de uma terapia para a ―fortificação do eu‖, haja vista que ―o Eu como representante do princípio de realidade no interior do sistema psíquico é, sobretudo, a instância responsável pelas resistências e pelos processos de recalcamento de exigências pulsionais. Neste sentido, fortalecê-lo seria uma operação indissociável da perpetuação de uma forma de alienação‖ (SAFATLE, 2008, p.51). Assim sendo, conforme aponta Žižek, para melhor compreendermos esse caso, devemos entender que: A dessublimação repressiva é apenas uma maneira possível, no contexto teórico de uma Teoria Crítica da sociedade dizer que no totalitarismo, a Lei Social começa a funcionar como supereu, assume os traços de um imperativo do supereu (ŽIŽEK, 1992, p.31).

Por outro lado, Adorno, talvez, não abra mão totalmente da clínica psicanalítica, por acreditar que ela pode atuar como um importante instrumento de (re) orientação dos sujeitos frente às patologias psicossociais que ocorreram durante as duas grandes guerras mundiais e que poderão a qualquer momento ocorrer novamente. Para tanto, o mesmo autor vai tomar como axioma primordial, o legado freudiano de que o período de base do inconsciente que aconteceria entre o primeiro ao sétimo ano de vida, a saber, que nesse período da infância se constituiria a formação do Eu e da personalidade com seus significados e marcas, tais como, recalques, sentimento de culpa, ressentimentos, traumas, bloqueios, dentre outras marcas. Por estes termos, o filósofo frankfurtiano acreditaria, então, que o mal-estar na cultura (o mal-estar na condição humana) ou a causa de inúmeros problemas (e sintomas) psíquicos que se apresenta na fase adulta se constituiria por uma, determinada, deficiência socioafetiva dos indivíduos. Dirá o mesmo autor: ―na medida em que conforme os ensinamentos da ‗psicanálise‘ e da psicologia profunda, todo caráter, inclusive daqueles que mais tarde praticam crimes, forma-se na primeira infância, a educação que tem por objetivo evitar a repetição precisa se encontrar na primeira infância‖ (ADORNO, 1995, p.122).

Desse modo, pode-se inquirir: o que quer Adorno? Grosso modo, ele quer utilizar a psicanálise de tal modo que ela possa funcionar como uma base teórica, de enorme contribuição, também com a famosa teoria crítica, para se entender os déficits socioculturais, bem como os transtornos psíquicos do coletivo e dos indivíduos, no caso de exemplificação, a personalidade autoritária, desembocadora da catástrofe por excelência, a saber, Auschwitz. Nesse sentido, Joel Whitebook, psicanalista e também estudioso da teoria crítica, aponta que: Além de Hegel, Marx e Weber, Freud tornou-se uma das pedras fundamentais sobre a qual o programa de interdisciplinaridade para uma teoria crítica da sociedade, foi construído. Observou-se várias vezes que os teóricos críticos voltaram-se para a psicanálise para corrigir uma deficiência na teoria marxista, a saber, sua redução do reino psicológico a fatores socioeconômicos (WHITEBOOK, 2008 p.105).

Seguindo essas pegadas, verificamos que a aproximação dos filósofos frankfurtianos, sobretudo de Adorno, com a teoria psicanalítica fora muito mais além que a profunda influência teórica, chegando a ponto de uma extrema intimidade, quer dizer, de conviverem no mesmo espaço de trabalho. Em outras palavras, ―O Instituto de Pesquisa Social e o Instituto Psicanalítico de Frankfurt dividiam o mesmo edifício e davam aulas nas mesmas salas‖ (WHITEBOOK, 2008, p.106). Por fim, podemos acrescentar que o diretor do Instituto de Pesquisa Social, o filósofo Max Horkheimer, era membro do instituto de psicanálise, no qual participara também de seu grupo administrativo. Ainda sobre esse imbricamento, podemos dizer, primeiramente, que toda parceria tem suas limitações e pode chegar ao seu fim. E foi isso que acontecera com Horkheimer. Após voltar (junto com Adorno) dos Estados Unidos, período em que terminou a segunda guerra mundial, Horkheimer deixou de enveredar, de uma maneira ou de outra, pelo espectro da psicanálise, passando a se dedicar a outros objetos de pesquisa. Atitude próxima a essa, se deu nos meados da década de 1970, com a filosofia de Habermas, que ao aceitar inicialmente o espectro da psicanálise, tendo nela um profundo interesse de estudá-la de modo sistemático e metodológico, acreditando que o método psicanalítico poderia ser um recurso fundante para a sua filosofia. Mas no decorrer de sua maturidade intelectual passa a criticá-la e a abandoná-la. Seguindo outro percurso, que se dizia ser totalmente diferente desse e ligado com as seguintes questões teóricas: a) a filosofia do direito – de proximidades com a teoria do liberalismo; b) e a sua famosa teoria da comunicação (WHITEBOOK, 2008).

Sobre esta última questão e conforme a interpretação de Whitebook (2008) de Habermas, a filosofia habermasiana conceberia o estudo psicanalítico como um saber voltado meramente para uma filosofia da comunicação, fato que contribui para sua criação da teoria do agir comunicativo, mas também para seu distanciamento dos postulados freudianos, no qual a psicanálise se tornou desnecessária. Habermas com sua visão progressista-racionalista da modernidade (uma descrença do socialismo e uma cautela com as questões de esquerda, fazia o mesmo defender os pressuposto da democracia liberal), e em contraposição a Adorno, utilizaria em sua filosofia um modo de conceber o Eu psicanalítico como positivo. Assim, tal modo de filosofar (através de sua filosofia da ação comunicativa) faria, agora, uso constante por outro campo do conhecimento, o da psicologia cognitiva de Kohlberg e de Piaget. Mas diferentemente dessa concepção, Adorno deu continuidade aos estudos psicanalíticos. A propósito, cabe observar que, na obra Dialética do Esclarecimento Adorno nos mostra um uso bastante significativo de diversos conceitos da teoria psicanalítica, como, aliás, acontece em outros trabalhos - como no texto Personalidade autoritária e no seu último curso, Introdução à Sociologia, de 1968, em que ministrou aulas sobre Freud e Jung. Em tal curso supracitado, Adorno em sua 12ª aula em 25/06/1968 trabalhava temas relacionados à delimitação da sociologia com outras disciplinas e comenta sobre o interesse de no ano posterior ministrar aulas a respeito de uma corrente de pensamento que se tornara uma espécie de fenômeno nos anos de 1960 na França, o estruturalismo. Ele tinha como meta abordar os estudos antropológicos de Lévi-Strauss e da psicanálise de Lacan (ADORNO, 2008). Dirá o filósofo frankfurtiano: Espero poder oferecer um seminário sobre o estruturalismo – esse estruturalismo toma seu material essencialmente e por motivos plenamente justicáveis pelos temas de sua formação teórica, em primeiro lugar da antropologia e, além disso, de orientações específicas da pesquisa da linguagem, em especial a fonológica, tal como representada em Viena sobretudo por Trubetzkoi (ADORNO, 2008, p. 250)

No que tange a fonologia e a linguística em geral, Lacan autor já citado por Adorno, aborda em seu trabalho psicanalítico questões desse gênero. Segundo a interpretação de Žižek, o psicanalista francês faz certo retorno a Freud, isto é, mostra com o apoio da linguagem, da teoria matemática e de inúmeros conceitos filosóficos alguns elementos que não foram explicitados na teoria freudiana, no qual a tese lacaniana consiste em mostrar que o psicanalista vienense ―não estava ciente da noção de fala implicada por sua própria teoria e prática, e que só podemos desenvolver essa

noção se nos referirmos à linguística saussuriana, à teoria dos atos de fala e à dialética hegeliana do reconhecimento‖ (ŽIŽEK, 2008, p. 9 -10). Voltando ao filósofo frankfurtiano, vale a pena afirmar que o mesmo só tomou conhecimento de Lacan já no fim de sua carreira. No entanto, de acordo com Safatle ―podemos imaginar que a teoria lacaniana do Eu como princípio de organização psíquica constituída a partir da introjeção da imagem do outro e da posterior denegação de tal processo poderia servir a Adorno‖ (ADORNO, 2008, p.53). Tanto que Whitebook promove de maneira didática e sistemática aproximações entre ambos pensadores, mas especificamente sobre a concepção do Eu, como pode ser visto de três ângulos: 1) A unidade do Eu é rígida, compulsiva e coercitiva; 2) O Eu é uma estrutura narcísica (paranóica) na medida em que ele só pode apreender o objeto através de sua própria reflexão (ou projeção), ; 3) O Eu rigidamente integrado é profundamente implicado com a vontade de poder e com a dominação da natureza (WHITEBOOK,1995, p.133 apud SAFATLE, 2008, p.53 -54).

Tais aproximações são de suma importância para os setores da teoria psicanalítica e da filosofia, apesar de elas não passarem de uma analogia que poderia ser amplamente explorada pelos pensadores europeus mencionados: o psicanalista parisiense e o filósofo frankfurtiano. Não obstante, o que pode ser considerado como prático e importante a este contexto; poderíamos dizer, então, que a perspectiva adorniana encontra é uma legitimação suplementar nas teorias da constituição da função do Eu do psicanalista francês Jacques Lacan (SAFATLE, 2008, p.53). Mas vale a pena lembrar, ao menos neste ponto, que o certo é para Adorno construir sua interpretação psicanalítica à teoria crítica teve que se apoiar mesmo no legado freudiano, como, por exemplo, nas concepções de sujeito e de ontogênese, uma vez que criticava o modo de contenção majoritário da identidade que, por sua vez, apareceria como algo vinculado à noção do EU. Por fim, só lembramos que Adorno desde cedo já se apropriava da noção freudiana em seus textos. Isto acontecera precocemente, pois em sua tese de habilitação, de 1928, para o cargo de professor da Universidade de Frankfurt, intitulada ―O conceito de inconsciente na teoria transcendental da mente‖. Mas por infelicidade do filósofo frankfurtiano, sua tese não fora aceita pelo seu orientador, o filósofo Hans Cornelius. Entretanto, Adorno não desistiu de realizar sua habilitação para professor de filosofia na Universidade de Frankfurt, tanto que procurou tentar novamente, mas agora com outro orientador, o teólogo Paul Tillich, e com outra tese que fora chamado de Kierkergaard: construção

do estético, pois foi desta maneira que o mesmo autor conseguiu sua aprovação em tal Universidade em 1931. Grosso modo, esse trabalho que foi recusado por tal filósofo procurava encontrar as proximidades entre o inconsciente de Freud com a categoria de sujeito transcendental de Kant em que se buscava destacar ainda as ―implicações cognitivas da psicanálise que extrai conteúdo do inconsciente para serem submetidos a análise racional‖ (ZUIN; RAMOS-DE-OLIVEIRA; PUCCI, 2008, p. 26). Isto fora também concebido na Dialética do Esclarecimento, mas especificamente no capítulo ―Excurso I; Ulisses e o esclarecimento‖ quando o filósofo nos apresenta sua interpretação da psicanálise, relatando como acontecera o processo do programa da civilização ocidental exemplificando as lendárias viagens e as práticas de abnegação de Ulisses. Nesse capítulo, Adorno busca fundamentar sua ―teoria psicanalista‖, fazendo uma análise comparativa entre a Odisséia de Homero e a relação intrínseca da internalização de Nietzsche e Freud. Seguindo os passos de Whitebook, sobretudo de sua interpretação sobre a Dialética do Esclarecimento, Ulisses (o grande ícone da epopeia grega) através de sua astúcia e de seu sacrifício para os deuses chega a um novo prisma para a razão mitológica, quer dizer, para o ordenamento da concepção de igual valor (teoria da equivalência do capital), representando, assim, o aparecimento de um processo encantador de uma troca racionalizada (WHITEBOOK, 2008). Nesta perspectiva, cabe ressaltar que a astúcia de Ulisses simboliza uma espécie: Transitória, em algum momento entre o mito e o esclarecimento, pois se o ego incipiente havia se desenvolvido até o ponto a partir do qual ele podia fazer seu cálculo legal. Ele calculou que, mantendo a desordem de sua natureza interna sob o controle de um ego unificado – isto é, reprimindo sua vida inconsciente – instintiva -, poderia ludibriar a lei da equivalência e sobreviver aos inúmeros perigos que o aguardavam em sua jornada de volta para o campo casa. A tarefa principal do ego, a autopreservação, só pode ser alcançada ao manter-se no curso original. Além disso, cada ato adicional de renúncia contribui para a realidade da consolidação e da força do ego, transformando-o ainda mais num sujeito racional qua estratégico, que pode manipular o mundo externo. E na medida em que a natureza externa é reificada, esta é transformada em uma matéria apropriada de dominação (WHITEBOOK, 2008, p. 109).

Isto a ponto de Adorno perceber que teria já nas práticas astuciosas do grande personagem da lendária Odisséia de Homero o princípio do processo de esclarecimento da racionalidade ocidental. É nesse sentido que devemos compreender que, para o mesmo filósofo, tal astúcia foi o primeiro ponto para a superação do pensamento mitológico, chegando a ser o anímico a priori da racionalidade técnica instrumental dominadora da natureza interna e externa. Ademais, o filósofo Julian Roberts relata que

Adorno percebe que na Odisséia já remeteria de modo contrário a um desejo nazista de aproximar a cultura grega, pré-helênica, que tinha como uma de suas características os atos heróicos dos mitos, com aqueles que detêm o controle sobre a economia e a natureza e, consequentemente, sobre os homens (ROBERTS, 2008). Nesse sentido, Adorno faz a seguinte ponderação, entendendo que o processo de individuação contemporâneo está constantemente ameaçado por padrões de condutas do tipo nazifascista e de seu horror sadomasoquista que produziu a mortes de milhões de pessoas na Segunda Guerra Mundial, em especial nos campos de concentração. Por outro lado, ―só o simples fato de citar números já é humanamente indigno, quanto mais discutir quantidades assassinadas de uma maneira mais planejadas‖ (ADORNO, 1995, p.120). É nesse horizonte que a esfera educacional torna-se significativa, porque tem como axioma primordial evitar que esse horror barbaresco volte a se repetir. Pois somente dessa forma ela poderá apresentar novos caminhos para a sociedade capitalista ocidental, uma vez que vai de encontro às determinações do ―politicamente correto‖. Trata-se de atribuir ao aspecto educacional uma função que resgate elementos críticoformativos do ser humano, isto é, forneça mecanismos para a efetivação do pensamento crítico, contribuindo para o surgimento e a manutenção de indivíduos autônomos, capazes de pensar, de julgar e de decidir por si mesmos, contrariamente a uma ―danificação dos sentidos e da vida‖. Aqui, essa danificação não se refere a nenhuma lesão ou problema mental ou biológico do homem, mas a um déficit no desenvolvimento sociopsicológico dos indivíduos, que provocou a alienação neles. Ou seja, gerou a falta de capacidade para decidir suas ações, o que resultou em prejuízo para a comunidade (o coletivo). Com isso, as pessoas passaram a se comportar de modo infantilizado, não se mantendo capazes de suportar a distância temporal entre seu desejo e a satisfação deste. Assim, os indivíduos passaram a buscar, a todo preço, saciar, imediatamente, seus desejos, embora nunca satisfeitos por completo. Ainda no que se refere à questão educacional, cabe aqui destacar uma advertência desse filósofo: não deve ser atribuída à educação (especialmente à escola) a responsabilidade para solucionar as contradições do sistema capitalista, pois ela, por si só, não consegue dar conta dos problemas deste sistema socioeconômico, que, por sinal, são inúmeros. Isto porque a educação, assim como qualquer outra atividade, como o esporte, a cultura ou a arte, está sujeita ao conjunto infernal de atrocidades do capitalismo (ADORNO, 1995). Segundo Adorno, a resposta para um encaminhamento

mais promissor da atividade educacional inicia-se com o descortinar dos pressupostos que dificultam a formação cultural crítica e criativa, ou melhor, de tudo aquilo que causa alguma danificação a um educar comprometido com a reflexão e autorreflexão crítica das pessoas. A propósito, Wolfgang Leo Maar, observa o seguinte a respeito da reflexão de Adorno no debate radiofônico ―Educação - para quê?‖, publicado em Educação e emancipação: O mundo dos homens é organizado de determinada maneira e é preciso decifrar as condições e os condicionantes que causam seu modo determinado de ser. A essência não está ―atrás‖ da aparência, mas é a reflexão da aparência acerca de seu modo de aparecer de determinado modo, o arranjo determinado do mundo, a sociedade que é sua própria ideologia. A emancipação como ―conscientização‖ é a reflexão racional pela qual o que parece ordem natural ―essencial‖ na sociedade cultural, decifra-se como ordem socialmente determinada em dadas condições da produção real efetiva da sociedade (MAAR, 2003, p. 472).

Portanto, as determinações sociais da sociedade tecnicamente administrada estão nas raízes da barbárie, ou seja, do surgimento e da reprodução de inúmeras mazelas desta sociedade. Tendo por base este entendimento, é que Adorno vai nos dizer que o primeiro compromisso da educação e de todos que estão envolvidos com ela ― pedagogos, filósofos, políticos, psicólogos, entre outros profissionais; enfim, todos aqueles que, de alguma maneira deixam suas contribuições ou se utilizam do processo educacional ― precisam evitar que Auschwitz, o tormento burocraticamente administrado e cientificamente planejado, volte a ocorrer (ADORNO, 1995). Isto porque Auschwitz foi um acontecimento extremamente trágico, ou seja, foi o maior campo de concentração (e de extermínio) nazista que operou na cidade de Oswiecim, na Polônia. Aliás, esse fato passou a ser a imagem do Holocausto. Hoje, ele é o meio (simbólico) utilizado para enfatizar os aspectos traumáticos e catastróficos por excelência na Europa, entre o final da década de 1930 e o começo da década de 1940 (SELIGMANN-SILVA, 2003). Vale ressaltar que esse acontecimento provocou e ainda provoca graves lesões à humanidade, porque se trata de um problema que afetou a todos e precisa ser esclarecido e solucionado socialmente. Os horrores resultaram em extermínios, exílios, torturas, discriminações étnicas e racistas, mortes trágicas e violentas, danos materiais e imateriais e desastres econômicos e políticos. No entanto, faz-se necessário esclarecer que os prejuízos que Auschwitz deixou não se restringem às tragédias ocorridas e às dores físicas ou psicológicas infligidas. Foram muito mais além, pelo simples motivo de um elevado número de pessoas terem sido acometidas pelo desprezo, pela falta de

autoestima e pelo desaparecimento de sua memória ou de sua recordação. Como consequência, esse problema, por excelência, se reproduz na falta de memória ― ou em um lapso de memória ― para estes traumáticos processos históricos da humanidade, resultando em esquecimento dos males gerados pelas práticas patológicas do nazismo. É por isso que Adorno (1995) vai refletir que um dos objetivos da sociedade industrial ocidental é exatamente eliminar o aspecto da memória, da lembrança e do tempo. Conforme os argumentos da sociedade capitalista europeia, esses aspectos designam significados dolorosos, pois incomodam os que praticaram e/ou participaram direta ou indiretamente das atrocidades nazistas. E, portanto, precisam ser excluídas. [...] Do mesmo modo como a racionalização progressiva dos procedimentos da produção industrial elimina junto aos outros restos de atividade artesanal também categorias como a da aprendizagem, ou seja, do tempo de aquisição da experiência no ofício. Quando a humanidade se aliena da memória, esgotando-se sem fôlego na adaptação ao existente, nisto reflete-se uma lei objetiva de desenvolvimento (ADORNO, 1995, p. 33).

No debate radiofônico ―Educação após Auschwitz‖, Adorno (1995) faz a seguinte observação, levando em conta as constelações conceituais freudianas para entender o processo civilizatório, afirmando que o psicanalista vienense estava correto ao dizer que tal processo remeteria tão-somente seu oposto, a saber, uma anti-civilização, aparecendo exponencialmente de modo insuportável no seio do capitalismo contemporâneo. O filósofo frankfurtiano acrescenta a respeito de Freud: Juntamente no que diz respeito a Auschwitz, os seus ensaios O mal-estar na cultura e Psicologia de massas e Análise do eu mereciam a mais ampla divulgação. Se a barbárie encontra-se no próprio princípio civilizatório, então pretender se opor a isso tem algo de desesperador (ADORNO, 1995, p. 120).

Na concepção de Adorno, se este problema não for profunda e amplamente debatido e permanentemente tornado público, ele pode fazer recrudescer a barbárie. No que tange ao aspecto da educação, em especial na escola, deu-se pouca importância ao tratamento dessa grande barbárie, sendo que o aspecto educacional distanciou-se, cada vez mais, dessa questão. Por preferir tal questão, a educação vem se apresentando como uma mera adequação do sujeito a ―rede simbólica‖ petrificada e alienante, ou seja, uma ordem formal complexa e, como diria Althusser (1992), amparada pelos Aparelhos Ideológicos de Estado – (AIE), Escola, Universidade, Rádio, Religião, Imprensa e principalmente a Família, uma vez que ela representa uma instância de socialização e de educação primária dos indivíduos que, através de suas estruturas institucionais,

mistificam a realidade e o esclarecimento humano quando legitimam suas posições homogeneizantes. Para deixar esta argumentação ainda mais consistente, Adorno (1985) faz referência a Kant da ontologia do presente, quer dizer, ao célebre artigo, de 1784, Was ist Aufklärung (O que é esclarecimento?), afirmando que os indivíduos não estão correspondendo com a maioridade do pensamento. Ou seja, por estarem presos a uma situação de menoridade culpável, segundo a qual esses encontram-se presos na impossibilidade do exercício de autonomia, ficando refém do pensamento de outrem (cultura, família, política, religião, filosofia e a ciência). A situação de boa parte dos indivíduos, segundo os argumentos kantianos e adornianos, se encontra sob os códigos da menoridade, mas essa forma necessita ser superada. As pessoas precisam urgentemente sair da acomodação e do que lhes são dados e tidos como verdadeiros, entendendo que tudo seja natural e que a realidade social não poderia ser contrária do que é para conseguirem em suas vidas. Conforme Kant, é preciso: Ter a coragem de usar o seu próprio entendimento é, portanto, o motto do Esclarecimento. Preguiça e covardia são as razões de a maior parte da humanidade, de bom grado, viver como menor durante toda a sua vida, mesmo depois de a natureza há muito tempo tê-la livrado de guias externos. Preguiça e covardia demonstram porque é tão fácil para alguns se manterem como tutores (KANT, 1985, p. 101).

Nas palavras do filósofo frankfurtiano, o aspecto da educação não teve a coragem de superar a menoridade, tendo em vista que ela não cumpriu, por exemplo, o que, por sua vez, havia de mais significativo no plano socioeducacional: ajudar no processo de resistência e de desbarbarização da humanidade. A prova disso é a pouca consciência dos indivíduos, ou melhor, o pequeno número de pessoas informadas e realmente conscientes sobre as terríveis monstruosidades cometidas em Auschwitz, e isto em uma sociedade considerada esclarecida (ADORNO, 1995).

Referências ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. _________. Educação e emancipação. Tradução de Wolfgang Leo Maar. São Paulo: Paz e Terra, 1995.

_________. Introdução à Sociologia. São Paulo: UNESP, 2008. ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. Rio de Janeiro, Graal, 1992. ASSOUN, Paul-Laurent. Escola de Frankfurt. São Paulo: Editora Ática, 2001. CESAROTTO, Oscar e LEITE, Maria Peter de Souza. O que é psicanálise? São Paulo, Brasiliense, 1987. KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: Que é esclarecimento? (Aufklärung). In: Textos Seletos. Petrópolis; Vozes, 1985, p.101 – 111. KASTRUP, Virgínia. A invenção de si e do mundo: uma introdução do tempo e do coletivo nos estudos da cognição. São Paulo: Papirus, 1999. LACAN, Jacques. Seminário, livro 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. MAAR, Wolfgang Leo. Adorno, semiformação e educação. Campinas, SP: Educ.Soc., vol.24, n.83, p.459-476, agosto 2003. Disponível em < http: // www.cedes.unicamp.br>. Acesso em: 20.01.2010. ROBERTS, Julian. A dialética do esclarecimento. In: Teoria Crítica. (org.). RUSH, Fred. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2008. ROUANET, Sergio Paulo. Teoria Crítica e Psicanálise. Rio de Janeiro:Tempo Brasileiro,1989. SAFATLE, Vladimir. Fetichismo: colonizar o outro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. _________. Sobre a gênese psicológica do transcendental: Adorno entre Freud e Kant. In: A filosofia após Freud. (org.). MANZI, Ronaldo. São Paulo: Humanitas, 2008. SELIGMANN-SILVA, Márcio. Adorno. São Paulo, Publi Folha, 2003. WHITEBOOK, Joel. A união de Marx e Freud: a teoria crítica e a psicanálise. In: Teoria crítica (org.). RUSH, Fred. Aparecida, SP: Ideias e Letras, 2008. ŽIŽEK, Slavoj. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. RJ, Jorge Zahar, 1992. _________. Como ler Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. ZUIN, Antônio; RAMOS-DE-OLIVEIRA, Newton; PUCCI, Bruno. Adorno: o poder educativo do pensamento crítico. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

Dialética Negativa: Formação e Resistência em Theodor Adorno

Solon Sales Lemos COLOCAR E-MAIL DO SOLON A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação (ADORNO, 1995, p. 119).

A partir de tal premissa é possível delinear, de modo geral, a proposta de educação e método em Adorno, uma vez que, dificilmente haverá articulação mais precisa entre ética e educação. Partindo do pressuposto de que a educação, abarcada pela indústria cultural, tem levado a semiformação e que isto resultou no "assassinato administrado de milhões de pessoas inocentes‖ (Adorno, 1995, p.31), urge a necessidade de uma reforma nos processos educativos e formativos dos sujeitos. A proposta de que se inicie uma mudança através da formação e resistência, iniciada logo nos primeiros anos da escola, encontra sua justificação nas evidências factuais de que os elementos presentes antes e durante Auschwitz permanecem latentes na cultura ocidental. Como identifica Adorno (1995): O nazismo sobrevive, e continuamos sem saber se o faz apenas como fantasma daquilo que foi tão monstruoso a ponto de não sucumbir à própria morte, ou se a disposição pelo indizível continua presente nos homens bem como nas condições que o cercam (ADORNO, 1995, p. p.29).

Para que o horror dos campos de concentração nazista não se repita, Adorno retoma o projeto Kantiano de formação para a autonomia, de superação da sua autoinculpável menoridade, da qual, segundo o próprio Kant: ―os homens tem que se libertar‖ (Adorno, 1971, p.141) e propõe para além da proposta kantiana o recurso psicanalítico de uma elaboração do passado. Como elaboração do passado Adorno (1995) entende que: (...) a elaboração do passado não significa elaborá-lo a sério, rompendo seu encanto por meio de uma consciência clara. Mas o que se pretende, ao contrário, é encerrar a questão do passado, se possível inclusive riscando-o da memória (ADORNO, 1995, p. 29).



Graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestrando em Educação Brasileira pela FACED/UFC na Linha: Filosofia e Sociologia da Educação, no eixo temático: Filosofia, Política e Educação.

Na elaboração do passado como continuidade do processo formativo, o filósofo aponta para a importância de libertar-se, principalmente, dos elementos que conduziram ao terror nazista e que persistem ainda hoje. Como justificativa a libertar-se do passado, Adorno (1995) responde que: O desejo de libertar-se do passado justifica-se: não é possível viver à sua sombra e o terror não tem fim quando culpa e violência precisa ser paga com culpa e violência; e não se justifica porque o passado de que se quer escapar ainda permanece muito vivo (ADORNO, 1995, p. p.29).

A existência dos pressupostos sociais e objetivos que geraram o facismo, como aponta Adorno (1995), desvirtuou esta elaboração do passado em ―esquecimento vazio e frio‖ (p.43), que encontrou em uma sociedade não-emancipada o terreno fértil para sua perpetuação. Elaborar o passado seria não somente uma forma de desvendar os mecanismos psicológicos, que levaram a graus tão elevados de selvageria e anticivilidade e que culminaram em Auschwitz, como também levaria o sujeito, agora ciente de sua condição de submissão aos imperativos do sistema, a oferecer resistência à sociedade administrada. Para que se inicie uma nova postura de resistência que parta dos indivíduos e alcance a sociedade como um todo, levando-a à democracia de fato, alguns pontos ainda referentes à formação do sujeito e à força que a realidade objetiva concreta exerce sobre o indivíduo, devem ser considerados. As etapas de formação do sujeito são divididas por Adorno (1995) em dois momentos principais: a adaptação e a autonomia. Influenciado pelo forte apelo ao darwinismo social – embora o próprio Adorno entenda-o como ―extraordinariamente perigoso, porque implica de certa maneira reduzir os homens ao estado de seres naturais (Adorno, 1995, p. 165) –, imperioso em finais do século XIX e início do século XX, Adorno coloca a adaptação enquanto adequação ao meio, como fator fundamental e sem o qual não seria possível desenvolver-se, uma vez que a imposição objetiva da realidade sócio-econômica continua a se sobrepor à vontade dos indivíduos forçando-os a adaptarem-se ao meio sem questionamentos ou mesmo sem uma reflexão crítica da realidade, como cita o próprio Adorno (1995): Se as pessoas querem viver, nada lhes resta se não se adaptar à situação existente, se conformar; precisam abrir mão daquela subjetividade autônoma a que remete a idéia de democracia; conseguem sobreviver apenas na medida em que abdicam seu próprio eu.(...) A necessidade de uma tal adaptação, da identificação com o existente, com o dado, com o poder enquanto tal, gera o potencial totalitário (ADORNO, 1995, p. 43).

Para além da fase de adaptação, Adorno enfatiza a autonomia como antítese a esse momento, necessário, porém, altamente nocivo à elaboração de uma subjetividade crítica e emancipada - o próprio Adorno chega a afirmar que mesmo o processo de adaptação pode ser desconsiderado tendo em vista a força com que a realidade objetiva se impõe ao indivíduo na organização sócio-econômica vigente.

Nas palavras de

Adorno (1995): (...) a realidade se tornou tão poderosa que se impõe desde o início aos homens -, de forma que este processo de adaptação seria realizado hoje de um modo antes automático. A educação por meio da família, na medida em que é consciente, por meio da escola, da universidade teria neste momento de conformismo onipresente muito mais a tarefa de fortalecer a resistência do que de fortalecer a adaptação (ADORNO, 1995, p. 144).

No instante em que a tirania do real se impõe ao sujeito, logo a partir dos primeiros anos de vida e que a formação para a autonomia deve assumir o papel central na educação, a questão do método se torna inevitável. Embora a importância da passagem da heteronomia à autonomia e seu método, sejam um tema recorrente à filosofia como também à educação, Adorno parte da proposta de esclarecimento kantiana para lançar luz sobre a questão. No texto Resposta a pergunta: Que é esclarecimento? Kant (1784) aponta para as imposições heterônomas do real e seus riscos: Ouço, agora, porém, de todos os lados: não raciocineis! O oficial diz: não raciocineis, mas exercitai-vos! O financista exclama: não raciocineis, mas pagai! O sacerdote proclama: não raciocineis, mas crede! (Um único senhor no mundo diz: raciocinai, tanto quanto quiserdes, e sobre o que quiserdes, mas obedecei!) Eis aqui por toda parte a limitação da liberdade (ADORNO, 1995, p. 2).

A força com que a realidade se coloca, e as nuances de suas formas, ora sedutoras, ora violentas, devem ser combatidas com consciências críticas, de formação consistente e capazes de impor resistência ao capitalismo industrial tardio. A relevância do ensino de filosofia, por exemplo, e a busca do seu método se insere no sentido de estar para além de uma disciplina específica, formando intelectuais capazes de pensar por si mesmos, desenvolvendo a possibilidade de visualização do todo sistêmico que estrutura a sociedade no capitalismo tardio e entende seus mecanismos. Como explicita Adorno (1995): (...) se alguém é ou não um intelectual, esta conclusão se manifesta, sobretudo na relação com seu próprio trabalho e com o todo social de que esta relação forma uma parcela. Aliás, é essa relação, e não a ocupação com disciplinas específicas, tais como teoria do conhecimento, ética ou até mesmo

história da filosofia, que constitui a essência da filosofia (ADORNO, 1995, p. 43).

Na perspectiva adorniana, a filosofia deve chamar para si a responsabilidade que lhe foi subtraída em tempos de sacralização da ciência e seus especialistas, a fim de se constituir como área do conhecimento capaz de sistematizar de modo universal os conhecimentos concedendo-lhe a devida importância e responsabilidade na organização do todo, teórico, que se reverte em uma práxis transformadora através da resistência consciente ao sistema sócio-econômico vigente. Adorno (1995) deixa claro o papel que a filosofia deve ocupar ao afirmar que: O conceito enfático de filosofia que o movimento do idealismo alemão almejava quando se encontrava em conformidade com o espírito da época não acrescentava a filosofia como uma disciplina a mais às ciências, mas procurava-a na autoconscientização viva do espírito. Mas, na medida em que o processo da especialização, que reduziu essa idéia de filosofia à mera frase de efeito em discurso dominical, é considerado efetivamente como algo ruim, como expressão da reificação (Verdinglichung) do espírito, experimentada pelo mesmo com a sociedade mercantil progressivamente reificada, então a filosofia pode ser lida como sendo o potencial de resistência por meio do próprio pensamento que o indivíduo opõe à apropriação parva de conhecimentos, inclusive as chamadas filosofias profissionais (ADORNO, 1995, p. 55-56).

Um modelo de formação que agregue de forma séria e comprometida o ensino de filosofia, no sentido de sistematização e reflexão sobre a totalidade objetiva do real, tende a levar o sujeito ao desenvolvimento de uma consciência autônoma. Nas palavras de Adorno (1995): ―o único poder efetivo contra o princípio de Aschwitz seria autonomia, para usar uma expressão kantiana; o poder para a reflexão, a autodeterminação, a não-participação‖ (p.125). Uma vez que, no processo formativo, o desenvolvimento da autonomia prevalece sobre a adaptação, buscar-se-á a não-participação, a resistência do sujeito frente às forças coercitivas da sociedade administrada. Uma educação para a resistência só será possível com uma ―educação para a experiência‖ (Adorno, 1995, p. 151); educação para a experiência é o mesmo que educação para emancipação; experiência esta, para além das simples formas de adequação ao real. Adorno (1995) afirma que ―pensar é o mesmo que fazer experiências intelectuais‖ (p.151) e estas experiências intelectuais se convertem na elaboração do vivido e do que pode vir a ser, possibilitando, portanto, a não-adaptação à pressão do mundo administrado. É na resistência à sociedade administrada por meio da negação, que reside o método educativo em Adorno. Uma vez emancipado, o indivíduo poderá, por força da

consciência esclarecida, resistir ao processo semiformativo imposto pela indústria cultural. O processo dialético, como meio para elevar-se da mera adaptação ao conceito, já há muito exercitado, desde Platão a Hegel, encontra em Adorno uma nova abordagem. O filósofo frankfurtiano, batiza seu método de dialética negativa. Como dialética, Adorno (2009) entende a ―consciência consequente da não-identidade. Ela não assume antecipadamente um ponto de vista‖, (p.13) ela, a dialética, é contradição, é movimento. Segundo Adorno (2009): (...) a dialética não deve emudecer diante (...) da repreensão com ela conectada referente à sua superfluidade, à arbitrariedade de um método aplicado de fora. Seu nome não diz inicialmente senão que os objetos não se dissolvem em seus conceitos, que esses conceitos entram por fim em contradição com a norma tradicional da adaequatio (ADORNO, 2009, p. 12).

A partir do método da não-identificação, Adorno pretende opor-se e fazer opor os sujeitos esclarecidos à sociedade dada, sem, no entanto, refugiar-se através de seu método em filosofias prontas, ontologias fundantes ou conceitos vazios. A Filosofia ocidental, segundo Adorno (2009), não conseguiu ―cumprir a promessa de coincidir com a realidade ou ao menos de permanecer imediatamente diante de sua produção‖, (p.11), dessa forma ―se viu obrigada a criticar a si mesma sem piedade‖ (Idem). A Filosofia da maneira como está, reduzida a uma ciência particular, por imposição das próprias ciências particulares, não dá conta da realidade e muito menos é capaz de transformá-la. Como nos inquire Adorno (2009), ―seria necessário perguntar se e como, depois do colapso da filosofia hegeliana, ela ainda é efetivamente possível, tal como Kant investigou a possibilidade da metafísica depois da crítica ao racionalismo‖ (p. 12). A ação de negar, a contradição, é o método, o meio proposto por Adorno para que a filosofia retome o seu lugar e a sua relevância, especialmente no tocante à formação humana, em uma sociedade que se encontra desmedidamente dilatada e que, por meio dessa ação de negar, conduzir-se-á o indivíduo á maioridade. A contradição, segundo o próprio Adorno (2009): (...) não se confunde com aquilo em que o idealismo absoluto de Hegel precisou inevitavelmente transfigurá-la: ela não é nenhuma essência heraclítica. Ela é o indício da não-verdade da identidade, da dissolução sem resíduos daquilo que é concebido no conceito (ADORNO, 1995, p. 12).

A atitude da não-identificação como energia gerada pela resistência à sociedade administrada, gerará força para que o sujeito atue contra os apelos da indústria cultural, que vem, inclusive, abocanhando todas as formas de teorias, reduzindo-as a simples opiniões concorrentes no meio de um turbilhão de outras teorias, homogeneizando assim o próprio conhecimento e subtraindo-lhe o que lhe é mais próprio, a sua capacidade de negar. A resistência à força da adequação, a capacidade de não identificar-se com o que é imposto, negando assim qualquer possibilidade de sistematização, esquemas, e, portanto de finitude, que reside na ilusão do conceito, é o único télos que resta à filosofia e não por isso a sua menor tarefa diante de uma civilização semi-formada, que perpetua de diversas formas o terror dos campos de concentração nazistas. A formação de sujeitos autônomos que possam, por si mesmos, negar a mediocridade de uma padronização oriunda de um mundo administrado, que consome tal qual um buraco negro, a si mesmo, só será possível em Adorno através do antisistema, da não aceitação da condição de seres humanos estranhos a si mesmos e a tudo que ele mesmo produz. A superação da menoridade como libertação humana, dos sistemas e das máquinas da sociedade capitalista industrial tardia, só virá quando, de fato, ―pensar for negar, resistir ao que lhe é imposto‖ (ADORNO, 2009, p. 25). Referências ADORNO, Theodor, W. Dialética Negativa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. ________, Theodor, W. Educação e Emancipação. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1995. KANT, Immanuel. Resposta à Pergunta: www.ufsm.br/gpforma/2senafe/PDF/b47.pdf.

Que

é

―Esclarecimento‖?1784.

Prática Docente, Reflexão Filosófica e Formação em Theodor Adorno Maria Socorro Gomes

Introdução A filosofia Contemporânea tem como uma das características principais colocar em questão o pensamento moderno que julgava o homem centrado, como pura racionalidade. Um homem, que em busca de seus objetivos era capaz de promover mudanças radicais no seu meio com o uso da razão. Foi essa crítica à racionalidade instrumentalizada que permitiu aos vários filósofos da contemporaneidade julgar que não era o homem o que se pensava ele ser: nele existia muito mais um desconhecido do que até então se descobriu dele. Com Theodor Adorno, um dos representantes da Escola de Frankfurt, aparece uma análise da racionalidade e dos aspectos psíquicos que se pretende nesse trabalho, a partir dos textos A Filosofia e os Professores, que faz parte da obra Educação e Emancipação e do Excurso I: Ulisses ou Mito e Esclarecimento da obra Dialética do Esclarecimento: Fragmentos Filosóficos, esclarecer a preocupação de Adorno com as ações humanas que culminou numa das piores atrocidades já ocorridas no mundo: o nazismo. Com uma análise dessa questão ele tentou fazer compreender que ainda é possível, embora muito lentamente, uma transformação na sociedade, uma educação para emancipação. Para ele, a atenção da educação deve estar voltada para a educação infantil e a ela devem se dirigir os cuidados essenciais à formação. Em consequência disso, brotam as inquietações com relação aos professores e com a sua prática. Sobre esse assunto, merecem destaque os raciocínios que Adorno desenvolve na obra Educação e Emancipação a respeito da concepção de educação fazendo críticas à sociedade administrada. Sua principal consideração acerca da prática docente, especificamente do professor de filosofia, é de como a educação como formação pode se tornar emancipatória.



Graduada em Filosofia, especialista em Estudos Clássicos e mestranda em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: [email protected]

Wolfgang Leo Maar declara que a atitude de Adorno é ―como num diálogo com Wittgenstein, procurando evitar o emudecimento do que aparentemente não pode se expressar, teimando em dizer o indizível.‖ (ADORNO, pág. 12), ou seja, enquanto para Wittgenstein aquilo que ultrapassa a esfera da experiência não se pode falar, em Adorno é impossível calar, pois se trata de um autor que ―... jogando objetos contra seus conceitos...‖ (ADORNO, pág.14) procura fugir dos ditames do pensamento enrijecido. No pensamento de Adorno, há a relação entre forma e conteúdo e intervenções que permitem transmitir seu pensamento filosófico e social. A teoria social é uma abordagem formativa com uma reflexão educacional de focalização política.

O

problema que o filósofo apresenta é ―o confronto com as formas sociais que se sobrepõem às soluções ‗racionais‘ e cujo ―problema maior é julgar-se esclarecido sem sê-lo, sem dar-se conta da falsidade de sua própria condição.‖ (ADORNO, pág.15) Na obra Dialética do Esclarecimento está a crítica de Adorno à racionalidade instrumentalizada e onde defende o desenvolvimento científico como não capaz de conduzir à emancipação por estar vinculado a um determinado tipo de formação social que se estende ao plano educacional. Como Kant, Adorno se detém na formação educacional pelo esclarecimento como saída da menoridade, mas assim como a Ilustração esta se tornou problemática no final do século das Luzes e a formação humana também seguiu pelo mesmo caminho. Dessa maneira, o caminho percorrido por Adorno para sua crítica é o da crise da formação e da educação frente à dinâmica do trabalho social que produz e reproduz determinada sociedade. Ela não está mais encaminhada a uma emancipação, mas sim a servidão e uma dominação que se estabelece como ―referência para a modernidade enquanto produção social apreendida num modelo de totalidade conjunta de base econômica e de estrutura política e cultural‖ (ADORNO, pág. 16). Para Leo Maar, a Escola de Frankfurt reflete exatamente a preocupação do trabalho formador cuja principal questão é a articulação entre o processo de trabalho social e processo de formação cultural. Adorno centrou sua atenção na crise do modelo de articulação entre trabalho e formação e aprofundou a forma da luta de classes. Não deu à cultura vigente, à ―consciência da época nenhum papel revolucionário‖ (ADORNO, 18). Com Walter Benjamin aprendera ―que a crise da formação cultural, a deficiência da experiência cultural continuada, constitui a característica da modernidade, colocando em xeque assim a noção de progresso.‖ (ADORNO, pág.18)

Dessa forma, Adorno questiona a formação a partir de uma determinada forma social assumida pelo trabalho que se caracteriza pela conversão da ciência e da tecnologia em forças produtivas que ocorreu com o capitalismo tardio (Sociedade Industrial). A conversão do processo educacional, dessa maneira se torna inevitável. Ao invés de conduzir à autonomia, torna os indivíduos subordinados à produção e a reprodução modificando a sua relação com a natureza. A Filosofia e os professores: prática docente e reflexão filosófica O objetivo de Adorno, no texto A Filosofia e os Professores, é chamar a atenção para a prova geral de filosofia dos concursos para docência em ciências nas escolas de Hessen, Alemanha. Com uma larga experiência no processo, Adorno evidencia, como professor da casa, a sua inquietação em relação à finalidade e a incompreensão da prova, sobretudo ao seu sentido. Sua reflexão pauta-se, principalmente, na mentalidade das pessoas que são submetidas à prova. Para Adorno, nem elas mesmas compreendem a importância e a responsabilidade do seu sentido. Segundo Adorno, a situação da prova em sua totalidade é crítica e deve-se refletir abertamente sobre ela e os aspectos que a motivou. Ao refletir sobre essas questões poderá ser evitada a rotina de tais processos seletivos que estimulam tanto uma resignação aos examinadores, quanto um desprezo nos candidatos e no que deles se exige. Falar abertamente sobre a situação significa não permitir que a consciência das pessoas seja obstruída e respeito por aqueles que participam da prova. A humanidade, o respeito não se deve dirigir, no entanto, somente aos candidatos, mas a seus futuros alunos que não merecem ter como futuro professor um ―espírito deformador e inculto‖. A prova enfim, não deve contradizer o próprio espírito da filosofia que é o de reflexão. Para Adorno, se tornar um filósofo profissional não é possível, tal concepção não condiz com a tarefa da filosofia enquanto atividade reflexiva. Ela que não pode também ser considerada uma área de atuação que ocupa o centro do mundo, pois ―a filosofia só faz jus a si mesma quando é mais do que disciplina específica.‖ A interrogação de Adorno no referido texto é se o verdadeiro objetivo da prova é saber se os candidatos possuem condições de auxiliar o desenvolvimento real e intelectual da Alemanha ou se estes são apenas profissionais que tratam a filosofia como mais uma disciplina a fazer parte do currículo. Ele defende que, para ser professor, é necessário que cada candidato, na condição de intelectual seja capaz de desenvolver no

seu trabalho ações que tenham valor dentro da totalidade social. Advoga ainda Adorno que embora o termo ―intelectual‖ tenha sido bastante difamado a partir do nazismo, cabe aqui tratá-lo em sua forma positiva, pois: ―um primeiro passo da conscientização de si mesmo é não assumir a estupidez como integridade moral superior; não difamar o esclarecimento, mas resistir sempre em face da perseguição aos intelectuais, seja qual for a forma em que esta se disfarça.‖ A condição de intelectual se demonstra na sua relação com o trabalho que se compromete e com o todo social em que desempenha sua parcela e, sobretudo não deve ser apenas um filósofo a ocupar-se com disciplinas, mas ter compromisso com a reflexão, a prática consciente de sua profissão. Ser professor de filosofia não é ser um especialista em determinada área, seu sentido está na capacidade de compor a realidade social e dentro dessa mesma realidade ser capaz de transformá-la. A filosofia, antes de ser considerada como uma disciplina a mais às ciências, deve ser considerada uma ―autoconscientização viva do espírito‖, porém, com o processo de especialização ela se tornou ―mera frase de efeito em discurso dominical‖ tornando-se ―expressão da reificação (Verdinglichung) do espírito‖ e foi progressivamente reificada. Ao reagir contra isso ela se tornou potencial de resistência pelo modo com que se impõe à situação vigente (ADORNO, pág. 56). Segundo Adorno, sem a autonomia da filosofia frente às ciências naturais, nem uma nem outra teria a evolução que tiveram. A filosofia não teria então chegado a reflexões que chegou se continuasse presa aos procedimentos científicos específicos, muito embora as ciências humanas desenvolvidas tenham se tornado tão independentes que a reflexão filosófica para elas se tornou algo distante. A atual forma como são dispostas as disciplinas nos cursos superiores demonstra isso. Alguns cursos nem sequer possuem alguma disciplina que se refira à filosofia e quando possuem é de tão pouca expressão que não passa de transmissão da história da filosofia e não há por parte daqueles que a assumem como disciplina nenhuma reflexão sobre essa situação. Desconhecem que a fundamentação filosófica pode fornecer uma melhor compreensão da totalidade social. Isso não quer dizer que Adorno não era avesso às ciências, ao contrário, ele esclarece que embora ciência e filosofia pareçam estar separadas elas não se desvinculam. Uma necessita da outra como forma de desenvolver sua tarefa. Ainda em relação aos professores, Adorno ressalta que eles devam se assumir como verdadeiros profissionais intelectuais, portadores de um espírito formado através da autorreflexão e do esforço crítico e privilegiados pela ―autonomia do pensar‖. O

alerta de Adorno é sobre a condição necessária para tornar-se filósofo, pois, para ele existem os profissionais da filosofia (disciplina) e os filósofos. Ser um profissional da filosofia e ser intelectual trata-se de tarefas diferentes. Para o profissional, não se faz importante a liberdade e a autonomia necessárias à formação cultural. A formação do intelectual se constitui com o exercício da experiência formativa e onde cada sujeito se apropria de sua cultura dela retirando o conteúdo de reflexão. Para Adorno, formação é cultura, sua apropriação é dirigir-se para a emancipação, transformando o que existe. O professor em sua prática dentro dessa realidade deve ser agente disseminador que direciona seus alunos à autorreflexão, à experiência do pensamento, promovendo uma crítica da realidade que se impõe nas suas múltiplas relações. Isso é ser um professor formador. Assim, Adorno quer ressaltar o sentido da filosofia para a prática docente. O sentido está em querer a emancipação. A emancipação da qual Adorno se refere é aquela que faz parte da realidade concreta e não um ideal a ser alcançado, cujo conteúdo emancipador é para onde a educação deve conduzir e que sentido deve ter. Adorno considera que a prática docente com uma reflexão filosófica permitirá uma emancipação, que só é possível com a ocorrência de mudanças na própria maneira de refletir as ocorrências do passado e com a tomada de consciência dos sujeitos. O objetivo de Adorno é fazer com que o professor pense sobre a própria profissão e seu compromisso social mesmo diante dos obstáculos que se apresentam. A preocupação dos candidatos com os assuntos teóricos da prova demonstram assim o quanto estão sendo conduzidos à especialização e o que é essencial para o desenvolvimento da filosofia – refletir sobre o papel do filósofo e o seu compromisso com o todo social – passam a segundo plano. Para Adorno, o intelectual, como sujeito da realidade concreta, age apoiando-se na condição de filósofo e está sempre atento às problemáticas da realidade, buscando se transformar a realidade. Ele não deve se prender à realidade que se apresenta, ao contrário, deve estar preparado a colocá-la às avessas para trilhar o caminho para a emancipação, formando indivíduos conscientes. Formação do indivíduo no capitalismo tardio Tematizar a formação do indivíduo em Adorno é fazer um percurso pela história da humanidade. No Excurso I da Dialética do Esclarecimento, ele traça como o

conceito de indivíduo foi sendo desenvolvido no decorrer da história. Para ele, o conceito encontra seus vestígios desde a mitologia grega com o surgimento do indivíduo burguês e veio a se consolidar depois da Revolução Francesa e da Revolução Industrial. Adorno percebe a história como um conjunto de rupturas e continuidades, onde encontra o protótipo do homem burguês na personagem Ulisses da obra homérica A Odisséia. No mito Ulisses, Adorno encontra a ideia de indivíduo que já age de acordo com interesses objetivos. Na Odisséia, temos a imagem de um homem que questiona que usa a fala, a oratória para transformar uma condição. Junto a isso também estão astúcia, inteligência e a capacidade de deliberar a própria vida ao fazer escolhas. Segundo Adorno, Homero traça a trajetória de Ulisses e de como este consegue, através de suas ações, do trabalho racional e do mito livrar-se do destino para dar conta da sua própria história. Mas, diz Adorno, não é assim tão simples, pois, ao fazer uso desse recurso, Homero cai em contradição, destruindo a existência do mito ao descrever uma racionalidade que se julgava nele não existente. Segundo Adorno, ao ordenar as epopeias homéricas já se tem presente uma racionalidade que pensa o homem como ele deve ser, ou seja, existe já um modelo, ―um protótipo do homem burguês, cujo conceito tem origem naquela auto-afirmação unitária que encontra seu modelo mais antigo no herói errante.‖ (Adorno; Horkheimer, 1985, p.47) Foi Nietzsche quem primeiro percebeu a contradição entre mito e esclarecimento e esse mito ainda em nossa época se faz presente. O mito de esclarecer para ludibriar, moldar para dominar. Essa é a tarefa do mito, ou seja, o mito do esclarecimento é, segundo Adorno, passado como verdade. A tarefa de esclarecer destruindo-se o mito é mito. O esclarecimento, dessa forma, se revela com uma face que engana, inserindo o indivíduo num engodo difícil de sair. É isso o que tem acontecido desde a antiguidade. O homem por sua triste condição de mortal tem tentado, desde a antiguidade, fugir da sua própria condição de humano. Buscando de todas as formas um ―progresso‖, que julga ter encontrado na época moderna, com o desenvolvimento científico, desenvolvimento que não é outra coisa senão novamente o mito, pois se encontra ainda o homem tomado pelo medo. Os rituais mágicos foram, segundo Adorno, a tentativa de se libertar o homem do medo. O sujeito renuncia de si mesmo ao tentar se diferenciar do outro que teme, imitao para aniquilar a distância que os separa e para não ser devorado pelo inimigo. Toda reflexão de Adorno tenta mostrar como a razão ocidental nasce da recusa desse pensamento mítico-mágico, numa tentativa sempre renovada de livrar o homem do

medo. A análise de Adorno descobre como Platão, na mímesis, uma ameaça ao processo de civilização: ela não só faz regredir os homens a comportamentos mágicos e míticos, mas também ameaça o processo mesmo de construção e de elaboração de formas, de regras, de limites, processo que define a civilização e, no vocabulário do autor, que se ampara no processo de trabalho e no ―progresso‖ racional-científico. Adorno considera que a ideia do desenvolvimento da época moderna é uma ilusão. O homem moderno tem sido, o tempo inteiro, enganado com a ideia de progresso, progresso esse que se deu, de certa maneira, com o surgimento da ciência baconiana, ciência para a dominação da natureza a favor do homem. Na modernidade, com o desenvolvimento da técnica, a indústria cultural procura dar a tudo uma ideia de novidade. No mundo de hoje, seria o velho revestido de novo que aos olhos do consumidor se transformou, mas na realidade continua sendo o mesmo. O consumidor acredita possuir produto exclusivo devido ao alto preço pago, mas o que adquire é o que a indústria cultural impregnou pelo mito de que o que se consome é o novo, fruto de um progresso que só ele possui. A imagem transformada do produto não mostra o que ele verdadeiramente é em essência: a mesma coisa com outra imagem, produto de uma publicidade enganadora e racionalmente elaborada para fins de dominação. Essa forma singular de pensar o mito em Adorno faz perceber o quanto o mundo, desde os seus primórdios, tem o mito uma relação com a educação. É imitando as personagens mitológicas que se formava o indivíduo. Apesar do mito, para Adorno, ter certa carga de negatividade não pode ser totalmente excluído da vida dos homens, ao contrário já faz parte dela. Para Adorno, a ciência ou o esclarecimento mesmo substituindo todo conteúdo simbólico do mito, fez com que essa mesma ciência ou esclarecimento se tornasse um mito na medida em que se mira na repetição, repetição que funda um modelo para a vida. Adorno concebe assim o mito como sendo uma ―verdade‖ verdade que muda de faces e que vem sendo, através dos séculos, acrescentando-se sobre ele os traços característicos de cada época, ou seja, ele trata do mito como uma construção ideológica que vem formando cada indivíduo desde a sociedade antiga. Com o surgimento do sistema capitalista, o homem passa a ter como objetivo um progresso que se serve da natureza para satisfazer seus interesses, tornando-se ele próprio objeto de consumo dessa sociedade industrializada. Forma-se uma sociedade cujos indivíduos são resultantes de uma suposta ideia de progresso, mas que, na

realidade, é o progresso de uma ciência que retornara ao mito. Adorno faz um entrelaçamento entre mito e razão esclarecida, crítica a um mundo trágico com abordagens mitológicas que se escondem por trás da ideia de progresso. É uma reflexão e uma análise dialética sobre o desenvolvimento e decadência da cultura e da educação, onde o capitalismo é apenas um capítulo da história. Ao analisar a educação a partir dos conceitos de barbárie e emancipação, faz uma crítica à educação autoritária, de caráter manipulador e a filosofia, dessa maneira, aparece como forma de resistência à dominação no processo global de alienação dos indivíduos. É o pensamento adorniano uma reação a catástrofe contemporânea e uma tentativa de releitura, a partir dela, da história da cultura ocidental onde com a emergência do capitalismo tardio o homem é transformado em objeto, onde o que não é passa a ser, ou seja, objetos sem vida passam a ter vida enquanto o homem torna-se um sem-vida, uma mercadoria. Para Adorno, vive-se num mundo de imagens controladas pelos organismos de poder. Ele denomina isso de indústria cultural, título de uma das partes de sua obra Dialética do Esclarecimento, expondo que se utilizou desse termo em substituição ao termo cultura de massas por este erroneamente dar uma ideia inversa do que ela realmente significa: cultura manipulada e não cultura que brota do povo. O termo indústria cultural se refere à forma como as pessoas são manipuladas com a falsa ideia de sujeitos do consumo, quando na realidade elas são objeto. O modo que isso acontece encontra-se velado nas relações de consumo, onde os setores interessados adaptam as suas condições de forma a não desagradar o consumidor, mas arrastá-lo ainda mais para o consumo. Esse embuste aconteceu, principalmente, na modernidade com a integração entre os instrumentos da técnica e a concentração econômica e administrativa. O objetivo dessa integração não é o desenvolvimento das massas, mas sua dominação, pois: a indústria cultural abusa na sua consideração para com as massas a fim de duplicar, consolidar e reforçar sua mentalidade pressuposta como imutável. Tudo que poderia servir para transformar sua mentalidade é por ela excluído. As massas não são o critério em que se inspira a indústria cultural, mas antes sua ideologia, dado que esta só poderia existir, prescindindo da adaptação das massas.

Sua crítica marxista defende a existência de indivíduos dentro de uma sociedade onde que não percam sua essência. A indústria cultural não permite aos indivíduos viver e existir, mas modela sua consciência. Ao contrário, o homem vive sob o poder do consumo, aliena-se, se perde dentro da própria sociedade da qual faz parte, não encontra

seu lugar como sujeito, é mero objeto como o próprio objeto que ele fabrica e não tem condições de consumir. Na Dialética do Esclarecimento, Adorno trata dessa subjetividade ameaçada, da semiformação e das forças econômicas que ameaçam a subjetividade: a indústria cultural. As exposições de Adorno sobre a indústria cultural têm relação íntima com a sua preocupação com a formação dos sujeitos. Numa sociedade onde tudo está perpassado pelo econômico, é necessária a reflexão constante da realidade a fim de evitar a reificação total dos sujeitos. Como professor, Adorno estava alerta para os acontecimentos do seu tempo e através de seus escritos, demonstra que tinha com a realidade em que vivia uma preocupação que ultrapassava a teoria. Conclusão Dessa forma, as críticas de Adorno, nos referidos textos, dirigem-se, principalmente, a uma redução da filosofia e ao trabalho docente cujo reflexo sobre a formação dos indivíduos é de grande magnitude. Além disso, para ele, a realidade econômica e social mantém relação íntima com a formação dos indivíduos levando-os a situações contrárias àquelas que deveriam, ou seja, ao invés de torná-los sujeitos autônomos torna-os heterônomos. Segundo Adorno, a fragilidade na psicologia dos indivíduos foi o que possibilitou a ocorrência de Auschwitz. Assim, a prática docente torna-se significativa posto que se agravam as pressões sobre os indivíduos, que num sistema voltado quase que exclusivamente para a satisfação de desejos fugazes, necessitam de maior orientação. Para Adorno, trata-se de indivíduos em que a personalidade se transforma em mera mercadoria e cuja sustentação está na manipulação da individualidade que se perde frente a um pequeno número de agentes de dominação e detentores de poder. Os indivíduos deixam-se manipular pela fórmula mágica do capitalismo que compra a sua subjetividade por um valor irrisório. Dessa maneira, cumpre aos professores desenvolver, em suas práticas, maneiras que leve seus alunos a sair da menoridade, encaminhando-os ao esclarecimento subjetivo e à autonomia. Sente-se, assim, a necessidade da emergência de uma educação para a autonomia e emancipação para que não haja uma concorrência tão acirrada entre os homens e que, frequentemente, deparam-se com dificuldade de encontrar a si mesmos. Procura-se, por ações mais práticas, que possam resultar num ―progresso‖ não somente tecnológico,

mas também humanístico e que se façam presentes na sociedade terrena. Uma educação para autonomia que possa permitir a cada indivíduo ter argumentos para que possa reivindicar e lutar por uma educação diferente e, consequentemente, um futuro mais promissor, com novos conceitos da educação acompanhados por reformas dos sistemas sociais que permitam que as mudanças aconteçam. Um projeto de transformação social global para uma compreensão da totalidade. Uma tendência de educação transformadora que tenha como perspectiva compreender a educação como mediação de um projeto social, mas não ela sozinha com o principal papel de transformar. Educação que não redime nem reproduz a sociedade, mas que sirva de meio, ao lado de outros meios para realizar um projeto de sociedade. Essas deverão ser as tendências filosóficas importantes da educação porque devem compreender seu sentido e políticas porque deve constituir um direcionamento para sua ação. A educação por estar eivada de sentido, de conceitos, valores e finalidades que a norteiam, tem como pergunta principal seu próprio sentido e valor na e para a sociedade, que sentido deve ser dado a ela dentro da sociedade, como deve ser compreendida e para onde vai seu direcionamento. Referências ADORNO, Theodor. HORKHEIMER, Max, (1985). Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. Tradução de Guido Antonio de Almeida. ADORNO, T., Educação e Emancipação, (1995) São Paulo: Paz e Terra. Tradução de Wolfgang Leo Maar ADORNO, T. Dialética Negativa, (1975) Madrid: Taurus Ediciones. Tradução de Marco Antonio Casanova. GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Do Conceito de Mímesis no Pensamento de Adorno e Benjamim(1993) Perspectivas, v. 16, p. 67-86. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito, (2002). Rio de Janeiro: Editora Vozes. SCALDAFERRO, Maikon Chaider Silva, (2009). Mímesis, Paidéia e Política. Saberes, v. 2, Nº 3, p. 32-48. TIBURI, Márcia. Crítica da razão e mímesis no pensamento de Theodor W. Adorno, (1995) Porto Alegre: Coleção FILOSOFIA nº26, EDIPUCRS, 1995 TÜRCKE, Christoph. ―Pronto socorro para Adorno: fragmentos introdutórios à dialética negativa” (2004) In: Ensaios Frankfurtianos, São Paulo: Cortez.

O Narrador, um Agente Construtor na Comunidade Conceição Ribeiro Guimarães

COLOCAR E-MAIL Introdução No texto ―O Narrador‖, do livro Magia e Técnica, Arte e Política, Benjamin evidencia a importância da narrativa para o relacionamento humano, apreciando a obra de Nikolai Leskov, um viajante que aos 29 anos descobre depois de muitas buscas o valor da narrativa. Leskov trabalhava viajando a serviço de uma empresa e, nesses anos, acumulou uma riquíssima experiência sobre o mundo e sobre as condições russas, ele traz consigo um tesouro dado pelas idas e vindas nas suas viagens. Referindo-se a ele Benjamin diz: Nos contos lendários russos, Leskov encontrou aliados em seu combate contra a burocracia ortodoxa. Escreveu uma série de contos desse gênero, cujo personagem central é o justo, raramente um asceta, em geral um homem simples e ativo, que se transforma em santo com a maior naturalidade. A exaltação mística é alheia a Leskov. Embora ocasionalmente se interesse pelo maravilhoso, em questão de piedade preferia uma atitude solidamente natural. Seu ideal é o homem que aceita o mundo sem se prender demasiadamente a ele. Seu comportamento em questões temporais correspondia a essa atitude... Seu primeiro texto impresso se intitulava: ―Por que são os livros caros em Kiev?‖. Seus contos foram precedidos por uma série de escritos sobre a classe operária, sobre o alcoolismo, sobre os médicos da polícia e sobre os vendedores desempregados93.

Para Benjamin, o narrador é uma figura que não se faz presente entre nós, pelo contrário está distante. Isto evidencia que a arte de narrar está em vias de extinção. Isto ocorre porque as ações da experiência estão em baixa e pelo que se vê continuarão caindo até que seu valor despareça totalmente. Como nos diz Benjamin (1994): Basta olharmos um jornal para percebermos que seu nível está mais baixo que nunca, e que da noite para o dia não somente a imagem do mundo exterior, mas também o do mundo ético sofreu transformações que antes não julgaríamos possíveis.94



Graduada em Filosofia-PUC PR, Especialista Filosofia Social e Política-UECE, Mestranda em Educação Brasileira-UFC. E-mail: [email protected]. 93 BENJAMIN, Walter. O Narrador in Magia e Técnica, Arte e Política.São Paulo,Brasiliense,1994.p.199-200 94 Idem p.198

Segundo Benjamin, com o final da guerra, os combatentes voltavam para seus países, mudos, silenciosos, não enriqueceram em nada, pelo contrário ficaram mais pobres em experiências comunicáveis. Em uma década depois, o que se difundia de livros sobre a guerra nada tinha em comum ou parecido com a experiência comunicada de boca em boca. Dentro daquele contexto não havia nada anormal, porque nunca houve experiências que marcasse, que desmoralizasse tanto ―que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela guerra de material e a experiência ética pelos governantes‖ 95

O narrador, um agente na comunidade Uma geração que para ir à escola tinha o cavalo como meio de transporte, se depara com uma situação inesperada, onde tudo foi alterado, só as nuvens permaneciam lá, mas debaixo delas só destruição, as explosões, um campo onde o medir as forças e vencer era o que interessava, mesmo que o resultado fosse o que foi: milhares de inocentes, sem sopros, imóveis, sem vida, deixados para trás, o minúsculo corpo humano, desprovido de tudo, sem nenhum valor. Como as pessoas que por sorte voltam do terror tinham condições de narrar tão chocante e drástica experiência. Pois, para Benjamin, a experiência vivenciada por cada pessoa e depois passada para outras se transforma em fonte onde os narradores se inspiram, recorrem para realizarem sua arte, a arte de narra Para o filósofo, as narrativas escritas quanto menos distintas forem das histórias orais, melhores são. Estas são contadas por inúmeros narradores que vivem no anonimato. Há uma tradição que veio de dois grupos, um aquele que viaja para terras distantes e acumula em sua memória muitas experiências, um saber que é vivenciado por isso tem muito que contar, é visto como alguém que vem de longe. Do mesmo modo ouvimos com prazer e atenção o homem que vive fixo em sua terra, trabalhando honestamente, que conhece histórias e tradições do seu país e que, por isso, também, tem muito o que narrar, e o faz com alegria e perfeição. Estes dois tipos de narradores podem ser aferidos pelos seus representantes arcaicos: um exemplificado pelo camponês sedentário, o outro pelo marinheiro comerciante; estes dois estilos de vida criaram de

95

Idem p.198

certa forma gerações familiares de narradores. Cada família, no decorrer dos anos, procura conservar suas características próprias. Assim, entre os autores alemães modernos, Hebel e Gotthelf pertencem à primeira família e Sielsfield e Gerstäcker à segunda. No entanto essas famílias constituem apenas tipos fundamentais. A extensão real do reino narrativo, em todo o seu alcance histórico, só pode ser compreendido se levarmos em conta a interpretação desses dois tipos arcaicos. O sistema corporativo medieval contribuiu especialmente para essa interpenetração. O mestre sedentário e os aprendizes migrantes trabalhavam juntos na mesma oficina; cada mestre tinha sido um aprendiz ambulante antes de se fixar em sua pátria ou no estrangeiro. Se os camponeses e os marujos foram os primeiros mestres da arte de narrar, foram os artífices que a aperfeiçoaram 96.

Para o autor, nosso o sistema corporativo associava-se a experiência, o saber acumulado das terra distantes trazidas pelos migrantes, com a experiência, o saber do passado apreendido pelo homem trabalhador que vivia fixo na terra. As narrativas alimentavam a imaginação, a curiosidade dos ouvintes, da mesma forma que têm um fundo moral, passam um ensinamento, refletem situações que estão presente no dia a dia das pessoas. Percebe-se que o senso prático é uma das características de muitos narradores natos. Esse atributo é encontrado muito mais que em Leskov, em Gotthelf, que dá conselhos sobre conhecimentos agrônomos para os camponeses, em Nodier, que cuida se preocupa com os perigos da iluminação a gás e Hebel que passa para seus leitores algumas informações científicas. Percebemos desta feita que a narração traz em si uma dimensão utilitária, que tem implicações na vida das pessoas. Benjamin ressalta o aspecto do ensinamento, da utilidade dos narradores, descrevendo: Essa utilidade pode consistir seja em ensinamento moral, seja numa sugestão seja num provérbio ou numa norma de vida de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos. Mas se ―dar conselhos‖ parece hoje algo antiquado, é porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis. Em consequência, não podemos dá conselho nem a nós mesmos nem aos outros. Aconselhar e menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada.97

O conselho que alguém dar a outro é tecido na vida, na existência de cada pessoa a verdade que cada um vive ou precisa viver. Este conselho é dado por aqueles que acumularam um saber que vem da sua experiência. Este conselho chama-se sabedoria. Só quem tem experiência acumulada, quem experimentou a vida em profundidade tem 96 97

Idem, p. 198 Idem p.200

autoridade para dar conselhos. Mas a sabedoria, o lado épico da verdade está se extinguindo, em consequência disso a arte de narrar está definhando. Porém, isso não é uma coisa de hoje, mas vem de longe. O desenvolvimento da técnica só acentuou a decadência da narrativa. Esse processo que exclui a narrativa do meio do discurso vivo e, ao mesmo tempo, desperta um olhar para o belo que está desaparecendo, tem se desenvolvido simultaneamente com a força de uma evolução secular produtiva. O romance favorece o declínio da narrativa oral O primeiro sintoma dessa evolução é o surgimento do romance nas primeiras décadas do período moderno. O qual culminou com a morte da narrativa. O que diferencia o romance da narrativa, é que este está essencialmente vinculado ao livro. A difusão do romance só se torna possível com a invenção da imprensa. A narrativa, a tradição oral, a poesia é fundamentalmente distinta da natureza que caracteriza o romance. Este não tem origem na tradição oral e nem a alimenta. O narrador retira da sua vivência, da experiência de anos o que ele narra, conta da sua própria vida ou da vida de outros que lhes relataram. As narrações são incorporadas à experiência daqueles que motivados pelas histórias contadas tornaram-se ouvintes. Já o romancista não faz o mesmo caminho, pelo contrário, segrega-se, para escrever se isola e não fala mais sobre suas preocupações importantes como também não recebe e nem dá conselhos. Pois não tem a experiência que vem da vivência acumulada, portanto não tem autoridade para dar conselhos que se tecem vida a fora O primeiro grande livro do gênero, Dom Quixote, mostra como a grandeza de alma, a coragem e a generosidade de um dos mais nobres heróis da literatura são totalmente refratárias ao conselho e não contêm a menor centelha de sabedoria. Quando no correr dos séculos se tentou ocasionalmente incluir no romance algum ensinamento—talvez o melhor exemplo seja Wilhelm Meister Wanderjahre ( Os anos de peregrinação de Wilhelm. Meister )--, essas tentativas resultaram sempre na transformação da própria forma romanesca...Ao integrar o processo da vida social na vida de uma pessoa, ele justifica de modo extremamente frágil as leis que determinam tal processo. A legitimação dessas leis nada tem a ver com sua realidade. No romance de formação, é essa insuficiência que está na base da ação.98

Conforme Benjamin, o romance levou centenas de anos para encontrar na burguesia ascendente, as condições favoráveis para o seu desenvolvimento. Quando essas condições foram alcançadas, a narrativa começou pouco a pouco a tornar-se

98

Idem p. 201-202.

ultrapassada. Com certeza, houve apropriação do novo conteúdo, no entanto, ela não foi totalmente determinada pelo romance. No decorrer dos séculos, houve tentativa em aproximar o romance da narrativa oral tentando incluir naquele algum ensinamento. Mas a tentativa não se consolidou, pois a imprensa é um instrumento fundamental para a burguesia e evidencia uma forma de comunicação, que embora fosse antiga, agora exerce influência no próprio romance, deixando-o em crise. Esta comunicação é a informação e está a serviço do sistema capitalista, o qual com seu ritmo frenético exige uma linguagem fugaz, que acompanhe a sua agitação e que não permita espaço e nem tempo para que se pense e reflita; as informações são veiculadas de forma rápida, imediata e, muitas vezes, tem algo de miraculoso e precisa ser compreensível ―em si e para si‖. Portanto, a informação se desenvolve, se afirma. A narrativa declina, pois o romance é responsável pelo seu declínio. Já no amanhecer recebemos notícias de todo o mundo. No entanto, continuamos pobres em histórias surpreendentes. Isto decorre pelo fato de que os acontecimentos já trazem suas explicações. Simplificando, pouco do que acontece está a serviço da narrativa, ao contrário da informação, quase tudo está a seu favor. Na narrativa, o extraordinário, o fantástico são narrados com precisão, mas o desfecho da história deve ser feito pelo leitor, este é livre para interpretar, dando desta forma um espaço para a criatividade, o qual não existe na informação. O relato abaixo nos revela sobre a verdadeira narrativa: O primeiro narrador grego foi Heródoto. No capítulo XIV do terceiro livro de suas histórias encontramos um relato muito instrutivo. Seu tema é Psammenit. Quando o rei egípcio Psammenit foi derrotado e reduzido ao cativeiro pelo rei persa Cambises, este resolveu humilhar seu cativo. Deu ordens para que Psammenit fosse posto na rua em que passaria o cortejo triunfal dos persas. Organizou esse cortejo de modo que o prisioneiro pudesse ver sua filha degradada à condição de criada, indo ao poço com um jarro, para buscar àgua. Enquanto todos os egípcios se lamentavam com esse espetáculo, Psammenit ficou silencioso e imóvel, com os olhos no chão; e, quando logo em seguida viu seu filho, caminhando no cortejo para ser executado, continuou imóvel. Mas, quando viu um dos seus servidores, um velho miserável, na fila dos cativos, golpeou a cabeça com os punhos e mostrou os sinais do mais profundo desespero.99

Segundo Benjamin, a história nos mostra claramente o valor da narrativa e a efemeridade da informação. Esta só tem valor no momento em que acontece, quando é nova, logo que é veiculada perde seu valor. Além do mais, ela vem sempre acompanhada de explicações. Bem diferente é a experiência da narrativa. Esta não se 99

Idem, p. 23-24

esgota. Suas forças são conservadas e mesmo passado muito tempo tem possibilidade de se desenvolver. O rei egípcio só reage depois de várias cenas chocantes. Para Benjamin, o destino dos filhos é o destino do próprio rei. Muitas coisas na vida passam sem nos afetar, no palco elas nos tocam, nos afetam, ―para o rei o criado era apenas um ator.‖ Ou ―as grandes dores são contidas, e só irrompem quando ocorre uma distensão. O espetáculo do servidor foi essa distensão.‖ (l994, 204). Este tipo de narrativa, embora séculos depois do ocorrido, ainda nos causa espanto e reflexão, o autor da história narrada não explica nada, Heródoto foi o mais seco possível, não explicou nada, deixando para o ouvinte a liberdade de imaginar, criar a partir do que ouviu. Para Benjamin, o narrador deve ser o mais natural possível ao renunciar às sutilezas psicológicas; pois isto facilita a memorização da história para o ouvinte, favorecendo a assimilação a sua própria experiência deixando irresistível a recontá-la um dia. O processo de assimilação se dá em camadas mais profundas e requer um estágio de distensão raro em nossos dias. Com o acúmulo de informações, com as inúmeras atividades que se vive extinguiram-se àquelas que são associadas ao tédio na cidade e estão a caminho de extinção no campo. Desaparecendo desta feita a arte de ouvir e junto a esta desaparece obviamente a comunidade dos ouvintes. Narrar histórias requer a arte de contá-las de novo e esta se perde por não serem conservadas mais as histórias. As pessoas teciam ou fiavam enquanto ouviam a história. O ouvinte deve esquecer-se de si mesmo, pois só assim o que é ouvido grava nele de maneira profunda. Ao escutar as histórias com entrega, com atenção, ele adquire espontaneamente o dom de narrá-las. Deste modo foi tecida a rede onde foi guardado o dom narrativo. Esta rede foi tecida há milênios, ao redor das mais antigas formas de trabalho manual. Desinteresse da sociedade capitalista pela narrativa Para o filósofo, a narrativa é de certa maneira uma forma artesanal de comunicação; pois o seu florescimento se deu num meio de artesã, tanto no campo, como na cidade. Ela não transmite a coisa como uma mera informação, pelo contrário, mergulha o conteúdo do que vai ser narrado na vida do narrador para depois retirá-lo; desta feita é impresso na narrativa a marca do narrador, como é a mão do oleiro na argila do vaso. Os narradores gostam de contextualizar os fatos, mostrando as circunstâncias em que eles se informaram dos fatos que irão ser narrados. Segundo

Walter Benjamin, Leskov considerava a arte artesanal- a narrativa como um ofício manual. Narrar as experiências acompanha a humanidade desde os tempos primórdios, já na Grécia Antiga, os mitos erram narrados atravessando gerações. No judaísmo, a bíblia era contada de pais para filhos, alimentando a fé do povo que esperava o cumprimento da promessa divina. No Oriente, países como a China e Japão respeitam a tradição na qual idosos são ouvidos nas tomadas de decisões. No entanto, a atualidade destrona tradições, pois quem, em nossos dias, tenta, ao lidar com o jovem, evocar suas experiências? Isto ocorre devido ao acúmulo de informações e experiências descontroladas, avassaladoras na contemporaneidade. Para Benjamin, na modernidade, o tempo é contabilizado, não se cultiva o que não pode ser abreviado; portanto o desinteresse de se ouvir as experiências, pois estas fazem parte de um passado, que a modernidade tenta negar e suplementa com o progresso da técnica, do capital, do apelo ao consumo desenfreado, o qual traz em si uma falsa promessa de bem-estar, de felicidade. É o lugar ―do sonho‖, e mais ainda se assemelha ao mito que embriaga o eu individual e coletivo, impedindo com isso a manifestação plena do avanço da humanidade. No texto ―Experiência e Pobreza‖, o autor ratifica o desinteresse da sociedade hodierna pela experiência: ...com tanta clareza aonde esses valores culturais podem nos conduzir quando a experiência nos é subtraída, hipócrita ou sorrateiramente, que é hoje em dia uma prova de honradez confessar nossa Pobreza. Sim, é preferível confessar que essa pobreza de experiência não é mais privada, mas de toda a humanidade. Surge assim uma nova barbárie. Barbárie? Sim. Respondemos afirmativamente para introduzir um conceito novo e positivo de barbárie. Pois o que resulta para o bárbaro dessa pobreza de experiência? Ela o impele a partir para frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda. Entre os grandes criadores sempre existiram homens implacáveis que operaram a partir de uma tábua rasa100.

Considerações finais Benjamin nos coloca um grande desafio ao nos descrever o valor da narrativa, da experiência e, ao mesmo tempo, evidenciar sua decadência, sua morte, a qual se dá na contemporaneidade. O desenvolvimento tecnológico aliado ao sistema capitalista não permite que o homem pense, reflita por si mesmo e que seja capaz de tomar decisões 100

Idem, p. 115-116.

diferentes da lógica propagada pelo atual sistema. A narrativa, as experiências não são alheias à realidade da vida humana, pelo contrário, elas refletem o dia a dia com suas contradições, as dificuldades, as amarras postas pelo próprio sistema capitalista, além de criarem relações efetivas, verdadeiras, baseadas na vivência de cada indivíduo. Com o avanço da técnica, enfatizou-se a informação, linguagem adequada para o mundo hodierno, infernal, frenético, onde o efêmero é cultuado, os fatos são apresentados banalmente, os meios de comunicação estão a serviço da classe dominante, e o apelo ao consumo leva as pessoas a acreditarem em um falso bemestar. As relações pessoais são baseadas em interesses e não são duradouras. Benjamin não tem uma proposta pronta, determinada, e nem propõe uma revolução do sistema, porém se utiliza da imagem do mosaico para mostrar que o todo é feito por cada pedaço. Cada um é convidado a encontrar o desvio e assim fazer sua parte. É necessário resistir, agir, escovar a história a contrapelo. Recomeçar das ruínas. O determinado imposto pelo capitalismo não deve paralisar o homem, mas deve sim levá-lo a uma decisão de caráter político que fortaleça a democracia. Para o filósofo, o passado não deve ser esquecido, pois se assim for corre o risco da humanidade viver uma nova barbárie. A experiência dá segurança, possibilita a pessoa não repetir o mesmo erro. O choque causado pelos horrores da guerra, do autoritarismo, da barbárie deve provocar no sujeito uma manifestação do seu potencial que o possibilita ir à contramão da história fatual, onde tudo pode ser revertido, trazendo uma nova esperança para humanidade.

Referências ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1995. AGAMBEN, Giorgio. Infância: destruição da experiência. Belo Horizonte: Ed. UFMG.2005. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasilense, 1987, Vol. 1. ___________. Obras escolhidas. Rua de Mão Única. São Paulo: Brasiliense, 1987, Vol 2. ____________. Escritos Sobre Mito e Linguagem. São Paulo: Duas Cidades, Ed. 34,2011.

CALLADO, Teresa de Castro. Walter Benjamin e a Experiência de Origem . Fortaleza: Ed UECE, 2006. GHIRALDELLI, Júnior, Paulo (org). Estílos em Filosofia da Educação. Rio de Janeiro: DPS Editora, 2000. MACHADO, Francisco de Ambrosis Pinheiro. Imanência e História: a crítica do conhecimento em Walter Benjamin. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. MATOS, Olgária. Filosofia: a polifonia da razão. São Paulo: Editora Scpione, 1997. PUCCI, Bruno & ZUIN Antônio Álvaro Soares. Adorno: o poder educativo do pensamento Crítico. Petrópoles: Editora Vozes, 2001. ZUIN, Antônio A. Soares. Indústria Cultural e a Educação: o novo canto da sereia. Campinas, São Paulo: Autores Associados, 1999.

III FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA E NEOCAPITALISMO

Metafísica da Vontade de Poder e o Pensamento do Super-homem: da Educação do Super-homem

Homero Luís Alves de Lima

Vede, eu sou um prenunciador do raio e uma pesada gota da nuvem; mas esse raio chama-se “super-homem”. (Nietzsche, Assim falou Zaratustra)

1. Metafísica da vontade de poder No pensamento da vontade de poder (Wille zur Macht), segundo Heidegger (2007a, p.374), Nietzsche antecipa o fundamento metafísico da modernidade. No pensamento da vontade de poder, o modo de pensar metafísico que teve seu início em Platão alcança o seu acabamento. Assim, Nietzsche, ―o pensador do pensamento da vontade de poder, é o último metafísico do ocidente‖ (HEIDEGGER, 2007a, p.374). “A vida é vontade de poder”. Essa sentença que sintetiza a posição metafísica de Nietzsche, através da qual a metafísica ocidental alcança o seu acabamento, diz: 1. O ente na totalidade é ―vida‖; 2. A essência da vida é ―vontade de poder‖ e 3. ―O ente na totalidade é vontade de poder‖. Como expressão de uma posição metafísica fundamental, o pensamento da vontade de poder se estende para o conhecimento e domínio de todas as regiões do ente (a natureza, a cultura, a história). Como ―figuras da vontade de poder‖, a política, a religião, a moral, a arte, a ciência são estrategicamente posicionadas como ―configurações de domínio‖ (Cf. Heidegger, 2007a, p.384). 2. O pensamento do Super-homem Segundo Heidegger (2007b), a verdade sobre o ente enquanto tal na totalidade sempre é assumida, articulada e preservada a cada vez por uma humanidade. Assim, em toda época, toda humanidade é a cada vez suportada por uma metafísica e colocada por



meio dela em uma relação determinada com o ente na totalidade, e, com isso, também consigo mesma. O ―super-homem‖ (Übermensch) é um nome que aponta para aquela ―humanidade‖ que é requisitada e suportada pela metafísica da ―vontade de poder‖ (Wille zur Macht). Ora, na medida em que o ―supra-sensível‖, o ―além‖ e o ―céu‖ são abolidos, a única coisa que resta é a ―Terra‖. O domínio incondicionado do puro poder sobre o globo terrestre torna necessário um novo estabelecimento da ―essência do homem‖. O homem desse domínio é o super-homem e, como tal, também é a negação incondicionada da essência do homem até aqui. Ouçamos, em Assim Falou Zaratustra, o próprio Nietzsche: Vamos! Coragem, homens superiores! Somente agora a montanha do futuro do homem sente as dores do parto. Deus morreu; nós queremos, agora, que o super-homem viva‖ (NIETZSCHE, 1998, p.334).

O super-homem é a figura suprema da mais pura vontade de poder. Daí decorre que ―não a ‗humanidade‘, mas o super-homem é a meta!‖. A humanidade é muito mais um meio do que uma meta. O que está em questão é o tipo: ―a humanidade é meramente o material experimentável, o excesso monstruoso daquilo que foi malfadado: um campo de ruínas‖ (NIETZSCHE, 2008, p.360; § 713). Com o pensamento do super-homem, conforme Heidegger, Nietzsche quer demonstrar que ―carecemos de uma humanidade‖ que esteja sintonizada com a essência fundamental e única da técnica moderna (Gestell) e de sua verdade metafísica, isto é, que se deixe dominar totalmente pela essência da técnica. Como uma figura desdobrada da vontade de poder, em sua essência metafísica, somente o super-homem está sintonizado como a ―economia maquinal‖ incondicionada, e, inversamente, essa economia necessita do super-homem para estabelecer o domínio incondicionado sobre a terra. A maquinação (o domínio e exploração do ente, a organização maquinal das coisas), a seleção do homem e o domínio incondicional da Terra caracterizam a dinâmica da superpotencialização do poder (Übermächtigung) em nossa modernidade metafisicamente consumada. 2.1 O Super-homem e a luta pelo domínio da terra Que a vossa vontade diga: que o super-homem seja o sentido da terra! Nietzsche

Mas, afinal, quem é o super-homem de Nietzsche? De onde vem o clamor pela necessidade do super-homem? E por que o ―homem‖ precisa mesmo ser superado? No caso da palavra ―super-homem‖, segundo Heidegger (2002), precisamos imediatamente nos afastarmos de todas as falsas interpretações e provocadoras de confusão que permeiam a opinião comum. Com o nome ―super-homem‖, Nietzsche precisamente não se refere à ―superdimensionalização do homem‖ até hoje existente. Ele também não pensa uma espécie de homem que ―descarta o humano‖ e que faz da arbitrariedade nua e crua a lei da fúria titânica, a regra. Tomando a palavra em sentido literal, ―o super-homem é o homem que vai para além do homem até hoje vigente, tãosó e, sobretudo, para trazer, e aí ratificar, este homem para a sua essência ainda por vir‖ (HEIDEGGER, 2002, p. 91). Uma vez mais perguntamos: de onde vem o clamor pela necessidade do superhomem? Por que o homem existente, tal como até aqui o conhecemos, não é mais suficiente? De onde advém a necessidade de sua superação? Porque Nietzsche, diz Heidegger (2002), reconhece o instante histórico em que o homem se prepara para entrar na total dominação da terra. Nietzsche é o primeiro pensador que, considerando a história do mundo tal como esta pela primeira vez nos chega, coloca a pergunta decisiva e pensa através de toda sua amplitude metafísica. A pergunta é: o homem enquanto homem, em sua constituição de essência até hoje vigente, está preparado para assumir a dominação da terra? Não será preciso conduzir o homem atual para além de si mesmo, para corresponder a essa tarefa? Se assim é, então o super-homem, pensado corretamente, pode não ser produto de uma fantasia desenfreada e degenerada, turbilhonando no vazio (HEIDEGGER, 2002, p.91).

Para Heidegger não resta dúvida: ―a subjetividade consumada da vontade de poder é a origem metafísica da necessidade essencial do super-homem‖ (HEIDEGGER, 2007b, p.230). A posição do homem em meio ao ente na totalidade alcançada na modernidade requer uma nova humanidade que esteja sintonizada como a essência da vontade de poder. Por isso, a vontade de poder precisa querer necessariamente o super-homem: ―Não a ‗humanidade‘, mas o super-homem é a meta!‖ (NIETZSCHE, 2008, p.483; § 1001). Uma vez mais, é importante que se diga: não se deve compreender o ―superhomem‖ como um ideal supra-sensível. Também, não se deve ver nele a figura de um líder político inescrupuloso ―que se anuncia em um momento qualquer e que entra em

cena em um lugar qualquer (der Führer)‖ (HEIDEGGER, 2007b, p.233). O superhomem é o sujeito supremo da subjetividade consumada e, enquanto tal, a realização da pura dinâmica de poder intrínseca à vontade de poder. Daí que, a ideia do ―superhomem‖, diz Heidegger, também não emerge de uma ―presunção‖ do ―senhor Nietzsche‖. A origem do super-homem, bem como da sua necessidade e do seu clamor é metafísica respondem à necessidade essencial da subjetividade consumada na modernidade. Enquanto uma figura desdobrada da posição metafísica fundamental do homem em meio ao ente na totalidade, o super-homem ―vive‖ na medida em que a nova humanidade, agora requerida, posiciona o ser do ente como a vontade de poder. É somente porque a vontade de poder precisa querer o super-homem é que Zaratustra, pode assim dizer: “Mortos estão todos os deuses; agora, queremos que o super-homem viva! - Seja esta um dia, no grande meio-dia, nossa última vontade‖ (NIETZSCHE, 1998, p.106). O domínio sobre a Terra requer a autocunhagem do homem que toma a si mesmo nas mãos como matéria de uma nova reelaboração. A condição desse domínio (isto é, todos os valores) é estabelecida e obtida arduamente por meio de completa ―maquinalização das coisas‖ e por meio da ―seleção do homem‖. O Super-homem e o elogio da máquina Em O Viandante e sua sombra, Nietzsche reconhece o caráter metafísico da máquina e expõe e esse conhecimento: A máquina como mestra. – A máquina ensina por si mesma a interpretação de multidões humanas (...) [ensinando] ela faz de muitos uma máquina e de cada singular um instrumento para um fim. Seu efeito mais universal é: ensinar a utilidade da centralização‖ (NIETZSCHE apud HEIDEGGER, 2007b, p.234).

O elogio da máquina encontra-se também em A Vontade de Poder, momento em Nietzsche discorre sobre as ―virtudes-de-máquina‖ e ―a forma de existência maquinal‖. A tarefa é tornar o homem ―o máximo possível utilizável e aproximá-lo, enquanto isso tenha algum interesse, da máquina infalível‖ (NIETZSCHE, 2008, p.445). Para alcançar esse objetivo o homem deve se equipado com ―virtudes-de-máquina‖. Isto porque precisa ―aprender‖ a sentir os estados nos ele quais possa ―trabalhar útil e maquinalmente como estados sumamente valiosos (...). A forma de existência maquinal

adorando a si mesma como a forma de existência suprema e mais venerável‖ (NIETZSCHE, 2008, p.445-6; § 888). É importante perceber que o elogio da funcionalidade da máquina e seu poder de constituição do homem tem um fundamento metafísico. Enquanto uma dimensão estratégica da vontade de poder, a maquinalização possibilita um domínio do ente que ―economiza‖ e ―armazena forças‖. É somente assim que a organização maquinal das coisas e a seleção do homem se co-pertencem, pois, ambas operam na base da simplificação de todo ente a partir da simplicidade originária da essência do poder. Como nota Heidegger, ―a vontade de poder que quer unicamente a si mesma (...) não se perde na multiplicidade característica do inabarcável‖ (HEIDEGGER, 2007b, p.235). Tocamos aqui em um ponto não suficientemente compreendido da filosofia de Nietzsche, a saber, o da relação entre multiplicidade e simplificação. Ouçamos o próprio Nietzsche: Falta o grande homem sintético, no qual as forças confluem naturalmente para um único objetivo. O que temos é homem plural, o caos mais interessante que talvez tenha existido até hoje... (NIETZSCHE, 2008, p. 443; § 883).

O ―homem plural‖ a que se refere Nietzsche não pode ser o objetivo de realização da vontade de poder, senão mesmo um meio em direção à cunhagem do super-homem: o homem sintético, que concentra e economiza forças. Nas palavras de Heidegger: ―o super-homem é a cunhagem a ferro daquela humanidade que se quer pela primeira vez como cunhagem e que se amolda para essa cunhagem‖ (HEIDEGGER, 2007b, p.237). A multiplicidade das forças (―o caos‖) se submete a necessidade de simplificação. A esse respeito, a linguagem de Nietzsche tornar-se ainda mais clara quando acena para o ―consumo econômico do homem‖ e ―ajuste maquinal da humanidade‖: A necessidade de demonstrar que um contramovimento é inerente a um consumo cada vez mais econômico de homem e humanidade, a uma ‗maquinaria‘ de interesses e produções sempre mais firmemente imbricados uns nos outros. Caracterizo o mesmo como secreção de um luxo-excedente da humanidade: nela deve vir à luz uma espécie mais forte, um tipo superior, que possui condições de surgimento e de conservação distintas da do homemmediano. Meu conceito, minha metáfora para esse tipo é, como se sabe, a palavra super-homem (NIETZSCHE, 2008, p.436; § 866).

Acenando ainda para o que designa a ―iminente e inevitável administração econômica e coletiva da terra‖ (NIETZSCHE, 2008, p.437; § 866), em que então a

humanidade pode encontrar o seu melhor sentido ―na condição de maquinaria posta a serviço dela‖ (Idem), como uma ―descomunal engrenagem de rodas sempre menores e sempre mais finamente ajustadas‖ (Idem), Nietzsche afirma que ―se carece do movimento inverso‖. Em contraposição a esse apequenamento e a essa acomodação do homem em uma utilidade especializada, faz-se necessário o ―engendramento do homem realizador de síntese somador, justificador‖ (Idem), para quem aquele ajuste maquinal da humanidade é uma condição prévia de existência, como uma ―estrutura subjacente sobre a qual ele pode inventar para si a sua mais elevada forma de ser...‖ (Idem). A vontade de poder como arte A partir da interpretação do capítulo ―A vontade de poder como arte‖ do livro Der Wille zur Macht, Heidegger (2007a) busca apreender o lugar da arte no âmbito da posição metafísica fundamental de Nietzsche. Como diretrizes e orientação geral, Heidegger estabelece o que designa de ―as cinco sentenças sobre a arte‖: 1. A arte é a figura mais transparente e conhecida da vontade de poder; 2. A arte precisa ser concebida a partir do artista; 3. A arte é o acontecimento fundamental de todo ente; 4. A arte é o contramovimento extraordinário contra o niilismo. 5. A arte é vontade de aparência. Vejamos então, de forma breve, o argumento que Heidegger (2007a) apresenta para cada ―sentença‖. 1. A arte é a figura mais transparente e conhecida da vontade de poder. O fenômeno ―artista‖ é o mais facilmente transparente, isto é, o maximamente acessível para nós mesmos, é o fenômeno ―artista‖ – o ser artista. Junto ao artista, o ser se ilumina para nós da forma mais imediata e mais clara possível. No ser artista deparamo-nos com o modo mais transparente e conhecido da vontade de poder. A arte tem o primado na iluminação e no desvelamento do ser do ente. Nietzsche não posiciona a arte para descrevê-la como uma ―expressão da cultura‖, mas quer mostrar por meio dela o que é a vontade de poder em sua essência. A partir da arte compreendida como ―fenômeno artista‖, a vontade de poder se torna propriamente visível.

2. A arte precisa ser concebida a partir do artista Ser artista é um poder-produzir. Na produção moramos como que junto à gênese do ente. Nietzsche concebe o ―fenômeno artista‖ e não a arte pura e simplesmente. A arte precisa ser concebida a partir daquele que cria e produz, e não a partir daqueles que ―recebem‖ e ―vivenciam‖. A pergunta sobre a arte é a pergunta sobre o artista como o produtor, o criador; suas experiências quanto ao que é belo precisam se tornar normativas (Cf. Heidegger, 2007a, p.65). O conceito de arte e de obra de arte é ampliado a todo poder-produzir e a tudo o que é essencialmente produzido. Como produtores, o artesão, o homem de Estado, o educador são artistas. Mesmo a natureza é uma artista: ―Em que medida o artista é apenas um grau preliminar? O mundo como uma obra de arte que dá a luz a si mesma‖ (NIEZTZSCHE, 2008, p.397, & 796). 3. A arte é o acontecimento fundamental de todo ente. Conforme a sentença anterior, Nietzsche vê a arte como o caráter fundamental do ente: ―o mundo como uma obra de arte que dá a luz a si mesma‖. O ente é, na medida em que é, ―algo que se cria, algo criado‖. O poder configurador do elemento artístico não diz outra coisa senão: a arte é vontade de poder. Sendo assim, a arte não pode ser considerada ―uma configuração da vontade de poder entre outras, mas a configuração mais elevada‖ (HEIDEGGER, 2007a, p.67). 4. A arte é o contramovimento extraordinário contra o niilismo. ―Nossa religião, moral e filosofia são formas de décadence do homem. - O contramovimento: a arte‖ (NIETZSCHE, 2008, p.397, &794). Em contrapartida, a arte é a grande possibilitadora, ―o grande estimulante da vida...‖ (NIETZSCHE, 2008, p.427). Nietzsche toma a arte como a tarefa propriamente dita da vida, ―a arte como uma atividade metafísica...‖ (Idem). Contra o filósofo moral niilista (Platão, cristianismo), Nietzsche postula o ―filósofo-artista‖. Esse filósofo é artista na medida em que cria e configura o ente na totalidade, isto é, na medida em que estabelece formas (p.68). ―O filósofo-artista. Conceito mais elevado de arte. Será que o homem pode se colocar tão distante dos outros a ponto de configurá-los? - Exercícios prévios: 1. O que configura a si mesmo, o eremita‖. (NIETZSCHE, 2008, p.397; § 795). A vontade de sensível é metafísica e

enquanto tal se efetiva na arte. O sensível encontra-se numa posição mais elevada do que o supra-sensível. A vontade niilista do supra-sensível ao promover a ―dessensibilização‘ enfraquece a vida, subtraindo dela as suas forças. Daí ser a arte como vontade de sensível o ―antídoto contra o niilismo‖ e o ―grande estimulante da vida‖ (p.403). 5. A arte é vontade de aparência. Com a sentença ―a arte é vontade de aparência‖, Nietzsche estabelece a relação da arte como a verdade, ou melhor, contrapõe a arte à verdade. Para Nietzsche ―a vontade de aparência, de ilusão, de engano, de devir e de mudança é mais profunda, ‗mais metafísica‘ do que a vontade de verdade, de realidade, de ser‖ (NIETZSCHE, 2008, p. 427; § 853). Ora, vontade de verdade significa para Nietzsche a vontade do ―mundo verdadeiro‖ no sentido de Platão e do cristianismo, a vontade do supra-sensível, do que é em si. A inversão do platonismo (já que a arte é a afirmação do sensível!) permite a Nietzsche afirmar que ―a arte tem mais valor do que a verdade‖ (NIETZSCHE, 2008, p.427; § 853) e, ao mesmo tempo, dizer que ―a verdade é repulsiva: nós temos a arte para não sucumbirmos junto à verdade” (NIETZSCHE, 2008, p.441; § 822). Ao associar a arte ao ―instinto da vida‖ e a ―função orgânica‖, Nietzsche a concebe como ―o maior estimulante da vida‖ (NIETZSCHE, 2008, p.403; § 808). Ora, ―estimulante‖ é o que impele, o que eleva, o que alça para além de si, o mais poder, a vontade de poder. Segundo Heidegger (2007a), a compreensão da arte como ―o maior estimulante da vida‖ corrobora a proposição nietzschiana central sobre a arte. Ela é importante porque perpassa e reúne as cinco sentenças sobre a arte. A embriaguez ou o ―estado estético de embriaguez‖, no sentido de Nietzsche, deve ser tomado como uma ―força conformadora‖ que cria e produz novas formas; pois, a essência da embriaguez e da beleza reside no elevar-se-para-além-de-si-mesmo (Cf. Heidegger, 2007a, p.105). Vemos assim, a centralidade da arte no âmbito da metafísica da vontade de poder. Ao conceder a arte um lugar destacado entre as ―configurações de domínio‖, Nietzsche posiciona a arte como ―o princípio de nova avaliação‖, uma vez que o ―antigo princípio‖ era dominado pela religião, pela moral e pela filosofia. Estas e outras ―configurações de domínio‖ da vontade de poder (como a ciência, a política, o

conhecimento em geral) precisam ser consideradas juntamente com a visualização da essência do artista. Da educação necessária para configuração do Super-homem Tudo impele, porém, para a educação do homem que “empreende em si a transvaloração”. Nietzsche

Qual a relação da educação com o pensamento do super-homem? Em que medida a metafísica da vontade de poder e o pensamento do super-homem dizem respeito à educação? Partimos do princípio de que temática da educação em Nietzsche precisa ser problematizada no horizonte das ―figuras da vontade de poder‖, dada a sua insolúvel inscrição nas ―configurações de domínio‖ (moral, religião, filosofia, política, ciência, arte). A nosso ver, as conexões entre a educação, a vontade de poder e o super-homem, podem ser apreendidas em duas passagens centrais de Der Wille zur Macht. Na primeira, podemos ler: Aproxima-se, inevitavelmente, hesitante, terrível como o destino, a grande tarefa e questão: como a Terra, em seu todo, deve ser regida? E para que ―o homem‖ como um todo – e não mais um povo, uma raça – deve ser educado e cultivado? (NIETZSCHE, 2008, p.469; § 957).

E na segunda passagem, lemos: ―O martelo. Como precisam ser constituídos os homens que estimam de modo inverso? (NIETZSCHE, 2008, p.451; § 905). Na primeira passagem a educação esta associada à ideia de domínio da Terra e ―Cultivo do homem‖. Já a segunda, sugere que a educação tem um papel na ―constituição do homem‖. Assim, a educação quando considerada no horizonte mais amplo da metafísica da vontade de poder se desdobra nas ideias de (a) cultivo e seleção do homem, (b) domínio da Terra e (c) configuração do super-homem. Vejamos, então, de forma mais detalhada essas ideias na medida em que dizem respeito à educação em suas relações com a posição metafísica de Nietzsche. Um caminho importante para se pensar a inscrição da educação no horizonte mais amplo das figuras da vontade de poder é a ―psicologia‖. Ora, aqui, precisamos também ter uma compreensão mais ampla da ―psicologia‖. Em Além do Bem e do Mal, Nietzsche posiciona a ―psicologia‖, no sentido da doutrina da vontade de poder. Pois

assim compreendida, ela sempre é também ao mesmo tempo e de antemão o reino das questões metafísicas fundamentais. (...) que a psicologia seja novamente reconhecida como a rainha das ciências, para cujo serviço e preparação existem as demais ciências. Pois a psicologia é, uma vez mais, o caminho para os problemas fundamentais (NIETZSCHE, 2000, p.30; § 23).

Nesse mesmo contexto, Nietzsche faz uma crítica a ―toda psicologia‖ por ter permanecido até aqui preza a preconceitos e a temores morais. Ela ―não ousou descer às profundezas‖. É preciso compreendê-la ―como morfologia e teoria da evolução da vontade de poder‖ (NIETZSCHE, 2000, p.29). A psicologia como ―morfologia‖, e não somente ela, mas as demais ciências como a biologia, a fisiologia, a pedagogia (a ciência e o conhecimento em geral) são requisitadas pela vontade de poder a título de uma ―preparação‖ para a configuração do super-homem. A palavra ―morfologia‖ aqui não diz outra coisa, senão que todas as faculdades do homem são metafisicamente predeterminadas como modos de disposição do poder sobre a sua própria dinâmica de realização de poder (Cf. Heidegger, 2007b, p. 223). Insistimos uma vez mais: o sentido profundo da educação em Nietzsche somente é apreendido quando posto em relação à sua posição metafísica fundamental. Ora, à cada posição metafísica fundamental (a verdade do ente na totalidade) corresponde uma humanidade. Lembramos que para Nietzsche ―a humanidade é antes um meio do que um fim. Trata-se do tipo: a humanidade é meramente o material de ensaio, o imenso excesso de malogrados: um campo em ruínas‖ (NIETZSCHE, 2008, p.360; § 713). Lembramos também que o ―super-homem‖ (Übermensch) é um nome que aponta para aquela ―humanidade‖ que é requisitada e suportada pela metafísica da ―vontade de poder‖. Posto isto, podemos agora posicionar e dirigir corretamente a questão que se mostra decisiva à educação. Se a humanidade é a penas ―um tipo‖ e o ―homem‖ não mais que uma simples ―forma‖, que educação é necessária para a configuração do super-homem? Uma educação-artista que seja capaz de ―cunhar a ferro‖ na ―planta-homem‖ o superhomem? E, mais uma vez, a indagação de Nietzsche: ―Acaso poderia o homem colocar-

se assim tão distante dos outros homens, para plasmá-los?” (NIETZSCHE, 2008, p.397). Trata-se de uma questão decisiva, pois, o ―tipo e a forma‖ a serem alcançados requer uma educação que esteja sintonizada com ―as forças configuradoras‖ já presente, segundo Nietzsche, no homem atual: ―O homem até agora – como que um embrião do futuro do homem; - encontram-se nele todas as forças configuradoras que visam a esse último. (...) as forças configuradoras chocam-se‖ (NIETZSCHE, 2008, p.348; § 686). A educação posta a serviço da vontade de poder é um componente estratégico na configuração do tipo e da forma. Eis porque importa a Zaratustra ensinar o superhomem: Ao chegar à cidade próxima (...) na praça do mercado (...) Zaratustra assim falou ao povo: Eu vos ensino o super-homem. O homem é algo que deve ser superado. Que fizeste para superá-lo?

Todos os seres, até agora, criaram algo acima de si mesmos... (NIETZSCHE, 1998, p.36).

Para finalizar, queremos dizer que nossa interpretação do pensamento do superhomem é corrobora com a postura hermenêutica de Heidegger (2002, p.80): deve-se pensar o super-homem metafisicamente e não com base em valores morais. Isto porque ―todo pensamento essencial atravessa incólume o cortejo dos prós ou contras‖ (HEIDEGGER, 2002, p.92).

Referências HEIDEGGER, Martin. Nietzsche I. Tradução de Marco Antônio Casanova. São Paulo: Forense Editora, 2007a. _________________. Nietzsche II. Tradução de Marco Antônio Casanova. São Paulo: Forense Editora, 2007b. ________________. Ensaios e Conferências. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis: Editora Vozes, 2002. NIETZSCHE, Friedrich. A Vontade de Poder. Tradução de Marcos Fernandes e Francisco Moraes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008. ________________. Assim Falou Zaratustra. Um livro para todos e para ninguém. Tradução de Mario da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. ________________. Além do Bem e do Mal. Prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

Slavoj Zizek: Sujeito, Saber Científico e do Inconsciente e Ato Educativo

Hildemar Luiz Rech PREENCHER CURRICUO MÍNIMO De modo controvertido, Zizek apropriou-se do pensamento de Lacan e de Hegel endossando os compromissos da modernidade, referenciando a sua construção teórica em torno do sujeito cartesiano e do potencial libertador de sua agência auto-reflexiva, porém, com restrições a uma compreensão auto-transparente do sujeito, visto que este é concebido como visceralmente entrelaçado com o caráter predominante do sujeito da enunciação inconsciente, de cuja inscrição significante, com seus cortes traumáticos, emerge paradoxalmente, segundo este autor (2010), uma formação de restos e excessos atados ao registro do Real (impossível de ser simbolizado), na forma de ―objetos a‖ – enquanto objetos do desejo enviesados com a dinâmica das pulsões e do gozo. 1. Breves considerações sobre o sujeito barrado, o “grande outro”, o objeto-causa do desejo, o “objeto pequeno a”, a ideologia e a fantasia Conforme Zizek (2009), o sujeito barrado lacaniano ($), antes de ser captado na identificação, no reconhecimento/desconhecimento simbólico, é captado pelo Outro (a máquina significante) através de um paradoxal objeto-causa do desejo em meio a isso, (o objeto pequeno a, para sempre perdido), mediante o segredo supostamente oculto no ―grande Outro‖, que se exprime na fórmula do ―Sujeito barrado punção objeto α‖ ($◊a) – que é a fórmula lacaniana da fantasia. Isto também significa que, de acordo com a concepção fundamental de Lacan, existe a possibilidade de o sujeito adquirir alguns conteúdos e uma determinada consistência positiva, fora do ―grande Outro‖ – enfim fora da rede simbólica intersubjetiva alienante. Essa outra possibilidade é oferecida pelo equacionamento do sujeito como objeto da fantasia. Ademais, a fantasia contribui na estruturação da própria realidade, visto que a configuração desta envolve uma construção fantasiosa que permite mascarar o Real



traumático do nosso desejo. Para Zizek, sucede o mesmo com a ideologia. A fantasia, em seu sentido fundamental é um paradoxo ontológico: [Cujo escândalo] ―(...) reside no fato de que ela subverte a oposição típica do ‗subjetivo‘ e ‗objetivo‘: é claro, a fantasia é por definição não objetiva, ‗ou seja, ela não é algo‘ que existe livre das percepções do sujeito; porém, ela é também não subjetiva, ‗ou seja, ela não é algo que pertence às intuições conscientemente experimentadas do sujeito como o produto de sua imaginação. A fantasia pertence antes à ‗bizarra categoria do objetivamente subjetivo – o modo como as coisas objetivamente parecem ser para você‖ (Zizek, 2010, p.66).

Na fantasia, portanto, ocorre a incidência de determinadas crenças e suposições negadas que sequer sabemos que abrigamos, mas que determinam nossos atos e sentimentos. O cerne da fantasia é então o saber do próprio inconsciente freudiano. ―Esta é também uma das maneiras de especificar o significado da afirmação de Lacan de que o sujeito é sempre descentrado‖ (Zizek, 2010, p.67). Segundo Zizek, o que Lacan quer dizer com esta argumentação não é que a nossa experiência subjetiva seja regulada por mecanismos inconscientes objetivos que são descentrados em relação à nossa experiência de nós mesmos e, como tal, fora de nosso controle, mas que ocorre algo muito mais perturbador conosco. Ou seja, que ―... estamos privados até [do controle] de nossa experiência subjetiva mais íntima, ou seja, do modo como as coisas [realmente parecem ser para nós]‖ (Zizek, 2010, p.67-68). Nestes termos estou privado da fantasia fundamental que constitui e garante o cerne de meu ser, uma vez que nunca posso experimentá-la e assumi-la explicitamente. Ou seja, para Zizek: ―O sujeito freudiano do inconsciente só emerge quando um aspecto essencial da auto-experiência do sujeito, qual seja, a sua fantasia fundamental, torna-se inacessível para ele, ou seja, torna-se primordialmente recalcada. [Em outras palavras], em seu aspecto mais radical, o inconsciente é um fenômeno inacessível e não os mecanismos objetivos que regulam minha experiência fenomênica‖ (Zizek, 2010, p.68). Estamos, assim, tratando com uma noção de subjetividade humana em que há um hiato que separa o sujeito de sua fantasia fundamental. ―É essa inacessibilidade que torna o sujeito ‗vazio‘ [em termos ontológicos]‖ (Zizek, 2010, p.69). Impõe-se, deste modo, ―... uma relação que subverte a noção corrente do sujeito que experimenta a si mesmo através de seus estados interiores. [Ocorrendo] (...) uma estranha relação entre um sujeito vazio, não fenomênico, e os fenômenos que permanecem inacessíveis ao sujeito‖ (Zizek, 2010, p.69).

Interpõe-se, assim, pela psicanálise, uma paradoxal fenomenologia que compreende a emergência de experiências descoladas de um sujeito, mas que mesmo assim aparecem para este sujeito. ―Isto não significa que o sujeito não esteja envolvido aqui – ele está, mas precisamente no modo da exclusão como dividido, como a agência que não é capaz de assumir o cerne de sua experiência interior‖ (Zizek, 2010, p.69). Nesta perspectiva apresenta-se um hiato que separa persistentemente ―... o núcleo fantasístico do ser do sujeito dos modos mais artificiais de suas identificações simbólicas ou imaginárias. [Assim,] nunca me é possível assumir plenamente em termos da integração simbólica o núcleo fantasístico do meu ser‖. (Zizek, 2010, p.70). Ou seja, quando apresento a audácia de deparar-me frontalmente com a minha fantasia fundamental, estabelece-se aquilo ―... que Lacan chama de afânise (a autoobliteração) do sujeito: o sujeito perde sua consistência simbólica‖ (Zizek, 2010, p.71). Nestes termos, o sujeito é atravessado por um violento solapamento da própria base de sua identidade e de sua auto-imagem, a ponto de desintegrar-se, pois o cerne de sua fantasia lhe é intolerável. Esta apresenta uma ambigüidade fundamental, pois, se por um lado, ela funciona como o crivo que nos protege do encontro com o Real traumático, por outro lado, ela, a fantasia, naquilo que ela tem de mais fundamental, nunca pode ser subjetivada, precisando permanecer recalcada para funcionar (Zizek, 2009). Em sua dimensão básica, também a ideologia é uma construção ‗da fantasia que serve de esteio à nossa própria ―realidade‖: uma ―ilusão‖ que estrutura nossas relações sociais reais e que, com isso, ―mascara um insuportável núcleo real‖, um ―antagonismo social traumático‖ (de classes, racial, sexual, ou outro) que não pode ser simbolizado. Desse modo, como observa Zizek: ―A função da ideologia não é oferecer-nos uma via de escape da nossa realidade, mas oferecer-nos a [construção da] realidade social como uma fuga de algum núcleo real traumático‖ (Zizek, 1996B, p.323). Conforme Zizek (2009), o sujeito marcado por uma fantasia fundamental, falha no reconhecimento de si mesmo devido ao seu inexorável entrelaçamento com um objeto especial que é objeto causa de seu desejo, ou seja, o ―objeto pequeno a” que é o objeto para sempre inalcançável ou perdido dentro do campo dos objetos por ele percebidos. Assim, em termos daquilo que unifica esta noção psicanalítica com a filosofia política de Zizek, pode-se dizer que este ―objeto pequeno a” é exatamente um ―objeto sublime‖. É um objeto que, em termos freudianos, é ―sublimado‖ pelo sujeito até o ponto onde ele se ergue como um representante metonímico do gozo do sujeito, o qual as fantasias inconscientes extraíram da castração ou do recalcamento.

Isto, portanto, funciona como o ―objeto causa do desejo”, cuja excepcional ―pequena partícula ou parte do Real‖ o sujeito procura colher em todas as suas relações de amor. Por outro lado, nem a voz e nem o olhar, enquanto ―objetos pequeno a”, atestam a capacidade soberana do sujeito de objetivar e, conseqüentemente, controlar o mundo. Ou seja, no campo visual e auditivo, respectivamente a voz e o olhar, como “objetos pequeno a”, representam os objetos como coisas sublimes, tal como as coisas sublimes de Kant, as quais o sujeito não consegue cercar integralmente com as categorias da sensibilidade e com os juízos do entendimento. O fato de que estas coisas sublimes só podem ser vistas ou ouvidas a partir de perspectivas particulares, indica exatamente como o prisma enviesado e distorcido do sujeito – e assim o seu desejo, ou seja, o que o sujeito quer – tem um efeito sobre o que ele é capaz de ver. Então, é desse modo que estes objetos sublimes dão testemunho de como o sujeito não pode se colocar em uma posição de neutralidade porque lhe é impossível colocar-se totalmente fora da realidade que ele vê, em conseqüência não podendo ocupar a posição de um olhar neutro, na medida em que seu desejo (inconsciente ou não) condiciona seu olhar. Segundo Zizek (2010), o ―objeto pequeno a‖, para sempre perdido, se impõe como o oposto exato do objeto das ciências modernas, o qual é enfocado de modo totalmente impessoal e abordado de modo claro e distinto. O ―objeto pequeno a‖ ou é visto a partir de uma perspectiva subjetiva particular, com um olhar distorcido, ou não pode ser visto de modo algum. É por isso que Zizek considera que a noção psicanalítica do ―objeto pequeno a‖ pode ser utilizada para constituir nossa compreensão dos ―objetos sublimes‖ postulados pelas ideologias na esfera do político, objetos estes que se mostram inconsistentes quando finalmente são abordados de forma desapaixonada. O que então a crítica da ideologia de Zizek (1996A) pretende fazer, com o uso desta noção psicanalítica, é demonstrar as inconsistências que estão instaladas no cerne das fantasias ideológicas e, desse modo, mostrar-nos que os objetos mais centrais e consagrados que sustentam nossas convicções políticas são coisas (Ding) que, com sua aparência muito sublime, escondem de nós o agenciamento e o engajamento ativo e sem sentido de nosso próprio organismo vivo, na maioria das vezes alienadamente, que constrói e sustenta a sublimidade destes objetos. Ademais, quando um sujeito acredita em uma ideologia política, isso não significa que ele sabe a verdade sobre os objetos sublimes que permitem a estabilização desta ideologia na forma de um regime político.

2. O sujeito kantiano do conhecimento, o sujeito hegeliano como “noite do mundo” e o sujeito de zizek como uma fenda ou uma dobra na realidade Outra questão fundamental que ainda se coloca não é se há realidade fora da mente, mas de que não há mente fora da realidade. Ou seja, a questão central não é se a realidade existe independentemente da mente, do ―Eu penso‖, mas o fato de a mente, com suas faculdades de percepção e entendimento, fazer parte da própria realidade, de modo que ela não poder se situar de forma neutra em relação a esta. Assim o conhecimento da própria realidade resulta de uma perspectiva subjetiva distorcedora inerente as próprias faculdades de conhecimento do sujeito. E ―se retirarmos essa perspectiva distorcida, perdemos a própria coisa em si‖ (Zizek, 2006, p.120). Isso significa o seguinte: ―Em termos objetivos, nada existe [como uma realidade fechada em si], e as entidades só emergem como resultado da diferenciação de perspectivas, [numa visão em paralaxe], na qual toda diferenciação é uma distorção parcial‖ (Zizek, 2006, p.121). Ou seja, a distorção da realidade ocorre, precisamente, porque nossa mente faz parte da realidade. Desse modo, segundo Zizek (2006, p.121-2): A verdadeira fórmula do materialismo não é a de que existe uma realidade ―numenal‖ [inacessível em si] além da percepção distorcida que temos dela. A única posição materialista coerente é que o mundo não existe – no sentido kantiano do termo – como uma ―coisa-em-si‖ toda fechada em si mesma, [como um ―noumenon‖, como uma essência inatingível]. A idéia do mundo como um universo ‗plenamente‘ positivo pressupõe um observador externo que não esteja preso dentro dele. A própria posição da qual se pode perceber o mundo como um todo fechado em si mesmo é a posição do observador externo, [que não é o caso do conhecimento humano]. Paradoxalmente, portanto, é esse perspectivismo radical que nos permite formular uma postura de fato materialista, não porque o mundo existe fora da nossa mente, mas porque nossa mente não existe fora do mundo.

Ademais, na defesa do sujeito cartesiano, Zizek toma seus próprios apontamentos de sua leitura lacaniana de Kant. Ou seja, na ―Dialética Transcendental‖, em a ―Crítica da Razão Pura‖, Kant criticou o argumento cartesiano da auto-garantia do ―Eu penso‖, quanto à sua necessidade de ser uma coisa pensante (res cogitans). Para Kant, embora o ―Eu penso‖ deve ser capaz de acompanhar todas as percepções do sujeito, isto não significa que ele próprio é um objeto substancial. Nesta perspectiva, o sujeito que vê os objetos do mundo não pode ver-se a si mesmo vendo, mais do que uma pessoa que salta sobre a sua própria sombra. Na medida em que um sujeito pode ver-se reflexivamente, ele vê-se não como um sujeito, mas mais como um objeto representado, que Kant chama de ―eu empírico‖, ou o que Zizek chama de ―eu‖ [narcísico e imagináriosimbólico], em oposição ao sujeito (Zizek, 1997).

O sujeito sabe que é algo, mas nunca pode saber que coisa é na realidade. É por isso que ele precisa procurar pistas sobre a sua identidade na sua vida política e social, perguntando a respeito aos pequenos outros e principalmente ao ―grande Outro‖, ou seja, à rede simbólica intersubjetiva estabilizadora e alienante, impactada no campo social. Então, segundo Zizek, o sujeito se interroga frente ao ―grande Outro‖ com um ―O que você quer de mim?‖, o que acaba definindo o sujeito como tal. Assim, segundo Zizek (2006), o sujeito é uma fenda no campo do universal, não uma coisa cognoscível. É por isso que Zizek repetidamente cita em seus livros a passagem perturbadora do jovem Hegel que descreve o sujeito moderno não como uma luz do moderno iluminismo, mas como ―esta noite do mundo, este nada vazio‖. E isto é crucial para a posição de Zizek, que nega a aparente implicação daquilo pelo qual o sujeito é algo como uma espécie de entidade supra-sensível, como, por exemplo, uma alma imaterial e imortal. Em outras palavras, o sujeito é o ponto dentro da substância da realidade em que esta é capaz de olhar para si mesma, como estranha para si mesma. Ou seja, segundo o filósofo esloveno (1993), o sujeito não é algum tipo especial de coisa fora da realidade fenomenal que podemos experimentar, pois ele é apenas uma dobra ou um vinco na própria realidade fenomenal. Hegel e Lacan, segundo Zizek (2006), adicionam à leitura de Kant, que aborda o sujeito como o vazio ―Eu penso‖ que acompanha qualquer experiência individual, a ressalva de que, devido ao fato de que os objetos, em sua abordagem sempre já implicam a perspectiva do sujeito, eles aparecem sempre de forma incompleta, inadequada, distorcida e parcial. Ademais, isto significa que inclusive o sujeito, em sua ―fantasia fundamental‖, falha no reconhecimento de si mesmo como um objeto especial, dentro do campo de objetos que percebe. Para Zizek (1997), a civilização dos indivíduos ou sujeitos, necessita ademais do sacrifício fundador ou da castração do gozo, com a sua promulgação em nome da lei sócio-política. Assim, os indivíduos são civilizados, na medida em que são obrigados por lei social a perseguir este objeto especial que é o ―objeto pequeno a‖ – na leitura psicanalítica – e o ―objeto sublime‖ na leitura político-filosófica. Mas, devem fazê-lo, sem se descuidar da observação das convenções sociais linguisticamente mediadas, adiando a satisfação libidinal de gozo e aceitando a diferença sexual e de gerações. Assim, a fantasia fundamental do sujeito também é uma estrutura inconsciente que permite ao sujeito aceitar a perda traumática envolvida no sacrifício fundador ou na castração. Ou seja, ela re-significa a repressão fundadora do gozo pela lei, o que se torna

necessário para que o indivíduo se torne um sujeito falante, mas isso ocorre como se fosse uma mera contingência, ou seja, uma ocorrência evitável (Zizek, 1997). 3. A positividade do cogito cartesiano, a ciência moderna, o homem como habitante da linguagem, o sujeito mutilado, o desejo e a pulsão Por outro lado, em afinidade com Lacan, Zizek (2009) defende a subjetividade cartesiana, mas pela via de uma inversão, operada de modo paradoxal, que afirma o sujeito do inconsciente como alternativa ao cogito racional de Descartes. Sob este prisma, é preciso ter em conta que o saber do inconsciente não é imediatamente acessível e que a estrutura de sua linguagem significante introduz no campo do saber novidades irredutíveis ao conhecimento científico que se pauta apenas a partir de uma lógica empírica, pragmática, racionalista e positivista. Além disso, a ―ciência moderna‖ decorre de um corte epistemológico com a filosofia medieval, ruptura pela qual ocorre um deslocamento de uma visão fechada de mundo, mas metafisicamente fundamentada, para um conhecimento aberto ao universo infinito (Zizek & Daly, 2006). Descartes, um dos primeiros artífices desta ruptura no campo da reflexão filosófica e que instaurou o espírito da ciência moderna, colocou a dúvida como núcleo fulcral de seu método. Sob este prisma, a própria ―res cogitans‖ enquanto cogito, enquanto pensamento que pensa, somente garante o pensar e não a questão da corporeidade no espaço, enfim, não garante a problemática da existência do ser como exterioridade natural e material, não garante a ―res extensa‖. Assim, para garantir a existência das coisas como substância material e, inclusive, para garantir o próprio sujeito pensante enquanto capaz de subsistir para além de seu próprio pensamento, Descartes teve que recorrer a uma terceira coisa, a Deus, ou seja, à ―res infinita‖ ou divina. Porém, a maior novidade em Descartes pode ser encontrada no fato de com ele o discurso do saber ter-se voltado pela primeira vez ao agente do saber, tomando também a este como uma questão de saber. Sob este prisma o próprio pensar sobre o ser, ou seja, o próprio pensar do sujeito torna-se pensável, colocando em questionamento os fundamentos ontológico-metafísicos do conhecimento, que assim não se sustentam mais como puros correlatos dos objetos conhecidos no mundo sensível (Zizek, 2008). Contudo, mais adiante, em Kant, o sujeito não aparecerá mais como uma substância pensante consistente, ou seja, não mais é apresentada como uma ―res cogitans‖, ao modo de Descartes, mas como Vazio que introduz a Razão no campo do entendimento, concebendo o sujeito de forma transcendental e não de modo individual e

psicológico, ademais, sem precisar para isso recorrer à ―res infinita‖ ou divina. A propósito, é o sujeito vazio e transcendental kantiano, por se coadunar melhor com a idéia do inconsciente freudiano, que interessa mais à teoria psicanalítica de Lacan do que qualquer psicologia naturalista e desenvolvimentista (Zizek, 2009). Na perspectiva lacaniana, segundo Zizek (2009), o homem habita na linguagem, mas sob a condição incômoda expressa na experiência de que essa residência do Ser é uma casa de tortura, onde o sujeito do inconsciente persiste como uma abertura que não se adéqua plenamente à lógica de estruturação da cadeia de significantes, não sendo um mero efeito da linguagem, incidindo também como um espinho atravessado na garganta do significante. Ou seja, a passividade do Ser enredado na linguagem comporta um verdadeiro impacto traumático na forma de uma tensão permanente entre o animal humano e a linguagem, de modo que o sujeito se constitui porque o animal humano não se ajusta de modo integral à linguagem. Entretanto, sob este prisma, a dimensão mais radical do sujeito, paradoxalmente, é a passividade e a não atividade, ou seja, o ato de suportar e de arcar o impacto cortante e atormentador da linguagem. Por outro lado, contudo: ―A mutilação [do sujeito] serve para orientar o desejo, capacitando-o a assumir precisamente essa função de índice, de qualquer coisa já realizada e que só poderá ser articulada e expressa num além simbólico, um além a que hoje chamamos ser, uma realização de ser no sujeito‖ (Lacan, apud Zizek, 2009, p.11). Sob este prisma, o sujeito lacaniano também apresenta o próprio Real não representável como seu estatuto, de modo que a Coisa real é primordialmente o núcleo impossível do sujeito. Assim, ―(...) devemos aplicar ao sujeito lacaniano a definição de Coisa como aquele aspecto do Real que carece de significante‖ (Zizek, 2009, p.10). Ademais, impõe-se o fato de o sujeito se suportar em um corpo no qual não se inscreve apenas a linguagem, mas que também é afetado pela dinâmica das pulsões. A propósito, inspirando-se em Jacques-Alain Miller, o próprio Zizek (2008, p.88) destaca que é preciso fazer uma distinção entre, por um lado, a falta que é espacial e designa um vazio dentro de um espaço e que, enfim, estrutura o desejo, e, por outro lado, o buraco que é algo bem mais radical, ―designando o ponto em que a própria ordem espacial se rompe (como no ‗buraco negro‘ da física)‖. Ou seja, sob esta perspectiva, impõe-se, segundo Zizek (2008, p.89), uma diferença entre desejo e pulsão: O desejo se baseia em sua falta constitutiva e a pulsão circula em torno de um buraco, de uma lacuna na ordem do ser. Em outras palavras, o movimento circular da pulsão obedece à estranha lógica do espaço curvo, em que a menor distância entre dois pontos não é uma reta, mas uma curva: a pulsão

‗sabe‘ que o caminho mais curto para atingir seu alvo é circular em volta do objeto-meta.

Nesta perspectiva, por um lado, o ―objeto a‖ lacaniano se sobrepõe à sua própria perda, ao surgir no próprio momento da perda – de modo que todas as suas encarnações fantasmáticas, de seios a vozes e olhares, são figurações metonímicas do Vazio, do nada. Assim, ele continua dentro do horizonte do desejo, pois o verdadeiro objeto-causa do desejo é o Vazio preenchido por suas encarnações fantasmáticas. Por outro lado, porém, como enfatiza Lacan, o ―objeto a‖ também é objeto de pulsão, sendo que neste caso a relação se torna bem diferente. A propósito, como destaca Zizek (2008, p.90): Embora o vínculo entre objeto e perda seja importantíssimo em ambos os casos, no caso do ―objeto a‖, como objeto-causa do desejo temos um objeto que originalmente está perdido, que coincide com a própria perda (...); ao passo que, no caso do ―objeto a‖ como objeto de pulsão, o ―objeto‖ é diretamente a própria perda, [ou seja,] na passagem do desejo para a pulsão, vamos do objeto perdido à própria perda como objeto. [Assim], o estranho movimento chamado de ―pulsão‖ não é impelido pela busca ‗impossível‘ do objeto perdido; ele é o ímpeto de encenar diretamente a „perda‟ em si – a lacuna, o corte, a distância. Aqui, há uma dupla distinção a fazer: não só entre o ‗objeto a‘ em sua condição fantasmática e pós-fantasmática, mas também, dentre desse mesmo campo pós-fantasmático, entre o objeto-causa perdido do desejo e o objeto-perda da pulsão.

Desse modo, a própria pulsão de morte, segundo Zizek (2008), não pode ser confundida com a ânsia de auto-aniquilação, com o impulso cego de auto-extermínio ou com uma busca de retorno à ausência inorgânica de toda tensão de vida. Ao contrário, trata-se aí do verdadeiro oposto de morrer. Ou seja, segundo Zizek, com base em Freud: Trata-se ―(...) do terrível destino de permanecer preso no ciclo repetitivo e interminável de perambular com culpa e dor. (...) [Enfim, pulsão de morte] é o nome que Freud dá (...) ao sinistro excesso de vida, à ânsia ‗não morta‘ que persiste além do ciclo biológico de vida e morte, de geração e deterioração. [Assim,] a maior lição da psicanálise é que a vida humana nunca é ‗só vida‘: os seres humanos não estão simplesmente vivos, eles estão possuídos pela estranha pulsão de gozar a vida em excesso, apegados a um excedente que se projeta para fora e perturba o funcionamento comum das coisas‖ (Zizek, 2008, p.90).

Portanto, é no desejo que o objeto positivo e parcial é o substituto metonímico do Vazio da Coisa impossível, pois é no desejo que a aspiração de plenitude se transfere para estes objetos parciais, e é isto que Lacan chamava de metonímia do desejo. Por outro lado, pulsão não é a ânsia infinita de se reunir à plenitude da Coisa maternal e que não se realiza por permanecer a pulsão fixada a um objeto parcial. A pulsão não é um impulso universal freado e fragmentado em direção à Coisa incestuosa.

Ela é, segundo Zizek (2008), o próprio freio, o freio do instinto. ―A matriz elementar da pulsão não é transcender todos os objetos particulares em direção ao Vazio da Coisa, a qual então só fica acessível em seu substituto metonímico, mas sim [a matriz elementar da pulsão relaciona-se à] nossa libido que fica ‗presa‘ a um objeto particular, ficando [a própria pulsão] condenada a circular para sempre em torno dele‖ (Zizek, 2008, p.91). 4. O sujeito do inconsciente, o “real da jouissance”, a “foraclusão” do sujeito no conhecimento científico e o ponto zero e evanescente do cogito Voltando à abordagem da noção de sujeito, Zizek (2009) ainda observa que o sujeito lacaniano designa um hiato no simbólico, de modo que seu estatuto integra o registro do ―Real‖. Ou seja, só podemos abordar o ―Real da jouissance” quando relativizamos o domínio da morada do Ser, ou seja, da linguagem, para assim nos darmos conta dos furos e das fissuras no registro simbólico, por onde o Real traumático oculto emerge e por onde também emerge o Real da jouissance. Por isso, para Lacan, também o cogito não pode ser reduzido à auto-transparência do pensamento puro, porque ele é o sujeito do inconsciente, ou seja, a distância/corte na ordem do Ser. Segundo Zizek (2009), se Lacan em seus primeiros seminários não partilha dos enfoques que estabelecem uma distância entre pensamento (cógito) e ser, subseqüentemente, a partir do seu seminário sobre a lógica do fantasma, Lacan passa a ler a verdade do ―cogito ergo sum” de Descartes de modo mais radical, visto que nos seminários anteriores o autor jogou indefinidamente com variações que subvertiam o sujeito. Mas, quando assume uma interpretação mais radical do cogito cartesiano, Lacan passa a descentrar o Ser em relação ao pensamento, ao dar-se conta de que o ―Não estou onde penso‖, o núcleo do meu ser, não reside na minha (auto) consciência. Em seguida, segundo Zizek (2009, p.13), contudo, Lacan apercebeu-se do seguinte: De que essa leitura deixava o campo inteiramente aberto para a irracional Lebensphilosophie (Filosofia da vida), tópico da Vida mais profunda do que o mero pensamento ou a linguagem, o que vai contra a sua tese fundamental, segundo a qual o inconsciente freudiano está estruturado como uma linguagem, de modo inteiramente discursivo. Portanto, passou para um muito mais refinado ―Penso onde não estou‖, que descentra o pensamento em relação ao meu Ser, [em relação] à consciência da minha completa presença: o Inconsciente é o Outro Local (...) puramente virtual [onde persevera] um pensamento que escapa ao meu Ser (...). O que todas estas versões partilham é a focalização na distância entre cogito e sum, entre pensamento e ser. [Sendo que] o propósito de Lacan consistia em minar a ilusão da sua sobreposição, apontando para uma fenda na aparente homogeneidade pensamento-ser. Assim, Lacan ―[se agarra] ao mais radical ponto zero do cogito cartesiano, como ponto de intersecção negativa entre ser e

pensamento: o ponto evanescente em que Não penso E não sou. [Ou seja, em que] NÃO SOU (...) uma substância, uma coisa, uma entidade; [pois,] na ordem do Ser, estou reduzido a um vazio, a um hiato, a uma abertura.

Por outro lado, referente à ciência moderna, cabe enfatizar que esta contribuiu para a emergência do sujeito moderno. Porém, o discurso da ciência pressupõe a foraclusão do sujeito – pois, no campo da ciência, o sujeito é reduzido ao ponto zero, visto que uma proposição científica deve ser válida para todos os que repetirem a mesma experiência (Zizek, 2009). Ademais, no momento em que incluirmos a posição de enunciação do sujeito do inconsciente, nos retiramos do campo da ciência – pois a construção científica se caracteriza pela incorporação de uma lógica de ocultação imaginário-simbólica dos excessos, das faltas e das inconsistências que emergem por entre as fendas do Simbólico na forma de um Real espectral. Na ordem do conhecimento, a ciência é estruturada a partir de princípios racionalistas, de leis gerais e em experimentos matemático-quantitativos e empiristas que impõem uma borda protetora na forma de um cinturão de coerência lingüístico-simbólica contra a emergência de fragmentos traumáticos decorrentes do registro do Real impossível. Assim, quando nos afastamos do discurso científico para entrarmos em uma sabedoria que emerge de outro local (o inconsciente), acessamos um saber não totalizante. Ou seja, o conhecimento científico se dá na intersecção do imaginário e do registro do simbólico, instituindo a representação como forma de identidade e totalidade, ocultando a emergência do furo e da lacuna no conhecimento. Ou seja, a representação da ciência adquire uma conformação coerente a partir da articulação conceitual em torno de teses empiricamente testadas, que são em seguida assumidas como verdades científicas. No cerne desta padronização, a representação científica adquire uma máscara de formalização que impõe a marca de uma determinada arrogância em relação às formas de saber provenientes das formações do inconsciente e de outras formas fragmentárias e poéticas de sabedoria, relegando-as à insignificância. De acordo com Zizek (2010), a verdade, na perspectiva lacaniana, não pode ser dita toda, pois faltam palavras para que isto seja possível. Dizer toda a verdade é materialmente impossível, porque dela não é possível simbolizar o seu núcleo oculto traumático. Assim, não é possível uma visão de mundo totalizante, pois não é a partir do caráter formalizado do discurso que a verdade se insinua, mas é precisamente quando o discurso falha e as palavras tropeçam que se revela um semi-dizer da verdade perturbadora entrelaçada com o desejo recalcado no nosso inconsciente. Ou seja, o saber

do inconsciente tem relação com o sujeito evanescente da enunciação inconsciente, que é distinto do sujeito da ciência que propicia o acesso a um conhecimento dirigido pelo uso da razão. O saber próprio do inconsciente, ademais, não tem a haver com um acúmulo de conhecimentos como ocorre com o conhecimento científico (Lima, 2011). Ao contrário do conhecimento presente no discurso universitário e científico – onde o conteúdo se traduz em princípios claros e distintos, sistematicamente articulados no sentido lógico –, o discurso psicanalítico revela que todo saber ou conhecimento é não-todo, pois apresenta lacunas, furos e falhas incontornáveis e, portanto, não superáveis por quaisquer suturas operadas pelo discurso racional e científico. Ou seja, as formações do inconsciente e as formações patológico-sintomáticas – as quais exprimem uma realização do desejo do pensamento recalcador sob a forma autopunitiva –, mediante o trabalho do sujeito no processo transferencial psicanalítico, facultam o acesso a um saber não totalizante, que as formações cognitivas racionais das ciências ignoram e abordam como sendo irracional e insignificante. No mundo moderno a ciência e seu braço que é a tecnologia se tornam os representantes fulcrais do discurso sócio-simbólico, substituindo o papel de nomeação do sujeito, introduzindo novos objetos, atados ao entrecorte dos registros do imaginário e do simbólico, visualizados como fatores de sutura ou de obliteração do elemento incontornável da falta, que está instalado na própria base do desejo do sujeito da enunciação, contribuindo, desse modo, para o surgimento de novas formas de sintomas sócio-patológicos, tais como a toxicomania e a depressão. Ou seja, a ciência e a tecnologia visam responder ao que há de insuportável frente ao não-saber que emerge por entre os limiares dos recortes-bordas dos objetos de conhecimento científico. Segundo o pensamento lacaniano, se apresenta uma disjunção nuclear dos campos da verdade e do saber-ciência. Nesta perspectiva, segundo Sanada (2004, p.2): Torna-se importante ressaltar que essa disjunção é o que marca a própria constituição do sujeito, dividido, uma vez que estabelece uma relação [de proporção ou] de razão entre S1 e S2, ponto este que, a princípio, equivaleria aos discursos da ciência e de psicanálise em sua essência. No entanto, uma diferença fundamental se coloca, e diz respeito à exclusão [ou foraclusão] do sujeito por parte da ciência, sujeito este que a psicanálise busca reintroduzir em seu discurso, contemplando a dimensão da verdade como não-toda a partir da fala, e a dimensão do saber naquilo que se articula à cadeia significante.

Ainda no que tange ao NÃO PENSO do ponto zero e evanescente do cogito cartesiano, cabe observar que Lacan aceita paradoxalmente a tese heideggeriana de que

a ciência moderna matematizável não pensa – mas para ele, isso significa que ela escapa ao quadro da onto-logia, do pensamento como Logos correlativo ao Ser (Zizek, 2009). Ou seja, na perspectiva lacaniana: Como puro cogito, eu não penso e estou reduzido a uma pura forma de pensamento que coincide com seu oposto, isto é, uma forma sem conteúdo e que é, como tal, não-pensamento. A tautologia do pensamento é autocancelada da mesma maneira do que a tautologia do ser; por isso, para Lacan, o ―Sou aquele que Sou‖ enunciado pela sarça ardente a Moisés no Monte Sinai, aponta para um Deus além do Ser, Deus como Real (ZIZEK 2009, p.13).

Ademais, para equacionar a problemática do sujeito, Zizek aproxima Hegel e Lacan para deles extrair uma teoria do sujeito fundada na idéia de negatividade. O ―Real‖ lacaniano é impossível de ser simbolizado ou totalizado, e, por conseguinte, nesta perspectiva o sujeito é constituído por uma falta estrutural que é decorrente de sua inscrição na linguagem, a qual por sua vez, não consegue inscrever os traumas ocultos do ―Real‖. Instala-se aí uma ausência radical na própria estrutura constitutiva do sujeito que é assim impossibilitada de alcançar uma plenitude ontológica. A ideologia no plano da vida social e a fantasia no cerne da subjetividade funcionam como mecanismos de suturamento dessa falha incontornável, instaurando uma ilusão em forma de totalidade. Como esclarece Zizek (1996A, p.26): A realidade nunca é diretamente ―ela mesma‖; ela só se apresenta através de sua simbolização incompleta e falha. As aparições espectrais emergem justamente nessa lacuna que separa perenemente a realidade e o ―real‖, e em virtude da qual a realidade tem o caráter de uma ficção (simbólica): o espectro dá corpo àquilo que escapa à realidade (simbolicamente estruturada).

Em suas derradeiras reflexões, uma tese central de Lacan aponta ―(...) que existe uma possibilidade de o sujeito obter alguns conteúdos, algum tipo de consistência positiva, também fora do ‗grande Outro‘, fora da rede simbólica alienante. Essa outra possibilidade é a oferecida pela fantasia, equacionando o sujeito com um objeto da fantasia‖ (Zizek, 1996B, p.324). Ou seja, o sujeito adquire suas características particulares não apenas por um mandato simbólico que lhe é imposto por uma rede de relações intersubjetivas da qual ele faz parte – porque se assim fosse, o sujeito não passaria de um mero vácuo, um espaço vazio a ser totalmente preenchido pelo conteúdo do ―grande Outro‖ e pelos ―pequenos outros‖, o que resultaria em uma alienação radical e inexorável do sujeito. Assim, a espinha dorsal da ―realidade de fantasia‖ do sujeito de

alguma forma mantém uma conexão com o ―Real‖ do desejo do sujeito, dando uma consistência positiva a ele fora da rede simbólica alienante. 5. Notas finais sobre a subjetividade hegeliano-lacaniana de zizek e uma breve nota sobre a educação enquanto ato político-educativo Quando Zizek (2009) recorre ao idealismo alemão (Kant, Schelling e Hegel) e à psicanálise lacaniana, o seu interesse central recai sobre o diagnóstico de certa falta e também certo excesso na ordem do ser. Ou seja, há uma ‗loucura‘ indecifrável que é inerente à constituição da própria subjetividade como tal, que Kant conceitua como sendo a dimensão do mal ―diabólico‖ e Schelling e Hegel a nomeiam respectivamente como a ―noite do eu‖ e a ―noite do mundo‖. O importante aí a ser resgatado é a reiterada ênfase na negatividade como pano de fundo inarredável presente em todo ser. Ou seja, esta é uma visão da subjetividade como algo que só pode vir a ser como uma passagem pela loucura, pelo seu núcleo traumático inconsciente, na tentativa permanente, mas de certo modo sempre fracassada, de impor uma integridade simbólica à ameaça sempre presente de desintegração e negatividade, no cerne da própria subjetividade. Segundo Zizek (2009), na psicanálise esse aspecto da subjetividade deslocada está atado ao conceito freudiano de ―pulsão de morte‖, que emerge como efeito dessa lacuna ou furo insuperável na ordem do ser. A autonomia radical do sujeito se constitui de modo relacional a essa fissura que ameaça incessantemente sabotar a estrutura simbólica da subjetividade. Ou seja, o sujeito é um vazio constitutivo básico que impulsiona a subjetivação, mas que não pode, em última instância, ser preenchido plenamente em termos de conteúdo. Desse modo, o sujeito é simultaneamente faltoso, excessivo e barrado, não podendo encontrar um nome adequado na ordem simbólica, nem chegar a uma identidade ontológica plena. Usando as expressões de Lacan, o sujeito é ―um efeito da linguagem‖, mas também ―um espinho atravessado na garganta do significante‖. E, na medida em que se liga à negatividade radical da pulsão de morte, o sujeito também reflete o mesmo tipo de tensão identificado no idealismo alemão: ―O sujeito tanto é um movimento de distanciamento da subjetivação – o excesso que engolfa a coerência simbólica numa noite entrópica do mundo – quanto o impulso para a subjetivação, como maneira de escapar desse estado incômodo‖ (ZIZEK, 1999, p. 59). A propensão ao excesso, à resistência e à distorção negativa, são os componentes que conferem um status humano ao sujeito e fincam um espinho na ordem simbólica.

Ademais, é o conhecimento traumático a respeito de nós, que se mascara em projeções de fracasso, que nos impede de preencher por completo o vazio do sujeito barrado em nós. Mas, ao mesmo tempo, esta própria resistência-excesso diante da subjetivação – e o conseqüente impulso de resolver questões impossíveis concernentes à identidade, ao destino, à divindade e assim por diante – faz com que, paradoxalmente, os sujeitos estejam abertos à possibilidade de desenvolver novas formas de subjetivação. Assim, o sujeito é, simultaneamente, a condição transcendental de possibilidade e de impossibilidade de todas as formas de subjetivação contingente (DALY, 2006, pp.7-30). Portanto, na contramão das diversificadas leituras pós-estruturalistas e desconstrucionistas que se alastraram na filosofia contemporânea – nas quais o traço enfático recai numa noção do ser múltiplo que sempre se configura provisoriamente em planos deslizantes de diferença, com a idéia de sujeito tendo se tornado bastante obsoleta, já que ele supostamente evoca a imagem de uma identidade cartesiana unificada –, Zizek (2006) enfatiza sistematicamente que o sujeito não é alguma entidade substancial nem um lócus específico, mas que ―... o sujeito existe, antes, como uma dimensão eterna de resistência-excesso em relação a todas as formas de subjetivação. Por outro lado, a leitura de Zizek (2009) sobre a questão da identidade em Hegel se contrapõe à objeção lacaniana de que Hegel promove um sujeito preso em sua autoidentificação, pois para Zizek a tríade hegeliana – tese, negação e negação da negação – envolve a internalização da não-identidade ou da diferença. Ou seja, o filósofo esloveno está bastante focado com o ininterrupto e irrequieto movimento da dialética hegeliana, que mais funciona como um processo interminável de tentativas repetitivas e sempre fracassadas em fixar experiências históricas reconciliatórias. Isto mostra, conforme Zizek, que a mediação absoluta do conceito é uma ilusão não-hegeliana. Ademais, a partir de sua controvertida interpretação da dialética hegeliana, Zizek concentra a sua atenção também sobre a implicação que a não-identidade ou a diferença tem sobre o movimento da identidade; ou seja, tão logo algo aproxima a identidade consigo mesma isto também se reverte em seu oposto, em sua diferença. É tomando em conta este processo, incessante e interminável, que Zizek estabelece repetidamente a ilustração paradoxal de que atualmente a própria tautologia é uma forma de contradição. Nesta perspectiva, segundo Zizek (2008), a afirmação de que ―a lei é a lei‖, da mesma forma que sugere que a única razão para obedecer à lei é que ela é imposta sobre nós – e que simultaneamente há nisso algo inerentemente traumático, violento, arbitrário e, finalmente avesso à própria lei –, ela também sugere que toda identidade

acaba se identificando com o seu oposto, como na equação hegeliana: O espírito é um osso, ou seja, em sua completa inércia, o crâneo (ou o cérebro) nos fornece a representação do Espírito, o qual já desde antes animou àquele. Ou seja, para Zizek (1993), a interpretação hegeliana deve ser feita – não sob o prisma de que a consciência, primeiro relaciona-se ou liga-se a um objeto externo ou a outro conteúdo fora de si, para apenas então internalizar de forma totalizante e plena este objeto ou conteúdo –, mas, ao contrário, de que a minha consciência se constitui no processo do meu repetido fracasso em subsumir toda e qualquer diferença resistente. Portanto, é precisamente porque o objeto externo retém inexoravelmente sua diferença, embora não de forma rigidamente fixa, que a auto-consciência pode seguir o caminho do movimento de reflexão do sujeito para o objeto e de volta para si mesmo. Deste modo, Zizek (1993) traz Hegel para dentro de sua própria perspectiva, para o que antes disso já fizera referente ao pensamento de Lacan. Sob este prisma, autoconsciência é o completamente oposto de auto-transparência. Ou seja, eu tenho consciência de mim mesmo somente até o ponto que fora de mim existe um lugar onde a verdade sobre mim está articulada. Assim, a própria identidade resulta de uma reflexão, pela qual são depositadas de volta sobre cada coisa a ser identificada, na forma de uma contradição interna, as diferenças, graças às quais a coisa em foco conserva o aspecto do não-idêntico ou do não assimilável frente ao próprio conceito de identidade. Portanto, Hegel não pode ser abordado como o último filósofo da mediação conceitual absoluta, onde tudo é subordinado à identidade, à totalidade e ao conceito. Assim, como transparece na leitura de reconhecimento do antagonismo na Ciência da Lógica e na compreensão da Essência em Hegel, fica difícil endossar a interpretação onto-teológica e teleológica franco-kojeviana sobre o modelo de pensamento de Hegel. Longe de representar a história da progressiva superação do antagonismo, a dialética hegeliana apresenta, conforme Zizek (2009), um sistemático reconhecimento das falhas e do fracasso de todas estas tentativas. Ou seja, segundo esta interpretação, o ―conhecimento absoluto‖ hegeliano denota antes uma posição subjetiva que aceita a contradição como uma condição interna indissolúvel de toda forma de identidade. Assim, a reconciliação na dialética hegeliana não comporta uma subsunção ―panlogística‖ de toda a realidade no Conceito, mas o consentimento final de que o Conceito é ―não-todo‖, ou seja, de que há uma lacuna impossível de ser plenamente suturada, e um elemento de não identidade que resiste a todas as tentativas fracassadas

de subsumi-lo em uma totalidade harmônica ou sintética. Assim, Hegel é um pensador que de certo modo antecipa o ―Real‖ lacaniano, impossível de ser simbolizado. Conforme Zizek (2009), Hegel é antes um filósofo da contingência do que do absoluto, de modo que não é um arauto do progresso teleológico, pois é apenas no sentido retroativo que o resultado de sua dialética é visto como tendo sido necessário. Ou seja, Zizek insere a dialética hegeliana no modelo freudiano-lacaniano de causalidade retrospectiva – baseado nos conceitos de nachträglichkeit de Freud e de après-coup de Lacan. Porém, nestes termos, sob um olhar prospectivo a dialética hegeliana está sempre aberta ao acaso, ou seja, a uma compreensão perspectivista. Para concluir esta reflexão, cabe observar que somente o fato de Zizek ter estabelecido um alinhamento tão heterodoxo do pensamento de Hegel, lhe permitiu argumentar que a verdadeira universalidade emerge de modo imanente do domínio concreto da particularidade histórica. Desse modo, longe de diminuir o aspecto da universalidade, a especificidade histórica é a chave reflexiva que permite a realização do universal. Assim, a aparente necessidade e inevitabilidade da marcha do Espírito absoluto hegeliano apenas é um efeito nachtäglich (a posteriori) em perspectiva: ao invés de um eterno e sempre pré-existente esquema na forma de um projeto préconfigurado da materialização das formações históricas, o Espírito hegeliano somente aparece em sua necessidade para o approach fixo do olhar subjetivo retrospectivo – em afinidade com a própria colocação metafórica de Hegel de que ―a águia de minerva só levanta vôo depois do anoitecer‖ – daqueles que inseridos em uma série contingente de eventos, os traduzem de modo retroativo vis-à-vis a uma formulação explicativa dos elementos de continuidade e descontinuidade de tais estruturas espirituais e históricas. Por fim, referente a uma educação para a emancipação, cabe pontuar que esta só se afirma quando acompanhada pela democratização da riqueza e do poder na sociedade, envolvendo ações de ultrapassagem transformadora do ―status quo‖, enfim atitudes de ruptura com a ―rede simbólica intersubjetiva alienante‖. A educação, por um lado, tem uma característica de assimilação dos indivíduos ao constructo institucional sócio-econômico, político, jurídico e cultural dominante, mediante a adequação e absorção dos indivíduos às relações de força institucionais e simbólicas imperantes na sociedade – envolvendo relações de produção, de mercado, de inserção profissional, jurídico-institucionais e de comunicação – em um contexto de dominação e de exploração de classes, étnico-raciais e de gênero.

Porém, o ato educativo por excelência é aquele que é, ao mesmo tempo, um ato político individual e coletivo de ruptura com situações opressoras cristalizadas, de injustiça, de marginalização social, enfim de falta de liberdade e de emancipação social. O autêntico ato pedagógico é também um ato político de subjetivação criativa, de redesenho simbólico em que o sujeito faz valer aquela partícula do Real e aquela dinâmica pulsional que funciona nele como um espinho na garganta da linguagem, inserindo-o corajosa, arriscada e incomodamente em uma dinâmica coletiva e intersubjetiva de transformação profunda e criativa da sociedade. Referências DALY, Glyn. ―Introdução: Arriscando o Impossível‖. In: ZIZEK, Slavoj & DALY, Glyn. Arriscar o Impossível: conversas com Zizek. São Paulo, Martins Fontes, 2006. LIMA, Jamille. ―A especificidade do saber na operação analítica‖. On-line ISBN 97885-60944-35-4. An 8 COLÓQUIO do LEPSI IP/Fe-USP, 2011. http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC000000003... SANADA, Elizabeth dos Reis. ―A ‗Verdade‘ da Ciência a partir de uma Leitura Psicanalítica‖. Rev. de Psicologia USP. 2004, 15(1/2), 183-194. ZIZEK, Slavoj. Como Ler Lacan. Rio de Janeiro, Zahar, 2010. ____, ____. O Sujeito Incomodo: O Centro Ausente da Ontologia Política. Lisboa, Relógio D‘Água, 2009. ____, ____. A Visão em Paralaxe. São Paulo, Boitempo, 2008. ____, ____. The ticklish subject. Londres, Verso, 1999. ____, ____. The plague of fantasies. Londres, Verso, 1997. ____, ____. ―Introdução: O espectro da ideologia‖. In: Theodor Adorno [et. al.], ZIZEK, Slavoj (org.). Um Mapa da Ideologia. RJ, Contraponto, 1996A, pp.7-38. ____, ____. ―Como Marx inventou o sintoma?‖. In: Theodor Adorno [et. al.], ZIZEK, Slavoj (org.). Um Mapa da Ideologia. RJ, Contraponto, 1996B, pp.297-331. ____, ____. Tarrying with the negative. Durham, Carol. Norte, Duke Univ. Press, 1993. ZIZEK, Slavoj & DALY, Glyn. Arriscar o Impossível: conversas com Zizek. São Paulo, Martins Fontes, 2006.

O Sorriso Insuportável de Bartleby, segundo Slavoj Zizek Fernando Facó de Assis Fonseca A década de noventa foi extremamente fértil para que pensadores em geral ensaiassem modelos teóricos capazes de, não apenas compreender, mas acima de tudo prever as direções de novas formas políticas com as quais o mundo teria de lidar num futuro próximo. A causa óbvia disto era o momento crucial que a história atravessava com o fim do comunismo e a dissolução do bloco soviético. Em proporções razoáveis de medo e esperança, deu-se início, portanto, a uma nova era da política mundial, na qual novos contornos teóricos teriam de ser delineados a fim de esclarecer e conduzir por uma lógica discernível os acontecimentos que alteravam a ordem estabelecida. É nesse contexto que surgem, por exemplo, pensadores como Francis Fukuyama (1992) e Samuel Huntington (2010), propondo, cada um ao seu modo, uma nova compreensão da política no fim do século XX. Deste modo, enquanto, por um lado, Fukuyama (1992) argumentava que a fórmula final da melhor ordem social possível foi encontrada no modelo de democracia liberal capitalista, pois não havia mais nenhum formato conceitual mais avançado, somente obstáculos empíricos a ultrapassar; Huntington (2010), por sua vez, alegava que o mundo se organizaria não mais a partir de fatores ideológicos, políticos ou econômicos, mas essencialmente por meio de fatores culturais. De um lado, temos, com Fukuyama, o fim da história, enquanto, de outro, com Huntington, a historia continua, no entanto, compreendida em termos de choques entres civilizações. O que aparentemente pode ser interpretado como sendo visões teóricas divergentes, não passa na verdade de uma única e mesma leitura do mundo pós-guerra: o choque entre civilizações é em ultima instância o fim da historia, na exata medida em que a nova ordem estabelecida é considerada, por ambos os pensadores, como sendo fundamentalmente pós-ideológica. Talvez, o que Huntington não enxergue é que lutas entre culturas não são capazes de conduzir o espírito histórico no sentido em que este foi erguido e mantido por ideais revolucionários e propostas transformadoras. Por isso, nessa concepção apocalíptica, o significado mais profundo de história se encontra 

Doutorando do eixo Filosofia, Política e Educação do curso de Educação da Universidade Federal do Ceará – FACED.

terminantemente morto, já que fora desprovido de sua mola propulsora. E, diga-se de passagem, esse aspecto pós-ideológico da política é fator tão incontestavelmente aceito para grande parte do pensamento contemporâneo, que isto é tomado, de antemão, como um algo dado e evidente. Em suma, a perda do conteúdo ideológico da realidade implica consigo o estágio final e conclusivo da história. Consequentemente, a opinião geral em nossa época pós-moderna preconiza sem reservas que a realidade na qual vivemos se apresenta rigorosamente na sua forma efetiva e não mais ideológica. O que em outros termos significa que, a um passo de alcançar os pressupostos básicos da razão iluminista, este momento consiste no tão esperado momento da emancipação humana. Nesse sentido, diante de tal perspectiva, qualquer que seja a crença ou luta por ideais renovadores e revolucionários torna-se, por assim dizer, anacrônico em relação ao que se configura como a nova ordem política e a forma como se organiza seu estado de coisas vigente. Não admitindo, pois, mais discursos totalizantes/idealísticos, essa nova configuração da política funda, portanto, aquilo que Zizek (2011) denomina de pensamento fraco: discursos cujas grandes causas padecem de maneira inexorável. De forma irônica, diz ele que a: ―(...) era das grandes explicações acabou, precisamos de um pensamento ‗fraco‘, oposto a todo fundamentalismo, um pensamento atento à textura rizomática da realidade; também na política, não deveríamos mais visar os sistemas que tudo explicam e os projetos de emancipação global‖ (2011, p.20). A ideia de democracia regente no mundo contemporâneo se apresenta, em última instância, como a alternativa mais bem elaborada de regime político após a desintegração do bloco soviético. De maneira que, numa curiosa análise, a democracia surge como uma escolha deliberada feita pelo ocidente após ter amargamente experimentado regimes como o fascismo, o socialismo e, não esquecer, a monarquia. O que nos deixa a estranha impressão, como já sugerira Adorno (1995), de que no fundo estamos diante de um cardápio de sistemas políticos cuja democracia aparece como uma espécie de prato do dia, mais em conta e mais prático. Uma rápida análise da história revela, porém, que a democracia, tal como a conhecemos, não é de modo algum o resultado de lutas sangrentas por uma idônea maioridade moral da espécie humana, isto é, um regime que se empenha em buscar uma integração maior da classe oprimida etc.; essa democracia com a qual lidamos é simplesmente um modelo prêt-à-porter, o que melhor convém ao sistema econômico capitalista. A democracia liberal multiculturalista

não é outra coisa senão um comovente apelo imposto pela nova etapa do sistema capitalista mundial enquanto work proposition. É particularmente nesse contexto que a política se revela desprovida de seu núcleo duro – ideológico e passional – para se consumar enquanto ideia paradoxal de um sistema político sem política, e cuja contradição inerente é o que melhor exprime nossa lânguida era pós-política. A pós-política, como propôs Jacques Rancière, ―(...) insiste no fato de que é necessário deixar para trás as velhas divisões ideológicas para enfrentar os novos problemas ‗globais‘, se armando de especialistas indispensáveis e do livre discurso que leva em conta as necessidades e as reivindicações de todos‖ (Zizek, 2002, p.34). Em outros termos, a pós-política fica assim reduzida particularmente a um gênero de administração de problemas sociais, que compõe o quadro desde sempre préestabelecido das relações sociopolíticas existentes. Isso é o mesmo que dizer que a política pós-moderna não se ocupa senão em cumprir certas regras administrativas já pressupostas por um campo determinado de execuções protocolares, deixando totalmente de lado seu aspecto criador e revolucionário. Quando isto acontece, o preço a pagar é justamente a perda da política ela mesma, ou seja, enquanto regimento administrativo e burocrático, ela é esvaziada de seu eixo substancial mais elementar, aquele X insondável que traduz todo e qualquer movimento político em política propriamente dita. A consequência inevitável da despolitização da esfera econômica é, com efeito, o triste desvio que transforma toda discussão ativa, sobre tomada de decisões coletivas e responsáveis, em problemas administrativos gerais. Tal efeito produz na maioria das vezes um gênero específico de debate concentrado particularmente em minorias culturais, onde serão basicamente as diferenças sexuais, étnicas e religiosas que ocuparão a frente do cenário político; enquanto decisões mais fundamentais e transformadoras do ponto de vista da maioria social ficam reduzidas para segundo plano. As democracias neoliberais, cujo efeito mais nefasto é esse vazio político universalmente compartilhado, é portanto o modo de ser do nosso mundo pósideológico/multiculturalista. O dilema aqui reside no fato de que o desaparecimento do fundamento político na pós-política consiste na condição sine qua non que garante as nossas pseudoliberdades individuais, de modo que, tanto o direito à privacidade, como a liberdade de expressão e a crença religiosa só são, com efeito, possíveis na medida em que o Estado não interfira no livre curso da economia. Isto significa, mais precisamente, que nossa ideia de democracia é fundamento incondicional do capitalismo e, por tal

razão, um posicionamento genuinamente político revelar-se-ia tão pouco provável nos dias de hoje que, em certo aspecto, é muito mais fácil aceitar uma catástrofe natural de proporções colossais, que, efetivamente, conceber o fim do capitalismo. Assim, não é possível empreender mudanças reais no cenário político sem abdicar minimamente do espaço simbólico que garante as coordenadas elementares do jogo político contemporâneo; incluindo nele todas as liberdades com as quais estamos familiarmente acomodados. Para dizer as coisas de modo simples e preciso, a ideia central aqui consiste em que, para rompermos com a raiz do sistema capitalista é igualmente necessário que se renuncie aos ícones supremos do marketing da democracia liberal, isto é, o posto que ocupamos enquanto sujeitos livres e autônomos. Nessas condições, o capitalismo revela-se por definição um sistema praticamente indestrutível: indestrutível, na medida em que os partidos políticos ditos de resistência se limitam a combatê-lo, por assim dizer, na soleira de um capitalismo mais humano, isto é; na medida em que se limitam em confrontar os aspectos mais degradantes do capitalismo sem de fato privar-se do efeito democrático que ele oferece. Nessa perspectiva, Zizek (2002) apresenta dois esquemas segundo os quais nossa política de resistência se enquadra perfeitamente. Diante dessa aparente inexorabilidade do capitalismo: ou bem insistimos em um gesto vazio e inexpressivo de fidelidade a um conteúdo ideológico obsoleto, de modo que, quando não há mais esperanças para lutar, restam apenas princípios a seguir (assim como os famosos comícios de esquerda que são na verdade percebidos muito mais como algo bizarro e antiquado do que seriamente ameaçadores); ou, por uma tentativa de adequação ao estado de coisas vigente, depõemse as armas e institui-se, a conta gotas, alguns antigos valores que, sob certa medida, não causam maiores danos à lógica triunfante do sistema atual. Consequentemente, a esquerda hoje em dia aparenta, no melhor dos casos, a uma grande mosca varejeira que causa evidentemente certa repugnância, mas que, como todos sabem, não chega a picar. Diante desse plano lúgubre, um problema urgente se apresenta: não se trata aqui de defender um puro e simples retorno às velhas ideias de luta de classes e revolução capitalista, mas, mais precisamente, de saber como é verdadeiramente possível minar o sistema capitalista mundial de forma efetiva e sem retórica (Zizek, 2002). Uma saída possível pode ser articulada através da ideia de política de subtração proposta por Alain Badiou (Zizek, 2011). Por esse viés não há a mínima necessidade de um derreamento de sangue num engajamento brutal pela tomada de poder, a fim de promover mudanças significativas no atual estado de coisas. De modo demasiado

singular, essa política não é propriamente destrutiva, antagônica, nem mesmo militarizada. Mediante um gênero de revolução passiva – que, embora passiva, não deixa de ser menos violenta – essa política não tem como alvo o centro do poder administrativo, tampouco tem o propósito de destituir líderes governamentais específicos: a grande revolução é realizada fundamentalmente no registro simbólico, campo responsável pelas coordenadas que determinam o aspecto constatativo e coeso da realidade. Em outras palavras, a ideia de subtração revolucionaria aqui em jogo tem como tarefa atuar diretamente no próprio quadro categorial que determina a coerência interna da esfera intramundana; o jogo dos elementos no interior da forma total. Como diz Zizek (2011), ―(...) em vez de destruir-negar diretamente o poder dominante, permanecendo em seu campo, ela solapa esse mesmo campo, criando um novo espaço positivo (p.404). Todavia, de acordo com Zizek (2011), haverá sempre subtrações e subtrações, ou seja, diferentes maneiras de pensar a política de subtração. Podemos, por um lado, pensá-la enquanto uma simples negação que, se recusando a fazer parte do jogo obsceno da política, se contenta em exercer uma crítica ininterrupta da realidade através de queixas intermináveis sobre as injustiças que povoam o mundo. Neste modelo, podemos enquadrar não somente as práticas meditativas new age, adotada por uma legião de executivos do bem (os quais, impregnados das impurezas e dos vícios do sistema capitalista, convertem-se em religiões pseudo-orientais como um modo de recuperar as boas energias do universo); como, também, os intelectuais de esquerda, que preferem permanecer à distância do Estado, sempre promovendo suas críticas de forma ilesa e autônoma. Na verdade, essa subtração enquanto simples negação consiste essencialmente na típica atitude da bela alma hegeliana. ―Em vez de agir, a Bela Alma fala, exprime suas convicções profundas deplorando o triste estado no mundo, as injustiças etc.; não quer sujar suas mãos, quer manter-se a qualquer preço longe do mundo prosaico‖ (Zizek, 1991, p.86).

Nesse sentido, a bela alma se revela como uma ―(...) alma terna,

estetizante, requintada demais para a vulgaridade do mundo social‖ (Idem). Segundo Zizek (1991), essa crítica hegeliana à bela alma não se limita apenas em condená-la por falar e não agir, ―(...) por contentar em deplorar o estado do mundo sem nada modificar nele‖ (Idem). O verdadeiro impasse é que a bela alma é, sob todos os aspectos, profundamente responsável pelo sistema que deplora: tão logo se queixa de sua inadequação estrutural à realidade concreta, ―(...) em cujo contexto ela desempenha o

papel de vitima passiva‖, ela simultaneamente engendra as condições efetivas de sua desditosa vida. ―A aparência de uma constatação dos fatos dissimula uma cumplicidade, o consentimento ou a vontade ativa de endossar esse papel e, dessa maneira, permitir à situação deplorada que se reproduza‖ (Idem). Tomemos o exemplo da mãe sofredora fornecido por Zizek (1991). Esse personagem carrega consigo, num silêncio profundo, o sofrimento de todos os demais membros da família, sacrificando, assim continuamente, sua felicidade pessoal, no intuito de garantir, a duras penas, o bem-estar de seus entes. O que não pode passar despercebido é o papel que cumpre seu sintoma nessa rede intersubjetiva – sintoma este que, decerto, ela ama mais do que a ela mesma. Trata-se, com efeito, de manter-se firme nessa posição de vítima, de total anonimato, suportando toda sorte de infortúnio e de padecimento existencial. E por quê? Pelo simples motivo de que, apesar de tudo, a dor circunstancial se torna secundária quando comparada ao gozo narcísico do qual o sujeito usufrui quando inscrito nessa organização simbólica. Em outros termos, o lugar de sacrifício é, a todo rigor, o modo específico segundo o qual a consistência subjetiva da mãe sofredora pode ser minimamente asseverada. E assim, como se o mundo precisasse dela, ela estava disposta a sacrificar tudo, salvo o próprio sacrifício... Nesse sentido, ―(...) o que o sujeito tem que fazer para se livrar de seu papel de ‗bela alma‘ é precisamente esse sacrifício do sacrifício: não basta ‗sacrificar tudo‘, é preciso ainda renunciar à economia subjetiva em que o sacrifício traz o gozo narcísico‖ (Zizek, 1991, p.86). Este gesto drástico de renúncia total exigido à bela alma corresponde precisamente à ideia de ato político, segundo Zizek (1991). Em outros termos, para uma real política da subtração, não basta apenas negar o conteúdo contingente e arbitrário, mantendo, assim, intacto o quadro categorial através do qual estes elementos são articulados. O engodo nesta perspectiva da simples negação repousa no fato de que a lei, na sua qualidade puramente formal, permanecerá inalterada, enquanto tudo mais continuará sendo julgado segundo sua máxima. Em oposição a isto, o real efeito político só pode ser cumprido efetivamente se incidirmos diretamente nas próprias coordenadas responsáveis pelo efeito valorativo do sistema, ou seja, nessa própria lei que origina e ordena a coerência interna do espaço simbólico. Como diria Jacques Derrida (2007), a moldura é parte constitutiva da obra: embora estejamos, por assim dizer, automaticamente condicionados a julgar somente a tela, não há, em absoluto, tela sem moldura; uma vez que a segunda dá os contornos e a forma específica da primeira. Esta

é a razão pela qual Zizek (2011) insiste em retomar para sua análise política o conceito hegeliano de negação da negação, através do qual uma mudança concreta é possível não graças a um simples remanejamento dos elementos situados na esfera intramundana, isto é, interna ao campo do simbólico (como uma simples negação), mas, sobretudo, devido a uma negação que atue na própria eficiência simbólica desse campo. Por isso, é valido notar que esse redimensionamento efetuado diretamente nas coordenadas do quadro categorial não implica necessariamente num rebuliço incessante na configuração interna do estado de coisas no mundo. Na verdade, tal mudança é no máximo uma simples mudança de olhar sobre este mesmo estado de coisas. Se, na primeira negação, permanecemos, de fato, no interior dos limites simbólicos que condicionam meu olhar sobre o mundo; na segunda negação – o que deve vir logo em seguida – é particularmente esse próprio olhar sobre o mundo que deve, por sua vez, ser deslocado. O que equivale a dizer que não se trata em transformar o mundo remanejando continuamente de lugar em lugar sua organização interna; o mais fundamental aqui consiste em compreender a lei que determina o espaço doador de sentido do estado de coisas no mundo. Deste modo, mudamos completamente de atitude política na medida em que tomamos a própria lei - na sua dimensão propriamente kantiana – como a única transgressão possível, e não especificamente o crime submetido sob o jugo desta lei. Por isso que a verdadeira subtração política é aquela feita na base formal que funda um determinado campo hegemônico, e que somente assim, pode efetivamente intervir nesse campo. É por esta razão que tal subtração é extremamente violenta: não porque mata sujeitos e destrói monumentos, mas pelo simples fato dela afetar violentamente o campo no qual estes elementos estão inscritos, ―(...) pondo a nu suas verdadeiras coordenadas‖ (Zizek, 2011, p. 406). A violência maior é, por assim dizer, aquela que age passivamente transformando tudo a seu redor em matéria inerte e insignificante; tal como o terror que se manifesta no olhar impenetrável do condenado que aguarda serenamente e em silêncio sua sentença: o fato é que este já se encontra terminantemente morto na esfera simbólica. Esta é a imagem sombria que exprime com precisão nossa verdadeira condição humana; aquela que Zizek (2011) vai denominar como a condição peculiar do morto-vivo. É mais ou menos nesse sentido que Zizek (2007) desenvolve uma formidável análise sobre o personagem Bartleby, de Herman Melville. Antes de mais nada, seu exame se opõe radicalmente ao proposto por Michael Hardt & Antonio Negri (2001). Segundo Zizek (2007), os autores falham ao compreender a recusa de Bartleby, I prefer

not to (eu preferiria melhor não) simplesmente como um ―(...) primeiro passo, por assim dizer, para limpar a área, distanciar-se do universo social existente‖ (Zizek, 2011, p. 353). Ficar preso a essa primeira recusa do ―não!‖ de Bartleby acabaria sendo, conforme sustentam Hardt & Negri, um posicionamento marginal eminentemente suicida que, como bem expressam os autores, Bartleby pode ser uma alma linda, mas por sua absoluta pureza agarra-se à borda de um abismo. Sua linha de fuga da autoridade é completamente solitária, e caminham continuamente à beira do suicídio. Em termos políticos, também, a recusa em si (do trabalho, da autoridade e da servidão voluntaria) leva apenas a uma espécie de suicídio social (MICHAEL & NEGRI, 2001, p.224).

Em poucas palavras, o Bartleby de Hardt & Negri (2001) representa tão somente uma mera negação abstrata – ou uma simples negação –, sem com isso alcançar o efeito concreto do ato político enquanto tal. Para os autores, é necessário ainda um segundo momento: o momento em que essa negação abstrata deve ser superada ―(...) pelo trabalho positivo e paciente da negação ‗determinada‘ do universo social existente‖ (Zizek, 2011, p. 353). O que passa ao largo das reflexões desses autores é que a recusa de Bartleby, longe de operar como uma simples denegação do estado de coisas estabelecido, já carrega em seu bojo o vazio absoluto sobre o qual a Lei é inscrita. De maneira específica, para Zizek, Bartleby figura muito mais que uma mera etapa do processo revolucionário: ele próprio já representa o ato revolucionário propriamente dito. Bartleby expressa a violência na sua forma mais fundamental: não a violência fascista cuja toda aquela agitação especular de produzir alguma coisa nova a cada momento não serviu senão para manter tudo no seu devido lugar; mas uma espécie de violência absolutamente passiva que age efetivamente sobre as coordenadas elementares que configuram a ordem constituída. Aqui estão, pois, presente duas diferentes formas de se pensar a ação política: a primeira que eu qualifico de uma quietismo ativo, isto é, o rebuliço constante que age unicamente para manter as coordenadas do sistema inalterado; e outra que consiste numa forma de revolução passiva, que, embora o estado de coisas permaneça aparentemente imperturbado, é ela que realiza uma transformação efetiva na estrutura formal da realidade. Podemos, pois, enquadrar o Bartleby de Zizek nesse segundo modelo, aquele que, através de sua indiferença inquietante no que concerne às exigências de sua função burocrática, produz a abertura de um vazio determinado, de um lugar puro, positivo, no âmago da própria Lei, e que, por isso

mesmo, pode tocar na fragilidade inerente de toda ordem simbólica como tal. Trata-se fundamentalmente de uma negação determinada, ou aquilo que Hegel entendia por negação da negação. O que está contido no gesto puro de Bartleby, seu incompreensível preferiria melhor não, é antes a passagem de uma simples política da resistência, ou da contestação – política esta que, como vimos, desfruta daquilo que ela mesma nega – para um ato político propriamente dito: um ato que abre um novo espaço, totalmente exterior à posição hegemônica e à sua simples negação. Nesse sentido, poderíamos imaginar Bartleby respondendo a uma série de propostas típicas do nosso mundo pós-moderno, que envolve, dentre inúmeras delas, as psicologias pop americanas de autoconhecimento e self-esteem; as ações ecológicas por um desenvolvimento sustentável; as lutas por minorias sexuais e, de um modo mais amplo, todas as formas de resistência que encontramos hoje expressa na nossa insípida política de esquerda. E se no lugar da superficialidade expressa no entusiasmo daqueles que lutam por um mundo melhor –mas que simultaneamente negam em abdicar do gozo simbólico que desfrutam desse mesmo mundo – se no lugar disso, disséssemos, como Bartleby, preferiria melhor não? ―Descubra a profundeza do seu verdadeiro eu, encontre a paz interior!‖ – ―preferiria melhor não!‖, ou então, ―você tem consciência do perigo que corre nosso meio ambiente?‖ ―faça alguma coisa pela ecologia!‖ – ―preferiria melhor não!‖ ou mesmo, ―quantas injustiças raciais e sexuais nós podemos observar em torno de nós! não está na hora de fazer alguma coisa?‖ – ―eu preferiria melhor não‖ (ZIZEK, 2007, p.410). Desta forma, Bartleby opera a subtração em toda sua pureza, ―(...) a redução de todas as diferenças qualitativas a uma diferença mínima puramente formal‖ (Zizek, 2007, p.410), que faz desmoronar todas as vacas sagradas do nosso campo ideológico; dentre tantas outras, as ideias de democracia, direitos humanos, liberdade individual. Porém, convém reforçar que não há nada de violento em sua afirmação, ―(...) a violência resulta de seu ser impassível, insistente, inerte, imóvel‖ (Idem). ―Bartlebly não poderia fazer mal nem mesmo a uma mosca‖ (Idem) – e é por isso mesmo que seu sorriso pueril é tão insuportável. Referências ADORNO, Theodor, W. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. DERRIDA, Jacques. O cartão-postal: De Sócrates a Freud e além. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

FUKUYAMA, Francis. The end of history and the last man. New York: Free Press,1992. HARDT, Michael & NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001. HUNTINGTON, Samuel, P. O choque de civilizações: e a recomposição da ordem mundial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010. ZIZEK, Slavoj. O mais sublime dos histéricos: Hegel com Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991. ZIZEK, Slavoj. Le spectre rôde toujours: actualité du Manifeste du Parti Communiste. Paris: Nautilus, 2002. ZIZEK, Slavoj. La parallaxe. Paris: Fayard, 2007. ZIZEK, Slavoj. Em defesa das causas perdidas. São Paulo: Boitempo, 2011.

O Sujeito na Experiência Psicanalítica e nas Narrativas Contemporâneas: Uma Abordagem na Filosofia de Zizek (incluir e-mail) Maria Anita Vieira Lustosa Márcia Gardênia Lustosa Pires 1. Introdução Neste ensaio privilegiamos a análise da relação sujeito e psicanálise contida na Psicanálise e na obra de Žižek (1999), no intuito de perceber as nuanças que envolvem essas dimensões para a condição social do sujeito na contemporaneidade. Vale ressaltar que Žižek busca compreender o engendramento da problemática da sociabilidade hoje, na perspectiva da totalidade do real, tendo em vista que esta realidade é permeada por transformações políticas, econômicas e sociais, principalmente as percebidas na esfera produtiva que transformavam significativamente, a vida em sociedade. As questões que envolvem as diversas abordagens sobre a categoria sujeito e a forma como este se constitui na sociedade não estão circunscritas a uma única área do saber. O estudo dessa questão se expressa em vários campos, tais como filosofia, psicologia, sociologia, dentre outras áreas do conhecimento e em diferentes tempos históricos. Inicialmente convém dizer que, nos limites desse estudo, examinaremos esta categoria no arcabouço teórico da experiência psicanalítica e nas narrativas contemporâneas em uma abordagem pautada no pensamento de Slavoj Žižek, (2009). Para tanto, se faz necessário esclarecer que enveredarmos no âmbito psicanalítico, mais especificamente nas apreensões de Freud e Lacan (apud Elia, 2007) sobre a categoria sujeito, em uma análise teórica do conceito buscando compreender sua construção histórica e seus desdobramentos no campo da Psicanálise e da Filosofia. As diferentes análises da categoria sujeito e seus desdobramentos nos diversos campos do conhecimento revelam a não existência de uma única compreensão para o



Doutoranda em Educação Brasileira da Universidade Federal do Ceará (UFC) e Integrante do Eixo de Pesquisa Filosofia, Politica e Educação (FPE), vinculado a Linha de Pesquisa Filosofia e Sociologia da Educação (FILOS).  Professora do Instituto Federal de Ciência, Tecnologia e Educação (IFPB). Doutora em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará (UFC0 e integrante da Linha de Pesquisa Filosofia e Sociologia da Educação (FILOS).

termo, devido à pluralidade de significações que envolvem essa temática, quando tecida em diferentes contextos. Se por um lado a filosofia (gnosiologia), as concepções religiosas (dogmas), e a ciência com seus princípios pautados em procedimentos fundados na comprovação da verdade procuram dar respostas a essa questão, por outro lado, a psicanálise, centrada no saber sobre o inconsciente, também ensaia suas respostas. Para a Psicanálise, o sujeito é lócus privilegiado de discussão desse campo do saber a partir da modernidade, por considerar que a busca por conhecê-lo pertence ao campo do inconsciente o que faz com que ela o integre seu corpus teórico (ELIA, 2007). Podemos asseverar que com o aparecimento da psicanálise, emerge a compreensão da interferência de processos simbólicos e psíquicos na constituição do sujeito. Para a psicanálise o sujeito não nasce, mas se constitui através de processos simbólicos e psíquicos que apresentam uma lógica diferente da razão, pois, a categoria sujeito é ―antes, do tipo que mais se impõe ao trabalho teórico do psicanalista do que dele decorre como construção‖ (ELIA, 2007, p. 16). Observações como essas nos ajudam a compreender que para se fazer uma abordagem mais minuciosa do termo sujeito, em psicanálise, é imperativo que primeiro se retome o conceito de sujeito lacaniano. Tal imposição ocorre pela influência de Lacan ao introduzir na psicanálise aspectos não encontrados nos textos de Freud, posto que este não faz referência a essa categoria, e muito menos ela fora utilizada em estudos pós-freudianos. (ELIA, 2007). Na esteira de Lacan podemos asseverar que o marco da emergência do sujeito - o surgimento do sujeito, sendo uma criação igualmente moderna e consequentemente contemporânea ao surgimento da ciência – seria o aparecimento do conceito de angústia, da incerteza em relação aos acontecimentos incompreensíveis do novo mundo ―desencantado‖ para o homem. Não foi por acaso que tal compreensão tenha passado a existir em um momento no qual poderíamos classificar de ―momento de angústia da história do pensamento‖ (ELIA, 2007, p. 13), no qual podemos assinalar uma relação de equivalência entre essas duas formas de emergência: a do sujeito e a da angústia. (ELIA, 2007). Descartes inaugura o debate sobre a emergência de um sujeito pensante, no qual se refere à descoberta do cogito (a certeza que o sujeito pensante apresenta de sua própria existência), sendo ainda imprescindível para suas análises a transposição de dois desafios: o primeiro seria a incredubilidade da razão e a extensão dos corpos como

critério de verdade. O ideal de um sujeito autônomo e independente, consciente de si e do mundo, dotado de uma incondicional racionalidade é um dos alicerces de seu pensamento e do mundo moderno. É notório que a antiguidade clássica não trabalhou com a noção de sujeito tal como a conhecemos hoje, uma vez que buscava se afastar das explicações míticas e centrava seus estudos na produção do pensamento racional, inaugurando, a discussão sobre o que vem a ser a realidade (phisis), ou seja, a essência das coisas. Por outro lado, as narrativas contemporâneas se diferenciam dessa perspectiva filosófica por uma abordagem crítica da noção sujeito e de sua subjetividade. A direção percorrida pela filosofia moderna centra-se principalmente na epistemologia do conhecimento, considerando a subjetividade como instância capaz de solucionar o problema da verdade, ou seja, da possibilidade de afirmamos com veemência a verdade dos fatos. Assim, a filosofia moderna inaugura essa questão quando apreende a subjetividade como uma composição das formas de consciência. Essa consciência refere-se a um conhecimento de si e das coisas e, ao mesmo tempo, da reflexão sobre o que venha a ser o conhecimento do conhecimento. Trata-se de centrar o foco das discussões não mais apenas no conhecimento do real (kosmos), ou da própria natureza, mas sobre o sujeito do conhecimento, como foco primordial de análise e de se questionar sobre como é possível o conhecimento das coisas. O pensamento difundido na modernidade ao elevar o sujeito cognoscente como problema fundamental da filosofia moderna inicia uma reflexão sobre o próprio sujeito como um agente do saber. No movimento do ato de conhecer o sujeito se desdobra, agora, não mais como um mero correspondente do objeto conhecido. Trata-se não mais de apenas, ontologizar o sujeito, ou mesmo de tentar compreendê-lo através de conceitos metafísicos, mas de pôr em questão o pensar sobre o ser, ou seja, de questioná-lo como sujeito do saber (ELIA, 2007). No decurso dessas análises situamos também as apreensões de Kant sobre a categoria sujeito, uma vez que suas exposições caracterizam com maior propriedade esse conceito, pois suas apreensões sobre o ―sujeito transcendental‖ se aproximam muito mais do conceito de sujeito no qual a ciência se fundamenta a partir da modernidade. Assim, ao partirmos do fundamento da ciência como protocolo de emergência da categoria sujeito, estamos ao mesmo tempo, estabelecendo uma correlação entre essas duas categorias (sujeito e ciência). Porém, ao passo em que a ciência estabelece as

condições propícias para o surgimento do sujeito, podemos asseverar que esta não opera com ele, muito menos sobre ele, mas o exclui do seu campo operatório. Ao tempo em que é suposto pela ciência este acaba sendo excluído do seu campo de operação. (ELIA, 2007) Feitas essas considerações podemos inferir que se instaura aqui um campo fértil de debate, notadamente em relação ao sujeito privilegiado pela ciência moderna, uma vez que estão postas aí as condições para que a psicanálise possa agir sobre ele e com esse sujeito. Desta feita, a abordagem sobre o sujeito, no âmbito desta reflexão, remete ainda a compreensão de Lacan, quando reconhece que o sujeito com o qual a psicanálise opera não pode ser outro, senão o da ciência moderna, mesmo considerando que psicanálise e ciência se encontram em campos distintos de análises. Neste ensaio centramos nossa atenção na abordagem psicanalítica e nas análises de Žižek (1999) sobre a noção de sujeito hegeliano/lacaniano com o intuito de melhor compreender o sujeito tal como o é ideado na psicanálise. Para tanto, estruturamos o presente trabalho em dois pontos de discussão. O primeiro aborda o sujeito na experiência psicanalítica, proposta por Freud e Lacan (apud, ELIA, 2007) com a finalidade de trazer uma compreensão mais ampla das análises sobre a categoria sujeito nessa linha de pensamento. Em um segundo momento, fazemos uma abordagem sobre o sujeito trabalhado por Žižek (2010) e sua real condição na sociedade contemporânea. 2. O sujeito na experiência psicanalítica: breve narrativa à luz das análises freudianas Nessa seção tomamos como ponto de partida as análises sobre o sujeito na experiência psicanalítica, mais notadamente na abordagem de Freud (2007), quando elege a ―palavra/linguagem‖ como um conceito fundamental. Está aí o ponto central da experiência psicanalítica ao operar por meio de dispositivos que convencionou chamar de ―associação livre‖. Mas o que vem a ser esse dispositivo da ―associação livre‖, para Freud? A resposta a esse questionamento encontra fundamento quando considera que tal instrumento, na Psicanálise freudiana, consiste em propor ao sujeito que fale sem pensar sobre o que vier a sua mente, sem esbarros ou entraves, promovendo, assim, uma espécie de emergência do sujeito do inconsciente por meio da fala. Pois, se para Freud o inconsciente é estruturado como uma linguagem, a palavra seria, portanto, seu campo de acesso. (ELIA, 2007)

Para ilustrar o privilégio que Freud atribui a fala, ao conceder a esta um papel preponderante para a emergência do sujeito do inconsciente, recorremos aqui a uma passagem que revela seu posicionamento. Nas palavras de Elia, Desqualificar a fala do sujeito equivale, portanto, a criar as condições de desqualificação, de ausência de qualidades, que pavimentam as vias de acesso do inconsciente à fala, ao discurso concreto do sujeito. Desqualificar a fala do sujeito é o equivalente a ‗qualificar‘ o sujeito do inconsciente como ‗um sujeito sem qualidades‘ e é a única forma de criar um acesso precisamente pela via da fala assim proposta a que o sujeito do inconsciente possa emergir nessa fala (ELIA, 2007, p. 19).

Evidenciamos que nessa experiência de emergência do inconsciente pela fala, proposta por Freud, o foco de análise não é a pessoa que fala, mas sim o que se fala e como se fala, fazendo com que ela se torne uma via de acesso a campos desconhecidos, inclusive pelo próprio autor da fala, atribuindo assim, todo o mérito à palavra do sujeito que fala. Convém ressaltar que se para Freud a fala seria sua única via de acesso ao inconsciente do sujeito, na qual, seguindo seu rigor e método poderá emergir um sujeito ‗sem qualidades‘, estas qualidades, múltiplas, carregadas de valores, crenças ideais e de sintomas, poderiam obscurecer a matriz na qual o sujeito se estrutura, dificultando, assim, o trabalho do analista. Freud se refere ao inconsciente como sendo um conceito fundamental, o qual ele intitula de ―conceito de base, conceito-pilar‖ (apud, ELIA, 2007, p. 16), e considera que é através dele que a experiência psicanalítica se estabelece. Nesse sentido, a experiência psicanalítica sobrevém por meio de instrumentos que auxiliam e determinam as condições ideais de manifestação do sujeito do inconsciente. Mas não há como falar de manifestação do inconsciente, mediado pela linguagem, em Freud, sem nos referirmos a duas coisas essenciais à experiência psicanalítica: a resistência e a transferência. Assim, é preciso acrescentar, a transferência no entender de Freud, constitui ―a própria presentificação do inconsciente sob a forma de uma relação de objeto, ou seja, o modo pelo qual o inconsciente se atualiza‖ (apud, ELIA, 2007, pg. 31). No que diz respeito à resistência, esta se constitui como um ato de defesa do sujeito, no qual se estabelece um nível de redução da consciência (o subconsciente), um ponto de fuga, em que o sujeito se permite não conhecer os seus traumas, no qual o sujeito nega inclusive seus desejos. No que concerne a transferência Freud demorou a atribuir significado as suas manifestações e em alguns casos, chegou até a considerá-la como sendo uma espécie de ―forma particular de resistência‖ (ELIA, 2007, P. 28/31).

Instaura-se aqui um dilema posto pela psicanálise, quando esta indaga esse sujeito que na ciência moderna aparece como dono do saber, por meio da autonomia da razão – que favorece a ascese humana pelo uso das faculdades intelectuais. Isto parece cair por terra quando se apresentam as questões postas pela psicanálise, posto que ela irá questionar, indagar esse sujeito, esse domínio da razão, esse saber, instaurando a dúvida no campo das possibilidades do sujeito, ou melhor dizendo, sobre a capacidade do conhecimento pleno do sujeito desse campo de operação. O debate sobre a categoria sujeito, quando tomado por esta linha de raciocínio, impõe situar a abordagem feita por Lacan, uma vez que, em uma leitura lacaniana, as análises do inconsciente não consideram apenas a linguagem como um conceito fundamental de analises. Lacan, por outra via, opera um desvio a inflexão freudiana quando considera a linguagem como uma condição inerentemente humana, ou seja, morada do ser. Para Lacan a linguagem não seria uma criação exclusivamente humana, por considerar o ser como habitante da linguagem. Lacan passa de uma aceitação da crítica da subjetividade, a defesa do cogito cartesiano, tomando-o de forma ―paradoxal e contra-intuitiva, como sujeito do inconsciente‖ (ŽIŽEK, 1999, p, 11). Neste sentido, consideramos oportuno para este debate situarmos o pensamento de Žižek, visto que referido teórico privilegia também em suas análises o papel do inconsciente na constituição do sujeito, enveredando, porém, pela via lacaniana e hegeliana de análise. Nas palavras de Žižek, o inconsciente não é terreno específico das pulsões arrebatadoras que devem ser contidas pelo eu (consciente), ―mas o lugar onde uma verdade traumática fala abertamente [...] verdade com a qual devo me identificar, mas uma verdade insuportável com a qual devo aprender a viver‖. (2010, p, 09). Essa forma de emergência do sujeito, pela via da psicanálise, engendra uma forma própria de conceber o sujeito, que se opõe de modo radical a outras formas conceituais de formulação. Principalmente, no campo específico da psicologia, que é plural, comportando, portanto, várias denominações para o termo. No tópico subsequente, destacamos a problemática da constituição do sujeito debruçando-nos sobre o pensamento de Slavoj Žižek, suas reflexões sobre sujeito e sua condição na sociedade atual.

3. Breves considerações sobre o sujeito em Zižek A opção pelo estudo da categoria sujeito, nesta seção, a luz do pensamento de Žižek se justifica por suas análises, de teor crítico com intervenções nos mais variados temas, remeterem ao sujeito do tempo presente. Na definição de sujeito elaborada por Žižek (2003), há uma forte influência da definição de sujeito lacaniano, que apreende o processo de constituição do sujeito, do ponto de vista da autogeração. Nessa compreensão há um incessante retorno ao sujeito existente, ao que ―era‖, não na perspectiva de um desprezo, ou mesmo ―morte do sujeito‖, como no caso de Foucault. Žižek em suas análises reconhece a importância dos processos psíquicos e simbólicos, bem como do real na constituição do sujeito, não desprezando nessa relação ―aquilo que escapa‖, ou seja, o que é produzido pela dialogicidade analítica. Nesse entendimento há uma ―transparência autorreflexiva da consciência e do telos regulador da comunicação, ao insistir na especificidade do campo do inconsciente.‖ (2003, p. 182.). E, portanto, não há como se afastar da imediaticidade de uma experiência de origem, uma vez que Žižek apreende ser o sujeito àquilo que se definiria por resistir continuamente aos processos de autorreflexão. Segundo Safatle (2003), essa interpretação de Žižek para o sujeito lacaniano retrata este conceito na perspectiva da negação; melhor dizendo, por uma possibilidade para a ―razão centrada na consciência que não implicaria necessariamente no abandono ou desprezo da subjetividade.‖ (2003, p. 182). Compreendendo o sujeito na sua relação homem/mundo, que produz implicações para a subjetividade humana, é que situamos as reflexões feitas por Žižek, quando este assevera que a atividade do sujeito, em seu aspecto mais fundamental é a atividade de sujeitar-se ao inevitável: o objeto paraláctico (ŽIŽEK, 2008, p. 31) . Essa definição de Žižek se ancora na concepção hegeliana de sujeito para fundamentar sua afirmação, uma vez que Hegel compreende ser o sujeito e o objeto, sempre mediados, de tal modo que uma mudança epistemológica do ponto de vista do sujeito, sempre reflete uma mudança ontológica do próprio objeto. (ŽIŽEK, 2008, p. 32).

Nesses termos, Žižek recorre a Hegel e Lacan para embasar a construção de sua teoria do sujeito. Seu pensamento em relação à denominação do sujeito em Hegel se refere a defini-lo como [...] o simples movimento de autodecepção unilateral, da hubris de pôr-se em particularidade exclusiva que necessariamente volta-se contra si mesma e termina em autogeração. (ŽIŽEK, 1991, p.77)

Essa inferência faz alusão ao constante movimento de constituição do sujeito, (numa articulação entre sujeito e negação), que transparece certo ideal emancipatório para o sujeito do mundo contemporâneo, nas apreensões de Žižek. Nesse viés, tal empreitada revela uma ―ontologia negativa‖. (SAFATLE, 2007, p. 183) Emblemática, neste sentido, é a categoria o sujeito incômodo, para Zizek que toma como aspecto central a defesa da subjetividade cartesiana, considerando que a psicanálise deve ser uma ciência da linguagem habitada pelo sujeito, caracterizando-se como casa de tortura. Ou seja, para Žižek, o sujeito é a todo instante atormentado pela linguagem, sendo inclusive incapaz de comandar sua própria casa. Segundo Žižek, o sujeito lacaniano é o sujeito torturado, mutilado. (ŽIŽEK, 1999). Breves considerações O esforço teórico aqui empreendido no sentido de pensar a condição do sujeito do tempo presente, a luz das narrativas contemporâneas contidas na Psicanálise e na obra de Zizek (1999), nos conduziu a percepção das diversas nuanças que envolvem a constituição do sujeito, implicado por mudanças sociais profundas, nas mais variadas esferas da vida social. Nesse cenário, podemos inferir, com base em Žižek (1999), que o sujeito é a representação simbólica da reprodução social instituída pela ordem vigente. Ou seja, somos a todo o momento, influenciados por ideologias – sobretudo, aquelas de apelo hegemônico reproduzidos e perpassados no âmbito social - que podem abalar nossas concepções e, em certa medida, acabam reproduzindo conceitos assentados pela realidade social na qual estamos inseridos. Feitas essas considerações podemos concluir que buscar compreender a constituição do sujeito no contexto mais atual, impõe considerar as implicações, na formação desse sujeito, da lógica de funcionamento da grande fábrica de sonhos e de ilusões vendidas no projeto societário vigente. (ZIZEK, 2009).

Em suma, as reflexões aqui tecidas buscam evidenciar o paradoxo no qual o sujeito se enreda nas condições postas pelo contexto social recente. Nestes termos indagamos: que tipo de sujeito está sendo constituído? Referências ELIA, Luciano. O Conceito de Sujeito. Rio de Janeiro. 2ª edição: Jorge Zaar. 2007. SAFATLE, Vladimir. Lacan. São Paulo: Publifolha, 2007. ______, Vladimir. In: Bem-vindo ao Deserto do Real. São Paulo, Boitempo Editorial, 2003. ZIZEK, Slavoj. O Sujeito Incômodo: O Centro Ausente da Ontologia Política. Relógio D‘Água Editores, Lisboa, Portugal, 1999. ______. Bem-vindo ao Deserto do Real. São Paulo, Boitempo Editorial, 2003. ______. Como Ler Lacan, Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

Decodificando o Neocapitalismo Para uma genealogia da governamentalidade neoliberal Thiago Mota

Crise do capitalismo, endogenização e “foucaultismo” Nosso desafio é falar do indivíduo e da educação no contexto da crise de capitalismo. É preciso, portanto, começar por tentar dizer de que se trata essa ―crise‖. Vejamo-la, então, da maneira como ela se apresenta a nós da maneira mais imediata hoje, isto é, não como experiência sensível imediata, como ―isto‖, mas tal como ela nos é exibida instantânea e insistentemente pela mídia, ou seja, sob a forma da ―crise financeira‖. Por exemplo, em 15 de novembro de 2011 do Jornal da Globo divulgava a seguinte manchete: ―Merkel diz que sinais de recessão e crise são os piores desde 2ª Guerra‖ (GLOBO 2011). O mais patente disso é que não é a primeira, nem será a última vez que veremos um político correr para soar o sinal de alarme da crise econômica. De acordo com a lógica do que já sabemos que vamos ver nos noticiários, tanto em um futuro próximo quanto em um distante, a ―crise do sistema financeiro‖, a ―crise do capitalismo‖ não significa que este esteja chegando ao fim. Pelo contrário. A retórica da crise remete antes ao fim do mundo, que ao fim do capitalismo.101 Trata-se, na verdade, de uma crise que repõe, a cada vez – e não sem um imenso dispêndio de esforços e sacrifícios – aquilo mesmo que entra em crise, ou seja, o capitalismo. A ideia de crise remete assim a uma temporalidade circular, em que nos debatemos em vão, do lado de dentro de uma história que chegou ao fim. Por mais atuais que possam ser, as crises do capitalismo estão em curso, pelo menos, desde a época em que Marx, na segunda metade do século XIX, descobriu o que é capitalismo. Em grande medida, o modo de produção capitalista, esta forma de racionalidade econômica, encontra sua especificidade no fato de que vive de suas crises. E isso porque é, talvez, a invenção humana dotada do maior poder de regeneração de que se tem ideia.



Doutorando em educação pela UFC (bolsista CAPES). Mestre em filosofia. Bacharel em Direito. Contato: [email protected] 101 Uma das observações prediletas Slavoj Zizek, recentemente reiterada em sua fala aos manifestantes do movimento Occupy Wall Street: ―Para nós é fácil imaginar o fim do mundo – vide os inúmeros filmes apocalípticos –, mas não o fim do capitalismo.‖ (ZIZEK 2011).

Em uma perspectiva mais ampla do que a da mídia ou do discurso de Estado, a crise do capitalismo não é, portanto, tão relevante quanto o fato de que não saímos da crise, de que estamos permanentemente em crise. Mais do que agonizar, o capitalismo conseguiu, nas últimas décadas, se renovar, construindo para si uma ―nova cultura‖ ou um ―novo espírito‖. Tornou-se particularmente dotado da capacidade de responder – a responsiveness enquanto evolução da accountability102 – a ataques por meio do que procuramos descrever em termos de capacidade ou processo de endogenização103, no mesmo sentido em Luc Boltanski e Ève Chiapello falam de ―cooptação-assimilação‖ (BOLTANSKI e CHIAPELLO 2009, 30). A ideia é simples: o mundo capitalista vive em crise, sendo sempre alvo de crítica, mas sempre conseguindo responder à crítica, porque ele é capaz de sobrecodificar toda crítica que lhe seja feita, isto é, ele é capaz, a bem-dizer, de ingerir o veneno e convertêlo em vitamina. Nesse tocante, minha ilustração predileta ainda é a de Che Guevara, incontestável ícone da luta anticapitalista, transformado em silk-screen e estampado em camisetas da C&A. O ponto de partida de uma crítica ao capitalismo que não queira se tornar refém do capitalismo consiste, portanto, de saída, em dar-se conta dessa potência de endogenização daquilo que escolhemos como alvo. O pensamento de Foucault – isso não é privilégio dele – não é imune à endogenização, pelo contrário. O que se constata na literatura sobre Foucault, por assim dizer, no ―foucaultismo‖ é o crescimento do que já foi chamado de ―clube dos amigos da subjetivação‖ (LEGRAND 2004, 27), isto é, aqueles que se apressam em propor ousadas subjetivações experimentais libertadoras nos lugares mais improváveis e que juntam o zen-budismo a uma sofisticada estilística da existência para desenvolver a ética empresarial dos gestores de recursos humanos plugados com todas as tendências mais pós-modernas.104 Portanto, não seria injusto debitar na conta da governamentalidade neoliberal a produção de modelos micropolíticos experimentais tão vagos quanto as pseudo-questões

102

L‟enfant terrible dentre os economistas norte-americanos, John Kenneth Galbraith (2004) mostra que a implantação desse neocapitalismo implica a uma estratégia retórica de substituição de termos desgastados como o próprio ―capitalismo‖, e outros que orbitam em torno dele, por expressões sempre renovadas. 103 Seguindo uma pista lançada por Peter Pál Pelbart (2003, 102), tentamos dar consistência conceitual à noção de endogenização. 104 Trata-se de uma literatura abundante em manuais produzidos na nova área do conhecimento de Gestão Social e Ambiental e que tem como eixo ético-filosófico o tema da responsabilidade social empresarial (RSE). Entre nós, tal literatura produziu, por exemplo, o sucesso Ética e responsabilidade social nos negócios, coordenado por Patrícia Ashley (2005), que é hoje uma das obras mais utilizadas em disciplinas de filosofia e ética profissional dos cursos de Administração.

que eles produzem: ―como não sermos disciplinados? como escapar da vigilância panóptica? como resistir ao assujeitamento pelas normas?‖ (LEGRAND 2004, 28) Ou: como fugir do controle a céu aberto? como se auto-gerir em um mundo governamentalizado?

Endogenização reflexiva e governamentalidade neoliberal O dispositivo precisa ser, em primeiro lugar, cartografado. Assim, poderemos ter noção disso que se descreve, nos dias atuais, como o novo espírito do capitalismo (BOLTANSKI e CHIAPELLO 2009), ou como novo capitalismo (SENNETT 2006), e que aflora, por exemplo, nos Estudos Empresariais, os Management Studies – que já contam, inclusive, com uma versão crítica, os Critical Management Studies, ou CMS (MAYORGA 2009). Trata-se de algo que se espraia pelo campo da educação, da saúde e da segurança públicas, dos direitos humanos e do urbanismo, e daí por diante. Nossa hipótese geral é que a capacidade de endogenização presente no neocapitalismo é um aspecto fundamental daquilo que Michel Foucault chamou de dispositivo. Nesse sentido, mais do que partir da definição geral de dispositivo como rede heterogênea de material discursivo e não discursivo (FOUCAULT 1979, 244), me parece interessante voltar a uma observação a esse respeito que se encontra na primeira aula de Nascimento da biopolítica (10/01/1979). Em uma meditação acerca do conjunto de seu percurso, Foucault (2008, 27, grifo meu) observa: O objeto de todos esses empreendimentos concernentes à loucura, à doença, à delinquência, à sexualidade e aquilo de que lhes falo agora [a governamentalidade liberal] é mostrar como o par ‗série de práticas/regime de verdade‘ forma um dispositivo de saber-poder, que marca efetivamente no real o que não existe e submete-o legitimamente à demarcação do verdadeiro e do falso.

Um dispositivo é um sistema de reforço mútuo entre práticas de saber e relações de poder que produz regimes de verdade, definindo o que é verdadeiro e o que é falso para certos sujeitos que, por sua vez, são produzidos por esses mesmos regimes de verdade. Em suma, dispositivos são máquinas de produzir verdade e, acima de tudo, de produzir sujeitos.105 A biopolítica não é senão a mobilização de diversos dispositivos de produção e de governo da vida: trata-se de fazer viver ou deixar morrer.

105

Apesar de pertencer a um registro totalmente diverso, a imagem dos ―moinhos de gastar gente‖ criada por Darcy Ribeiro (1995) dá a ver, no nosso entender, muito do que é um dispositivo para Foucault.

Destinados à produção de sujeitos, dispositivos são agenciamentos de práticas discursivas e não discursivas, são tecnologias ou racionalidades. Mais do que isso, são racionalidades autopoiéticas, inteligências artificiais, autômatos que dispensam um sujeito-operador e que são capazes de otimização performativa virtualmente infinita. Enquanto máquinas inteligentes ou racionalidades, os dispositivos são dotados de reflexividade, isto é, são capazes de auto-percepção e da auto-correção de seu funcionamento. A função endogenizante dos dispositivos está ligada à sua reflexividade: a crítica não é percebida como um ataque; é, antes, sabiamente convertida em sugestão – a ―caixa de sugestões‖ de qualquer supermercado – e, então, incorporada livremente, com a ressalva de que o objetivo final não deixe de ser encaminhado, isto é, desde que se produzam verdades, sujeitos, vida. Essa caracterização da capacidade de endogenização reflexiva dos dispositivos nos permite pôr em perspectiva a atual crise do capitalismo de maneira semelhante à que Foucault fazia no final dos anos 1970. Em sua principal incursão pela história contemporânea, no curso Nascimento da biopolítica (1978-1979), Foucault estudou a evolução recente do capitalismo no Atlântico Norte como uma forma específica da biopolítica, do dispositivo geral de produção da vida, ou seja, como uma tecnologia de governo específica, a governamentalidade neoliberal, o neoliberalismo. O conjunto da análise de Foucault parece demonstrar como o dispositivo neoliberal é amplamente endogenizante. Trata-se, por assim dizer, de um capitalismo ―blindado‖. Seu maior prodígio é o Homem concebido sob a forma específica do homo oeconomicus. Refazer brevemente o percurso de Foucault na descrição do processo de subjetivação do homo oeconomicus nos permite, como veremos, compreender como o indivíduo se contextualiza hoje; o que permitir-nos-á, também, mostrar o que está de fato em jogo na atual crise do capitalismo. Genealogia do liberalismo enquanto dispositivo biopolítico: subjetividade e capital A governamentalidade neoliberal é a forma mais desenvolvida de agenciamento entre produção de subjetividade e produção econômica, ou seja, produção de valor abstrato de troca, de capital. A tarefa desse agenciamento é dar uma resposta à questão, característica de qualquer dispositivo de biopoder: como produzir vida útil? A utilidade é aí decodificada em termos de utilidade econômica, ou seja, é convertida em capital (valor de troca). Trata-se da equação geral entre sujeitos e capital, que, no limite, se

identificam. Esta é a perspectiva do que Foucault chama de liberalismo, a tecnologia de gestão cuja especificidade consiste no fato de que ela se centra na produção da liberdade (o nome diz o que a coisa é). Conceber o liberalismo como gestão biopolítica da liberdade significa, em primeiro lugar, não concebê-lo como ideologia. Assim, embora, do ponto de vista metodológico, a análise da biopolítica implique um deslocamento da démarche genealógica na direção de um objeto tradicional da crítica marxista, o liberalismo; é importante não compreendê-lo como uma ideologia. Na semântica de Foucault, ―liberalismo‖ não aparece como designação para uma representação falsa ou invertida da realidade, a ser dialeticamente ―desinvertida‖ pela ciência verdadeira da sociedade (o socialismo científico), de que a crítica marxista se alimenta. Para Foucault, o liberalismo diz a verdade acerca de si mesmo. Ele não se dissimula. É, antes, um emaranhado de relações de saber-poder, um intricado complexo de práticas discursivas e não discursivas. A noção de ideologia não se confunde com a de dispositivo (nem com a de episteme) porque é uma noção binária. ―Ideologia‖ está para ―ciência‖ assim como ―falsidade‖ está para ―verdade‖. Isso ajuda a esclarecer um aspecto importante do método genealógico de Foucault. Epistemologicamente, não se trata de operar de maneira binária. Não que não seja importante discernir o verdadeiro e o falso. Não é que a verdade não seja uma questão. A questão da verdade simplesmente não é a questão que interessa. O que interessa a uma genealogia da verdade é de que modo as verdades funcionam como verdades106 para os sujeitos que delas estão convencidos e quais são os efeitos que tais verdades exercem no comportamento desses sujeitos. Nesse sentido, é preciso pensar primeiro a relação: não se trata de pensar a relação a partir de seus termos, mas de pensar os termos a partir de suas relações. Trata-se de pensar linhas, isto é, aquilo que só tem meio, a dobra, a tensão (DELEUZE 1988). Em uma palavra, dispositivo não é ideologia porque a genealogia do saber-poder é perspectivista (FOUCAULT 1996). Cabe notar que, nesse deslocamento do escopo da pesquisa em direção ao capitalismo, não é a produção econômica (de capital) que explica a produção subjetiva (de sujeitos); antes, a subjetivação, a produção dos sujeitos, sua ―utilitarização‖ através dos dispositivos, é que dá sentido à produção de capital. A governamentalidade

106

A esse respeito, Nietzsche (1980, 354 [KSA XVII 9(41)]) dizia que não se trata tanto do que é ou não verdadeiro, mas do que é tomado por verdadeiro (für-wahr-gehalten).

neoliberal é um dispositivo particular: ele converte de modo altamente eficaz subjetividade em valor de troca, que, desse ponto de vista, são de fato são produzidos simultaneamente. Porém, há inúmeras outras formas de governamentalidade, outros tantos dispositivos movidos por objetivos diversos, que produzem sujeitos para fins diversos. Em suma, não é possível remeter a genealogia do poder a uma determinação última de caráter econômico. Para a genealogia, o mais importante é a produção dos sujeitos. Isso não nos impede, entretanto, de imaginar, no quadro da análise genealógica, uma apropriação produtiva da questão da produção econômica e de Marx.107 Não seria exagero dizer que Foucault soube se servir bem de Marx. E o fez ao mostrar que a especificidade do dispositivo neoliberal consiste em produzir liberdade, isto é, subjetividade e capital ao mesmo tempo. Da disciplina ao controle, da administração à gestão A respeito de seu uso do campo semântico ligado ao liberalismo, no Nascimento da biopolítica, Foucault escreve o seguinte: Se utilizo a palavra ―liberal‖, é, primeiramente, porque essa prática governamental que está se estabelecendo não se contenta em respeitar esta ou aquela liberdade, garantir esta ou aquela liberdade. Mais profundamente, ela é consumidora de liberdade. (...) Consome liberdade, ou seja, é obrigada a produzi-la. É obrigada a produzi-la, é obrigada a organizá-la. A nova arte governamental vai se apresentar como gestora da liberdade, não no sentido do imperativo ‗seja livre‘, com a contradição imediata que esse imperativo pode trazer. Não é o ‗seja livre‘ que o liberalismo formula. O liberalismo formula simplesmente o seguinte: vou produzir o necessário para tornar você livre. (...) É necessário, de um lado, produzir liberdade, mas esse gesto mesmo implica, que de outro lado, se estabeleçam limitações, controles, coerções, obrigações apoiadas em ameaças, etc.‖ (FOUCAULT 2008, 86-87)

O que se mostra mais diretamente, mesmo à leitura ingênua, o óbvio, é que liberalismo – já diz o próprio nome – significa gestão da liberdade. O liberalismo nasce no momento da ruptura com o Estado soberano absolutista. Nesse contexto, está em jogo, sobretudo, a limitação do poder estatal, sua constitucionalização – a fobia de Estado (FOUCAULT 2008, 103-104) – que permitirá transformar o problema do governo no problema da gestão de sujeitos livres, titulares de direitos naturais, ou direitos humanos, isto é, os fundamentos do Estado de Direito.

107

Além dos trabalhos que orbitam em torno de Antonio Negri, essa ideia de uma aproximação entre Foucault e Marx no desenvolvimento de um quadro de análise biopolítico demonstra sua fertilidade em duas importantes intepretações de Foucault publicadas recentemente, na França, por Stéphane Legrand (2007), autor vinculado ao Groupe de Recherches Matérialistes (GRM) da Escola Normal Superior de Paris (rue d‘Ulm) e, na Alemanha, por Thomas Lemke (2007), que coordena uma linha de pesquisa sobre biopoder no Instituto de Pesquisa Social (Escola de Frankfurt).

O Estado liberal é Estado de Direito porque e na medida em que é o Estado da liberdade, o governo de um ―país livre‖. Ocorre que a gestão liberal da liberdade não deve ser considerada a priori ideológica. Não se trata de uma liberdade falsa ou meramente formal, não se trata de um laissez-faire, laissez-passer em última instância econômico, mas de uma liberdade material e concretizada através do Direito. O Estado liberal é uma tecnologia de governo altamente eficaz no que diz respeito à produção e à gestão de subjetividade e de liberdade. Para uma genealogia da liberdade, não se trata de criticar a liberdade formal burguesa em nome de uma liberdade concreta ou real. Não se trata de realizar aquilo que o capitalismo torna possível, mas não realiza. Trata-se, antes, de um questionamento acerca da própria liberdade, de pensar a liberdade a partir de um ponto de vista extra-moral. Foucault ―desmoraliza‖ a liberdade: ser livre não é, pelo mero fato de ser livre, algo de bom nem de mau. Incorre no erro axiológico em relação ao molecular e ao flexível de que falam Deleuze e Guattari (1996, 85) quem crê no contrário. Vigiar e punir mostra o quanto as disciplinas são eficazes no que diz respeito à produção de sujeitos úteis, isto é, integrados ao modo de produção econômica. Porém, algo sempre foge, vaza, escapa do controle disciplinar. A disciplina regula eficientemente os corpos e as almas sobre os quais incide, no entanto, deixa muito fora de controle, fora de governo, fora do modo de produção. Esta é a razão da evolução, descrita por Deleuze, de uma sociedade disciplinar, que podemos caracterizar como liberal, a uma sociedade de controle, isto é, neoliberal. Com efeito, a disciplina está para um molde rígido – em que se tratava de dar uma forma definitiva, de formatar –, como o controle (biopolítica) está para uma modulação flexível – capaz de formar e reformar, de formatar sempre, sem jamais chegar a uma formatação definitiva. A transformação do dinheiro, isto é, a substituição, gerada pela crise do petróleo dos anos 1970, da moeda lastreada em ouro pelo câmbio flutuante baseado no dólar, é o que melhor exprime essa transição: ―A velha toupeira monetária é o animal dos meios de confinamento, mas a serpente o é das sociedades de controle.‖ (DELEUZE 1992, 222). Tudo indica que já não estamos mais na era da administração taylorista da liberdade; passamos para a era da gestão rizomática da liberdade. O que está em jogo para essa gestão biopolítica neoliberal que vem agora se acoplar à administração disciplinar liberal já não é o indisciplinado ou o incontrolado – para isso temos boas instituições –, mas, em certo sentido, o indisciplinável, o incontrolável. Como controlar o incontrolável? Essa é a questão (PELBART 2003, 98). É o incontrolável que será controlado ou, mais rigorosamente, governamentalizado, com o advento da biopolítica neoliberal. Já faz algum tempo que formulamos paradoxos. ―Controle do incontrolável‖, ―gestão da liberdade‖, etc. são, sem dúvida, paradoxos. O próprio Foucault, na passagem citada acima, menciona a contradição inerente ao imperativo ―seja livre!‖. Ao contrário do que diz Foucault

naquela passagem, porém, creio que vale a pena insistir nesse caráter paradoxal do liberalismo. O liberalismo, em geral, mas o neoliberalismo, em particular, nos obriga a sermos livres. Dizem-nos: ―a igualdade de oportunidades está aí, garantida; se você não teve sucesso é porque não estudou, ou, se estudou, não foi o suficiente, ou, se já foi muito, não foi o era útil‖. É assim que

a

individualização

neoliberal

assume

o

caráter

duplo

de

estratégia

de

―desresponsabilização‖ por parte do Estado e da sociedade e de culpabilização do indivíduo. Nos tempos do neocapitalismo, não podemos não ser livres: mais que um direito, a liberdade tornou-se um dever. O fato é que tanto o liberalismo quanto o neoliberalismo trabalham com paradoxos que, não obstante, se concretizam por meio do dispositivo biopolítico que eles põem em marcha. E, ao contrário do que poderia crer certa ingenuidade dialética, esses paradoxos não são contradições que se resolvem em nenhuma Aufhebung. Pelo contrário, eles se reproduzem e se multiplicam. O liberalismo critica o Estado absolutista, o Estado soberano fundado na razão de Estado ao denunciar que ―governa-se em demasia‖ (FOUCAULT 2008, 433). Põe as liberdades sob a salvaguarda da Constituição – um ―laranja‖ da burguesia, como Carl Schmitt dá a entender. O excesso de governo é substituído não pela anarquia, mas por uma forma de governo mais eficiente porque não procura cercear, restringir ou limitar, mas produzir liberdade de forma controlada. É desta maneira que a governamentalidade neoliberal consegue controla mais do que nunca, dispondo inclusive do orçamento militar mais polpudo de que se tem notícia, que é empregado sem peias pelo smart power sediado na Casa Branca em guerras democráticas que se fazem à base de mísseis carregados de direitos humanos. Do mesmo modo, no campo da educação, a constatação se impõe: da educação infantil, e mesmo antes, à pós-graduação, e depois108, somos, ao mesmo tempo, cada vez mais livres e cada vez mais governados ou, ainda, governamentalizados, isto é, incluídos no cálculo geral do dispositivo governamental neoliberal. Somos, cada vez mais, titulares efetivos de um direito paradoxal: a liberdade tornou-se uma forma de controle.

A subjetivação do homo oeconomicus e a reviravolta da teoria do capital humano Não é à toa que o dinheiro diga tanto sobre nós. Há tempos, imitamos seu comportamento. A governamentalidade liberal – é de fato o que dizem os liberais – funciona de acordo com a lógica do mercado. Também nós o fazemos.

108

No início dos anos 1990, Deleuze já colocava, sob essa perspectiva, a questão da educação continuada ou da formação permanente: ―[n]o regime da escola: as formas de controle contínuo, avaliação contínua, e a ação da formação permanente sobre a escola (...), a introdução da empresa em todos os níveis de escolaridade.‖ (DELEUZE 1992, 225)

Entretanto, a análise genealógica do mercado permite ver neste mais do que simples lugar de troca. O mercado é lugar de produção, de prova ou de teste, de um regime de verdade específico – aquele da economia política liberal (espécie de saber) –, e de uma forma específica de subjetividade – o homo oeconomicus (espécie de poder). Isso explica, por exemplo, toda simbiose entre economia e educação. Se as instituições tradicionalmente encarregadas da formação das pessoas, as escolas migram para dentro das empresas, assim como as empresas migram para o interior das escolas, é porque o objetivo tornou-se comum: produzir, ao mesmo tempo, subjetividade e capital. Ao analisar, ao mesmo tempo, a produção da subjetividade e a produção do capital no interior da governamentalidade neoliberal, a genealogia mostra que a biopolítica produz tanto efeitos massificantes, ou totalizantes, sobre a população, quanto opera efeitos individualizantes sobre os sujeitos (GADELHA 2009, 168). Não cabe, portanto, separar uma microfísica do poder individualizante, que incidiria exclusivamente sobre o corpo-máquina do indivíduo, de uma biopolítica massificante, que agiria exclusivamente sobre o corpo-espécie da população. Tanto as disciplinas têm seu lado massificante ou totalizante – o panoptismo –, quanto a biopolítica tem seu lado individualizante. Não há, na matriz epistemológica da genealogia do poder, um abandono do micropolítico (disciplina) em nome do macropolítico (biopolítica): o que há é, por assim dizer, um ziguezague entre o micro e o macro. Nos termos de Deleuze e Guattari, a genealogia do poder é, ao mesmo tempo, micro e macropolítica; é, ao mesmo tempo, molar e molecular (DELEUZE e GUATTARI 1996). É assim que entra em cena o maior prodígio da ciência econômica neoliberal: o homo oeconomicus enquanto forma de subjetivação, isto é, ao mesmo tempo, enquanto massa e átomo, mol e molécula. O conceito neoliberal de homo oecomomicus é, na verdade, resultado de uma reconstrução da teoria liberal. Tal conceito deriva de uma mutação epistemológica notável operada no seio da ciência econômica moderna com o advento da teoria do capital humano. A reviravolta representada pela teoria do capital humano implica uma mudança nas pressuposições de base ontológicas, uma a mudança radical no modo como a ciência econômica concebe seu objeto. Assim, se a economia clássica objetificava a realidade social sob a forma do conjunto dos processos econômicos entendidos como produção, distribuição e consumo (Smith) e a economia neoclássica concebia seu objeto como o resultado da interação entre tais fatores e as intervenções do Estado (Keynes); o neoliberalismo (Escola de Chicago) vai conceber o objeto da ciência econômica como o comportamento racional humano relacionado ao emprego de recursos escassos para atingir fins diversos (FOUCAULT 2008, 306). A ciência econômica passa, então, a pressupor uma ontologia que concebe o mundo como um mercado povoado por agentes econômicos que não se comportam aleatoriamente, mas que fazem cálculos, avaliam custos e benefícios, procuram corrigir suas balanças, reduzir despesas e aumentar receitas, almejando sempre, enfim, o acúmulo de alguma forma de capital, ou o lucro.

O conceito de capital humano pode ser, assim, utilizado para explicar a própria racionalidade do comportamento humano. É claro que mais do que lucro monetário em sentido estrito, o que os agentes racionais buscam, através da otimização de suas performances, é a reprodução desse novo tipo de capital constituído pelas capacidades, habilidades, aptidões, de que um indivíduo dispõe e nas quais ele investe de modo mais ou menos consciente. Com isso, torna-se possível intervir no comportamento dos seres humanos em um nível bastante básico, através de sua programação estratégica com vistas ao lucro, doravante definido, de modo ampliado, como acúmulo de capital em sentido amplo. A noção de capital humano possibilita a conversão do humano em capital, uma ―capitalização‖ do humano, sua transformação em valor de troca. O humano, isto é, as capacidades, as habilidades, as aptidões tipicamente humanas de um indivíduo, sua iniciativa, sua criatividade, sua afetividade, são codificadas sob a forma da competência (GADELHA 2009, 149), que representa sua sobrecodificação em termos de capital. O capital humano é, claramente, intercambiável e permutável em moeda. O capital humano pode crescer ou minguar: tudo vai depender da adoção da programação adequada, da escolha mais racional da agenda de investimentos ou, por assim dizer, da ―política econômica de si‖ adequada. Dessa maneira, a tarefa assumida pela ciência econômica neoliberal de Milton Friedman e Theodore Schultz – e de gerações de ―Chicago Boys‖ que deixaram marcas severas na história econômica recente de vários países da América Latina – não é apenas descrever, mas, sobretudo, intervir de modo, digamos, não intervencionista, por fora do Estado, mas em todo caso intervir, governar o comportamento econômico dos indivíduos (microeconomia) e dos grupos (macroeconomia). A simbiose entre indivíduos e capital explica por que, do ponto de vista neoliberal, o conselho dado em geral aos governos também vale para os indivíduos – ―não há mágica: sem investimento não há crescimento, e o investimento mais rentável de todos é em educação‖. Dessa maneira, a teoria do capital humano tornou-se é decisiva para a instalação de um ―novo espírito do capitalismo‖. A teoria do capital humano nos põe diante de um processo de subjetivação em que o indivíduo se produz por meio de investimentos em educação. A formação permanente, a educação ―para a vida toda‖, conforme uma sugestão célebre de Deleuze (1992), é a encarnação do controle modular produzido pelo dispositivo biopolítico da governamentalidade neoliberal. O indivíduo torna-se microempresa, torna-se empresário ou empreendedor de si. O indivíduo neoliberal caracteriza-se pelos seguintes traços: proatividade, inventividade, flexibilidade e senso de oportunidade (GADELHA 2009, 156), conectividade, pluricompetência e autocontrole (PELBART 2003, 98-99). Ora, se a individualização conforme a lógica de mercado permite entrever um indivíduomicroempresa, se ocorre um empresariamento no plano do individual, é evidente que no plano

dos grupos ocorrerá o mesmo, na família, na escola, no hospital, mas também no bar, nas rodas de poesia, nas ONGs. Tudo passa a obedecer a uma lógica que passa, sem dificuldades, de uma ciência econômica a uma ciência da administração a uma ética e a toda uma filosofia para formar o dispositivo que Sylvio Gadelha (2009, 144-157) chamou de ―cultura do empreendedorismo‖, e que não é nada além da forma de produzir liberdade desenvolvida pela governamentalidade neoliberal. Até mesmo o Estado é empresariado e, com isso, despolitizado, colonizado pela economia, no economicismo de uma gestão que se esquece do caráter agonístico da política. É governamentalização do Estado na forma de seu empresariamento. O agón é substituído pela concorrência, dado essencial em uma ontologia do mercado como a que esboçamos. A concorrência (GADELHA 2009, 151) aparece como princípio normativo/normalizador, como princípio de governamentalização da sociedade de uma ponta à outra. A individualização do homo oeconomicus não é uma ―robinsonada‖, tampouco as subjetivações dos grupos-empresas é feita no vazio. Elas supõem uma gama de relações que já estavam dadas antes mesmo de elas terem vindo ao mundo. Seja como pessoas físicas, seja como pessoas jurídicas, nós nascemos em um mundo que é concorrencial a priori. A acumulação de capital por cada unidade produtiva é sempre relacional; no final das contas, trata-se de ver quem tem mais ou quem é mais (tem mais competências úteis). Em suma, ter e ser equivalem-se.

Agenciamento coletivo experimental e desresponsabilização do Estado A análise genealógica mostra que o capitalismo foi capaz de se desenvolver de maneira extraordinária, ao longo das últimas décadas, uma blingadem, um potente dispositivo anti-crise e anti-crítica, isto é, um mecanismo endogenizador. Este é o coração da governamentalidade neoliberal, tecnologia que gere a produção de liberdade controlada, isto é, governa a subjetivação do homo oeconomicus. O dispositivo de saber-poder neoliberal articula um discurso improvável, embora perfeitamente, e cada vez mais, real, tecendo um fio transversal que parece ligar todas as palavras-de-ordem responsabilidade

prediletas empresarial

da

nossa

sócio-ambiental

contemporaneidade:

empreendedorismo,

(os

direitos

―stakeholders‖),

humanos,

democracia participativa (governança) e sustentabilidade. Essa complicada trama, por mais improvável que possa parecer quando tomada fora de contexto, constitui efetivamente o dispositivo do novo espírito do capitalismo – e todas as nossas críticas parecem caducas diante dele. Não creio, entretanto, que ficar em tal fatalismo – contra o qual devemos estar atentos, conforme a advertência de Zizek mencionada de início – fosse a intenção do trabalho de Foucault. Não é a nossa. Gostaria, portanto, de esboçar duas críticas.

Retomemos a ideia de liberdade controlada, produto empírico do liberalismo. Ela remete à ideia de empreendedorismo ou de proatividade, que por sua vez reenvia a uma longa série que vai da auto-nomia à auto-gestão. Em uma palavra, a liberdade liberal é decodificada arqueogenealogicamente em auto-normalização, em uma normalização de si que é feita por si mesmo. (Do ponto de vista econômico, capital, em forma de fluxo, em forma de vida livre.) O paradoxo da liberdade controlada remete a um governo de si, a uma autogestão neoliberal. Esta é, em seu espírito, individualista, concorrencial, a racionalidade como cálculo estratégico dos interesses (profits) de cada um e efetuado por cada um. É claro que, na forma da liberdade controlada, todo agenciamento é clientelista (―me apadrinhe‖) ou concorrencial (―tenho mais/sou mais do que você‖). O agenciamento coletivo neoliberal é atomista ou molecular: um ―eu‖ que se liga a outros ―eu‖, em função dos interesses individuais. É um agenciamento orgânico, uma combinação, harmônica na melhor das hipóteses, jamais um corpo sem órgãos. É uma bizarra monadologia conectiva. Daí a forma que pode assumir uma crítica ao capitalismo: trata-se de concentrar-se no modo de enunciação do agenciamento coletivo promovido pelo neocapitalismo, para tentar renovar, mas sem inovação, para, de fato, experimentar outras formas de agenciamento coletivo. A segunda crítica é, certamente, mais convencional e pode mesmo parecer uma reivindicação, socialdemocrata ou até intervencionista, por mais Estado. No momento, entretanto, isso parece mais viável do que, na era da endogenização otimizada, tentar lançar mão, no espírito dos manuais de neomanagement, de mais um micro-experimento revolucionário que, de tão abstrato, já não experimenta mais com nada. O fato é que a autogestão neoliberal – embora haja quem se engane – obviamente não tem nada a ver com a ideia de autogestão produzida pela tradição socialista, tanto comunista, quanto, principalmente, anarquista, donde Foucault (2011) faz brotar noções como contraconduta e na anarqueologia. A autogestão neoliberal se afina antes com certo ―anarcoliberalismo‖ que Foucault chega a creditar a Milton Friedman e à Escola de Chicago, e que hoje, nos EUA, conta com um filósofo representante (NOZIK 1998) e é difundido por um think-tank (Cato Institute) com inserção no Congresso norte-americano. Para esses ―ultraneoliberais‖ trata-se de, em primeiro lugar de repudiar a competência tributária do Estado para, em uma incontinência toxicomaníaca, desregulamentar completamente a propriedade e o comércio. E tudo isso por meio de um gesto revolucionário anarquista que deporia, da noite para o dia, todo o aparelho político-burocrático do Estado. Teríamos o cenário insólito de uma distopia orwelliana em que o Big Brother morreu, quem governa é o mercado. Trata-se, portanto, de um inusitado ―anarco-fascismo de mercado‖. Independentemente do poder de influência deste lobby sobre o Congresso americano, ou do poder de influência do Congresso norte-americano sobre o mundo atual, o fato é que a tendência de radicalização do neoliberalismo em situações de ―crise‖ releva algo importante

acerca dos sonhos distópicos do capital. Tanto o caso que nem é mais recente da Grécia – dos ―pacotes de austeridade‖ que há dois anos vêm gerando confrontos violentos entre governados e governantes –, quanto o caso da vitória recém-conquistada pelos conservadores contra os socialistas na Espanha – que alguns leem como opção espontânea da maioria da população que compreendeu a urgência do momento e não só elege programas político-econômicos neoliberais para solucionar crises neoliberais, mas se compromete a aplicar a austeridade em si mesma – mostram que o modo do governo neoliberal enquanto tal é correlato de um Estado que se retira, que suprime leitos hospitalares e bancos escolares, que faz viver livre no abandono, que governa sem governar. A função mais prática do empreendedorismo é revogar por completo a responsabilidade que têm o Estado e a sociedade sobre o destino dos indivíduos, fazendo-os livres apenas para que possam arcar individualmente com seus sucessos e fracassos. O Estado social mínimo e financeiro máximo do neoliberalismo é o Estado desresponsabilizado. Ou ainda, o tempo da empresa responsável é, também, o tempo do Estado irresponsável e do indivíduo culpável: ―se seu empreendimento der certo, está provado que o sistema funciona; se der errado, bem, é porque você é um loser‖.

Referências ASHLEY, Patrícia. Ética e responsabilidade social nos negócios. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2005. BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. Tradução: I. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2009. DELEUZE, Gilles. ―As dobras ou o lado de dentro do pensamento (subjetivação).‖ In: Foucault, tradução: C. Martins, 101-131. São Paulo: Brasiliense, 1988. —. ―Post-scriptum sobre as sociedades de controle.‖ In: Conversações, tradução: P. Pelbart. Rio de Janeiro: 34, 1992. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. ―Micropolítica e segmentaridade.‖ In: Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia 2. Vol. 3, tradução: A. Guerra Neto, 76-106. São Paulo: Ed. 34, 1996. —. ―Tratado de nomadologia.‖ In: Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia 2. Vol. 5, tradução: P. Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1997. FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução: R. Machado. Rio de Janeiro: NAU, 1996. —. ―Direito de morte e poder sobre a vida.‖ In: História da sexualidade 1: a vontade de saber, tradução: J. Albuquerque, 125-149. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1977.

—. Do governo dos vivos: Curso no Collège de France, 1979-1980 (excertos). 2.ed. Tradução: N. Avelino. Rio de Janeiro: Achiamé, 2011. —. Nascimento da biopolítica. Curso no Collège de France (1978-1979). Tradução: E. Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008. —. ―Sobre a história da sexualidade.‖ In: Microfísica do poder, tradução: R. Machado, 243-276. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1979. GADELHA, Sylvio. Biopolítica, governamentalidade e educação: introdução e conexões, a partir de Michel Foucault . Belo Horizonte: Autêntica, 2009. GALBRAITH, John Kenneth. A economia das fraudes inocentes: verdades para o nosso tempo. Tradução: P. Barbosa. São Paulo: Coompanhia das Letras, 2004. GLOBO. ―Merkel diz que sinais de recessão e crise são os piores desde 2º Guerra.‖ Jornal da Globo. 15 de 11 de 2011. http://g1.globo.com/jornal-daglobo/noticia/2011/11/merkel-diz-que-sinais-de-recessao-e-crise-sao-os-piores-desde-2guerra.html (acesso em 24 de 11 de 2001). LEGRAND, Stéphane. ―Le marxisme oublié de Foucault.‖ Actuel Marx (P.U.F.) v. 2, n. 36 (2004): 27-43. —. Les normes chez Foucault. Paris: P.U.F., 2007. LEMKE, Thomas. Gouvernamentalität und Biopolitk. Weisbaden: VS Verlag, 2007. MAYORGA, Juan. ―Decubriendo el lado oscuro de la gestión: los critical management studies o una nueva forma de abordar los fenómenos organizacionales.‖ Revista Facultad de Ciencias Económicas: Investigación y Reflexión Vol. 17, n. 2 (2009): 4560. NIETZSCHE, Friedrich. Kritische Studienausgabe. Vol. XII. Munique: W. de Gruyter & DTV, 1980. NOZIK, Robert. ―Why do Intellectuals oppose Capitalism?‖ Cato Institute. 1998. URL: http://www.cato.org/pubs/policy_report/cpr-20n1-1.html (acesso em 20 de dez de 2011). PELBART, Peter. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003. RIBEIRO, Darcy. ―Moinhos de gastar gente.‖ In: O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, 106-140. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. SENNETT, Richard. A cultura do novo capitalismo. Tradução: C. Marques. Rio de Janeiro: Record, 2006. ZIZEK, Slavoj. ―A tinta vermelha: discurso aos manifestantes do movimento Occupy Wall Street.‖ Blog da Boitempo. 11 de 10 de 2011. http://boitempoeditorial.wordpress.com/2011/10/11/a-tinta-vermelha-discurso-deslavoj-zizek-aos-manifestantes-do-movimento-occupy-wall-street/ (acesso em 24 de 11 de 2011).

A Questão Ambiental e a Teoria da Sociedade de Risco Paulo Rodrigues dos Santos (incluir e-mail) Inicio essas reflexões em torno da questão ambiental com uma constatação de Oswaldo Giacoia Junior (2001): Nossas possibilidades de intervenções sobre a natureza foram extraordinariamente potencializadas pelo aproveitamento industrial da ciência e da técnica, a tal ponto que podemos nos considerar, em certo sentido, como ―super-homens‖; e, no entanto, a sujeição sem resíduos ao poder autonomizado dos nossos próprios produtos, que promove uma deplorável reificação, nos aproxima do ―último homem‖, que é ele mesmo pequeno e torna tudo pequeno em volta de si (GIACOIA, 2001, p. 86).

Talvez ainda se faça necessário encontrar ou reconhecer no lema de René Descarte ―conhecer e dominar‖, um princípio forte o suficiente para sustentar reflexões e apreensões sobre as especificidades das nossas relações com a natureza; esse princípio que inaugurou a modernidade e a preponderância absoluta da racionalidade técnico cientifica nas relações com a natureza no mundo Ocidental. Entretanto, entre nosso presente e a modernidade regida pelo princípio de Descarte, inscreve-se uma descontinuidade, uma singularidade, um acontecimento, que nos coloca, frente à tarefa de pensar as relações com a natureza nos dias de hoje, em um platô destacadamente distante desse princípio. O acontecimento que vem desbancar o princípio que regeu as relações com a natureza no ocidente, do século XVII ao XX, foi exatamente a entrada da natureza na história. Esse acontecimento, que só se deixa aprender nos seus efeitos, e que é decisivo na compreensão do nosso presente, na medida em que o singulariza, entre outros fatos, pela constituição de um fenômeno cultural global – o cuidar da natureza – fenômeno que afeta até mesmo nossa condição de sujeito. A entrada da natureza na história consiste na captura da natureza para que se apresente, não com as potencialidades de que dispõe para responder a necessidades humanas, mas para que entre, que atue na racionalidade de poder voltada ao governo pela verdade de indivíduos e populações, de governos e empresas. Trata-se, na contemporaneidade, nas relações com a natureza, de uma condição que nos deixa 

Professor Assistente do Departamento de Ciências Agrárias e Ambientais da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Mestrado em Geografia na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Doutorando em Educação Brasileira na FACED/UFC. Bolsista do CNPq. E-mail:

bastante distanciados da ideia do ―super-homem‖ e que, se nos aproxima da condição de sermos pequenos, não o é por conta da alienação ou do fetiche, mas pelos efeitos de um processo de subjetivação que nos asujeita como poluidores. Na atualidade, o conceito de necro-chorume é o conceito emblemático da condição de poluidor, condição que faz do homem, mesmo morto, uma ameaça à natureza, uma fonte de riscos, perigos e ameaças à vida e ao meio ambiente. É em meados dos anos de 1960 que emerge a questão ambiental, que desde o seu nascimento caracteriza-se pela diversidade de forças sociais em luta na sua constituição como problemática. Postulo que em torno desta questão emerge uma tecnologia de poder, que denomino de dispositivo da natureza. Trata-se de um ―complexo saberpoder‖ que emerge no espaço do capitalismo central e se expande como uma racionalidade política de horizonte planetário. No campo das ciências humanas e das ciências sociais o saber ambiental adotou a forma de sub-disciplinas: do direito à contabilidade, talvez apenas a linguística, não tenha um ramo de sub-disciplina ambiental. Contudo, o saber ambiental abarca ainda as ciências da Terra, as ciências da vida e algumas das chamadas ciências exatas, como é o caso das diversas engenharias ambientais. Entretanto, não se trata de um movimento ligado apenas ao discurso científico, mas de um processo de disseminação discursiva que adota a forma de ―nebulosa discursiva‖ em que a espiritualidade, ―a filosofia de vida‖, a cultura, com suas variadas formas de expressão, veiculam essa temática. Nesse sentido, discursos de circulação massivos, como o cinema, a música, o teatro, os quadrinhos, o vídeo, entre outros, surgem como expressão de uma indústria de cultura global, em que filmes como ―A era do gelo‖, ―Avatar‖, ―Wall.E‖ dentre outros, estão sendo produzidos em sequências que deverão ultrapassar a trilogia e serem vistos por centenas de milhões de pessoas em todos os continentes. Como explicar essa atração, a excitação, o interesse, o desejo, a compulsão de falar sobre a natureza? O que caracteriza um dispositivo de poder são suas linhas constitutivas, isto é, linhas voltadas à produção da verdade, nesse caso, que dizem e fazem dizer, que vêem e fazem ver verdades ambientais; linhas de força e linhas de subjetivação. Nesse texto, volto-me à análise de um elemento do discurso ambiental, uma estratégia discursiva, a teoria da sociedade de risco. Identifico no saber ambiental três estratégias discursivas de maior destaque, são elas a teoria do desenvolvimento sustentável (DS), a teoria da modernização ecológica (ME) e a teoria da sociedade de risco (SR).

No final dos anos de 1970, surge, no âmbito das Ciências Sociais e Humanas, uma literatura sobre riscos associada à questão tecnológica e ambiental. Essa literatura, na atualidade, é vasta, diversificada e condiz com a observação de Robert Castel (2011) que indica a existência de uma inflação do conceito de risco. É possível ver na expansão dessa literatura, o signo de um fenômeno maior, que se efetiva em anúncios, prognósticos e previsões de catástrofes, da possibilidade de escassez de recursos essenciais como a água; de inúmeras ameaças, riscos e perigos ambientais pairando sobre nossa atualidade. Essa é uma dimensão que acompanha a emergência do dispositivo da natureza a partir das intervenções de instâncias multilaterais deflagradoras de focos de disseminação discursiva da ―questão ambiental‖, como o primeiro relatório do Clube de Roma, do final dos anos de 1960; da ―Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento‖, realizada no ano de 1972, em Estocolmo‖; da ―Declaração da Eco92‖, entre outras iniciativas da formação, ao longo deste meio século (1970- 2011) da problemática ambiental e desta discursividade à qual pertence a tendência da formação do que Mol e Spaargarem (2003) identificaram como ―[...] a rápida expansão dos estudos sobre o campo do risco (ambiental e tecnológico) e percepção de risco [...]‖ (MOL; SPAARGAREM, 2003, p. 14). E, seguindo uma tendência do campo do discurso ambiental, caracterizam de ―ecoalarmismo‖, ―dimensão apocalíptica da situação ambiental‖, de ―ansiedades e incertezas associadas a situação ambiental‖ (MOL; SPAARGAREM, 2003, p. 12-13). Essa é uma dimensão importante do processo de normalização do dispositivo da natureza enquanto um dispositivo de segurança. Nesse sentido, as categorias de caso, risco, perigo e crise que se articulam e se integram na constituição do princípio de degradação da natureza – princípio central da discursividade ambiental –, são características decisivas da segurança, atualizadas na tecnologia de poder ambiental enquanto dispositivo de segurança, conforme a elaboração realizada por Foucault (2008b). Portanto, o que se objetiva nesta análise é identificar a operacionalização dos efeitos de verdade nessa estratégia discursiva em estudo, em que esses conceitos são decisivos. A estratégia discursiva da SR é associada ao nome de Ulrich Beck, isto é, é identificada como sendo de sua autoria. Esse fato a distingue da teoria do DS e da teoria da ME, as quais não circulam associadas a um autor, mas sim a intervenções ou acontecimentos promovidos por Organismos Governamentais Multilaterais (OGM); tanto a teoria da ME quanto a teoria do DS têm a proveniência ou proeminência

associadas ao relatório Nosso Futuro Comum, de 1987, elaborado pela Comissão Brutland, instituída em 2003 pela ONU. A relação da teoria da SR com uma autoria pode ser vista como indício de uma relação mais ampla com o campo da teoria social e, portanto, de uma relação não tão específica e não diretamente direcionada, no seu foco, à governamentalidade ambiental109, em comparação com as duas outras estratégias discursivas atuantes no discurso ambiental. A teoria da SR implica um arco de problematização dirigido a um diagnóstico da cultura contemporânea que parte da questão ambiental para abarcar outras dimensões, enquanto a teoria da ME e a teoria do DS são estratégias efetivamente focadas na problemática ambiental e direcionadas diretamente à governamentalidade ambiental. Este ponto situa a teoria da SR como uma estratégia discursiva que busca dar sustentação ao dispositivo da natureza, fundamentando o sentido deste dispositivo em uma frente discursiva mais ampla, a qual realinha o campo das ciências humanas e das ciências sociais frente a interesses discursivos afins ao dispositivo geral de poder. Esse alargamento do foco a partir do ambiental em Beck é pontuado por Gilddens (1997): Desde que as questões ecológicas dizem respeito ao ―ambiente‖, poderia parecer que elas pudessem ser compreendidas em termos da necessidade de ―proteger a Terra‖. Na verdade, em parte graças ao impacto da obra de Beck, tornou-se visível que as questões ecológicas marcam muitos outros problemas com os quais nos defrontamos (GILDDENS, 1997, p. 224).

Uma referência importante para posicionar as intervenções discursivas da teoria da SR é a consideração de que, ao sustentar uma abordagem da cultura contemporânea permeada pelo conceito de risco, a teoria da SR dá sustentação, ainda, a toda uma discursividade externa ao campo do discurso científico ambiental – direcionada à população enquanto público –, com suporte na mídia, no cinema; na música, na internet entre outros meios comunicacionais; estes meios de difusão vêem e fazem ver, visibilizam uma patologização da natureza em um movimento de campanhas fomentadoras de medos, incertezas, inseguranças associadas a projeções de casos e situações de riscos, ameaças e perigos ambientais. Entretanto, apesar de a teoria da SR circular associada ao nome de Beck e de projetá-lo com destaque no campo da teoria social, a estratégia discursiva central

109

Atualizamos o conceito de governamentalidade formulado por Foucault (2008b), como intervenções de poder voltadas ao governo, isto é, a condução de condutas de populações. A governamentalidade ambiental diz respeito a intervenções no campo do ambiental e é exercida sobre populações, empresas e governos.

trabalhada por este autor é a teoria da Modernização Reflexiva. Ulrich Beck tem como parceiros diretos na teorização da Modernização Reflexiva Anthony Giddens e Scott Lach. A obra Modernização Reflexiva: Política, tradição na ordem social moderna (1997) – feita em conjunto pelos três –, na qual estes autores debatem mutuamente suas teorizações, consagra essa cooperação e aporta densidade a essa estratégia discursiva, claramente

situada

na

linha

dos

interesses

teóricos

do

dispositivo

de

governamentalidade geral. Robert Castel (2011), em La inseguridad social: Que es estar protegido? – obra dedicada a analisar as consequências da insegurança social geradas pelo desenvolvimento recente do capitalismo –, tece críticas de natureza teórica à teoria da SR e ao postulado de Giddens de uma ―cultura do risco‖. Contudo, não deixa de observar que: ―Mas, tratando-se dos ‗novos riscos‘ que apareceram depois, é preciso se perguntar se sua proliferação não supõe também uma dimensão social e política, uma vez que geralmente são apresentados como marcas de um destino inelutável‖ (CASTEL, 2001, p. 74). Segundo Beck (2010), no contexto dos anos 1970, ocorre a emergência de ―novos riscos‖ associados a decisões de natureza tecno-econômicas. Tais riscos seriam distintos dos riscos da primeira fase da modernidade, definida como sociedade industrial. Os riscos são considerados na teoria da SR como fatos específicos da modernidade, no sentido de que, nas sociedades pré-capitalistas, não existiriam riscos, mas apenas perigos. Temos ainda a distinção entre riscos locais e riscos globais. Para Ulrich Beck (2010), a distinção entre os riscos da primeira modernidade, isto é, a modernidade simples, e aqueles da segunda modernidade, isto é, a ―sociedade de risco‖, decorre do fato de que os primeiros estariam associados à criação e à distribuição de riquezas; à existência de lutas entre o capital e o trabalho pela disputa das riquezas materiais geradas pelo sistema industrial; enquanto os segundos, isto é, ―os novos riscos‖, resultariam de conflitos em relação ao poder de evitar e/ou distribuir os efeitos da modernização. Outro elemento importante na distinção do risco, na teoria da SR, é que o risco nessa teoria não faz coincidir posição de classe e posição de risco, que seria a situação para os riscos associados às lutas pelas riquezas. Tratar-se-ia, no caso da ―sociedade de risco‖, de uma igualdade negativa, gerada pelos riscos de grandes consequências, causadores de catástrofes; portanto, de situações em que os indivíduos tornam-se iguais por partilharem os males ambientais.

Concluindo essa sumária caracterização da teoria da SR, destacamos a classificação de Beck dos riscos globais em três categorias, duas das quais associadas à ciência e à tecnologia: os ricos da indústria bélica a partir da ocorrência de guerras e ações terroristas; os riscos do desenvolvimento tecnoindustrial associado ao eixo da riqueza, portanto aos países do Norte; os riscos associados à pobreza, portanto aos países do Sul e relacionados, pelo discurso ambiental, à degradação da natureza. De fato, este último elemento, isto é, a relação pobreza – degradação da natureza – é proveniente do discurso ambiental multilateral, cristalizado, burilado e apresentado numa versão amadurecida no documento Nosso Futuro Comum, que conforma um tipo de perspectiva, um tipo de manobra, que responsabiliza os países periféricos do capitalismo euro-americano; e, de forma mais ampla, o subdesenvolvimento, englobado na categoria de pobreza, incluindo nesta categoria a questão populacional, pelo que é definido como degradação ambiental. Os pressupostos que fazem da pobreza a causa última da degradação da natureza sustentam-se, me parece, na necessidade de se fazer do desenvolvimento a resposta decisiva para a problemática ambiental. Essa partilha e essa distinção entre, por um lado, riscos provenientes do desenvolvimento da ciência e da técnica e, por outro, da degradação da natureza – em que os primeiros estariam relacionados à responsabilidade dos países desenvolvidos e os segundos seriam vistos como decorrentes da pobreza e do subdesenvolvimento –, conforma um tipo de fabula ambiental que sustenta e atravessa toda a discursividade ambiental e tem sua fonte no discurso ambiental multilateral. Nesse sentido, a ascensão, o valor e a proeminência de que a teoria da SR desfruta ao lado da teoria do DS e da teoria da ME, identificadas como provenientes do discurso ambiental multilateral; deve-se, grosso modo, no caso da teoria da SR, por sua habilidade de problematizar e enriquecer os pressupostos das duas estratégicas com as quais divide o controle discursivo do discurso científico ambiental. Passo agora à abordagem de Robert Castel sobre a problemática da seguridade. A investigação de Castel (2011) tem por objeto a problemática da insegurança e da proteção social na contemporaneidade. Segundo este autor, a problemática da insegurança, desde os anos de 1980, ganhou os contornos da grande complexidade demarcada por duas séries de transformações. Por um lado, há o crescente desmoronamento do sistema de proteção social ―clássico‖, nos marcos do enfraquecimento do Estado nacional-social e das mudanças socioeconômicas processadas, desde os anos de 1970, que provocaram para inúmeros indivíduos a

situação crônica de vulnerabilidade. Este sistema de proteção social constitui-se, na Europa Ocidental, no contexto do que Castel (2010) chamou de sociedade salarial: Poder-se-ia dizer que a sociedade salarial inventou um novo tipo de seguridade ligada ao trabalho, e não somente à propriedade, ao patrimônio. Porque, antes do estabelecimento desta sociedade salarial, ser protegido era ter bens, somente quando se era proprietário é que se estava garantido contra os principais riscos da existência social, que são a doença, o acidente, a velhice sem pecúlio (CASTEL, 2010, p. 286).

Simultâneo ao desmoronamento desse sistema de proteção social registra-se a emergência de novas ameaças e perigos que são percebidas e definidas como ―novos riscos‖, entre os quais riscos industriais, tecnológicos, sanitários, naturais, ecológicos etc. Castel (2011) posiciona essa complexidade observando que: É possível colocar a hipótese de que a atual frustração a respeito da seguridade contemporânea se alimenta desta dupla fonte. É por isso que é preciso mostrar essa conexão e denunciar a confusão que supõe. A inflação atual da sensibilidade de riscos faz da busca de seguridade uma busca infinita e sempre frustrada (CASTEL, 2011, p. 76).

Em relação à teoria da SR, Castel, (2010) observa que Beck ―[...] faz da insegurança o horizonte insuperável da condição do homem moderno‖ (CASTEL, 2011, p. 76); e refuta a ideia de uma ―sociedade de risco‖ a partir do argumento de que existiria, na base de sua constituição, a não distinção entre risco e perigo. Segundo Castel (2011), ―A inflação contemporânea da noção de risco mantém assim uma confusão entre risco e perigo‖ e ressalta que: De fato, a afirmação de que viveríamos em uma ―sociedade de risco‖ se baseia em uma extrapolação discutível da noção. Um risco no sentido próprio de palavra é um acontecimento previsível, cujas probabilidades de produzirse se podem estimar, assim como os custos dos danos que provocará. Mesmo assim, este pode ser indenizado porque pode ser mutualizado. O seguro foi a grande tecnologia que permitiu o controle dos riscos, repartindo os efeitos no seio de coletivos de indivíduos solidarizados frente a diferentes ameaças previsíveis (Castel, 2011, p. 76).

Castel (2011) relativiza aquilo que sustenta os fundamentos históricos da discursividade ambiental: ―[...] ‗a nova geração de risco‘, ou ao menos de ameaças percebidas como tais: riscos industriais, tecnológicos, sanitários, naturais, ecológicos, etc.‖ Afirma ainda que: ―A proliferação dos riscos aparece aqui estreitamente ligada à promoção da modernidade‖ (CASTEL, 2011, p. 76). Trata-se, claramente, de um não aval à efetividade da chamada ―nova geração de riscos‖, tanto em relação a uma questão

de natureza quanto em relação à função política associada à tendência, muito recorrente na discursividade ambiental, de extrapolar, superdimensionar, enfatizar à exaustão, não só a noção de risco; mas as quatro noções apontadas por Foucault (2008b) como características dos dispositivos de segurança, ou seja, a noção de caso, de risco, de perigo e de crise. Em relação à noção de ―cultura de risco‖, Castel (2011) afirma: ―A ‗cultura do risco‘ extrapola a noção de risco e a esvazia de sua substância e a impede de ser operativa‖. E de forma ainda mais direta enfatiza que: ―Assim a ―cultura de risco‖ fabrica perigo”. (CASTEL, 2011, p. 80). Em relação à teoria da SR, observa que: ―Assim mesmo, é inexato dizer com Beck que esses riscos atravessariam no sucessivo as barreiras de classe e estariam distribuídos democraticamente de alguma maneira‖ (Castel,op. cit, p. 80). Castel (2011) condensa sua rejeição à teoria da SR e à ―cultura do risco‖ afirmando: Mas, ao menos podemos começar a exigir que uma quase metafísica do risco não sirva para ocultar a especificidade dos problemas que hoje se colocam, assim como a busca das responsabilidades na origem destes danos que no comum se apresentam como inelutáveis (CASTEL, 2011, p. 81).

Por outro lado, não se trata da destituição da efetividade da noção de risco, uma vez que, para Castel (op. cit, p. 80): ―Evocar legitimamente o risco não consiste em colocar a incerteza e o medo no coração do porvir, senão pelo contrario em fazer do risco um redutor de incerteza para dominar o futuro, desenvolvendo meios apropriados para fazê-lo mais seguro.‖ Nesse sentido, a difusão de riscos, ameaças e perigos ambientais e tecnológicos; os prenúncios de catástrofes climáticas e de fenômenos de escassez de água e de outros recursos renováveis e não renováveis, como o exemplo dos recursos da piscicultura oceânica, dentre outros prenúncios e prognósticos ambientais de natureza negativa, não têm outro sentido senão a disseminação da incerteza e do medo como horizonte temporal. Trata-se, efetivamente, de um mecanismo de poder do dispositivo ambiental. Retorno ao problema da Modernização Reflexiva como a estratégia discursiva central à abordagem ambiental de Ulrich Beck. Segundo Beck (1997), a Modernização Reflexiva é a modernidade a vir, a nova era social que emergirá da transição que se processa contemporaneamente entre a modernidade simples, da sociedade industrial, e a nova realidade, que ele delineia como Modernização Reflexiva. A ―sociedade de risco‖ é este momento intermediário em que não estamos mais plenamente alojados na

modernidade simples, da sociedade industrial, nem tampouco na nova realidade, que, segundo Beck, ao obedecer a uma dinâmica de desincorporação e reincorporação dos elementos da industrialização, dá lugar a um processo de destruição criativa. A teoria da modernização reflexiva, na versão defendida por Beck, postula a existência de um processo histórico desenvolvendo-se independente da vontade dos homens. Este processo é, de fato, uma referência à ideia de progresso e de evolução histórica. A abordagem de Ulrich Beck situa-se na linha do evolucionismo, que fez emergir o conceito de progresso e o conceito de desenvolvimento. Ele a situa como uma sociologia do progresso industrial, e as transformações que levarão à superação dos impasses e das consequências negativas da industrialização conformam uma transição histórica de uma sociedade industrial de modernização simples a uma modernidade industrial de modernização reflexiva. Nesse sentido, a genealogia do conceito de desenvolvimento revela sua proveniência no conceito de evolucionismo de Darwin e sua correlação com o conceito de progresso; seu vínculo direto, efetivo, sistemático com a empresa colonialista dos séculos XVI, XVII e XVIII e, no século XIX, com Marx, sua apropriação por forças sociais revolucionárias, voltadas para a perspectiva de derrocada do sistema capitalista. No Pós-1945, há uma nova reviravolta, com a reapropriação deste conceito pelo bloco euro-americano, na sustentação de programas e políticas em prol do desenvolvimento do capitalismo. Minha hipótese é que a teoria do Desenvolvimento Sustentável emerge como defesa e retomada do conceito de desenvolvimento do capitalismo frente aos abalos críticos da revolução de 1968 e da eclosão da ecológica como movimento social. É na reversão do uso deste conceito, em relação à apropriação que tem como marco histórico o nome de Karl Marx, frente às forças anticapitalistas; para seu uso, na defesa e sustentação do capitalismo, que tem como referência histórica a criação da ONU e do sistema de Organismos Multilaterais do Pós-1945, que situo o contributo de Ulrich Beck. Este autor apropria-se do enfoque de Marx, de sua abordagem do progresso, segundo a qual seria o próprio movimento interno do capitalismo, no jogo e no entrechoque de suas contradições, como modo de produção, que construiria a sua própria derrocada. Beck captura (ia dizer que ele rouba), a ideia de destruição criadora, contida no Manifesto Comunista, do papel revolucionário da burguesia – no movimento em que esta, enquanto classe revolucionária destrói as inúmeras relações sociais que lhe barravam o caminho –, e procede a atualização do movimento, que Marx definiu como o motor da história; ou seja, a luta de classe, de uma forma tanto original quanto

surpreendente: para Beck, o motor não da história – como em Marx –, mas do progresso é o efeito colateral, isto é, os efeitos matérias da industrialização: a degradação da natureza. Em Marx, que usa a metáfora do coveiro, esse movimento é negativo, pois implica o fim do capitalismo; enquanto, para Beck, a ―destruição criadora‖ é um movimento positivo de superação dos problemas gerados pela industrialização a partir dos contra-efeitos gerados pelos efeitos. Trata-se da ideia dos efeitos colaterais como motor da História. Em resumo, a teoria da SR conforma um tipo de diagnóstico da contemporaneidade no qual os efeitos negativos da industrialização exacerbam-se e demarcam uma fase de transição em que aquilo que conforma a problemática ambiental, isto é, a degradação da natureza, a partir dos efeitos do processo de industrialização, é tensionado e direcionado no seu próprio movimento para sua superação. Nesse sentido, o autor da teoria da SR afirma que: ―Sendo assim a ‗modernização reflexiva‘ significa autoconfrontação com os efeitos da sociedade de risco que não podem ser tratados e assimilados no sistema da sociedade industrial – como avaliado pelos padrões institucionais desta última‖ (BECK, 1997, p. 16). E, uma vez que a modernidade reflexiva nasce da própria modernidade simples, Beck (1997) pode afirmar que: [...] a tese fundamental da teoria da reflexividade da modernidade, grosseiramente simplificada, afirma o seguinte: quanto mais avança a modernização das sociedades modernas, mas ficam dissolvidas, consumidas, modificadas e ameaçadas as bases da sociedade industrial. O contraste está no fato de que isso pode muito bem ocorrer, sem reflexão, ultrapassando o conhecimento e a consciência (BECK, 1997, p. 210).

Mas que elementos são identificados na superação da problemática ambiental, nessa transição da sociedade industrial simples para a modernidade industrial da fase reflexiva? Vejamos a resposta de Beck (1997) Não apenas a pobreza crescente, mas também a riqueza crescente, e a perda de um rival no Leste, produzem uma mudança axial nos tipos de problemas, no escopo da relevância e na qualidade da política. Não somente as causas dos desastres, mas também o intenso crescimento econômico, a tecnificação rápida e a maior segurança no emprego podem desencadear a tempestade que vai impulsionar ou impelir a sociedade industrial rumo a uma nova era

(BECK, 1997, p. 13). Temos, portanto, que o posicionamento de Beck não contraria, como afirmam Mol e Spaargaren (1993) e Olivieri (2005), mas, ao contrario, reafirma a possibilidade de um porvir que tem por pressuposto a crescente participação da ciência e da

tecnologia – super-industrialização – como via para o desenvolvimento, a continuidade do crescimento econômico e a superação da questão ambiental. Uma reflexão emerge destas notas: é preciso cautela e distanciamento no reproduzir aquilo que circula no discurso ambiental, seja na sala de aula, nos textos que produzimos, nas conversas que encetamos, pois a subjetivação ambiental é produzida e reproduzida no dizer verdades em que estamos implicados. Por outro lado, é importante ter em conta que a temática ambiental, o olhar sobre a natureza, a problemática ecológica na sociedade brasileira encontra-se, majoritariamente, circunscrito ao pensamento do status quo, por isso, o convite implícito ao estranhamento do conceito de risco e a partir desse estranhamente a abertura a um olhar crítico, capaz de colocar sob suspeita as verdades ambientais, a causa ambiental e o discurso ambiental com sua pregação e forte disseminação de uma racionalidade que faz da natureza um meio de conduzir condutas. A racionalidade ambiental efetiva-se em um discurso que tem na forma do ensino sua principal característica. Mas não se trata apenas da Educação Ambiental, as inúmeras subdisciplinas ambientais, do direito à contabilidade, da filosofia à psicologia ambiental encontram-se implicadas na pedagogização ambiental da sociedade e nesse processo abarcam indivíduos e populações, empresas e governos e têm ainda o suporte de inúmeras formas de expressão da industrial cultura a modular nossa condição de poluidores. Referências BECK, Ulrich. Sociedade de risco: Rumo a uma outra modernidade. Ed. 34, 2010. ______.GIDDENS, A. LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: UNESP, 1997. CASTEL, Robert. La inseguridad social: qué es estar protegido? Buenos Aires: Manantial, 2011. _________. As transformações da questão social. In: WANDERLEY-BELFIORE, Mariangela; BÓGUS, Lúcia e YAZBEK, Maria Carmelita. Desigualdade e a questão social. São Paulo:EDUC, 2010. FOUCAULT. M. O nascimento da biopolítica. Curso dado no Collège de France (1978–1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008a _________ Segurança, território e população. Curso no Collège de France (19771978), São Paulo: Martins Fontes, 2008b.

GIDDENS, Anthony. A vida em uma sociedade pós-tradicional. In: BECK, U., GIDDENS, A. & LASH, Scott. Modernização reflexiva: Política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: UNESP, 1997. LENZI, Cristiano Luis. Sociologia ambiental: risco e sustentabilidade na modernidade. Bauru, SP: Edusc, 2006. HANNIGAN, John. Sociologia ambiental. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. MOL, Arthur P.J. e SPAARGAREN, Gert. Meio ambiente, modernidade e sociedade de risco: O horizonte apocalíptico da Reforma Ambiental. Ilhéus, BA: Editus, 2003. OLIVIERI, Alejandro Gabriel. A teoria da modernização ecológica: Uma avaliação crítica dos fundamentos teóricos. 2009. 200 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) Faculdade de Ciência Sociais. Universidade de Brasília, 2009. FILMOGRAFIA Avatar: A lenda de Aang (Avatar, EUA, 2009, Direção: James Cameron). A era do gelo (Ice age. EUA, 2002, Direção: Chris Wedge e Carlos Saldanha). Wall. E (Wall. E, EUA, 2008, Direção: Andrew Stanton).

Os Efeitos da Incorporação da “Crítica Social” e da “Crítica Estética” ao Capitalismo no Campo da Educação Pablo Severiano Benevides (incluir e-mail) A assunção de que a crítica ao capitalismo constitui um dos principais motores para a reconfiguração e fortalecimento do capitalismo poderá, de início, causar um grande incômodo àqueles que estão acustumados com a confortável posição que o status da ―crítica‖ pode aparentemente conferir àqueles que a ela aderem. Isso equivaleria a admitir que os atuais encaminhamentos dados a uma série de reivindicações contra o capitalismo foram transformados, a partir de mecanismos que produziram incorporação, reconfiguração e desorientação da crítica que os veiculava, em ideais, valores, bandeiras e slogans do capitalismo. Para referir-se a tais mecanismos, Boltanski e Chiapello (1999), em O Novo Espírito do Capitalismo, utilizam a expressão ―espírito do capitalismo‖: um conjunto de argumentações, de estratégias de adesão e engajamento e de valores que surgem do encontro do capitalismo com a crítica ao capitalismo. Isto é importante para a própria manutenção do capitalismo, na medida em que ―ele [o capitalismo] precisa de seus inimigos, daqueles que se lhe opõem, para encontrar os pontos de apoio morais que lhes faltam‖ (Boltanski e Chiapello, 1999, p.61). Sendo assim, trata-se de, mediante este trabalho, investigar quais são esses novos ―pontos de apoios morais‖ característicos de um novo espírito do capitalismo e como o campo da Educação atua no sentido de configurá-los e fazê-los funcionar nesse contexto. Para isso, deveremos, ainda que de forma breve, tentar esclarecer o modo como as distintas formas de críticas ao capitalismo chegam ao campo da Educação, bem como o modo como suas principais reivindicações são capturadas para finalidades adaptáveis ao capitalismo. Ao esboçarem uma diferença entre ―crítica‖ e ―indignação‖, Boltanski e Chiapello (1999) argumentam que a crítica funciona num nível secundário, reflexivo e teórico, que



Professor Assistente II do Curso de Psicologia da UFC/Campus de Sobral. Mestre em Filosofia e Doutorando em Educação Brasileira pela FACED/UFC. Tutor do Programa de Educação Tutorial PET/UFC na Psicologia. Coordena o Laboratório de Estudos em Epistemologia, Educação e Subjetividade (LEDUS).

intenta traduzir as indignações, os ―impulsos emotivos‖ (p.72), a uma série de valores passíveis de serem universalizados e justificados. Contudo, ―mesmo quando as forças críticas parecem em total decomposição, a capacidade de indignação pode permanecer intacta‖ (idem). Assim, caberia à crítica recolher e organizar teórica, retórica e representativamente a materialidade trazida pela indignação. Desta forma, os autores entendem que as fontes de ―indignação‖ em relação ao capitalismo permanecem relativamente semelhantes nos últimos dois séculos e procuram mapear suas principais fontes. Estas seriam, fundamentalmente, de quatro ordens: • O desencanto e inautenticidade relativos ao tipo de vida associados ao capitalismo; • As formas de opressão que impedem o exercício das potencialidades espontâneas e autônomas, bem como das possibilidades de emancipação humana; • A miséria de boa parte da população articulada à desigualdade social em uma amplitude cada vez mais assombrosa; • O oportunismo e egoísmo que favorecem a interesses individuais e particulares e se sobrepõem ao bem-estar da maioria da população. Estas queixas, todavia, não engendram indignações e/ou reivindicações que possam ser articuladas por uma crítica una e coesa. Neste sentido, Boltanski e Chiapello (1999) sugerem que a denúncia ao desencanto, inautenticidade e opressão – mencionadas nos dois primeiros tópicos – constitua uma crítica estética ao capitalismo, ao passo em que a denúncia à miséria, à desigualdade, ao oportunismo e ao egoísmo referidos nos últimos tópicos perfaça elementos estratégicos para uma crítica social. Assim, mesmo que em determinados contextos essas críticas possam apresentar interseções e aparecerem de modo relativamente articulado, sob uma série de aspectos podem migrar para objetivos distintos e divergirem significativamente entre si. A crítica estética, na medida em que denuncia as formas de padronização, homogeneização e repressão das potencialidades humanas por parte do capitalismo – e que possui na figura do intelectual, do artista e do boêmio seu tipo ideal e suas principais instâncias de agenciamento – apresenta como corolário uma tendência a articular-se, em algumas de suas formulações, ao individualismo e ao neoliberalismo. Já a crítica social, na medida em que denuncia a miséria, as desigualdades sociais, o egoísmo e a exploração pela via do trabalho – tendo como encarnação mais evidente a

figura do militante partidário e do sindicalista – encontra-se, em diversas circunstâncias, sob a possibilidade de se articular às temáticas de inspiração cristã e/ou às mais distintas micro-políticas fascistas e/ou opressoras dos aspectos individuais, idiossincráticos e singulares. Por essa via, do ponto de vista da crítica estética, as reivindicações da crítica social poderão aparecer como opressoras, homogeneizadoras, massificadoras e/ou fundamentalmente ancoradas em posicionamentos moralistas; indo na direção oposta, do ponto de vista da crítica social, as reivindicações da crítica estética poderão aparecer como egoísmo, individualismo, amoralismo, cinismo e irresponsabilidade frente os problemas do coletivo. Assim sendo, Boltanski e Chiapello (1999) findam por concluir que a crítica ao capitalismo encontra-se em estado de desorientação e, por vezes, de auto-descrédito precisamente porque há uma ―ambiguidade intrínseca da crítica que sempre compartilha ‗alguma coisa‘ com aquilo que ela procura criticar‖ (p.76). Passemos agora ao modo como as reivindicações da crítica estética incidiram no campo da Educação, a partir da perspectiva de análise adotada por este trabalho. Uma vez que o capitalismo assume a crítica estética e busca dar-lhe voz, o que observamos é uma reapropriação, por parte deste, daquilo que Boltanski e Chiapello (1999) entenderam como sendo os quatro pilares básicos das indignações mobilizadas pela crítica estética: autonomia, criatividade, autenticidade, liberação, e também singularidade e diferença. Isto quer dizer que estas reivindicação serão reconfiguradas para funcionarem como as novas bandeiras do capitalismo e as novas ferramentas com as quais serão arquitetadas as novas estratégias de adesão e de justificação deste novo espírito do capitalismo. Temos como um dos principais pontos de referência e um dos principais signos desta reapropriação exatamente o que Deleuze (2010), em seu texto Post Scriptum: sobre as sociedades de controle, entendeu como sendo a substituição da fábrica pela empresa como instituição emblemática das sociedades de controle – tão emblemática que podemos referir à aparição de determinados fenômenos escolares e sociais em termos de um empresariamento da escola e da sociedade (Gadelha, 2010). Devemos considerar relevantes esse agenciamento empresarial de diversos setores da vida social na medida em que entendemos que isto significa uma mercantilização de ―bens que até então haviam ficado fora do mercado‖ (Boltanski e Chiapello, 1999, p.444, grifos dos autores). Sob que roupagens, contudo, aparecerá essa mercantilização em suas estratégias de adesão e convencimento da lógica empresarial neo-capitalista? Isto aparecerá, portanto, como ―mercantilização de certas qualidades dos seres humanos

com o intuito de ‗humanizar‘ os serviços, especialmente os pessoais, bem como as relações de trabalho‖ (idem, grifos dos autores). Por esta via, argumentamos que faz sentido pensar no modo como estes mecanismos de ―humanização‖ penetram nas práticas educativas no sentido de fazer com que os sujeitos se tornem ―verdadeiramente‖ humanos. Filando, contudo, esses novos humanismos às práticas de gestão empresarial que consideram as potencialidades de cada um como constituindo um ―capital humano‖ próprio a cada sujeito (Klaus, 2011) – tal como entenderam boa parte dos economistas da Escola de Chicago ao redimensionarem o objeto da economia em termos de comportamento humano – poderemos situar o efetivo conjunto de valores empreendedores (Gadelha, 2010) que estão em jogo nas práticas de si mesmo que Larrosa (2002) descreve como ―as atividades de educação moral [que] têm nomes como ‗clarificação de valores‘, atividades de auto-expressão‘, ‗discussão de dilemas‘, ‗estudo de caso‘, ‗técnincas de auto-regulação‘, etc.‖ (p.45). Em seu texto Tecnologias do Eu e Educação, Larrosa (2002) irá apresentar como a articulação entre os discursos pedagógicos e os discursos terapêuticos produzem toda uma gramática para auto-interpretação do sujeito e, portanto, para a autoidentificação e governo dos mesmos. Isto estaria inserido no que Foucault (1997b), em seu curso Verdade e Subjetividade, proferido entre 1980 e 1981, considerou como ―técnicas de si‖ (p.109): ―os procedimentos (...) pressupostos ou prescritos aos indivíduos para fixar sua identidade, mantê-la ou transformá-la em função de determinados fins, e isso graças a relações de domínio de si sobre si ou conhecimento de si por si‖ (idem). Assim, devemos entender, poranto, que as ―práticas pedagógicas, sobretudo quando não são estritamente de ensino [de conteúdos] (...) mostram importantes similitudes estruturais com as práticas terapêuticas‖ (Larrosa, 2002, grifos nossos). No contexto prático, essa similitude estrutural aparece sob as vestes de uma gramática (a)política humanista, no campo da Educação e da Psicologia, que não julga a si mesma como uma agência de produção dos sujeitos que falam e são falados nessas atividades educativo(e/ou)-terapêuticas, mas sim como ―mediadora‖, precisamente por crer que sua ação nada mais faz do que criar um entorno de possibilidades para emergência das potencialidades humanas – potencialidades estas intimamente veiculadas às noções de autonomia, criatividade, autenticidade e liberação. Assim, no vocabulário reflexivo dos ―autos‖ (autonomia, auto-disciplina, auto-controle, auto-

regualção) e dos ―-se‖ (ver-se, narrar-se, expressar-se, julgar-se, dominar-se), uma série de padrões normativos são estabelecidos em termos de uma boa ou má, transparente ou dissimulada, normal ou patológica, consciente ou imatura relação do sujeito consigo mesmo (Larrosa, 2002). Será nesse contexto humanista e mediador – onde práticas de produção, normalização e governo das identidades subjetivadas e sujeitadas são postas em cena – que perceberemos o caráter lúdico, psicológico e até mesmo artístico que assumem as novas práticas educacionais quando operam com os jogos educativos e as técnicas audiovisuais. Em seu texto As creches e a iniciação, Guattari (1981) chama atenção para uma certa ―tradutibilidade do conjunto dos sistemas semióticos introduzidos pelas sociedades industriais‖ (p. 52, grifos do autor) que podem ser vistos nas formas de superposição entre trabalho, aprendizagem e brincadeira. As crianças, diante da televisão, ―trabalham‖, assim como ―trabalham‖ na creche, com técnicas de jogo que são concebidas para melhorar seus desempenhos perceptivos. Pode-se mesmo, num certo sentido, considerar que este trabalho é comparável ao dos aprendizes na escola profissional, ou dos operários metalúrgicos que se reciclam visando adaptar-se a novos tipos de linha de montagem (GUATTARI, 1981, P. 52).

Assim, Guattari (1981) chama a atenção para os modos de impregnação das técnicas audio-visuais, dos jogos educativos e de todo um conjunto de competências semióticas que são articuladas desde a mais tenra infância para que as modalidades de ―imprinting do controle social‖ (p.53) e de propagação dos ideais de subjetivação capitalísticos recorram cada vez menos a práticas disciplinadoras, opressivas e coercitivas. Diante disto, resta-nos perguntar qual foi o solo propício para a ligação, no campo da Educação, das demandas artísticas por criatividade, autenticidade e liberação às práticas de cunho psicológico. Se entendermos que o movimento escolanovista consistiu numa das condições de possibilidade para o que hoje chamamos de ―Psicologia Escolar/Educacional‖ ou ―Psicologia da Educação‖ (Vasconcelos, 2006), entenderemos como as modalidades de interseção entre Psicologia e Educação funcionam como agenciamentos importantes para a constituição dessas práticas lúdicas, vivenciais, artísticas e experimentais no campo da Educação. Sobre o movimento escolanovista, Saviane (1985) aponta para um conjunto de mudanças de paradigmas que, sob a luz da perspectiva que ora trazemos, facilmente podemos filiar aos deslocamentos operados pelo capitalismo em função do acolhimento e vampirização da crítica estética.

Compreende-se, então, que essa maneira de entender a educação, por referência à pedagogia tradicional, tenha deslocado o eixo da questão pedagógica do intelecto para o sentimento; do aspecto lógico para o psicológico; dos conteúdos cognitivos para os métodos ou processos pedagógicos; do professor para o aluno; do esforço para o interesse; da disciplina para a espontaneidade; de uma pedagogia de inspiração filosófica centrada na ciência da lógica para uma pedagogia de inspiração experimental baseadas principalmente nas contribuições da biologia e da psicologia (SAVIANE, 1985, p.12).

No que diz respeito às indignações mobilizadas pela crítica social, estas parecem ter agenciado, no campo da Educação, reivindicações que foram muito mais confundidas, deslocadas e profundamente modificadas em relação às fontes primeiras de indignação (miséria, desigualdade e egoísmo) do que propriamente incorporadas como bandeiras do capitalismo. O signo deste processo é exatamente o fato de a inclusão despontar como palavra de ordem fundamental dos movimentos sociais e, ao mesmo tempo, como signo da tendência à dissolução da crítica social. Segundo Boltanski e Chiapello (1999), os novos movimentos sociais, as causas humanitárias e as políticas de ação afirmativa vêm operando, no decorrer das três últimas décadas, com alguns deslocamentos no que tange às categorias que expressam a ―negatividade social‖ (p.353). A categoria ―excluído‖ vem progressivamente substituindo a figura (e, portanto, um conjunto de problemáticas e de imagens a ela associado) do ―explorado‖. Contrastando com a denúncia de uma crítica social que desidentificava a miséria às condições individuais e que, portanto, filiava-a às condições estruturais do trabalho, a problemática da exclusão situa-se em um terreno bem distinto. (...) o modelo da exclusão possibilita designar uma negatividade sem passar pela acusação. Os excluídos não são vítimas de ninguém, muito embora o fato de pertencerem a uma humanidade em comum (...) exija que seus sofrimentos sejam levados em conta e que eles sejam socorridos, principalmente pelo Estado (...). O tema da exclusão, portanto, está ligado àquilo que chamamos alhures de ―tópica do sentimento‖, em oposição à ―tópica da denúncia‖, o que favorecerá dez anos depois [em relação ao ano de 1974] sua reapropriação pelo movimento humanitário (BOLTANSKI E CHIAPELLO, 1999, p. 354).

Assim, a regressão da crítica social à denúncia, bem como a regressão da denúncia ao seu ―estímulo original‖ (p.356) – a saber, à ―indignação em face ao sofrimento‖ (idem) – são correlatos à configuração da problemática da exclusão, e possuem como corolário precisamente assunção, por vezes implícita, de que a realidade capitalística apresenta-se como a única possível. Paralelamente a isto, percebemos também um conjunto de características que outrora estavam vinculadas à figura do ―homem do

povo: coragem, franqueza, generosidade e solidariedade‖ (idem) tende a ser substituído pelos ―atributos lastimosos do excluído, definido principalmente pelo fato de ser sem: sem voz, sem casa, sem documentos, sem trabalho, sem direitos etc‖ (ibdem). Segundo Veiga-Neto (2001), as políticas de inclusão, por ele abertamente qualificadas de políticas de inclusão dos anormais, vêm cada vez mais operando o movimento de uma mudança de ênfase ―de um plano cuja ênfase incidia sobre a morfologia e a conduta para um plano cuja ênfase agora se dá sobre a economia e a privação (de determinados extratos populacionais)‖ (p. 107). Para entendermos como esse processo opera nas políticas de inclusão, faz necessário realizar o procedimento que realizei em trabalhos anteriores (Benevides, 2011a; Benevides, 2011b; Benevides & Severiano, 2011) e que já foram evidenciados, em suas principais coordenadas, por Veiga-Neto (2001, 2005), Perez de Lara (2001), e Duschatzsky e Skliar (2001) – a saber: trata-se de evidenciar o uso de figuras retóricas como uma ―proteção linguística‖ (Veiga-Neto, 2001), veiculadora de ―certos discursos e práticas culturais tão politicamente corretas quanto sensivelmente confusas‖ (Duschatzsky e Skliar, 2001 p.120), que constantemente mascara um incômodo nosso em relação às formas de nomeação dos outros. O resultado é a percepção de um conjunto de termos cuja instabilidade consiste signo da tentativa de contornar a violência que subjaz nos mecanismos de nomeação, estereótipo e configuração das identidades relavitas aos sujeitos excluídos. Assim, chamamos atenção ao fato de que os agenciamentos que configuram os excluídos são fundamentalmente de duas ordens: uma relativa aos saberes médico-psi (o ―plano das morfologias e das condutas‖) e outra relativa ao domínio de uma racionalidade econômica (o ―plano da economia e da privação‖). O aspecto mais relevante em todo esse processo consiste na tendência em reconfiguração das questões jurídico-políticas em questões científicas (médicas, psicológicas ou pedagógicas) – o que Foucault (1997a) referia como ―essa perpétua referência [da justiça criminal] a outra coisa que não é ela mesma‖ (p.23). Isso será importante para compreendermos a despolitização implicada nos mecanismos de dissolução da crítica social presente nas políticas de inclusão escolar. Se o poder de punir vai aparecer não mais como vingança, mas como reeducação, ressocialização, correção e cura, semelhante reagenciamento da esfera jurídico-política (agora pelo agenciamento de uma racionalidade econômica) vai aparecer, em ―O nascimento da Biopolítica‖, a partir do deslocamento da noção de culpabilidade – esse ―estranho complexo jurídico-científico‖ (Foucault, 1997a, p.21) – para a de periculosidade, no

que diz respeito aos critérios de aplicação, distribuição e administração das penalidades. O deslocamento operado por Foucault nos últimos anos da década de 70 e início da década de 80 (especialmente em obras como O Nascimento da Biopolítica e Do Governo dos Vivos da noção de poder para a de governo perfazem estratégias de compreensão de uma mesma tendência, expressa nessa circunstância de uma forma ainda mais clara: a naturalização da prática de governo e, no limite, seu apagamento por razões de sua estreita filiação com a noção de verdade. É precisamente este o ponto em que gostaríamos de chegar mencionar: (...) o ponto utópico da história em que o império da verdade poderá fazer reinar sobre sua ordem sem que as decisões de uma autoridade, sem que as escolhas de uma administração, tenham que intervir a não ser como formulações evidentes aos olhos de todos daquilo que é preciso fazer, [de modo que] todo mundo estará de acordo e haverá um limite onde não será mais necessário ter um governo; em que o governo não será mais que a superfície de reflexão da verdade, da sociedade e da economia em um certo número de expressões que não farão outra coisa que repercutir a verdade naqueles que são dominados (FOUCAULT, 2010, p. 45, grifos meus)

Chegamos, portanto, ao ponto (―utópico‖) em que a vinculação da noção de governo com a de verdade implicaria no que Deleuze (1988), em Diferença e Repetição, entendeu como sendo a fórmula do consenso, da representação e da Imagem do Pensamento que a filosofia toma emprestado puramente do senso-comum: ―todo mundo sabe, ninguém pode negar‖ (p.216, grifos do autor). Se Deleuze (1988) afirma que esse é o momento em que o pensamento cessa ao fazer-se ―pensamento natural‖ (p. 218), trata-se de pensar, portanto, como essa fórmula do consenso segue os passos em direção ao (des)caminho da morte, do fim e/ou do esquecimento do político (Chauí, 2007; Zizek, 2008; Mouffe, 1996). Caso assumamos, contudo, que o político precede o ontológico, trata-se de situar a posição política de onde emergem prenúncios do fim/morte/esquecimento da política. Essa questão parece bem apontada por Zizek (2008), em A Visão em Paralaxe, precisamente nas circunstâncias em que o autor refere-se à (cada vez mais constante) remissão da política à ética para o encaminhamento de conflitos, como um ―gesto violento de despolitização, de negação de toda e qualquer subjetivação política ao outro vitimizado‖ (p.446). A ética desponta, assim, como o horizonte pré-político da oposição entre Bem e Mal. Por essa via, aqui emerge uma importante articulação que poderá nos dar uma pista acerca do porquê da emergência das políticas de inclusão escolar implicar num modo de contornar e confundir a crítica social: ―a política antipolítica puramente

humanitária de apenas impedir o sofrimento representa, de fato, a proibição implícita de elaborar um projeto coletivo positivo de transformação política‖ (p.444). Portanto, a questão clássica ―o que nós devemos fazer‖ será antes uma questão política do que ética. Exatamente porque ―o ‗nós‘ não é um dado, mas antes um problema‖ (Mouffe, 1996, p.71), trata-se constantemente de produzí-lo por agenciamentos coletivos de enunciação não totalizáveis, considerando sempre a possibilidade de desacordos e dissensos em relação aos possíveis destinos das ações políticas (idem, 1996). O problema do desfazimento das fronteiras políticas é também abordado, sob outra perspectiva, por Pierucci (2000) em sua obra Ciladas da Diferença. Segundo o autor, o direito à diferença constitui a reivindicação fundamental dos novos movimentos sociais, das ações afirmativas e das políticas de inclusão. Como, todavia, tais movimentos dão-se no contexto de um telos libertário, emancipatório e progressista (portanto, ―de esquerda‖) devem abraçar a diferença sem abrir mão da igualdade. Para tal, a diferença a que se referem não poderá implicar em uma desigualdade – o que não ocorreria com um pensamento de direita, acostumado a marcar as diferenças e seguir até o fim com a dimensão valorativa que essas marcas carregam. Com isso, ―intelectualizase em excesso a opção diferencialista de esquerda‖ (p.31) e recai-se no que, curiosamente, Pierucci (2000) chamou de ―onipotência nominalista‖ (p.32). Deste modo, as conclusões que este trabalho aponta podem ser sintetizadas a partir do seguinte: mediante as políticas e discursos de inclusão da diferença, o uso de figuras retóricas constitui, no campo da Educação, mecanismo estratégico para traduzir as problemáticas da crítica social em problemáticas da crítica estética. Desta forma, os excluídos – tanto por serem agenciados como anormais pelos saberes médicopsi ou ―sem-nada‖, pobres, miseráveis e carentes por uma dada racionalidade econômica biopolítica – são (re)qualificados como diferentes precisamente em um contexto em que ―diferença‖ constitui uma das principais formas de aparição da reivindicação por autenticidade mobilizada pela crítica estética e substancialmente incorporadas às práticas de mercadologização empresariais e publicitárias. Por tanto, uma ―Eduação para Todos‖ – que constituiria, nos termos de Boltanski e Chiapello (1999), uma reivindicação filiada à crítica social e, na perspectiva de Pierucci, um reclame pela igualdade – é, desde já, significada em termos de uma ―Educação para cada um‖ que possa acolher as diferenças, possibilitar o desenvolvimento da criatividade espontânea, da autonomia e da personalidade específica de cada sujeito – e o complemento ―porque somos todos humanos‖ constitui, aqui, uma referência

meramente acessória a toda uma ―gramática da autenticidade‖ (Boltanski e Chiapello, 1999, p.464) própria da crítica estética. A isso, acrescentaríamos ainda: a reconfiguração da crítica social, no campo da Educação, em crítica social estetizada – apontanto encaminhamentos lúdicos e artísticos em prol do desenvolvimento das potencialidades relacionadas à criatividade, espontaneidade e libertação, utilizando-se, sempre que possível, de uma pedagogia reflexiva da/para a autonomia e, sempre que verbas forem destinadas, aos serviçõs psicológicos, psicomotricistas e psicopedagógicos para auxiliar nessa tarefa – parece indicar um signo da perigosa tendência, por parte desse campo, em constituir-se como um dos mais atuantes dispositivos de dissolução do político no politicamente correto.

Referências BENEVIDES, Pablo S. As retóricas contemporâneas e a significação da ―Educação Inclusiva‖. In: Psicologia & Sociedade, 23(2), 248-253, 2011a. _____. As faces outras: um estudo acerca das políticas e discursos identitários a partir do uso de figuras retóricas. In: VASCONCELOS, Gerardo (org.). Tribuna de Vozes. Fortaleza: Edições UFC, 2011b. BENEVIDES, Pablo S.; SEVERIANO, Fátima. A Lógica do Mercado e as Retóricas de Inclusão: articulações entre a crítica frankfurteana e a pós-estruturalista sobre as novas formas de dominação. In: Estudos e Pesquisa em Psicologia, 11(1), 2011. BOLTANSKI, Luc & CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. CHAUÍ, Marilena. O que é política? In: NOVAES, Adauto. O Esquecimento da Política. São Paulo: Agir, 2007. DELEUZE, Gilles. Post-scriptum: Sobre as Sociedades de controle. In: DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro, Ed. 34, p. 219-226, 2010. _____. Diferença e Repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988. DUSCHATZKY, Sílvia & SKILAR, Carlos. O nome dos outros. Narrando a alteridade na cultura e na educação. In: LARROSA, Jorge & SKILAR, Carlos. Habitantes de Babel: Políticas e poéticas da diferença (pp. 195-214). Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p.119-138. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1997a. _____. Resumo dos Cursos do Collège de France. Rio de Janeiro, Zahar, 1997b. _____. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

_____. Do Governo dos Vivos. Rio de Janeiro: Achiamé, 2010. GADELHA, Sylvio. Governamentalidade neoliberal e instituição de uma infância empreendedora. In: KOHAN, Walter. Devir-criança da Filosofia: infância da educação. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2010, p. 123-138. GUATTARI, Félix. As creches e a iniciação. In: GUATTARI, Félix. Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo: Brasiliense, 1981. KLAUS, Viviane. Desenvolvimento e governamentalidade (neo)liberal: da administração à gestão educacional. Porto Alegre: UFRGS, 2011. Tese de Doutorado em Educação. LARROSA, Jorge Tecnologias do Eu e Educação. In: SILVA, Tomás. O sujeito da Educação: Estudos Foucaultianos (p.35-86). Petrópolis: Vozes, 2002. MOUFFE, Chantal. O Regresso do Político. Lisboa: Gradiva, 1996. PÉREZ DE LARA, Nuria. Identidade, diferença e diversidade: manter viva a pergunta. In: LARROSA, Jorge e SKILAR, Carlos. Habitantes de Babel: Políticas e poéticas da diferença. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p. 195-214. PIERUCCI, Flávio. Ciladas da Diferença. São Paulo: Editora 34, 2000. SAVIANI, Demerval. Escola e Democracia. São Paulo: Cortez, 1985. VASCONCELOS, Mário. A difusão das Idéias de Piaget no Brasil. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006. VEIGA-NETO, Alfredo. Incluir para excluir. Em: Larrosa, J. & Skliar, C. (Orgs.) Habitantes de Babel: Políticas e poéticas da diferença (pp. 105-118). Belo Horizonte: Autêntica, 2001. ZIZEK, Slavoj. A Visão em Paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008. _____. O espectro da Ideologia. In: ZIZEK, Slavjoj (org.) Um mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2010.

Pedagogia Teatral e Processos de Subjetivação: Assujeitamento e Singularização

(ACRESCENTAR E-MAILS)

André Luiz Lopes Magela

Neste estudo, tentamos mostrar que os referenciais utilizados na educação profissionalizante implementada hegemonicamente nos cursos técnicos e superiores de formação de ator, bem como no ensino de teatro em escolas do ensino fundamental e médio no Brasil, podem ser comparados aos processos de subjetivação descritos por Michel Foucault em sua obra escrita. Cotejando processos disciplinares e de controle com a aculturação presente no ensino de teatro, podemos caracterizar esta transformação pessoal como um assujeitamento, desejado pelo aluno, inclusive, para a efetiva inclusão num mercado de trabalho vislumbrado ou ao menos para a adequação às preconizações do professor na escola. Para compreender o que será abordado nas reflexões sobre a produção de subjetividade, é preciso antes aludir ao que chamamos de processo de subjetivação: [...] não perguntar porque alguns querem dominar, o que procuram e qual é sua estratégia global, mas como funcionam as coisas ao nível do processo de sujeição ou dos processos contínuos e ininterruptos que sujeitam os corpos, dirigem os gestos, regem os comportamentos, etc. (...). Captar a instância material da sujeição enquanto constituição dos sujeitos. (...) ... Em vez de formular o problema da alma central, creio que seria preciso procurar estudar os corpos periféricos e múltiplos, os corpos constituídos como sujeitos pelos efeitos de poder (FOUCAULT; 1985: 182-183).

Valendo-nos de Judith Revel, comentadora e estudiosa da obra de Foucault, vemos que os processos de subjetivação, dentro do campo conceitual foucaultiano, são ligados a modos de objetivação que constituem os seres humanos como sujeitos, ―processos pelos quais obtém-se a constituição de um sujeito, ou mais exatamente de uma subjetividade‖ (REVEL; 2008: 128). Percebemos que o processo de subjetivação se imbrica com um processo de sujeição, uma das ambigüidades e contradições que caracterizam as relações de poder. Ao mesmo tempo, com o amparo dos estudos da subjetividade, podemos tentar articular o caráter assujeitador dos processos de



Ator. Mestre em artes cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira na Universidade Federal do Ceará. Docente do curso de Teatro – Licenciatura na mesma universidade.

subjetivação com uma desejável singularização presente em produções criativas de subjetividade. Parte importante dos procedimentos conexos ao ensino da linguagem teatral e da formação de ator se relacionam com o treinamento de ator, ou training, ―preparação para o ofício de ator‖ (PICON-VALLIN; 2008: 72), ―o processo artificial por intermédio do qual o ator se adapta ao meio-cena‖. Trabalho ―contínuo, prolongado, coerente e independente (em princípio) dos espetáculos nos quais o ator está envolvido durante o mesmo período. Os espetáculos concernem a uma cena específica, o processo de adaptação concerne ao ‗meio-cena‘‖ (PICON-VALLIN; 2008: 64). Este ―meio-cena‖ seria a instância cênica que demanda do atuante um comportamento específico, cênico. Béatrice Picon-Vallin, ao analisar o trabalho do encenador russo Vsévolod Meierhold em A cena em ensaios (PICON-VALLIN; 2008), nos fornece um panorama da importância e da disseminação, no século XX, da cultura que exige o treinamento no trabalho do ator - o cuidado meticuloso com a técnica de interpretação, que compõe uma ―pedagogia do teatro‖. Meierhold trabalhou intimamente com Constantin Stanislávski, a grande referência para o ator ocidental do século XX, e exerceu uma forte influência sobre Jerzy Grotowski, encenador, pesquisador e pedagogo do teatro que alavancou todo um direcionamento à dedicação sobre o trabalho corporal (o que inclui o trabalho vocal) do ator. O treinamento representa o componente de influência predominante no confronto do ator com as questões técnicas de seu trabalho e o que ocorre nesta construção de ―seu corpo de teatro‖ é um dos principais elementos que podemos considerar como um processo

de

subjetivação:

―Os

exercícios

permitem

desenvolver

um

novo

comportamento, novos modelos para se mover, agir, escutar, reagir, que não devem ser simplesmente repetidos e copiados, mas que vão atingir o artista em seu ser mais íntimo” (PICON-VALLIN; 2008: 69). Neste processo, são desenvolvidas, por parte do aluno, estratégias e mudanças de comportamento para dar conta das situações que lhe são colocadas de maneira desafiadora - sendo que ―desafio‖, convém notar, é um termo muito utilizado no PCN Artes nas suas recomendações quanto ao ensino de teatro (MEC/SEF; 1998: 89). A premissa mais comum como justificativa para esta ―construção de um corpo‖, para esta modificação, é que o comportamento cotidiano não é valido para o palco. Desta maneira, é preciso que o corpo do ator passe por transformações para que se torne adequado à expressividade cênica específica de cada teatro a ser realizado:

Nos teatros de pesquisa na Europa do início do século XX, os exercícios têm como objetivo preparar o ator para o trabalho do palco, ensinam o ator a aprofundar o conhecimento de seu esquema corporal, a testar e a dominar seu gestual e seus movimentos, para evoluir num espaço-tempo particular, o da cena. Eles visam a afastar o ator dos condicionamentos físicos habituais, psíquicos e sociais que marcam seu corpo. Eles ajudam a lutar contra os estereótipos de comportamento que qualquer sociedade impõe às mulheres e aos homens que a ela pertencem; ajudam a compreender as leis do movimento e da expressividade cênica e a se liberar do corpo ―cômoda falante‖, do ―corpo-gramofone‖, do qual falava Vsévolod Meierhold, para conquistar e apropriar-se de um corpo de teatro - ao mesmo tempo subjugado, porque submetido a regras (outras regras), e livre porque a invenção nasce apenas quando a assimilação e o domínio das regras permitem ao ator fazer tudo - um ―corpo dilatado‖, segundo a expressão de Eugenio Barba, um ―corpo em jogo‖ (PICON-VALLIN; 2008: 61-62).

Este processo de modificação pessoal operada pelo (e no) estudante pode ser muito intenso em formações profissionais. Mas ele ocorre em menor ou maior grau em escolas e universidades, em curso livres, ou mesmo no ensino de teatro no ensino formal fundamental e médio. No momento não nos deteremos nas questões técnicas deste processo e seus resultados artísticos. O que é digno de nota de nossa parte é o raciocínio que acreditamos permitir considerar o processo vivido pelo ator como sendo de subjetivação. Se consideramos que a formação de ator influencia a docência de teatro nas escolas do ensino médio e fundamental privado e público, podemos também sugerir alternativas para diversificar o ensino de artes nas escolas, enriquecidas pelas reflexões oriundas dos estudos da subjetividade. Ao abordar as mudanças comportamentais no aprendizado da atuação, Eugenio Barba, pedagogo do teatro ainda em atividade, põe em evidência a aculturação como um processo de destituição de uma cultura corporal espontânea oriunda do contexto cultural ou familiar do ator. Os atores, neste caso, se livrariam de sua inculturação para se ―submeter a um processo de aculturação física que os conduz a uma técnica extra-cotidiana do corpo: o corpo da dualidade – o corpo da aculturação – é programado do exterior, como um Frankestein. Ele é elaborado fragmento após fragmento, membro após membro, função após função; ele é então re-composto. É um corpo artificial.‖ (BARBA; 1994: 253). Para estes atores, ―passar do comportamento cotidiano para o comportamento extra-cotidiano que caracteriza o teatro e a dança não significa se liberar de condicionamentos, mas ‗se condicionar‘ diferentemente: decompor para recompor‖ (BARBA; 1994: 252). Este encenador e pedagogo, ao desenvolver estas ideias, esclarece que o objetivo, no campo que ele descreve, seria chegar a uma segunda natureza.

Eugenio Barba usa como referências um trabalho mais intenso de formação, onde há uma maior dedicação de tempo por parte dos atores, que reservam a parcela majoritária de sua vida para o treinamento. É preciso inclusive esclarecer que Barba se refere constantemente aos trabalhos cênicos orientais e que as culturas de atuação nestes âmbitos apresentam diferenças significativas em relação aos sistemas ocidentais. Os condicionamentos e as modificações que podem ser percebidos comparativamente aos diversos tipos de treinamento sofrem influências cronológicas, geográficas, ideológicas, dentre outras. Patrice Pavis, teatrólogo francês, tece uma consideração sobre este aspecto, dando ênfase, nesta reflexão específica, à identificação classificatória da recepção do trabalho do ator por parte da platéia: ―cada época histórica tende a desenvolver uma estética normativa que se define por contraste com as precedentes e propõe uma série de critérios bastante rígidos‖ (PAVIS; 2008: 56). Sendo, por parte do estudante ou do ator, um ―processo consciente de adaptação a certo tipo de cena e de teatro‖ (PICON-VALLIN; 2008: 64), em que ele pretende fazer jus às expectativas, suas e do meio artístico, de ser apto a criações que satisfaçam aos critérios de qualidade vigentes, este processo acaba por se pautar em termos de adequação. Os parâmetros para esta adequação influenciam de maneira mais ou menos decisiva o processo pedagógico, orientando o que deve ser feito pelo estudante e como os condutores da formação (professores, mestres, diretores, etc) devem proceder para levá-lo à adaptação desejada. Um parâmetro bastante usual é o cotejo com o modo como seu trabalho chega ao espectador: ―a preparação do ator, em particular de suas emoções, só faz sentido na perspectiva do olhar do outro, logo, do espectador, que deve estar em condições de ler os índices fisicamente visíveis da personagem trazida pelo ator‖ (PAVIS; 2008: 54). Os diversos treinamentos dialogam com o contexto em que estão inseridos, e no caso de Meierhold e Stanislavski ele era marcado pelo cientificismo do final de século XIX e início do século XX: Os resultados dessas pesquisas são organizados em função das grades racionais fornecidas pelas ideologias da época (marxismo, produtivismo, taylorismo) e pelas descobertas da psicologia objetiva americana, da teoria periférica das emoções (William James) e da reflexologia soviética (I. Pávlov, I. Bekhterev) (PICON-VALLIN; 2008: 67).

Picon-Vallin faz notar o interesse destes encenadores por descobrir ou estabelecer as chamadas ―leis do palco‖. A perspectiva com aspirações científicas se concretiza na tentativa de desvendar como as coisas se dão no palco para controlá-las de acordo com

os objetivos artísticos de cada encenador. Tais modos teatrais ou modos de operar da realidade teatral são vistos como leis, analogamente ao discurso científico em sua postulação das leis naturais: Na prática de Stanislávski e de Meierhold, a busca de leis para o teatro está muito presente. As que são formuladas de modo experimental ao longo de suas investigações são exploradas, testadas ou aplicadas nos exercícios criados para e com o ator (...). (...) Reivindicada como procedimento científico, a busca das leis é acompanhada por um pragmatismo que permite que cada um encontre sua via, seu caminho. Como diz ainda Ruffini, ―a eficácia se mede pelo grau de adaptação que o ator adquire pouco a pouco‖ (PICON-VALLIN; 2008: 66).

É preciso esclarecer, para que não se estabeleça aqui uma confusão terminológica, que estas leis do palco são como as leis científicas, as leis naturais, e não leis jurídicas. Como reivindicam um estatuto de lei natural, enquanto regras as leis do palco assumem status de normas. Aproveitando para tentar expor a associação da normatização com a adoção de uma técnica teatral de atuação, utilizo o que Foucault desenvolve em Soberania e Disciplina (FOUCAULT: 1985): a norma, para Foucault, difere da lei soberana de acordo com o tipo de relação que cada uma das duas estabelece com o que deve ser feito (a regra). Enquanto a lei do soberano se relaciona com o campo jurídico, com a regra entendida como efeito da vontade soberana, a norma dirá respeito às ciências e às suas descobertas e construções discursivas sobre os processos percebidos na natureza e estruturados metodologicamente como ―leis naturais‖. Assim, a norma terá uma aura de cientificidade - de ser ―natural‖: As disciplinas110 são portadoras de um discurso que não pode ser o do direito; o discurso da disciplina é alheio ao da lei e da regra enquanto efeito da vontade soberana. As disciplinas veicularão um discurso que será o da regra, não da regra jurídica derivada da soberania, mas o da regra “natural”, quer dizer, da norma; definirão um código que não será o da lei 111 mas o da normalização; referir-se-ão a um horizonte teórico que não pode ser de maneira alguma o edifício do direito mas o domínio das ciências humanas; a sua jurisprudência será a de um saber clínico (FOUCAULT; 1985: 189).

Isso acarreta uma obediência ―natural‖ à norma, como se a única alternativa fosse segui-la. Estas regras ―naturais‖, leis naturais, parecem se assemelhar às ―leis do palco‖, como percebidas pelos encenadores aludidos aqui. Os casos em que tais leis ou normas não são seguidas são tidos como desvios (como frequentemente são consideradas

110

No contexto do texto de Foucault, este termo ―disciplinas‖ diz respeito ao sistema disciplinar, às coações disciplinares, e não às disciplinas científicas, à setorialização do saber científico. 111 A lei jurídica, neste caso.

atuações teatrais desarmônicas às técnicas hegemônicas) e esta naturalização configura um problema quanto ao exercício de poder. Este problema não é o fato de que se perceba que tais ou tais regras são atreladas a alguns processos pedagógicos, mas a possibilidade de que tais regras possam ser negadas e como são encaradas estas negações. Se a regra é associada a alguém que a estipulou, o confronto é possível. Se ela é naturalizada e associada a uma lei natural, uma norma, confrontá-la já se torna mais problemático, porque seria anti-natural, anormal. Adotando-se os preceitos de uma determinada orientação teatral (pedagógicas, na maior parte dos casos), que são construídos segundo as leis do palco que são assumidas em cada processo, a pedagogia do teatro visa preparar o aluno para que ele, em seu trabalho no palco, atenda a estes preceitos. Assim, a formação tem um caráter de previamente garantir o que o ator fará posteriormente no palco, momento em que ele estará diante da platéia e supostamente aplicará o que foi ensinado e ensaiado. Jerzy Grotowski, diretor polonês que nos seu primeiros trabalhos como encenador praticou processos excepcionalmente intensos de treinamento, percebeu problemas que os mesmos podem acarretar, principalmente quanto a um adestramento do ator: Segundo Grotowski, visando ‗habilitar-se‘ para seu trabalho, o ator estaria, muitas vezes, reforçando a divisão entre ele mesmo e seu organismo. Produzir-se-ia, assim, um corpo ‗domesticado‘, não ‗liberado‘ para as possibilidades do ‗processo criativo‘‖ (MOTTA LIMA; 2008: 51-52). O caráter de preparação do treinamento, de uma formação que visa algo que ainda ocorrerá (a presença do ator no palco) pode acabar adquirindo um teor de controle e normatividade prejudicial, graças ao seu componente de precaução e de predeterminação: A crítica mais central de Grotowski era efetivamente à dissociação entre o mental e o corpo, dissociação que se materializava tanto através de uma certa pedagogia para o ator, quanto através do próprio profissionalismo, ou seja, em última instância, através dos ‗modos de fazer‘ do teatro. Grotowski criticava a ‗criação‘ desse corpo separado da consciência que se submetia a executar as ordens dessa consciência. Na origem dessa domesticação, dessa escravidão, Grotowski via uma atitude com relação ao próprio corpo – ―e não somente no plano físico‖ - : o corpo era percebido como um inimigo íntimo e, justamente por isso, era necessário controlá-lo; haveria um desprezo ou uma falta de confiança, ou ainda uma confiança distorcida - assim Grotowski nomeava o virtuosismo – que via, no controle imposto pela consciência, algo salutar: ―Com o corpo, com a carne, não estão à vontade, estão antes em perigo‖. Os exercícios corporais e vocais eram, na maioria das vezes, baseados nessa desconfiança, pois, sentindo-se em perigo, o ator e seus instrutores buscavam, nos exercícios e na técnica, um lugar de proteção. Grotowski falou, então, da técnica como asilo. O controle, o domínio, o aperfeiçoamento impetrados ao

corpo afastavam o ator do confronto / contato com esse seu próprio corpo, com esse motor vital desconhecido, embaraçante, constrangedor, contraditório, passional, erótico, divino(?), enfim, não domesticado. A técnica - com sua moral e suas exigências - mais do que apenas impedir o ato acabava tomando o seu o lugar (MOTTA LIMA; 2008: 223-224).

Se consideramos que o controle é eminentemente uma tentativa de evitar de antemão o desvio ou aquilo que não é adequado (e a norma é uma modulação do comportamento visando a manutenção deste controle), estas precauções estruturadas e presentes no ensino de teatro têm um caráter de controle e normatividade. Mas pode haver outras maneiras de se lidar, no processo pedagógico teatral, com o que se mostra inadequado ou adequado. Uma delas seria não se tentar controlar de antemão (ou pelo menos não controlar tanto) o que ocorrerá em cena. O que se diferencia aqui não é tanto escolher ou não algo que seja adequado, mas a maneira de lidar com a ocorrência do inadequado. Quando o processo de busca de aprimoramento não se dá por controle, há uma assimilação e aceitação de que eventualmente o não desejado surja, sem que se evite de antemão normativamente que ele ocorra. Sobre a assimilação de normas e características de controle neste processo do aluno de teatro, convém fazer alusão à diferenciação entre disciplina e controle, como exposta por Giuseppe Cocco e Antonio Negri, amparados na descrição que Gilles Deleuze compõe sobre o que chama de sociedade de controle: Esta distinção pressupõe a passagem histórica, efetuada na segunda metade do século XX, da sociedade ―disciplinar‖ à sociedade de ―controle‖. A distinção foi evidenciada nas análises de Foucault e Deleuze. Simplificando, para Foucault a sociedade disciplinar é a sociedade na qual o comando social é construído através de uma rede ramificada de dispositivos que regem costumes, hábitos e práticas produtivas. Este modelo prevaleceu em toda a primeira fase de acumulação do capitalismo europeu. Trata-se de um modelo baseado na rentabilidade da produção que normaliza os comportamentos desviantes (ou não) por meio de grandes instituições como a prisão, o manicômio, a escola ou a fábrica. A regra provém do exterior, inscreve-se no sujeito através das instituições. Não é o que acontece no segundo tipo de sociedade. Eis como Deleuze a caracteriza: ―Deve-se, ao contrário, compreender a sociedade de controle como aquela na qual os mecanismos de comando fazem-se cada vez mais democráticos, cada vez mais imanentes ao campo social, difusos no cérebro e no corpo dos cidadãos.‖ Aqui a regra é cada vez mais interiorizada, tende para um estado de alienação autônoma. Lá onde a sociedade disciplinar procedia através de redes ramificadas de dispositivos, a sociedade de controle opera por meio de redes flexíveis, moduláveis e flutuante. (NEGRI & COCCO; 2005: 214- 215).

Uma distinção específica que nos é muito útil para o esclarecimento deste desenvolvimento conceitual e associações entre a pedagogia teatral e processos normativos é o estatuto ou lugar onde a regra ou a norma residem em cada tipo de

atuação do poder. Selecionando pontos da descrição relatada por Cocco e Negri, saliento que em sistemas disciplinares ―a regra provém do exterior‖, ao passo que quando o controle é hegemônico ―a regra é cada vez mais interiorizada, tende para um estado de alienação autônoma‖: Grotowski opunha-se fortemente à formação concedida aos atores. Ela estava, segundo ele, focada em ensinar o ator a observar, controlar e manipular os seus chamados instrumentos vocal e corporal - dissociando o ator de seu corpo / voz - com vistas à produção da expressão requerida. Ela não era, portanto, orgânica. Não levava em consideração os processos sempre - e para sempre - mutáveis de cada organismo, de cada ator. Não levava em consideração o momento presente, sendo sempre um projeto colocado por sobre o corpo e a individualidade do aluno. Grotowski falou, nesse sentido, na produção de uma armadura (MOTTA LIMA; 2008: 220).

Esta domesticação do ator visa a que ele cumpra os quesitos básicos para que sua presença seja minimamente aceita, dentro das normas, no palco. Se o palco tem leis naturais de funcionamento, é a isso que o ator tem de corresponder, respeitar. A sua formação, então, em seu modo de se processar e transmitir, e na maneira como ela deve ser seguida, acaba por se constituir como norma a ser seguida, e em termos de controle. Um endividamento, como ―denunciado‖ por Deleuze em suas reflexões sobre a sociedade de controle (DELEUZE; 2000), pode ser observado na relação que muitos atores têm com seu objetivo de portarem uma ―boa‖ técnica de atuação. A boa técnica seria colocada como um porto a ser atingido, como uma meta que desqualifica o momento presente (um ―ainda não‖) e justifica diversos procedimentos e normas, que constituem um processo de subjetivação, ―normas implícitas, maneiras específicas de pensar e de se comportar, que adquirimos e incorporamos‖ (BARBA; 2003: 29). E, no que notamos nas referências bibliográficas e nas aulas de formação de ator, e amparados pela experiência e pelo processo reflexivo de Grotowski, podemos dizer que os processos de formação para a atuação são predominantemente aplicados e incorporados normativamente, reforçando no aluno este processo de almejar o que virá no futuro: ―além disso, a própria expectativa do aprendiz com relação à aprendizagem, focada na aquisição de modos de fazer, na aprendizagem de meios, impulsionava a criação de modelos que passavam a ser aplicados indistintamente‖ (MOTTA LIMA; 2008:220). Lembrando Foucault, ao falar de ―captar a instância material da sujeição enquanto constituição dos sujeitos‖ (FOUCAULT: 1985; 182), podemos trocar os termos e captar a ―instância material do treinamento de atuação (sujeição) enquanto constituição dos atores‖ (uma ―subjetividade ator‖). É oportuno colocar em evidência esse estado constante de ―ainda não ser‖ do ator em formação frente a um patamar técnico ou

ontológico, idealizado, que se constitui em objetivo a ser atingido. Este estado dá ao aluno da cena, principalmente aos jovens, uma sensação de devedor em relação aos graus ou degraus a que necessita corresponder, níveis ―superiores‖ que podem ser vistos como instâncias de poder. Este constante ―ainda não ser‖, uma dívida perpétua, está relacionado também com a crise de identidades presente na intensificação tardia da modernidade e no momento de crises paradigmáticas pelo qual passamos. Em um nível mais amplo da cultura e sociedade contemporâneas, a percepção da incidência de um endividamento, e não mais da predominância de uma disciplinarização de corpos, leva à visualização da conexão não estritamente corporal na ação do controle. Deleuze em seu ensaio Sociedade de Controle (DELEUZE; 2000) afirma que o encarceramento característico da sociedade disciplinar foi substituído por formas de controle que não impedem o aparente trânsito livre do sujeito no espaço. Sendo seu modo de aplicação a disciplina, o controle, a moldagem, modulação, o tempo ou utilizando o que puder ser capturado e/ou aproveitado como dispositivo, há uma outra característica fundamental na percepção que Foucault nos convoca a ter sobre o poder (ou melhor, ―os poderes‖). Trata-se do fato de que seu modo de operação deixou de ser repressivo e se tornou, cada vez mais, produtivo. O poder, a partir de uma mudança que se operou na era moderna, se tornou indutivo à produção: O soberano só exerce, no caso, seu direito sobre a vida, exercendo seu direito de matar ou contendo-o; só marca seu poder sobre a vida pela morte que tem condições de exigir. O direito que é formulado como ―de vida e morte‖ é, de fato, o direito de causar a morte ou de deixar viver. (...) Ora, a partir da época clássica, o Ocidente conheceu uma transformação muito profunda desses mecanismos de poder. O ―confisco‖ tendeu a não ser mais sua forma principal, mas somente uma peça, entre outras com funções de incitação, de reforço, de controle, de vigilância, de majoração e de organização das forças que lhe são submetidas: um poder destinado a produzir forças, a fazê-las crescer e a ordená-las mais do que barrá-las, dobrá-las ou destruí-las. Com isso, o direito de morte tenderá a se deslocar ou, pelo menos, a se apoiar nas exigências de um poder que gera a vida e a se ordenar em função de seus reclamos. (FOUCAULT; 1979: 128)

Numa passagem do que antes era ―fazer morrer e deixar viver‖ - ou seja, a punição, o poder de morte sobre os súditos - a forma de exercício do poder passa a ser predominantemente um ―fazer viver e deixar morrer‖. Isto ocorre principalmente com o advento do capitalismo e com uma necessidade cada vez maior de aproveitamento racional da mão-de-obra. Este fazer viver é o viver produtivo, dentro de termos aproveitáveis, capturáveis e colonizáveis num nível mais global, com um ―mecanismo

que permite extrair dos corpos tempo e trabalho mais do que bens e riqueza‖ (FOUCAULT; 1985: 187): [...] dizer que as relações de poder produzem é reconhecer que elas induzem efeitos que não são apenas de gestão, de limitação e eventualmente de sanção do real, mas que elas permitem ao contrário um superávit positivo de realidade – ou, para dizê-lo em termos mais ontológicos que políticos, uma produção de ser. Esta produção de ser afeta em primeiro plano os sujeitos que são apreendidos pelas relações de poder: ela é o que Foucault chamará em seguida de produção de subjetividade. (REVEL; 2005 :198)

A repressão deixa de ser eficaz e aproveitável, uma vez que assimilar e fomentar o desejo de produção dentro das normas é o que se torna mais atraente, por exemplo por parte da burguesia: ―os poderes têm menos necessidade de nos reprimir do que de nos angustiar, ou, como diz Virilio, de administrar e organizar nossos pequenos terrores íntimos” (DELEUZE & PARNET; 1998: 75). Talvez possamos pensar que, de certa maneira, também o endividamento e o desejo de ―trabalhar duro‖ para a posse de uma técnica de atuação não estariam distantes desta forma de controle pela dedicação à produção. Associamos esta situação à formação do ator (ou ao ensino de teatro em geral) e ao processo de subjetivação inerente ao desejo deste de melhor corresponder aos critérios que delimitam o que seria um bom ator/aluno de um mau ator/aluno (critérios normativos e identificatórios). Por fim, é preciso considerar o que pode ser notado na pedagogia do teatro: que o ofício de ator, aquele caracterizado pelos atores profissionais, e o fazer teatral orientado para a produção de espetáculos, ainda se mostra como grande norte para as aulas de teatro em escolas do ensino formal. No ensino básico, ―a atitude do professor de artes tem se restringido a mediar os referenciais teóricos da produção teatral da tradição com os referenciais culturais dos alunos‖ (ANDRÉ; 2007: 94). Este ensino demonstra ter ainda como eixo o aprendizado (ou a imitação precária) de tecnologias de atuação de atores profissionais. Mesmo que apenas uma parcela expressivamente pequena dos alunos entre na carreira de ator, é o sistema de produção e exibição de espetáculos que direciona o rumo destas aulas. Se aceitamos a perspectiva valorizada pelos autores dos livros referenciais e alguns pesquisadores da pedagogia do teatro, este ensino não precisa se submeter ao processo de ―alfabetização do indivíduo na linguagem da cena produzida por profissionais‖ (ANDRÉ; 2008: 134). Não ensinamos para os alunos geografia, por exemplo, porque eles devem ser geógrafos - não necessariamente. Ensinamos geografia, português, matemática, ciências naturais, porque estes campos de

saber e atuação humana são importantes para a vida de todos. O mesmo ocorre para o teatro. Consideramos que as preconizações dos PCNs aos professores de arte permitem uma visão mais ampliada do ensino de artes, onde estão em operação componentes estéticos fundamentais no desenvolvimento da pessoa. Mas temos também de considerar críticas que possam ser feitas aos atuais parâmetros curriculares nacionais, detectando, no caso do ensino médio, por exemplo, que ―as finalidades educacionais dos PCNEM visam especialmente formar para a inserção social no mundo produtivo globalizado‖ (LOPES; 2002: 389). É preciso ter em conta os cuidados necessários para que alimentar o mercado de trabalho não seja o único orientador para a educação, para que esta não funcione como um dispositivo pautado na lógica de um ―investimento cuja acumulação permitiria não só o aumento da produtividade do indivíduo-trabalhador, mas também a maximização crescente de seus rendimentos ao longo da vida‖ (GADELHA; 2009: 150). A educação, neste enfoque, se relacionaria aos processos de subjetivação quanto à ―produção de sujeitos‖: (...) em se tratando da educação, poder-se-ia falar dos modos através dos quais ela se agencia à questão ou ao problema ‗da subjetividade‘: num primeiro caso, envolvendo-se em processos, políticas, dispositivos e mecanismos de subjetivação, isto é, de constituição de identidades, de personalidades, de formas de sensibilidade, de maneiras de agir, sentir e pensar, normalizadas, sujeitadas, regulamentadas, controladas; [...] (GADELHA; 2009: 173)

Ora, os estudos da subjetividade visam algo diverso: a criação de condições para a produção singular de subjetividade. O ensino de arte, nesta tomada de posição, foge à normalização e visa produzir formas criativas, estratégicas, de viver: ―[...] num segundo caso, em que a resistência ao poder entra em foco, dando-se por uma via éticoestética, pode-se pensar como ela, a educação, se encontra implicada na invenção de maneiras singulares de relação a si e com a alteridade‖ (GADELHA; 2009: 173). É neste sentido que a proposta de produção de subjetividade pode ser pensada como um ganho conceitual nas reflexões sobre a docência do teatro em escolas. Nos estudos da subjetividade, investigam-se, dentre outras questões, os agenciamentos inventados ao se construir novas formas de viver - de caráter eminentemente estético-político. De fato, os últimos estudos de Michel Foucault, que, de certo modo, em toda sua obra abordou a questão do sujeito, se detiveram sobre as chamadas ―técnicas de si‖ praticadas na antiguidade grega, onde a busca por uma vida estética era primordial. Emoldurando um recorte que contemple os interesses deste artigo, podemos destacar o que o autor francês

afirmou de maneira exemplarmente sintética, em entrevista concedida em abril de 1983, onde discorria sobre suas últimas pesquisas: O que me surpreende é o fato de que, em nossa sociedade, a arte tenha se transformado em algo relacionado apenas a objetos e não a indivíduos ou à vida; que a arte seja algo especializado ou feita por especialistas, que são os artistas. Entretanto, não poderia a vida de todos se transformar numa obra de arte? Por que deveria uma lâmpada ou uma casa ser um objeto de arte, e não a nossa vida? (RABINOW & DREYFUS; 1995: 261).

É nesta confluência conceitual que é construída a perspectiva de docência em teatro sugerida neste ensaio que, defende-se aqui, favorece que as práticas docentes, no ensino fundamental e médio e nas formações de ator, construam caminhos singulares para desenvolver uma percepção teatral, estética, da vida. Efetivando esta maneira de operar a docência de teatro, alunos e professores são mais potentes no sentido de reconfigurar suas formas de viver, suas relações sociais e sua criação artística (que desejamos ser imbricada com a vida cotidiana), inventando e experienciando um campo que permite o exercício e a produção criativa de subjetividade. Referências ANDRÉ, Carminda Mendes. O teatro pós-dramático na escola. Tese apresentada à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – USP, para obtenção do título de Doutor em Educação. São Paulo: USP, 2007. ______. Espaço inventado: o teatro pós-dramático na escola. Artigo presente em Educação em Revista, nº48. Belo Horizonte: Faculdade de Educação da UFMG, 2008. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/edur/n48/a07n48.pdf BARBA, Eugenio. Le corps crédible. In: ASLAN, Odette (org.) Le corps en jeu. Paris: CNRS Éditions, 1994. ______. L‘Élève est plus important que la méthode. In: FÉRAL, Josette (org). L‟école du jeu – Former ou transmettre... les chemins de l‟enseignement théâtral. Saint-Jeande-Védas: L‘Entretemps, 2003. DELEUZE, Gilles & PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998. DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 2000. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I – A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1979. ______. Microfísica do Poder. São Paulo: Graal, 1985 (2007). GADELHA, Sylvio. Biopolítica, governamentalidade e educação – introdução e conexões a partir de Michel Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

LOPES, Alice Casimiro. Os parâmetros curriculares nacionais para o ensino médio e a submissão ao mundo produtivo: o caso do conceito de contextualização. In: Educação e Sociedade, v. 23, n. 80, p. 386-400. Campinas: CEDES UNICAMP, setembro/2002. disponível em http://www.cedes.unicamp.br/revista/rev/rev80.htm. Acessado em 20/09/2011. MEC/SEF – Ministério da Educação / Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais : arte. Brasília: Governo do Brasil, 1998. Disponível em http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/arte.pdf. Acessado em 20/09/2011. MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2005. MOTTA LIMA, Tatiana. Les Mots Pratiqués: relação entre terminologia e prática no percurso artístico de Jerzy Grotowski entre os anos de 1959 e 1974. Rio de Janeiro: Tese de doutorado – PPGT / UNIRIO – Universidade Federal do Estado do Rio de janeiro, 2008. NEGRI, Antonio & COCCO, Giuseppe. Glob(AL): biopoder e lutas em uma América Latina globalizada. Rio de Janeiro: Record, 2005. PAVIS, Patrice. A Análise dos Espetáculos. São Paulo: Perspectiva, 2008. PICON-VALLIN, Beatrice. A arte do teatro: entre tradição e vanguarda: Meyerhold e a cena contemporânea. Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto: Letra e Imagem, 2008. RABINOW, Paul & DREYFUS, Hebert L. Michel Foucault: uma tragetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. REVEL, Judith. Experiénces de la pensée – Michel Foucault. Paris : Bordas, 2005. ______. Dictionnaire Foucault. Paris: Ellipses, 2008.

Investindo no Corpo da Mãe: A Subjetivação da Mãe Naturalista como Modelo de Maternidade Karina Mirian da Cruz Valença Alves Atualmente, várias autoras feministas apontam a emergência de uma ampla rede de saberes e cuidados acerca de mulheres grávidas (SCHWENGBER, 2009, MAYER, 2005), que vão, por exemplo, da obstetrícia à nutrição, da psicologia à educação física. Mayer (2005) entende que essa rede que se engendra está na base de um movimento contemporâneo mais amplo, que a autora chama de ―nova politização do feminino e da maternidade‖. Nova, aí, não significa inovadora, mas atualizada: uma atualização, exacerbação e complexificação dos cuidados a serem investidos nos corpos femininos, principalmente nas mulheres-mães. Inspirada por Marilyn Yalom (1997), que se referiu à ―politização do seio feminino‖ para descrever as condições de emergência de um processo que posicionou a mulher-mãe no centro das ―políticas de gestão da vida‖ nas sociedades ocidentais entre os séculos XVII e XIX, Mayer (op. Cit) usa a noção de ―politização do feminino e da maternidade‖ para pensar as atuais condições que reinscrevem a mulher-mãe em um regime de vigilância e regulação de certos modos de viver e sentir a maternidade que incidem na quase exclusiva responsabilização da mãe pelo bem-estar das crianças. Na mesma esteira, Schwegber (2009) afirma que as políticas de gestão da vida, ou ―politização de corpos grávidos‖, como denomina, funcionam de modo a fixar na mulher não só a exclusividade do processo reprodutivo strictu sensu, mas da produção da vida social no que tange a aspectos como cuidado, criação e educação dos filhos e filhas. Tal afirmação é corroborada por trabalhos como o de Carvalho (2004), que demonstra que o uso do termo genérico pais de alunos/as esconde a condição de gênero inscrita na dinâmica da participação familiar na vida escolar, participação majoritariamente feminina. Ou, ainda, por estudos como o de Soares (2007), que aponta que a crescente participação das mulheres no mercado de trabalho não as isentou nem reduziu a sua jornada com os afazeres domésticos. Pelo contrário, nas faixas etárias



Doutora em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco e professora da Faculdade Educação da Universidade Estadual do Ceará no Curso de Pedagogia. E-mail: [email protected]

onde a inserção das mulheres no mercado de trabalho é maior e que coincide com a presença de filhos menores, a intensidade do trabalho doméstico é ainda mais elevada. Donzelot (1989), no seu Polícia das Famílias, já havia fornecido uma série de exemplos que revelavam como o Estado moderno francês passou progressivamente a se apresentar como suporte às mães populares para que mantenham seus filhos dentro da lei e da ordem, e que as ações intervencionistas do Estado na vida das famílias dependeram de uma aliança com a mãe em torno da vigilância e do controle sobre as crianças. Badinter (1985), em O Mito do Amor Materno, também pensando a organização do Estado moderno francês, demonstrou como tal organização implicou num descentramento do papel do pai em proveito do da mãe, que passa a ser central. A política de assumir e proteger a infância traduziu-se, segundo a autora, não só numa vigilância cada vez mais estreita da família, mas também no enfraquecimento do patriarcado familiar por um ―patriarcado de Estado‖: a autoridade simbólica do pai teria sido usurpada por agentes como o juiz ou o educador. Já a mãe é solicitada a assumir uma postura cada vez mais orientadora e educadora do lar, emergindo aí a individuação da mãe responsável ou da ―boa mãe‖, para a qual a invenção do ―instinto materno‖ é fundamental. Assim como na França, no contexto brasileiro, a construção do papel feminino de mãe, nas primeiras décadas do século XX, inseriu-se no conjunto das propostas mais amplas de reorganização do social formuladas por reformadores republicanos, como aponta o estudo de Freire (2006). Nesse caso, a aliança estabelecida entre mulheres das camadas médias urbanas e médicos higienistas (também verificada na Europa) favoreceu a emergência de uma ―maternidade científica‖ que encarnava o desejo de assepsia de uma nascente modernidade brasileira: amparada pelos aconselhamentos médicos desenvolveu-se uma mudança nas práticas de criação das crianças com os cuidados puericulturais aprendidos pelas mães, bem como uma transformação no valor da própria função maternal alçada a parceira de primeira ordem do Estado que se pretende modernizar. Tais estudos demonstram como parte essencial do processo de organização da vida social prescinde da subjetivação da mãe como dobradiça entre a conduta individual e a coletiva. Desde as políticas de Estado até revistas, jornais, cinema, propaganda, a mãe é alvo de investimentos que a solicitam a assumir determinados predicados que sintetizam as representações de maternidade.

Tal processo de subjetivação se inscreve hoje num contexto mais amplo de desencaixe (GIDDENS, 2002), caracterizada pela frouxidão e permeabilidade de modelos que orientem as práticas, que multiplicam apelos à subjetivação tanto quanto multiplicam os dispositivos de normalização: no caso da subjetivação da mulher-mãe, uma gama de injunções e prescrições se multiplicam. Entre os muitos dispositivos que emergem no sentido da produção da subjetivação de mulheres-mães na contemporaneidade, destacamos aqueles que se inscrevem em meio às reivindicações ecológicas atuais, que apontam para a normalização de uma mãe eco-centrada, preocupada em um exercício da maternidade mais naturista e ecologicamente sensível. Enquanto ―ideal de sujeito‖, este que se desenha parece apto a encarnar os dilemas abertos pelo modelo de desenvolvimento predatório da modernidade, representando um projeto de sociedade ambientalmente sustentável, lugar emblemático das buscas contemporâneas de ressignificar os agenciamentos da experiência individual e coletiva. Manifestando os tensionamentos éticos e políticos acerca de uma nova ordem societária, será desde a legitimidade conquistada pela crítica ecológica à sociedade instituída que este ideal de mãe ecologicamente orientada vai remeter a um modo instituinte de ser. A Mãe naturalista como modelo: indícios de uma formação discursiva Mais e mais mulheres sentem-se instadas a assumir práticas e comportamentos pautados por possibilitar a seus filhos saúde e educação mais naturalistas. O conjunto dessas práticas parece apontar para a emergência de uma certa cultura de maternidade naturalista, que, mesmo predominante entre as camadas médias urbanas, começa a se difundir no imaginário de nossa época como modelar, passando a disputar, entre as representações de maternidade vigentes, lugar de destaque como modo instintuinte de ser boa mãe. Vejamos alguns dos comportamentos esperados para a mulher que queira tornarse mãe conforme esse modelo. Sigo de perto a discussão feita por Badinter, Próxima da natureza que lhe define, a Mãe Natura deseja um parto natural, encarando a dor como uma mostra da intensidade da experiência singular de parir, prova maior de amor a mais que só a mulher pode dar.

Amamenta até os dois anos de vida

do bebê (como indicado pela OMS) em função do tipo de proteção que o leito materno favorece à imunização natural do bebê, bem como do tipo de vínculo mãe-bebê que

estabelecido durante esse período. Não deve procurar creches para que o vínculo mãefilho não sofra interferências e se aprofunde naturalmente, pois desse vínculo original dependerá o desenvolvimento emocional da criança. Em nome do conforto e bem-estar de seu filho, mas também em nome do valor agregado ―menor impacto ambiental‖, a Mãe Natura deve preferir fraldas laváveis. Em nome da saúde da criança, mas também como postura crítica aos alimentos industrializados, deve preparar os alimentos naturalmente, isto, claro, depois de concluir o período de amamentação, necessário tanto para a saúde do bebê quanto para a ligação entre ambos. Goidanich e Rial (2009) revelam, em estudo feito em cidade brasileira sobre o que as mulheres donas de casa consideram ser o ―consumo consciente‖, que a maioria pesquisada apresenta como um de seus principais indicadores o consumo orientado por critérios ecológicos. Tais critérios (produtos menos poluentes, reutilizáveis, de menor impacto ambiental) aparecem como indicadores das consumidoras que tais mulheres gostariam de se tornar, mas que são preteridos em relação aos critérios econômicos, apontando um dilema entre as práticas contingentes, limitadas pelas necessidades imediatas de controle dos gastos domésticos, e as deontológicas, aquelas que as mulheres dizem que adotariam se pudessem fazê-lo com freqüência. O que aparece nas falas das mulheres nessa pesquisa é o conflito entre dois valores que parecem fundamentar as identidades de mães e mulheres desejosas de cumprir ―corretamente suas funções‖ (GOIDANICH & RIAL, 2009, p. 17): a preocupação ambiental e as urgências econômicas, conflito, aliás, que está na ordem do dia. A pesquisa das autoras revela ainda o quanto as mulheres-mães parecem estar dispostas a adotar as condutas ecologicamente orientadas que estejam ao seu alcance e que não dependam de recursos financeiros para ser efetivadas, como a coleta seletiva do lixo doméstico e a adoção de sacolas reutilizáveis para a feira, desvendando um nexo entre a politização do consumo e a politização do cotidiano das mulheres, que as autoras não exploram, mas que, aqui, nos interessa sobremaneira. Mais e mais se questiona o impacto ambiental gerado pelos hábitos de consumo entre as famílias, principalmente as urbanas. Nesse contexto, multiplicam-se as injunções a que se adotem posturas diárias mais responsivas com os recursos naturais renováveis, como a prática de consumir menos água para o banho e para a escovação de dentes, a redução do consumo de energia através do desligamento de luzes dos cômodos da casa que não estejam ocupados, entre outras práticas ordinárias.

Em matéria intitulada ―Família e Impacto

Ambiental‖, publicada no

―Observatório da Mulher‖, a autora Rachel Moreno apresenta o relato de uma jornalista que se dispôs a experimentar uma nova rotina familiar, perpetrando uma ―cruzada‖ para apagar as luzes, desligar aparelhos eletrônicos e reduzir o tempo dos filhos no banho. Ainda que a matéria fale em nome da família, é a mulher quem relata as muitas ―aprendizagens‖ que a experiência proporcionou, como se aquela condensasse em si a experiência mesma da família. Tal ideal de mãe se democratiza à medida que se multiplica sua presença nos artefatos da mídia impressa e televisiva, na publicidade e nas redes sociais, mas também ao passo que atinge as camadas mais populares através de campanhas, como as desenvolvidas no Brasil, pelo Ministério da Saúde, acerca dos partos normais, veiculadas por propaganda em TV e postos de saúde no ano de 2008. Diante dos alarmantes dados relativos aos partos de tipo cesariana feitos no Brasil, que representavam em 2007, 43% dos partos nos setores público e privado, sendo ainda maiores os números praticados pelos planos de Saúde, chegando a 80%, o Ministério da Saúde lança a campanha de incentivo ao parto normal ―Parto Normal: Deixe a vida acontecer naturalmente‖. Invocando um conjunto de aconselhamentos, como ―toda mulher nasce pronta pra isso‖ (para o parto normal) - enunciado pela atriz Fernanda Lima, que, na propaganda televisa, testemunha a experiência do nascimento de seus filhos gêmeos através do parto normal –, ou ―dar à luz é a coisa mais natural do mundo‖ e ―a natureza sabe o que faz‖, presentes nos cartazes distribuídos em hospitais e postos de saúde, a campanha remete à natureza como modelo/norma e termina por associar a mãe ao natural, ratificando esta espécie de formação discursiva da maternidade naturalista que se vê estruturar. Reforçando a formação discursiva em questão, encontramos espalhada em revistas, jornais e na rede mundial de computadores a informação de que a topmodel Gisele Bündchen deu à luz ao seu primeiro filho em casa, opção que vem sendo chamada de ―parto domiciliar‖. Como ela, as mulheres que adotam essa escolha são de classe abastada e têm ―muito conhecimento sobre a importância do parto natural, conforme afirma a bióloga Ana Cristina Duarte, uma das fundadoras do Grupo de Apoio à Maternidade Ativa (GAMA), que oferece cursos de preparação para o parto, atendimento em amamentação e consultoria para mães, sediada em São Paulo.

Antes regra para camponesas ou mulheres pobres em geral, com acesso dificultado aos recursos de saúde, o parto natural, em casa, sem anestesia, começa a figurar, entre as mulheres ricas e/ou escolarizadas, como a opção de distinção para a mulher que quer dar mostras de seu amor incondicional. É o que sugerem enunciados como ―parecia que eu estava sendo partida ao meio, mas o que fica é uma sensação enorme de realização‖, que a psicóloga Andréa Almeida Prado, uma das fundadoras do site Amigas do Parto (um espaço de aconselhamento e informação para mulheres interessadas em ter partos naturais em casa) utiliza para demarcar a distância entre a dor e a felicidade que se sente no parto. Um conjunto de enunciados dispersos e heterogêneos, porém recorrentes, remete, mais e mais, à idéia de que a saúde, o bem-estar, o desenvolvimento físico, cognitivo e afetivo, e mesmo a felicidade da criança dependem de sentimentos, comportamentos, formas de cuidar e vínculos que a mãe lhes favoreça, alinhavando a já historicamente alinhavada relação mãe-criança. É o que demonstra a fala de Andréa acerca do nascimento de filha através do parto domiciliar: ―Acredito que o vínculo que foi criado ali se reflete na relação que hoje tenho com ela‖. Reforçando a aliança mulher-natureza que está na base da discursividade em torno da mãe naturalista, a parteira Vilma Nishi, enfermeira-obstetra que faz partos em casa desde 2002 afirma: ―são mulheres que acreditam na natureza e que, ao passarem por esse processo, estarão vivendo a feminilidade delas o mais intensamente possível‖. (grifo nosso). Feminilidade e maternidade, postos correlativamente, aparecem como ―a essência do ser mulher‖ (HENNIGEN e GUARESCHI, 2008, p. 81-82), definindo, por assim dizer, a ―natureza‖ mesma da mulher. O curioso na ordenação dos enunciados é o paradoxo que eles instauram. Ainda que se insista na naturalidade do processo, afinal, como informam as Amigas do Parto, o parto ―sempre fez parte da vida das mulheres‖, sendo, inclusive, ―uma sabedoria que está no corpo e nos genes de cada mulher‖, multiplicam-se os especialistas em todo tipo de aconselhamento, bem como as técnicas e as aprendizagens requeridas para uma mulher tornar-se uma ―mãe natural‖. Consultores em aleitamento, com expertise nas ―várias áreas de conhecimento do complexo universo da amamentação‖; ―especialistas em amamentação‖ ensinam de forma ―simples e didática‖ as principais recomendações da Organização Mundial da Saúde e as mais recentes evidências científicas em aleitamento materno‖; acompanhantes de parto profissionais, responsáveis pelo conforto físico e emocional da

parturiente, no acompanhamento durante o pré-parto, parto e pós-pato, as ―doulas‖ – um time de especialistas se organiza em torno desta que dizem ser a mais natural de todas as funções femininas: tornar-se mães. Multiplicam-se especialistas cujo saber parece radicar no poder de ―devolver‖ a natureza à mulher. O paradoxo aparente nessa ordem do discurso só reafirma o quanto o corpo da mulher-mãe é investido por estratégias de saber-poder que a posicionam em relação a uma engrenagem mais complexa comumente chamada desenvolvimento sustentável, para o qual os atributos requeridos à mãe naturalista concorrem sobremaneira. As novas sensibilidades em torno da natureza, atravessadas pela questão da sobrevivência da humanidade, desenham um pêndulo que vai da sensibilidade à regulação e desta novamente à sensibilidade: à medida que se aprofunda a sensibilidade em torno da natureza, mecanismos de regulação para a subjetivação de mães naturalistas são mobilizados; à medida que se lança mão de tais mecanismos de regulação, mais se aprofunda ao nível da sensibilidade, reforçando-a. Dados do IBGE (relativos ao ano de 2008 e publicados em 2009), que apresentam um quadro da desigualdade na distribuição das tarefas domésticas no Brasil, em que 86% das mulheres são responsáveis pelos trabalhos domésticos, contra 45% dos homens, dedicando em média 24 horas por semana a esses afazeres, enquanto os homens não ultrapassam a média de 9,7 horas. Análise realizada por Soares e Saboia (2007) com base no PNAD de 2001-2005 acerca dos arranjos familiares ‗casal sem filhos‘ e ‗casal com filhos‘ mostra que a jornada feminina aumenta com a presença de filhos na família, independente do rendimento familiar. No entanto, no caso dos homens, observa-se uma redução da jornada destes com tais atividades quando há a presença de filhos. Diante desses dados, cabe indagar a quem vai caber a reforma das condutas familiares sustentáveis senão, novamente, às mulheres, responsabilizadas, como ainda o são, pela dinâmica de organização da vida da casa. Ao que parece, novamente as mulheres-mães estão no interstício de uma política da vida, em que, mais uma vez, a vida da família está colocada em relação à vida da população: como reformadora do familiar, é ela o ponto do entrecruzamento entre o habitus e o socius, entre o lar e a sociedade, vinculando a solução de problemas sociais contemporâneos de grandeza e urgência (a gestão dos recursos naturais) a certos modos de praticar a maternidade (a gestão sustentável da família). A politização da maternidade revela uma zona de intersecção entre o privado e o público, em que está em jogo, cada vez mais, o investimento no próprio corpo da

mulher-mãe como lugar por onde passa a gestão política da vida na contemporaneidade. É neste contexto que se processa a prescrição minuciosa do comportamento das mulheres em nome da responsabilidade que elas teriam relativamente, não só, à saúde e ao bem-estar de seus filhos, à solidez da instituição familiar, mas, até, à possibilidade mesma da continuidade da vida no planeta. É o que podemos concluir quando nos deparamos com idEias agenciadas ao atravessamento ecologismo-feminismo segundo as quais ―a cultura feminina‖ (CF. DI CIOMO, 2003) dá às mulheres ―a responsabilidade de promover um impacto sociocultural revolucionário, criativo, em todas as áreas da existência, nas relações pessoais, nas amorosas, nas profissionais, de trabalho e nas decisões políticas, em que se decidem a paz e a sobrevivência das espécies‖ (p. 438-439; grifo nosso) – como se as mulheres já não tivessem responsabilidades suficientes! Considerações finais Em sua obra, Um Amor Conquistado: O Mito do Amor Materno, Elisabeth Badinter (1985) havia demonstrado que a sociedade ocidental contemporânea promoveu uma individualização da maternidade, na figura da mãe responsável, tanto através de práticas como cuidados com saúde, puericultura, educação na infância – como pelo investimento no sentimento maternal, emergindo a idéia de que a mãe é aquela que dá ―o amor a mais‖, a vida, o alimento e as primeiras e contínuas socializações. Contrariando a crença de que o instinto materno é inerente à mulher, a filósofa mostra como tal sentimento é produzido na urdidura das tramas históricas entretecidas nos inícios do século XIX. O interesse e a dedicação à criança não existiram em todas as épocas e em todos os meios sociais, como também o próprio conceito de amor materno é variável de acordo com as flutuações socioeconômicas que demarcam as experiências históricas, bem como segundo a cultura, as ambições e frustrações das mães. Comportamentos e sentimentos maternos são, como quaisquer outros, contingentes, e não naturais e universais. Obra fundamental para fazer avançar as desconstruções perpetradas pelo feminismo, a tese de Badinter demonstra como a divisão sexual do trabalho pesa nas atribuições da ―maternagem‖ à mulher, que a moral e os valores sociais ou religiosos podem ser incitadores tão poderosos quanto o amor materno no sentido de ajustar a mulher ao papel de boa mãe, e defende, ainda, que qualquer pessoa, não só

exclusivamente a mãe, pode ―maternar‖ uma criança (cuidar-lhe, educar-lhe, dispensarlhe atenção, carinho e tempo). Já na sua última obra, Le Conflite: La Femme e La Mére (2010), a filósofa afirma que o ideal da ―boa mãe‖ outrora desconstruído, porém não desaparecido, se transmutou e até intensificou, através da adição do componente naturalista, que esticaram para mais os indicadores que definem uma boa mãe, aumentando a complexidade da função maternal. É válido deixar claro que não é nosso interesse aqui questionar a importância do leite materno para a saúde da criança ou a validade de propostas como o parto normal. Neste trabalho, procuramos dar visibilidade a diferentes discursos e enunciados que, enfocando a mulher na contemporaneidade, visam produzir um modo instintuinte de ser mãe assentado em um conjunto de injunções e prescrições naturalistas, que posicionam a maternidade ecologicamente orientada no centro do processo de subjetivação da mulher. Propomos uma problematização acerca da forma como, atualmente, práticas discursivas em torno da ―maternidade natural‖ agenciam-se a processos de ordem histórica, política, econômica, social e também cultural, que interpelam a vida das mulheres, produzindo certos modos de ser mulher-mãe. O ímpeto que guiou este trabalho foi fazer problema a uma aparelhagem discursiva que, cada vez mais, conquista elevada notoriedade, ao propagar-se largamente no cenário das práticas culturais. Assim, problematizar o consenso, ―desnaturalizá-lo‖, foi, em grande medida, o que nos motivou, tarefa que empreendemos com a dupla preocupação, teórica e política, de colaborar para um diagnóstico acerca da condição da mulher na contemporaneidade.

Referências

BADINTER, Elisabeth. Um Amor conquistado: o Mito do Amor Materno; tradução de Waltensir Dutra. — Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. ___________. Le Conflit: La Femme et La Mère. Paris: Famarion, 2010. BRASIL. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Brasília, Comunicado Nº 40, março/2010 DONZELOT, J. A Polícia das Famílias. Trad. M. T. da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal. 2ª. Edição, 1986.

CAMINHA, Maria de Fátima Costa; SERVA, Vilneide Braga; ARRUDA, Ilma Kruze Grande; BATISTA FILHO, Malaquias Batista. Aspectos históricos, científicos, socioeconômicos e institucionais do aleitamento materno. In. Rev. Bras. Saude Mater. Infant. vol.10 no.1 Recife Jan./Mar. 2010 DI CIOMO, Regina Célia. Relações de Gênero, Meio Ambiente e a Teoria da Complexidade. In. Revista Estudos Feministas. Florianópolis 11 (2): 360, julhodezembro/2003 FREIRE, Maria Marta de Luna. Mulheres, Mães e Médicos: Discurso Maternalista em Revistas Femininas (Rio de Janeiro e São Paulo, década de 1920). Tese de Doutorado em História das Ciências da Saúde. Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz, Rio de Janeiro, 2006 GIDDENS, Anthony. Modernidade e Identidade. Tradução Plínio Dentzein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. GOIDANISCH, Maria Elisabeth & RIAL, Carmen Silvia. Movimentos Sociais, Consumo Consciente e Subjetividades: as Donas de Casa se Dispõem à Mobilização? In. CD-Rom do XIV Congresso Brasileiro de Sociologia. Rio de Janeiro, julho/2009 HENNIGEN, Inês e GUARESCHI, Neusa Maria de Fátima. Os Lugares de Pais e de Mães na Mídia Contemporânea: Questões de Gênero. In. Revista Interamericana de Psicologia. Vol. 42, Num. 1, pp. 81-90, 2008 MAYER, Dagmar Estermann. A Politização Contemporânea da Maternidade: Construindo um Argumento. In. Revista Gênero. Niterói, v. 6, n. 1, p 81-104, 2 sem. 2005 REVISTA ISTO É INDEPENDENTE. A moda do Parto em Casa. Nº Edição 1962, junho/2007 SCHWENGBER, Maria Simone Vione. A Produção da Mãe Leve, Flexível, Forte nas Páginas da Pais & Filhos. Disponível em http://www.anped.org.br/reunioes/30ra/trabalhos/GT23-3110--Int.pdf; acessado em março de 2011. WOLF, Cristina Scheibe. Profissões, Trabalhos: Coisas de Mulheres. In. Revista Estudos Feministas. Florianópolis, 18(2): 352, maio-agosto/ 2010

Heroína ou Vilã? Notas sobre Experiência de Ensino de Sociologia da Educação Bernadete Beserra Rémi Lavergne (ACRESCENTAR E-MAIL) Introdução A primeira parte do título deste artigo, ―Heroína ou Vilã?‖, foi copiada diretamente de ―fórum‖ criado pela comunidade do orkut Tive q cantar a internacional, formada por alunos da turma do primeiro semestre de 2006 do curso de Licenciatura em História, da Universidade Federal do Ceará. Criado em 17 de setembro de 2006, por Diego, um dos 43 alunos que cursaram a disciplina Estudos Sócio-Históricos e Culturais da Educação, o fórum, ao contrário do que talvez sugira o título do artigo, não foi criado para refletir sobre a sociologia. De fato, os adjetivos heroína e vilã foram ali evocados para avaliar a professora da disciplina que, segundo o fundador, ―era uma figura controvertida que, queiram ou não, marcou o nosso primeiro semestre‖. Os adjetivos ―heroína‖ e ―vilã‖ em si incitam uma hipótese inicial sobre aquele primeiro encontro com a sociologia: a disciplina não cumprira o seu objetivo de oferecer

àqueles

alunos,

futuros

professores,

o

instrumental

básico

que,

presumidamente, lhes permitiria interpretar o mundo social e os indivíduos de uma perspectiva mais crítica e menos romântica e maniqueísta. Por outro lado, a própria ideia de abertura de um espaço de debate suscita uma hipótese diferente, talvez mais plausível: aquele encontro produzira consequências. É, portanto, a partir daquele encontro e das suas consequências que refletiremos sobre o ensino da sociologia da educação, utilizar-nos-emos das referidas intervenções públicas na comunidade orkut; de trabalhos realizados pelos alunos no quadro da



Doutora em Antropologia pela Universidade da Califórnia, Riverside. Professora associada da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará.  Doutor em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará. Professor e pesquisador bolsista DCR do CNPq/ FUNCAP na Universidade Internacional de Integração da Lusofonia Afro-Brasileira – UNILAB.

disciplina e de anotações da professora. Iniciaremos apresentando as noções de sociologia e de ensino de sociologia que guiavam a professora. UMA SOCIOLOGIA RADICAL, APESAR DO NEOLIBERALISMO Meio na contramão de uma pedagogia populista ou de uma sociologia pretensamente neutra, cheia de conceitos vazios, descontextualizados e de gráficos e tabelas, a professora queria e se esforçava por ensinar – e praticar – uma sociologia nos termos propostos por Charles Wright Mills (1975), Alain Touraine (1976), Florestan Fernandes (1976) e Pierre Bourdieu (1983; 1998). Desse modo, inspirava-se pela ideia de colaborar com a construção de uma imaginação sociológica que sempre considerara indispensável à prática docente, mas que teria utilidade nas suas vidas em qualquer caminho que os alunos seguissem. Utilizava, portanto, o que Wright Mills, inspirado por Marx, considerou o primeiro fruto dessa imaginação e também a primeira lição da ciência social que a incorpora: a ideia de que o indivíduo só pode compreender sua própria existência e avaliar seu próprio destino localizando-se dentro de seu período; só pode conhecer suas possibilidades na vida tornando-se consciente das possibilidades de todas as pessoas nas mesmas circunstâncias em que ele (WRIGHT MILLS 1975 p. 12).

A imaginação sociológica, portanto, permite compreender a história e a biografia e as relações entre ambas. Tal tarefa, ainda de acordo com o sociólogo americano, passa pelo empreendimento de buscar respostas à seguinte série de questões: • Qual a estrutura dessa sociedade como um todo; quais os seus componentes e como se relacionam? • Qual a posição dessa sociedade na história humana e como ela tem se modificado ao longo do tempo? Qual o seu lugar na divisão internacional do trabalho e quais as consequências disto para as várias classes e grupos sociais que a compõem? • Que tipos de homens predominam nessa sociedade e nesse período? Quais os seus medos? Desejos? O que revelam sobre o presente? Apesar de orientada pelas questões propostas por Charles Wright Mills, a escolha da bibliografia recaía sobre textos de Émile Durkheim, Pierre Bourdieu e estudos sociológicos mais contemporâneos que tratavam mais diretamente do tema que os

concernia, a educação. Naquele semestre particularmente ela incluiu entre os textos estudados o capítulo 7 (O futuro da educação), do livro As causas da pobreza, de Simon Schwartzman, publicado dois anos antes, em 2004. Escolhia preferencialmente textos de Durkheim e Bourdieu (em detrimento, inclusive de também clássicos brasileiros como Fernando de Azevedo, Florestan Fernandes e Antônio Cândido) porque reconhecidamente clássicos do pensamento sociológico, esses autores também oferecem preciosos elementos para responder às questões acima, sobretudo para a reflexão biográfica. Aliás, foi exatamente este o trabalho que lhes propôs ao final do curso: refletirem sociologicamente sobre as suas trajetórias existenciais até a chegada no curso universitário. Ela queria e esperava que eles percebessem que outros fatores, além da sorte, os havia levado até ali. Com Alain Touraine (1976), importante teórico dos movimentos sociais, aprendera que o sociólogo não observa a realidade social, e sim relações sociais, as quais, infelizmente, não se dão à observação empírica, uma vez que jamais se apresentam como são sociologicamente porque estão sempre ―recobertas pela regra, pelo discurso e pela ideologia‖ (TOURAINE 1976 p. 18). É o próprio Touraine que compara o sociólogo ao historiador quando afirma que entre esses cientistas e os seus objetos de estudo se interpõem ―um conjunto de interpretações e de intervenções‖ (idem p. 21). É justamente nessa distância que existe entre o que é e o que parece ser e no difícil e cuidadoso esforço de separar uma coisa da outra que reside a grande dificuldade dos alunos na apreensão dessa nova forma de interpretação do mundo e das suas próprias vidas. A sociologia, bastante diferente das ciências às quais aqueles alunos haviam se acostumado ao longo da escolarização, não se constitui a partir de uma ausência de saber sobre a sociedade e os indivíduos. Ao contrário, reivindica um dar-se conta e uma reação metódica contra categorias de interpretação que fazem parte das categorias da prática social. Nas palavras de Touraine, ―a sociologia deve extrair os fatos sociológicos dos fatos sociais em que estão contidos‖ (idem, ibidem). Mas isto, ao contrário do que se pode supor, não consiste apenas de um esforço racional, uma vez que aos que desejam se arriscar pelos caminhos da sociologia exige-se que se desvencilhem ou estejam dispostos a se desvencilhar das interpretações religiosas ou políticas em que se abrigam e se confortam. Nesse sentido, o desafio do aprendizado da sociologia é sobretudo um desafio emocional.

Assim, independentemente da escola sociológica a que se filie, o sociólogo ou o professor de sociologia, tem claro que esta ciência só se tornou possível depois da destruição da visão teológico-metafísica do mundo que se sustentava na estrutura e organização sociais medievais. Portanto, seja expressa no materialismo dialético de Marx, no positivismo de Durkheim ou na hermenêutica de Weber, o nascimento e existência da sociologia pressupõem a derrota da fé e a vitória, mesmo que provisória, da razão. Pressupõem, portanto, a disposição de objetificar a fé, tanto no sentido mais restrito da religião, como no sentido da política, da arte ou da tradição. Mas, ao mesmo tempo que a sociologia clássica reivindicava a objetificação de entidades e processos até então vistos como intocáveis e sagrados, a sociologia contemporânea arrisca-se ainda mais longe e, dialogando com a crítica da filosofia da ciência de Bachelard e de filósofos, como Michel Foucault (1966), que a partir da década de 1960 mais insistentemente questionam o estatuto de verdade do conhecimento das ciências humanas, coloca-se também o desafio da objetificação do próprio sujeito cognoscente, do próprio sociólogo. Foi baseado nos princípios da ―construção do objeto científico‖, expostos por Bachelard na obra O Novo Espírito Científico (1975), que Pierre Bourdieu construiu o seu método sociológico. Como Bachelard, ele considerava que para a produção do conhecimento sociológico era fundamental a superação de pelo menos dois ―obstáculos epistemológicos‖: a realidade tal como se apresenta empiricamente e o senso comum do próprio investigador, do próprio cientista. O mesmo convite que a professora se fazia já há alguns anos, também estendia àqueles alunos: dar-se ao empreendimento de separar o conhecimento comum, opiniões, preconceitos, avaliações relacionadas à sua posição social e econômica, do conhecimento teórico, científico, que deve estar comprometido com a busca metódica da verdade, baseada em leis gerais, em conceitos e não em preconceitos. Não é, porém, uma tarefa fácil. E se já é uma tarefa bastante desafiadora para quem conscientemente fez a escolha pela sociologia, é dezenas de vezes mais desafiadora para aqueles alunos que, de certo modo, encontravam a sociologia sem a buscarem. A realidade educacional, aquela sobre a qual professora e alunos se debruçavam, é objeto de fantasia e esperança de todos, o que torna a tarefa do cientista social ainda mais difícil, pois deve construir seu conhecimento apesar e contra o senso comum; apesar e contra a ―realidade‖.

Era essa sociologia que orientava a pedagogia da professora. Desse modo, a ela não interessava refletir abstratamente sobre política, religião, capitalismo ou alienação: queria que os alunos enxergassem a concretização desses processos mais gerais e abstratos nas suas próprias histórias, nas suas biografias. Queria, por exemplo, mostrarlhes como as relações de poder e dominação se constituem e se naturalizam, inclusive, ali mesmo, naquela relação professora-alunos. O conhecimento que, com eles, se esforçava para construir não pretendia ser um conhecimento formal, superficial, que começa e se encerra no âmbito da disciplina. O que queria lhes oferecer era a sociologia nos termos bourdieusianos, como um esporte de combate, um instrumento do pensamento. Nos termos do próprio Bourdieu (no prefácio da edição brasileira de Razões Práticas): ... como uma espécie de manual de ginástica intelectual, um guia prático que é preciso aplicar a uma prática, isto é, a uma pesquisa prazenteira, liberta de proibições e de divisões e desejosa de trazer a todos esta compreensão rigorosa do mundo, que é um dos instrumentos de liberação mais poderosos com que contamos (BOURDIEU, 2008, p. 8).

Além de bastante instigante, a sociologia proposta pela professora parece também necessária e não duvidamos que a sua prática contribuiria extraordinariamente para a construção de uma prática docente mais próxima das realidades a que se destinavam aqueles futuros professores, fossem tais realidades aquelas de onde vinham ou outras para onde lhes levaria aquele diploma. Mais elementos para a compreensão do contexto: as especificidades da turma e da disciplina A pergunta que nos fazemos agora e que buscaremos responder nesta segunda parte do texto se refere à universidade e aos alunos com os quais se encontraria aquela professora e aquela sociologia naquela terça-feira, 18 de abril de 2006, mais de duas semanas depois de iniciado o semestre. A professora conta que entre o primeiro dia letivo e aquele em que finalmente se deu o encontro com os alunos houve ruídos de comunicação entre o seu Departamento e a Coordenação do Curso de História, além de aulas suspensas para a Semana da História e a Semana Santa. Não muito convencida do sentido da novidade da disciplina, sobre o que falaremos adiante, mas feliz em conhecer o mundo universitário da UFC para além dos limites da Faculdade de Educação, chegou finalmente a professora à sala da aula.

Curso de História, separado fisicamente da Faculdade de Educação apenas pelo Bosque das Letras e a Avenida da Universidade. Cinquenta alunos recém-chegados à universidade. Dois ou três mais velhos do que a média: uma mulher de idade próxima à da professora e, como ela, também expondo livremente os seus cabelos grisalhos; um ex-aluno e quase concluinte do curso de Direito que, no entanto, no último semestre havia desistido e se submetido ao vestibular para História, devia ter uns 22 ou 23 anos, e um poeta de uns trinta e poucos anos. Os outros tinham entre 18 e 20 anos. Alguns, provenientes de classes médias baixas, vinham de escolas privadas de bairro, outros, estes mais raros, de escolas mais prestigiosas, mas a maioria era proveniente da escola pública. O encontro entre pobres e ricos adiado o máximo possível por um sistema educacional perverso e segregacionista acontecia sob o testemunho da professora e nem mesmo a sociologia de Pierre Bourdieu o tornaria menos incômodo. A missão da professora não era lecionar a disciplina de sociologia da educação, como costumava fazer no curso de Pedagogia, mas uma disciplina recentemente criada e cujo nome revela bastante sobre a sua pretensão: Estudos Sócio-Históricos e Culturais da Educação. A sua rejeição ao empacotamento da Sociologia, Antropologia e História numa única disciplina era tão forte que por vários semestres ela se confundiu na ordem dos termos que compunham a ―fórmula‖. Aquele hibridismo lhe cheirava às novidades de um currículo cada vez mais econômico e mais neoliberal, onde à novidade do deslocamento do sujeito da educação do ensino para a aprendizagem aumentava-se a negligência e diminuía cada vez mais o compromisso da formação, tanto da perspectiva da universidade como dos professores, uma vez que já observava o aumento gradativo dos alunos em sala de aula, fenômeno que se agravaria a partir do REUNI. Uma coisa, porém, era positiva, mas isto ela somente foi percebendo à medida em que ―praticava‖ a disciplina nas diversas licenciaturas nas quais depois se aventurou. Pela primeira vez, depois da reforma de 1968, os cursos de licenciatura se deparavam com as ciências sociais. A partir de 2002, as diretrizes curriculares para formação de professores da Educação Básica (Resolução CNE/CP 1 e 2/2002), não mais determinam, como anteriormente, disciplinas pedagógicas obrigatórias. Referem-se, diferentemente, a conhecimentos e competências e, a partir de tais orientações, cada universidade elaborou o projeto pedagógico das licenciaturas. No caso da UFC, as disciplinas Estrutura e Funciomento do Ensino de 1º e 2º graus, Psicologia da Aprendizagem e Psicologia do Desenvolvimento foram substituídas por Estrutura Política e Gestão Educacional e Psicologia do Desenvolvimento e da Aprendizagem na

Adolescência. Didática permaneceu e é a única disciplina comum aos dois períodos. As novidades são as disciplinas Estudos Socio-Históricos e Culturais da Educação e LIBRAS e a redução da Psicologia a apenas uma disciplina, embora com o mesmo conteúdo das duas existentes anteriormente. A ementa de Estudos Socio-Históricos e Culturais da Educação era bastante geral: ―conceitos fundamentais para a compreensão da relação entre educação e sociedade. A interdisciplinaridade do pensamento pedagógico. Multiculturalismo e políticas de ação afirmativa‖. Os professores foram orientados a interpretar a ementa enfatizando suas áreas de formação. Em termos de fundamentação do pensamento sociológico, a professora decidiu que trabalharia com Durkheim e Bourdieu uma vez que os dois haviam elaborado bastante ―conceitos fundamentais‖ para a compreensão da relação entre ―educação e sociedade‖. Caso necessário, acrescentaria outros textos. A ideia, porém, era não saturá-los de leitura; mas, sobretudo, abrir espaço para a conversa; para a discussão; para o trabalho escrito. O ―diálogo‖ que se estabeleceria entre eles por ocasião das aulas expositivas e do debate sobre os textos seria um dos espaços através dos quais ela observaria como reagiam às leituras; como experimentavam aqueles conceitos e teorias e como os utilizavam para refletir sobre as suas próprias vidas. Além disso, ela exigia que no dia em que iniciavam a discussão de um novo texto, todos levassem o seu resumo, parte da avaliação geral da disciplina. Benvindos à sociologia ou a alegoria da “queda do cavalo” Tal como se apresenta no texto Educação e Sociologia, Durkheim (1955) não provoca maiores polêmicas ou sofrimentos e é mais facilmente compreensível do que Bourdieu. É um excelente exercício no aprendizado da separação entre a filosofia, o senso comum e a sociologia. A professora costuma explicar o impacto do funcionalismo durkheimiano na construção da sociologia e aproveita o ensejo da leitura para exercitar o método científico. Através da revisão que Durkheim faz dos diversos conceitos então existentes de educação, introduz a discussão sobre a metodologia das ciências sociais. A ideia é que todos os conceitos utilizados na compreensão da escola e da educação brasileiras sejam submetidos ao mesmo tipo de análise. Apesar de questionar a visão dominante do processo de socialização dos indivíduos, o fenômeno educacional, tal como analisado por Durkheim, não produz grande impacto ou sofrimento porque, se o faz, tudo é logo esquecido com a chegada de Bourdieu.

A confiança no mito do self-made-man é completamente abalada pela teoria da reprodução do sociólogo francês, mas nem sempre o choque leva à reflexão sobre estratégias de sobrevivência ou superação do neoliberalismo. Ao contrário, a primeira reação de muitos é de raiva e frustração. Contra Bourdieu e também contra a professora. Contra a professora os sentimentos negativos de alguns já se desenvolviam aceleradamente porque desde a leitura de Durkheim, ela iniciara sua argumentação em favor da construção de uma imaginação sociológica. Desse modo, as interpretações que demonstravam que o aprendizado da nova ―linguagem‖ estava acontecendo, ainda que incipientemente, eram reforçadas e as que continuavam reproduzindo as lógicas religiosa e de senso comum eram questionadas. Abaixo, apresentamos trechos selecionados do diálogo estabelecido no fórum Heroína ou Vilã que mostram como a experiência foi vivida por alguns dos alunos que sobre ela se dispuseram a conversar: Galera, devo confessar q aquela faculdade não é mais a mesma sem a presença da incrível, estupenda e maravilhosa Fátima. Mas na aula de quintafeira eu notei q as opiniões sobre ela são sempre extremas, ou ela é amada ou odiada... Agora, falando sério, eu queria discutir com vocês sobre essa (controvertida) figura q, queiram ou não, marcou o nosso primeiro semestre.. (Danilo) (17/09/2006 12:49). Sinceramente acho que esse não é o local para conversar sobre isso, sempre disse que esse não é o local para conversas acaloradas. Isso é bom conversar com calma e pessoalmente. Mas talvez se a gente conversasse sobre isso aqui ela poderia dar a sua opinião, pois pelo perfil, ela freqüenta muito esse espaço, e com certeza ela ia querer se auto-avaliar como ela tanto fez positivamente e "humildemente", é bom que se diga - em sala de aula, mas é bom que não fizesse isso aqui pois eu já enjoei das lamúrias dela, estou traumatizado até hoje e não sei quando vou tirar ela da cabeça(!). Saudações Libertárias!!! (Ricardo) (17/09/2006 15:49). Eeeeeeita! Ela é muito inteligente, isto é inegável... e as aulas dela eram movimentadas porque sempre em torno de questões polêmicas pelo modo instigante como ela tratava as nossas opiniões (q simplesmente se não fossem de acordo com as dela, q já são formadas e reformadas anos-luz antes da gente ter pensado em fazer faculdade). (...) Mas ela deveria descer um pouco do salto-alto e perceber q nós estudantes tb temos boas idéias, e q ela pode sim aprender um pouco conosco... (Marília) (17/09/2006 18:12). Eu não vejo em que ela poderia aprender conosco! Acho uma grande hipocrisia dos professores que dizem que aprenderam mais conosco do que ele pôde ensinar para a gente... A Fátima foi a melhor professora do primeiro semestre para mim, sem dúvida, e admiro imensamente a sua didática! Deixou um pouco a desejar pelos textos que ela não lia, mas aprendi bastante com ela e com Bourdieu! O livro dela é fantástico... todos vocês deviam ler!! (Yuri)(19/09/2006 11:16). A Fátima é uma pessoa legal, interessante e divertida. Apesar de um pouco ríspida, percebe-se que é uma pessoa bastante inteligente. Seu problema era apenas um pouco de arrogância. Mas não nego que gosto de gente como ela, que falam as coisas "doam a quem doer". É isso. Abraços. (Gabriel) (24/09/2006 16:25).

Hã... não acredito no que li !!!! Somos historiadores e devemos recusar esse tipo de professor, devemos aceitar pessoas que nos escutem sempre, que sejam sempre a favor da liberdade de opiniões, a Fátima não deixava vocês concluirem três frases se quer, a não ser que vocês estivessem de acordo com ela. Reitero o que sempre disse, ela nunca educou e sim alienou. Sobre os comentários, prefiro comentar um a um: Yuri - Acho que você devia ler Paulo Freire, é óbvio que os professores tem mais a aprender com a gente do que ensinar, afinal eles ensinam apenas um assunto específico e os alunos, vamos supor, 30 alunos, vivem 30 realidades diferentes do professor, acho que você deve concordar que experiência de vida também faz parte do aprendizado, ou não? Porque eu penso que sim, sugestão de leitura é o livro do Paulo Freire (Pedagogia da Autonomia). E por favor não entenda como arrogância minha isso que falo pois sei que você também tem muito a me ensinar. Gabriel - Acho que pouca arrogância não combina com ela, ela é extremamente arrogante. Waldemberg - Concordo que vai ficar mesmo na lembrança, afinal trauma não se esquece facilmente. Galera eu proponho que encerramos a discussão, pois de Fátima a nossa mente já tá cheia, para alguns uma boa lembrança, para outros (ou outro se for só eu) uma péssima lembrança. Concordam? Um abraço a todos e Saudações Libertárias...! (Ricardo) (25/09/2006 14:27). Ricardo, um professor, pra ser professor, tem de saber mais q os seus alunos, e eu não estava falando de experiências de vida, mas sim de conteúdo acadêmico, pq, não posso falar por vc, mas tenho certeza q concorda que a Universidade não é lugar para se dividir somente experiências entre os professores e os alunos. Mas vc acha mesmo q ela não aprendeu nada conosco? Se vc lesse o livro dela, iria perceber q ele é todo pautado em experiências de imigrantes, e que ela é uma profissional que realmente valoriza as pessoas, pois como antropóloga sabe que cada pessoa trás uma síntese da sociedade em que vive, e que isso é fundamental para o seu estudo. Ela não me alienou, pelo contrário, me deu uma visão que dificilmente outro professor me passaria. Dica de livro: Brasileiros nos EUA: Hollywood e outros sonhos. (Yuri) (25/09/2006 17:56). A Fátima é uma boa antropóloga, pelo que pude perceber. Sempre falava de sua experiência com as entrevistas, e nitidamente percebia-se como aquilo influenciava-a em sua visão acerca da realidade em que ela vivia. (Paula) (27/09/2006 11:51). Alguém aprendeu sobre Max Veber, alguém estudou a fundo Durkaim, alguém aprendeu alguma coisa sobre os sociólogos modernos??? Ela usava as aulas pra divulgar a pesquisa dela, pra falar sobre o quanto ela era inteligente e o quanto tinha lutado na vida. Não dá pra desqualificar a Fátima, ela realmente é muito boa. E tb não me oponho aos que gostavam dela como pessoa (eu não), mas o fato é que não tivemos uma cadeira de sociologia... E, bom, posso não ser qualificada pra fazer essa crítica, mas ela não se colocou em momento algum como uma educadora. (Marília) (28/09/2006 08:47). Não podemos estudar a fundo um assunto numa disciplina apenas... Se para vcs foi diferente não posso dizer, mas tenho certeza que ela me deu as primeiras noções de sociologia, e além de tudo, ela despertou em mim a vontade de pesquisar mais sobre sociologia da educação. Não percebi a vontade dela de se mostrar mais inteligente do que nós, talvez pq eu tive e tenho essa certeza de que ela é de fato!! Pessoal, vamos descer do pedestal, vamos acabar com essa idéia de que o professor não pode se mostrar mais inteligente do que nós! Será q isso fere o ego de alguns????? (Yuri).

As questões apresentadas pelos alunos nesse debate sobre a professora dizem muito mais do que apenas sobre a confusão que comumente se estabelece entre ciências sociais e opiniões políticas progressistas. Dizem principalmente sobre uma disputa entre concepções de educação. Primeiro discutiremos o problema da confusão sociologia – opinião. A distinção entre esses tipos de conhecimentos não é algo a que se chegue sem um treinamento específico. De fato, a superação desse obstáculo epistemológico está na base da construção de uma sociologia que não se confunda grosseiramente com ideologia. Mas, da perspectiva do aluno que não compreendeu o desafio da disciplina certamente porque, como explica o próprio Bourdieu, seu habitus não lhe permitira construir a disposição para isto, todo discurso sobre a sociedade é simplesmente opinião. Nesse sentido, ele poderia até estar certo sobre a sua verdade política, de acordo com a qual um professor obviamente tem menos o que ensinar do que 30 alunos. Sendo tudo opinião, não há o que se ensinar e sim o que ouvir, o que aprender. Desse modo, a qualidade é substituída pela quantidade porque tecnicamente todos são iguais. O desafio, neste caso, é o seguinte: como fazer alguns alunos perceberem que a sociologia não é apenas um conjunto de opiniões políticas progressistas? Como fazê-los perceber que, ao contrário, ela nos oferece o instrumental para compreender justamente como se produzem e se difundem tais opiniões? O que há por trás do multiculturalismo, das cotas, do politicamente correto, das políticas de inclusão e de toda essa instrumentalização atual em torno das ―comunidades‖? Como fazê-los entender que enquanto eles acreditam que os alunos ensinam e os professores aprendem, há muitos alunos que continuar a pagar caríssimo para aprenderem com os professores? A queixa, percebe-se, é fruto da compreensão de que em certos espaços todos os discursos devem ter o mesmo valor e o mesmo peso. Sendo todas as formas de conhecimento reduzidas à opinião, é devastador que a professora ―discorde‖ da opinião de muitos alunos e o faça do modo descrito por alguns: com arrogância e grosseria. Mas é preciso que se relativize tais interpretações, uma vez que mesmo entre os próprios alunos da disciplina elas disputadas: o que alguns veem como grosseria e arrogância outros veem como segurança e firmeza. Não há, portanto, unanimidade na interpretação da ―didática‖ da professora. Acreditamos na possibilidade de que há alternativas menos ―traumáticas‖ para o ensino da sociologia embora, como vimos nas seções anteriores, ela é uma espécie de ―nova linguagem‖ que não tem o privilégio de se aprender a partir do ―nada‖, do ―zero‖,

mas da disputa com outras formas de interpretação que carregamos conosco como se fossem a nossa própria existência: abrigos imprescindíveis num mundo caótico e perigoso. Mexer nisto é como mexer em vespeiro. Ricardo, o crítico mais contumaz da ―didática‖ da professora, baseia o seu julgamento em certa compreensão que desenvolveu da ―educação dialógica‖ de Paulo Freire. Mas, ao contrário do próprio Paulo Freire, a quem não passa desapercebida a dificuldade inerente ao diálogo, Ricardo acredita que dialogar é apenas ―escutar o outro sempre‖. O ―seu‖ diálogo pressupõe a permanente igualdade de posições, culturas e compreensões, algo bastante diferente da diversidade que se apresenta na realidade da escola e de outras instituições. A ideia de diálogo movimentada pela professora, opostamente, se baseia na dificuldade da comunicação entre os diferentes e, mais que tudo, no preço de tal comunicação. Aprender, portanto, é se desafiar, correr perigo, ter disposição de trocar o ―certo‖ pelo ―duvidoso‖. A posição de Ricardo, ao contrário do que ele próprio gostaria, não é tão radical ou revolucionária assim. Mais que fruto de um discurso radical, a ideia de diálogo veiculada na sua fala é fruto de um populismo que mais cria problemas do que resolve. Ele propõe que a professora em questão abdique do seu direito de ―correção‖ e crie, em sala de aula, um ambiente completamente artificial, condescendente e milhas distante das relações de força e poder vigente em todos os ―campos‖ sociais. Tal didática, diferentemente do que ele supõe, não desafiaria ninguém na medida em que negaria as diferenças existentes. Todos falam, todos se escutam, todos se entendem: é possível? Mas a professora, vários alunos afirmaram isto, ao contrário do que denunciou Ricardo, estava disposta a escutar, a também se avaliar e, de acordo com ele próprio, tinha a disposição da auto-crítica, embora não abrisse mão da sua autoridade de ―correção.‖ Achava que o direito à correção está contido na própria obrigação do ensino que se quer principalmente aprendizagem, ou seja, do ensino focado na aprendizagem do aluno. De acordo com os extratos trazidos acima, a professora também acreditava na possibilidade de aprender com os seus alunos, inclusive, sobre a própria sociologia. Não no sentido populista, ―democrático‖, apresentado por Ricardo. Ela acreditava, como Florestan Fernandes (1976), que o ensino de sociologia impõe ao professor o desafio de se esforçar para produzir novas sínteses, inclusive mais acessíveis a cada grupo de alunos que encontra. Nesse sentido, é muito que um sociólogo pode aprender com o magistério e ela sempre teve consciência disto.

Exatamente por que consciente desses processos, ela temia, como Paul Willis (1992) em relação aos ―rapazes‖ que pesquisou na Inglaterra, que a ―resistência‖ daqueles que consomem Paulo Freire desse modo dificulta a própria realização da ―educação como prática de liberdade‖. Não leva, portanto, à transformação, mas ao desconhecimento e à opressão. Aliás, é nesse sentido que Bourdieu e todos os sociólogos críticos ou radicais, como Florestan Fernandes e outros, afirmam que a imaginação sociológica é uma importante estratégia de libertação.

Outras reflexões à guisa de conclusão Sobre a coragem e o discernimento desses alunos na avaliação levada a cabo no fórum há muito o que se refletir, muito o que pensar, muito o que dizer. Preferimos, porém, como propõe a sociologia reflexiva de Bourdieu, objetificar a prática docente, a universidade. Que universidade abriga o conceito de professor defendido por Ricardo, o aluno mais desafiado (traumatizado) pela prática docente da referida professora? Que sociologia um currículo de licenciatura que cria a híbrida e neoliberal Estudos Sócio-Históricos e Culturais da Educação espera que se ofereça? Mas não apenas isto. De acordo com a professora, as reuniões dos professores da área de sociologia jamais discutem os desafios cotidianos da disciplina. Primeiro porque, vê-se pelo que se apresentou aqui, que o que torna a sociologia uma disciplina desestabilizante não é o conhecimento mecânico dos seus conteúdos, da sua história, mas certo compromisso em torná-la um ―esporte de combate‖ e aplicá-la à prática social, mas não apenas às práticas políticas governamentais, relativamente inacessíveis tanto àquela professora como aos seus alunos, mas a própria prática do ensino da disciplina, os seus desafios. A própria biografia de cada aluno e da professora. É óbvio que se houvesse um conhecimento sobre o ensino da disciplina, menos riscos professores como Fátima correriam. Por outro lado, não se constrói uma pedagogia ou uma didática fora da própria experiência. Aqui se chama a atenção para o fato de que os problemas criados pela docência das ciências sociais no ensino superior não são investigados pelos estudiosos do Ensino Superior no Brasil. Não há uma sabedoria produzida sobre o assunto. Mais grave ainda: não são apenas os problemas produzidos pela docência da sociologia da educação no

ensino superior que se desconhece. Os pedagogos, sociólogos, antropólogos, filósofos e psicólogos da educação estão todos concentrados na pesquisa sobre a educação básica e média e a educação superior permanece um território proibido. Silêncio completo sobre as nossas práticas. Excesso de palavras sobre os nossos ideais. A pesquisa acadêmica sobre a prática acadêmica é extremamente perigosa. Provavelmente por isto pouquíssimos sociólogos se arriscaram nessa empreitada como o fizeram Weber e Bourdieu. Não é simples refletirmos sobre as nossas próprias práticas, sobretudo porque no nosso pacto de silêncio está implícito o reconhecimento de que transitamos num campo minado. Estamos, portanto, permanentemente desativando minas e amputando órgãos destroçados pelas explosões que não conseguimos evitar Mas é imprescindível que nos indaguemos: não é significativo que entre milhares de estudos sociológicos e antropológicos apenas uns raros têm como objeto a universidade? O que nos teria a dizer Paul Willis se tivesse se dedicado a estudar a cultura escolar onde ele próprio era professor? É extraordinário, por exemplo, no caso da Antropologia, que os Spindlers, até hoje grandes nomes da Antropologia da Educação americana e possuidores de uma invejável experiência etnográfica, não tenham jamais testado seus instrumentos de pesquisa nas várias universidades pelas quais passaram. Não tenham, portanto, provado do próprio veneno. Observamos, porém, que com o crescimento da área de pesquisa sobre formação de professores, alguns aspectos dessa prática acadêmica começam a ser desvelados, mas sempre poupando a história das instituições e se concentrando nos déficits individuais. Bourdieu apresentou um modelo para o desenvolvimento desses estudos em Homo Academicus (1984), mas ele próprio conta quão difícil foi se autorizar a publicar os resultados (Bourdieu & Wacquant 1992), o que afinal somente aconteceu depois da sua entrada no Collège de France, em 1982. Inicialmente, ele apresenta o espaço acadêmico como um espaço de posições ligadas por relações de forças específicas; como um campo de forças e um campo de lutas para preservar e transformar esse campo de forças. Depois, ele se dá conta da importância de objetivar a sua própria posição, o que transforma o empreendimento da análise do campo acadêmico também numa espécie de psicanálise, onde aplica-se ao pesquisador a mesma objetivação a que ele submete todos que pesquisa. Não é uma tarefa simples porque é difícil se encontrar consigo próprio após a retirada de cada uma das incontáveis fantasias sob as quais nos

abrigamos. Mas é um desafio que precisamos empreender, sobretudo agora que a universidade brasileira se dispõe a lidar com a diferença.

Referências BACHELARD, Gaston. O novo espírito científico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995. BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 2008. BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia.Trad. Jeni Vaitsman. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. BOURDIEU, Pierre & WACQUANT, Loic. An Invitation to Reflexive Sociology. Chicago: University of Chicago Press, 1992. DURKHEIM, Émile. Educação e sociologia. Trad. Lourenço Filho. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1955. FERNANDES, Florestan. A sociologia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1976. FOUCAULT, Michel. Les Mots et les choses. Une archéologie des sciences humaines. Paris : Gallimard, 1966. SCHWARTZMAN, Simon. As causas da pobreza. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 2004. TOURAINE, Alain. Em Defesa da Sociologia.Trad. Luís Fernando Dias Duarte. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976. WRIGHT MILLS, Charles. A imaginação sociológica. Trad. Wantersir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975. WILLIS, Paul. Aprendendo a ser trabalhador. Porto Alegre: Artes Médicas. 1994.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.